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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA


CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE

Candomblé e Múltiplas Inteligências:


Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira
brasileira

PRESIDENTE PRUDENTE

Outubro de 2010
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE

Luís Gustavo de Freitas Dias

Candomblé e Múltiplas Inteligências:


Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira
brasileira

Trabalho de conclusão de curso


de bacharelado em Geografia.
Orientadora: Professora
Doutora Marília Coelho.

PRESIDENTE PRUDENTE

Outubro de 2010

1
Banca Examinadora

Professora Doutora Marília Coelho

Orientadora

Nota Final: Conceito A. Nota 10.

Professor Doutor Raul Borges Guimarães

Nota Final: Conceito A. Nota 10.

Professor Doutor Irineu Aliprando Viotto Filho

Nota Final: Conceito A. Nota 10.

2
Dedico este trabalho à minha mãe, ao meu
pai, à minha irmã Fernanda que tanto me
ajudou e incentivou nesta empreitada, aos
meus amigos e à Mãe D´Água...

Odofiaba, Iemanjá!

3
Agradeço minha família, meus amigos: Micheli, Rods, Heide, Thiago, Manoela,
Pássaro, Natalias Cano e Dred, Izid, Drinks, Fernanda, Gabriela, Ricardo Carlos -
amigo companheiro e Marília Coelho – minha orientadora.

4
“Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Káwo-kabiesile-káwo-okê-arô-okê

Quem me pariu foi o ventre de um navio


Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Êpa raio, machado e trovão
Êpa justiça de guerreiro

Ê semba ê ê samba ah
O batuque das ondas
Nas noites mais longas
Me ensinou a cantar
Dor é o lugar mais fundo
É o umbigo do mundo
É o fundo do mar
No balanço das ondas okê arô
Me ensinou a bater seu tambor
No escuro porão eu vi o clarão
Do giro do mundo
Ê céu que cobriu nas noites de frio
Minha solidão
É oceano sem fim, sem amor, sem irmão
Ê káwo quero ser seu tambor
Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
Luar de luanda em meu coração

Umbigo da cor, abrigo da dor,


A primeira umbigada é Massemba Yayá
Yayá Massemba é o samba que dá1”

1
Yaya Massemba - Roberto Mendes e Capinan.

5
Sumário

I – Introdução ............................................................................................................ 07

1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira ....................... 07

II – Da África ao novo mundo .................................................................................. 08

III – Abolição da escravatura .................................................................................... 13

IV – Afirmação da cultura negra .............................................................................. 16

V – Candomblé – religiosidade e resistência cultural ............................................... 19

VI – Sincretismo no candomblé ................................................................................ 26

VII – Terreiro - território África ............................................................................... 25

VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia ............................ 30

8.1 – Inteligência musical ....................................................................... 34

8.2 – Inteligência espacial ....................................................................... 40

8.3 – Inteligência corporal-cinestésica ................................................... 46

8.4 – Inteligência intrapessoal ................................................................ 48

8.5– Inteligência interpessoal ................................................................. 49

8.6 – Inteligência linguística .................................................................. 52

8.7 – Inteligência lógico-matemática ..................................................... 54

IX – Avaliação .......................................................................................................... 62

X – Espetáculo de teatro como instrumento pedagógico .......................................... 63

XI – Considerações finais ......................................................................................... 65

XII – Referências bibliográficas ............................................................................... 67

6
I – Introdução

Este trabalho é fruto de uma longa caminhada, na qual se entrecruzam várias


experiências, dentre as quais o projeto de extensão universitária “A afirmação da cultura
africana como parte integrante da cultura brasileira”, iniciado em 2008, desenvolvido na
Escola Estadual Arlindo Fantini em Presidente Prudente – SP2.
O amadurecimento teórico, bem como a reflexão sobre a temática nele
desenvolvida foram determinantes para que alguns aspectos norteadores da pesquisa se
modificassem dando origem a uma nova proposta.
Assim, o presente trabalho de conclusão do curso de bacharelado em geografia
tem como objetivo o ensino da cultura afro-brasileira por meio da arte/educação atrelada
a teoria das múltiplas inteligências3, utilizando o teatro como ferramenta de
desenvolvimento e síntese no processo de ensino/aprendizagem. A experiência de
utilizar ferramentas metodológicas numa proposta de trabalho prático alternativas
permitiu colocar a geografia em contato direto com elementos produzidos no seio da
nossa cultura, proporcionando ao educando possibilidades novas de apreensão do tema.
Para tanto faremos um apanhado histórico, para melhor situar o educando no tema,
ressaltando que o problema da desvalorização cultural afro-brasileira deita raízes na
história da colonização do nosso país, que foi manchada de sangue, suor e lágrimas.

1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira -


Com a abolição da escravatura no Brasil, a condição dos negros não mudou
muita coisa, mas, mesmo assim, houve uma luta no plano cultural com o fim de manter
os traços tradicionais da cultura africana que foram se inserindo de forma a enriquecer a
cultura brasileira. Dentre todas as manifestações, destacamos o candomblé, que, como
religiosidade se difundiu em larga escala e depois, por meio de artistas, se tornou parte
constituinte da cultura brasileira. Tratamos o candomblé, pelo olhar geográfico, por
meio do conceito de território, rugosidade4 e espaço sagrado, auxiliando o educando a
compreender de forma dinâmica esta religiosidade, se despindo de preconceitos e
discriminações.

2
No ano de 2009 recebeu o prêmio na categoria A no 5º congresso de extensão universitária, realizado
em Águas de Lindóia – SP.
3
GARDNER, 1995.
4
SANTOS, 2008.

7
Após a exposição da história dos negros no Brasil, é na proposta de Howard
Gardner acerca das múltiplas inteligências que encontramos ferramentas teóricas
necessárias para dar continuidade ao trabalho. Ao defender a pluralidade da forma de
aprendizagem, o autor prioriza outros materiais pedagógicos, bem como: pinturas,
vídeos, músicas, artes plásticas, danças, etc. Todos estes materiais são encontrados em
elementos da cultura africana, nas celebrações do candomblé, que transcenderam o
papel religioso e se encontram largamente difundidos no espaço geográfico – profano.
Percebemos que ao trabalhar as múltiplas inteligências nos educandos já estaremos
desenvolvendo o conceito de arte/educação, onde elementos artísticos são utilizados
como meios pedagógicos.
Para costurar todas as inteligências, transformando o resultado do processo de
ensino/aprendizagem em uma síntese, utilizamos o teatro, que leva à prática todo o
conhecimento adquirido, expondo-o aos olhares de outros, ocasionando uma
valorização do educando e, sobretudo, de sua produção.

II - Da África ao novo mundo

“O negro segura a cabeça com a mão e chora


Chora sentindo a falta do rei” 5

Retirar um povo de seu país por meio de formas desumanas, utilizando a teoria
de que esse povo, por causa da cor de sua pele, era tido como infiel e por isso merecia
ser escravo, é uma forma bruta de imposição cultural do ocidente, não havendo
fundamento plausível para tal prática. Enquanto os colonizadores só enxergavam lucros
e montantes de dinheiro, a população negra, a mercê desses dominadores, é iniciada
num longo e doloroso martírio, marcado pelo sofrimento e degradação, determinadas
populações se viam a mercê desses gananciosos.
Os negros acreditavam em uma terra sagrada que havia depois do oceano:
chamada calunga, terra sagrada, representando a barreira entre a vida e a morte, onde só
havia paz (SLENES, 1999), lá encontrariam o Axé6. Sem compreender porque eram
colocados de forma vil em um porão de navio, com pouca comida, pouca água, muitas

5
Nego Tenga – Brilho de beleza, 1990.
4
Poder em estado de energia pura (VERGER, 1981).

8
vezes longe de seus familiares e desprovidos de dignidade, tentavam procurar um
conforto pensando na calunga. O além mar, não era o das representações
simbólico/religiosas, o que esperava por eles era um futuro bem pior, manchado de
vermelho sangue, de sofrimento e angústia. O grande mal dos séculos se iniciou: a
escravidão.
Os negros capturados eram de diversas regiões africanas, tribos e castas,
algumas até com dialetos diferentes, eram colocados nos “navios negreiros” que:
(...) Traziam indistintamente membros das mais diversas tribos; daí
uma solidariedade nova, a do sofrimento suportado em comum (...) a
escravidão, em seguida, concluía esse trabalho de desterritorialização,
disseminando as famílias ao acaso da necessidade agrícola, nas
fazendas dispersas. (BASTIDE, 1973, p. 260)

Fato que auxiliava na dificuldade de organização de futuras revoltas contra os


“senhores”. O geógrafo Milton Santos afirma: “Desterritorialização é, frequentemente,
uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturação.” (2008,
p. 328) Sendo assim, a desterritorialização está completa, pois, tirou-os da terra que se
identificavam e mantinham sua cultura, e também tirou a mais remota possibilidade de
identificação com o novo lugar, que poderia brotar da relação com entes familiares
queridos, pois, os negros não eram apenas corpos pecadores sem alma nem sentimento,
transportados como peça a servir de escravo, mas pessoas com vida, anseios, portadores
de uma história única e peculiar:

Os navios negreiros transportaram através do atlântico, durante mais


de trezentos e cinqüenta anos, não apenas o contingente de cativos
destinados aos trabalhos de mineração, dos canaviais, das plantações
de fumo localizadas no novo mundo, como também sua
personalidade, a sua maneira de ser e se comportar, suas crenças.
(VERGER, 1981, p. 23)

Ao pisar em solo brasileiro, todos os negros eram submetidos a um ritual


católico de batismo, figurando a sua conversão imediata e aceitação a um dogma
religioso ocidental, totalmente distinto de suas crenças.
Há um indiscutível caráter mais ou menos violento nas formas, ás
vezes sutis, da agressão espiritual a que era submetida a população
africana, a começar pelo batismo ao qual o escravo estava sujeito nos
portos[...]Essa igreja (católica) possuiu escravos com fins lucrativos, e
constantemente perseguiu e atacou crenças religiosas africanas
durante séculos, até os dias atuais. (NASCIMENTO, 1978, p. 101)

A Igreja católica, apoiando a colonização do território brasileiro, apoiou também


a escravidão. Como forma expurgar os pecados desses infelizes condenou-os a servidão

9
eterna, pois, cometeram o grave pecado de nascerem negros. Segue um depoimento
datado de 1633, que um “bondoso e digníssimo” padre proferiu:
Deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de
si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós viveis
como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruídos na fé, vivais
como cristãos e vos salveis. (VIEIRA, apud NASCIMENTO, 1978, p.
52)

Demasiada prepotência fazer tais afirmações. Este é o retrato da bandeira que


igreja católica carregava na época da escravidão, que tentou suprimir de todas as formas
a cultura dos negros em nosso país, entretanto, não se deu conta de que estava lidando
com um povo que trazia consigo uma cultura milenar, com várias gerações de tradição,
e que seria ingenuidade pensar que seria fácil apagar da memória dos negros todo o
passado e o processo histórico pelo qual passaram.
Todas as formas de suprimir a cultura dos africanos foram tomando proporções
cada vez piores, quanto maior era a chegada de negros nos portos brasileiros. Paralelo a
esse processo de aculturação, o negro assumiu seu papel na economia, que por sua vez
era de simples peça de trabalho, e essa era sua função. O trabalho forçado começou:
lavouras, plantações, trabalhos domésticos, subserviência, exploração sexual da mulher.
O negro tornou-se escravo, a áfrica ficou cada vez mais distante, a busca pelo calunga
se tornou eterna. Os abusos de poder tornaram-se cada vez mais usuais, muitas vezes
regados a requintes de crueldade. A coroa portuguesa só conseguiu tornar o Brasil um
país lucrativo por meio da exploração do negro: “A imediata exploração da nova terra se
iniciou com o simultâneo aparecimento da raça negra fertilizando o solo brasileiro com
suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão.” (NASCIMENTO, p.
48) As mulheres foram grupo vítima do desejo dos “senhores”. Alvo fácil de
explorações sexuais e das mais diversas fantasias pitorescas. O que ocorria muitas vezes
com o próprio consentimento da esposa, que depois se aproveitava para maltratar e até
torturar a suposta “amante” do marido.
Não foram poucos os martírios sofridos pelos negros, o sangue continuou
jorrando enquanto durou a escravidão, entretanto o discurso dos “proprietários”
brasileiros era díspar dessa realidade, negando, que nas senzalas da escravidão, qualquer
tipo de mau trato era cometido:
Proprietários e mercadores de escravos no Brasil, a despeito das várias
alegações em contrário, em realidade submeteram seus escravos
africanos ao tratamento mais cruel que se possa imaginar.
Deformações físicas resultantes do excesso de trabalho pesado;
aleijões corporais conseqüentes de punições e torturas, às vezes de

10
efeito mortal para o escravo – eis algumas das características básicas
da “benevolência” brasileira para com a gente africana.
(NASCIMENTO, 1978, p. 57)

Na América do Norte, a discriminação da população branca para com os negros


era bastante forte e dissimulada, mas a realidade brasileira era bem diferente – diziam os
“senhores”. O Brasil carregou por longos anos a bandeira de tolerância e, como o
próprio autor externa: “benevolência”, quando seus verdadeiros atos eram bestiais e
animalescos, ao subjugar e até mesmo torturar os cativos, muitas vezes por simples
gosto, gozando do fato de possuir o poder sobre aquele ser, privado de vida. Como o
caso da reabertura de arquivos do “santo oficio” em Lisboa, que denuncia torturas
cometidas pelo “Mestre” Garcia Dávila Pereira de Aragão, fazendeiro. Segue um dos
casos explicitados: “O preto velho Antônio Magro, beirando os 80 anos, cujo suplício
incluiu o ardor de uma manchela de pimentas malaguetas introduzidas em seu corpo
através de um canudo de pito.” (MOTT. In: REIS, 1988, P. 24)
Entre os entes financiadores da escravidão, aliados aos interesses dos
fazendeiros e, por conseguinte, conivente com todas as atrocidades cometidas, estava a
“santa” igreja católica. Utilizando a religião como forma coercitiva, afirmando através
até mesmo de textos bíblicos a escravidão. Com o intuito de apagar completamente
todos os bens simbólicos contidos na memória e na carga cultural que negros traziam
consigo da mãe África. Entretanto, o discurso era o mais belo de todos: a salvação das
pobres almas pagãs, a intenção foi estritamente religiosa, porém: “Essa igreja possuiu
escravos com fins lucrativos, e constantemente perseguiu e atacou as crenças religiosas
africanas durante séculos, até os dias atuais.” (NASCIMENTO, 1978, p. 101) Por
melhores que possam ter sido os intentos, a realidade mostra a ferida causada, e que não
cicatrizou.
Em vista de todo este processo, não seria espantoso saber que os exploradores
colonialistas eram bastante religiosos, afinal, em nome do sagrado que esta instituição
tanto os auxiliou em seus anseios. Documentos da época do tráfico negreiro
comprovam:
Passando em revista os nomes dos navios relacionados em diversos
documentos, observamos que, até 1800 aproximadamente, todos
aqueles dedicados ao tráfico de escravos encontravam-se sob a
proteção da Virgem Maria, de Cristo, dos santos e, até mesmo, das
almas. (VERGER, 1981, p. 24)

11
Qualquer religioso em meio a tantos santos se sentiria bem protegido. Pena que
estes santos privilegiam um tipo de cor de pele. Oram somente pelos ocidentalizados,
brancos e aptos à salvação.
A brilhante obra de Gilberto Freyre “Casa grande e senzala” (1998), mostra que
muitos dos africanos que aqui chegaram possuíam educação refinada e escreviam numa
língua desconhecidas dos brancos; essa língua era o árabe.
Segundo Freyre (1998), a percepção desse refinamento que divergia conforme a
casta no país de origem, era o que justamente determinava as funções desenvolvidas
tanto pelas mulheres , quanto pelos homens, quer na lavoura, quer na casa grande.
Colocar o papel imprescindível que a obra de Gilberto Freyre tem, no sentido de
proporcionar uma outra leitura do Brasil, ao desmistificar a inferioridade da cultura
africana, colocando-a como parte integrante e importantíssima para a afirmação da
genuína cultura brasileira, fruto da miscigenação de brancos, índios e negros.
Já os africanos, em meio a tantos interesses infundados, traziam consigo sua
cultura submersa junto a seus corpos nas piores condições possíveis, nos navios
negreiros. Passado incrustado em uma infinidade de costumes e crenças. Dentre as
crenças desta população, estavam as religiões. Entre os negros, existiam grupos que
cultuavam diversos deuses, intitulados: Orixás, figurando uma das principais práticas
religiosas do continente africano - o candomblé. No século XVI a igreja católica
reprimia de forma severa qualquer outro pensamento religioso que não coincidissem
com os seus, em busca de uma hegemonia, almejando o controle além dos limites
territoriais - “O uso da pressão política para destruir outros sistemas religiosos se deu
através da conquista e da extensão de controles políticos, que induziam à conversão por
meio de uma variedade de pressões.” (ROSENDAHL, 1996, p. 62)
Ante toda essa carga cultural, nociva aos interesses ocidentais, a igreja e a coroa
tiveram que adotar medidas de genocídio cultural. Os negros eram obrigados a
participar de rituais católicos, adorarem um só deus e todos os santos. Como forma de
burlar a proibição às crenças religiosas africanas, os negros começaram a dar
correspondência africana, aos santos católicos. Santa Barbara passou a ser: Iansã; Nossa
Senhora: Iemanjá; São Jorge: Ogum. Assim procedendo, os negros conseguiram manter
viva sua crença, mesmo diante do genocídio cometido conta eles na época. Com toda
força típica de um povo que já aprendeu a sofrer, mais uma vez, resistiram.
Em agosto de 1834, na Inglaterra, foi decretada a abolição completa da
escravidão em suas colônias. A pressão era cada vez maior para o Brasil tomar a mesma

12
atitude. A primeira alteração no sistema escravocrata nacional ocorreu em 1850, quando
foi decretada a Lei Eusébio de Queirós, que tornou ilícito o tráfico de escravos. Alguns
anos mais tarde, em 1871, entrou em vigor a Lei Visconde do Rio Branco, conhecida
também como a Lei do Ventre Livre, estabelecendo que filhos de escravos, que
nascessem após a promulgação da lei, seriam considerados livres, ficando a cargo dos
proprietários de escravos criá-los até os oito anos de idade, após esta data poderiam
entregá-los ao estado e receber uma indenização. De que adiantava o filho livre e a mãe
escrava? Os senhores cuidavam de que forma das crianças? Em 1855 era a vez dos
escravos idosos conseguirem a liberdade, com a promulgação da Lei Saraiva-Cotegipe,
mais conhecida como Lei dos Sexagenários, ao completar 65 anos de idade (se
suportassem viver tanto em condições péssimas e de exploração). A pressão continuava
por parte da Inglaterra, principalmente depois de passados 54 anos da abolição inglesa.
Em 1888, mais precisamente 13 de maio, oficialmente a escravidão foi abolida no
Brasil. Mas, mesmo assim, continuou como forma ilegal de exploração humana.

III - Abolição da escravatura

“Tava durumindo Cangoma me chamou


Disse levanta povo cativeiro acabou” 7

Agora o escravo é livre. Livre pra que? Em uma sociedade totalmente racista,
alicerçada nas vigas da escravidão que perdurou por mais de 300 anos. Infelizmente a
lei não bastou para acabar com todos os males que este sistema brutal causou aos
negros. Restou a África perdida, o não pertencimento ao lugar onde vivem. Jogados à
margem da nossa sociedade, os negros não conseguiam empregos (herança racista do
sistema escravocrata), muitas vezes tinham que voltar e trabalhar para os seus antigos
“senhores” em condições parecidas com as que viviam anteriormente, e permaneciam
nessas fazendas, agora presos por dívidas, pois, tinham que comprar sua comida na
venda de propriedade do próprio patrão. Ainda não tinham se findados os sofrimentos
do negro na Brasil. A abolição:
Não resolveu o problema fundamental do escravo que era o acesso à
propriedade de terra. Este liberto, sem qualificação profissional, em
um país essencialmente agrário, não tinha outra alternativa senão

7
Domínio Público.

13
transformar-se em trabalhador livre, assalariado ou semi-assalariado
dos seus antigos patrões. (ANDRADE, 1983, p. 40)

A luta para conseguir se firmar no espaço foi muito grande, entretanto, as


oportunidades continuavam escassas. Muitos programas de imigração, após a abolição,
se deram no Brasil. Trazendo como mão de obra para setor primário no país: chineses e
europeus, sem nenhuma preocupação por parte do governo para com a absorção da mão
de obra interna – dos negros e tantos outros pobres desempregados no país. Esse fato
evidencia a política de embranquecimento da população, auxiliando um processo de
europeização e supremacia cultural: “A elite brasileira caminhava agora para definir o
negro como um problema racial, um obstáculo a um destino nacional que se desejava
moldado em padrões europeus.” (REIS. In: REIS, p. 88)
À sombra de toda essa realidade, o Brasil sempre levantou a bandeira de ser um
país gozando plena democracia racial. Onde, independente da etnia, somos todos
irmãos, tolerantes, com determinada aversão ao racismo, predizendo a gratidão da
população africana e afro-descendente para com um povo tão bondoso, que até mesmo
permite que o negro comungue de sua cultura superior. Ai daqueles que duvidarem
disso, estarão fadados à repugnância da população que reproduz discursos panfletários,
dizendo que o próprio negro é racista. Nascimento (1978) discutiu acerca dessa suposta
democracia racial:
Devemos compreender “democracia Racial” como significado a
metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro(...) Da
classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao
enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de
erradicação da “mancha negra”(...) Monstruosa máquina ironicamente
designada “democracia racial” que só concede aos negros um único
“privilégio” aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A
palavra desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é
inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação,
aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície
teórica permanece intocada a crença da inferioridade do africano e
seus descendentes.” (p. 93)

Podemos muito bem entender o fato de a miscigenação ser um ato positivo em


nosso país, reflexo da diversidade étnica aqui presente, oferecendo-nos a materialidade
de quão grande e plural é o nosso território nacional. Sem contar na grande contribuição
cultural que todas estas etnias ofereceram para a constituição cultural brasileira, em
termos tradicionais e globais. Porém, pensando em termos históricos, o primeiro contato
entre duas etnias se deu de forma arbitrária, portugueses e índios, dando origem ao
“caboclo”. Essa “mistura” não aconteceu de forma espontânea, os portugueses

14
estupravam as nativas. O resultado deste desamor era o filho bastardo, rejeitado pelo pai
e pela mãe, que via na criança um produto de seu sofrimento. Com a chegada dos
negros no Brasil, a exploração sexual mudou de foco, eram nas negras que os
“senhores” descarregariam suas vontades sexuais mais sórdidas. Mais uma vez o filho
bastardo. Relegado pelo pai e pela mãe. E assim constituímos nossa miscigenação. A
mulata (filha de branco com negro) foi cada vez mais sexualizada em nossa sociedade:
(...) a existência da mulata significa o “produto” do prévio estupro da
mulher africana, a implicação está em que após a brutal violação, a
mulata tornou-se só objeto de fornicação, enquanto a mulher negra
continuou relegada à sua função original, ou seja, o trabalho
compulsório. (NASCIMENTO, 1978, p. 62)

Como resultado de todo o processo exposto, os descendentes de africanos


seguiram à margem de nossa sociedade, sobrando apenas maus salários, condições
precárias de vida, levando essa população sempre em direção às periferias e favelas,
fruto da segregação sócio-espacial, entretanto, não se direcionaram a esses lugares por
vontade, mas por não terem condições financeiras de comprar ou alugar uma casa nas
áreas habitáveis da cidade, não possuíam instrução suficiente para executar tarefas com
um retorno financeiro melhor. Sendo assim um ciclo de discriminação se dá, na escola,
na rua, no emprego. Criando uma crescente desvalorização cultural.
No campo das artes o negro também era discriminado: “Em 1969, estreava na
TV a novela A Cabana do Pai Tomás (...) Sérgio Cardoso era maquiado para que
pudesse interpretar o papel do Pai Tomás, negro idoso, fiel e serviçal.” (LIMA;
SILVIA; SOUSA; SOUZA, p.174, 2005) Fato que ocorria também no teatro, caras
pintadas de preto para figurar negros. No teatro brasileiro demoraram aceitar os afro-
descendentes como atores, todavia, quando os englobaram nas montagens cênicas, era
para representar papéis pejorativos, cômicos:
Quando um ator ou uma atriz de origem africana tinha a oportunidade
de pisar em um palco, era, invariavelmente, para representar um papel
exótico, grotesco ou subalterno; um dos muitos estereótipos negros
destituídos de humanidade, tais como a criadinha de fácil abordagem
sexual, o moleque careteiro levando cascudo, a mãe preta chorosa ou
domesticado pai João. (NASCIMENTO, 1978, p. 162)

Estigmas que têm reflexo em nossa sociedade até os dias atuais, manchas que
não somem do universo simbólico das representações sociais. Este é o fardo que nosso
país carrega depois de mais de trezentos anos de escravidão. Apesar de toda a carga
cultural que o negro trouxe para nossa sociedade, ele ainda sofre discriminações,

15
tomamos conta de uma das mais ricas representações culturais que o negro trouxe
consigo do além mar: o candomblé.

IV – Afirmação da cultura negra

“Você me chamou de nego


Querendo desfazer da cor
Não sabe que eu tenho orgulho
Do que você tem horror” 8

Como vimos, o negro foi sempre deixado a margem da sociedade, e como se não
bastasse, mesmo após a abolição da escravidão, muitas de suas práticas culturais ainda
estavam na ilegalidade. A nobre sociedade de olhares e gostos ocidentalizados,“cedeu
espaço” para o negro, entretanto, impôs limites para esta inserção:
Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos
da época, havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da
sociedade, às práticas religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a eles o
caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente citados, eram
a “lascívia das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas
batucadas. (AMARAL; SILVA, p. 189, 2006)

Concluimos que, o governo, por meio de uma elite dominante, não hesitou em
manter proibições da época da escravidão, obrigando os negros a ocultarem seu traço
cultural mais marcante: a religiosidade, escondendo-se dos olhos da sociedade, pois:
“Tais cultos tinham um caráter candestino e as pessoas que neles tomavam parte eram
perseguidas pelas autoridades.” (VERGER, 1981, p. 29) Tornando tradição cultural em
caso de polícia.
Mesmo perante todos os aparatos reprecivos, os negros, ainda sim, lutavam para
dar continuidade a sua cultura, afinal, a escravidão não conseguiu apagar suas crenças,
não seria depois de liberto que iriam eliminá-las. No Rio de Janeiro, eram nas casa das
“Tias” que as celebrações clandestinas aconteciam. Lá, difundia-se a cultura africana e
incitava, sobretudo, a produção artística que levasse em conta elementos étnicos
culturais, que na sociedade eram reprimidos e censurados. Nesses casos: “A arte negra é
precisamente a prática da libertação negra (...) em todos os níveis e instantes da
existência humana.” (NASCIMENTO, 1978, p. 180) As tias eram de descendência
baiana, em sua maioria negras, traziam consigo toda a carga cultural africana obtida
8
Gasolina – “Você me Chamou de Nego”. Gravado pelo cantor Rubi, no cd “Paisagem Humana” em
2006.

16
através de seus antepassados. A casa, continha uma significância simbólica: liberdade.
Ali os negros eram livres para executar sua cultura, deixavam o mundo repressor de
lado para se encontrar com pessoas que comungavam dos mesmo ideais, pensamentos.
Uma das casas mais importântes, no sentido de resistência cultural da época, era a:
A casa de Tia Ciata, Babalaô-mirim respeitada, simboliza toda a
estratégia de resistência músical à cortina de marginalização erguida
contra o negro em seguida à abolição. A habitação – segundo
depoimentos de seus velhos frequantadores – tinha seis cômodos, um
corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas realizavam-se
bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba de partido alto
ou samba-raiado; no terreiro, batucada. (SODRÉ, p.15, 1998)

Polca e lundu são ritmos de descendencia africana, na época pouco aceitos,


(como a maioria dos resquícios de cultura negra), mas, tolerados de maneira geral pela
população, por isso que eram executados na sala de visitas. Já o samba (também de
descendencia africana) era altamente rechassado na sociedade, sua dança também era
menos contida, o lugar reservado era os fundos, mais longe dos ouvidos de quem
passava pela rua. No terreiro aconteciam os batuques e as cerimônias do candomblé,
pois, além de ser o espaço mais escondido da casa, mantinha-se ali um espaço de terra
(daí o nome “terreiro”), elemento vital nas celebrações religiosas africanas.
Na casa das tias, não havia o porque se diminuir, nem abaixar a cabeça, muito
menos negar sua personalidade e sua descendência:
A África aqui é o orgulho e uma fidelidade; nenhum complexo de
inferioridade, mas pressentimento de conservar uma herança de beleza
e bondade, a vontade de não se deixar perder na civilização brasileira,
mas de integrá-la a essa civilização para enriquecê-la e lhe dar doçura
suplementar. (BASTIDE, 1973, p. 274)

A cultura africana está muito ligada à religiosidade, como vimos, os centros de


resitência assumiam não só o papel de terreiro, mas de samba, de sociabilidade, de
danças, de divertimento. Naquele espaço idéias eram difundidas, pensamentos, modos
de vida. Não podemos negar que as casas das tias tranformavam o espaço urbano, à
medida que toda uma ideologia socio/cultural era emanada, pois:
A difusão da fé torna-se particularmente importante para a geografia
ao se refletir sobre a ação missionária de expansão de idéias e
condicionamentos simbólicos, algumas vezes resolvidas através de
trocas dramáticas no processo de aculturação. A migração de pessoas
que transmitem sua cultura e a migração de sistemas religiosos
resultam em adaptações ou integrações de religiões a um determinado
ambiente estranho, que pode alcançar um equilíbrio ou desenvolver
mecanismos de conquista. (ROSENDAHL, 1996, p. 52)

17
E o negro foi se afirmando cada vez mais, seja por meio da dança, da
corporalidade, dos instrumentos. Foi no samba que o negro encontrou o seu melhor
aliado em direção de sua aceitação cultural – “Sendo música religiosa, o samba
enredou-se, apesar disso, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas
entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade.” (AMARAL; SILVA, 2006, p. 192) Foi
aí que a sociedade passou a comungar a religiosidade do negro, mesmo de forma
inconsciente. Entretanto, o samba, por muito tempo só conseguiu abarcar o público
popular, sendo ainda estigmatizado pela elite brasileira, mas esse povo não buscava a
afirmação de sua cultura por parte dos ricos, pois, até mesmo: “As letras dos sambas,
cantadas ao fim das “rodas de santo” nas casas das “tias” baianas, ou nos encontros
festivos populares, como a Festa da Penha, refletiam o cotidiano dos grupos negros do
Rio de Janeiro e a própria importância da música neste cotidiano.” (AMARAL; SILVA,
2006, p. 193) O cotidiano dessas pessoas era simples, dotado de peripécias contra a lei,
bebidas, traições e muito amor. A elite estava acostumada com músicas clássicas que
incitavam a boa educação e as boas maneiras.
Dentre as políticas do estado novo (era Vargas), encontramos a que visava
estabelecer as bases de um estado genuinamente nacional, o que ocorreria por meio de
uma valorização das práticas culturais brasileiras, sobretudo as de origem popular,
causando assim, uma identificação da população com a nação. Dentre as culturas
escolhidas para figurar uma identidade cultural, estavam as práticas afro-brasileiras, foi
a partir dessa época que algumas manifestações foram desestigmatizadas, como a
capoeira e o carnaval. Sendo que ambos foram modificados: a primeira recebeu o nome
de capoeira regional, o segundo só foi aceito com a condição de os sambas enredos
tratarem de temas da história oficial brasileira (que não se importa muito com a cultura
negra) 9 .
A casa das tias, por longos anos, se constituiram em refúgio e territórios de
resistência e afirmação cultural. A identidade dessa população se manteve viva, por
meio de diversas representações, muitas vezes artísticas. A arte era tida como meio de
supressão ante tanta desigualdade e injustiça. A religiosidade, sem dúvida auxiliou e
incentivou todo este processo, muitas vezes, fundida entre manifestações do sagrado e
do profano e, foi no profano que encontrou bases para transcender seu papel religioso,
firmando afinidade com a contituição cultural brasileira.

9
AMARAL; SILVA, p. 199, 2006.

18
V - Candomblé – religiosidade e resistência cultural

“Salve Xangô, meu Rei Senhor, Salve meu Orixá” 10

Na religião, podemos encontrar a manifestação do sagrado, que é algo


transcende o mundo material: “O sagrado se manifesta sempre como uma realidade de
ordem inteiramente diferente da realidade do cotidiano.” (ROSENDAHL, 1996, p. 27)
E possui o poder de transportar as pessoas para fora da realidade, das preocupações,
encontrando assim, amor, acolhimento, realizações tanto no plano material como em sua
espiritualidade, “religião é uma experiência humana fundamental, definida mais
simplesmente como a experiência do sobrenatural, uma experiência independente da
razão (...). O homem religioso busca um poder transcendente que o sagrado possui.”
(ROSENDAHL, 1996, p.18) Esse poder deixa o homem religioso em paz consigo e
feliz para com suas crenças, herdadas de seus mais remotos antepassados. O sagrado se
constitui por meio de objetos, lugares, pensamentos e está totalmente ligado ao
religioso, ao poder transcendental. Os territórios onde o sagrado se manifesta, “Fazem
os objetos materiais (...) bem como as pessoas, passar de um mundo para outro, do
profano ao sagrado.” (BASTIDE, 1973, p. 255) A vida cotidiana fora da religiosidade
constitui-se como profana, o não sagrado. No Brasil, durante muitos séculos a religião
católica, por meio da força, obrigou os negros a se curvarem diante do sagrado, que, não
possuía nenhuma significação para este povo. Cada grupo religioso possui
especificidades, características próprias que o definem em torno de sua cultura. O que
não pode ocorrer é uma suposta supremacia cultural tomar frente para justificar
selvagerias.
As práticas reliosas afro-brasileiras sofreram gande depreciação ao longo dos
séculos, entretanto, se mantiveram. Na África, em pleno século XVI (época que os
colonizadores iniciaram a captura dos negros) os negros viviam, em sua maioria, em
aglomerações tribais, cada região tinha suas peculiaridades. Como também, cada região
possuía um orixá de adoração, sendo este responsável pela proteção dos nativos. Em
determinadas datas, organizava-se a festa (nome dado à celebração do ritual religioso),
então, o orixá saía de “seu mundo” para visitar os “filhos”, por meio de uma pessoa

10
Vinicius de Moraes e Baden Powell – “Canto para Xangô”. Garavdo no disco “Afro-Sambas” em 1966.

19
específica, seu iaô (na África - elegun), ocorrendo a possessão. Este Orixá servia
também para afirmar e abeçoar o Rei, garantindo assim, a coesão social11.
Não havia muita distinção entre o religioso e o social, prova do quão forte era a
crença dessas pessoas. A escravidão não conseguiria apagar o que foi construido em
séculos de tradição, pois: “Os seres humanos são considerados, por excelência, as
criaturas da comunicação, que armazenam significados através de palavras, desenhos,
gestos, números, padrões musicais e um grande número de outras formas simbólicas.”
(GARDNER, 1995 p.145) Toda essa carga cultural, veio para participar da constituição
da sociedade brasileira, que, embora sempre rechaçada, ainda sim se firmou e criou
raízes, por meio de muito sangue e lágrimas.
Algumas modificações ocorreram como forma de adaptar a religião africana à
nova realidade, pois, os negros eram colocados, muitas vezes, misturados nas
embarcações, oriundos de diversas regiões. Como cada pessoa possuia devoção a um
orixá, no culto do candomblé no Brasil, vários orixás puderam ser cultuados, como
meio de agradar todos os adeptos, totalizando em média desesseis deuses. Por isso,
qualquer afirmação veemente sobre o culto do candomblé no Brasil, pode estar fadada
ao erro. O que expomos aqui é o resultado de uma revisão bibliográfica acerca do tema,
onde encontrando pontos em comum nesta manisfestação religiosa.
Antes de prosseguir, nos atemos que são muitos os preconceitos que anulam a
possibilidade se conhecer em seu profundo o candomblé, tantos anos de repressão social
e política ainda colhem frutos. Por este motivo, se afirma cada vez mais a necessidade
de mostrar esta realidade a todos, entretanto, para não cairmos novamente no velho
discurso discriminatório: “É preciso julgar esse culto não através dos nossos conceitos
de brancos, mas tentando penetrar na alma dos fiéis e pensar como eles próprios
pensam.” (BASTIDE, 1973, p. 284) Analisar a religião, não com olhos estrangeiros, e
sim com abertura a percepções novas, só assim será possível travar qualquer
entendimento com nulidade de preconceito.
Há uma grande complexidade nas manifestações do candomblé, que diferem em
muito dos ritos religiosos europeus. A noção de bem e mal, céu e inferno, não existe no
candomblé. O bem e o mal estão contidos no caráter do ser, resta ao adepto religioso
saber balancear ambos sentimentos, controlar seus defeitos e explorar suas qualidades.
Os deuses desta religião - os orixás, possuem qualidades e defeitos humanizados, pois,
11
VERGER, 1981.

20
foram humanos durante algum tempo. Diferentemente das religiões européias ou
europeizadas, onde o sagrado se manifesta por meio de silêncio, concentração,
subserviência, no candomblé denomina-se “festa” as celebrações religiosas, que têm
como pressuposto a alegria, muita música (pontos) tocada pelos Alabês12 nos atabaques:
rum (grave), rumpi (médio), lé (agudo); enfeites são dispostos no terreiro ao gosto do
orixá homenageado; é realizado sacrifício de um animal para preparação da comida
sagrada, que será parte destinada aos orixás e parte degustada por todos os presentes. As
orações são através dos “pontos”, das danças e da comida. Uma grande
comunhão que prioriza a sociabilidade, descontração e muita fé.
O sagrado, no caso do candomblé, se dá como local nos terreiros – lugares
sagrados, destinados a execução dos ritos, oferendas, trabalhos. Necessariamente o
terreiro deve possuir um espaço com terra, sem nenhum tipo de piso, descoberto, pois, o
candomblé é uma religião que possui o ânima da natureza, todos os seus deuses (orixás)
possuem ligação direta com algum elemento natural, o que auxilia em uma maior
consciência ambiental e respeito ao meio natural. A noção de genealogia também é
muito forte nas práticas religiosas, sobretudo o respeito aos mais velhos e aos entes que
já faleceram:
A religião dos Orixás está ligada a noção de família. A família
numerosa originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos
e mortos. O Orixá seria, em principio, um ancestral divinizado, que,
em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre
certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou
salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas
atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o
conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O
poder, àse (axé), do ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade
de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes
durante um fenômeno de possessão por ele provocada. (VERGER,
1981, p. 18)

Os orixás eram seres humanos, assim como todos, com defeitos e qualidades,
que, através de um processo doloroso, por meio da ira ou outros sentimentos violentos,
passaram a ser: “Possuidores de um àse (axé) muito forte e poderes excepcionais.”
(VERGER, 1981, p. 18) Segundo a mitologia iorubana: sendo o orixá supremo, criador
da Terra - Olodumaré distribuiu todos os poderes da natureza entre todos os orixás que,
assim divinizados, puderam seguir seus caminhos.

12
No Brasil, Ogã tocador de atabaque,chefe da orquestra do candomblé, na África dono da navalha,
encarregado da escarificações rituais (aberés). (PRANDI, 2001, p. 564)

21
O mundo profano permeia as relações das pessoas religiosas, não há
possibilidade, no caso do candomblé, das pessoas viverem somente no espaço sagrado,
seria como negar toda a vivência cotidiana, portanto, ao se relacionar com o espaço que
circunda sua religiosidade, o adepto age como transformador de seu meio, levando
consigo elementos do espaço sagrado, bem como características, costumes e até mesmo
obrigações: “O homem religioso (...) se exprime sob formas simbólicas que se
relacionam no espaço.”(ROSENDAHL, 1996, p. 64). O candomblé ofereceu bases para
vários elementos que alteram a constituição da cultura brasileira e, por conseguinte, o
espaço geográfico. No plano da música, são diversas as contribuições africanas. O
samba é um ritmo que nasceu junto ao candomblé, se inspirando no ritmo africano
semba, tocado nas festas. Desenvolveu-se, sobretudo em meio a pessoas pobres e em
sua maioria afro-descendentes – ressaltando o papel da casa das Tias no Rio de Janeiro.
Os cantos executados nas celebrações começaram a serem ouvidos fora dos terreiros. A
sociedade passou a comungar das músicas, embora, muitas vezes, alienada a verdadeira
significação religiosa. O profano interage com sagrado, como no caso da culinária das
“baianas”.
Todos os orixás possuem peculiaridades como: dia da semana, cor, música
(ritmo), força sobre determinado elemento da natureza e prato predileto. Nos dias de
festa para determinados orixás, devem ser seguidas à risca as preferências do
homenageado. A culinária predileta dos orixás é intitulada “prato sagrado”. As
responsáveis pela preparação da comida, são mulheres designadas para tal no ato de
“virar o santo”, ou seja, da iniciação na religião, os segredos culinários são passados de
geração para geração, mantendo características trazidas do continente africano. Na
Bahia, principal porto receptor de escravos do período colonial, aconteceu um fato em
particular: a comida baiana não só foi influenciada pela culinária africana, como
aconteceu em grande parte do Brasil, mas, a culinária sagrada transcendeu os terreiros,
ultrapassou os limites do sagrado, se envolvendo e alterando o espaço profano. As
típicas baianas, de roupas brancas (as mesmas utilizadas como indumentária no espaço
sagrado), vendiam preparos suculentos em meio à praça pública:
(...) Se muitas receitas dos pratos africanos, glória da apimentada
culinária baiana, chegaram até nós, é que foram fielmente conservadas
e transmitidas de mães para filhas pelas baianas vendedoras de
quitutes nas ruas. Acontecia às vezes que, antes de sair de casa, elas
faziam oferendas de parte das comidas nos altares de seus orixás.
Quando as pessoas compravam e comiam acarajé, participavam, sem
saber de uma comida em comum com Iansã, e se era caruru, também

22
chamado amalá nos terreiros de candomblé, era com Xangô que
comungavam. Assim por consideração aos gostos dos orixás,
nasceram e perpetuaram-se os vários quitutes na Bahia. (VERGER,
1981, p. 32)

O espaço geográfico é alterado pelas significações herdadas da África, a cultura


se enriquece, entretanto, ainda encontramos na sociedade moderna, demasiados
preconceitos para com estas manifestações, que são frutos de um passado marcado pela
tentativa latente de etnocidio do negro. A palavra macumba, ainda é largamente
utilizada de modo pejorativo, para designar os ebós13, que são feitos aos deuses orixás.
O que poucos sabem, é que nem sempre essas oferendas são feitas com intento
negativo, para o mal, a maioria é como forma de agradecimento, pedido por entes
queridos e para agradar o orixá. A palavra macumba significa dança no dialeto iorubá.
Sendo assim, destacamos a importância da legitimação cultural que o candomblé
promove na população religiosa e da afirmação da cultura africana na sociedade. O
negro no candomblé não é o outro estranho, subserviente e receoso de suas atitudes:
O candomblé marca o ponto onde a continuidade existencial africana
tem sido resgatada. Onde o homem pode olhar a si mesmo sem ver
refletida a cara branca do violador físico e espiritual de sua raça. No
candomblé, o paradigma opressivo do poder branco, que há quatro
séculos vem se alimentando e se enriquecendo de um país que os
africanos sozinhos construíram, não tem lugar nem validez.
(NASCIMENTO, 1978, p. 182)

Resgatar a auto-estima e a valorização dessa riquíssima cultura, dentro da


cultura brasileira, é um papel nobre que o candomblé exerce. Quando os adeptos negros
que se encontram a margem da sociedade participam dos ritos, eles conseguem: “Despir
a roupa da servidão cotidiana para vestir a roupagem brilhante dos Deuses.” (BASTIDE,
1973, p. 280) Em todas as celebrações do candomblé, o iaô é responsável por trazer o
orixá de volta à terra, é por meio de seu corpo, que, o deus pode retornar, o que os
adeptos chamam de “montar”, como se o iaô fosse um cavalo pronto para ser montado
pelo orixá, destruindo a teoria de que o deus “se incorpora” na pessoa. O iaô, no dia da
festa, tem que estar preparado com a indumentária de seu orixá, que na maioria dos
casos é bem suntuosa, com detalhes e dependendo do orixá, com pedras e metais
preciosos, como podemos observar na foto 1, onde um iaô de Oxum está em transe. A
celebração de transe do iaô, se dá em torno de torno de um ritual bem marcado, com

13
Sacrifícios, oferendas, despachos.

23
regras específicas, nenhuma pessoa “recebe o orixá” somente ouvindo um ponto de seu
orixá, ou permanecendo em um espaço sagrado:
È necessário que tenham sido preparadas para receber o orixá através
de certas interdições, como a do corpo limpo, certos banhos de ervas,
em resumo, por um conjunto de fatos regulamentados pela sociedade,
sem os quais a música nada produz. (BASTIDE, 1973, p. 279)

O candomblé continua como uma forma religiosa, altamente difundida em nossa


sociedade, seja no espaço sagrado, por meio dos ritos, da ancestralidade, seja no espaço
profano por meio da cultura popular e na atualidade por meio da cultura de massa, que
por sua vez interagem com o espaço, contribuindo para estudos da geografia cultural,
bem como ilustrando toda a trajetória no espaço e no tempo, desta religião como carga
cultural de um povo, agora como elemento da composição cultural do Brasil.
A manifestação religiosa do candomblé pode ser entendida como sendo uma
rugosidade, pois, se mantém do passado e traz consigo história de realidades passadas14,
evidenciando a herança cultural africana sociogeográfica, que, perdurou e perdura até os
dias atuais, onde sua gênese está em séculos passados. Não foram somente as práticas
religiosas que se mantiveram, mas também a territorialidade do espaço físico, pois é no
terreiro que as celebrações acontecem e este, por sua vez, tem que seguir uma série
normas que foram difundidas de geração para geração.

14
SANTOS, 2008

24
Foto 1:

Fonte: VERGER, 1981.

25
VI – Sincretismo no candomblé
“Vestimenta de caboclo é samambaia” 15

Os negros recém seqüestrados da África, como vimos, foram obrigados a se


converter a uma religião totalmente adversa a sua, que negava qualquer outra religião,
principalmente as politeístas. A religião católica, por meio de seus líderes religiosos,
pensava ser portadora da verdade suprema, e por isso cometeu uma série de atos contra
a cultura africana. Os negros começaram a “misturar” as crenças religiosas, mas isto se
deu, não de forma espontânea, e sim de forma brutal. Nas igrejas católicas os negros
exaltavam uma imagem no altar e pensavam em outra entidade, enquanto rezavam
pensavam nos orixás que tanto adoravam e amavam. Não denominamos essa junção:
catolicismo versus candomblé, de sincretismo, pelo fato de não ter se dado
espontaneamente, e sim por meio da tentativa de etnocidio pelo qual o negro passou.
Além disso, há o fato de que a igreja católica nunca reconheceu o candomblé. A obra
literária “O pagador de promessas” de Dias Gomes, conta a história do Zé-do-Burro,
que fez uma promessa em um terreiro para Iansã, a fim de que ela ajudasse seu burro
que estava doente, este por sua vez melhorou e, Zé-do-Burro foi cumprir sua promessa,
que consistia em carregar uma cruz do tamanho da de Jesus Cristo até a igreja de Santa
Bárbara (santa católica que corresponde a Iansã), lá chegando foi falar com o padre,
que, ao saber que a promessa foi feita em um terreiro para uma orixá, o proibiu de
entrar na igreja, causando grande confusão. Essa história se faz verdade até os dias
atuais, em que a discriminação a estas manifestações religiosas é latente. Não há
sincretismo do candomblé para com uma religião, que, mesmo depois de desumanas
atrocidades cometidas, ainda continua a nulificar manifestações de origens negras.
O candomblé, ao chegar em solo brasileiro, por meio dos negros, se deparou
com uma cultura tão importante quanto a sua, e também alvo crescente de aculturação, a
cultura dos nativos indígenas. Do encontro destas duas culturas peculiares, nasceu de
forma espontânea, o que denominamos sincretismo: o candomblé de caboclo, unindo a
crença doa aborígenes com a dos africanos.

Só merece o nome de sincretismo o fenômeno que envolveu as


culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios
brasileiros. (...) O encontro das religiões africanas com a religião

15
Ponto cantado na Umbanda (religião criada no Brasil que une elementos do candomblé e do espiritismo
Kardecista) - Domínio público. Adaptado e Gravado por Martinho da Vila no disco “Canta, canta minha
gente” no ano de 1974.

26
nativa dos indígenas manifesta-se nos terreiros de caboclo, onde o
culto mistura dois sistemas espirituais (...) (NASCIMENTO, 1978, p.
109)

A interação com a natureza, que as religiões indígenas brasileiras e o candomblé


possuíam, eram parecidas. Ambas eram politeístas, seus mais respeitados ícones
religiosos eram os mais velhos. No candomblé de caboclo além dos orixás, encontramos
os espíritos da floresta, que são índios que já morreram, mas continuam a zelar pelo
bem da mata e da floresta. Podemos exemplificar este sincretismo, na música “Linha de
Caboclo” gravada na voz da cantora Maria Bethânia, composta por Paulo César
Pinheiro:
Já chegou a hora/ Quem lá no mato mora/ É que vai agora/ Se
apresentar/ No chão do terreiro/ A flecha do Seu Flecheiro/ Foi que
primeiro/ Zuniu no ar/ Vi Seu Aimoré/ Seu Coral, vi Seu Guiné/ Vi
Seu Jaguaré,/ Seu Araranguá,/ Tupaíba eu vi,/ Seu Tupã, vi Seu Tupi,/
Seu Tupiraci,/ Seu Tupinambá/ Vi Seu Pedra-Preta se anunciar,/ Seu
Rompe-Mato,/ Seu Sete-Flechas,/ Vi Seu Ventania me assoviar/ Seu
Vence demandas eu vi dançar/ Benzeu meu patuá/ Vi Seu Pena-
Branca rodopiar/ Seu Mata-Virgem,/ Seu Sete-Estrelas,/ Vi Seu Vira-
Mundo me abençoar/ Vi toda a falange do Juremá/ Dentro do meu
gongá/ Seu Ubirajara/ Trouxe Seu Jupiara/ E Seu Tupiara/ Pra
confirmar/ Linha de Caboclo,/ Diz Seu Arranca-Toco,/ Um é irmão do
outro/ Quem vem lá/ Com berloque e jóia/ Vi Seu Araribóia/ Com Seu
Jibóia/ Beirando o mar/ Com cocar, borduna,/ Chegou Seu Grajaúna,/
Com Baraúna/ Mandou chamar/ Vi Seu Pedra-Branca se aproximar/
Seu Folha-Verde,/ Seu Serra-Negra,/ Seu Sete-Pedreiras eu vi rolar/
Seu Cachoeirinha ouvi cantar/ Seu Girassol girar/ Vi Seu Boiadeiro
me cavalgar/ Seu Treme-Terra,/ Seu Tira-Teima,/ Seu Ogum-das-
Matas me alumiar/ Vi toda a nação se manifestar/Dentro do meu
gongá/ che tua.(2008)

Percebemos que há uma inteiração entre entidades caboclas e do candomblé,


uma coexistência pacífica, uma infinidade de nomes que trazem consigo, personalidades
e poderes de proteção. Manifestações da genuína cultura nativa brasileira, mais um
toque africano, que, ao se encontrarem, modificam suas crenças, adicionando elementos
novos e, por conseguinte expandindo-a no espaço, unindo forças contra a opressão
sócio/cultural. A umbanda é uma religião brasileira, que, recebeu forte influência do
candomblé, unindo a religião africana com os pressupostos do espiritismo difundido por
Allan Kardec. Na umbanda encontramos “entidades”, que são espíritos que guardam e
influenciam as pessoas, bem como: Pomba Gira, Tranca Rua, Maria Padilha e, em
determinados casos encontramos elementos das religiões indígenas e do catolicismo, já
no candomblé são cultuados apenas os orixás.

27
VII – Terreiro - território África
“Neste terreiro em festa, entre mil adobás
Prestamos nosso tributo aos Orixás” 16

Quando denominamos o terreiro de espaço sagrado, já estamos levando em


conta a existência do não sagrado, ou seja, do profano: “A palavra sagrado tem o
sentido de separação e definição, em manter separadas as experiências sagradas das não
sagradas, isto é, profanas.” (ROSENDAHL, 1996, p. 28) Porém, no candomblé, é o
sagrado que permeia de significações a vivencia social profana. “O espaço sagrado e o
espaço profano estão sempre vinculados a um espaço social. A ordenação do espaço
requer sua distribuição entre sagrado e profano: é o sagrado que delimita e possibilita o
profano.”(ROSENDAHL, 1996, p. 32) Não há possibilidade de qualquer tipo de
separação, o religioso tem suas obrigações comportamentais, carregando consigo a
carga cultural que o candomblé lhe fornece, “na cosmovisão das diversas etnias
africanas, é a manifestação do sagrado que dá fundamento ao mundo.” (SALES. In:
BARBOSA, 2008, p.181) O terreiro além de ser um espaço sagrado, é marcado pela
ordenação espacial, que conta com regras na disposição dos objetos ritualísticos que
também são sagrados. Esta sacralidade atribuída tanto aos objetos quanto ao espaço do
terreiro depende das pessoas que praticam, acreditam e difundem o candomblé.
As pessoas se apropriam do lugar e redefinem sua utilização. Carregando-o de
significações. Segundo Rosendahl: “Os espaços apropriados efetiva ou afetivamente são
denominados territórios.” (1996, p. 58) O espaço do terreiro se define enquanto
território, impregnado de significados e símbolos controlados pela religiosidade,
representado pelos “donos(as)” do terreiro - os pais e as mães de santo, seguido por toda
hierarquia da religião. Os adeptos encontram com seus antepassados, com sua história
cultural, com os orixás: “no interior do recinto sagrado o mundo profano é transcendido
e, como consequência, a comunicação com o divino torna-se possível.” (ROSENDAHL,
1996, p.33) É no terreiro que as divindades africanas iorubanas se manifestam, neste
território transposto diretamente da África por meio dos símbolos. O território, nesse
caso, também se torna um símbolo religioso, contém uma representação e uma aceitação
por parte dos partícipes, que, a todo momento o afirmam, fornecendo reconhecimento à
manifestação do sagrado, entrando em contato com os orixás.

16
Mauro Duarte, Noca e Rubens Tavares. “Tributo aos Orixás”. Gravado por Clara Nunes no disco
“Clara Clarice Clara” em 1972.

28
É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce
sua função de mediação entre o homem e a divindade. É o espaço
sagrado, enquanto expressão do sagrado, que possibilita ao homem
entrar em contato com a realidade transcendente chamada deuses.
(ROSENDAHL, 1996, p. 30)

No território terreiro, a provisão cultural é forte. Na verdade, é a cultura que


possibilita e mantém toda a estrutura religiosa, fornecendo base hereditária - tradicional,
mítica, existencial e sócio-cultural, nutrindo de harmonia o seu território, podemos
chamar esse processo de: “Territorialidade” que “por sua vez, significa o conjunto de
práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado
território.” (ROSENDAHL, 1996, p. 58) De acordo com a teoria do Milton Santos
(2008) de fixos e fluxos, podemos separar as representações do sagrado responsáveis
pela construção da territorialidade no terreiro de candomblé. Sendo os fixos: rios – sob a
proteção de Oxum; mata – Oxossi; mar – Iemanjá; pedras – Xangô. Por fluxos
entendemos a dinâmica produzida, através da comunicação religiosa, das representações
simbólicas atribuídas a diversos objetos como: os atabaques Rum, Rumpi e Lé; adornos
dos orixás como o machado de Xangô; o espelho de Oxum; a vestimenta sagrada dos
orixás; os “colares de contas”, utilizados para designar proteção a quem usa, concedidos
por meio de presente para o recém ingressante na religião, têm uma ligação direta com o
orixá que rege a vida do iniciado.
Para uma pessoa que está alheia a religião, todos os objetos sagrados, além de
adorno, não possuem mais nenhum significado, daí a importância de observá-los, de
acordo com a significação cultural neles contida. Ao desprezarmos toda a simbologia
contida no objeto, não levando em conta o processo histórico-cultural de representação,
estamos fadados a reduzir o candomblé ao título de folclore. Nei Lopes conceitua bem o
termo folclore e folclorização na “Enciclopédia da diáspora africana”:
FOLCLORE. Conjunto de costumes, crenças e técnicas de um povo,
transmitidas através de gerações por meio de relatos mitológicos,
provérbios, enigmas, canções e da experiência cotidiana. Com relação
aos produtos culturais de origem africana, o termo é muitas vezes mal
empregado, com utilização quase sempre servindo a um recalcamento
dessa produção em função de uma suposta superioridade da chamada
“cultura erudita”, de base européia. A esse tipo de recalcamento dá-se
o nome de folclorização. Com relação às expressões culturais negras,
a folclorização costuma, a partir de uma perspectiva eurocêntrica,
ressaltar seus aspectos exteriores, “pitorescos”, para mascarar as
condições em que essas manifestações são produzidas, sempre à

29
margem da produção cultural dominante, e, assim, ocultar seu papel
de agente transformador. (p. 280, 2004)

Portanto, o processo de folclorização, visa descaracterizar a cultura afro-


brasileira, tirá-la todo o seu teor simbólico, ocasionando um processo de fetichização,
onde um objeto sagrado passa a ser exposto em um museu, ou em qualquer local, aquém
de seu território, desprovido de sua original significação, e passa a ser visto como algo
diferente, exótico. “A cultura africana posta de lado como simples folclore se torna um
instrumento mortal no esquema de imobilização e fossilização de seus elementos vitais.
Uma forma sutil de etnocidio.”(NASCIMENTO, 1978, p. 119) Os elementos simbólicos
contidos nos objetos, se esvaem, recebendo uma nova significação puramente estética e,
por conseguinte, eliminando toda a memória cultural. Consequentemente, “Arrancados
de seu ambiente, de suas referências geográficas, de suas funções rituais, de olhares de
seus participes, esses objetos não seriam mais que resíduos de crenças tribais para o
preconceito tão longamente afirmado.” (SALES. In: BARBOSA, 2008, p.170)

VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia

“A vida penetra na arte como a arte age na vida” 17

O propósito de descortinar a presença da cultura africana como parte constituinte


de nossa cultura, encontra na teoria das inteligências múltiplas, desenvolvida por
Howard Gardner, um importante suporte de sustentação teórica e aplicação prática dos
objetivos do trabalho. A educação fornece ferramentas de conscientização, que, por
conseguinte, intervêm no social levando a uma possível reconstrução da sociedade18. A
educação, de per si, já fornece aparato necessário de transformação social, pois, o
intento do trabalho é desmitificar idéias que perduraram durante séculos em nossa
sociedade, que sempre colocaram o negro à margem da sociedade. Portanto,
defendemos no presente trabalho, “a esfera educativa como sendo um dos ângulos
essenciais para a reafirmação cultural e a derrota da vergonha étnica, implantada nos
sistemas educacionais oficiais.” (GARCIA. In: OLIVEIRA, p. 14)

17
PAREYSON, 2001, p. 41.
18
BALLENGE-MORRIS; DANIEL; STUHR. In: BARBOSA, 2008.

30
Gardner (1995) identificou inteligências múltiplas em campos distintos, a saber:
linguística, lógico-matemática, espacial, musical, corporal-cinestésica, interpessoal,
intrapessoal.
Como nos mostra este autor, identificar a inteligência que cada indivíduo possui,
tomando por base a Teorias das Inteligências Múltiplas, nos possibilita perceber que a
competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de
capacidades, talentos, ou habilidades mentais que chamamos de inteligências19. O autor
define inteligência como: “A capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos
que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários.” (1995,
p.14) Isto possibilita também, que cada pessoa expresse, por meio de ferramentas
artísticas (teatro, música, dança, pinturas, poesias, crônicas) o que conseguiu absorver
sobre o tema.
A proposta de Gardner nos permite identificar na cultura brasileira a influência
de elementos africanos oriundos das celebrações do candomblé e usá-los como
instrumentos pedagógicos a fim de desenvolver nos educandos as múltiplas
inteligências, auxiliando a dissipação de discriminações e opiniões discriminatórias em
nossa realidade, pois, só por meio de uma cultura de paz conseguiremos acabar com
todo processo de desumanização pautado no preconceito20. Com os pressupostos de
Gardner, desenvolvemos a idéia de multiculturalismo em nossa sociedade, que abarca
diversas visões da realidade, podendo, assim, atingir um maior esclarecimento das
situações - que dizem respeito a culturas tradicionais e populares enquanto portadoras
de riqueza ímpar em nossa sociedade – conseguindo, dessa forma, traçar um paralelo
com outras áreas do saber, como literatura, artes, história, ciências sociais, etc. Unindo
áreas afins em prol do processo ensino aprendizagem, percebemos “(...) que a
competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de
capacidades, talentos ou habilidades mentais que chamamos de ‘inteligências’.”
(GARDNER, 1995, p.21)
Ao unir o candomblé (como cultura afro-brasileira) com a teoria das
inteligências múltiplas, estamos ampliando a visão das pessoas sobre sua comunidade,
onde poderiam participar mais ativamente, integrando-se e compreendendo as diferentes
pluralidades existentes, além de proporcionar-lhes mais recursos para a apreensão de um
tema, ao mesmo tempo atual e complexo.

19
GARDNER, 1995.
20
CAO. In: BARBOSA, 2008.

31
Com o intuito de mostrar uma visão diferenciada e alternativa à convencional,
buscamos embasar o conhecimento e torná-lo tão interessante quanto é, pois,
cometeríamos um crime pedagógico se acreditássemos que todos os educandos possuem
uma forma única de aprendizagem e, para suprirmos esta realidade, temos que levar em
conta a pluralidade do intelecto. Para tanto, utilizamos diferentes elementos expositivos
e práticos como instrumentos pedagógicos, a exemplo de: filmes, músicas, ilustrações,
poesias, textos, fotografias, instrumentos musicais e pratos típicos com referência no
candomblé, expondo elementos da cultura africana, que, transcenderam a religiosidade e
estão presentes no cotidiano cultural brasileiro, pois: “uma inteligência também deve ser
capaz de ser codificada num sistema de símbolos – um sistema de significados
culturalmente criado, que captura e transmite formas importantes de informação.”
(GARDNER, 1995, p.22)
Nos capítulos posteriores haverá a exposição de cada tipo de inteligência e como
ela se relaciona com as manifestações culturais africanas no Brasil.
Intimamente ligada às múltiplas inteligências está a arte/educação. Podemos
dizer que, somente pelo fato de se trabalhar a teoria de Gardner, já estamos praticando a
arte/educação. A arte, por sua vez, tem o poder de alcançar sentimentos e sensações que
normalmente não são alçadas, ressaltando que ela penetra no inconsciente por meio da
consciência21. O que gera uma maior criatividade e crítica ante o tema abordado, pois, a
arte abre perspectivas amplas, que fornecem instrumentos necessários para se
compreender o mundo com mais sensibilidade de maneira poética, flexível e
significativa22. Utilizar a arte na educação só faz enriquecer a proposta de trabalho,
proporcionando ao educando a visão de quão artísticas são as manifestações da cultura
africana no Brasil, principalmente do candomblé: “A vida social enobreceu-se e refinou-
se sob a evidente influência de um ideal estético, as várias cerimônias da vida (...)
religiosa colorem-se com arte, num nexo concreto em que a beleza não é separável do
resto, do culto, da convenção, do símbolo.” (PAREYSON, 2001, p. 30) Não há
possibilidade de dissociar a arte das celebrações do candomblé: “Essas minorias trazem
culturas, portanto arte, e desenvolvem-na em sua comunidade. Acredito ser importante
que a arte que eles fazem e sua peculiaridade seja reconhecida, analisada e registrada”
(SMITH. In: BARBOSA, 2008, p.33) O que devemos fazer é utilizar essa cultura
ressaltando suas significações culturais em prol do processo ensino–aprendizagem,

21
VIGOTSKI, 2001.
22
STRAZZACAPPA, 2006.

32
enfatizando que a interpretação das obras artísticas não é estática, de modo que sempre
nos deparamos com uma variável, imposta pelo nosso inconsciente:
A verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma,
que superação sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela
mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte,
implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido.
(VIGOTSKI, 2001, p. 307)

Neste processo, a educação se torna dinâmica, suprimindo o senso comum, que


difunde a idéia de que arte é somente aquela produzida por uma “elite” artística alheia
ao mundo exterior e, obras de arte são aquelas expostas nos museus que figuram, do
ponto de vista comportamental do adolescente, espaços monótonos, onde não se pode
conversar, correr, enfim em espaço de repressão. Apontar as diversas artes oriundas do
popular, bem como as expressões do candomblé na cultura brasileira é fazer com que o
educando comece a observar à sua volta elementos artísticos que são passíveis de
valorização, passando a observar seu cotidiano, atribuindo-lhes significados positivos,
reconhecendo e afirmando sua cultura. Portanto “a arte na educação, como expressão
pessoal e como cultura, é um importante instrumento para a identificação cultural e o
desenvolvimento individual.” (BARBOSA, 2008, p. 99)
Para melhor situar o presente trabalho na temática da atualidade brasileira e
apontar a pertinência da abordagem do tema, nos remetemos à Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que inclui no currículo oficial da rede de ensino “História e Cultura
Afro-Brasileira”, sendo alterada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003, recebendo
sua versão final por meio da Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, abarcando não
somente história e cultura afro-brasileira, mas também história e cultura indígena:
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil. (BRASIL. lei nº 11.645, 10 de março de 2008)

A criação desta lei foi uma medida da União que podemos considerar como
contraditória, pois estas matérias já deveriam ser trabalhadas no conteúdo normal.
Portanto, o que podemos constatar é que há um processo de “embranquecimento” da
nossa memória, pois os ícones históricos no que tange a política, a cultura, ao social,
citados nos processo de ensino, são em sua maioria brancos, de modo que já deveria ter

33
sido reconhecida a importância de outras etnias na constituição cultural brasileira. Fato
que não é exclusivo do Brasil, pois, o governo colombiano, diante da mesma
problemática, em 1993 (três anos antes da criação da lei no Brasil) sancionou a “lei 70”
- de comunidades negras da Colômbia, que assegura o ensino das práticas, história e
cultura dos negros. Entretanto, mesmo tardia, a criação da lei em nosso país vem
auxiliar um processo de recuperação e valorização da memória indígena e africana, o
que ocorre espontaneamente nas celebrações do candomblé, nas quais são resgatadas
não só a memória, mas também a cultura do povo africano e, no caso do candomblé de
caboclo, além disso, nos deparamos com a valorização de traços da cultura aborígene
(indígena).

8.1 – Inteligência musical


“Negro entoou um canto de revolta pelos ares” 23

Entendemos como inteligência musical a capacidade que indivíduos têm de


assimilar assuntos e temas por meio de músicas, possuindo facilidade rítmica, sendo
predispostos a tocar instrumentos e cantar. A música sempre teve seu espaço garantido
na constituição cultural da humanidade, são raros os povos que não possuem nenhuma
manifestação musical, que por sua vez, é uma importante agente de sociabilidade e
interação, pois muitos ritmos suscitam euforia e alegria, amor e desencanto. A música é
considerada uma forma de arte, por conseguinte, atinge o inconsciente, agindo por meio
dos sentidos, causando diversos tipos de emoções. Encontramos a gênese da sonoridade,
não no ser humanos racional, mas na própria natureza, onde as ondas ao “quebrarem” na
praia executam certa sonoridade, e a mitologia iorubana24 atribui a Iemanjá (a rainha do
mar) este som; o vento, ao soprar por entre as árvores regido por Iansã; as cachoeiras de
Oxum; passando de sonoridades para a música oriunda do “canto dos pássaros” que
“proporciona um vínculo com outras espécies. Evidências de várias culturas apóiam a
noção de que a música é uma faculdade universal.” (GARDNER, 1995, p.23)
Como sabemos, a cultura africana alterou o espaço geográfico em que se inseriu,
re-significando vários aspectos da cultura vigente e um destes aspectos foi a música:
“As sonoridades, ritmos, danças e gestos são fatores distintivos das culturas africanas e

23
Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. “O Canto das Três Raças”. Gravada por Clara Nunes, no disco
“O Canto das Três Raças” no ano de 1976.
24
Elementos míticos oriundos da África, que fundamentam o candomblé.

34
revolucionaram a música nos diversos países onde essa presença chegou.” (SALES. In:
BARBOSA, 2008, p.185) Daí a relevância de se tratar deste assunto, pois a música
brasileira de um modo geral foi altamente influenciada por ritmos africanos, sobretudo
pelo candomblé, que possui como uma das bases de suas celebrações a música, sendo
impossível a existência da musicalidade brasileira sem se levar em conta ritmos
africanos.
Na inteligência musical serão trabalhadas músicas compostas ou interpretadas a
partir de canções de umbanda e candomblé que foram incorporadas à cultura musical
brasileira, considerando que as músicas africanas são fundamentalmente rítmicas e,
portanto, plenamente musicais25. Ressaltando que estas músicas, foram gravadas e
comercializadas por seus intérpretes, despidas de toda a sua significação religiosa para
se tornarem produtos culturais, que na atualidade, pela ampla difusão tornaram-se
elementos da cultura global brasileira. Os intérpretes e compositores que difundiram o
candomblé como cultura brasileira são inúmeros, mas no presente trabalho nos atemos a
cinco artistas que auxiliaram neste processo, que são: Martinho da Vila, Maria Bethânia,
Vinicius Moraes e Baden Powell, Clara Nunes e Rita Ribeiro. Levando em
consideração que o intento do trabalho é abordar os temas por meio da arte/educação,
vale lembrar que os meios artísticos não são somente figuração do tema trabalhado, mas
possuem uma valoração estética, pois: “Arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem
juntos.” (PAREYSON, 2001, p. 54)
O Interprete e compositor Martinho da Vila gravou se primeiro disco em 1969,
com músicas de samba, que como vimos, têm influência direta do ritmo semba –
executados nos terreiros em celebrações do candomblé. Este trabalho ainda não
continha um teor alto de religiosidade africana, mas, cita um procedimento ritualístico
do candomblé, conhecido como festa, na música “Casa de bamba”, composta por ele:
“Macumba lá na minha casa/ Tem galinha preta, azeite de dendê/ Mas ladainha lá na
minha casa/ Tem reza bonitinha e canjiquinha pra comer”. No disco gravado em 1974 –
“Canta, canta, minha gente”, Martinho transpôs para o disco pontos (músicas) da
religião umbanda, como observamos na música “Festa de umbanda”:
O sino da Igrejinha/ Faz belém blem blam/ Deu meia-noite/ O galo já
cantou/ Seu tranca rua/ Que é dono da gira/ Oi corre gira/ Que ogum
mandou/ Tem pena dele/ Benedito tenha dó/ Ele é filho de Zambi/ Ô
São Benedito tenha dó/ Tem pena dele Nanã/ Tenha dó/ Ele é filho de
Zambi/ Ô Zambi tenha dó/ Foi numa tarde serena/ Lá nas matas da

25
SODRÉ, 1998.

35
Jurema/ Que eu vi o caboclo bradar/ Quiô/ Quiô, quiô, quiô, quiera/
Sua mata está em festa/ Saravá seu mata virgem/ Que ele é rei da
floresta/ Vestimenta de caboclo/ É samambaia/ Saia caboclo/ Não me
atrapalha/ Saia do meio/ Da samambaia.

Na referida música, Martinho da Vila assume a adaptação da música, mas não a


composição, que está como domínio público. O Tranca Rua é a entidade umbandística
responsável por zelar pelas pessoas que ficam na rua depois da meia noite, sendo “dono
da gira”. Jurema é uma cabocla, aborígene que cuida das matas e florestas como todos
os caboclos.
Dando continuidade a analise dos referidos artistas, expomos que Maria
Bethânia foi reconhecida no cenário brasileiro por não esconder sua religiosidade,
exaltando suas crenças por meio de canções. Seu primeiro disco foi datado de 1965, mas
somente em 1969 em seu 4º trabalho que gravou músicas referentes ao candomblé como
“Dia dois de Fevereiro” de Dorival Caymmi: “Dia dois de fevereiro/ Dia de festa no
mar/ Eu quero ser o primeiro/ A saudar Iemanjá”. Dia em que milhares de devotos vão
ao mar entregar “oferendas” - “O presente que eu mandei pra ela/ De cravos e rosas
vingou/ Chegou, chegou, chegou/ Afinal que o dia dela chegou”. Em 1970, Bethânia
gravou dois pontos - utilizados nas celebrações do candomblé, a autoria de ambas
consta como domínio público adaptado pela Cantora: “Ponto de Iansã” no dialeto iorubá
- “Oya, Oya, olha ê!/ Olha a Matamba de karoká zingue/ Oya, Oya, Olha ê!/ Olha a
Matamba de Kakoká zingue ô.”, e “Ponto de Oxossi”: “O galo cantou/ Ta chegando a
hora/ Oxalá ta me chamando/ Caçador já vai embora.”. Oxalá é, na mitologia, o criador
da terra, portanto, todos os orixás lhe devem obediência, inclusive Oxossi que é caçador
e senhor das matas (PRANDI, 2001). Em 1971, grava “Ponto de Oxum” composição de
Toquinho e Vinícius de Moraes: “Nhem-nhem-nhem/ Nhem-nhem ô xorodô/ É o mar, é
o mar/ Fé-fé xorodô/ Xangô vivia em guerra/ Conhecia toda terra/ Tinha ao seu lado
Iansã pra lhe ajudar/ Oxum era rainha,/ Na mão direita tinha/ O seu espelho onde vivia/
A se mirar”. Na mitologia iorubana, que fundamenta o candomblé, bem como nas
sociedades africanas antes da escravidão, era permitido ao homem possuir várias
esposas, Xangô era casado com Iansã, depois se casou com Oxum, que é a orixá da
beleza e da fertilidade, apresenta alto grau de vaidade se preocupando com sua beleza,
por isso anda com espelho para se mirar (VERGER, 1981). Em 2009, a cantora gravou
o cd “Encanteria”, dedicado a elementos da musicalidade popular, na música “Feita na
Bahia” composta por Roque Ferreira, a cantora faz um apanhado de sua religiosidade:

36
Fui feita na Bahia/ Num terreiro de Oxum/ Os tambores sagrados/
Bateram pra mim/ Me banhei com guiné, alfazema e dandá/ Defumei
com quarô, benjoin/ E de pano da costa/ Batizei no Bonfim/ Um velho
preto alaketo me disse/ Que foi lá de Keto que eu vim/ Eu já vim
predestinada pra cantar assim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto
sim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto sim.

O termo “feita” faz alusão ao ritual de virar o santo, ou seja, se iniciar no


candomblé, a música completa com os passos de purificação para estar preparada para
tal evento, o “velho preto alketo” diz respeito ao “pai de santo” figura respeitada, no
topo da hierarquia do território terreiro.
O cantor e compositor Vinicius de Moraes se uniu com o instrumentista Baden
Powell em 1966 e gravaram um disco que entrou pra história da música e nos interessa
pelo fato de ter marcado a inserção da cultura africana no mercado fonográfico e, por
conseguinte, no espaço profano. Com elementos de exaltação em uma genuína
africanidade brasileira, o disco intitulado de “Afro-Sambas”, reúne onze músicas que
em suas letras e seus ritmos fazem alusão ao candomblé e umbanda. Na música “Canto
de Ossanha” contam a história do Orixá que “vivia numa guerra não declarada contra
Orunmilá, procurando sempre enganá-lo, preparando armadilhas, para transtorno do
velho.” (PRANDI, 2001, p. 161)
O homem que diz "dou" não dá/ Porque quem dá mesmo não diz/ O
homem que diz "vou" não vai/ Porque quando foi já não quis/ O
homem que diz "sou" não é/ Porque quem é mesmo é "não sou"/ O
homem que diz "estou" não está/ Porque ninguém está quando quer/
Coitado do homem que cai/ No canto de Ossanha, traidor/ Coitado do
homem que vai/ Atrás de mandinga de amor/ Vai, vai, vai, vai, não
vou/ Vai, vai, vai, vai, não vou/ Que eu não sou ninguém de ir/ Em
conversa de esquecer/ A tristeza de um amor que passou/ Não, eu só
vou se for pra ver/ Uma estrela aparecer/ Na manhã de um novo amor/
Amigo sinhô Saravá/ Xangô me mandou lhe dizer/ Se é canto de
Ossanha, não vá/ Que muito vai se arrepender/ Pergunte pro seu
Orixá/ Amor só é bom se doer (...)

Na música “Canto para Xangô” do mesmo disco, percebemos a importância


dada a Xangô, o filho direto de Oxalá, orixá da Justiça, que carrega consigo um
machado de duas lâminas, possuidor do Axé:
Eu vim de bem longe/ Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim/
Sou filho de Rei/ Muito lutei pra ser o que eu sou/ Eu sou negro de
cor/ Mas tudo é só amor em mim/ Tudo é só amor para mim/ Xangô
Agodô/ Hoje é tempo de amor/ Hoje é tempo de dor, em mim Xangô
Agodô/ Salve, Xangô, meu Rei Senhor Salve, meu orixá/ Tem sete
cores sua cor/ Sete dias para a gente amar (...)

37
A cor deste orixá é o branco, por isso a designação “tem sete cores sua cor”, seu
dia da semana é sexta-feira, em que todos os devotos devem se privar de bebidas
alcoólicas, sexo, e por obrigação devem usar indumentária branca em respeito ao “Rei”.
No contexto da exaltação da cultura afro-brasileira está a cantora Clara Nunes,
que, durante sua vida foi devota fervorosa da umbanda e a maioria de seus trabalhos
continham alusão à religiosidade iorubana:
Clara Nunes surgiu como uma espécie de “reedição” da baiana de
Carmen Miranda, imprimindo-lhe um conteúdo religioso mais
evidente. Apresentava-se, freqüentemente, descalça e vestida de
“filha-de-santo” estilizada, usando saia rodada de renda branca,
colares e figas, pulseiras e, na cabeça, diademas de conchas, palhas e
flores. (AMARAL; SILVA, 2006, p. 210)

Na música “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro,


gravada pela cantora no disco “Guerreira” em 1978, os autores fazem um apanhado da
vida da artista, mostrando sua religiosidade, dizendo ser: “Filha de Angola, de Ketu e
Nagô”, afirmando ainda na canção: “Não sou de brincadeira/ Canto pelos sete cantos/
Não temo quebrantos/ Porque eu sou guerreira/ Dentro do samba eu nasci,/ Me criei, me
converti/ E ninguém vai tombar a minha bandeira (...) Eu sambo pela noite inteira/ Até
amanhã de manhã/ Sou a mineira guerreira/ Filha de Ogum com Iansã.” Encontramos
neste trecho a afirmação de sua africanidade e, sobretudo, um orgulho de ser partícipe
desta cultura, expondo o nome de seus “pais” no candomblé. As religiões africanas são
cerceadas por superstições que auxiliam o bom andamento da vida de seus adeptos, a
música “Banho de manjericão”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, gravada no
disco “Esperança” em 1979 “mostra uma síntese das mais conhecidas maneiras de se
livrar do mal e obter proteção” (AMARAL. SILVA, 2006, p. 210) Como observamos:
Eu vou me banhar / De manjericão / Vou sacudir a poeira do corpo
batendo com a mão / E vou voltar lá pro meu congado / Pra pedir pro
santo pra rezar quebranto e cortar mau-olhado / Eu vou bater na
madeira três vezes com o dedo cruzado / Vou pendurar uma figa no
aço do meu cordão / Em casa um galho de arruda é que corta / Um
copo d’água no canto da porta / A vela acesa e uma pimenteira no
portão / E com vovó Maria que tem simpatia pra corpo fechado / É
com Pai Benedito que benze os aflitos com o toque de mão / E Pai
Antônio cura desengano(...)

A cantora e compositora Rita Ribeiro gravou em 2006 o cd “Tecnomacumba”


que consiste na união entre músicas com influência do candomblé e da umbanda com
elementos da música técno - eletrônica. Re-significando toda a sonoridade das músicas,
proporcionando um toque contemporâneo à religiosidade afro-brasileira. Na música que

38
abre o cd: “Saudação / Abertura”, que consta como domínio público com adaptação da
artista, reúne as várias saudações aos orixás e as entidades umbandísticas, como forma
de pedir permissão para desenvolver nas faixas seguintes músicas que remetem ao tema
do sagrado:
Balorê êxu é Mojubá/ Ogunhé Patacuri/ Ogum é Orixá !/ Kao Cabicile
Xangô/ Kao meu pai !/ Okê Arô/ Oxossi é Caçador !/ Ewá Sossanha/
Ewá Sá/ Arroboboia Oxumaré/ Roboboia!/ Atoto Ajuberô/ Atoto
Obaluaie!/ É tempo, é tempo sará tempo/ Eparrei/ Ora ieie o mamãe
Oxum/ Ora ieie o/ Ô docyaba Yemanja/ Ôdoia mamãe/ Saluma Nanã
Saluba!/ Erê mim Ibeji/ Jurema / Adorei as almas/ As almas adorei/
Shiuépa babá Oxalá Shiuépa !

O primeiro orixá a ser invocado em todas as manifestações do candomblé é Êxu,


pois ele é responsável pela comunicação entre os orixás e os mortais e, o caráter dele é
de fazer traquinagens e pregar peças, daí a necessidade de agradá-lo antes das
manifestações, por meio do padê26, para que ele zele pelo bom andamento das
cerimônias (VERGER, 1981).
As crianças exercem um papel muito importante nas manifestações religiosas do
candomblé e umbanda, são chamadas de erês, são tratadas com muito respeito, pois,
representam nossa pureza, que durante a vida vamos perdendo dando lugar a diferentes
comportamentos que temos que tomar nas diversas situações da vida, qualquer tipo de
repreensão violenta é condenada. Na mitologia iorubana encontramos os irmãos
Gêmeos Ibejis, que figuram toda a ingenuidade da infância, são brincalhões e levam a
vida com bastante alegria. No dia da Festa, em que os Ibejis e, por conseguinte os erês
são homenageados o território terreiro se transforma em um grande parque de diversões,
onde todos são convidados a reviver sua infância, como observamos na música de
Antônio Vieira interpretada por Rita Ribeiro no mesmo cd, com o titulo de “Cocada”,
que é uma das comidas preferidas dos gêmeos:
Ai meu Deus se eu pudesse/ Eu abria um buraco/ Metia os pés dentro
criava raiz/ Virava coqueiro trepava em mim mesmo/ Colhia meus
côcos meus frutos feliz/ Ralava eles todos com cravo e açúcar/ E
punha no tacho pra fazer cocada/ Depois convidava morenas e loiras
Mulatas e negras pra dá uma provada/ Depois satisfeito de tanta
dentada/ Na boca de todas eu me derretia/ Aí novamente eu abria um
buraco/ Metia os pés dentro com toda alegria/ Virava coqueiro trepava
em mim mesmo/ Colhia meus côcos fazia tachada/ Com cravo e
açúcar ficava roxinho/ Ficava doidinho pra ser mais cocada/ Côco,
côco, cocada, Côco, côco, cocada, / Côco, côco, cocada, Côco, côco,
cocada,/ Ai meu Deus se eu pudesse.../ Depois satisfeito de tanta
dentada.../Côco, côco, cocada, cocada pra sinhô, cocada pra sinhá.

26
Despacho com oferendas, pontos e danças para Êxu.

39
Depois de toda a exposição da cultura africana intervindo na cultura brasileira
por meio da música e de mostrar para os educandos o quanto a música é essencial nas
manifestações afro-brasileiras, entendendo que os instrumentos constituem a extensão
do corpo e da voz, formando assim o todo musical (SALES. In: BARBOSA, 2008,
p.184), passamos a trabalhar com instrumentos artesanais, como: caixinha de fósforos,
potes com arroz dentro para fazer chocalhos, fazendo a conexão com ritmos executados
com palmas, bater dos pés, auxiliando a compreensão rítmica, dentro da temática afro-
brasileira, sobre o trabalho com diferentes ritmos e instrumentos Gardner afirma: “Esses
‘ganchos’ potenciais poder ser utilizados para explorar o interesse e a confiança do
aluno em algum domínio de conhecimento, como meio de facilitar o crescimento em
outros domínios.” (1993, p.110)

8.2 - Inteligência espacial

“Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais” 27

Um marinheiro navegante possui a inteligência espacial altamente apurada;


possui um senso de localização altamente desenvolvido. Na antiguidade, os
marinheiros, sem o advento de toda tecnologia disponível nos dias atuais, tinham que se
localizar por meio dos elementos naturais como o sol e as estrelas, que norteavam seus
caminhos, sem a inteligência espacial desenvolvida, ficariam à deriva. Na atualidade as
noções espacias são cobradas até mesmo para poder utilizar as inovações tecnológicas.
Gardner define a inteligência espacial como a “(...) capacidade de formar um modelo
mental de um mundo espacial e de ser capaz de manobrar e operar utilizando esse
modelo.”(GARDNER, 1981, p.15) Observamos esta habilidade também em desenhistas,
pintores, motoristas, pessoas acostumadas em lidar com mapas e qualquer material
cartográfico que pressuponha algum tipo de localização.
Iniciamos a proposta, falando do pintor alemão Johan Moritz Rugendas, que
chegou ao Brasil em 1822 e observou os traços do cotidiano brasileiro, transpondo-os
para suas gravuras. Expomos a litogravura “Batuque” (vide figura 1), terminada em

27
Aldir Blanc e João Bosco – “Mestre sala dos mares”. Gravado por Elis Regina no disco “Elis” em
1974.

40
1835, que se encontra em coleção particular. Por meio do neoclassicismo28 o artista
evidencia escravos se divertindo em meio a palmas e gestos corporais que sugerem
música e dança, endossando a teoria de que ambas sempre estiveram imbricadas na
cultura negra.
Com o intento de desenvolver a inteligência espacial, exibimos duas fotos (2 e 3)
que mostram adeptos, com pintura corporal empregada no ritual de iniciação do
candomblé, conhecido como “virar o santo”, onde os iniciados ficam de 7 a 21 dias
enclausurados no terreiro, durante este tempo o iniciado bebe preparos que o
entorpecem, tornando-o mais passivo aos ensinamentos religiosos29. No último dia,
integrantes da religião já iniciados, realizam a pintura no corpo do indivíduo que está
sendo iniciado, preparando-o para a cerimônia, que, além de iniciá-lo no candomblé, o
conceberá um novo nome, pelo qual deve ser chamado no espaço sagrado e, assim
procedendo, torna-se membro do candomblé.

Figura 1: “Batuque” – Litogravura de Johan Moritz Rugendas.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de artes visuais -


http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm

28
Movimento que reviveu os princípios estéticos da antigüidade clássica, apontando uma reação contra a
aristocracia.
29
Aldir Blanc e João Bosco – “Mestre sala dos mares”. Gravado por Elis Regina no disco “Elis” em
1974.

41
Fotos 2 e 3:

Fonte: VERGER, 1981.

Para desenvolver a noção espacial do tráfico negreiro no mundo, analisamos


dois mapas. No mapa 1, observamos, que, até 1600 o montante de negros africanos
sequestrados para o trabalho escravo era pequeno, distribuídos entre Brasil, América
central e Europa – velho mundo30. No século XVII o número de escravos capiturados
chegou a mais de 3 milhões, sendo que o Brasil intensificou a “compra” de escravos e, a
Europa diminuiu o fluxo de escravos em seus países, o que mostra a decadência direta
deste sistema, nesta região. De 1701 a 1810 o número de negros capiturados chegou a
mais de 6 milhões, dobrando em relação ao século passado, contando com a adesão de
outros países ao regime escravocrata, como Estados Unidos, Cuba e outras nações da
América Central. Neste período, o Brasil aumentou o montante de escravos, que,
figuraram a principal mão de obra, sendo os negros, responsáveis por toda a riqueza
edificada no país. Toda a América sucumbiu à escravidão e, a Europa, por sua vez,
praticamente cessou o tráfico negreiro em seu território, porém, continuou incentivando-
o em suas colônias. A partir de 1811 o fluxo de escravos sequestrados, volta a diminuir,
entretanto, se manteve principalmente no Brasil e em Cuba e, em menor intensidade no
caribe francês e Estados Unidos, pois, como vimos, a Inglaterra aboliu a escravidão em
1834, o que causou um grande impacto sobre os países escravocratas, sendo que, a idéia

30
Livre tradução de: “Old world”.

42
capitalista se espalhou e a escravidão figurou um dos maiores impasses para a sua
difusão, em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, o tráfico de escravos foi proibido no
Brasil, mesmo assim, ainda havia a captura e transporte de escravos de forma ilícita.
Não podemos precisar exatamente qual o número de negros africanos que
entraram no país durante a escravidão, pois, o Brasil tentou a todo custo “apagar” o
rastro desumano da escravidão, com o intuito de expurgar as atrocidades cometidas,
como foi o caso da:
[...] Circular Nº 29, de 13 de maio de1891, assinada pelo ministro das
finanças, Rui Barbosa, a qual ordenou a destruição pelo fogo de todos
os documentos históricos e arquivos relacionados com o comércio de
escravos e a escravidão em geral. (NASCIMENTO, 1978, p. 49)

Infelizmente, a ferida deixada foi bem maior e, o fogo não foi suficiente para nos
fazer esquecer. No mapa 1, observamos a destinação dos africanos no trajeto trans-
atlântico, no mapa 2 podemos observar quais as regiões africanas que os negros eram
sequestrados (para servirem de escravos em terras estrangeiras), sendo no total oito,
com seus respectivos portos de embarque. A região intitulada de “Bight of Benin”
(golfo de Benin) e ao sudoeste da região “Bight of Biafra” (golfo de Biafra) é de onde
vieram os negros de procedência iorubá, que, mais tarde receberam a denominação de
“Nagôs” no Brasil, originando as nações31 Ketu e Jejes do candomblé.
Como forma de exercitar o que o educando conseguiu absorver sobre o tema,
incentivamos uma atividade, abarcando elementos expostos, podendo ser uma gravura,
um mapa, quadrinhos, a fim de trabalhar na prática a inteligencia espacial. Neste
primeiro momento o educando deve deixar-se levar por sua criatividade, sendo a única
imposição: a adequação ao tema abordado.

31
Grupos religiosos do candomblé, que se distinguem pela região de procedência, possuindo alguns
aspectos variantes nas celebrações.

43
Mapa 1: Destino do tráfico de escravos no atlântico32

Fonte: site da Universidade Federal do Paraná - http://people.ufpr.br/~lgeraldo/mapas1.html

32
Livre tradução de: “Destination of the atlantic slave trade”.

44
Mapa 2: O Tráfico Trans-Atlântico de Escravos33

Fonte: site da Universidade Federal do Paraná - http://people.ufpr.br/~lgeraldo/mapas1.html

33
Livre tradução de: “The Trans-Atlantic Slave Trade”.

45
8.3 – Inteligência corporal-cinestésica

34
“O vento bateu na saia de Iansã, o vento bateu pra Iansã roda”

Nossa sociedade está repleta de manifestações em que o corpo é um instrumento


primordial. O domínio do corpo como um todo, é trabalhado aqui, como uma forma de
inteligência. O candomblé mantém em sua estrura ritualística, forte presença da dança,
que por sua vez, amplia e desenvolve a noção corporal-cinestésica. Se pensarmos uma
criança que se desenvolve em meio à religião africana, veremos anos mais tarde, um
adulto com “gingado” especial, pois, durante todo o seu processo de desenvolvimento,
pôde, de maneira natural, estar em contato direto com dança e ritmos que lhe
ofereceram aporte necessário para se desenvolver como tal. Como um instrumento
pedagógico: “a dança amplia as noções espaciais da criança e do adolescente, situando-
os no tempo e no espaço e desenvolvendo sua expressão corporal.”(STRAZZACAPPA,
2006, p.17) A pessoa que dança, não está somente dançando, pois, tem que estar atenta
ao espaço, ao ritmo, a milimetria de seus gestos, para assim entrar no processo
harmônico que a dança exige. Este complexo de informações interligadas é a
capacidade cobrada de um dançarino. Gardner defende que: “A inteligência corporal-
cinestésica é a capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos utilizando o
corpo inteiro, ou partes do corpo.” (1995, p.15)

Desse modo, trabalharemos danças africanas como o “Batuque-umbigada” e o


“Samba” que surgiram através do “‘encontrão’, dado geralmente com o umbigo, o qual
serviria para caracterizar esse estilo de dança e batuque, e mais tarde dar-lhe um nome
genérico: samba35. O batuque de umbigada consiste em uma dança em dupla, que possui
três passos laterais arrastados e rítmicos, depois, levanta-se os braços batendo palmas
acima da cabeça, daí ocorre uma quebra, que é o elemento principal da coreografia - a
"umbigada", ou seja, quando o ventre da mulher bate à altura do ventre do homem. Esta
dança foi trazida da África e difundida principalmente no estado de São Paulo,
encontrando resistência cultural nos dias de hoje na cidade de Piracicaba. Como
referência musical destacamos o grupo: “Batuque de Tietê, Capivari e Piracicaba – SP”
que gravou a música “Moda” no cd “Batuques do Sudeste” em 2002. Para melhor

34
Romildo e Toninho. “A Deusa dos Orixás” – Gravado no cd “Técnomacumba” de Rita Ribeiro, no ano
de 2006.
35
SODRÉ, 1998.

46
ilustrar esta cultura oriunda do popular, exibimos o vídeo do programa “Danças
Brasileiras”, episódio de “Batuque de Umbigada”, disponível no site de
compartilhamentos “youtube”.

Outro ritmo genuinamente brasileiro, porém, com descendência direta africana é


o “samba”, altamente difundido nas camadas populares, o primeiro samba gravado no
Brasil foi “Pelo Telefone”, composto por Mauro de Almeida e Donga no ano de 1917,
cantado por Bahiano. A partir deste primeiro samba gravado o ritmo se difundiu, mas,
abarcava ainda as camadas mais pobres, constituídas por maioria afro-descendente.
Logo a “elite intelectual e musical” do Brasil se apropriou do ritmo, proporcionando sua
difusão para outras camadas sociais, entretanto, as letras ainda continham uma temática
popular. Os cantores oriundos das classes populares eram: Cartola, Adoniran Barbosa,
Clementina de Jesus, Elza Soares... Os cantores da classe média que se apropriaram do
ritmo: Chico Buarque, Noel Rosa, Vinícius de Moraes, João Gilberto, entre outros.
Entretanto, estes autores nunca se esqueceram das raízes negras que o samba continha.
Mas, com o passar dos anos a significação do samba mudou, o que ocorreu com o
samba no Rio de Janeiro, no que se refere ao carnaval, que sublimado da condição de
manifestação popular, foi apropriado pela “Elite” que o espetacularizou em prol do
capital, do lucro, fazendo com que a sexualização da mulher tomasse proporções
incabíveis, transformando a mulata “boazuda” em símbolo nacional. Nelson Sargento,
negro, nascido na comunidade da Mangueira – Rio de Janeiro compôs a música
“Samba, agoniza mas não morre” que diz:
Samba, agoniza mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do
suspiro derradeiro/ Samba, negro forte destemido/ Foi duramente
perseguido/ Nas esquinas, no botequim, no terreiro/ Samba, inocente
pé no chão/ A fidalguia do salão/ Te abraçou, te envolveu/ Mudaram
toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ E você nem
percebeu.

O Samba é um ritmo que possibilita a dança separada, não havendo a


necessidade direta de se ter um par, são inúmeras as músicas possíveis de serem
utilizadas para a prática, proponho aqui, o emprego da música “O samba é meu dom”
composta por Wilson Das Neves e Paulo Cesar Pinheiro, que faz um apanhado das
personalidades que edificaram o samba no Brasil e a música “Quando o céu clarear”
composta por Roque Ferreira, que evidência o amor de Xangô e Oxum. Ambas as
músicas foram gravadas pala cantora Fabiana Cozza respectivamente em 2004 e 2006,
nos CDs que levam o mesmo nome das canções.

47
Por fim, a dança e o histórico dos ritmos demonstram o quanto esta inteligência
deve ser levada em consideração como as demais, figurando o quanto a África
influenciou, influência e faz parte da nossa cultura, nos enobrecendo com seus aspectos
artístico/culturais.

8.4 - Inteligência intrapessoal

“Tataravô, bisavô, avô Pai Xangô, Aganju,


Viva Egum, Babá Alapalá!” 36

A presente inteligência consiste na habilidade de nos conhecermos, lidar melhor


com nossos anceios, sentimentos, permitindo a nossa compreensão interna, para assim
trabalhar nossas atitudes e intentos37. Para melhor desenvolver esta inteligência,
propomos aos educandos que montem sua árvore genealógica, investiguem em meio a
seus pais e parentes, quais as etnias que seus antepassados pertenceram, a fim de
conhecer suas raízes, entendendo que somos pessoas oriundas de uma determinada
cultura que transcende o agora. Mesmo apesar de estarmos suscetíveis a globalização,
que nos retira elementos tradicionais, beneficiando o “moderno” e útil, somos frutos de
um passado que não deve ser sublimado. A partir deste resgate, mostramos o quão
importante é a herança que trazemos de nossos antepassados, que, ao contrário do que
muitos pensam, não é somente financeira, pois: “A herança pode ser explicada como o
que é inerente a nós mesmos, procedente de uma história de grupo sociocultural
específica e de como podemos utilizá-la em nossas vidas” (DANIEL; BALLENGE-
MORRIS; STUR. In: BARBOSA, 2008, p.270) Após o processo de análise da árvore
genealógica, norteamos a exposição para captar descendências africanas nos educandos,
figurada por aqueles que possuem algum parentesco direto com negros, mestiços e
caboclos. Aos que não possuem nenhum parentesco em suas gerações passadas com os
negros, afirmamos a importância que este povo teve e tem na constituição da cultura
brasileira, que transcende os laços sanguíneos, como vimos no inicio deste trabalho. O
primeiro passo de conhecer suas raízes étnicas foi dado, o segundo passo é a
exemplificação de como o candomblé trata esta temática.
Os antepassados mortos são denominados de “Egum”, seria o que entendemos por
espíritos. São muito temidos e respeitados, tanto pelos mortais quanto pelos deuses,

36
Gilberto Gil. “Babá Alapalá”. Gravada por Rita Ribeiro no cd “Tecnomacumba” no ano de 2006.
37
GARDNER, 1995.

48
sendo Iansã a única orixá capaz de enfrentar os Eguns. No candomblé, a cada sete anos
que o indivíduo foi iniciado ele recebe um título que lhe garante respeito em meio aos
partícipes, o que demonstra o respeito não somente aos Eguns, responsáveis pela
manutenção e difusão do candomblé e da cultura africana, mas também pelos entes
idosos que abarcaram conhecimento com o tempo, como o exemplo de Aganju, que é a
forma idosa do orixá Xangô, representando justiça e conhecimento supremo.

A inteligência intrapessoal está sendo trabalhada de forma indireta durante toda a


exposição do tema, a partir do momento em que decidimos trabalhar arte na educação,
proporcionamos assim elementos diretos para o auto-conhecimento, para a compreensão
de si dentro da sociedade e da cultura brasileira, pois: “Arte não é apenas um objeto
estético, arte serve para ensinar coisas, e a mais obvia é que serve para ensinar a ver o
mundo com mais cuidado e, também, a ver a nós mesmos” (BARBOSA, 2008, p.149)

8.5 - Inteligência interpessoal

“Dia dois de fevereiro dia de festa no mar


Eu quero ser o primeiro a saudar Iemanjá” 38

Antes de prosseguir para a inteligencia interpessoal, ressaltamos a importância


de se conhecer, ou seja, desenvolver a inteligência intrapessoal pois: “reconhecendo
nossa própria identidade sóciocultural e nossos preconceitos, fica mais fácil entender as
multifacetadas identidades culturais dos outros” (DANIEL; BALLENGE-MORRIS;
STUR. In: BARBOSA, 2008, p.271) Assim, podemos dissipar qualquer pensamento
discriminatório, com o fim de reconhecer a diversidade que permeia nossa sociedade e,
por conseguinte, partindo do indivíduo, adquirir instrumentos necessários para obter o
domínio da interação consciente, eficaz e sobretudo respeitosa. A capacidade de
interação com pessoas, reconhecendo o que as motiva, como elas desenvolvem
determinadas funções e como interagir de foma hamônica com outros, caracteriza a
inteligência interpessoal, que, por sua vez, está baseada na percepção do outro, bem
como oscilações de ânimo, humor, intenções e temperamentos39.

38
Dorival Caymmi. “Dia dois de Fevereiro” – Gravado por Maria Bethânia no disco “Diamante
verdadeiro” no ano de 1999.
39
GARDNER, 1995.

49
O candomblé, de per si, é um meio de interação social, onde os adeptos, seja no
espaço sagrado ou no profano, interagem, se reconhecem, garantindo assim um meio
eficaz de sociabilidade. Dia dois de fevereiro é a data atribuída a Iemanjá, orixá
feminina, senhora das águas salgadas, onde fez sua morada. Todos os pescadores,
marinheiros e população caiçara, adeptos do candomblé, devem apreço a ela, pois,
protege e ampara os que direta ou indiretamente depende das águas do mar.
Observamos nas fotos 3 e 4, o dia dois de fevereiro em uma praia da Bahia, onde o
espaço sagrado transpõe o muro do território terreiro para se apossar das praias, que
recebem inúmeros adeptos, se deslocado até lá para agradecer, fazer pedidos e entregar
presentes como: perfume, espelho, flor, pente para o adorno da conhecida “Rainha do
mar”, as praias são tomadas pelo fervor religioso, figurando uma “festa” idêntica a que
ocorre no espaço sagrado. Músicas são entoadas, danças, as vestimentas que dominam a
indumentária das pessoas é a de cor branca e/ou azul clara. Ocorrendo uma autêntica
celebração da cultura afro-brasileira. As saudações feitas a Iemanjá, no dialeto iorubano
são: alodê, agô, odofiaba, odoya.

Fotos 3 e 4:

Fonte: VERGER, 1981.

O número de adeptos que se dirigem às praias neste dia, nos mostra o quanto a
religiosidade africana está presente em nossa sociedade, não podendo simplesmente ser
posta de lado como simples folclore, a mercê da observação de estranhos que apontam a
manifestação como fetiche. O fator de sociabilidade que permeia esta celebração, se faz
importante na constituição cultural deste povo, levando em conta que a sociedade

50
moderna priva cada dia mais as pessoas de agrupamentos sociais, beneficiando a idéia
de isolamento e medo do outro.
Para melhor trabalhar essa modalidade de inteligência com os educandos,
propomos o desenvolvimento de dois jogos expostos por Augusto Boal (1998) no livro
“Jogos para atores e não-atores”. Partindo do pressuposto de que estamos condicionados
pela vida moderna a executar sempre as mesmas ações e os mesmos movimentos,
nossos sentidos são, alguns superdesenvolvidos e outros atrofiados. O autor apresenta
jogos que vêm auxiliar o desenvolvimento de outras áreas, tanto do nosso físico, quanto
de nossos sentidos. O primeiro jogo é o “Hipnotismo colombiano”, consiste na
separação de trios, um dos três por hora é o mestre, com as duas mãos na frente da face
dos outros ele começa a guiá-los, o objetivo é que o mestre faça os outros colegas se
contorcerem, chegando a movimentos não usais, bizarros, respeitando o limite da cada
um, após alguns minutos troca-se o mestre até que os três experimentem esta posição. O
segundo é o “jogo do bom dia”, em que cada um dos participantes tem que apertar a
mão de alguém dizendo - bom dia e só deve largar a mão de um quando apertar a mão
de outro, formando uma corrente do aperto de mão, trabalhando assim a interação.
Como última atividade, vamos expor e incitar uma encenação acerca do teatro-
fórum, que consiste na dramatização de problemas reais vividos na sociedade,
representado por personagens que são: os oprimidos, os opressores e um coringa. No
primeiro momento, no conflito entre oprimido e opressor, diante de todas as
argumentações, o oprimido leva a pior, o coringa, então, vem intervir na cena, buscando
saídas para o problema em questão40, que, no caso, será a desigualdade racial e as
discriminações para com a religião e a população afro-brasileira. A presente atividade
será permeada pela criatividade dos educandos e por cenas que eles mesmos observaram
ao longo de suas vidas, facilitando assim o processo de ensino-aprendizagem por meio
de elementos do cotidiano.
A inteligência interpessoal será também trabalhada de forma prática, no
momento que separaremos grupos de acordo com cada inteligência, momento em que os
educandos poderão escolher de qual grupo participar, levando em consideração sua
identificação com a inteligência desenvolvida. Sendo assim, nesta prática os educando
terão que lidar com idéias e propostas oriundas de diversos pontos de vista, exercitando
assim sua capacidade de interação com os outros, praticando tolerância e respeito.

40
BOAL, 1998.

51
8.6 - Inteligência linguística

“Nós canto-falamos como quem inveja negros


Que sofrem horrores no Gueto do Harlem” 41

A inteligência lingüística, junto com a lógico-matemática, foi e é priorizada em


nosso sistema de ensino, pois, a maioria dos educadores, pauta seu método de ensino em
leituras, lições na lousa. O educando que possui alguma dificuldade acerca desta
inteligência, muitas vezes, fica á margem do processo de aprendizagem, o que causa
uma baixa auto-estima, levando-o a se subjugar em meio a seus colegas. Esta
capacidade aqui será exposta como um meio e não como um fim, é importante deixar
claro que ela compõe o todo, levando em consideração também outras inteligências,
sem priorizar nenhuma.
Tomando por base a língua portuguesa, falada no Brasil, vamos buscar a
influência que a língua africana exerceu, mostrando palavras, que, muitas vezes, nem
percebemos que têm origem africana, bem como: “samba, xingar, muamba, tanga,
sunga, jiló, maxixe, candomblé, umbanda, berimbau, maracutaia, forró, capanga,
banguela, mangar, cachaça, cachimbo, fubá, gogó, agogô, mocotó, cuíca.” (Castro,
2005, p. 9)
Prestamos nossa atenção, também, á influência desta cultura, materializada na
forma como pronunciamos as palavras, pois, ao omitir as consoantes finais, ou
transformá-las em vogais, inconscientemente estamos nos remetendo aos nossos
antepassados escravos, bem como nos exemplificam as palavras a seguir: falá, dizê,
Brasiu, terminá, dormi e benzê, todas coincidem com a estrutura silábica das palavras
em banto e em iorubá, que nunca terminam em consoante, observamos também que nos
idiomas africanos não existem encontros consonantais, o que influenciou palavras
utilizadas no linguajar popular como fulô para flor, saravá para salvar42. Chamamos
atenção a uma palavra que possui enorme significado dentro da religião do candomblé,
que á a palavra “axé”, utilizada pelos adeptos para desejar coisas boas, que tem como
sinônimo a palavra “amém”, usada na maioria das religiões cristãs. Axé transpôs as
barreiras do sagrado para adquirir novo significado no meio profano, que teve sua larga
difusão como designação para um ritmo oriundo da Bahia, que, de per si, já traz muita
energia, por ser alegre e animado. Infelizmente a sexualização exacerbada da mulher ao

41
Caetano Veloso. “Língua”, gravado no cd “Língua” no ano de 2007.
42
Castro, 2005.

52
dançar e difundir este ritmo, trouxe a essa palavra um tom pejorativo, por isso se faz
necessária a distinção de seu significado no meio profano e no meio sagrado.
Os educandos serão incitados a montarem frases utilizando por base todas estas
palavras, entendendo como esta cultura se inseriu e influenciou a cultura brasileira, ou
seja, alterou o espaço geográfico.
Para melhor ilustrar esta inteligência, empregamos em nosso trabalho, trechos da
poesia “O Navio Negreiro” de Antônio Frederico de Castro Alves, nascido no estado da
Bahia em 1847. Em seus versos, encontramos a mais poética descrição deste trágico
acontecimento: a saga que os negros foram obrigados a suportar da África para o Brasil,
passando pelo oceano atlântico. No quarto movimento percebemos o quão trágica foi
esta viagem:
(...) Era um sonho dantesco... o tombadilho / Que das luzernas
avermelha o brilho/ Em sangue a se banhar/ Tinir de ferros... estalar
de açoite... / Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a
dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas/ Magras crianças, cujas bocas
pretas/ Rega o sangue das mães:/ Outras moças, mas nuas e
espantadas,/ No turbilhão de espectros arrastadas,/ Em ânsia e mágoa
vãs! (...)

A dança, que usualmente se traduz em festa e alegria, ilustra nos versos


sofrimento e angústia, cadenciada pelos açoites. Tanto sofrimento que causa
sentimentos e reações diversas:
(...) Presa nos elos de uma só cadeia,/ A multidão faminta cambaleia,/
E chora e dança ali!/ Um de raiva delira, outro enlouquece,/ Outro,
que martírios embrutece,/ Cantando, geme e ri!

No quinto movimento o autor, não entendendo tanta injustiça e maldade, clama


atitude do mar, indaga quem são estas pessoas e o que elas fizeram para merecer tal
castigo, logo responde a pergunta dizendo de onde vieram essas pessoas:
(...) Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é
loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?!/ Ó mar, por
que não apagas/ Co'a esponja de tuas vagas/ De teu manto este
borrão?.../ Astros! noites! tempestades!/ Rolai das imensidades!/
Varrei os mares, tufão!(...)
Quem são estes desgraçados/ Que não encontram em vós/ Mais que o
rir calmo da turba/ Que excita a fúria do algoz?/ Quem são? (...)
São os filhos do deserto,/ Onde a terra esposa a luz./ Onde vive em
campo aberto/ A tribo dos homens nus.../ São os guerreiros ousados/
Que com os tigres mosqueados/ Combatem na solidão/ Ontem
simples, fortes, bravos/ Hoje míseros escravos,/ Sem luz, sem ar, sem
razão. . .

53
No sexto e último movimento o autor fala do Brasil, que afirmou durante tanto
tempo toda crueldade e destruiu a vida de tantas pessoas, preferindo que a guerra tivesse
destruído o país, para assim não seqüestrarem e atearem a desgraça sobre esta
população. Por fim, clama a Colombo, primeiro navegador a “abrir” os mares do oceano
atlântico, que volte atrás e feche as suas portas para assim acabar com tanta injustiça:
(...) Existe um povo que a bandeira empresta/ P'ra cobrir tanta infâmia
e cobardia!.../ E deixa-a transformar-se nessa festa/ Em manto impuro
de bacante fria!.../ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/
Que impudente na gávea tripudia?/ Silêncio. Musa... chora, e chora
tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e
balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra/ E as promessas divinas
da esperança.../ Tu que, da liberdade após a guerra,/ Foste hasteado
dos heróis na lança/ Antes te houvessem roto na batalha,/ Que servires
a um povo de mortalha!...
(...) Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis do
Novo Mundo!/ Andrada! arranca esse pendão dos ares!/ Colombo!
fecha a porta dos teus mares!

8.7 – Inteligência lógico matemática

“A carne mais barata do mercado é a carne negra


Que fez e faz história segurando esse país no braço” 43

Na inteligência lógico-matemática, procuramos desenvolver com o educando,


análises que tomem por base cálculos e números. Fizemos um apanhado de estatísticas
que auxiliam no entendimento do tema central de nosso trabalho, a fim de desmitificar a
idéia tão difundida de “democracia racial”. O gráfico 1, nos mostra a taxa de
mortalidade infantil, que consiste em equacionar o número de criança até um ano de
idade que morreram nos referidos anos, no caso do gráfico, o número de mortes com
proporção para 1000 nascidos vivos. Percebemos que tanto em 1995 quanto em 2005, a
taxa de mortalidade infantil de negros & pardos é maior em relação às crianças brancas,
estando mais suscetíveis a óbito, crianças de pais pretos & pardos. São vários os fatores
que levam as crianças a óbito, dentre os mais agravantes, está a desnutrição,
intimamente ligada ao fator econômico, em que, desprovidos de verbas financeiras, não
conseguem dar condições dignas de sobrevivência às crianças. Como podemos observar
na tabela 1, a porcentagem dos negros desempregados é maior do que a doa não-negros

43
Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette. “A Carne”. Gravado por Elza Soares no cd “Do cóccix
até o pescoço” no ano de 2002.

54
em todas as principais regiões metropolitanas do Brasil, espelhando a política
discriminatória que impera desde a época da escravidão.
Outro fator importante, passível de análise, é a taxa de alfabetização, que
consiste na porcentagem total da população brasileira de 15 ou maior de 15 anos de
idade que são alfabetizados, ou seja, pessoas com quatro anos de estudos completos. No
gráfico 2, observamos a taxa de alfabetização segundo cor ou raça, que mostra grande
disparidade entre brancos e pretos & pardos, evidenciando que a política brasileira
privilegia os brancos, sobrando ao resto da população altas taxas de desemprego,
fazendo com que a população negra tenha que se “virar”, executando trabalhos
informais, não priorizando os estudos e sim sua sobrevivência. O mapa 3 nos permite
observar a taxa de analfabetismo por estado brasileiro, permanecendo os negros &
pardos com porcentagens superiores em todos os estados, sendo a região sudeste com a

Gráfico 1 -

55
Tabela 1 - Taxas de desemprego total, por sexo e cor - Regiões metropolitanas do Brasil
- 2002

Negros Não-Negros
Regiões
Metropolitanas
Total Mulheres Homens Total Mulheres Homens

Belo Horizonte 19,9 22,4 17,9 16,1 19,9 12,8

Distrito
23,0 25,2 21,0 17,2 21,2 13,3
Federal

Porto Alegre 22,7 24,7 20,8 14,9 17,9 12,5

Recife 22,4 25,8 19,8 19,1 23,3 15,3

Salvador 29,0 32,0 26,2 19,9 21,9 17,9

São Paulo 23,9 27,4 21,0 16,7 20,1 14,0

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais.


PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego Elaboração: DIEESE
Obs.: (a) Dados com base na média do período de janeiro a junho de 2002
(b) Negros inclui pretos e pardos. Não-negros inclui brancos e amarelos.

menor taxa média:4,4% para brancos e 8,4% para negros & pardos e a região Nordeste
com a maior taxa: 16,6% para brancos e 22,5% para negros & pardos, portanto, não há
igualdade no sentido educacional, pessoas estão sendo privilegiadas em nosso país no
que tange ao acesso a alfabetização.
O gráfico 3, aponta a proporção de famílias abaixo da linha da pobreza, que leva
em conta o montante monetário para o suprimento de necessidades básicas, bem como:
custo de transporte, alimentação, moradia, vestuário, etc. O cálculo deste indicador é
realizado por meio da comparação entre o rendimento médio domiciliar per capita (por
pessoa) e o custo da cesta básica de consumo mais o custo dos bens acima citados. Se o
indivíduo não possui renda suficiente suprir estas necessidades, ele está abaixo da linha
da pobreza. Esse conjunto de dados (gráfico 3) aponta que, a presença de crianças e pré
adolescentes em uma família, como sabemos, gera gastos e, por conseguinte, aumenta a
probabilidade de níveis mais severos de privação material. Esta realidade é claramente
maior entre as famílias de pretos & pardos, sendo agravada ainda no caso das mulheres,
neste grupo de cor ou raça, que provém a família sem um marido.
No que tange ao mercado de trabalho, a maioria dos negros empregados ocupam
cargos subalternos, sendo que os cargos como executivo, gerência e supervisão são
ocupados por brancos, respectivamente 94,4%; 89%; 84,1%. O negro, além de estar em
maioria no montante dos desempregados, quando empregado serve de mão de obra
barata, para cargos precariamente remunerados, havendo uma predisposição histórica
para a preferência de contratação de indivíduos com a pele branca, fato que conta

56
também com o maior acesso às universidades por pessoas brancas, que, por
conseguinte, agregam maior valor a sua força de trabalho. No gráfico 4, percebemos
quão é díspar a renda salarial média entre a população branca e a preta & parda, sendo a
renda média da população preta & parda R$ 505,54, quando a média da renda do
branco, chega a R$ 977,22, uma diferença de R$ 471,68. Os dados se tornam mais
alarmantes quando analisamos a diferença entre o salário médio da mulher negra: R$
388,18, em relação ao do homem branco: R$ 1164,00, uma diferença de R$ 775,82. Na
tabela 2, observamos que nas famílias que têm o chefe de cor preta 54,8% concentram
sua renda em menos de um salário mínimo, já os pardos 58,1%, os brancos 32,7%.
Quando o assunto é sobre os chefes de família que recebem mais de um salário mínimo,
os brancos figuram 62,5%, os que são pretos 38,8% e os pardos 35,3%, quase o dobro
de brancos recebe mais que os pretos e pardos em nossa sociedade.

Gráfico 2 -

57
Mapa 3 -

Gráfico 3 -

58
Tabela 2 - Distribuição das famílias por classe de rendimento médio mensal
familiar per capita, segundo a cor do chefe (em %) Brasil - 1999

Famílias segundo a cor do chefe


Classes de Rendimento

Branca Preta Parda

Até 1/2 salário mínimo 12,7 26,2 30,4

Mais de 1/2 salário mínimo 20,0 28,6 27,7

Mais de 1 a 3 salários mínimos 37,3 31,1 27,7

Mais 3 a 5 salários mínimos 11,1 4,3 4,4

Mais de 5 salários mínimos 14,1 3,4 3,2

Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2000


Elaboração: DIEESE

Percebemos, ao longo de toda exposição dos dados numéricos, que, a


“democracia racial” no Brasil não passa de uma falácia a fim de abarcar mais
popularidade de quem está no poder e assim manter a sociedade preconceituosa e
discriminatória, que, por anos imperou e impera até hoje. Acreditamos que a larga
difusão dos dados citados, forneceria base necessária para o questionamento deste
modelo em nossa sociedade e, por conseguinte, uma maior mobilização destas pessoas
que estão sendo exploradas e usurpadas de seu direito dentro do estado democrático. O
intuito de levar para sala de aula este material é munir os educandos de uma base crítica,
para assim perceberem verdadeiramente qual a realidade do país em que vivem e,
sobretudo, não permitirem que continuem afirmando ideais discriminatórios em suas
comunidades e na sociedade como um todo.

59
Gráfico 4 -

Gráfico 5 -

60
Para demonstrar que algo está sendo feito em beneficio da população afro-
descendente, apresentamos a tabela 3, que contém dados do Iphan – Instituto do
patrimônio histórico e artístico nacional, que é responsável pela política de tombamento,
que consiste no ato jurídico que reconhece o valor cultural e (ou) artístico e (ou)
histórico de um determinado bem, que pode ser material ou imaterial, no caso do quadro
3, encontramos o tombamento de um bem material que é o Terreiro. No estado da Bahia
seis terreiros foram tombados, ou seja, foram reconhecidos ante a inteireza de sua
riqueza cultural. Observamos que a contribuição para esse acontecimento, se originou
por meio de várias fretes de preservação e proteção da cultura material e imaterial, bem
como: IPHAN, Ongs, Frentes parlamentares, etc. O primeiro patrimônio material
reconhecido que era de origem afro-brasileira, foi o Terreiro da Casa Branca do
Engenho Velho, ou Ilê Axé Nassô Oká (BA), fato que auxiliou a valorização das
tradições afro-brasileiras no Brasil como um todo, resultado de um processo de lutas
desempenhado por artistas, intelectuais e adeptos da religião, abrindo espaço para a
discussão da própria identidade de nossa nação. Tal medida de reconhecimento
representou certa reparação às perseguições e intolerâncias para com as religiões afro-
brasileiras. A partir de então várias outras manifestações foram tombadas, não somente
as de origem européias e luso-brasileiras.
Tabela 3-

61
IX – Proposta de avaliação -

Com o intuito de melhor articular nossa temática à proposta aqui abordada,


exibiremos o filme “Atabaque Nzinga”, dirigido por Otávio Bezerra no ano de 2007,
que é um documentário musical sobre a cultura afro-brasileira, cuja trilha sonora foi
concebida por Naná Vasconcelos. A protagonista (Taís Araújo), ao ouvir o chamado do
tambor, inicia uma saga em busca do autoconhecimento, viajando por diversos lugares,
ela conhece diferentes ritmos, grupos musicais e coreográficos, procurando suas raízes
com o intuito de se integrar com seus antepassados e sua cultura africana.
Após a exibição do filme, que abarca também vários aspectos das múltiplas
inteligências, será proposta a separação dos educandos por grupos de interesse, o ideal
seria a existência de sete grupos, sendo relacionado cada um a uma inteligência, mas
este fato varia de acordo com a empatia de cada educando para com a temática de cada
grupo. A partir de então, cada grupo fica responsável por produzir um material
relacionado com a inteligência escolhida e o tema abordado, como por exemplo, o
grupo da inteligência musical fica com a tarefa de produzir uma música, só com
elementos rítmicos ou com letra também; o grupo da inteligência espacial se encarrega
da criação de desenhos, pinturas, mapas; o grupo da inteligência intrapessoal, separa as
raízes históricas negras da nossa sociedade; o grupo da inteligência lógico-matemática
fica responsável de pesquisar mais dados sobre o tema e fazer novos cálculos, e assim
por diante. É importante, nesta etapa, deixar os educandos livres quanto às criações, só
intervindo para melhor nortear os trabalhos em relação à pertinência das exposições ante
o tema que foi desenvolvido. Estaremos de forma inconsciente, trabalhando a
inteligência interpessoal com todos os grupos, para tanto, devemos observar como se
dão as relações entre os integrantes do mesmo grupo e entre os grupos. Quanto ao grupo
específico da inteligência interpessoal, nortearemos o trabalho para a produção de uma
esquete (cena curta) com base no teatro-forum44.
Quanto à avaliação, ela não será feita em um único dia ou por meio de um único
material, pois: “Centrando-se no conhecimento que reside numa única mente num único
momento, a testagem formal pode distorcer, magnificar ou subestimar grosseiramente as
contribuições que um individuo pode fazer em um ambiente social mais amplo.”
(GARDNER, 1995, p.149) Portanto, devemos observar durante todo o processo do

44
BOAL, 1998.

62
ensino/aprendizagem as capacidades gerais e pessoais, procurando sempre despertar no
educando a criatividade e, por conseguinte, as forças nas áreas que não são usualmente
desenvolvidas. Para tanto, pautamo-nos na teoria da avaliação autêntica, que, prioriza
todo o processo, levando em conta tanto os produtos obtidos, como os procedimentos
adotados para atingir o conhecimento45, devemos também observar o quanto os
educandos participaram durante o desenvolvimento do tema, pois, o envolvimento é
umas das premissas para a apreensão do tema de forma profunda, que é a base para uma
educação satisfatória. Devemos acabar com a mentalidade de “aprender para a
avaliação”, demonstrando que o educando e o professor, a todo o momento estão sendo
avaliados, entendendo a onipresença do processo avaliatório como algo natural à sala de
aula e, que, se ocorresse de modo contrário, estaria o educando apenas decorando algo
que será facilmente esquecido no futuro46. Como base metodológica para a análise do
desenvolvimento do educando durante o processo ensino-aprendizagem, ressaltamos a
seguinte técnica, que pode variar de acordo com a realidade vivida, mas serve de apoio
para o sistema de avaliação autêntica: “relativa habilidade de desenvolver e de
interpretar um tema; nível de especialização técnica; relativa habilidade de atingir
sensibilidade expressiva pessoal pelo uso de várias técnicas e processos.”
(BOUGHTON. In: BARBOSA, 2008, p.381)
Assim, estaremos sendo justos, valorizando todas as formas do conhecimento e,
sobretudo valorizando o próprio educando, que se sentirá útil e intelectualmente
inserido no processo educacional.

X – Espetáculo de teatro como instrumento pedagógico –

“Somos constantemente pequenos atores


desse constante espetáculo que é a nossa vida” 47

O teatro se constitui em uma ferramenta plena de comunicação. Cabe ao


educador utilizá-lo de forma a auxiliar no processo de ensino/aprendizagem.
Começamos pelo jogo dramático, que consiste na personificação de uma personagem48,
trabalhado por meio do teatro-forum teorizado por Augusto Boal (1998), que vai ao

45
ZIMMERMAN. In: BARBOSA, 2008.
46
GARDNER, 1995.
47
MORANDI; STRAZZACAPPA, 2006.
48
COURTNEY,1980.

63
encontro da técnica intitulada “sociodrama”, que consiste na representação dos anseios
de um determinado grupo social, onde o indivíduo é representado por um arquétipo
social, exemplo: o negro não representa somente um, mas sim todos os negros, retirando
as situações dramáticas da realidade social de cada um49. Os jogos auxiliam em uma
maior compreensão do mundo, fazendo que o educando tome conta da situação
estudada, dominando as ações e agindo de maneira válida, percebendo na prática, por
meio de ações vivenciadas ou observadas. Levaremos depois, estes jogos para o palco,
para a apresentação, contribuindo também para a formação de público no meio escolar,
fazendo com que os educandos possam se familiarizar com apresentações
artístico/culturais. O ato dos educandos representarem “é, de fato, uma extensão do jogo
dramático. Jogo, representação e pensamento estão inter-relacionados: são mecanismos
pelos quais o indivíduo testa a realidade, se liberta de suas ansiedades e domina o seu
meio.” (COURTNEY,1980, p. 119) Percebemos então, que o teatro, de per si, já é um
instrumento social e deve, sem dúvida, ser utilizado para ensinar de maneira crítica, não
apenas priorizando traços europeus de nossa sociedade, mas sim, afirmando nossa
diversidade, bem como o papel da contribuição africana à nossa constituição cultural.
Por meio do teatro, vamos buscar a expressão acerca do tema desenvolvido, mostrar
injustiças que corriqueiramente acontecem a nossa volta e, muitas vezes, as
interiorizamos e reproduzimos até mesmo de forma inconsciente. É importante salientar
que a arte possui o poder de fornecer uma propriedade social ao sentimento, trazendo a
temática afro-brasileira à tona e incorporando aspectos mais íntimos e pessoais de nosso
ser50.
Unindo todo o material que os educandos desenvolveram na última atividade,
propomos a montagem de uma instalação artístico/pedagógica que permanecerá na
escola durante um tempo determinado, onde será apresentada para os demais estudantes
uma peça, encenada pelo grupo da inteligência interpessoal, por meio de uma esquete
acerca do teatro-forum, incitando o questionamento da temática com a platéia; o
material produzido pelo grupo da inteligência corporal-cinetésica será apresentado por
meio das danças coreográficas; o material da inteligência espacial será exposto como
cenário; as músicas separadas ou produzidas na inteligência musical como trilha sonora;
o material da inteligência linguística pode ser utilizado como texto norteador para a
encenação e exposto na instalação; o material da inteligência intrapessoal e lógico-

49
COURTNEY,1980.
50
VIGOTSKI, 2001.

64
matemática será exposto na forma de cartazes e folders para melhor esclarecer a todos a
temática abordada. O objetivo desta atividade é pedagógico, não havendo nenhum
anseio estético incluído neste, pois, somos todos amadores, e o fim seria a melhor
compreensão do tema por meio de todas as habilidades, sem priorizar esta ou aquela
inteligência. A instalação artístico/pedagógica, também serve como medida
incentivadora, pois, o educando verá seu trabalho valorizado no contexto geral,
ocasionando uma identificação direta com o tema e um aumento de sua auto-estima.

XI – Considerações finais

Este trabalho tem como propósito, evidenciar aspectos da cultura africana que
estão latentes em nossa realidade, porém, escondidos e, por conseguinte, rejeitados pela
produção cultural de massa. Por meio da arte/educação buscamos uma maior
compreensão por parte dos educandos acerca do tema proposto, pois, a cultura africana
está incrustada na sociedade brasileira, e muitas vezes nem nos damos conta. Uma
exposição prática/artística fomenta um maior envolvimento e uma identificação que está
para além dos muros do ambiente escolar, observando estes elementos em nosso próprio
cotidiano. Ao desenvolver as múltiplas inteligências estamos enriquecendo de arte o
trabalho e, por conseguinte, trabalhando todos os sentidos em prol do processo de
ensino/aprendizagem, enriquecendo a visão geográfica acerca das contribuições afro-
brasileiras à constituição de nossa cultura.
Esta proposta pedagógica busca uma maior aproximação entre estudos e
realidade, evidenciando que outros meios de ensino são possíveis e, se utilizados de
forma válida, só farão enriquecer a prática pedagógica. O tema abordado, sempre
ocupou lugar a margem dos debates sociais, reflexo da história brasileira. O que afirma
a importância de se pensar a contribuição afro-brasileira em nossa sociedade, pois, com
o objetivo de manter o Brasil como um país de plena “democracia racial”, debates
acerca da discriminação foram ferozmente desencorajados ao longo da história. Como
expõe o autor negro Abdias do Nascimento:

Devo observar de saída que este assunto de “democracia racial”


está dotado, para o oficialismo brasileiro, das características
intocáveis de verdadeiro tabu.[...] Ai daqueles que desafiam as
leis deste segredo! Pobre dos temerários que ousarem trazer o

65
tema a atenção ou mesmo a analise cientifica! Estarão chamando
a atenção para uma realidade social que deve permanecer
escondida, oculta. (NASCMENTO, 1978, p. 45)

O trabalho propõe despertar no educando um maior entendimento sobre a cultura


como um todo e o negro fazendo parte dela, encontrando elementos da cultura negra,
por meio do candomblé na sociedade, que eles desconheciam, reconhecendo o papel da
geografia cultural para entender a riqueza e a importância desse povo na constituição
cultural brasileira. Por meio de instrumentos artísticos, costurar a contribuição afro-
brasileira em nossa cultura, com as múltiplas inteligências.

Após o desenvolvimento de todas as inteligências, serão separados grupos de


interesse, os educandos poderão tomar contato com a cultura afro-brasileira, e
reproduzi-la da forma que melhor se enquadrará em seus entendimentos sobre a
temática, produzindo arte e, por conseguinte, afirmando a cultura brasileira.

Com um entendimento de mundo mais humano, solidário, menos


discriminatório, terminamos o trabalho, sempre ressaltando aos educandos e também
aos educadores, que, a mensagem do conhecimento deve sempre ser difundida ao
máximo, para que a idéia não se perca e que a cultura popular dentro da diversidade
sobreviva. O caminho para a valorização é possível, porém é preciso esforço mútuo
entre escola e docentes, já que o tema não é valorizado pela cultura hegemônica
brasileira.

66
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