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42º Encontro Anual da ANPOCS

SPG 18 – Família, migração e trabalho

Casamentos entre primos legítimos: memória, sangue e herança em um vilarejo rural do


litoral cearense

Lorena Leite Aragão 1

2018

1
Autora: Lorena Leite Aragão. Mestra em Antropologia Social – Unicamp, Doutoranda do curso de
Ciências Sociais – Unicamp, pesquisadora do Centro de Estudos Rurais (CERES) desta mesma
universidade. Pesquisadora do CNPq, modalidade doutoranda.
1
1. Apresentação

O presente artigo tem por objetivo ilustrar as formas nas quais as relações
familiares são entendidas e performadas no vilarejo rural do Venâncio 2, localizado ao
extremo oeste do litoral cearense. Propõe, ainda, demonstrar as maneiras como atuam, e
que, em moldes similares ao de um idioma, tais relações dizem respeito a maneiras muito
particulares do uso e transferência dos bens herdados das famílias: as terras onde habitam
e os lotes de carnaubais. Para além de referirem-se à origem e continuação do núcleo
familiar, os enlaces matrimoniais performados nesta localidade fazem uso da memória
coletiva sobre os antepassados e da identificação das pessoas como herdeiros e parentes
de sangue, ou ainda, primos legítimos, como um dos mais claros modelos de organização,
classificação e desclassificação de pessoas.
A área focada neste artigo inclui um vilarejo de aproximadamente 300
pessoas, alocados ao longo da estrada que liga a sede do município, Barroquinha (anexo
1), à principal praia da região, a praia de Bitupitá, sendo um vilarejo de práticas
econômicas voltadas para agricultura, muito embora distancie apenas 5km da costa
litorânea. Há um fluxo constante de pessoas dos vilarejos vizinhos da localidade,
mantidos por relações de amizade ou familiares que inclui a troca de favores, relações de
apadrinhamento, circulação de alimentos, ajudas, conversas e fofocas.
Os dados e os resultados de pesquisa aqui apresentados são frutos de estudos
que venho realizando na localidade desde a graduação 3 e que, recentemente, tornou-se
minha dissertação de mestrado (ARAGÃO,2018) 4 . Nestas pesquisas, as construções
locais de família – quem são, a quem se referem, em qual contexto essa ideia é acionada
– me direcionaram a tomá-la como um ponto de partida para acessar outros universos de
significados, o que, de certo, me fez chegar aos caminhos e às conclusões que aqui
apresento.

2
O vilarejo do Venâncio compreende à soma do agregado populoso denominado Venâncio, onde existem
em torno de 50 casas, unas avizinhadas das outras, mais o sítio Capiaçú, local de morada dos mais antigos
e que hoje é ocupado por uma família de grande prestígio da localidade, mais os lotes de carnaubais.
3
“Nas terras de parente “sangue bom”: herdeiros, não herdeiros e estado no processo de transformações
socioambientais do litoral cearense.” Monografia defendida no departamento de Ciências Sociais, da UFC,
sob orientação da Profa. Dra. Lea Carvalho Rodrigues, em 2014.
4
“O que se dá, o que se herda, o que se gera: família, política e terra entre os habitantes do vilarejo do
Venâncio, Barroquinha - Ceará.” Dissertação de mestrado defendida no PPGAS – Unicamp, sob orientação
da Prof. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera, no ano de 2018.
2
Neste vilarejo é prática comum, entre seus habitantes, alianças matrimoniais
entre pessoas da mesma família, ilustrando o que, de modos gerais, é entendido na
literatura antropológica por “casamentos endogâmicos de parentela” (Bourdieu,1972).
Em um vilarejo tão pequeno como este, cujas determinadas áreas do social passam a ser
percebidos com maior clareza, como por exemplo, os limites entre familiares/não
familiares, herdeiros/não herdeiros, parentes de sangue/de criação. Foram a minha porta
de entrada para tomar determinados termos locais como categorias analíticas e, assim,
portanto, condensadoras de conhecimento local e, por sua vez, de significados.
Em minhas pesquisas de campo, os habitantes frequentemente se identificam
como sendo todos de uma mesma família 5 , por reivindicarem ascendência comum a
Alexandre Ferreira Veras, um comerciante português, que, nos idos de 1870, adquiriu as
terras que hoje os moradores de lá habitam. Além da descendência comum, estes
campesinos compartilham a prática de casamentos entre sujeitos do seu próprio núcleo
familiar, que como será demonstrado nas próximas páginas, é um modelo de alto grau de
incidência e de grande representatividade.
Algumas das justificativas para a ocorrência de tais alianças matrimoniais é a
de que, se os matrimônios ocorrem entre pessoas da mesma família, então não há perigo
de nascerem pessoas de sangue ruim, ladrões ou pessoa de caráter desviado. O caráter
simbólico assumido pelo sangue, este como uma substância delimitadora de valores e
propriedades especiais, une-se a outra justificativa que escutei durante a pesquisa de
campo, dessa vez, proferida por uma moradora não aparentada por sangue e não casada
com ninguém do vilarejo: de que tais casamentos assim ocorrem em razão do intuito dos
praticantes em não fragmentar mais ainda a herança construída pelos primeiros habitantes
do lugar.
As terras de herança que as famílias hoje detêm são uma parte do que se
considera como a herança do vilarejo. Todas as terras que hoje são identificadas por
vilarejo do Venâncio englobam uma área de extrema riqueza natural, composta por dunas,
mangues, rios, salinas e grandes terrenos de carnaubais, estes denominados a outra parte
herdada pelas famílias. O interesse das famílias, nos carnaubais, reside de práticas antigas,
e até hoje continuadas, de se utilizar o beneficiamento do pó da palha da carnaúba para
produção de cera. Anualmente, o terreno em que constam as plantações de carnaúba são

5
Aqui, os termos em itálico referem-se a noções ou falas dos interlocutores desta pesquisa.
3
arrendados para terceiros e o rendimento deste arrendamento é dividido entre os
herdeiros. Embora a receita dos rendimentos do carnaubal seja distribuída para os
parentes que moram na localidade, ou seja, os vivos, a divisão deste rendimento é
designada a partir daqueles localmente identificados como as 17 cabeças velhas, ou seja,
os filhos dos casais que iniciaram o povoamento da localidade, sujeitos que se encontram
falecidos há mais de meio século.
A divisão dos rendimentos advindo dos carnaubais, tomando por base os as
17 cabeças velhas, ou seja, parentes que viveram há três gerações atrás, proveu uma
profundidade temporal na qual se tornou primordial em minhas análises. Pois, se
considerarmos que a atual geração de adultos do vilarejo sejam filhos dos filhos dos filhos
dos fundadores, algumas das relações do cotidiano destas pessoas são atravessadas por
arranjos ocorridos há, aproximadamente, 75 anos.
Como me trouxe D. Delvira, uma de minhas interlocutoras de mais longa
data, as divisões dos rendimentos são estabelecidas anualmente, logo após o recebimento
de valores que giram em torno de R$1.500 reais, por parte da empresa arrendatária, e
distribuídos entre os herdeiros dos 17 cabeças velhas, aqueles, netos dos fundadores do
vilarejo. Em um ano, os beneficiários são os herdeiros dos 10 filhos de Vitorina Rosalina,
em outro, os herdeiros dos 7 filhos de Henrique, irmão de Rosalina, são o tronco
beneficiado, e, por fim, no terceiro ano ocorre a soma de ½ de Henrique com ¼ de
Vitorina e ½ de Mané Vitorino, filho de Vitorina.
Tal construção lógica, como será ilustrado na última sessão deste artigo, tem
mais a dizer sobre mapas de relacionamentos e sobre os modos nos quais os herdeiros de
cada seção tripartite se percebem nesta coletividade, do que sobre uma distribuição de
valores monetários.
Este caso empírico ilustra que a as divisões advindas dos 17 cabeças velhas,
que viveram na primeira metade do século XX, e que nos tempos atuais atuam como
quadros referenciais ou pontos de memória coletiva, ainda criaram uma outra
segmentação dentro do grupo familiar: a atual formação de herdeiros velhos e herdeiros
novos. Os velhos, para os herdeiros (70-80 anos) de maior idade ainda vivos e os novos,
para os herdeiros (40-50 anos).
Dada a essa complexa segmentação e conformação de níveis do social, passei,
então, a me perguntar sobre o papel exercido pela memória, e especificamente, das
genealogias, que ainda se encontram vivas graças à sua transmissão oral. Passei a me

4
perguntar, quando e em quais situações as genealogias são contadas e recontadas, por
quem, e o principal, quais memórias são preferíveis de serem lembradas.
Ao indagar sobre quem são as pessoas habitantes de vilarejo, foi recorrente,
quase em 90% das entrevistas realizadas, o surgimento de variados vínculos entre as
pessoas do vilarejo. O mais comum deles, a identificação como primo legítimo de alguém,
denota um tipo de relação envolvendo, para além da consanguinidade em comum, outros
atributos de semelhança e identificação. Seguindo esse rastro, a ideia de primos legítimos
é acionada ao lado de um conjunto de noções como sangue bom, filha de criação,
aparentamento e consideração. Todos estes termos podem ser entendidos como noções
mobilizadoras de um grande número de significados, e que aqui serão tomados como
categorias analíticas deste contexto empírico.
Ao longo da pesquisa, percebi que alguns casamentos eram conformados entre
primos de uma mesma geração, e que se multiplicaram ao longo das gerações como um
modelo de grande relevância para aqueles que o seguiam. Muito embora o que seja
delimitado como terras do Venâncio possuam uma grande extensão a repetição frequente
de casamentos entre primos fez que aumentasse o número de herdeiros. Todos que ali
habitam possuem direito, por descendência, àquelas terras. No entanto, como me
afirmaram agora a terra tá pequena para tanto herdeiro.
Surge, então, que a terra, mais que um lugar da morada da vida (HEREDIA,
1979), é um bem que precisa ter seu espaço gerido, administrado e que é constantemente
disputado. Dada a multiplicação de herdeiros ao longo das gerações, uma vez que a
prática de casamentos endogâmicos é atuante, surge então questões quanto a transferência
do patrimônio familiar por meio das gerações, mostrando que “partilha” e “divisão”
(WOORTMANN,1995:223) são duas faces distintas de um mesmo fenômeno. A
crescente reprodução do núcleo familiar em contraste com o declínio do volume de terras
disponíveis recai no que Margarida Moura denomina de “contradição fundamental na
área camponesa” (MOURA,1978:36). Afinal, como conciliar o grande número de
herdeiros sem parcelar exaustivamente o patrimônio?
A construção local de família, aqui apresentada como categoria analítica –
um meio pelo qual se poderá prover visibilidade para outros eixos constituintes da trama
social deste vilarejo – envolve um processo constante de inclusão, exclusão e
classificação dos sujeitos descendentes de Alexandre Ferreira Veras, conhecido como o
grande fundador do vilarejo.

5
Neste trabalho, em um primeiro momento, abordarei o contexto empírico
explorado através de uma perspectiva em que parto do pressuposto de que as relações de
consanguinidade e de aliança são formadoras de família. Em um segundo momento estas
perspectivas são confrontadas com outras perspectivas analíticas nas quais trazem as
relações de parentesco não somente como um modelo a ser seguido, e que em muitas das
vezes, encontra reverberação na sociedade do antropólogo (SCHNEIDER,1972), mas
como um sistema de símbolos de nossa própria sociedade contemporânea. Símbolos estes
que se espraiam, extravasando os limites físicos do corpo para ganhar uma fluidez própria
das substâncias e das relacionalidades (CARSTEN,2000).
Por fim, no último tópico, família e sangue ganham um novo contorno quando
entendidas por meio da memória coletiva quando acionada pelos moradores do vilarejo
para tratarem do modo distributivo da herança da família. Herança esta que tem sua
partilha dada virtualmente, como um modelo norteador de relações, pois, concretamente,
ela nunca foi a lugar algum.
Proponho, dessa maneira, como caminhos a serem trilhados neste artigo,
quatro seções – 1. Terras de parentes sangue bom; 2. Sangue, a matéria do parentesco; 3.
Casamento une, herança separa, propriedade perdura 4. Resultado e aproximações
conclusivas – nas quais busco enredar o contexto empírico que aqui trago, em conjunto
das contribuições dos autores nos estudos do parentesco, em direção daquilo que aqui
exponho como objetivo deste trabalho: demonstrar a hipótese, já levantada em minha
dissertação, de que o parentesco, da forma que é performado, no vilarejo do Venâncio,
não é algo em si mesmo, ou seja, as relações familiares não dizem respeito, unicamente,
às regras de geração e criação de pessoas em um ambiente doméstico.
O parentesco nesta localidade diz respeito a descendência de um grupo
familiar, mas a replicação desta prática incide em razões para além da manutenção do
núcleo doméstico. Estas relações falam de si, mas ao mesmo tempo são operadores de
outras relações nas quais são por meio delas que determinados caminhos sucessórios de
herança e a indivisibilidade da terra ocorrem. Como Edmund Leach apresenta, em “Pul
Eliya: A village in Ceylon” (1961), os casamentos fazem parte de um ciclo de reprodução
maior, no qual o casamento une, a herança separa e, assim, a terra perdura. Aqui, pretendo
mostrar que a memória, os casamentos entre primos legítimos, e a divisão dos
rendimentos dos carnaubais, tomando por quadro os 17 cabeças velhas, são arranjos
exercidos nesta localidade como meio de entender seus próprios arranjos sociais.

6
2. Casamentos de primos legítimos, a memória transformada em performance

6
De características próprias de um vilarejo rural, Venâncio tem, em seus
aproximados trezentos habitantes, um cotidiano em que a gestão das terras que habitam é
uma das necessidades mais constantes. Ao longo da reprodução do núcleo familiar desde
o estabelecimento de Alexandre Ferreira, as terras de uso comum da família vêm sendo
transmitidas através dos herdeiros velhos para os herdeiros novos e geridas por meio de
uma série de normatizações erigidas pelas próprias famílias que lá habitam.
Podendo ser classificada como “terras de herança” (BERNO DE ALMEIDA,1989)
o território ocupado corresponde a três lotes de terras adquiridos em 1875 quando da
compra por um comerciante português, Alexandre Ferreira da Costa Veras. Ao
estabelecimento deste e de seus filhos, Vitorina Rosalina e Henrique Ferreira, podemos
atribuir o início do processo de “territorialidade” (GODOI, 2014) destes sujeitos nesta
localidade. Foram dos casamentos entre os filhos de Vitorina com os filhos de Henrique,
designado por certos autores como “casamentos trocados” (WOORTMANN, 1995: 264),
que se estabeleceu uma rede de parentes, que já compartilhavam laços de
consanguinidade por descenderem de um ancestral em comum, mas que se somaram ao
passo da formação de novos núcleos familiares consanguíneos.

Sobre a história de Alexandre Ferreira Veras, ou de seus filhos, pouco me foi


contado. Relataram alguns herdeiros que, dessas histórias antigas, só quem sabia eram
os herdeiros velhos, muitos destes já falecidos ou, os que ainda estavam vivos, não
conseguiam alcançar tal memória. Daquilo que foi alcançado, me relataram que um dos
primeiros grupos familiares a estabelecer morada na localidade foi a família Veras, que,
em meados do século XIX, partiu de Portugal e alojou-se em Camocim. Desta cidade,
sabe-se que parentes da família Veras se dispersaram pelo litoral Oeste cearense, alguns
firmando residência em Camocim e outros migrando para o município de Barroquinha (à
época ainda pertencente à comarca de Camocim) e aos distritos atualmente entendidos
como Venâncio, Bitupitá, Bambu e Araras. Relatam os moradores que o início do
Venâncio se deve a Victorino Ferreira Veras e sua esposa, acompanhados de seu filho

6
O vilarejo do Venâncio está localizado a 440 km de Fortaleza e localiza-se nos limites do município de
Barroquinha. O município conta com uma população de 14 mil habitantes, aproximadamente, segundo
dados do IBGE (2010) e tem por atividades econômicas de destaque a pesca, agricultura familiar e o
funcionalismo público.

7
Alexandre Ferreira da Costa Veras, sua nora e seus quatro netos: Henrique, Joviniano,
Lívio e Vitorina.
Morada de Vitorina Rosalina, a mais antiga dos antigos, lembrada como a
“dona disso tudo”, no sítio Capiaçú encontram-se ainda algumas das casas da vila que lá
existiu. De certo, as dunas invadiram parte das casas da vila, mas o tempo também tratou
de destruir as casas possuindo como conservada somente a casa principal, lugar onde
funcionavam casas de farinha, estábulos e plantações. Neste sítio, a infância dos mais
velhos foi marcada por momentos de privações e de muito trabalho 7 , sendo sempre
recorrente, que as dificuldades dos tempos passados não se encontram nos dias de hoje.
Dona Delvira, atual moradora do sítio, lembra da roça, das frondosas plantações de feijão,
mandioca, melancia, dos pés de coqueiro e dos carnaubais, dos tempos de grande
circulação de pessoas no sítio, principalmente nos tempos de farinhadas, época em que se
mói e se prepara a farinha ao longo de um mês de trabalho.

Alexandre
Veras

Manoel Vitorina joviniano Lívio Henrique


Rosalina Veras Ferreira Ana
Belchior de Rodrigues
Carvalho (de Carvalho) Veras
Sousa

Joviniana MariaVitorina Manoel Joaquim Madeira Maria Vitorina Chicota Zulima


Belchior de Vitorino Belchior de Belchior de Serapiao Alexandre Raimundo Maria Zé Manoel Xica Cicera Ursula Paulo
Carvalho Belchior Carvalho Carvalho Belchior de Henrique Henrique Henrique naninha Henrique
Carvalho Ferreira Veras Veras

Genealogia 1: Origem do vilarejo e 17 cabeças velhas (Software -Genopro)

O surgimento do vilarejo do Venâncio (bem como do Capiaçú e dos distritos


vizinhos) é contado quando vinculado às atividades econômicas advindas de cidades
como Camocim e Granja, 8 em meados do século XIX. As referidas cidades atuavam como

7
Recorrentemente o trabalho é visto como meio de dignidade e edificação da pessoa, no tempo dos antigo
os pais colocavam os filhos para trabalhar, uma pessoa que não trabalha ou que não é trabalhador não é boa
pessoa.
8
As cidades de Camocim (distante 48 km de Barroquinha) e Granja (distante 66 km de Barroquinha) são
importantes pontos de fluxo no litoral Oeste cearense, tendo exercido a função de entrepostos comerciais
do estado por suas privilegiadas localizações, Camocim, por ser uma cidade litorânea e ponto de fluxo
portuário e Granja por se localizar mais afastada da faixa litorânea, provendo atividade de escoadouro e
ponto comercial.

8
entrepostos comerciais, interligando o litoral Oeste ao Sertão central e à capital Fortaleza.
Camocim exercia, sobretudo, atividade portuária e comercial, sendo destino comum de
comerciantes, brasileiros e estrangeiros, que lá aportavam, a fim de estabelecer negócios.

Quando o termo família é acionado no vilarejo do Venâncio, alguns sentidos


podem ser depurados. O primeiro deles é aquele em que um núcleo de pessoas, composto,
em sua maioria, pelo casal esposo/esposa e seus descendentes, compartilham a mesma
composição territorial casa-roçado. Mas, família, também é acionado para identificar
outros consanguíneos, como os pais do casal e seus irmãos, os filhos dos irmãos e seus
respectivos cônjuges. Em ambas as situações, as relações de consanguinidade e de aliança
são formadoras de família. O que faz com que estas relações sejam discerníveis umas das
outras, e provedoras de significados para o grupo, são os arranjos performados no seio
deste mesmo grupo.
Um caso emblemático do tipo de família que aqui apresento é a de D. Delvira
(70 anos) e Seu Felismino (falecido). Seu Felismino, já desde menino, trabalhava na roça
ajudando o pai e os tios. Catava coco, ajudava na casa de farinha da família, na produção
das farinhadas, quando de mais idade, passou um tempo fazendo transporte de animais de
carga entre os municípios da região. Também ajudava o pai com o comércio que possuíam
à beira da estrada, em que se vendia produtos básicos de alimentação e carne seca.
Felismino e seu pai (Raimundo Belchior) são descendentes diretos de Vitorina (este filho,
aquele neto), conhecida antigamente como a dona do lugar todo, e na ocasião do
falecimento de seu pai, Felismino assumiu o seu papel no comércio e nos cuidados das
finanças e no provimento de comida para casa.
Quando Felismino ainda era jovem, seu pai trouxe uma prima para morar junto
com eles, pois a mãe havia falecido há pouco e, por serem muito pobres, ela e os dois
irmãos foram levados para serem criados pelo pai e mãe de Felismino. A prima que havia
acabado de chegar, ainda mocinha, era D. Delvira, pessoa com quem, no futuro, iria se
casar e gerar 10 filhos.
Felismino e seus irmãos habitavam a mesma moradia, compartilhavam o que
hoje se denomina sítio Capiaçú, mas, na medida em que os irmãos foram fazendo família,
foram saindo da casa dos pais e estabelecendo suas próprias famílias. Com a morte de seu
pai, Felismino fez, por sua residência, a casa que outrora pertencera a seus pais,
acumulando para si um certo prestígio econômico, pois tinham posses, e um prestígio
político, já que agora, as atribuições administrativas do pai foram transferidas para ele.
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Felismino e alguns de seus tios permaneceram, por muitos anos, exercendo uma espécie
de “conselho”, cujas atribuições revezavam entre pendências referentes aos carnaubais e
assuntos que diziam respeito ao vilarejo enquanto um espaço coletivo, principalmente,
quando havia necessidade de tratar dos assuntos referentes à regularização dos impostas
das terras que ocupam frente os órgãos municipais, estaduais e federais. Os documentos
de cadastro no INCRA e os títulos de propriedade daquelas terras estavam nas mãos
destes líderes locais.
Já a trajetória de D. Delvira é um tanto distinta de seu cônjuge.
Filha de Maria Henrique, uma das 17 cabeças velhas (ver genealogia 1) e
Antônio de Brito, Delvira e seus dois irmãos passaram a infância trabalhando a fim de
levar o sustento para casa. O pai, Antônio, já estava em seu segundo casamento e sua
cidade natal distanciava-se de Venâncio, o que impossibilitava dos filhos contarem com
ajuda deste lado da família. Contava Delvira que sua casa na infância era um casebre feito
de barro com telhado de palha de carnaúba. Quando não estava ajudando a mãe em casa,
ia para a casa de sua tia Úrsula, ajudar nos afazeres domésticos, que no fim do dia rendia
um tanto de farinha e feijão que Delvira levava para compartilhar com os seus.
Era comum que Delvira, a mãe e irmãos tivessem, por dia, uma única refeição,
às vezes resumida em um caldo feito de sururu coletado no mangue próximo, ou então,
uma mistura de farinha e passarinhos que os irmãos conseguiam capturar. Com um pai
ausente e uma mãe com problemas de saúde, Delvira teve que aprender muito cedo a
conseguir o alimento do dia e, quando me relatou sobre sua infância, declarou da
importância de sua tia Úrsula e do esposo Mané Vitorino, que a ajudavam nos momentos
de necessidade extrema. Quando da ocasião da morte de sua mãe, Delvira e os irmãos
viram-se desamparados, foi quando o tio Mané Viturino e a esposa os pegaram para criar.
Como ilustrou Teixeira (2014, p.162), em seu trabalho no Sertão dos
Inhamuns, a palavra criação, ou seja, filhos de criação, filhos que não são sangue do
mesmo sangue, traz uma ideia de extensão da concepção de núcleo familiar
tradicionalmente operacionalizada pela antropologia. A família estende-se aos laços
consanguíneos que ganham maior destaque quando comparado com os laços de afinidade,
levando em consideração a valorização dos casamentos, mas, mais ainda, valorizam-se
os casamentos entre pessoas da mesma família.
Delvira, agora como filha de criação, passou a estar no convívio de seu futuro
esposo, Felismino, pois sua nova casa passou a ser o sítio Capiaçú, morada de Mané

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Victurino e de Raimundo, pai de Felismino. Não muito tempo depois, Felismino e Delvira
passaram a namorar, o que esta identifica como um namoro à moda antiga, como me
explicou, passaram anos somente segurando a mão, para só depois ela engravidar da
primeira filha, Mírian. Delvira e Felismino tiveram dez filhos, todos criados no sítio
Capiaçú.
Atualmente, o núcleo de Felismino e Delvira, é o de maior representatividade
no local, não somente pelo poder aquisitivo, que de algumas décadas para cá tem decaído,
mas pela responsabilidade de levar as questões do vilarejo à frente, a eles demandas
chegam, e deles elas saem resolvidas. Muitas destas demandas podem ser entendidas
como necessidades burocráticas, como o registro das terras no INCRA, e o subsequente
pagamento de impostos para a União.
A família de Delvira e Felismino também é identificada como uma família
muito boa, prestativa, que ajuda quando alguém precisa. Geralmente esse alguém é um
familiar próximo já que no Venâncio, todas as pessoas são identificadas como parentes
umas das outras, e, de fato, analisando a sua genealogia, a maioria das pessoas estão
conectadas umas com as outras o que ilustra o mesmo status de herdeiros das terras entre
as mesmas pessoas. Mas, porque então, quando jovens casais procuram uma local dentro
das terras do vilarejo para começar suas famílias, estes recorrem à família de Delvira para
perguntar onde podem levantar a casa?
A proximidade do contexto empírico que aqui trago com aquele explorado por
Leach pode ilustrar algumas reflexões importantes acerca disto que venho tratando.
O sistema de titulação e distribuição de terras no vilarejo de Pul Eliya, no
Ceilão, analisadas por Leach, nos leva a perceber uma certa similaridade com a situação
que aqui apresento. Em Pul Eliya, Leach frequentemente escutava assertivas de
moradores indicando que um determinado lote de terra pertenceria ao poraveni (ancestral)
ou então que são terras purãna (desde o começo), mesmo quando tinha conhecimento que
tais terras haviam sido adquiridas por membros variga (elite política local).
Nascimento, descendência e residência são fatores indispensáveis para
aqueles que querem ter acesso ao variga court, uma espécie de tribunal de castas nativo,
designado a cuidar de assuntos tais como casamento e herança, que lidava, ao mesmo
tempo, com questões de disputas de terra entre membros de uma mesma vila.
Por meio de intrigas que são alimentadas no seio da própria vila sobre o
direito, ou não, de ocupar determinadas terras, as partes disputantes se veem em uma

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espécie de vendeta articulada pelos membros do variga court, como exemplifica o
seguinte trecho:
O objetivo da parte mais forte é forçar seu oponente fora da vila
e a tradicional forma disso é tê-lo condenado pelo variga court,
convence-los que o opositor é um estranho ou que é acusado de
cometer incesto porque mora no mesmo local que a irmã. Tais
atos são considerados sacrilégio e poluição de casta. (LEACH,
1961: 71) [tradução livre da autora]

Dado que as melhores e mais férteis terras eram controladas e concedidas


através do tribunal de casta local, pertencer à corporação variga ou ter um parente
próximo na instituição é o que definirá a atribuição das terras. Como Leach resgata:
“quando o pecador é um parente desejável, sua ofensa é expurgada com multa, quando é
indesejado, ele e seus acompanhantes são expulsos do vilarejo” (LEACH, 1961:71).
Em moldes similares ao encontrado em Pul Eliya, a “corporação” ou as
pessoas que respondem pelas burocracias do vilarejo do Venâncio, mas que igualmente
usufruem e exercem um papel de poder, fazem arranjos nos quais são determinados o
direto à terra e lugar de residência, em detrimento ao direto por descendência, como
provedor de direito e usufruto de um determinado lote de terra.
A atenção dada à família, como uma noção que é socialmente construída, traz
à tona que nem todas as famílias que lá existem conseguem atingir as condições de ter
nascido no vilarejo, ter ambos os pais nascidos no vilarejo e ter casa na localidade. Muitos
dos núcleos familiares residentes no vilarejo, pessoas que possuem um vínculo de
parentesco bastante próximo de famílias tais como a de Felismino e Ddelvira, não
conseguem desenvolver vínculos e nem adquirir certos afrouxamentos nas relações por
partilharem de uma ascendência em comum. O que Leach traz, e aqui faço coro, é que a
endogamia é uma “regra” que somente ganha sentido se for pensada como uma maneira
de garantir, ou limitar, o acesso à terra e à herança.
Ou ainda, como traz Woortmann, que:
Se, como diz Leach, o parentesco não é uma coisa em si, a endogamia,
como parte do parentesco, também não é. A modificação de seu
significado, assim como das trocas matrimoniais em geral, corresponde
a transformações no processo produtivo e no modo de apropriação da
terra. (1995:261)

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Assim, a endogamia regula a entrada e a saída de parentes dentro do círculo
de reprodução social e territorial do vilarejo. Como é possível perceber através da união
de D. Delvira demonstrada na genealogia abaixo.

Genealogia 2 – D. Delvira “filha de sua mãe” (Software - Pajek)9

Genealogia 3 – D. Delvira “filha da irmã da mãe” e Virilocalidade (Software


- Pajek)10.

9
BATAGELJ, Vladimir; MRVAR, Andrej. Pajek-program for large network analysis. Connections, v. 21,
n. 2, p. 47-57, 1998
10
BATAGELJ, Vladimir; MRVAR, Andrej. Pajek-program for large network analysis. Connections, v.
21, n. 2, p. 47-57, 1998

13
Enquanto filha de sua mãe, D. Delvira possui um parentesco distanciado da
família de seu marido, seria seus avós o ponto de ligação mais próximo dessa rede. O ato
de ter sigo pega para criação por Manoel Victurino, irmão do pai de seu esposo, como
pode ser percebido na genealogia 3, Delvira aparece como filha da irmã da mãe, ou seja,
passou a ser filha de criação da irmã de sua mãe, Úrsula e de seu esposo Manoel Vitorino.
Passando a ser filha de Manoel, sua relação com seu futuro marido aproximou-se, saiu de
sobrinha-neta de Henrique Ferreira para neta de Vitorina e mais, seu pai de criação é
irmão de seu futuro sogro.
Ao analisar as genealogias de D. Delvira, aquela em que ela é filha de sua mãe
e a outra que é filha de criação da tia, a migração de Delvira para o núcleo familiar de
Manoel a fez prima mais próxima, pois passou a morar no mesmo sitio de Felismino, a
fez prima paralela deste, já que ambos são filhos de irmãos de mesmo sexo, aqui no caso
masculino, e que o fato de sua mãe ter falecido ainda nova, e de ter um pai que, além de
estar no segundo casamento e possuir outra família, ainda era uma pessoa sem lastro,
aumentou mais ainda a sua vulnerabilidade.
Sobre o modelo de casamento entre primos paralelos, podemos encontrar
ressonância do papel deste mesmo modelo no trabalho de Wooortmann (1995:264). Nesta
obra, a autora traz que a categoria primo, como termo classificatório geral, pode ser
aplicada à ambos os gêneros de primos, no entanto, enquanto o primo homem é visto
como o continuador daquele sangue, à prima mulher é conferido o papel de filha da irmã
da mãe, isso devido à tendência patrilinear deste grupo. Podemos encontrar semelhanças
com o caso de D. Delvira, por exemplo.
Como traz a própria autora:
A prima, no sentido mais restrito do termo, não é pensada como um
indivíduo feminino, mas como a filha da irmã da mãe, cujo pai é irmão
do próprio pai do pai de Ego, portanto como um parente patrilinear, ou
como filha do irmão do pai de Ego. O casamento com a filha do irmão
do pai, ademais, torna a relação entre os respectivos pais uma aliança de
herança, através de uma troca de irmãs, ou, se preferir, de uma troca de
filhos [...] (WOORTMANN, 1995:265)

Ao analisar a genealogia à luz das histórias contadas, o núcleo familiar de


Dona Delvira não formava família, sua mãe casou-se com uma pessoa de fora da
comunidade, e esta, já era a segunda família que ele formava. Com a morte da mãe de
Delvira e seus dois irmãos passaram a ser criados por seu tio-avô, Manoel Vitorino, este
sim possuidor de posses e irmão do seu futuro sogro. Nesta situação ela saiu de sobrinha
14
neta para neta de Vitorina. Sendo filha de criação de Manoel Victurino, Delvira passou
ser prima paralela de seu futuro marido, Felismino. Me parece que, neste caso, não
somente a virilocalidade11, ou seja, estabelecimento de residência do novo casal na casa
que o esposo já habitava, atuou, antes, a conformação de primos paralelos como produtor
de família.
Assim, a tendência à virilocalidade, aqui, ocorreu por questões econômicas,
em um primeiro momento, da parte de Delvira e seus irmão não terem condições de auto
sustento, mas foi impulsionada pelas práticas de criação postas em prática pela irmã de
sua mãe e por seu esposo.
Vale ressaltar que este não é o único modelo de casamentos existentes na
localidade, outros arranjos são encontrados, como casamento com pessoas de fora, seja
da sede do município, seja de outras cidades do Ceará ou até mesmo do Rio de Janeiro
ou São Paulo. Mas o caso de Delvira e seu esposo torna-se aqui emblemático pela razão
de serem eles os continuadores e uma linhagem que teve inicio com seus avós, o que, de
certo, me faz entender que permitiu a integridade do patrimônio da maneira como
encontramos hoje.

3. Sangue, a matéria do parentesco

Mas família também corresponde aqueles grupos de pessoas em que os laços


produzidos através do casamento são mais levados em conta do que os consanguíneos.
Sobre o que o sangue bom operacionaliza? Como ele ocorre? Ter esse tipo de casamento
com a prima paralela não é suficiente para fazer parte de um determinado grupo, se é isso,
como bem entendi, o que as pessoas objetivam. À medida que o sangue é uma substância
conectora, um elemento involuntário, como bem elucidou Schneider (2006), ela também
tem propriedades de exclusão.
A primeira, e uma das poucas vezes que surgiu o termo sangue bom durante
minha experiência em campo, foi quando Mirian, filha de D. Delvira e Seu Felismino, me
explicava, muito informalmente, enquanto tomávamos um café em sua cozinha, que era

11
Segundo Marc Augé, residência virilocal pode ser caracterizada i) quando o novo casal reside onde o
marido já residia antes do casamento ou decide residir depois do mesmo; ii) sinônimo de residência
patrilocal (quando o casal se estabelece com ou junto dos pais do marido). Já o outro lado desta relação, a
uxorilocalidade, é definida quando i) o novo casal fixa-se no local onde a mulher residia antes do
casamento; ii) sinônimo de residência matrilocal. (1978:43).

15
bom quando casava primo com primo, pois o sangue da família já é conhecido e que fica
tudo entre parente. O assunto dos matrimônios entre familiares surgiu quando eu a
perguntei porque as pessoas se casavam tanto com parentes, e a origem da minha dúvida
surgiu depois que presenciei um jovem, morador do vilarejo, tendo duas convulsões
sucessivas provindas de ataques epiléticos. Essa imagem ficou em minha cabeça e logo
descobri que outro garoto do vilarejo, também primo, sofria da mesma condição.
A minha pergunta certamente foi despertada após esse incidente, que me fez
pensar que tais casos de epilepsia, somadas a outras deficiências físicas percebidas
durante o campo, como pessoas surdas-mudas e pessoas com membros deficientes, me
remeteu à certas ideias comuns em nossa sociedade quanto ao cruzamento de DNA´s
próximos. O reconhecimento da população local do Venâncio sobre essas consequências
físicas possui uma certa visibilidade entre os moradores locais, no entanto, a possibilidade
de ter um descendente portador de algum tipo de deficiência não se mostrou como
empecilho para a geração de novos filhos.
Se a proposta de manter o sangue bom na família é tão compensador, ao passo
de se correr o risco de o filho nascer com algum tipo de deficiência, então o que sangue
bom traz consigo? Porque a classificação, e consequente desclassificação, de parentes
como sangue bom ainda é atuante? E o que esta classificação nos esclarece sobre os
relacionamentos dos sujeitos entre si e sobre o espaço que habitam? Se compensa ter um
filho deficiente, qual o valor das relações consanguíneas?
Para além dos imponderáveis que frequentemente encontram-se em campo, a
tarefa de construir um argumento interpretativo sólido, cuja base seja o contexto
etnográfico em questão, surge como uma das dificuldades encontradas em minha
pesquisa. Percebi que, em muitas conversas, os moradores do Venâncio evocavam termos
que possuíam um significado polissêmico. Sangue recorrentemente aparecia dentre estas
conversas, ou sangue bom, quando diziam das qualidades das pessoas que nasciam
naquele vilarejo. Essa polissemia pode ser observada em muitos contextos e com termos
diversos.
Dentro de um contexto cristão, o sangue simboliza a renovação, o sangue de
Cristo tem a capacidade de cura. Se percebido em contextos metropolitanos, dentro de
um hospital, o sangue exposto significa perigo de contaminação, mas quando dentro da
sala de cirurgia é um líquido vital, de onde emanam propriedades de reavivar as pessoas.

16
O sangue também é visto como interdição quando vinculado à menstruação e assim posso
elencar muitos outros exemplos.
Mas sua formulação aqui sugere um contexto próprio alocado no semiárido
cearense, trata-se de algo particular do Venâncio, quando o que está em jogo é reconstituir
ou procurar apreender como essa polissemia se apresenta no contexto do vilarejo e das
pessoas que ali habitam e compartilham de um jogo de linguagem.
Dessa forma, sangue não surge sozinho, frequentemente acompanha-se de
algo que se anexe virtudes às pessoas, como por exemplo, ter consideração por alguém.
Mas para ter consideração por alguém é necessário vínculo, troca, contato, pois
consideração é uma relação mútua e, por analogia, sangue passa a atuar no mesmo
contexto semântico de consideração. Assim, quem tem sangue bom, se tem por
consideração, e quem se tem em consideração, certamente tem sangue bom.
Como uma relação real, objetiva e verdadeira, as relações de sangue, jamais
podem ser rompidas, o que faz com que outras relações sejam organizadas em torno
destas. Como bem indica Schneider (2006:103), a matéria geradora desses laços é a
relação sexual, cabendo a cada um doas genitores 50% do material genético. Faz-se, com
a relação de sangue, algo que nenhuma outra relação faz. E é o sangue, e suas decorrentes
relações, que provê os fios de continuidade que são obtidos por indissociáveis, pois são
relações que não pode ser terminada, nem alterada. Ela é um estado de comunidade.
Dessa maneira, o parentesco de sangue classifica, a partir de si, as outras
relações envoltas neste contexto. Se tomarmos partido de que as representações estão na
sociedade, a representação – simbolização do sangue e sua materialidade – é a matéria do
parentesco, pois é a partir do que é convencionado socialmente, do complexo de ideias
evocadas por sua existência que a conectividade entre pessoas surge. Como bem elucida
o autor,

Um premissa fundamental do sistema de parentesco americano é que o


sangue é uma substancia e que isso é muito distinto do tipo de
relacionamento ou código de conduta que as pessoas que compartilham
essa substancia, o sangue, devem ter. É precisamente com base nessa
distinção entre o relacionamento como substância e o relacionamento
como código de conduta que a classificação dos parentes por natureza,
parentes por lei, e aqueles que são relacionados tanto por natureza
quanto por lei, os parentes de sangue, é feita. (SCHNEIDER,2016:103-
104)

17
Foi partindo da noção constituída no seio desta localidade sobre família que
pude chegar às aproximações analíticas que aqui proponho, pois, entre esses sujeitos,
família se constitui não somente dos relacionamentos entre consanguíneos e afins, ou seja,
entre pais, mães, irmãos, tios, primos, dentre outros. Família extrapola essa noção e
agrega valores morais tais como sangue bom, consideração, aparentamento e filho de
criação. Cada uma desta noções traz consigo modos de classificação, assim como aqueles
modos encontrados nas relações sanguíneas, que permite uma seletividade que é
operacionalizada de acordo com as circunstâncias e trajetórias construídas pelos próprios
membros da família.

4. Casamento une, herança separa, propriedade perdura

Temos então, até agora, que para constituir família e, para ser incluído na família,
o sujeito deve ser consanguíneo, performar as relações de casamento dos seus
antepassados, como foi demonstrado com caso de dona Delvira. Mas estes descendentes
têm a qualidade de sangue bom, e que, por entenderem que nem todos podem (e devem)
ser sangue bom, mesmo compartilhando da mesma substância transferida por seus
antepassados em comum, esta categoria, em determinados, momentos aglutina, em
outros marca diferenças. E então chegamos no ponto que confere sentindo a todas essas
performances.
Se tudo isso tem uma “razão prática” ou uma “razão cultural”
(WOORTMANN,1995) para acontecer, se a leitura do significado de um signo pode ir
além das características semelhantes evocadas por suas formas, o que explicam todos
esses casos?
A distribuição do carnaubal se mostra como um sistema lógico organizatório que
permite os herdeiros novos conectarem-se com os velhos e com as 17 cabeças velhas,
garantindo a continuidade dos hábitos de tradição. Como já foi citado, a herança “física”
do Venâncio são os lucros dos carnaubais e o território individual das casas mais áreas
comuns. No entanto, estas depois de exercerem seu papel de chão de morada, não são
reivindicadas como propriedade individual. O ponto de encontro entre estas duas heranças
está ancorado no fato de ambas terem na família, no seu sentido aqui conferido, o seu
vínculo comum.

18
Como as regras locais possuem lógica própria, cujo fim último é poupar ao
máximo a integridade dos patrimônios territoriais, a herança passa a ser fruto de
manifestações de preferência e consideração. Relacionada ao fato de que se há
indivíduos, filhos que atingiram a maturidade e que contrairão matrimônio, uma série de
condições devem ser satisfeitas para que se assegure a existência camponesa e não
necessariamente a algo deixado pela morte de seu genitor.
A distribuição dos lucros dos carnaubais das famílias atua como narrativa
elucidativa dos caminhos seguidos pela herança em meio às gerações de famílias do
Venâncio. Mais, as regras de distribuição dos rendimentos nos fazem pensar que a
segmentação da herança não é um fenômeno isolado. A segmentação dos rendimentos e
a sua circulação mostram-se imbricadas às concepções nativas de fazer família e política,
em que os estoques territoriais se apresentam em conjunção aos “capitais simbólicos” dos
sujeitos. Seguem dois trechos, a seguir, de dois herdeiros velhos, Delvira e Cícero Vieira,
contando a mesma história. Primeiro, Delvira:

Os pais dele [Felismino] era tudo de condição, quem tinha uma lavoura
dessa tirava carnaúba do Venâncio, lá da ilha, tirava todo carnaubal e
vendiam pó, faziam cera, faziam muito dinheiro. Esse carnaubal ainda
é nosso, esse daqui [do Capiaçú] é dele e das irmãs dele [Felismino], o
do Venâncio um ano é do meu avô [Henrique Ferreira] e que é nosso,
outro ano é da avó do Felismino [Vitorina Rosalina], que é dele e das
irmãs. Outro ano, a metade é de um e ¼ é de um [Henrique Ferreira] e
outro ¼ é de outro [Vitorina Rosalina] e são todas as famílias. O daqui
são só dos irmãos do Felismino, agora do Venâncio que é esbagaçado,
no ano de Henrique Ferreira Veras é da mamãe, é dos irmão da mamãe,
e no ano que vem é da velha Vitorina que é irmã do velho Henrique, aí
é do pai do Felismino e dos outros irmãos dele, aí tem no outro ano que
metade é deste Mané [Manoel] Vitorino que me criou e ¼ é da velha
Vitorina que faz parte do Felismino também, e ¼ do velho Henrique,
que uns tem parte também. Entrevista em maio de 2012.

Seguida por Cícero Vieira,

Tudo é nosso, uma família grande, Belchior e Carvalho. Eu sou filho da


finada Chicota, esta filha da finada velha Vitorina, aqui só da Belchior
e Carvalho, sabe?

Lorena: Eu gostaria que o Sr. me explicasse como é a história dos


herdeiros.
CV: Rapaz, os herdeiros é a velha Vitorina, a Vitorina que era a mais
velha do lugar, era a dona desse lugar, o finado Henrique, que é irmão
dela, o finado Jovi [joviniano], o finado Livi[lívio], tudo um irmão só,
mas eram donos. O finado Jovi morreu com 100 anos, era velhozinho.
Esses herdeiros velhos que morreram tudo do meu tempo quando eu me

19
entendi, eu já era gente, aí eu estou com 80 anos, né? E eles já eram
gente. Aí acabaram tudo, morreu tudo. [...]
L: Como era a divisão dos rendimentos do carnaubal?
CV: Olhe, é assim: Tio Mané, no tempo do tio Jovi, tio Jovi pega e dá
a parte dele pra Tio Mané Vitorino, dá e aumenta a dele. Aí da minha
avó[Vitorina] um ano era só pra dez [filhos da Vitorina], aí depois, em
outro ano, passa pro Tio Henrique, ai noutro ano Tio Mané Vitorino
tem uma banda[metade] e eles dois [Vitorina e Henrique] tem a outra,
certo? Se é dez mil reais o carnaubal, tio Henrique fica com metade, e
a velha Vitorina com ¼ e Mané com outro ¼. E assim vai dividindo,
todo mundo. [...]
Quem faz a divisão as vezes é o Louro [João], da época que eu mandei
arrendar o carnaubal, pra ver se aumentava, porque ganhava uma
mixaria, porque no começo dava 1.000 reais. Aí depois eu botei pra
frente aí deu 1.500 reais. Aí quer dizer que cada herdeiro desses 10 da
velha Vitorina participou[ganhou] 150 [reais] para cada um. Ai os 150
de cada um, como eu não tinha mãe, nem pai, ficou em nos três (irmãos)
e os outros [primos que eram em dez, oito irmãos] tocava nem 15
[reais], ai eles ignoravam muito, eu explicava que era porque vocês são
dez, são oito, são sete, e nós somos três. (Entrevista com Cícero Vieira,
fevereiro 2017)

Se fizermos um contraponto com a entrevista de D. Delvira e o trecho acima


de Cícero Vieira, podemos perceber que ambos tratam do mesmo assunto, a distribuição
dos lucros dos carnaubais 12 . Podemos entender que a distribuição ocorre de maneira
cíclica com uma periodicidade trienal. Se convencionarmos como primeiro o ano 1, então
teremos que o rendimento irá de forma integral para um herdeiro velho e seus
descendentes, seguindo na mesma convenção, o segundo ano como ano 2 o rendimento
irá de maneira integral para outro herdeiro velho e seus descendentes, e por fim, o terceiro,
ano 3 é fracionando em 3 partes iguais, cada parte correspondendo ao herdeiro 1 e 2 e um
terceiro outro herdeiro, que ganhou direito, por meio de concessão, a ter essa parte.
Conferindo nome às partes, podemos identificar e convencionar que o ano 1
será o tempo em que os 10 cabeças velhas herdeiros de Vitorina Rosalina são os
beneficiários, no ano 2, será a vez dos 7 cabeças velhas de Henrique Ferreira e no terceiro
ano os rendimentos são partilhados em três, sendo a metade do ano de direito de Mané
Vitorino, e a outra metade dividida entre Vitorina e Henrique. Abaixo, pode ser observado
graficamente tal distribuição.

12
Anualmente os herdeiros arrendam seus carnaubais para uma empresa que utiliza a palha da carnaúba
para fazer cera.
20
Gráfico 1: Ciclo de distribuição dos lucros do carnaubal

Logo quando iniciaram a distribuição dos rendimentos dos carnaubais, ainda


na primeira geração, aquela dos irmãos Vitorina, Henrique, Lívio e Joviniano, a partilha
foi realizada entre três dos quatro irmãos: Henrique, Joviniano e Vitorina. Segundo relato
de Cícero Vieira, Jovi deu sua parte para seu sobrinho Mané Vitorino, filho de sua irmã
Vitorina, o que garantiu a este mais uma parcela dos lucros, para além daquela que já
possuía como sendo filho de Vitorina.
Como disse Cícero Vieira, são poucos os herdeiros que podem contar com os
lucros advindos do arrendamento. Com exceção dele e de seus dois irmãos, a maioria das
pessoas recebem uma mixaria, ou seja, um valor irrisório, às vezes R$15,00 reais por
pessoa, por ano. À essa fragmentação contínua deve-se à formação constante de núcleos
familiares descendentes dos 17 cabeças velhas.
Por exemplo, Cícero Vieira e os irmãos recebem os lucros porque sua mãe,
Chicota, é filha de Vitorina. Na geração de Chicota, ela e os 9 irmãos dividiam entre si os
lucros quando estava no ano de Vitorina. Da mesma forma que Cícero Vieira e seus dois
irmãos recebem pela parte de sua mãe, seus tios e primos por parte da mãe de Cícero
Vieira também recebem. Mas como fora dito, Cícero possui somente dois irmãos e
recebem uma quantia maior, que chega até R$100,00 reais, enquanto que os núcleos
familiares de seus tios e tias, por parte de mãe, eram compostos por uma quantidade maior
de descendentes. O mesmo acontece com todos os moradores do vilarejo, a depender da
quantidade de irmãos que se tem e a quem genealogicamente se aproxima, a quantia do
lucro por pessoa irá variar. À esse fato da divisão dos lucros, são poucos os que deixam
de receber já que todos os herdeiros do Venâncio descendem dos 17 cabeças velhas.
Podemos considerar que uma família no vilarejo se origina quando essas três
condições básicas são alcançadas: 1) ter nascido no vilarejo; 2) ter um dos pais, pelo
menos, nascido no vilarejo; 3) ter terreno/ casa. Muito embora o termo família possa

21
surgir empregado em variados contextos, que, em determinados momentos, aumente ou
diminua o número de pessoas, no vilarejo, família se vincula àquelas pessoas que
compartilham a mesma residência, por exemplo pai, mãe e filhos, e/ou aquelas pessoas
que compartilham moralidades, hábitos e costumes em comum como já foi destacado nas
primeiras páginas deste artigo.
Leach, em Pul Eliya, destaca que o parentesco, longe de ser percebido como uma
instituição em si, dentro de uma estrutura social ideal, é algo que depende da análise dos
outros domínios que compõem aquela sociedade. Tais modelos de casamentos
prescritivos, à exemplo daqueles performados entre “pares de primos”, não são estratégias
aleatórias. Esclarece o autor que tais práticas de parentesco, tanto as de aliança como as
de descendência, são expressões de relações de propriedade nas quais perduram ao longo
do tempo e que, enquanto a herança separa, o casamento une e, assim, a propriedade
perdura.
Logo, o papel das relações de parentesco percebido por Leach no vilarejo do
Ceilão é algo próximo àquele desempenhado pelas mesmas relações que apresento com
o Venâncio. A função da consanguinidade e afinidade alcançam domínios maiores e
mobilizam, através de um idioma específico, o fluxo das relações. A circulação da
herança é apenas uma parte de uma totalidade mais complexa, não é o ponto final após a
morte, ela é parte de um ciclo de reprodução social.
Como ainda bem lembra Ana Cláudia Marques, os “quadros da memória”
permitem classificação, localização e qualificação dos espaços, processos de migração,
de transferência de terra concentração e suporte a um vizinho consideração, todos esses
processos, circunstâncias e movimentos se tornam inteligíveis através de sua tradução por
meios dos laços de parentesco e localidades (2013:727). Acrescenta, a autora,

Em muitos sentidos, então, esses eventos não se limitam ao passado,


pois orientam e dão sentido às relações e ações no presente e projetam-
nas no futuro, mesmo entre pessoas desconhecidas. Os atores
envolvidos nas narrativas estão situados em relação uns aos outros em
termos de distância social, dados não apenas por posições genealógicas,
mas também pelos papéis desempenhados nos eventos narrados e pelas
reputações que fluem entre os parentes.” 13

13
“In many senses, then, these events are not confined to the past since they orient and give meaning to
relations and actions in the present and project them into the future, even among people unknown. The
actors involved in the narratives are situated in relation to each other in terms of social distance, given not
only by genealogical positions but also by the roles played in the events narrated, and the reputations that
flow among kin.” (MARQUES,2013:728)
22
De fundamental importância para a garantia de terras para todos os herdeiros,
os casamentos entre pessoas da mesma família se mostram como estratégias visando
evitar o parcelamento contínuo das terras do vilarejo do Venâncio. Concordo quando
Woortmann (1995:258) afirma que as práticas matrimonias reforçam os laços de
solidariedade dentro do grupo, ao mesmo tempo em que cimentam os vínculos entre a
parentela. Essas práticas não são livres de significados. Os casamentos prescritivos, de
preferência quando há troca de “pares de primos”, denuncia o entendimento para além da
reprodução daquele núcleo familiar. Tais casamentos longe de possuírem uma finalidade
imediata, que é formar uma família, fazem parte de um ciclo reprodutivo maior, não
somente da família, mas do substrato no qual esta família se reproduz, a terra.
Leach (1961) já afirmou em seus estudos, que o parentesco não é uma coisa e
si mesma, e aqui parto da mesma ideia, uma vez que, no Venâncio, tais práticas
matrimoniais são um reflexo do processo de sucessão da propriedade, concretizado pelos
padrões de herança estabelecidos no contexto do Venâncio. Sem os casamentos
performados dessa maneira, sem o acordo em fazer parentes da maneira que se faz, as
terras do Venâncio já estariam pulverizadas de tal forma que nem levantar casa seria
possível. Os códigos de conduta estabelecidos pelas relações de parentesco, construídas
pela expansão dos laços dos sangues bons e de descendência, e, passando a agregar os
laços de consideração, servem de moldes, ou de idioma para a transmissão das terras que
ocupam. E Marques complementa,
A estrutura genealógica fornece caminhos para conectar e desconectar
pessoas em muitas direções virtuais. Nem uma questão de escolha nem
uma das regras prescritas de direitos e deveres, o engajamento e
desengajamento reais das pessoas depende do que eles sabem um do
outro. O assunto deste conhecimento será encontrado em histórias de
vida como são vividas, testemunhadas e narradas. Geralmente
centrados nos indivíduos, as qualidades pessoais e morais sublinhadas
nas histórias transbordam delas, depois germinam e se reproduzem em
outros indivíduos, tempos e espaços.[ tradução minha]14

14
“The genealogical framework provides paths for both connecting and disconnecting people in many
virtual directions. Neither a matter of choice nor one of prescribed rules of rights and duties, the actual
engagement and disengagement of people depends on what they know about each other. The subject of this
knowledge will be found in life histories as they are lived, witnessed, and narrated. Usually centred on
individuals, the personal and moral qualities underlined in stories overflow from them, then sprout and
become reproduced in other individuals, times, and spaces.” (MARQUES, 2013:729)
23
A ideia das 17 cabeças velhas, herdeiros velhos e herdeiros novos nos provê
uma profundidade temporal em que se sobrepõem os quadros mnemônicos construídos
coletivamente, contados e reproduzidos ao longo das gerações, ao curso processual do
tempo, enquanto uma sequência crescente de anos. Como as regras locais possuem lógica
própria, cujo fim último é poupar ao máximo a integridade dos patrimônios territoriais, a
herança passa a ser fruto de manifestações de preferência e consideração. Relacionada ao
fato de que se há indivíduos, filhos que atingiram a maturidade e que contrairão
matrimonio, uma série de condições devem ser satisfeitas para que se assegure a
existência camponesa e não necessariamente a algo deixado pela morte de seu genitor.
O que os causos aqui relatados e as genealogias ilustram é que a herança nunca
saiu de dentro de família, a genealogia os lembra, na verdade, como os modelos foram e
como eles devem ser performados. Me parece que o objetivo, se é que existe um objetivo
claro em todo este processo, não é partilhar uma terra de herança, porque a coletividade
familiar mora lá, e como disse, em outro momento, pede-se permissão para levantar casa,
mas quando a família não quer mais habitar esta morada, abandonam-se aquele espaço
sem muitos remorsos.
Assim, me parece que não está em questão o chão no qual a casa é levantada,
mas sim, está em questão tudo que se lembra, todo o processo de seguir uma série de
prescrições, regras veladas, as histórias, os casamentos, as mortes, as festas, todos esses
processos que acompanham as pessoas, umas mais que outras, por questões as vezes
idiossincráticas, outro momentos porque foram “proibidos” de se importarem, são
elementos que compõem o processo do que é viver e o porquê viver ali.
Faz sentido pensar assim, se levarmos em conta a facilidade que os moradores
do local tiveram ao me contar a trajetória de seus antepassados, cada casamento, um por
um. A imagem a seguir, da cena do garoto olhando para um senhor idoso, provavelmente
seu tio-avô, ao contar o que ele sabia sobre os casamentos de seus antepassados, ilustra o
valor conferido à memória, tanto por quem fala quanto por quem escuta.

24
Imagem 1: Zé Vieira e o menino na bodega de João (maio/2012)

5. Resultados e aproximações conclusivas

Aqui, busquei demonstrar que primos paralelos se conformam nesta


localidade como uma maneira identificação de primos legítimos, e assim, produtores de
família. Mas primos legítimos também ganham força quando pensados através da noção
de sangue bom, aquela substância de relacionalidade, mas, de igual maneira,
classificatória de desclassificatória de pessoas.
A minha primeira preocupação neste artigo foi trazer à tona como se faz
família neste vilarejo, quais especificidades essa conformação possui e, em quais
momentos, e porque a ideia de família é acionada. Família, do modo que estas pessoas
performam em seus casamentos, diz respeito a um espaço que é alcançado de forma
cumulativa. Mesmo no vilarejo sendo todos da mesma família, como me foi confirmado
diversas vezes, nem todos os familiares são assim considerados. Para assim ser, o
candidato tem que reproduzir, corroborar e legitimar o modelo já reproduzido por seus
antepassados.
É neste ponto que a memória atua como preponderante na vida destas pessoas.
A minha proposta de trazer as genealogias, para além de uma ilustração que facilite a
25
leitura dos casamentos e das outras relações, é um quadro temporal no qual as pessoas
incorporam suas narrativas, onde eles se situam como parente e situam os outros.
Não acredito que a incidência de casamentos entre primos legítimos seja
coincidência, nem tampouco acho que estes modelos sejam conscientemente performados
e detentores de uma “razão prática”. Aquilo que aqui estou denominando como “quadros
da memória” são as narrativas que recorrentemente são repetidas, tais como a divisão dos
carnaubais, a história da vida de D. Delvira e a história de seu Felismino. A cada nova
situação em que esses causos são contados, este acesso ao passado se torna um caminho
a ser seguido no futuro.
Anualmente, os carnaubais passam pelo arrendamento e consequentemente,
pela distribuição de seu lucro. Anualmente, a conta relatada por D. Delvira, de que, a cada
ano, num período de três anos, é necessário que eles façam a recontagem e distribuição
dos rendimentos entre os herdeiros dos 17 cabeças velhas. Por serem os carnaubais a
única herança a ser compartilhada, já que a terra em si é objeto de uso comum e que,
legalmente, ela nunca foi partilhada, são os carnaubais que provêm o movimento de
rememoração do passado.
A divisibilidade destas terras de herança e dos lucros dos carnaubais, é algo
realizado simbolicamente, muito embora, como citado acima, para se levantar uma casa
é preciso perguntar aos “conselheiros” da localidade, geralmente os mais velhos ou os
representantes políticos, mas perguntar onde levantar casa esta mais para uma tradição do
que para uma regra ou prescrição obrigatória.
Quando a casa é levantada e a família que ali habita não precisa mais deste
lugar, ela é destruída, vira casa abandonada, ou seja, a questão não é a terra e aquele
espaço em si, mesmo que seja imprescindível uma boa gestão destas terras para que as
áreas de plantio, de dunas e de casas tenham seus respectivos limites.
Mas, me parece, que tal divisão dos carnaubais se mostram como modelos de
organização deles mesmos, assim como acionam sangue bom para identificar, aproximar
e afastar determinados parentes, a recontagem anual dos rendimentos dos carnaubais traz
à tona quem está na família e quem não está, pois lembram-se da finada Victurina e do
Finado Henrique, os responsáveis pela povoação dos vilarejo. Ao passo que os
casamentos são lembrados, as intrigas do passado também ressurgem e as relações do
futuro vão ganhando novos contornos.

26
Esses dois pontos, a divisibilidade virtual da terra e a distribuição dos
rendimentos dos carnaubais andam pelo mesmo caminho quando entendido a partir das
concepções locais de constituir família. Porque família é aquele que casa com primo,
mantém sangue bom dentro de casa, mas família também é aquela que se tem
consideração, é pegada para ser criada, criar é começar alguém do zero, é iniciar algo do
seu modelo.
O cálculo de herança e os enlaces matrimoniais são, na minha hipótese, o que
têm provido o “modelo de continuidade” daquilo iniciado em 1870 com Alexandre
Ferreira Veras. A família, para além dos limites do doméstico, alcança um significado
mais amplo, pois família se faz com casamento, e o intercurso sexual (SCHNEIDER,
2016) é uma das chaves para entender isso. Mas ser sangue bom não é a única
composição, saber da herança, participar dela, sendo descendente dos cabeças velhas.
Para isso tem que continuar casando dentro da família.
Por fim, o meu debruçamento em temas tão caros à antropologia tais como
parentesco e política distributiva da herança são antes formas de tornar inteligível estas
práticas em seu micro contexto, do que pretender definir este grupo estudado como tendo,
por limites, estas relações de parentesco. Percebo que um olhar analítico e minucioso das
relações entre as pessoas se faz preeminente.
Vale lembrar que o olhar microscópico de que aqui faço uso está mais para
uma escolha consciente, de um lugar de análise, do que para a percepção desta política
como parte de uma microssociedade. Já alertou Villela que,

À microscopia não corresponde um objeto pequeno, mas antes uma


posição, um certo ângulo de visão. Posicionar-se entre as moléculas e
não nas macroestruturas sociais, verificar a interação entre as duas,
retirar estas primeiras para ver as relações de forças existentes sob elas
que as compõem (2004, p. 26).

O ângulo microscópico me situa no micro, permitindo dialogar com o macro


e mostrar que ambas as faces são lados de um mesmo processo, diferindo, unicamente,
por seu ponto de análise.
Mais uma vez reafirmo que estas pessoas não estão isoladas e excluídas dos
fluxos das sociedades encontradas em um mundo globalizado. Pelo contrário, estão, neste
momento, sendo atravessados por investimentos das esferas municipais, estaduais,
federais e internacionais visando a combinação das belezas paisagísticas dessa localidade

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como forma de incrementação da economia local através do turismo. O turismo 15 é a
grande aposta para a internacionalização desta região, buscando seguir os passos da praia
de Jericoacoara, distanciada a 120 km de Barroquinha e a 50 km do Delta do Parnaíba.
Como em outros lugares, tudo acontece no Venâncio, a pessoas casam,
compram eletrodomésticos e carros, utilizam as redes sociais e consomem produtos da
moda: roupas, música e comportamentos. Longe de querer reificar a imagem deste local
como um paraíso perdido, de práticas de casamentos que remontam a um período
histórico do passado, minha proposta, aqui, se mostra como parte de um projeto ainda
maior, que é entender formas tão particulares das relações entre família, ocupação de terra
e distribuição de herança, em meio às mudanças de um mundo globalizado transnacional,
que, a todo instante, querem tirar o seu quinhão de terras ainda inexploradas.

6. Referências Bibliográficas

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15
O Rota das Emoções é um roteiro turístico que teve sua origem no ano de 2007 (a respeito vide Rodrigues
e Santos, 2012, p.68), quando da assinatura de um convênio pelos estados do Ceará, Piauí e Maranhão, com
apoio do Ministério do Turismo (MTur). O financiamento é com recursos da Cooperação Andina de
Fomento (CAF) e Banco Interamericano de desenvolvimento (BID), em conjunto com Banco do Nordeste
(BNB) e apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e Secretarias de
Turismo dos estados envolvidos, visando a implementação de um roteiro turístico que inclui os municípios
de de Jijoca de Jericoacoara, Camocim, Chaval, Cruz e Barroquinha, no Ceará; as cidades de Ilha Grande,
Parnaíba, Luis Correa e Cajueiro da Praia, no Piauí; e as cidades de Barreirinhas, Paulino Neves, Tutóia,
Santo Amaro e Araioses, no Maranhão, considerados de grande potencial turístico.

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Anexos

Anexo 1 - localização geográfica de Barroquinha

Anexo 2 - localização geográfica do vilarejo do Venâncio – Imagem Google Maps.

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