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Mímesis de si mesmos: a construção da


autorrepresentação imagética dos Paresi

Lorena França Reis e Silva


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

doi 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p29-46 Introdução

resumo Este artigo traz reflexões sobre a míme- Este artigo traz reflexões parciais de mi-
sis empreendida nas mise-en-scènes fotográficas dos nha etnografia de mestrado sobre o processo
Paresi (grupo indígena Aruak), em franco diálogo de construção das autorrepresentações ima-
com as primeiras imagens feitas sobre eles no início géticas do grupo indígena Paresi (Aruak),
do século XX, e na mise-en-scène performatizada do levando em conta noções próprias da sociabi-
concurso de beleza Miss Paresi Haloti, ocorrido em lidade do grupo. Partindo do contexto inicial
2012. Para cada contexto, eles escolhem quais os de participação num projeto de documenta-
sinais diacríticos mais adequados para conformar a ção fílmica do Museu do Índio – o Programa
relação que estabelecem com os seus outros. de Documentação de Culturas Indígenas
palavras-chave Mímesis; Autorrepresentação; (Prodocult)1 –, que demarcou minha entrada
Imagem; Paresi; Comissão Rondon. em campo, procurei refletir sobre o sentido de
engajamento do grupo na produção de ima-
Mimesis of oneself: the construction of Paresi self- gens sobre sua história e cultura.
representation A atuação do Prodocult entre os Paresi, que
se dá exclusivamente na Terra Indígena Rio
abstract This article reflects on the mimesis stated Formoso (Mato Grosso)2, já vem sendo esta-
through the Paresi (Aruak indigenous group) photo- belecida há alguns anos, passando pela orga-
graphic mise-en-scènes in dialogue both with the first nização do acervo existente sobre o grupo até
images of them produced about themselves in the be- o desenvolvimento de projetos de capacitação
ginning of the XX century, and through the performed para que os próprios membros dessa etnia pro-
mise-en-scènes in the Miss Paresi Haloti beauty contest, duzam suas fontes atuais de documentação.
occured in 2012. For each context, they choose which No início de 2011, dois indígenas – Joscélio e
diacritics signals are more appropriate to conform the Lucindo ­– ­terminaram a realização de um cur-
relationship established with their Others. ta-metragem sobre a cestaria tradicional Paresi
keywords Mimesis; Self-representation; Image; tohidi (filme homônimo), e deram continui-
Paresi; Rondon Committee. dade à etapa seguinte do Prodocult, iniciada
quando fui inserida como coordenadora. O re-
sultado final dessa fase tornou-se um filme com
Mímesis não significa a duplicação da realidade; duração de 32 minutos, intitulado Apareci –
mímesis não é uma cópia: mímesis é poiesis, isto é, A história dos Paresi-Haliti, cujo processo de
construção, criação. desenvolvimento foi minuciosamente aborda-
Paul Ricouer do em minha dissertação.

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Assim, iniciei a pesquisa orientada pelas ponham em cena? Como é que esses povos ajus-
questões – onde se localizaria a origem do de- tam contas com os conceitos metropolitanos, em
sejo de visibilidade que o grupo manifestava particular com as percepções metropolitanas de
expressamente?” e “por que participar de um conhecimento e cultura? (CUNHA, 2009, p. 355)
projeto de autodocumentação?”. Assim, depois
que as questões gerais do objetivo da pesquisa Sem a pretensão de responder detidamen-
estavam delineadas de acordo com meu interes- te esse ajuste de contas, os quadros analíticos
se antropológico, pus-me a relacioná-lo com as que se seguem sobre a elaboração da autorre-
que emergiam nas experiências e discursos de presentação visual e performática desse grupo
meus interlocutores. A pesquisa etnográfica e apontam para a sustentação de uma face volta-
bibliográfica apontou que a história do início da para as relações com os brancos e uma face
do contato dos Paresi com os brancos, por meio para a reinvenção de si mesmos. Dentre os va-
da Comissão Rondon, no início do século XX, riados contextos em que tal elaboração ocorre,
tem reverberações na memória atual dessa etnia elegi, para fim de análise desse artigo, as mise-
e no modo como produzem sua autoimagem. -en-scènes fotográficas dos Paresi, em franco
Concordando com Dominique Gallois (2002, diálogo com as primeiras imagens feitas sobre
p. 206), “neste contexto, não cabe ao antropólo- eles no início do século XX, e a mise-en-scène
go ‘descrever’, ‘traduzir’ ou ‘interpretar’ a cultura performatizada3 do concurso de beleza Miss
indígena, mas compreendê-la a partir das reivin- Paresi, ocorrido em 2012. Para cada contexto,
dicações e das alternativas colocadas por estas como veremos, eles escolhem quais os sinais
sociedades para a construção do próprio futuro”. diacríticos mais adequados para conformar a
Para se pensar essas fronteiras de identidade relação que estabelecem com os seus outros.
e alteridade continuamente negociadas, a di-
ferenciação semântica que Manuela Carneiro “No tempo de Marechal Rondon”: a
da Cunha (2009) faz entre cultura e “cultura” história narrada para a câmera
foi bastante útil para compreender o conceito
nativo de cultura e observar etnograficamen- Tão logo iniciei minha estadia em campo,
te como isso se tornou uma moeda de troca. em fevereiro e março de 2012, os relatos sobre o
Analogamente, é o que se verá, neste artigo, tempo de Marechal Rondon se destacaram entre
que ocorre com o uso da palavra tradicional: as narrativas orais dos mais velhos e simultanea-
quando a uso sem aspas, refiro-me ao sentido mente no desejo dos pesquisadores indígenas de
de um costume transmitido há várias gerações, transformar esse “tempo” em imagem. Quando
por vezes, baseado em ensinamentos míticos; soube que eu estava na aldeia Rio Formoso para
ao passo que as aspas deslocam o sentido para fazer um trabalho com vídeo, João Titi, um
a noção empregada pelo discurso dos Paresi. senhor Paresi que já mantinha contato com o
Ademais, procurei levar adiante as indagações antropólogo Marco Antonio Gonçalves e co-
postas por Carneiro da Cunha em contextos de nhecia, portanto, esse tipo de pesquisa, pediu-
produção visual dos Paresi: -me que fosse visitá-lo em sua aldeia, com a
câmera. Diante da demanda posta, as primeiras
Como é que povos indígenas reconciliam prá- tomadas para a realização do filme, feitas por
tica e intelectualmente sua própria imaginação Joscélio e Lucindo, sob a supervisão de um
com a imaginação limitada que se espera que eles instrutor (convidado para ministrar oficina de

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audiovisual no âmbito do projeto) foram sobre bem mesmo. Hoje nós está muito diferente. Hoje
as narrativas contadas por João Titi. nós está acabado. Naquele tempo de Rondon ti-
Ainda que sua voz tenha sido gravada por nha natureza. Rondon andava no território Paresi
diversas vezes durante minha pesquisa, num de e era tudo alegre, só cheiro de natureza, só cheiro
meus últimos dias de campo, João Titi pediu- de nativo. [...] Meu avô, meu tio andava muito,
-me para ir a sua casa gravá-lo novamente, antes caçava ema, veado, ovo de ema, pássaro. Ovo de
que eu partisse. “As pessoas precisam conhecer a gavião. Nós comia tudo naquele tempo lá. Não
história dos Paresi”, dizia-me em outras palavras. perdia nada! Qualquer filhote de bichinho nós
Enquanto eu e Jeferson (um antropólogo que estava aproveitando e comendo tudo. Naquele
me acompanhava à ocasião) arrumávamos a câ- tempo, eu vivia bem mesmo. Mas depois apare-
mera na entrada da aldeia, João Titi entrou em ceu Marechal Rondon, aí ele deu arma para nós,
sua casa e saiu de lá com uma mochila, flechas deu entidade [identidade]. Nós acostumamos.
e borduna. Os objetos marcaram as diferenças Ele distribuiu arma, facão, roupa, miçanga4.
para as outras gravações: da mochila ele retirou
as tornozeleiras de algodão cru e um carregador Esse trecho da fala do velho paresi indica
de caça (konokwa), e, com o auxílio de sua silen- muitas questões: em primeiro lugar, refere-
ciosa mulher, pacientemente foi se vestindo com -se ao encontro que marcou uma passagem de
os adereços tradicionais. Era preciso contar não modo de vida de seu grupo, o “antes” caracte-
apenas verbalmente, mas junto com o corpo. rizado pela diversidade de alimentos e melhores
Falar do tempo de Marechal Rondon, mas com a condições materiais/naturais para a reprodução
indumentária o mais próximo possível dos Paresi da cultura paresi, contrastado com o “depois”,
“verdadeiros”, “tradicionais”. marcado pela destruição de “natureza” e “gente”.
O figurino pronto, a câmera ligada, João Aceitar os presentes (arma, facão, miçanga) tam-
Titi começou: bém implicou enfrentar perdas de suas terras,
seus animais de caça e de pesca, e o início do que
No tempo do Marechal Rondon, o pessoal vivia viria a ser uma contínua e intensa adaptação de
bem. Hoje está tudo destruído. Por isso que eu suas práticas sociais. Em segundo lugar, essa pas-
vou contar como que era naquela época. Vivia sagem evidencia que há na figura de Marechal

João Titi e Maria Mulata se preparam com adereços “tradicionais” para iniciar a gravação. Fotos: Lorena França, 2012.

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Rondon a personificação do momento em que Rondon, e fotografias de uma viagem ao Rio de


passaram a enfrentar essas mudanças. Janeiro, em companhia de sua sobrinha, no iní-
Na sequência, nosso narrador continua: cio dos anos 2000, quando conheceram o acer-
“Eu conheço muito natureza, eu sou caçador, vo do Museu do Índio sobre os objetos de sua
muita caça aqui, muito peixe, campo”. A fra- etnia. Com a câmera de filmar desligada, João
se implica uma identidade: “eu sou” ou “nós, Titi mostrou para nós as fotos de sua viagem e o
Paresi, somos caçadores”. A atividade de caça livro com imagens dos Paresi à época de Rondon
é um dos aspectos que os definem como gente que foi copiado nessa ocasião, guardados como
(haliti)5 e, uma vez que ela está em iminente relíquias. Rever essas imagens “históricas”, con-
extinção, a situação do grupo fica ameaçada: sideradas provas incontestes de sua memória,
intensificou o processo de rememoração, cuja tô-
Tá filmando a menina do Rio de Janeiro. Eu estou nica era baseada em algo como: “nós, Paresi, éra-
contando toda a verdade que nós passamos. Isso mos assim, tal qual mostra a foto dessa mulher”.
vai acontecer, Brasil inteiro, vai prejudicar tudo.
Não vai ter planta, vai secar tudo, árvore, capim
nativo já acabou. Só chão mesmo. Hoje você estar
gravando é muito importante para nós. Isso vai
espalhar para todo mundo conhecer minha recla-
mação. Isso é muito importante para mim.

A continuidade do argumento de João Titi


traz ao menos duas questões que gostaria de des-
tacar: 1) as ações de devastação da biodiversidade
têm consequências impactantes que vão além dos
João Titi mostra para o pesquisador uma foto dos Paresi no tempo
limites do grupo: segundo esse prenúncio, nós,
de Marechal Rondon.
brancos, também sofreremos quando todas as
Foto: Lorena França, 2012.
plantas e rios se acabarem, restando apenas o chão
seco. João Titi pede que a “verdade” seja dita sobre
o passado e que o futuro seja compreendido a par- A imagem acima traz uma mise-en-abyme:
tir do entendimento desse presente/passado; 2) a a imagem dentro de outra imagem, enquadra-
reclamação dele irá ecoar em espaços imponderá- mento sobre enquadramento. Olhar devolvido
veis a partir da gravação de sua voz. “É importante” ao olhar. João Titi observa aquela mulher paresi
para ele próprio e para os Paresi a divulgação desse de 90 anos atrás, que restitui o olhar para a câ-
discurso. O poder da gravação – do audivisual – mera e para o fotógrafo com o qual tinha um
é evocado, por João Titi, para testemunhar sua encontro, e por meio da reprodução da mate-
fala. Como colocaria Jean-Louis Comolli (2008, rialidade da foto, indiretamente devolve o olhar
p. 144), é a “reprodutibilidade do encontro [que] para ele, seu descendente, como também para
nos garante a realidade. O registro é a sua incan- o jovem que acaba de entrar em contato com
sável testemunha”. o grupo. E, ainda, em última instância, retorna
Da mochila preta de João Titi também saiu, obliquamente o olhar para essa câmera (operada
além dos adereços usados, um livro fotocopia- por mim) que faz o último enquadramento. A
do, com muitas imagens dos Paresi na época de dimensão reflexiva do olhar, diz Comolli (2008,

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p. 82) é o “retorno sobre si mesmo, reflexão, e de fácil trato, em especial contraposição aos
repetição. Revisão”. É sobre o movimento exis- seus vizinhos Nambikwara, que na resistência à
tente entre “repetir” e “revisar”, produzindo a di- entrada da Comissão Rondon realizavam em-
ferença, que esse artigo quer versar. Mas, antes, boscadas para os soldados. Segundo a pesqui-
façamos um recuo histórico para compreender- sa documental realizada por Denise Portugal
mos melhor a relação dos Paresi com o passado. Lasmar (2011), o interesse dos relatórios da
Comissão consistia, então, em enfatizar o pa-
O encontro com a Comissão Rondon pel civilizador do exército e a capacidade dos
índios de absorver os conhecimentos repassa-
Segundo os registros históricos oficiais, os dos ou de desempenhar trabalhos que davam
subgrupos Paresi entraram em contato com os “produtividade” à região, como a agricultura e
colonizadores do Mato Grosso, pela primeira a empresa dos postos telegráficos. A conversão
vez, em meados do século XVIII, e posterior- dos índios em trabalhadores nacionais signifi-
mente envolveram-se em ciclos econômicos de cava ao menos duas vantagens para o projeto
extração da poaia e da borracha já no século positivista encabeçado por Rondon: 1) facilita-
XIX. No entanto, o marco histórico de contato va a governança após a “povoação” e a ocupa-
considerado por eles se deu no encontro com a ção ordenada dos espaços considerados vazios;
Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas e 2) provava a hipótese de que esses povos não
do Mato Grosso ao Amazonas, criada sob esse eram “bárbaros”, mas, sim, “civilizáveis”.
título em 1907, e comandada por Marechal Rondon encontrou os Paresi em 1907,
Cândido Rondon6. Os objetivos da Comissão quando alguns grupos viviam próximo a re-
consistiam, em primeiro plano, na estratégia giões sertanejas, “engajados na economia re-
militar de ocupação do território com a instala- gional como extratores de produtos florestais
ção de postos telegráficos, em regiões ermas do e sujeitos à maior exploração” (BARBIO,
território brasileiro. No entanto, com a expedi- 2005, p. 44), e outros grupos habitavam áreas
ção cumpriram-se também mais duas funções: mais reclusas e, portanto, mais bem protegi-
“a socioeconômica, favorecendo a expansão do das da devastação. De acordo com a política
capitalismo e incorporação socioeconômica da de atuação, Rondon convenceu-os a mudar
região Centro-Oeste ao resto do país; e a cien- suas aldeias para locais próximo aos postos
tífica, através do levantamento da flora, fauna, telegráficos, com a promessa de trabalho re-
topografia, hidrografia, culturas e variedade munerado. Em 1911, a Comissão fundou
etnográfica de uma região ainda desconheci- duas escolas na região territorial dos Paresi,
da” (LASMAR, 2011, p. 35) – desconhecida, uma no Posto de Utiariti e outra em Ponte de
cabe acrescentar, ao Estado nacional brasileiro. Pedra, nas quais se ensinavam a língua portu-
A penetração no sertão levou os soldados da guesa aos alunos de diferentes etnias – sendo
Comissão a adentrar, inevitavelmente, nos ter- proibida a comunicação na língua materna –
ritórios indígenas e a provocar o “contato” en- e as instruções elementares de manuseio aos
tre as nações indígenas e a sociedade nacional. Paresi, que eram os responsáveis pela manu-
Entre os primeiros grupos nativos contata- tenção das linhas telegráficas daquela região
dos pelo Marechal Rondon e seus expedicio- (LASMAR, 2011, p. 49). A mudança social,
nários estavam os Bororo, os Nambikwara e os territorial e econômica da vida dos Paresi
Paresi, sendo estes últimos considerados dóceis foi de tal magnitude após o encontro com a

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Comissão que fez o contato com os colonos foram os indígenas que orientaram a migra-
dos séculos anteriores ficar amenizado e dis- ção e a exploração econômica da chapada dos
tantanciado na memória do grupo. Paresi”. Além de guias, muitos deles foram ope-
No entanto, é interessante observar que radores nos postos telegráficos – e não apenas
o discurso dos Paresi sobre o contato com a vigias, posto de trabalho geralmente destinado
Comissão Rondon sofreu oscilações ao longo aos grupos nativos –, o que demonstra o domí-
do tempo. Segundo afirma Barbio (2005, p. nio dos conhecimentos técnicos ensinados nas
48), “num primeiro momento, Rondon não escolas fundadas pela Comissão. Nesse contex-
gozava de prestígio entre os Paresi”, que o consi- to, encontramos um reforço na distinção entre
deravam responsável pela abertura do território índios “bravos” e “mansos”, que perpassa todo
às explorações subsequentes. Embora tenham o discurso sobre a relação brancos/índios. Com
sido proibidos de falar a língua materna nas es- efeito, “esta nítida diferença imposta pelo dis-
colas de formação, forçados a adotar práticas curso paresi quer mostrar que o grupo teve ini-
que não as suas e a modificar seus costumes ao ciativa, participou de tomadas de decisões, se
longo da convivência com a Comissão, hoje igualando aos militares no papel de realizadores
os Paresi se referem positivamente a Rondon de um importante feito para a história do país”
como um grande homem e caracterizam o (BARBIO, 2005, p. 91). O contato privilegia-
“tempo de Marechal Rondon” – predecessor do torna-os mais importantes e, de certo modo,
até a sua chegada – como um tempo glorioso. agentes ativos da história oficial.
Como afirma Sylvia Caiuby Novaes (1993, A memória recente do grupo é marcada pe-
p. 22), se “a realidade se apresenta como uma los conflitos travados com os fazendeiros que
imagem caleidoscópica de objetos e seres vivos cercaram suas terras, os quais, contrastados com
em condições dinâmicas”, ela é percebida histori- um imaginário de boas realizações de Rondon,
camente pelos agentes que dela participam e tem ajudam a estabelecer uma contraposição entre
variações de acordo com a combinação dos ele- dois tipos de relação com os brancos, uma favo-
mentos que compõem um contexto. Assim, para rável à proteção e emancipação dos indígenas e
compreender essa mudança no discurso sobre o outra ligada exclusivamente à exploração.
Marechal Rondon é preciso trazer algumas ques- Inegavelmente, Rondon conseguiu consoli-
tões localizadas tanto na estrutura de organização dar um elo entre os subgrupos Paresi e o Estado
da sociedade paresi quanto na história de contato brasileiro. Se, por um lado, representava os ideais
com os brancos ao longo do século XX. positivistas da República Velha, pautados numa
Os Paresi se viam, ao longo da convivência proposta de integração nacional, por outro, ob-
com a Comissão, como parceiros do Marechal teve o respeito e a confiança dos indígenas ao
e se distinguiam dos demais grupos por terem procurar aprender suas línguas, ajudar na demar-
desempenhado funções que auxiliaram sua atua- cação de terras e valorizar o estudo de seus aspec-
ção. Eles foram os guias das expedições militares tos etnológicos. Até hoje se pode perceber entre
na mata do cerrado na região, tal como confir- os Paresi uma valorização de signos nacionais – a
ma o líder indígena Daniel Cabixi, na etnogra- bandeira e o hino – como uma consequência da
fia de Luciana Barbio (2005, p. 91): “Os Paresi influência do poder militar de Rondon. Eles são
foram os grandes guias das grandes expedições capazes de identificar Rondon a qualquer estátua
das linhas telegráficas do Marechal Rondon, que vejam: dois indígenas, quando estiveram no
dos poaieiros, dos seringueiros; os Paresi sempre Rio de Janeiro em companhia de Marco Antonio

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Gonçalves (2010, p. 102), pensaram que tudo de “Rondon distribui brindes para os índios
mais importante na cidade fora construído por Paresi, 1913. Álbum de 1922” é a inscrição da
Rondon e todas as estátuas fossem suas represen- legenda dessa foto publicada pela primeia vez no
tações. Pude presenciar algo semelhante, quan- álbum de três volumes intitulado Índios do Brasil8.
do, em visita ao parque Pão de Açúcar do Rio A cena, composta por doze pessoas9 – dois oficiais
de Janeiro, Lucindo perguntou-me se a estátua da Comissão e dez índios Paresi – é marcada por
encontrada ali era a representação do Marechal. um cruzamento difratado dos olhares entre sorri-
sos e semblantes interrogativos das pessoas que ali
Imagem inaugural estão. O instante fotográfico captou o momento
de entrega de um conjunto de miçangas nas mãos
As primeiras fotografias dos Paresi de que de uma índia paresi (que está dentro do semicírcu-
se tem registro datam exatamente da época de lo), enquanto a maioria das pessoas concentra-se
atuação da Comissão Rondon, dentro da qual no ato de presentear, que é quase o centro geográ-
havia um setor de documentação fotográfica fico da foto e certamente o seu centro simbólico.
e fílmica, encabeçado por mais de vinte anos Uma mulher e um homem paresi, que estão mais
pelo Major Luiz Thomaz Reis, para registrar próximos do gesto em questão, observam-no
os povos recentemente contatados pelo Estado com um sorriso, e um casal à esquerda do qua-
brasileiro7. A imagem seguinte remete jus- dro olha atento e instigado, com as cabeças tom-
tamente ao contexto que João Titi se referia badas para enxergar melhor o objeto repassado.
nas gravações: a entrega das miçangas aos in- Na extremidade oposta, uma mulher de vestido
dígenas. Ela tornou-se uma das imagens mais dá um largo sorriso para a câmera, ligeiramente
conhecidas da história documentada sobre a ofuscado por um conjunto de flechas (seguradas
Comissão, recebeu lugar de destaque no livro por alguém totalmente fora de campo) que se so-
sobre o seu acervo imagético, organizado por brepõe no primeiro plano da foto. Embora mal
Lasmar (2011) e certamente já foi vista por vá- enquadrada, essa Paresi é a única que demonstra
rias gerações de Paresi. relativa intimidade com o ato fotográfico e parece
se importar mais com ele do que com a dádiva
em si. A menina mais nova da cena, do lado di-
reito do quadro, está entre Rondon e outro ofi-
cial da Comissão, que segura suavemente, com
as duas mãos, a mão e o antebraço da menina,
demonstrando certo “acolhimento” das crianças
indígenas. O rosto dela está quase inteiramente
encoberto pelos cabelos lisos e voltado com apa-
rente curiosidade para as miçangas presenteadas.
Em contraponto, três meninas na parte infe-
rior da foto desviam os olhares do foco principal.
Uma olha atentamente para um ponto fora de
O encontro com a Comissão Rondon, a partir do presenteamento
campo. Para um terceiro oficial da Comissão, tal-
de miçangas.
vez? As outras devolvem o olhar diretamente para
Fonte: acervo Comissão Rondon/Museu do Índio. Foto: Major Luiz
o fotógrafo e a câmera. Com André Brasil (2013,
Thomaz Reis. 1913.
p. 2), diríamos que esse é um exemplo em que o

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antecampo aparece não pela aparição do diretor fotografia permite vislumbrar futuros que não
em cena, mas pelo modo “como o sujeito filmado se atualizaram.
devolve o olhar à câmera ou se dirige à equipe Foram a partir do conjunto de fotografias
tornando presente, quase tangível, aquilo que feitas nesse contexto que os subgrupos Wáimare,
não é concretamente tangível”. O duro olhar da Kaziniti, Kozárini, Warére e Káwali engendraram
menina que está sentada mais abaixo na posição a noção do que é “ser índio” perante os não-índios
do enquadramento sugere desconforto em ser fo- e do que é pertencer a um grupo de identidade
tografada. A outra mantém um semblante ques- mais abrangente: Haliti. Esse termo de autode-
tionador, como quem não compreende ou não nominação significa, numa acepção mais ampla,
aceita a circunstância de captura da sua imagem. “gente”, relacionado ao gênero humano, e, numa
Ao descrever essa diversidade de direciona- acepção mais inclusiva, também quer dizer “povo”,
mento dos olhares, os sorrisos ou suas ausências, para expressar a ideia de unidade entre todos os
conseguimos perceber a complexidade desse mo- subgrupos da etnia11. O tom idílico atribuído à
mento de encontro. Enquanto alguns estranham descrição do “tempo de Marechal Rondon” está
o regalo de miçangas, outros estranham o aparato relacionado diretamente à “baixa visibilidade” que
fotográfico. E, ainda, outros indígenas acolhem os Paresi consideram ter no cenário atual. Nesse
a situação, enquanto os oficiais da Comissão es- sentido, o discurso em tom “ressentido” se conecta
tão seguros de seu papel social ali desempenhado. com a projeção que fazem sobre o passado. A nos-
Sabemos que por causa das limitações técnicas da talgia, presente nos discursos paresi, existe sobre
fotografia do início do século XX, demandava-se um “passado” que só existe no presente. Dito de
um tempo longo de exposição para que a imagem outra maneira, não que seja um passado imagina-
se formasse no negativo de vidro e, portanto, as do, mas é certamente recriado.
cenas fotografadas eram planejadas e montadas A chegada da Comissão instaurou, a um
com antecedência, diminuindo o caráter de es- só tempo, o encontro deles com o Outro (ra-
pontaneidade conseguido pela tecnologia subse- dicalmente distinto) e a inauguração de uma
quente. No entanto, a encenação das fotografias autoimagem paresi. Instaurou-se, como diria
não impedia que certos semblantes resistentes à Comolli (2008, p. 144), o “grau zero e a cena
captura imagética se inscrevessem, o que pode ser primitiva”, o encontro filmado reproduzido
observado em diversas imagens com grupos indí- mecanicamente “à distância no espaço e no
genas distintos no acervo da Comissão Rondon. tempo”. Assim, esse momento inaugural da
Essa imagem especificamente foi envia- relação com o grande Outro dos Paresi assu-
da como presente ao “Exmo. Sr. General de miu marcas densas na memória coletiva do
Divisão Fernando Setembrino de Carvalho D. grupo, cujas nuances foram sendo recuperadas
Ministro d’Estado dos Negocios de Guerra”10 e atualizadas por meio da narração oral dos
como forma de comprovação da tarefa de “pa- mais velhos, direcionada aos mais jovens. A
cificar” os indígenas; de vencer essa “guerra”. memória, segundo Ecléa Bosi (2003, p. 36),
A partir desse momento, bem sabemos, ain- pode ser entendida como uma força subjetiva
da que a resistência tenha encontrado outras duplamente ativa e latente: por meio dela “o
formas de expressão, os Paresi passaram, gra- passado não só vem à tona das águas presentes,
dativamente, a cobrir seus corpos e a aceitar misturado com as percepções imediatas, como
presentes diversos vindos dos brancos. Mas também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocu-
o congelamento do tempo realizado pela pando o espaço todo da consciência”. É dessa

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maneira que o momento histórico de chegada


da Comissão Rondon ganha uma expansão no
discurso memorial e os Paresi precisam reto-
mar esse momento imagético inaugural para
reinventá-lo.

Mimetizações fotográficas

Desde que se intensificaram as pesquisas


acadêmicas com essa etnia, da década de 1980
para cá, seus membros habituaram-se a ver
imagens de todos esses tipos, com gradativa Angelina carregando criança na zamata.
intensidade, e assim formaram um olhar sobre Foto: Marco Antônio Gonçalves, 2001.
tais trepresentações. O conjunto de fotos que se
segue foi tirado em 2001 por Marco Antonio Segundo o relato do fotógrafo, as pessoas
Gonçalves e Els Lagrou em visita à aldeia Rio em cena prepararam-se, retirando as roupas do
Formoso12. cotidiano e vestindo a indumentária dos índios
antigos para (re)encenar a si mesmos no tempo
de Marechal Rondon. Por “(re)encenar” entendo
as encenações provocadas ou performadas pelo e
para o artefato imagético (fotográfico ou fílmico),
“uma vez que a própria tradição constitui-se como
um conjunto de encenações em constante reno-
vação” (CÉSAR, 2012, p. 89). A presença de uma
câmera de registro e de um pesquisador branco,
interessado na história do grupo, provoca o início
da narração como se o ato fotográfico os reportas-
se àquele momento fixado pela memória coletiva.
No entanto, a narração de palavras não lhes basta.
É preciso contar (duplamente, necessitar e narrar)
com o corpo, jogar com ele e por a mise-en-scène
no quadro. Como afirmou Gonçalves (2008, p.
71), a respeito de painéis pintados que aparecem
num filme de Jean Rouch, “a imitação dos ce-
nários enfatiza simultaneamente os sentidos de
cópia e realidade”. Nesse contexto, os artefatos
usados especificamente para a câmera criam certa
artificialidade para mimetizar e recriar o passado.
Os sujeitos fotografados e os sujeitos que operam
a câmera sabem que os primeiros não vivem assim
Jocélia carregando koho na cabeça. cotidianamente, mas a (re)encenação transforma
Foto: Marco Antônio Gonçalves, 2001. a memória em realidade materializada.

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38 | Lorena França Reis e Silva

A terceira fotografia trata-se de uma bela


pose para conter em um só quadro toda a di-
versidade de elementos característicos da cul-
tura “tradicional” paresi, usados por homens e
mulheres, velhos, adultos e crianças. O homem
que está ligeiramente à frente dos demais possui
pinturas de jenipapo nos braços, no tronco e no
rosto. Ele porta o maior cocar, com penas de co-
res contrastantes, uma saia masculina também
(Re)encenações dos Paresi “tradicionais” – Foto: Marco Antonio de penas de animal, e carrega no braço direito
Gonçalves, 2001. um arco com flechas. Giovani, na plenitude da
vida adulta, simboliza a força masculina do gru-
Na primeira foto, Joscélia, seminua, por- po, os caçadores de outrora13. João Titi, ao seu
tando apenas a xiriba e o colar de sementes no lado esquerdo, carrega, entre o braço e a cintura,
pescoço, apoia o koho sob a cabeça em frente à um cesto platiforme de desenhos não figurativos
hati (casa) para (re)encenar o tempo em que as (tohidi ou abali), um dos principais elementos
mulheres usavam o cesto trançado como princi- da cultura material paresi14. Maria Mulata, ao
pal cargueiro da mandioca, sem ajuda dos usuais seu lado, está com um vestido branco longo ao
carrinhos de mão. Seu rosto está pintado com estilo daquelas vestimentas doadas às mulheres
pequenas manchas de urucum, que são as pintu- durante os primeiros contatos, caracterizando o
ras corporais usadas ancestralmente pelo grupo processo de colonização e cristianização ao qual
para proteger o espírito da pessoa – essas “tra- foram submetidos. E Angelina, em contraste,
zem o espírito para a terra” quando a pessoa está posa com a xiriba e os seios à mostra, e também
doente. As pinturas no rosto de Jocélia indicam com um abali às mãos.
uma reencenação da saída da menina-moça após Tal como afirmou Amaranta César (2012)
a reclusão (hitxikwatidyo) ou de uma menina acerca de três filmes construídos sobre explí-
que esteve doente por longo período. citas encenações dos sujeitos filmados, a (re)
Na imagem seguinte, Angelina carrega na encenação da tradição pode ser vista “como
zamata (tipoia), sua sobrinha que tem um meio de acesso à memória e instrumento que
colar de miçanga cruzado em “x” no dorso, promove sua transmissão” (p. 89), o que se
exatamente como uma imagem do acervo da torna um elemento-chave para a abordagem
Comissão, utilizada no filme Apareci e analisa- documental. De forma análoga, a fotografia
da em minha dissertação (Reis e Silva, 2013). funciona como um dispositivo que aciona o
Franciane, na tenra idade, aprende a se para- desejo da (re)encenação de um passado co-
mentar com adereços – os demais estão visíveis mum longínquo, mas sempre atualizado.
na fotografia seguinte: saia e cocar de penas Afinada com a proposta da autora, interes-
de pássaros coloridas – que representariam os sa-me a (re)encenação da tradição “enquanto
traços distintivos da cultura material de seu ação catalisadora de falas e performances que,
grupo. As duas imagens dialogam diretamen- na sua capacidade de religar os homens e mu-
te com o conjunto de imagens das mulheres lheres ao passado, recolocam-nos à disposição
Paresi, quase sempre em frente à hati (casa), do presente, liberando um pensamento sobre
fotografadas pela Comissão Rondon. a diferença” (p. 91).

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 39

As narrações começam, em geral, por “no (ARISTÓTELES citado por GAGNEBIN,


tempo de Marechal Rondon...”, uma fórmula 1993, p. 70). Gagnebin depreende dessa pas-
oral equivalente ao “era uma vez...”, que atuali- sagem que no pensamento aristotélico a míme-
za uma dimensão do tempo passado no tempo sis caracteriza em particular o conhecimento
presente. Se compreendermos o tempo na chave humano e possui, portanto, características da
deleuziana/bergsoniana, sua definição não se dá ordem do lúdico, do ativo e criativo:
pela sucessão cronológica de passado, presente e
futuro. O passado estaria, nessa concepção, numa Poderíamos dizer, nesse sentido, que o impulso
dimensão distinta e coexistente com o presente, mimético está na raiz do lúdico e do artístico.
de modo que este é o grau mais contraído daque- Ele repousa sobre a faculdade de reconhecer
le. Ou ainda, as dimensões virtuais de passado e semelhanças e de produzi-las na linguagem.
futuro coexistem com o presente e se atualizam A teoria da mímesis induz, portanto, a uma
(não por completo) nos acontecimentos. teoria da metáfora. Podemos avançar mais um
A mimetização de si mesmos, em outro tem- passo no caminho esboçado por Aristóteles e
po, foi a estratégia escolhida pelos Paresi para dizer que conhecimento e semelhança, conhe-
acessar e reinventar a história de contato que cimento e metáfora entretêm ligações estreitas,
viveram com os brancos. A mímesis, na antigui- muitas vezes esquecidas, muitas vezes negadas
dade grega, referia-se à “representação” artística (GAGNEBIN, 1993, p. 71, itálico no original). 
em geral, tendo a música como grande exemplo
da arte que “apresenta” a beleza do mundo; logo, Assim como em Aristóteles, o mimetismo
a sua tradução por “imitação” é bastante restri- é percebido por Walter Benjamin (1994), em
tiva, segundo Jeanne-Marie Gagnebin (1993). seu ensaio “A doutrina das semelhanças”, como
O impulso mimético, para o platonismo, é uma característica do aprendizado (as crian-
desencadeado pela própria beleza do objeto, o ças mimetizam as atividades humanas e não
que se contrapõe à visão moderna que enxerga humanas ao seu redor), do jogo, do prazer de
a arte como uma atividade essencialmente liga- conhecer: “O homem tem a capacidade supre-
da à subjetividade e criatividade de um gênio. ma de produzir semelhanças” (p. 108). Elas se-
Para Platão, a filosofia deve traduzir e reproduzir riam determinantes nas faculdades superiores.
o paradigma ideal, na concepção mimética do No entanto, tais semelhanças, já existentes no
pensamento, em contraposição à atividade mi- mundo, foram se modificando ao longo dos
mética artística ilusória (mythos versus logos). séculos. Suas leis, no conhecimento antigo,
Já em Aristóteles, a mímesis aparece rea- estavam desenvolvidas e guardadas em conhe-
bilitada como “forma humana privilegiada de cimentos mágicos e, portanto, não racionais,
aprendizado”. Ele não pergunta o que deve ser como a astrologia, a adivinhação e as práticas
imitado, mas como se imita. Para o filósofo, a rituais. Nas palavras de Gagbenin (1993, p.
representação da obra artística tem o seu êxi- 80-81), “Benjamin tenta pensar a semelhança
to devido ao desenvolvimento integral da ca- independentemente de uma comparação entre
pacidade mimética (mimeisthai): “O imitar é elementos iguais [...]. A atividade mimética
congênito no homem (e nisto difere dos outros sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se
viventes, pois, de todos, ele é o mais imita- reduz a uma imitação.” Não há necessariamen-
dor, e, por imitação, aprende as primeiras no- te uma semelhança entre a “palavra” e a “coisa”.
ções), e os homens se comprazem no imitado” Para a criança, a convenção de significados da

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palavra não está dada a priori, e por meio do os dois autores concordam que as máquinas de
corpo ela brinca com as sonoridades para des- imagem, produtos da modernidade, por meio
cobrir os significados. de suas possibilidades de ampliação, reprodu-
ção, congelamento ou alteração do tempo – fo-
Do lado da mímesis, no sentido amplo que tografia ou cinema, respectivamente – provêm
Benjamin deu a esse conceito, do lado de uma nova escola para os nossos poderes mimé-
Nietzsche certamente e talvez também de Freud, ticos. O processo desencadeado pela presença
encontramos uma lógica não da identidade, mas de máquinas fotográficas (ou fílmicas) possui
da semelhança, portanto uma concepção nunca uma relação estreita com os modos miméti-
identitária do sujeito e da consciência. [...] A di- cos. Ainda que a capacidade mimética seja um
mensão temporal não consiste tanto na linearida- modo de conhecimento antigo, como indicou
de, mas mais na contiguidade, não num depois Benjamin (1994), “a modernidade provê a cau-
do outro, mas num ao lado do outro. Nessa des- sa, o contexto, o significado e a necessidade de
continuidade fundamental há momentos privile- ressurgência – não a continuidade – da facul-
giados em que ocorrem condensações, reuniões dade mimética” (TAUSSIG, 1993, p. 20)17.
entre dois instantes antes separados que se jun- Em suma, se a mímesis, para além de equivaler
tam para formar uma nova intensidade e, talvez, a copiar e imitar, é da ordem de “explorar dife-
possibilitar a eclosão de um verdadeiro outro renças, ceder-se ao e tornar-se outro” (TAUSSIG,
(GAGNEBIN, 1993, p. 84, itálico no original). 1993, p. xiii), os Paresi mimetizam seus antepassa-
dos tornados outros de si mesmos para trazer todo
A mímesis produziria, assim, na acepção um conjunto de questões passadas – e desatuali-
de Benjamin, não uma cópia conforme, mas zadas – para o presente. As representações mimé-
uma semelhança que produz diferença, e mais: ticas criadas sobre si possuem estreita relação com
é por meio do corpo que a mimetização ganha a representação que se faz do outro que devolve o
seu alcance. Também na esteira benjaminiana, olhar. Como disse Sylvia Caiuby Novaes (1993, p.
Michael Taussig (1993) entende que a faculda- 21), “há, na verdade, uma relação de interdepen-
de mimética aparece como o princípio da antiga dência entre a imagem que se faz de si e a imagem
compulsão das pessoas em se tornar e se compor- que se faz destes vários outros”.
tar como outra coisa. Em suas palavras: “a habili-
dade de imitar, e imitar bem, em outras palavras, Miss Paresi: a mímesis performatizada.
é a capacidade de tornar-se outrem” (p. 19)15. Na
mímesis ou na “magia simpática”, a representa- Em agosto de 2012, os Paresi realizaram
ção assume as características e o poder do objeto na aldeia Rio Formoso o evento Miss Paresi
original e é um meio necessário para “o processo Haloti (“mulher”, na língua haliti), o primeiro
completo de conhecimento” (p. xiii). acontecimento desse tipo no estado do Mato
Taussig (1993, p. 20) cita Susan Buck-Morss Grosso. O concurso de beleza feminina abriu
para quem a “cultura de massa, atualmente, es- a candidatura a meninas de toda a etnia, que
timula e é afirmada duplamente sobre os modos deveriam se apresentar em trajes “tradicionais”
miméticos de percepção, nos quais esponta- e ser julgadas por um júri composto exclusiva-
neidade, animação dos objetos, e a linguagem mente por imoti (“brancos”).
do corpo combinando pensamento com ação, Quando estive na aldeia, em março do
sensualidade com intelecção”16. Nesse sentido, mesmo ano, conversei longamente numa tarde

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 41

com uma mulher paresi que mora na cidade com camisetas uniformes azuis, mas na passarela
de Tangará da Serra, filha de Justino (chefe do desfilaram sem blusa com as mechas dos cabe-
Formoso), e vai com certa frequência visitar os los e colares a cobrir os seios. Os adereços para
parentes na aldeia. O evento Miss Paresi foi enfeites foram escolhidos, dessa forma, de acor-
organizado por quatro jovens da etnia, mas do com os critérios estéticos “tradicionais” dos
Jaqueline Oloizomaierocê parecia se destacar Paresi, mas as posturas corporais das candidatas
no empenho da produção e foi ela quem fez (cabeça levemante inclinada para o lado e mão
questão de contar-me os objetivos e os deta- na cintura) para as fotografias são espelhadas
lhes da organização: “Você vê imagem de Paresi nas poses e trejeitos de modelos de moda e dos
nesses eventos de Jogos Indígenas? Vê imagem demais concursos de beleza feminina, nos quais
de Paresi na televisão quando fala de índio? se costuma usar luzes de holofotes e flashes, com
Só vê xinguano, Kayapó etc. Cadê os Paresi? muitos disparos fotográficos, para caracterizar o
Também queremos nos mostrar, mostrar as “glamur” da ocasião de desfile.
nossas belezas, o que a gente tem de bom para Jaqueline, em nossa conversa prévia ao
que todo mundo conheça os Paresi.” evento, disse que as candidatas se apresen-
Essas foram as primeiras questões apresen- tariam ao “natural”. Como se pode notar, o
tadas por minha interlocutora. Salta aos olhos termo natural não significa, como se poderia
um desejo expresso por visibilidade que se dá supor, sem adereços decorativos ou influências
em forma de competição com as demais etnias estéticas externas. Os corpos das meninas estão
indígenas por espaço de representatividade em longe de serem expostos “tal como vieram ao
canais midiáticos, de amplitude regional ou mundo”, o que as ligaria, em tese, ao campo
nacional. Jaqueline, em entrevista à rede de semântico “natureza”. Ao contrário, apresen-
televisão, também apresentou os motivos de tam-se, especialmente nessa ocasião, como re-
realização do evento: “Comecei a ver que tem sultado de uma fabricação social intensa.
tantas meninas bonitas. Por que não a gente mos- A opção enfática pelo desenho de pinturas
trar a beleza e a feminilidade do povo paresi?”. corporais, com motivos de pele de peixe e de co-
Nas imagens do evento18, pode-se observar os bra nas candidatas é um caso emblemático de uso
trajes das meninas vencedoras e todas as candi- estratégico da autoimagem Paresi. Durante meu
datas do desfile: usavam xiriba, pinturas corpo- trabalho em campo, nas aldeias, não vi ser execu-
rais com desenhos geométricos nas pernas e nos tada e nem mencionada na bibliografia pesquisa-
braços – algumas com as mencionadas pintas de da a prática da pintura corporal em momentos
urucum no rosto –, colares de miçangas, e tiaras, rituais ou cotidianos. No entanto, durante uma
braceletes, joelheiras com penachos e brincos – rápida visita aos Paresi com a dissertação impres-
todos confeccionados com penas coloridas, que sa, a observação das fotos do evento de Miss Paresi
compõem o artesanato feminino haloti. Há uma propiciou comentários explicativos sobre essa es-
predominância das cores amarelo e vermelho nas colha. Segue o diálogo que tive com Romero:
xiribas e nos adereços de penas, e todas portavam
tornozeleiras brancas. De modo geral, os itens de Antes não tinha essa pintura no corpo. Só tinha
vestimenta das candidatas foram confeccionados mancha de urucum para proteger na guerra ou
por suas mães, como aparece no depoimento de para curar doenças. Mas esse desenho a gente já sa-
Valdinéia para a matéria jornalística. Para algu- bia desde sempre, só que fazia no trançado. Tá ven-
mas fotografias, as meninas cobriram o tronco do aquele suporte de flecha ali [apontando com a

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42 | Lorena França Reis e Silva

mão]? É desenho de cobra. E são vários os dese- procurei mostrar anteriormente, hoje essa ca-
nhos que os Paresi fazem no Tohidi ou no Abali tegoria está dissolvida em distintas parcerias e
[cestos platiformes]. O Justino sabe fazer vários. O contatos. Assim, escolheram pessoas de notorie-
pessoal fala que os Paresi inventou esses desenhos, dade pública, entre elas uma procuradora fede-
mas não inventou. A gente só colocou os mesmos ral e a juiza federal do estado do Mato Grosso,
desenhos em outro lugar, no corpo. – “E por que para consolidar uma relação que possa garantir
resolveram mudar?”, eu perguntei. Porque chama a eles – não apenas, mas também – privilégios
mais atenção do público, na apresentação cultural. políticos. Os Paresi não foram os primeiros a re-
alizar um evento indígena de concurso de miss,
A “invenção” a que se refere Romero não mas o foram no Mato Grosso, e o pioneirismo
residia na forma do desenho, conhecimento é interessante para que o nome do grupo fique
partilhado ancestralmente entre eles, mas no marcado na história do estado e do país.
modo de exibi-lo. Inventar algo, modificar a
cultura “tradicional” paresi signfica, nesse con- Desdobramento político da imagem
texto, imitar uma prática de outras etnias para
potencializar a divulgação da autoimagem do Quando estive na T.I Rio Formoso após a
grupo. Não por acaso as pinturas ganharam conclusão da pesquisa, com exemplares da dis-
destaque na reportagem, referidas pela narra- sertação impressa para serem entregues, Angelina
ção da jornalista como “o detalhe mais impor- ficou ligeiramente envergonhada ao ver sua foto
tante da produção: a pintura corporal, que faz de 2001, com os seios à mostra. Mas para além
parte da pintura indígena”, o que ajuda a refor- da vergonha, sua observação cuidadosa de con-
çar a caracterizaração de “índio genérico”. juntos fotográficos que eu havia disposto ao lon-
O critério de escolha do júri, composto ex- go do texto (Comissão Rondon, as reencenações
clusivamente por imoti, também nos diz algo de 2001 e o evento Miss Paresi, de 2012) desen-
sobre a estratégia paresi. No discurso manifesto, cadeou preciosas explicações a mim, naquele en-
o argumento para essa escolha pauta-se na ideia contro. Ela dizia-me algo assim: “Lorena, vejam
de que haver parentes das candidatas no corpo as xiribas da época de Rondon e as usadas por
de jurados não seria aconselhável, o que poderia essas meninas no Miss. Não é a mesma coisa.
gerar ciúmes entre eles e conflitos por suspeitas A xiriba antiga tinha significado. Tudo tinha
quanto a critérios usados, enquanto, inversa- significado. Cada desenho era escolhido cuida-
mente, os brancos seriam pessoas “neutras” na dosamente por quem fazia. Se a menina usar o
relação, imbuídos do distanciamento necessá- desenho errado, pode ter hemorragia na mens-
rio para a escolha das mais belas meninas ha- truação”. Diante da foto de Jocélia carregando o
loti. Implicitamente, porém, essa opção revela koho, dizia: “ela está normal. Esse é o Paresi. Essa
o desejo dos Paresi em se tornarem conhecidos, tiara que estou usando, feita de pena de ema,
além dos seus limites territoriais, por meio do eu mesma que fiz, copiando dos Bacaeri. Mas
reconhecimento dos brancos. São estes que po- copiei pra vender, não pra usar!”.
dem legitimar essa visibilidade desejada porque Angelina acrescentou que as joelheiras (ka-
foram eles que ocuparam a relação de fundação thulari) presentes nas imagens do acervo da
do olhar do grupo sobre si mesmo. Mas se, no Comissão Rondon eram feitas antigamente com
início do século XX, esse “branco” estava “en- leite de mangaba e “usadas para fortalecer a ba-
carnado” na figura de Marechal Rondon, como tata da perna, não era só pra apresentação”. No

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entanto, as meninas participantes do Miss Paresi de redefinição identitária no qual são reconstituídas
se apresentaram com tornozeleiras que, segundo as fronteiras tradicionais da alteridade, desestabili-
Angelina, só homem paresi usava antigamente. zadas por esse encontro (ALBERT, 2002, p. 13).
Ela olhava os colares, brincos e tiaras bem colori-
dos usadas pelas candidatas a Miss Paresi e dizia: Especificamente, na análise que procurei tra-
“usaram porque acharam bonito. Mas não repre- zer, essa “redefinição identitária” se dá nos quadros
senta nós. Se for representar mesmo, tem que imagéticos encenados. Os contextos abordados
ficar igual a Jocélia (na foto aqui reproduzida)”. indicam como essa etnia busca controlar preci-
Não se pode dizer que os comentários de samente o modo de visualidade da identidade ét-
Angelina representam as elaborações de seu gru- nica, para, “frente a frente”, “aparecer”, ganhando
po, no sentido de (não) ser fruto de uma co- visibilidade e, assim, tentar reverter uma relação
locação amplamente empregada. Ao contrário, desigual com os brancos. Os Paresi alcançaram,
sua fala expõe uma negociação interna, neces- a meu entender, aquilo que Gonçalves e Head
sária e contínua. A palavra “tradicional” tem (2009) chamaram de “devir-imagético”: “a fabu-
sido usada corriqueiramente por muitos Paresi lação de si como forma de autorrepresentação” e
para designar práticas recentemente incorpora- de redefinição da relação com o Outro.
das, mas que sugerem um retorno ao passado
e uma continuidade dos ensinamentos antigos. Notas
Essas práticas expressas, especialmente, no uso
de artefatos e trajes feitos com materiais orgâ- 1. O Prodocult é parte do Programa de Documentação de
nicos, naturais (colares de semente, saias artesa- Línguas e Culturas Indígenas (Progdoc), concebido pelo
nais de barbante, cocares de pena, arco e flecha Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio (Funai),
de madeira), são recuperadas estrategicamente e patrocinado pela Organização das Nações Unidas para
nos contextos em que seus usos proporcionarão a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e Fundação
maior visibilidade étnica aos Paresi, posto que Banco do Brasil (FBB). Conta também com a participa-
eles sabem que os imoti esperam essa correspon- ção de núcleos de pesquisa da UFRJ: o Núcleo de Arte,
dência à imagem indígena. E, por apostarem na Imagem e Pesquisa Etnológica (Naipe), coordenado pela
potência política das imagens, se paramentam professora Els Lagrou, e o Núcleo de Experimentação
para serem gravados diante das câmeras. em Etnografia e Imagem (NEXTimagem), coordenado
Em vez da mera sujeição aos parâmetros es- pelo professor Marco Antonio Gonçalves.
trangeiros induzidos pelo ideário colonizador, os 2. Os Paresi conformam um grande grupo de pelo me-
Paresi utilizam-se de recursos criativos que per- nos 1.955 indivíduos. Estão hoje distribuídos em sete
mitem uma redefinição dos parâmetros de rela- terras indígenas homologadas e duas em processo de
ção com os brancos. Como disse Bruce Albert demarcação no Estado do Mato Grosso, num total de
sobre uma domesticação simbólica da alteridade 1.146.027 ha. Fonte: <http://pib.socioambiental.org/
dos brancos, pt/povo/paresi/2031>. Acesso em 04 maio 2014.
3. A noção de performance tem sido utilizada por diver-
Na medida em que seus sistemas de construção sos autores da antropologia pós-moderna, tais como
simbólica do Outro constituem o quadro e a con- Victor Turner (1987), Richard Schechner (1985,
dição de possibilidade de sua autodefinição, as so- 1988), Clifford Geertz (1991, 2001) e John Dawsey
ciedades indígenas, ao confrontarem os brancos, (1999), valendo-se da análise sobre “encenações te-
têm, necessariamente, que passar por um processo atrais”, “dramas sociais” ou “eventos rituais” para se

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44 | Lorena França Reis e Silva

compreender a realidade social. Neste artigo não há de conjunto, criando três categorias de fotografias que
uma recapitulação conceitual da noção de performan- o compõem: “o índio selvagem”, correspondentes
ce, mas a utilizo no sentido dado por Geertz, para a imagens com pouca intervenção do autor, com os
quem a tentativa de compreensão da teia de significa- índios em suas vestimentas e locais habituais; “o ín-
dos, a qual se propõe o etnógrafo, baseia-se na leitura dio pacificado”, que consiste em imagens de índios
de sentidos do texto e do subtexto, ou da performance recebendo brindes; e “o índio civilizado”, composta de
e do contexto histórico e social na qual ela se insere. índios em escolas ou postos de trabalho.
4. Gravação realizada com João Titi em 21 de março de 9. Essa fotografia foi reenquadrada para a impressão do
2012. Preservo, nas transcrições, os traços mais mar- livro O acervo imagético da Comissão Rondon no Museu
cantes de oralidade. do Índio 1890-1938, de modo que uma mulher à di-
5. Romana Costa (1985, p. 137) afirma que os Paresi vi- reita do quadro não aparece nessa impressão. Para essa
viam, à época de sua pesquisa de campo, essencialmen- análise, no entanto, tomei como referência a foto ori-
te de caça e produtos de mandioca brava: “A atividade ginal consultada no acervo e utilizada no filme Apareci.
da caça é fundamental para o grupo local iyómowaké, 10. Inscrição retirada do livro de Lasmar (2011, p. 4).
pois além de ser básica para a dieta do grupo é fonte 11. Segundo consta da pesquisa de Max Schmidt, até a dé-
preciosa de matéria-prima para a atividade artesanal. cada de 1930 os subgrupos mantinham-se como uni-
A alimentação desse grupo consta basicamente de car- dades sociais separadas por territórios e com regras de
ne e derivados de mandioca brava”. casamento endogâmicas (COSTA, 1985). Os relatórios
6. As expedições de instalação de postos telegráficos na re- da Comissão Rondon referem-se aos subgrupos como
gião do Mato Grosso iniciaram-se antes da proclamação “parcialidades” dos Paresi, reunidas sob o pretexto das
da República e tiveram prosseguimento a partir de 1890, grandes festas de chicha. A partir do intenso contato
sob o comando do Major Ernesto Gomes Carneiro. com os brancos e das perdas territoriais, esses subgrupos
Cândido Rondon, aluno do positivista Benjamin passaram a casar entre si e a se misturarem. Atualmente,
Constant, passou a chefiar a 1ª Comissão Telegráfica em a divisão persiste entre eles (a maior parte dos habitantes
1900, que durou até 1906, e tinha como objetivo abrir da aldeia Formoso são Wáimare), mas não se faz marcan-
picadas e estabelecer locais de instalação dos postes, bem te nas relações com os brancos e demais etnias indígenas.
como mapear a topografia e os dados geográficos da lo- 12. As fotografias originais são coloridas, mas transformadas
calidade (LASMAR, 2011, p. 36). aqui em preto e branco para efeito de publicação. Agradeço
7. Acerca do conjunto iconográfico fotográfico e fílmico a Marco Antonio Gonçalves que gentilmente me cedeu
da Comissão Rondon, que contribuiu sobremaneira suas imagens para incorporá-las a minha pesquisa.
para a construção da imagem “oficial” do índio brasi- 13. É certo que hoje os homens Paresi também praticam
leiro, ver Tacca (2001, 2011). a caça, mas não com as flechas e seus arcos, em ca-
8. O álbum reúne as fotografias produzidas pelos agentes minhadas e acampamentos que duravam dias, mas,
da Comissão no período de 1907 a meados de 1940, de fato, com espingardas e deslocamentos de um dia,
embora seus dois primeiros volumes tenham sido pu- com carros motorizados.
blicados apenas em 1946. A organização das fotogra- 14. O abali é um cesto platiforme cujo padrão gráfico é
fias sem as suas respectivas datas e expedições indica “formado por linhas que não se cruzam, distribuídas
o esforço em construir uma narrativa coerente sobre em quatro setores iguais e espelhados, porém sem in-
a atuação “civilizadora” da Comissão, sem mencionar versão de figura e fundo” (ARONI, 2011, p. 51). O
que esta foi um conjunto de comissões chefiadas por tohidi tem a mesma distribuição espacial, dividido em
líderes e com objetivos diferentes (LASMAR, 2011). quatro setores, porém se constitui de alternância das
Ainda sobre esse álbum, Tacca (2011) faz uma análise taquaras pretas e claras, formando um grande número

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Mímesis de si mesmos: a construção da autorrepresentação imagética dos Paresi | 45

de possibilidades de desenho com alternância entre Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
fundo e figura. A relação entre a confecção desses ces- Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
tos, a cosmologia e a noção de pessoa paresi foi bem BARBIO, Luciana. Identidade e representação: uma aná-
trabalhada na dissertação de Bruno Aroni (2011) e re- lise da sociedade Paresi através do discurso sobre as foto-
tomada na minha (REIS e SILVA, 2013) para tentar grafias de Marechal Rondon. Dissertação de Mestrado
compreender a significação da confecção do Tohidi, em Sociologia, com concentração em antropologia.
que se tornou objeto do primeiro filme feito no âmbi- Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
to do Prodocult sobre a etnia. Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
15. No original: “The ability to mime, and mime well, BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In:
in other words, is the capacity to Other” (TAUSSIG, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre litera-
1993, p. 19) – tradução minha. tura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo
16. No original: “Discerning the largely unacknowled- Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, p. 108-113.
ged influence of children on Benjamin’s theories of (Obras escolhidas, v. I), 1994.
vision, Susan Buck-Morss makes this abundantly BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicolo-
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autora Lorena França Reis e Silva


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ)

Recebido em 07/05/2014
Aceito para publicação em 01/12/2014

cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 29-46, 2014

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