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Doutora em etnomusicologia (Vergleichende Musikwissenschaft pela Freie Universität Berlin).
Professora Titular da UFBA. Diretora da Fundação Pierre Verger. Email: pesquisa@pierreverger.org
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Doutora em etnomusicologia pela UFBA (2009). Pesquisadora Assistente da Fundação Pierre Verger.
Email:pesquisa2@pierreverger.org.
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Esta área busca compreender a música (seja qual for) com um olhar antropológico, tendo passado por
várias reformulações de sua definição nos mais que 100 anos de sua existência como subárea do estudo da
música. Mais sobre a área na Europa ver nota 7. Em relação a trajetória da etnomusicologia no Brasil ver
os textos e PINTO (2005) e SANDRONI (2008).
1
trazido muitas novas contribuições à compreensão da pré-história brasileira4. Já aquelas
práticas musicais indígenas relatadas por portugueses e viajantes estrangeiros são alvo
de uma ampla trama de pré-conceitos que ganharam a posição de conceitos vigentes
durante muito tempo em um processo de difícil convivência entre culturas diferentes.
4
Ressaltamos a importância da arqueologia brasileira, p.ex. com pesquisas recentes sobre a região
amazônica, a Bahia e a Serra da Capivara, no Piauí. Estes novos aportes que trabalham com pinturas
rupestres também poderão encontrar indícios ou artefatos ligados a práticas musicais. Mas, em um
processo constante de subestimar estas fontes sobre as culturas pré-cabralinas, estas ainda não ganharam o
reconhecimento que deveriam receber.
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Optamos pelo termo “percepção” para evitar termos como: “ponto de vista”, “na visão de” ou “olhar”,
mesmo que na nossa cultura contemporânea pós-moderna entendemos a percepção automaticamente
como algo ligado ao olhar. Mas no nosso caso trata-se, obviamente, de uma questão da escuta.
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Sabemos também que os sons musicais produzidos pelos africanos que chegaram ao
Brasil em condições de escravizados tampouco suscitaram interesse ou compreensão.
Ao contrário, em geral foram percebidos e ouvidos apenas como ruídos dissonantes,
certamente pela predominância de sons percussivos, e muito distantes das expressões
artísticas européias, predominantemente melódicas e harmônicas, que seriam
supostamente expressão da “verdadeira arte”. Esta percepção etnocêntrica fez com que
tivéssemos poucas informações sobre as práticas musicais autóctones ou presentes no
Brasil antes do séc. XIX6 e menos ainda reflexões mais conceituais. Eventualmente
aparecem comentários sobre práticas musicais das classes mais abastadas com a
intenção de mostrar a proximidade com a Europa e o nível de desenvolvimento, sobre
danças de salão, orquestras particulares, embora muitas vezes em contato auditivo com
as demais músicas que vinham das ruas (BINZER, 1982; TINHORÃO, 1990).
Mas é preciso relativizar e lembrar que este tipo de observação, digamos mais
contextualizada, tampouco era a regra na Europa da época das conquistas em relação às
culturas locais autóctones da época ou de períodos anteriores. Aliás, até hoje sabemos
pouco sobre tradições musicais não eruditas na Europa, mesmo durante os últimos
séculos, se partimos dos assuntos abordados em diversos livros de história da música,
cuja visão de história e cultura é construída a partir da vida e obra dos compositores
eruditos famosos, sobretudo daqueles cujas obras já estavam fixadas em partituras7.
Estes corroboram com a ideia de uma reprodução fidedigna, supostamente diferente da
transmissão oral, mas vulnerável do ponto de vista da escrita, embora siga outros
princípios.
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KIEFER (1996) e VEIGA (2004) fizeram levantamentos das primeiras fontes relativas às culturas
indígenas.
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Só nas últimas décadas este quadro está começando a mudar. Mesmo assim ainda existem poucas
publicações na área da musicologia européia e também não européia com a preocupação apresentada por
o historiador Peter Burke no estudo sobre culturas populares na Idade Média na Europa. De maneira
geral, na área do ensino da história da música no Brasil ainda são adotados livros com a visão
mencionada, focando apenas compositores famosos, desvinculados de contextos sociais e históricos mais
amplos. Consideramos esta questão de extrema relevância para entender os processos de construção de
hábitos e ideologias no campo do estudo da música.
3
seja ele ritual ou recreativo? As primeiras tentativas de compreensão deste novo mundo
exótico, que também era ex-acústico, como bem diz PINTO (2008), usavam como base
de observação, a comparação subjetiva do conhecido com o desconhecido e, a partir
disso, expressavam categorias de valoração ou rejeição que encontramos nos textos
produzidos nos primeiros séculos após a chegada dos portugueses. Mas, já no passado,
temos também algumas vozes mais cautelosas como, por exemplo, o conhecido texto de
Michel de Montaigne sobre “Os canibais”, percebendo a necessidade de uma
compreensão menos eurocêntrica. Entretanto, pensamentos desta natureza constituem,
certamente, a exceção.
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Mesmo após o surgimento de aparelhos que permitissem a gravação e com isso o deslocamento de sons
de sua fonte geradora, a música continua sendo tratada como algo a ser materializado através de uma
transcrição em notação musical. O processo, elogiado no início, logo evidencia os problemas de
“traduzibilidade” de sons culturalmente formados de um sistema para um outro sistema.
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O termo etnomusicologia, propriamente, surgiu décadas depois, em 1950 como sub-título do livro de
Jaap Kunst - Musicologica: a study of the nature os etho-musicology, its problems, methods, and
representatives personalities (Amsterdam, 1950). Até o século XX, a iniciativa de estudar a música de
outras culturas não-européias era concebida como fruto da Musicologia Comparada que teve início pouco
antes de 1900 e refletia na concepção predominante de ouvir a música do outro como elemento exótico a
ser analisado em laboratório. Rousseau foi um marco histórico para tal abordagem com seu Dicionário
Musical (1768) (KRADER, 1980, p. 275).
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A definição clássica de atuação da Etnomusicologia enquanto disciplina menciona dois
campos distintos: 1. Abordagem musicológica – estuda a música de tradição oral fora
do âmbito europeu, representando uma continuação da Musicologia Comparada alemã
(“Vergleichende Musikwissenschaft”), de onde se originou. A prática é considerada
objeto central/concepção de “music per se”, pois focaliza principalmente os aspectos
musicais, sem levar em conta questões contextuais; 2. Abordagem antropológica –
novos direcionamentos conceituais que dialogam com a antropologia, cuja abordagem
procura considerar o contexto cultural que a música integra como “música num contexto
amplo” (MERRIAM, 1969, p. 221). Porém, as músicas de tradição oral dos países
europeus são incluídas no campo de atuação da etnomusicologia, desta forma tirando o
seu viés “exótico” (KRADER, 1980). Esta área em processo constante de auto-definição
chega ao Brasil nos anos 80 do séc. XX, contribuindo para repensar outras concepções
que envolveram a compreensão das músicas brasileiras desde o séc. XIX e
acrescentando novas propostas e definições à área.
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Estamos falando do termo “folclore”, inventado em 1846 na Inglaterra11, o qual parece
ganhar repercussão ainda maior com a fundação da “Folklore Society”, em 1878 em
Londres, ratificando o interesse desta pelas assim chamadas “tradições orais do povo”.12
Pelo que nos consta, um dos primeiros autores brasileiros a usar o termo em várias de
suas publicações no final do séc. XIX foi o sergipano Sílvio Romero13 no momento da
consolidação do termo na Inglaterra. As publicações de Romero ocorrem nos anos
imediatamente anteriores à abolição, coincidindo com as discussões de vários
pensadores sobre o destino do Brasil. Assim como ocorreram as tendências observadas
durante o romantismo europeu e um momento de consolidação dos modernos estados
nacionais, é iniciada a questão da unidade nacional brasileira, em busca do que seria a
11
Termo criado por um arqueólogo inglês, William Thoms, em 1846. O seu artigo, usando pela primeira
vez o termo, saiu em uma publicação no dia 22 de agosto. Este detalhe aparentemente insignificante é
importante para poder entender os desdobramentos deste processo no Brasil. Certamente a preocupação
em definir hábitos culturais faz parte de um contexto maior, ocorrido em outros países europeus também,
buscando a identidade política e cultural como caráter do estado nacional, após a revolução francesa.
Antes da invenção do termo folclore já havia ocorrido um movimento filosófico–político parecido na
Alemanha, algumas décadas antes, no auge do romantismo, em torno de Herder, filósofo e escritor, e os
irmãos Grimm, filólogos e professores de língua alemã na Universidade de Göttingen. A língua vernácula
(em detrimento do francês falado pela elite) foi eleita como elemento capaz de expressar e construir uma
unidade nacional, ainda fragmentada politicamente. Esta língua com o seu cunho popular se expressava
através de contos populares, canções etc. até hoje tão bem conhecidos através de coletânea de histórias,
colecionadas por eles. (ver também REILY 1990) O estudo destas tradições viria a ser a chamado
“Volkskunde”, mais tarde também “Volkswissenschaften”. Mesmo parecendo um sinônimo do termo
inglês “folclore”, o termo alemão tem um campo semântico bem mais amplo. Diferente dele o inglês tem
uma definição mais fechada que acabou sendo introduzido no Brasil, embora até hoje não se tenha certeza
quando e por quem.
12
Desde então a “Folklore Society” publica materiais no seu Folk-Lore Record, e, posteriormente, a partir
de 1889, na revista “Folclore” ver http://www.folklore-society.com/publications/index.asp
13
Cantos populares do Brasil, 1883, Contos populares do Brasil, 1885, Estudos sobre a poesia popular
do Brasil,1888; Etnografia brasileira,1888, época em que Romero já residia no Rio Janeiro, incluindo na
segunda edição dos Cantos polulares do Brasil, 1897, o nome “Folk-lore Brasileiro”. Publicações
anteriores de José de Alencar abordavam temas similares, bem como as de Celso de Magalhães, Couto de
Magalhães, Vale Cabral, Melo Morais Filho, ligadas às tradições populares, sem que pudessemos afirmar
a utilização do termo “folclore” em todos eles, mas de qualquer forma era o termo utilizado na época. Ver
a introdução extensa de João da Silva Campos sobre a trajetória das primeiras coletâneas em “O Folk-lore
no Brasil”, de Basílio de Magalhães (Rio, 1928) que traz contos do recôncavo baiano. Sobre Sílvio
Romero ver: introdução de Luis da Camara Cascudo de “Cantos do Brasil”, Itaitaia, 198x.
6
verdadeira “alma brasileira” ou, segundo BURKE (1999, p. 17), a “descoberta” da
cultura popular de tradição oral pela elite. Tal processo se efetiva por intermédio de
expressões verbais de narrativas míticas como lendas, fábulas e letras de cantigas
populares, expressando um coletivo imaginário, muitas vezes dividido conforme a sua
suposta origem seguindo o tão questionável modelo das três raças formadoras do Brasil.
Esta visão tripartida é consolidada por outros autores que seguem o caminho iniciado
por Sílvio Romero, inclusive por Monteiro Lobato, reunidos hoje, em geral, sob a
denominação de folcloristas. O termo foi muitas vezes adotado por eles próprios, por
acreditarem ser o estudo do folclore uma área a se tornar ciência e assim sendo, a chave
para a compreensão do Estado em construção14. A tentativa de procurar entender
características próprias dos vários grupos populacionais, o que, a primeira vista, poderia
ser considerado como algo positivo, parece apenas ter reforçado estereótipos
românticos, pois, criou-se uma visão superficial de identidades culturais e étnicas que
não foram entendidas como tais. Além disso, não existe ainda uma visão crítica de
fontes, pois os autores relatam informações a partir de fontes orais não reveladas ou
compilam fontes outras.
É importante lembrar que neste período entre o séc. XIX e início do séc.XX, todas as
manifestações culturais afro-brasileiras não foram aceitas e/ou até perseguidas15
enquanto uma discussão das culturas indígenas ainda não tinha lugar. O índio não fazia
parte do universo observado pelos folcloristas, talvez por ter sido considerado étnico ou
exótico demais, o que deixa flagrante o constante desencontro entre o conceito de
folclore e o conceito ainda inexistente de cultura e antropologia, com as exceções das
14
Neste contexto devem ser mencionados nomes como Luis Câmara Cascudo, Melo Morais Filho, Edison
Carneiro (1937) e Arthur Ramos (1954 e 1956) que também adotam o termo em vários de seus livros,
muitas vezes sem uma contextualização maior. É importante destacar que muitos deles vinham de um
grupo social diferente daqueles que eram detentores dos saberes sobre os quais refletiam. Estes primeiros
estudiosos tinham uma formação em direito, medicina, eram jornalistas, escritores, funcionários públicos,
muitos deles eram do Nordeste, e em parte parecem ter compartilhado algumas vivências com as várias
tradições destas regiões geograficamente mais afastadas do centro do país. Além disso, chama atenção de
que todos os autores são homens, como quase todos os primeiros cientistas sociais,
15
Existe uma vasta literatura sobre a perseguição das tradições de origem africana ou afro-brasileira, seja
sobre os batuques, sambas, jongo, capoeira, religiões, dentro de uma análise das relações sociais nos
diversos locais observados, consultar as publicações de Jocélio Telles dos Santos, Julio Braga, Carlos
Eugênio Libano, João José Reis, Angela Lühning entre outros.
7
ações de Roquette Pinto, Curt Nimuendaju e Silvino Santos, “o cineasta da Selva”16.
Conceitos como negociação e conflito (REIS e SILVA, 2005) são fundamentais para a
compreensão deste contexto denso de fricções étnicas e culturais na relação entre grupos
sociais diferentes.
Uma visão nova se inicia com Mário de Andrade que contribui significativamente à
compreensão das tradições culturais do país através de vários textos, surgidos após
viagens diversas, sendo as mais importantes pela região da Amazônia até o Peru em
1927 e pelo Nordeste e Norte em 1928. Estas últimas resultaram em anotações que só
após sua morte foram publicadas como “O turista aprendiz”. Outras contribuições
significativas foram a sua participação no Congresso Nacional da Língua cantada, em
1937 e a organização da Missão Folclórica, em 1938. Ainda que mantendo o termo
folclore, Mário tinha uma visão mais antropológica na realização de levantamentos em
campo.17
Este decreto instituiu o “Dia do folclore” do Brasil, no dia 22 de agosto, data mantida
sem nenhum questionamento desde então, expressando uma visão imprópria para
trabalhar ou entender questões de diversidade cultural no país. Nos discos e cadernos
16
As primeiras pesquisas sobre culturas musicais indígenas resultando em gravações foram realizadas
pelos precursores da etnomusicologia alemã, ainda “musicologia comparada”, que se compreendia como
área de pesquisa específica na tentativa de entender o desenvolvimento e o ápice da própria cultura
européia. Roquette Pinto foi um dos primeiros antropólogos brasileiros que a partir de 1912 fez pesquisas
na área indígena, na mesma época em que Silvino Santos, fotógrafo e cineasta português (“O cineasta da
selva”, 1997), começa a documentar através de seus filmes (além de ter também participado das
expedições de Rondon) e os pesquisadores alemães gravam os sons das culturas indígenas. (ver também
Do Orinoko ao Rio Negro de Koch-Grünberg, livro traduzido ao português, com textos e anotações que
completam as gravações realizadas por ele e recentemente publicadas pelo Phonogramm- Archiv do
Museu de Etnologia de Berlin em 2006)
17
Mais sobre Mário de Andrade em TRAVASSOS (1997) e SANDRONI (1999). No Nordeste surgiram
iniciativas posteriores a Andrade, com o mesmo intuito de registrar a música de tradição oral da região
(ver projeto de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna “Pesquisa de Música Popular religiosa” de 1976-
1974 (ROSA, 2001, sob a orientação de Carlos Sandroni).
18
No período intermediário entre os anos 30 e 40, durante o período da política da Boa Vizinhança,
houve uma presença maciça de pesquisadores americanos que deram importantes contribuições, mas só
posteriormente foram inseridos na reflexão sobre novas terminologias e vertentes de análise.
Mencionamos Ruth Landes, Donald Pierson, Lawrence Turner e Melville Herskovits.
8
que se criaram como resultado do trabalho da CDFB aparecem visões de um fazer
cultural anônimo, descontextualizado, padronizado, sem identidade própria e pessoas
concretas, evidenciando uma visão extremamente estática de cultura que continuou se
impregnando à sociedade. Os materiais documentam manifestações tradicionais, porém
sem uma abertura para as questões já discutidas na área da antropologia brasileira
naquela época, ainda refém da visão distorcida de cultura que mencionamos. Um dos
termos mais utilizados nestas publicações é o termo do “fato folclórico”.
19
Propomos o termo “participativo” aos moldes Freireanos de educação democrática e horizontal
(FREIRE, 1990; LÜHNING, 2006). Embora o termo “aplicado” também esteja engajado neste projeto, o
termo sem si, pode indicar certa hierarquização quando aplicada de alguém para alguém.
10
consciência cultural, auto-estima e até mesmo de engajamento político.20 A
aplicabilidade social e política da área consiste, portanto, numa importante busca da
etnomusicologia brasileira, especificamente, quando esta procura discutir novos
procedimentos, definindo novos campos de atuação, especialmente em relação a uma
crescente necessidade de diálogo, participação e responsabilidade social que expresse
as particularidades de um país, em princípio visto como periférico na discussão de
visões hegemônicas (MARQUES, 2008; TUGNY, 2006; SEEGER, 2006; LÜHNING,
2006; SANDRONI, 2005; ARAÚJO, 2001). Este novo cenário que transcende o
ambiente acadêmico também se manifesta em novas políticas culturais21,
veementemente discutidas em vários níveis.
11
padrões heteronormativos de conduta.23 Logo, se música é som humanamente
organizado (BLACKING, 1974), torna-se então imprescindível abordar (e politizar) a
diversidade dos sujeitos que produzem música. Assim, nos diversos contextos musicais
atuam diferentes pessoas (mulheres, homens, gays, lésbicas, transsexuais, jovens,
velhas, adolescentes, brancas, negras, indígenas, classe trabalhadora, classe média, etc.)
que fazem parte de uma comunidade específica produzem e/ou refletem experiências
distintas e muito bem localizadas em relação a diversos aspectos sócio-culturais.
As “localizações” incluem muitas vezes a música e/ou performance musical, como por
exemplo, na música no culto da jurema de Olinda que narra trajetórias espirituais e de
vida das entidades religiosas, assim como são narrativas musicais com as quais as
pessoas se identificam conforme a própria experiência. Performances particulares
também são produzidas neste complexo universo religioso e musical afro-indígena,
onde inversões ou legitimações de gênero e sexualidade são fundamentais enquanto
experiência religiosa e da vida cotidiana (ROSA, 2009). A partir do prisma da
localização das falas, sonoridades e performances é importante se dar conta de que:
23
Sobre epistemologias feministas e tais categorias ver SARDENBERG (2002), LONDA (2001),
MORENO (1987), SAFFIOTI (1992); ANZÁLDUA (2005), AZERÊDO (1994); BAIRROS (1995),
ÁVILA (2001) COLLINS (2000), SPIVAK (1999), dentre outras. Sobre o pensamento heteronormativo
ver BUTLER (2008 e 2004); BENTO (2006), WITTIG (S/D), etc.
12
compreendidos a partir de um único móvel central, como o
24
antagonismo de classe. (LOURO, 1997, p. 51 e 52).
13
Do rural ao urbano “som dos trópicos” (PINTO, 2008, p. 99) resulta um misto de
inusitadas combinações de sons e intensidade específicas a serem captadas por nossos
ouvidos pensantes (SCHAFER, 1991).26
26
Este ouvir de forma pensante também foi proposto em território brasileiro de uma forma muito
interessante na captação de paisagens sonoras paulistas através da história (APROBATO FILHO, 2008).
É importante ouvir estas paisagens sonoras também em contexto urbano, não como mera paisagem
auditiva aparentemente “caótica”, mas como quadros, representações e práticas cotidianas que
contemplam diversos aspectos da sociedade. Neste sentido, para abordar a relação entre religião e
secularização numa Cairo completamente urbanizada e islâmica, HIRSCHKIND (2006) nos apresenta um
conceito interessante de “paisagem sonora ética” (The Ethical Soundscape). Desta forma, o autor (idem)
contribui também no sentido de repensar a cidade em suas paisagens sonoras, nas quais a religião
representa parte integrante da vida social, política e cotidiana das pessoas como um todo.
14
experiências e crenças ao samba, rock, rap, funk, orquestras sinfônicas, orquestras de
berimbaus (na Bahia), afoxés, maracatus, etc., para pensar apenas em exemplos do
Nordeste.
No campo dos estudos de música, por exemplo, a música popular urbana por muito
tempo foi ignorada enquanto foco de estudo por ser considerada como ‘boa’ apenas para
os estudos antropológicos e sociológicos (FRITH, 2004). Embora não se negue a
questão mercadológica que a embala, certamente ultrapassa a estigmatizada ‘cultura de
massa’, cuja ficção conceitual também a cristaliza. Qualquer universo sonoro de
qualquer região ou classe social gera julgamentos estéticos, assim como, sentimentos de
identificação e de pertencimento (FRITH, 1984, p. 2). O que vai diferenciar é a forma
pela qual tais sentimentos se manifestam, assim como o contexto e que são vivenciados.
As especificidades geram, portanto, a necessidade de novas teorias, como por exemplo,
de teorias sobre estéticas da música popular que dialoguem com as teorias sociológicas
e antropológicas já consolidadas sobre capitalismo, indústria musical, mercado, música
como produto, tecnologias musicais, performances, valorações estéticas, questões de
audiência, etc, somente para citar alguns aspectos fundamentais que são específicos a
este universo ou paisagem sonora urbana que compõem esta constelação de
possibilidades teóricas. É importante ressaltar que as teorias devem ser construídas de
modo que experiências, saberes e percepções êmicas não sejam provincializadas27 por
teorias acadêmicas prontas. São diversas as variáveis presentes em relação à música
popular do século XX que vai desde aspectos referentes à produção, à eletrônica, ao uso
de recursos de gravação, à amplificação e dos sintetizadores, assim como, das escolhas
dos consumidores (escolhas afetivas, estéticas, ideológicas, etc.) que também não
devem ser reduzidas à mera aquisição de todo este aparato tecnológico ou de
manipulação unilateral mercadológica (FRITH, 1984, p. 3).
Por outro lado, retomando a questão mercadológica que paira sobre a música popular
urbana, não podemos perder de vista as manipulações em função do mercado, que não
age unilateralmente, mas exerce grande poder nas escolhas, na divulgação e na projeção
de modelos de ‘sucesso’ (CARVALHO, 1997). O próprio papel da imprensa, lugar de
27
CHAKRABARTY (2000) propõe o conceito de “provincializar” o centro (Europa) para então
desprovincializar as periferias que ainda se vêem numa situação se não de colonização política concreta,
em termos políticos teóricos que necessitam ser reformulados e devidamente “desprovincializados”.
15
expressão dos juízos de valor acerca da ‘autenticidade’ da música precisam ser revistos,
bem como o próprio mito da autenticidade, tão presente nos cânones etnomusicológicos.
É preciso questionar tais cânones e reconhecer que:
Se a música não é, de fato, feita de acordo com essa história de
‘autenticidade’, então a pergunta passa a ser como podemos julgar
que alguns tipos de música são mais autênticos que outros: o que
estamos realmente procurando quando fazemos nossos julgamentos?
(FRITH, 1984, p. 5).
Em relação aos aspectos ideológicos, refutamos a idéia dicotômica que se firmou sobre
música ‘séria’ (de valor estético) x música popular (utilitária), pois apresentam
diferentes valores e valorizações. Tais categorias reforçam estereótipos e preconceitos
que por muito tempo estiveram presentes no campo da etnomusicologia na medida em
que tornava esses outros universos “invisíveis” e “inaudíveis” dentro de sua (dos
próprios universos ou da etnomusicologia?) área de atuação. Esta “invisibilidade” e
“inaudibilidade” não dizem respeito somente à música popular urbana, mas também a
universos musicais religiosos que ficaram fora de alguns cânones de tradição,
autenticidade e de pureza, como é o caso da umbanda (BORGES, 2006), do candomblé
de caboclo (GARCIA, 2006) e do culto da jurema (ROSA, 2009) que, embora
dialoguem e transitem com o universo de matriz africana dos orixás, situam-se fora dos
idiomas de pureza28 africanos, sobretudo aqueles presentes no universo de nação Ketu,
gerando, assim, hierarquização e desqualificação destes universos.
28
Sobre idiomas de pureza no contexto diaspórico africano, especialmente no candomblé ketu da Bahia
ver MATORY (2005).
16
música é encontrar uma identidade de outros conhecimentos que contemplem as
especificidades de “outras” vozes e sonoridades:
Sonoridades tropicais conservadas foram essenciais nesse processo
de reconhecimento sonoro das manifestações humanas, sem dúvida o
mais longo dos processos de assimilação sensorial do mundo, muitas
vezes doloroso e gerador de inúmeras polêmicas e contestações,
desde as conceituais e estéticas, até as preconceituosas e racistas.
(PINTO, 2008, p. 101)
Todas estas questões são muito importantes na escuta dos universos sonoros dos mais
diversos contextos e, especialmente nos grandes centros urbanos, tais como, paisagem
sonora, escolhas de temas de pesquisa/atuação junto a comunidades através de uma ação
etnomusicológica participativa/ aplicada, funções sociais de música e a necessidade de
emergência de novos parâmetros teóricos e políticos de escuta. Não por acaso que a
música em contextos como o dos grandes centros urbanos em suas diversas e desiguais
estratificações, tais como, condomínios de luxo, quilombos urbanos, igrejas, terreiros,
bairros populares, ou até mesmo contextos de guerras, etc., paisagens completamente
diferentes daquelas que foram inicialmente abordados pela comunidade
etnomusicológica, gerou a necessidade de novas teorias, abordagens e ações, como é o
caso da relação entre música e violência, música e tortura, por exemplo, (OCHOA,
2006; ARAÚJO, 2006 e CUSICK, 2006), ou mesmo da capacidade criativa de
adaptação às adversidades e limitações de acesso a tecnologias musicais que resulta em
gêneros populares contemporâneos como o arrocha na Bahia (ROSA, 2005), o
tecnobrega no Pará (AMARAL, 2009), o reggae (MOTA, 2008) ou mesmo o funk
carioca (PALOMBINI, 2007).
A partir da premissa de que não somos livres para entendermos o que quisermos em
uma canção (FRITH, 1987, p. 8), podemos ampliar o nosso leque de possibilidades de
escuta, de percepção, de fala e de atuação em relação à música em suas diversas
paisagens sonoras. Talvez, para algumas pessoas esta suposta “ausência de liberdade”
possa soar um tanto frustrante. Por outro lado, esta “não-liberdade” na compreensão de
universos sonoros possa e talvez deva ser lida como um caminho, uma escolha
consciente, retomando a questão da responsabilidade política, artística e social, dentre
tantas outras que envolvem a música em seu sentido mais plural. Dentro deste amplo
processo de escuta, que também podemos chamar de auralidade, não podemos
negligenciar o fato de que existem eleições sobre temáticas e atuações por parte de
17
pesquisadores e também do Estado, que muitas vezes adota um perfil conservador na
intervenção cultural por meio de políticas públicas.
Por fim, as abordagens etnomusicológicas brasileiras, de maneira geral, são cada vez
mais atuantes na busca por bases teóricas que contribuam diretamente não apenas para a
formulação de problemas e para a determinação das técnicas a serem utilizadas na
pesquisa, como podemos falar também sobre uma importante e engajada atuação
política. Esta vem se revelando ao longo dos anos por intermédio de escolhas por
determinados temas de pesquisa, ações e intervenções por políticas públicas ou mesmo
atuações específicas nas comunidades.
Este período foi seguido por uma folclorização das expressões culturais, fornecendo
uma visão bastante estática e pouco diversificada que dominou por muito tempo a visão
das tradições musicais brasileiras até poucas décadas atrás. Também coincide com uma
fase de deslumbramento com as possibilidades da gravação sonora na etnomusicologia,
criada há um pouco mais de um século, com ênfase em aspectos supostamente
objetiváveis e quantificáveis. Isso ocorre através da transcrição musical baseada no
sistema europeu, entendido como universalmente aplicável, em vez de conseguir
entender o som como humanamente construído, e, portanto, expressão de diversidades
culturais incontáveis. Só nas últimas décadas emergiram discussões sobre questões
menos “técnicas” e “disciplinares” e, finalmente, passam a tangenciar o campo questões
mais interdisciplinares.
18
transcrição como ferramenta principal da etnomusicologia está sendo tão discutida
quanto à inserção de novas metodologias e processos de evidenciar os sujeitos a partir
de uma atenção aos seus discursos e percepções como indivíduos definidos por gênero,
condição social, vivências religiosas, culturais e políticas. Individualidades unidas pelo
vivenciar de tradições e expressões coletivas, que finalmente também assumem o papel
de autores, co-autores e interlocutores ativos para evidenciar e discutir os sons criados
por eles em constante processo de transformação cultural.
Neste sentido, fazendo uma ponte com os estudos de gênero e das teorias feministas, as
categorias gênero, raça e etnia, sexualidade, geração e classe, são fundamentais para
pensar sobre música(s) e cultura nesse nosso amplo universo sonoro chamado Brasil,
para fugir das ciladas dos universalismos generalizantes. Adotamos este aporte teórico,
visto que estamos tratando sobre música e cultura numa ótica etnomusicológica, ou seja,
a partir da perspectiva de música enquanto cultura e, conseqüentemente como prática
humana artística e/ou religiosa.
19
Por fim, é muito importante avaliar quais as músicas que efetivamente são consideradas
“dignas” de objeto de estudo, assim como, quais os tipos de abordagem que estas
geram, pois nenhuma escolha pode ser considerada como neutra. Desta forma, tornamos
audível e visível o que antes não era ouvido ou visto simplesmente pela falta de lente
que contemple determinados sujeitos sociais e musicais na sua real existência e seu
importante papel na construção destes novos caminhos conceituais.
Referências:
AMARAL, Paulo Murilo. Estigma e cosmopolitismo na constituição de uma música popular
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DVD
MICHILES, Aurélio (dir.) O cineasta da Selva – A vida do pioneiro Silvino Santos. Filme-
documentário. Super Filmes. Versátil Home Vídeo.
25
ANEXO:
DECRETO Nº 56.747, DE 17 DE AGOSTO DE 1965.
DECRETA:
H. CASTELLO BRANCO
Flávio Suplicy de Lacerda
Para citação
LUHNING, A. E. ; ROSA, Laila. . Música e Cultura no Brasil: da invisibilidade e
inaudibilidade à percepção dos sujeitos musicais. In: Paulo Cesar Alves. (Org.). Cultura:
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26