O desconforto de acompanhar a trajetória de seres descontrolados, que agem no rigor físico
de portadores de distúrbios motores e psíquicos. A fala é telegráfica, adultos se diferem por ações premeditas que fere as vidas das crianças. A angustia da fome é revertida ao público pela experiência da contemplação da deformação. Parecem atores tomados, o que seria uma alienação condenável para um grupo que presa o distanciamento. Pode-se ler na chave do estranhamento a proposta corporal totalitária, porque inicialmente todos se igualam, apresentam a mesma proposta de fisicalidade não se desenvolve e é executado pelos atores como uma imposição. Porém existem quebras e liberdades nessa proposta, pela construção da linguagem infantil fonética, morfológica e sintática imaturas e cômicas permite entrever o ator na seleção desse idiomatismo através da empiria para gerar um idiotismo estético. Outro fator que não passa incólume é o fluxo dramático desse estado de criação, desde o momento em que os atores recebem a roupa da encenação o jogo é ininterrupto, matéria rara no grupo, mas que deveria ser extraído mais consequências, mesmo com as quebras entre sequências como o tempo de transições de cena e a irrupção de imagens como a boneca no foco de luz, o fluxo da estilização permanece. A consequência disso é a tomada de aparência de verdade unilateral, só existe aquela dimensão. Isso ao invés de ser lido como alienação do fluxo dramático pode ser um recurso crítico da imponderabilidade da linguagem cênica, seu recurso de alteridade estética incondicional, seu ponto de vista verticalizado, em contraposição aos níveis de consciência do espectador que complementam aquilo que julgar necessário iluminar e desconfiar do excesso de crença da cena. A fome e a miséria são deformadores plásticos como vemos nas obras de Portinari e deformadores morais como nas obras de Brecht, animalizam os homens, primitivizam as relações e violentam os mais fracos. Com o suposto de que o controle da propriedade agrícola, da produção e distribuição de alimentos segue a perversidade do lucro, a fome é um instrumento político por excelência das oligarquias do terceiro mundo. A fábula conhecida do mundo ocidental é um alerta moral para as crianças não confiarem no aparente idílio oferecido pelo estranho e que os laços de consanguinidade dos pais deve falar mais alto do que o desespero. Na versão que se representa não aponta salvaguarda moral, apesar de se constituir como moralismo o fatalismo da tragédia. A forma nervosa com que se desenrola a fábula é o amargo que o doce vai conter. A perversão da fábula toma rumos próprios com a captura e a servidão sexual das crianças estupradas por figuras algozes. A bruxa é identificada com o símbolo da cadeira de rodas, tradicionalmente ocupada pelos déspotas capitalistas e maneiristas da Cia Antropofágica. Um séquito de sequazes acompanham a bruxa e intensificam o quadro de terror com as imagens de ursos de pelúcia enforcados, esse recurso reitera a imagem da infância condenada e permuta os bonecos de biscoito da fábula que são as crianças já abusadas. O uso da música também é um lugar diferente daquele das canções-narrativas do teatro épico, ela ajuda a entalhar o sentimento de perda, abandono e angústia gerado pela fome. Porém há de se atentar à contradição da escolha de Schoemberg para naturalizar um estado emocional de perturbação e perda de referência. Se a música dodecafônica foi um sistema formal e racional de criação que resultou em obras desestabilizantes do sistema tonal, noto que a construção corporal não encontram correspondência na eleição estética de Schoemberg e não avançam sobre novos sentidos, porque os gestos tensionados não são estruturados com rigor, são aleatórios e emocionalmente conduzidos, desperdiçando momentos de dialética volicional entre o sentimento da cena e a inteligência social por trás dela. Cito a cena do pós estrupo de João, a intuição do sentimento de ultraje e desencanto com o mundo não transformam em nova qualidade os movimentos de João, apenas potencializam sua violência esdruxulamente catapultando para a cena final, expondo uma pressa na resolução, um não ter saída e controle na escolha das variações possíveis dentro da gestualidade escolhida. Um desperdício da expor a técnica dramatúrgica do drama em explorar o ápice da transformação revelando as escolhas ideológicas da raiva, da explosão e do apaixonado movimento inconsciente. No momento radical da virada pode ser uma radicaleza (radical + beleza) a morte da exploradora bruxa é uma cena rápida que elimina um personagem dos mais paradoxais e complexos da literatura infantil com uma facilidade extrema. Compare-se o esforço de encenação para o aparecimento da personagem, o quanto de simbolismo reforçado pela coalisão do mal e a participação criminosa da figura de um velho do saco estrupador, uma verdadeira rede, um verdadeiro inimigo tentacular. Comparece com a versão da fábula europeia onde há pelo menos um plano racional que marca a superação dos infans João e Maria perante a perversidade irracional e glutona da bruxa. Para finalizar quero arriscar uma visão geral sobre a peça, pensando que ela surgiu entre 2002 e 2003 a tragédia nessa peça é a dose de pessimismo crítico da esquerda em relação à eleição de Lula. A onda de euforia social e crescimento econômico reduziu significamente as desigualdades e iniquidades entre a historia passada e a história futura, mas o capitalismo globalizado fez da promessa de extinção da miséria entre nós um conto de fadas. A postura que saio da peça é que não posso relaxar física e psiquicamente enquanto um ser humano passe fome nesse país, é um problema que me envolve todas as células neurais.