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(cl 2009, (<:ditions de Niinuil. Título original: .Survivrii/Cc' de.-> !uâolc'S


C<l 2011, Editora UI 11V1C

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer mcill sem ~wtoriza~·àn
escrita do Fdilor.
La hu:e csempre ugualc ad altra lucc.
... -- ------ Poi varià: da lucc diventó incerta alba,
D556s Did i- [-I ubcnnan, ( ;corgcs.
[. ..} c la spcranza c/Jbc nuova fuce.
Sobrevivência dos vaga-lumes I c;eorgcs Didi-1 !ubcrrnan; Vera Casa
Nova, JVLí.rcia Arbcx, tradução; Consuclo Salomé, rc\·isão. Belo I lorizontc:
A luz é sempre igual a uma outra luz.
11.ditora UFtv[(;, 2011.
1611 p.: il. - (Babel) Depois se modificou: de luz se tornou alvorada incerta,
ISBN: 978-85-704 I -889-0
r... ] e a esperança teve uma nova luz.
Tradw.;ão de: Survivanu_• dcs luciolcs.
P. P. Pasolini. A resistência e sua luz (1961).
Inclui bibliografia.
'

l. Linguagem- Filosofia. 2. Sociologia. 3. Literatura francesa.


I. Casa Nova, Vera. 11. ;\rbex, IV!úcia. 111. Título. IV. Série.

CDD: 844.914
CDU: 840-4
Era l'unico modo per sentire la vita,
Elaborada pela DITTI- Setor de Tratamento da Informação l'unica tinta, l'unica forma: ora efinita.
Biblioteca Universitória da UFMG
Sopravviviamo: cd ela confusione
di una vi ta ri nata Juori dalla ragione.
COOHDLNAC1:},0 EDITOIUAL Danivia Wolff
Ti supplico, ah, ti supplico: non volcr morire.
AssiSTÊNCIA EOJTOIUAJ. Eliane Sousa e Euclídia idacedo
EDTTORACÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro
'
REVISÃO E NORMALII':AÇr\c) Danivia Wolff Era o único modo de sentir a vida,
REVISÃO DE PROVAS Beatriz Trindade e Juliana Santos a única cor, a única forma: agora acabou.
PROJETO GRAFJCO Cássio Ribeiro, a partir de projeto de ~\Iarcelo [)clico
b'ORMAT;\ÇÃO E CAPA Cássio Ribeiro
Sobrevivemos: e é a confusão
Pnonuc1: }.. o c.;n.AFICA \Varren JV]arilac de uma vida renascida fora da razão.
Te suplico, ah, te suplico: não queiras morrer.
EDITORA UPMC
Av. Antúnio Carlos, 6.627[ Ala direita da Biblioteca C~._'ntral[ Térreo
P. P. Pasolini. Súplica à minha mãe (1962).
Campus 1\unpulha 1312711-901 I !\elo llorizontc/M(;
"It'l.: 1 55 3 I 3409-4650 I Fax:+ 55 31 3~0YA768
www.cdilora.ufmg.br [ editoraG_:iJufmg.br
'
SUMARIO

I
INFERNOS?

Grande luz (luce) paradisíaca versus pequenas luzes (lucciole) na


vala infernal dos "conselheiros pérfidos" (11).- Dante revirado
de cabeça para baixo nos tempos da guerra moderna (14).- Um
jovem rapaz, em 1941, descobre nos vaga-lumes os lampejos
do desejo e da inocência (17). -Uma questão política: ------
Pier
PaoloJ:lasolini em 1975, o neofascismo e o desaparecimento
--- ·- ---------- ·---
dos
--·-
- --. - - --- - -- - ---------- -- ---- --

vaga-lumes (24). - O povo, sua resistência, sua sobrevivência,


destruídos por uma nova ditadura (31).- O inferno realizado?
O apocalipse pasoliniano reprovado, experimentado, aprovado,
sobrevalorizado hoje (38) .

TI
-
SOBREVIVENCIAS

Os vaga-lumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar


de tudo? A experiência poético-visual da intermitência em
Denis Roche: reaparecer, rcdcsapareccr (45). - Luzes menores:
desterritorializadas, políticas, coletivas. O desespero político e
v
-
DESTRUICOES?
'
sexual de PasoJini. Não há comunidade viva sem fenomenologia -

de sua apresentação: o gesto luminoso dos vaga-lumes (52). Imagem versus horizonte: o lampejo dialético "transpõe o
; -- Walter Benjamin e as imagens dialéticas. Qualquer maneira : horizonte" de maneira intermitente (115). - Ressurgências
'' .'
: de imaginar é uma maneira de fazer política. Política das da imagem versus horizontes sem recurso. Declínio não é
·sobrevivências: Aby Warburg e Ernesto De Martino (58). desaparecimento. Declinação, incidência, bifurcação (119). - O
inestimável versus a desvalorização. A temporalidade impura do
Ili
desejo versus os tempos sem recursos da destruição e da redenção.
APOCALIPSES?
Fazer aparecerem as palavras, as imagens (126).
Interrogar o contemporâneo através dos paradigmas e uma
VI
arqueologia filosófica: Giorgio Agamben com Pasolini (67).- A
IMAGENS
"destruição da experiência": apocalipse, luto da infância. Entre
destruição e redenção (72). - Crítica do tom apocalíptico por Fazer aparecerem os sonhos: Charlotte Beradt ou o saber-vaga-
Jacques Derrida e do impensado da ressurreição por Theodor -lume. Testemunho e previsão. A autoridade do moribundo (133).
Adorno (78). - Não há, para uma\ teoria das sobrevivências, - Recuos na escuridão, lampejos. Georges Bataille na guerra:
-·-- ---·-

nem destruição radical nem redenção final. Imagem versus ílssura, erotismo, experiência interior. Elucidação política e não
horizonte (84). saber (139).- O indestrutível, a comunidade que resta: Maurice
Blanchot. Parcelas de humanidade na "brecha entre o passado
IV
e o futuro": llannah Arendt c a "força diagonal"' (148). Luz dos
POVOS
reinos versus lampejos dos povos. As imagens-vaga-lumes de
Luzes do poder versus lampejos dos contrapocleres: Carl Schmitt Laura \Vaddington. Organizar o pessimismo ( 155).
versus Benjamin. Agambcn além de toda separação (91). -
Totalitarismo e democracia, segundo Agamben, via Schmitt e
Guy Debord: da aclamação à opinião pública. Os povos reduzidos
à unificação c à ncgatividade (96). -A arqueologia filosófica,
segundo Benjamin, exige a "rítmica" elos golpes e contragolpes,L .

aclamaçôcs c rcvoluçôes (l 06).


..I

I
I
INFERNOS?
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I
I
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I I'
I I

I
Bem antes de fazer resplandecer, em sua escatológica
' '
I
' glória, a grande luz (luce) do Paraíso, Dante quis reservar,
no vigésimo sexto canto do Inferno, um destino discreto,

I: I
,I .
!' '~ embora significativo, à "pequena luz" (lucciola) dos piri-
lampos, dos vaga-lumes. O poeta observa, então, a oitay(l ---
_...,-"-
'
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I
vala
-- -· infernal:
----·
-----
vala
-
política, caso existisse, visto que aí se
I

reconhecem alguns notáveis de Florença reunidos com


'
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outros, sob a mesma condenação de "conselheiros pérfidos".
' .
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I' , I .I
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I
O espaço todo é salpicado - constelado, infestado - de
' .'
pequenas chamas que parecem vaga-lun1cs, exatamente
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i
como aqueles que as pessoas do campo, nas belas noites de
)I
I
i
verão, vecm esvoaçar, aqui e ali, ao acaso de seu esplendor,
discreto, passante, tremeluzente:
' '

. '
'H1I o campônio vê, que ao monte ascende,
I. I'
na estação em que o sol a tudo aclara

'
e mais ll<l Lcrra seu calor desprende

'

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I
I,
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I 11
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• •

• •
. .
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••

-quando chega o mosquito, e a mosca para- célebres desenhos para A divina comédia, Sandro Botticelli
pirilampos a f1ux pela baixada, incluiu minúsculos rostos, que fazem caretas ou imploram
luzindo sobre as vinhas e a seara nas débeis volutas das labaredas infernais. Mas ()artista, - - --

I -assim, por chamas tais iluminada,


ao renunciar a mergulhar tudo isso nas trevas, fracassa
-------------- --------- -- -- --- - '' -- --
!:
I
I1
..'' . jazia a nossos pés a vala oitava, ao representar os lucciole tal qual Dante nos descreveu: o
I
mal à vista a tivemos devassada.' branco do velino não é mais que um fundo neutro de onde
I'

os " vaga- l umes " se destacara- o em negros, em secos, e1n


No Paraíso, a grande luz se expandirá por toda parte em absurdos e imóveis contornos. 3
----------- --

sublimes círculos concêntricos: será uma luz de cosmos e Tal seria, em todo caso, a "glória" miserável dos conde-
de dilatação gloriosa. Aqui, ao contrário, oslucciole vagan1 nados: não a grande claridade das alegrias celestiais bem
fracamente - como se uma luz pudesse gemer - numa
---- -- -
merecidas, mas o fraco lampejo doloroso dos erros que
'
I'
' I
espécie de bolsão sombrio, esse bolsão de pecados feito para se arrastam sob uma acusação e um castigo sem fim. Ao
2
que "cada chama contivesse um pecador" (ogne fiamma contrário das fale nas que se consomem no instante extá-
un peccatore in vala). Aqui a grande luz não resplandece, tico de seu contato com a chama, os pirilampos do inferno
há apenas uma treva onde crepitam timidamente os são pobres "moscas-de-fogo" - fireflies, como se chamam
"conselheiros pérfidos", os políticos desonestos. Em seus em língua inglesa os nossos vaga-lumes - que sofrem em
' '!
seu próprio corpo uma eterna e mesquinha queimadura.
ALIGHIERI, Dante. A divina W111édia. Tracl. Cristiano ,\\ache1do. Siw Paulo:
I'
' Plínio, o Antigo, inquietou-se, outrora, com uma espécie de
Itatiaia, 1979. \'. 1. p, 323-324. ;\ citaçcw do autor !(li feita a partir da cdiçi\o
francesa: ALIGHTFRI, Danlc. Lo ,{ivinc comédi<'. 1: ,-nfcr. lrad. ). Risse!. !'a ris: mosca chamada pyrallis ou pyrotocon, que só podia voar no
l'lammarion, 19SS (éd. 1992). XXV!, 2)-3]. p. 237-239, cuja tradução nossa
I,
fogo: "Enquanto ela está no fogo, ela vive; quando seu voo
para 0 porlugul's é: "Cmno o camponês descansando sobre <1 encosta,/ du-
I
I rante 0 tetnpo em que a tocha do tnundo/ nos n1ostra sua 1~tce menos ternpo a afasta dele um pouco mais, ela morre." Assim, a vida dos 1

••'
oculta,/ na J1ora en1 que a mosca dá lugar ao mosquilo,/ \rê vaga-lumes nu vale
(vede lucciolc gi1í per la l'!lllco)! ali onde de dia ele yindima c trabalha,/ assim
rCSf'lcnclccia a oita,-a nla,/ de tantas cham:ls (di lon/cfiwwnc lu/to risplcndcu) ' Cl. AI:l'C:i\l'I'L\IllFIZG, I 1.-T. Schulzc. Snndro J:otlicclli: piltorc dclla \Jivinc
. .
como cu vi[ ... ]." ("í.T.) Com media. Homc-~lilan: Scudcric Papal i al (~uirinak-Skira Editmc, 2000. v. IT.
' '
''
;\LICHIE1ZI, ll:mlc. Lo dit'!IIC nnuc'dic. !'ente· r_ Trad. ). 1\isscl. Paris: Hammarion, p. llJR I 09_
.
' ' 1992. XXVI, 42_ p. 32•1. \la traduçiHJ de Cristiano ,\\achado para" português:"] ... ]
' ' PUNI(), o i\ntigo. 1/istoirc nnturcl/c. '\'rad_ i\. 1-:rnout c \Z. Pépin. Paris: Lcs
cu as via 1novcr-sc, algo intrigado,/ .iulgc1ndo csL1r umc1 <llma em cada chamc1." Dellcs Lcttrcs, I Y47_ XI, 17_ p. 66.
' '
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I
'I
.I
12 Georges Didi-Huberman I··INFERNOS? 13
I'

' '
\ vaga-lumes_parec~r<Íestranhaeinquietante,
-
como .
se fosse imaginação das entidades celestes que por sua descrição das
.' ' !' ~ ----~----~- - - - - - - -- - -
. '
' '

!
i feita da matéria sobrevivente - luminescente, mas pálida
-- --- ·-- .. . -- - - - . 11 coisas terrestres e paixões humanas. Menos, então, por sua 'i
----- ---- - \ ' -. - -
i :. e fraca,
. . .
muitas vezes esverdeada - dos t~mtasmas. Fogos , grande lucc que por seus inumeráveis e erráticos lucciolc.
I i ' ..
'

'
''
''
'enfraquecidos ou almas errantes. Não nos espantemos de Esse estudante é J2ier Paolo Pasolini:, Se, naquele mo-
'' '' --"'' ,--- ·----•-----' -- ' '

.. ''
que o voo incerto dos vaga -lumes, à noite, faça suspeitar de mento, ele revisita Dante com uma leitura, uma releitura
I
,I
iI algo como uma reunião de espectros em miniatura, seres que nunca acabará, é em grande parte graças à descoberta.
I'
5
I!
'
bizarros com mais, ou menos, boas intencões.
' dessa história da mimese literária que Erich .Auerbach pro- '

blematizou em seu ensaio magistral sobre "Dante poete du


monde terrestre" [Dante, poeta do mundo terrestre]. 6 Se
'
I I
. ' A história que gostaria de esboçar - a questão que gos- ele reconfigura a humana Commedia para além do ensino
' .
. 'I'' taria de construir - comeca em Bolonha, nos dois últimos escolar e do nacionalismo toscano, isso também se deve
' '
dias de janeiro e nos primeiros dias de fevereiro de 1941. às "fulgurações figurativas", como ele diria mais tarde, ex-
' '

. I Um rapaz de dezenove anos, aluno da Faculdade de Letras, perimentadas nos seminários de Roberto Longhi/ sobre a
'

' ! descobre, juntamente com a psicanálise freudiana e a filo- pintura dos "primitivos" florentinos, de Giotto a Masaccio
i
''

sofia existencialista, toda a poesia moderna, de Holderlin a e Masolino. Nesses seminários, o grande historiador da
i
!
iI ,
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Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale. Ele não se esquece arte confronta toda a visão humanista de Masaccio, por
!

de Dante, naturalmente, mas relê A divina comédia com exemplo, o uso que faz das sombras, às reflexôes de Dante
7
novo olhar: menos pela perfeição composicional do grande sobre a sombra humana e a luz divina. Mas Longhi, nesse
poema que por sua labiríntica variedade; menos pela beleza
,. AUFRBACl-1, Erich (192~). llanlc poéte du monde terrestre. Trad. D. Meu r.
c pela unidade de sua língua que pela exuberância de suas
In: __ . Lcrils sur IJunlc. Paris: Macul<J, 1998. p. 33-1 R~. 1d., ( 19•16). Mi
formas de expressão, de seus apelos aos dialetos, aos jar- nu'sis: la rcpréscntalinn de la réalité: dans la littér<Jture occidcnt<Jic. Trad. C.
lleim. Paris: Callimard, 196B (éd. 1992). p. IR.l-212.
gões, aos jogos de palavras, às bifurcaçôes; menos por sua
LOI\'(;[11, IZ. Cli aiTrcschi dei Carminc, M<ls<Jccio c ll:llllc (19•19). In:
______ .Opere C<JIJijJ!ctc, \'l/J-1. hllti di M<Jsolino c di ÍVl<Jsaccio e altri
studi sul Quat l rocenlo, 1910-1%7. l'lorcncc: S<Jnsoni, 197'.. p, 67-70. CL
' Cf. cspccialmcnlc LFMONII·:IZ, 1'. /.c soblhrl dcs luciolcs: ""·c,·lkric, cha- I'ASOLI:.JI, 1'. 1'. l)u'cst-cc qu'unmaitrc? (1970-1971); Sur Roberto l.onghi
manismc ct i1naginairc (<:\llllibalc cn Nouvcllc--Cuinl'c. Paris: Slock, 200(~. (19/4).Trad. H. joulwrt-Laurcncin.ln:_ ____ .lócri/ssurlapcinturc. Paris:
p.IK'J-201. r::ditions Carré·. 19'!1. p. 77-~(,.

''

14 Georges Didi-Huberman I -INFERNQSl 15


',, '

'I
I

período de Ü1scismo triunt~mte, não deixa de entreter os "perseguições"- como se diz no teatro- das sentinelas atrás
''
I
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' ''
'
estudantes das sombras e das luzes bem mais contemporâ- dos inimigos na escuridão do campo. f: um tempo em que - - - I

neas -e mais políticas - de um Jean Renoir em Ln grondc os "conselheiros pérfidos" estão em plena glória luminosa, ·.
' '

illusion [A grande ilusão] ou de um Charlie Chaplin em Lc enquanto os resistentes de todos os tipos, ativos ou "passi- \
' ' I ' . '
' : dictatcur [O ditador]. À parte isso, o jovem Pie r Paolo joga vos", se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se
I
como attaccante na equipe de futebol da universidade que, fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo 1.

I
naquele ano, sairá vitoriosa do campeonato interLlCuldades.s tempo a emitir seus sinais. O universo dantesco, dessa forma, 1
'
' '
i i À parte isso - mas bem próxima -, a guerra irrompe inverteu-se: é o inferno que, a partir ele então, é exposto com
'

"I .
I com violência. Os ditadores discutem: em 19 de janeiro ' seus políticos desonestos, superexpostos, gloriosos. Quanto
,I
I de 1941, Benito Mussolini encontra Hitler em Berghof e, aos lucciole, eles tentam escapar como podem à ameaça, à •.
! em seguida, em 12 ele fevereiro, tenta convencer o general condenação que a partir de então atinge sua existência.

..' I'
Franco a participar ativamente do conflito mundial. Em 24
de janeiro, as tropas britânicas começam sua reconquista
••
i"!

I
ela África oriental dominada pelos italianos: eles ocupam
; I' ,
'• '
Benghazi em 6 de fevereiro, enquanto o exército da França É nesse contexto que Pasolini escreve uma .carta a seu - - ' -

Livre empreende sua campanha na Líbia. Em 8 de fevereiro, amigo de adolescência, Franco Farolfi, entre 31 de janeiro
I o porto de Gênova é bombardeado pela frota inglesa. Assim e 1o ele fevereiro de 1941. Pequenas histórias na grande
'

foram os dias e as noites desse final ele janeiro de 1941. Ima- história. Histórias de corpos e de desejos, histórias de
ginemos, nesse contexto, algo como uma inversão completa almas e de dúvidas íntimas durante a grande derrocada, a
. .

''
'
das relacões entre luce e lucciole. Haveria, então, de um lado, grande tormenta do século. "Sou formidavelmente idiota
I
'
os projetores da propaganda aureolando o ditador t~1scista (supcrbamcntc idiota), como o são os gestos do ganhador
com uma luz ofuscante. Mas também os potentes proje- de loteria; minha dor de barriga começa enfim a passar, e
9 111
tores da DCA perseguindo o inimigo nas trevas do céu, as sinto que me torno presa da euforia (mi sento percià in
'
' !'

·' C:lé NAUJ!NI, N. Cronologia. In• PASOUNI, !'. P U!tc:rc:, l'J•Hl-19'i·l. Turin• Pc\')UI.I~I. !'. 1'. l.cl/,:rc, 19•10-195•1. l'urin• Finaudi, 19B6. p. 36. Trad. R. de
Einaudi, I 'JRC1. p. XXX-XXXII. Ccccclll·. . . Corrcspondoncc g''náolc, 19•10-1975. Paris. Gallimard, I')') I.
I '' DCA• Jlélcnse conlrc aéTorwLs I IlciCsa contra acrollel\'s·sj. (h.T.)
I

16 Georges Didi-Huberman l-INFERNOS? 17

''
I
'
I'
I
; I :

'

I preda ad euforia):' Haveria, então, tanto a presa- em italiano prostituta; mas também essa misteriosa presença feminina ,.
. ' '
~--- .-·'

'I I preda; diz-se, por exemplo, preda di guerra para se falar nas antigas salas de cinema que Pasolinifrequentava muito,.
I ;:
' ': \ - ••·''·· ...

dos espólios de guerra-, quanto a euforia. Haveria, desde ·, evidentemente:


·-·-
a "lanterninha"
---
que, no escuro, munida de
então, essa tenaz onde estão dolorosamente imbricados '·. • S1Ja pequena lanterna-tocha, guiava o espectador entre as

' '
' '
o desejo e a lei, a transgressão e a culpabilidade, o prazer fileiras de poltronas). Entre a euforia e a "presa", entre o
' '
conquistado e a angústia recebida: pequenas luzes da vida, prazer e o erro, os sonhos e o desespero, esse rapaz espera
com suas sombras pesadas e suas penas como inevitáveis que apareça uma claridade, ao menos o vestígio de uma
'' ' corolários. É o que indicam as frases seguintes de Pasolini lucciola, senâo o reino da luce. Ora, é exatamente isso que
I!
I
' '
! I em sua carta ao amigo. Ao evocar, como jovem humanista,_ acontece (justificando até mesmo seu relato). O amor e a
---------·
. '' '
o- que ele _chama os parÚndi =- da palavra gregapar:thénos,
---.-.-.,_., -------
amizade, paixões absolutamente ligadas, para Pasolini, se
1-···- ...-···· . . . . . . .
- - -- '

que indica o estado de virgindade -, ele escreve: '<·?-'encarnam de repente na noite sob a forma de uma nuvem
'
' i!:
''
..
-.
_ -/''"--
'
---- -



d_e vaga-lumes:
I''. .
::' '
Quanto aos parténai, eu passo horas de langor e devaneio
Ii .
• i
.. ''
muito vagos, que alterno com esforços mesquinhos, até mesmo A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jan-
''
'
estúpidos, de ação, e com períodos de extrema indiferença: há três tamos em Paderno e, em seguida, na escuridão sem lua, subimos
i'
"li
' .
I" ' I
dias, Paria e eu fomos até os recantos de alegre prostituição (alie até Pievo de! Pino, vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes
i.
laterbre di un allegro meretrício), onde gordas mammas e o hálito (abbiamo visto una quantità immensa di lucciolc), que formavam

,: I
'i de quadragenárias desnudas nos fizeram pensar com nostalgia pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os inve-
: I. ' I
I ''I
nos riachos da inocente inf~1ncia (ai lidi dell'imwccnlc infanzia). jávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus
'
'
'
Depois mijamos com desespero.'' voos amorosos c suas luzes (pcrché si mrwvano, pcrché si ccrcavano
.' .

''
i con amorosi voli c Iuci), enquanto nós estávamos secos e éramos
I'
I Palavras de um jovem em plena treva, buscando seu ca- apenas machos numa vagabundagem artificial.
I
'
minho através da selva c dos lampejos oscur~; Pensei então no quanto é bela a amizade, e as reuniôes dos
I . moventes do .

desejo (lucciola,em italiano popular, significa justamente a rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes
' e não se preocupam com o mundo a Sll<l volla, continuam vivendo,
------ ·-· ··--·---

" li J/t. I., p.,l(). 'l'ra(_.I ut.,


. p..o~
)/.
preenchendo a noite com seus gritos (ricrnpicndo la noite dcllc foro
'
''
I '!

18 Georges Didi-Huberman 1-INFERNQSl 19

_______________________ ,,.,,., __ --- - -


grida). Sua virilidade é potenciaL T'udo neles se transforma em inventivos. "[É a mesma coisa] quando falam de Arte ou de
risos, em gargalhadas. Sua impetuosidade viril nunca fica mais Poesia", diz ele a respeito desses jovens iluminados c de sua
'
I evidente e inquietante do que quando eles parecem ter voltado a "impetuosidade viril" no meio da noite. "Eu vi (e vejo a mim
I
I
ser crianças inocentes (come quando scrnbrano ridiventotifànciulli mesmo também) jovens f~1larem de Cézanne,
----··. ·- --·
e tínhamos a
,,I I
:I :
'
'
innocenti), porque em seus corpos permanece sempre presente impressão de que falavam de suas aventuras amorosas, com
sua juventude total, alegre." os olhos brilhantes e perturbados:'u
A carta de Pasolini termina e culmina com o contraste ·
' '
!
I Eis então os lucciole promovidos à categoria de impes- violento entre essa e.x:ceçào ~i~_alegria inocente, que recebe
. ---- . -·- -- -- - -·- - -

!
soais corpos líricos por essa joi d'amor da qual, outrora, ou irradia a luz do desejo, e a regra de uma realidade feita
-
falavam os trovadores. Mergulhados na grande noite de culpa, mundo de terror concretizado aqui pelo raio in-
i;
"'
" culpada, os homens irradiam às vezes seus desejos, seus q uisidor de dois projetores e o latido assustador de cães de
gritos de alegria, seus risos, como lampejos de inocência. guarda na noite:
Há, sem dúvida, na situação descrita por Pasolini, uma
espécie de dilaceramento relativo ao desejo heterossexual Assim estávamos, naquela noite; escalamos em seguida os

'
' i
' (pois os vaga-lumes são machos e fêmeas, se iluminam para flancos das colinas, entre os arbustos que estavam mortos, e sua
i' !. .
'' ! chamar e chamam para copular, para se reproduzir). Mas morte parecia viva; atravessamos pomares e bosques de cerejeiras
' I''
'
o essegcial nacompa!ação estabelecida ~ntre os lampejos carregadas de ginjas e chegamos ao cume. De lá, viam -se claramen-
do
'·----
de~ejo animal e-
as gargalhadas
- ---
ou os gritos
-
da amizade -
te dois projetores muito distantes, muito ferozes, olhos mecânicos
humana reside nessa alegria inocente e poderosa que apa- / aos quais era impossível escapar (duc rij7cltori lontanissirni cfcroci,
rece como uma alternativa aos tempos muito sombrios ou ocdzi mcccanici a cu i norz era dato sfúr;f!,irc),
- c ent:ío fomos tomados
..__ (_

' ~nuito iluminados do fascismo triunfante. Pasolini até indica, pelo terror de sermos descobertos; enquanto os cães latiam e nós
I
, I'
. I
inuito precisamente, que a arte e a poesia valem também nos sentíamos culpados (c ci parvc dcsscrc colpcvoli), fugimos
como esses lampejos, ao mc~mo tempo eróticos, alegres e deitados, escorregando pela crista da colina. Encontramos então
uma outra clareira coberta de relva, em círculo tão reduzido que
, _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
12
i'i\SOLIN I, 1'. 1'. l.cllcrc, I 940- I 95•1. Op. cit., p. 36. Tr,lC!. R. de Ccccat\·. _
Corrcsponâoncc gàu'mlc, I 9·10- I 975. l'aris: c;allimard, 199 l. Trad. cit.. I'· r ~B. ''- 11'1
lU., ·-
j_l. _..,;. Lll., p.,'l"
1·r,ll.I . o.


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20 Georges Didi-Huberman ! ·· !NFERNQSl 21


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apenas seis pinheiros dispostos a pouca distância uns dos outros --.'\
\ .,' '' '
cinematográfica e até mesmo política de Pasolini parece de 1

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' bastavam para cercú -la; nós nos deitamos lá, enrolados em nossos Ü1to atravessada por tais momentQS_~ie excecji.oem que os :
I <-. - ·•·n ·,• ' ' '
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cobertores e, conversando agradavelmente, ouvíamos o vento seres humanos se tornam vaga-lumes- seres luminescen-!
.-- - - I
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I
I1 soprar com força no bosque, e não sabíamos onde nos encontrá- tes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto!
I .
''
vamos nem que lugares nos cercavam. Aos primeiros clarôes do tais - sob nosso olhar maravilhado. Os exemplos são inu-
dia (que são uma coisa indizivelmente bela), bebemos as últimas meráveis: basta pensar na dança sem sentido de Ninetto
gotas de vinho de nossas garrafas. O sol parecia uma pérola verde. Davoli em La sequenza dei fiore di carta [A sequência da
Eu me despi e dancei em honra da luz (ío mi sono denudato e ho flor de papel], de 1968, onde a graça luminosa do rapaz se
danzato in onore della fuce); eu estava completamente branco (ero destaca sobre o fundo de uma rua muito movimentada de
tutlo bianco ), enquanto os outros, envolvidos em seus cobertores Roma, e sobretudo a partir da obsessão pelas imagens mais
11
como pcôes, tremiam ao vento. negras da história: bombardeios entrecortados pelos pro-
jetores da DCA, visões "gloriosas" de políticos desonestos,
'
''
Poder-se-ia dizer que, nessa situação extrema, Paso- em contradição com os ossuários sombrios da guerra. O
lini se desnudava como uma larva, afirmando ao mesmo
' ' '
\\ h(}mern vaga-lll.rnífacabará, como se sabe, porse prost;;;---
~--~-~~--~~··-~---~·----------------- -----·--
'ii :
I' '
tempo a humildade animal - próxima do solo, da terra, sob uma absurda sentença divina:.
.I j '
•' I I
,' I !
'' ' da vegetação - e a beleza de seu corpo jovem. Mas, "todo
branco" na claridade do sol que nascia, ele também dançava • - - I
A inocência é um erro, a inocência é uma falta, compreendes?
15
como umpirilampo, como um vaga-lume ou uma "pérola E os inocentes serão condenados, pois não têm mais o direito de
' ' '

verde". Clarão errático, certamente, mas clarão vivo, chama sê-lo (c gli imwccnli saranrw wndannali, pcrdzé mm lumno píü il
''
''
'
de desejo e de poesia encarnada. Ora, toda a obra literária, dirillo di esscrlo). Eu não posso perdoar aquele que atravessa com
I ---- --
I '
o olhar feliz do inocente as injustiças c as guerras, os horrores e o
I
, I
11
sangue. J lú milhares de inocentes como tu através do mundo que
PASOUN!, P. F. !.e/tere, 19<10-1954. Trad. R. de Ccccaty. . Corrcspon-
dunccgc;m;mlc, 19,10-1975. l'aris: Callimard, 1991. p. 37-38. 'lrad. cil., p. 3K. preferem se apagar da história ao invés de perderem sua inocência.
1
O aulor utiliza aqui um sinônimo de yag;1-lumc, 1'Cr luis{////, que, se lr<.llhll:ido
.-;
E eu devo L1zê-los morrer, mesmo sabendo que eles não podem
I
lilcralmenlc, significaria "l_an-:al~rilhan!.~~", para n. :foJ\ar a comparaç;\o inicial
I do corpo desnudo todo branco com o de urna larva (dJfllli!C 1111 l1L'r). (1\.T.)
'
':1

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22 Georges Didi-Huberman 1- INFERNOSl 23

•I
''

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i I I
. I

agir de outra fónna, devo amaldiçoá-los como a figueira c f~m~-los


17
nos gestos e nos desejos de cada um. Naturalmente- não
morrer, morrer, morrer. 1
"

somente porque Pasolini repeliu durante anos, mas ainda


I
I porque nós podemos experimentá-lo a cada dia-, a dança
I
.. : I
!
Sobre essa condenação celeste, o gentil Ninetto na o -
I
I
j I
dos vaga-lurnes, esse momento ele graça que resiste ao mundo
compreende absolutamente nada. Ele perguntará apenas,
do terror, é o que existe de mais fugaz, de mais frágil. Mas
com um ar mais inocente do que nunca: "O quê?" (che?),
.! Pasolini,seguido
-
nisso por inúmeros
.... - - --· - - ... . . ..... --
de seus
.. . . ...
comentadores,
- . I
I antes de cair numa atitude que retoma exatamente a de um '
I '
·' foi
.
bem mais longe: ele praticamente teorizou ou afirmou,_
'I
' ' cadáver filmado durante a guerra do Vietnã. O vaga-lume ~I• como uma tese histórica, o desaparecimento dos vaga-lumes. :, ·.
'!, . . .. ~ .
I I
. !: I
I .
.
está morto, perdeu seus gestos e sua luz na história política \ Em 1o de fevereiro de 1975 - ou seja, trinta e quatro
:·' : '
...

:,' i'
1' I

I
: de nosso contemporâneo sombrio, que condena à morte • anos, contados dia a dia, ou melhor, noite por noite, após
' ' I'
• A •
I
! '
'
:
sua mocenCla. sua bela carta sobre a aparição dos vaga-lumes, e nove me-
. .' !'' I
I
' ses exatamente antes de ser selvagemente assassinado, na
,.
'
~~aclrugad~~n:~1ma p~ai~-debstLi ~, PásoiínfpulJHcava no
A questão dos vaga-lumes seria, então, antes de tudo, Corriere della Sera um artigo sobre a situação política de
' política e histórica. Jean-Paul Curnien que não deixou de seu tempo. O texto se intitula "O vazio do poder na Itália"
I; l1 ·
.' .'
' '
I
evocar a carta de 1941, diz, justamente, num artigo sobre (II vuoto del potere in Italia), mas será retomado nos Scritti
' ' .
I
I
I
I :
a política pasoliniana, que a beleza inocente dos jovens de corsari [Escritos corsários] com o título que se tornou famo-
I I
1
I.' .''
I I Bolonha não denota em nada "uma simples questão de so de "O artigo dos vaga-lumes" N (L'articolo dc!lc luccíolc).
I i .
I I ' · . Ora, trata -se, sobretudo, se posso dizer, do aríigo do ;norte !•
i
estética e de forma do discurso, (uma vez que) o que está \ I

••
I
dos vaga-lumes. Trata-se de um lamento fúnebre sobre o 'i
'
em jogo ali é capital. 'frata -se de extrair o pensamento po- 1 I
\ momento em que, na It{lli<l, os vaga -lumes desapareceram, ,•,'
lítico de sua ganga discursiva" e de atingir, dessa maneira,
"I
' ~ i'
esse lugar crucial onde a política se encarnaria nos corpm, -~-- ···---

I " CL'R'-JIFR, ).-1'. l.cl disparition dcs luciolcs. Ligws, 11. I S, p. 72, 2011>.
'·' PASOL!Nl, 1'. fl. !.'articulo ckllc luc,·iok ( 197>). !11: . Sug~i sul lu politim

'' "' PASOLJNI.l'. 1'- l.a scqt~cnza dclliurc di c:arla (1%/-1%9). In: Sl'll, W.: /;\- c sul/,, socícitl. \\'.Si li ,,1 S. lk l.clllde (éd.). iVlibtJ: :\rnoldo !'vlomhdori, IY'J'J.
"I p. 10·-1--±11. Trad. 1'- Cuillw11. i.'artic:lc eles l'lcioks. ltJ: 1'.\SOLINI, ['- 1'. f!crits
" HACLI, 1'. (éd.). !'a i/ ci/ICIII<l I. t\!lilan: i\rnoldo 1\lollci:ldori, 200 I. p. 1.09:•.
' c:orstlln's. l'.rris: l'lammarion, 197CJ (céel. 2005), p. ISO I S9.

24 Georges Didi-Huberman
I· INFERNQSl 25
I ! !'
II ,
I'

' .i' ..'

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' \
'I esses sinais humanos da inocência aniquilados pela noite - os opositores de então nutriam esperanças insensatas" de
- - - - .. ---- -- . ---- - -··· ..
------- -------~---- ---~ --~-

.ou pela luz "feroz" dos projetores- do t~1scismo triunfante. derroLl_]20lítica. ' 1
_

I
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A tese é a seguinte: acredita -se erroneamente que o 1 A segun(i<lf~lscdesse processo histórico começou, segun- \
'
I ' --- - '~

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:I
,I.
'
I : fascismo dos anos de 1930 c 1940 foi vencido.l\Iussolini foi i,,.-------
do Pasolini, no mesmo momento em que "os intelectuais 1

'

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''
'
sem dúvida executado e dependurado pelos pés na praça i mais avançados e os mais críticos não perceberam que 'os '
; ,_ -
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I
'
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Loreto de Milão, em uma encenação "infame" característica : vaga -lumes estavam desaparecendo' (nem si era no accorti ·.
'' I 19 '
I dos mais antigos costumes políticos italianos. Mél§_, §Qbg 'che 'le lucciole stavano scomparendo')"Y Há, nas palavras
.. I
I
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I I I
' I
as ruínas desse fascismo está atrelado
____ - ---
o próprio
--------
fascismo!
--- - -
que Pasolini então reúne, toda a violência do polêmico- e
I . --,,

um novo terror ainda


- ---
mais
--
profundo,
---
mais devastador
-- -------' -- -- --· -- ,- ,_, _,
mesmo provocador, como se costuma dizer a seu respeito
'
' I
' aos olhos de Pasolini. De um lado, "o regime democrata- - associada, montada com toda a doçura do poeta. O polê~_
' I : I'
'
'
-cristão era ainda a continuação pura e simples do regime mico não hesita em falar de "genocídio", autorizando-se na
' --~------ - --- --···-- ------ -- ------ ---- '- ---· -- ------- ------- ·------- -------
fascista"; por outro lado, por volta da metade dos anos mesma ocasião a fazer uma referência a Karl Marx sobre o
23
'
de 1960, aconteceu "algo" que deu lugar à emergência de esmagamento do proletariado pela burguesia. Q:u_an!()aO
! ·, '
'
I' ' '
. um "fascismo radicalmente, totalmente e imprevisível- poeta,
---
ele
---------
utiliza
--------
a antiga
,. . . . . -.--
imagem, lírica e delicada
···<--"-------·--.--.·-------------------------·--
- e até
_______ ,.
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'' ''

''
mente novo". 20
A p1)meirafq,s~ do processo foi marcada
•-"-- ,_, .
mesmo
--
autobiográfica-
-.
dos vaga-lumes:
- - ____ , - '" - - - -
' ' ~-- .--. ' ., '' '

' I'' ' . '

'' •· pela "violência policial (e) o desprezo pela constituição",


, tudo isso mergulhado num "atroz, estúpido e repressivo. No início dos anos de 1960, devido à poluição da atmosfera e,
I
'

i
I
I'
, conformismo de Estado" contra o qual "os intelectuais e sobretudo, do campo, por causa da poluição da água (rios azuis e
I
''
'
'· - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - canais límpidos), os vaga-lumes começaram a desaparecer (sono
''' Sobre a tradição das "imagens inlc\Incs", c1: 01\TALLI, C. I.u pittura infamante colllincialc a scomporirc lc lucciolc). Foi um fenômeno fulminante e
llci seco/i Xlll-XYJ. Romc: Sociclà Fditorialc [umTncc, 1979. EDGERTON fulgurante (ilfcnomeno ê slatojúlminco e j(J/gormztc). Após alguns
'
i, )R., S. Y. l'icturcs mui l'unishmcnl. Arl and criminal prosecution during thc
'' I
. I l 1] me 11lin c Rcnaissancc. Jthaca -I .o n d rc., Co rncll L:n Í\"Crsi t \' l'rcss, 19HS. anos, não havia mais vaga-lumes. Hoje, essa é uma lembrança
I '
I Pasolini se dctérn, cn1 Lu ruhhiu, em um suplício desse gênero.
-----------------
'
'" PASOL!NI, l'. P. Carticolo dcllc lucciolc ( l97S). In: , Saggi stdlu politim
!
c sul/o socicttl. W. Si ti ct S. llc Laudc (éci.). ,I;Jilan: ,'\moldo :\londadori, 1999. " 1/Jid., p. lOS- J()(,. Trad. cit., p. I ~2-1 ~3.
I
'

p. 'HH. Trad. 1'. (;uilhon. Cartidc dcs luciolcs. In:. ·- ___ . 1'1 r tis wrsoircs. Pari" " 1/Ji,/,, p. ·106. Trad. cit., p. I k:l.
Flammarion, 1976 (éd. 2005). p. IH I. 1/!it!., p. -111~. Trad. ,-it., p. I k11.
'

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I,
1

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26 Georges Didi-Huberman 1-INFERNOSl 27
. I
'
' '' '

' '
'I um tanlo pungente do passado (sono ora wz ricordo, abbnstmzza O f~1scismo propunha um modelo, reacionário e monumental,
'' slraziante, dei passato) [... ].' 1
mas que permanecia letra morla. As diferentes culturas particu-
I I
i !
lares (camponeses, subproletariados, operários) continuavam
lI ,
': !

' '
• •

Ao recorrer a essa imagem poético-ecológica, Pasolini imperturbavelmente identificando-se com seus modelos, uma
não pretende de forma alguma diminuir a violência do vez que a repressão se limitava a obter sua adesão por palavras.
fenômeno por ele diagnosticado. Trata-se, antes, de uma J:.f()je em dia, ao contrário, a adesão aos modelos impostos pelo,!/
'
I '
' maneira de insistir na dimensão antropológica- a seus olhos centro é total c incondicional. Renegam -se os verdadeiros modclos1
. I
• I i a mais profunda, a mais radical - do processo político em culturais. A abjuração foi cumprida.'"
I. .' I' '
' :
. I ' .
!I I '
11
questão. Quando Pasolini emprega a palavra superlativa de
'
'
I "genocídio", nessa época, é para designar, mais precisamente, '
!

Em 197 4, Pasolini desenvolverá amplamente seu tema
\ \
um movimento geral de enfraquecimento cultural que ele ,, . , do "genocídio cultural". O "verdadeiro fascismo", diz ele,
• •
'
I
!
!i ' define por meio da expressão "genocídio culttlral". A ideia éaquele que tem por alvo os valores, as almas, as lingua-
'
I
i
de que um fascismo mais profundo tenha supla~tado as gens, os gestos, os corpos do povoY É aquele que "conduz,
gesticulações mussolinianas aparece claramente, en~ 1969, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de
.....-·--·-' . ~- . ----
' I
'
nas entrevistas com:!~~~l~Ehlfl9t, Em seguida, num artigo 25
grandes porções da própria sociedade", e é por isso que
'
.
. I
I '. I.

de 1973 intitulado "Aculturação e aculturação': o cineasta é preciso chamar de genocídio "essa assimilação (total)
'I I !

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' '
I
I
'

precisa sua ideia: ainda era possível, nos tempos do fascis- ao modo e à qualidade de vida da burguesia".''1 Em 1975,
' I I'•

mo histórico, resistir, ou seja, iluminar a noite com alguns perto de escrever seu texto sobre o desaparecimento dos
'

lampejos de pensamento, por exemplo, relendo o Inferno vaga-lumes, o cineasta dedicar-sc-ú ao tema - trágico e
de Dante, mas também descobrindo a poesia dialetal ou apocalíptico - de um desaparecimento do humano no
''
i simplesmente observando a dança dos vaga-lumes em ·.coração da sociedade atual: "Faço simplesmente questão
i
I
I' ,
Bolonha, em 1941.
'
"' Id., r\cculturalion ct accullurcrlion ( 1071). 'l'rcrd. P. Guillwn. In:__ __.l?crils
corsuircs. p. 19.
'
1
1/Jir/., p. '105. TrcrcL cil., f'· I SI. ,, FASUI.INI, V P [.,· \c'rilahlc lascisnll' (1074). In: . l:'crifs cors({ircs.
'' l'i\SOLI Nl, 1'. 1'. linlrcticus 11\'Cc fcuu I Jujlot (I %<J). J'ari" t':ditions C:ulcnhcrg, p. , J-o~.
~( l')

'
'' 2007. I'· 173- I S3 ( [)'un lirscisml'it l'aulrc). ' ld., Lc gc'tHKick (I <J7+ ). Il•id., p. 261,

I'
I
I 28 Gcorges Didi-Huberman 1-lNFER~IQS? 29
'
I
' I
'
\de que tu olhes em torno de li e tomes consciência da tra- _ , <1111 ra as outras", não são mais do que os corpos supcrex-
gi:cüa.E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem postos, com seus estereótipos do desejo, que se confrontam
n1~isse~es humanos; só se veem singulares engenhocas que L"ln plena luz dos sitcoms, bem distantes dos discretos, dos
'
'seançam
l t
umas contra as ou ras .. " ))')~
i1csitantes, dos i noccntes vaga -lumes, essas "lcm branças um
É preciso então compreender que o improvável e minús.- tanto pungentes do passado".
culo esplendor dos vaga-lumes, aos olhos de Pasolini- esses
'

, olhos que sabiam tão bem contemplar um rosto ou deixar


' '

.o gesto perfeito se desdobrar no corpo de seus amigos, de O protesto de Pasolini, em seu texto sobre os vaga-
seus atores -, não metaforiza nada mais do que a humani- -lumes, mistura inextricavelmente os aspectos estéticos,
. dade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na políticos e até mesmo econômicos desse "vazio do poder"
noite. Veria Pasolini, à época, o meio contemporâneo a seu que ele observa na sociedade contemporânea, esse poder
i
'
redor, como uma noite que teria definitivamente devorado, superexposto do vazio e da indiferença transformados em
assujeitado ou reduzido as diferenças que formam, na escu- mercadoria. "Eu vi com 'meus sentidos"', diz ele, assumindo
empíric~: ~~~~i~~l~ n1~e§~Jlc)~f~qéti_c:~o- de s~1a amÜi --
i ;
'
I' ,
ridão, os movimentos luminosos dos vaga-lumes em busca ' o caráter
"I i
' '
'
'
do amor? Creio que esta última imagem não seja ainda a
I
sê, .,,o comp~rtame~1t~imrc;st~o pelop~der do co~~um;~~~l -
-- ----------- ---------------------- - ---- -- - --- -~--~

melhor. Não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram, \ psztere dei ccnzsurni)_liere1nodelare c1eformar a consciência
com efeito. Quando a noite é mais profunda, somos capazes )' 9:o povo italiano, até ------
uma irreversí-vel degradação;_o que
I'' ' ' 'I
! iI -------------- ----·'
, I'
'
de captar o mínimo clarão, e é a própria expiração da luz • não havia acontecido durante o Í~lscismo fascista, período
' '• ----- -- ---- ---- -- ------ - - -- -- --- - --------------- ----
I que nos é ainda mais visível em seu rastro, ainda que tênue. , durante o qual o comportamento era totalmente dissociado
' ---- - - - ,. - ---'- -' --------- -----------··
' Não, os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade \
'I
I
da consciência".' O aspecto 11
verdadeiramente trágico e dila-
. ' -------- -

dos "ferozes" projetores: projetores dos mirantes, dos shows cerante de um tal protesto se deve ao fato de Pasolini, nesses
\, políticos, dos estádios de futebol, dos palcos ci c te 1cvisão.
''
últimos anos de sua vida, se ver constrangido a abjurar o
· Quanto às "singulares engenhocas que se lançam umas
'" PA.SOU~ I, F P J.'arlicolo dcllc lucciolc ( 197~,). Inc.. . ~~· Soggi sul lu poliiim
"' Jd., Nous sommcs lous cn dangcr (1975). Trad. C :\lichc·l ct 11. JoubcTI c sul/o .<ociL"/,1. \I'. Si ti l'l S. llc i.<Jmk (i·cL). i\lilan: ;\rnoldo t\lomladmi, I<J':J<J.
-I.aurcncin. In: . Coufrc In td(;visio11 ct uufrcs tc.Yks sur lu po!iti(li/C c! !11 p. -lOS, Também Clll lr<Jd. lrilllCCSCl de 1'. c;uilhon, J.'<Jrlick eles lucioks. In:
socidé. Bcsancon: Lcs Solitaircs lntclnpcsliL'-l, 20(Li. p. LJJ. PASOU);I, IJ 1'. h ri!.' (orsuircs (I <J7C>). Paris: 11Lmmurion, 201lS. p. ISS.
'
'
I
' '
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30 Georges Didi Huberman I~ INFERNOS? 31

'
I' ,


' I
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. '
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, ' ~ I

: I!'
' ' (jlle havia constituído a base de toda a sua ener"ia noética reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência
I b _t ~ .

cinematográfica e política. l1istórica, logo, política, em sua vocação antropológica para


'
I ,
i I! I
A saber, seu amor ao povo que transilgura, sobretudo, a sobrevivência: "Gíria, tatuagens, lei do silêncio, mímicas,
' '
' I'
II
' i' suas narrativas dos anos de 1950 e todos os seus filmes estruturas do meio ambiente e todo o sistema de relaçôes
'
dos anos de l96CL Isso passa pela recuperação poética dos com o poder permaneceram inalterados", diz ele a respeito
dialetos regionais, a colocação em primeiro plano do sub~
31 da. cultura napolitana, por exemplo. "Até mesmo a época
'
'' I
'
proletariado nas crônicas, tais como as Flistoires de la cité .revolucionária elo consumo - que, por sua vez, mudou
de Di eu [Histórias da cidade de Deus] ou La Zangue route radicalmente as relações entre cultura centralista do poder
' '
'
2
de sable [A longa estrada de areia 1,' a figuração da miséria e culturas populares- só fez isolar ainda um pouco mais o
. . . suburbana em filmes como Accatone - contemporâneo, universo popular napolitano:' 34
.! I I'
, I Ij

. I
.. .. I diga ~se de passagem, de Damnés de la terre [Os condenados Um dia em que lhe perguntaram se, enquanto artista de
da terra] de Franz Fanon -, Marnma Roma ou La ricotta.'' esquerda, ele tinha nostalgia dos tempos brechtianos ou da
' . Em seus ensaios teóricos, por outro lado, Pasolini quis literatura "engajada" à francesa, Pasolini respondeu nesses
'' ' 1
' I. I'

, mostrar o poder específico das culturas populares, para termos: ''Absolutamente. Tenho apenas a nostalgia elas
'
I
I pessoas pobres e verdadeiras que lutavam para derrubar o
I

' ' ''


patrão, mas sem querer com isso tomar o seu lugar:' 35 Uma
' 11
· PASOLINI, P P. La meglio gioventú. Poesie friulane (1941-19eo3).ln: .
maneira anarquista, ao que tudo indica, de desconectar a
Tullc /c pocsic. W Si ti (éd.). Milan: Amoldo l\londadori, 2003. I. p. 1 380. Id.,
'• '
I La poesia dialcttalc dclnovcccnlo (1952). In: ___ .. Soggi sullu lcttcnllum resistência política de uma simples organização de partido.
c su/llrrlc. \V. Si li cl S. llc Laudc (éd.). Mibn: Amoldo l\lomlaclori, 1999. L p.
Uma maneira de não conceber a emancipação segundo o
713-~57. Id., La poesia popularc italiana (19.o~). ibid .• p, B)9-993. 1-!0f'FR,
K. von. Funlctioncn dcs Dialckts in der ilulicuiscliL:n Gcgcnwnrtslitcrntur: Pier modelo único de uma ascensão à riqueza e ao poder. Uma
Paolo Pasolini. !vlunich: \Nilhclm Fink Vcrlag. 1971. TEODON10, :.t (dir.).
maneira de considerar a memória- gíria, tatuagens, mímicas
Pasulini Irafriulano c ronuuu:sw. Rome: Centro Studi Giuseppe Gioachino
.I próprias a uma determina população -, logo, o desejo que
Bclli-Fditcll·e Colombo, 1997. C;\DEL, F La linguu dei dcsidcti. 11 diakllo
sccondo Pier Paolo Pasolini. Lcccc: l'iero J\:lanni, 2002.
.' ' ld. 1-/Uoin·s de lu citc1 de TJicu. Nouvcllcs chroniques rcnmlincs ( 19:00 ·I 966).
1
PASOLI~l, 1'. P. Lcs gcns cultivés ct la cullurc populairc (1973). Trad. P.
'l"rad. R. de Ccccalty. Paris: Callimcml, 19')~, !d., Lulouguc rou/c de sof,fc ( 19:o9).
'

. Gullhon. ln: __ . tcrits corsuircs, op. cit., p. 235-2.~(). CL id., l~troiksse


I
;
'
Tt·ad. i\. [)ourguiunon. Pat·is: i\rka, 199().
c "
de l'histoire cl immcnsité· du monde pqscm ( 197•1). 1/Jid., p, KJ-RB.
'
! et: sohrcludo: SICIII/\NO, L. (di r.). !'uso/i ui c !~OIIill. 1-lomc·-( :inisc·llo Balsamo:
!d. Nous summc'l lous cn dangcr. Op. cit., p. 9R.
' 1\'íusco di nnn<l in Tr~lSll'\'ClT Silv<1!la J<:ditoricdc, 2()(b.

!I I~ INFERNQSJ 33
. '
32 Georges Didi Hubrnmn

~---------------------~-
a acompanha, como tantas potências políticas, como tantos , · 1H> espaço de reflexão explorado, mais próximo a ele, por
----- - - --

protestos capazes de reconfigurar o futuro. Isto não aconte- '< :uv Debord. \
' --:-··--
cia sem uma certa "mitificação" do povo, sem dúvida. Mas
_-c.---- -- (_l{~g·a!l~~p, se bem nos lembramos, havia articulado toda
. o mito>- o que Pasolini chama~a_ccm1(1~equência de a "força ;t sua crítica política a partir de um argumento sobre o apa-
-----------~- - --------- --- ·-···-··----~--------·

do passado", e que se vê agindo em filmes como CEdipe roi recimento e a cxoosicão recíprocas elos oovos e dos Doderes.
j ) 1. .!L
---- -----------·-·-----· ----------·-. - --- -----~-----
I
! I
' [Édipo rei] ou Médée [Medeia] -fazia parte, justamente, ";\crise das democracias pode ser compreendida como uma
----··-·--.

segur1do
_____
ele, da energia revolucionária
----- -------
própria dos miserá- '
crise das condições de exposição do homem político': escrevia
36
veis, dos excluídos do jogo político corrente. ele, já em 1935, em seu t~unoso ensaio sobre "L ceuvre d'art à
j
Ora, é- tw:lo isso que o "desaparecimento
---------------------------------- _,_____
dos vaga-lumes"
-- .
-·----------- - -
I' cre de sa reproductibilité technique" [A obra de arte na era
'I
' destina ao fracasso. e ao desespero. Com a imagem dos de sua rcprodutibilidade técnica J. H Quanto à "sociedade do 3
' '
I' '
v~~ga-lumes, é-t(~da uma realidade do povo que, aós01h6s
. i
'
'
'
espetáculo"
.
fustigada por Gl1y Debor.d, ela passa pela unifi-
', '';.~"-" ','-"·"-'' --

de Pas0Ei1i, está prestes a desaparecer. Se "a linguagem das cação de um mundo que "está mergulhado indefinidamente
·----
!
''
coisas mudou" de forma catastrófica, como diz o cineasta em sua própria glória", ainda que essa glória seja a negação
émsuas Lettres luthériennes [Cartas luteranas], é porque, e a separação generalizada entre os "homens vivos" e sua
em primeiro lugar, o "espírito popular desapareceu". ~ E 3
própria impossibilidade de aparecer senão sob o reino - à
'' '

' 39
' poder-se-ia dizer que essa é de fato uma questão de luz, uma , luz
'.
crua, cruel, feroz- da mercadoria. Em 1958, num texto '

'
questão de aparição. Donde a pregnância, donde a justeza intitulado ":\;éocapitalisme télévisuel" [Neocapitalismo tele-
~- --"--~---------"- ------ -- --- ------- . "'- -- ·- -· '"•"•• - ·- --· ·--- ---- - --- - -, -' - . - ·--.'

do recurso aos vaga-lumes. Pasolini, desse ponto de vista, . , visual], Pasolini já havia constatado a que ponto as luzes da
1
"'
' ' parece estar ao mesmo tempo no rastro de'Walter Benjªr,nin/ telinha destruíam a própria exposição e, com ela, a dignidade
l~os povos: " [A televisão] não somente deixa de contribuir
. ·--·-- - - -
I

''' Cf sobretudo FERRERO, A. La ricerca dei popoli pcrduti e i! presente come


orrore. ln: . I1 cinema di Picr Prwlo Pasolini (1977). Yenisc: ;\larsilio ,,, BEJ\J,\:\11\1, W. I:ccunc d'arl :\!'eTc de sa rcproduclibilité tcdmiquc (1935).
l'ditori, 2005. p. lOY-155. SC:Ili::RFR, R. J:alliancc de l'archaiquc ct de la ré- Trad. R. !Zochlitz. In: . Clôur'rc's. Paris: (;allimarcl, 2000. p. 93. v. li L O
volution (1999). In: . . Passagcs pasolinicns. Villcncuvc d'Ascq: Presscs artigo pode ser lido em português na traduy~1o de Paulo Sé~rgin Rouanet. Jn:
Univcrsitaircs du Septenlrion, 2006. p. 17-30. BEJ\];\~ITN, \\'. ,\fo,~io e lc'cuico, orle c polítim. SJo l':wlo: 1\rasilicnsc, !99~.
" 1';\SOLINI, V l) Lc/lrcs lut!Iéricnncs. l'elil trai I<' pédag;<rgiquc ( 197C,). Tracl. A. p. 183. (()[,rcLs escolhida,, 1. I)
Rocchi Pullberg.
c
l'aris: Lc Scuil, 2000 (c'd. 2002). p. ~'Cl. ' DFBORD, G. L1 sot'it'l,; du spcctnclc ( l %7). Paris: C:allimard, 1902. p. I h-21.

i I
'
I

34 Georges Didi-Huberman I- INFERNOS? 35


I'
'

I
'"'
'
uma forma justamente de nào aparecer. Uma forma de tro- representar esta nova realidade do círculo dos "fraudu-
I'
'
car a dignidade civil por um espetáculo indefinidamente lentos" ou da vala dos "conselheiros pérfidos", sem contar
os "luxuriosos", os "violentos" e outros "úllsificadores". O
comercializável. Os projetores tomaram todo o espaço social,
que ele descreve como sendo o reino t~1scista é, portanto,
ninguém mais escapa a seus "ferozes olhos mecânicos". E o
pior é que todo mundo parece contente, acreditando poder lllll inferno realizado elo qual ninguém mais escapa, ao
qual nós todos estamos doravante condenados. Culpados
novamente "se embelezar" aproveitando dessa triunfante
' •
I ''
'I
' ou mocentes, pouco importa: condenados de qualquer
i indústria da exposição política.
lorma. Deus está morto, os "fraudulentos" e os "conse-
'
lheiros pérfidos" aproveitaram -se disso para ocupar seu
·'' / ''
.

: ~i
,11' I;
,I ,
, 'I
trono de Juiz supremo. São eles, cloravante, que decidem
,
Diabos! Tudo isso não se assemelha à descricão ele

'
o fim dos tempos.
'
um pesadelo? Ora, Pasolini insiste em nos dizer: esta é a Os profetas da infelicidade, os imprecadores, são de-
realidade, nossa realidade contemporânea, esta realidade , lirantes e desmoralizantes aos olhos ele uns, clarividentes
política tão evidente que ninguém quer vê-la pelo que c fascinantes aos olhos de outros. É fácil reprovar 0 tom
ela é, mas que "os sentidos" do poeta - esse vidente, esse pasoli~i~no, com suas notas apocalípticas, seus exageros,.
profeta - acolhem tão fortemente. A brutalidade
.. ---- ---.---- -- de sua - ----- -- -- -·- ------~--
su~s h1perboles, suas provocações. Mas como não experi-
I I' linguagem só se compara ao refinamento de sua percepção me~tar3 sua inquietação lancinante quando tudo na Itália de ·
----· --- .., ----- - ~-

l~oje- para citar apenas a Itália- parece corresponc1~r-cada ·,.


.. --- -- --- -· - -- -

: i diante de uma realidade infinitamente mais brutal. Mas


"
I haveria apenas gritos de lamento - "os vaga -lumes estão ) v~z mais precisamente à infernal descrição proposta pelo -
mortos!" - para responder àquela realidade? Além dos opeasta rebelde? __çor~onãg _v~r operar esse neot~1scismo •
"sentidos" hipersensíveis do poeta, compreendemos que / t~le_:v'isual de que elenos fala, um ~~;~Ül~ds111c) qL~~I~es-i~a
\ tal descrição diz respeito também "ao sentido", à própria c,adavez menos, diga-se de passagem, em reassun1 ü· ~cldas
\. \ significação, nào apenas literária, 1-;;as também filosófica \ as representações do fascismo histórico que 0 precedeu?
\. \ - - ' - --- ---- -- - '

1
,, I
I
· ' do que a palavra "inferno" possa querer dizer, alguns sé-
culos após Dante. Pasolini, em seus textos políticos e até

'' ''
seu último filme, Saló, pretendeu nos apresentar ou nos '
I' '

I- INFERNOSl 39
I' 38 Georges Didi-Huberman
I'
'

! li
'
Eis porque um comentarista de Pasolini pode chegar a ' tdlura popular dissolveu-se. As linhas de fuga mais ou menos
' ':
I I !'

aprová-lo até à paráfrase, até à supervalorização: ]>;tgãs que desenhavam os filmes que compõem a Trilogie estão
'orladas, e tudo se passa como se não houvesse mais nem margens,

Então, sem dúvida, sim: esse mundo é f~1scisla e ele o é mais do nem limites exteriores ao território do consumo; este último é
''
I; I , ''

'
que o precedente, porque é recrutamento total até às profundezas um poder, uma máquina cuja energia absorve infinitamente sua
I
' ' ' I
: '

''
;

da alma; ele o é mais do que qualquer outro, porque não deixa própria negatividade e reabsorvc sem interrupção nem resto 0

lj ue pretende se opor a ela.'"


mais nada fora de seu reino despótico sem limite, sem referência
c sem controle. [... ] Hoje [... ] essa característica, que se tornou
'I'
I' '
/1'
'
:, exorbitante nos poderes à época do totalitarismo mercantil, foi a Os vaga-lumes desapareceram, isto quer dizer: a cultura,
' ;' '
' '
tal ponto assimilada por todos que a produção artística é, primei- em que Pasolini reconhecia, até então, uma prática- popular
ramente, uma competição sem piedade para ganhar a possibilidade '
'I
ou vanguardista - de resistênciatornou~se elaprópria- um
- -·-- -.-. '

de ser recuperadaH Ii instrumento da barbârie totalitária, uma vez que se encontra


i
'
i
atualmente confinada no reino mercantil, prostitucional, da
i
Dito de outra forma - por outro de seus leitores atentos -, '
tolerância generalizada:
'

o desastre diagnosticado por Pasolini será descrito como


A pr~)fecia- realizada- de Pasolini se resume, finalmente, em '
' [... ] infinitamente mais avançado do que fazia supor a abor- uma frase: a cultura não é o que nos protege da barbárie e deve
'
dagem que inspirou os três filmes do início dos anos de 1970 Ia \ 1
ser protegida contra ela, ela é o próprio meio onde prosperam as
----------- --- ------------ --------------- ------- . ·,

saber, Trilogie de la vic]. Com deito[ ... ] não é mais possível, em


-----------.
'. -- '
formas inteligentes da nova barbárie. O combate de Pasolini é,
·---- ---- ---- ------ -- ---- -- ------ - --- - - -

1975, opor os "corpos inocentes" à massificação cultural e con1er- nesse ponto, bastante distinto daquele de Adorno c seu séquito,
I
~ial, à trivia!ização de qualquer realidade, pela boa razão de que que pensavam que era preciso defender a a] ta cultura e a arte de
'

(
i' a indústria cultural apossou-se dos corpos, elo sexo, de cros e os ' vanguarda contra a cultura de massa; os Êcrits corsaires 1 Escritos
I
''
! injetou nos circuitos de consumo. A ilusão elo reduto do imcmo- corsários] são, antes, um maniJ'esto em favor da defesa dos espaços

ria! ou do porto de resistência inserido nos estratos profundos da


'iI:, 1
iIi
' llROSSAT, A. De l'incunvénicnl d'(·trc prophl'lc dans tlll monde cyniquc cl
Ii ' I' 11 CUIZNIER, ).-!'.La disparilion dcs luciolcs. l.i.~II<'.', 11. 1~. p. 7k-7'J, 200:'. déscnch,mté. Op, ci/., p. 17-48.
, I
! '
'
''

I 40 Georges Didi-Huberman 1-INFERNOSl 41


' I.
I
I
' : :'
i:
,I
I
'
'

'
'
I'
I
,I li políticos, das formas políticas (o debate, a polêmica, a luta ... ) ;' :, A questào é crucial, sem dúvida inextricável. Não haverá,
1\1 ~ .. '
III
, contra a indiCcrenciação cultural. Contra o regime generalizado . portanto, resposta dogmática para essa questão, quero dizer:
'i
.: :i I 1
' '' i. da tolerância cultural [... ]. " nenhuma resposta geral, radical, toda. Haverá apenas sinais,
''
'
'' sii1gularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que fra-
,I Eis aí Pasolini esgotado, aprovado, prolongado, valo- camente luminosos. Vaga-lumes, para dizê-lo da presente
'
'
rizado. O apocalipse continua sua marcha. Nosso atual maneira. Mas no que se tornaram hoje os sinais luminosos
'·-·---.. - ---- ,_
"mal-estar na cultura" caminha nesse sentido, ao que tudo evocados por Pasolini, em 1941, e, em seguida, tristemente
'' ' indica, e é assim que, com frequência, o experimentamos. revogados em 1975? Quais sào as chances de aparição ou
. I,: , '

., I'
M<l§_uma_coisa é designar a máquin~_!otalitária, ()Ut~a coisa as zonas de apagamento, as potências ou as fragilidades? A
' '

;i / I' I
I~ , '
' ~- --~--~--~--

'I
é lhe atribuir tào rapidam~nte umavitóriª_definitivae s~~11 que parte da realidade - o contrário de um todo - a imagem
partilh<LAssl1jeitou-se o mundo, assim, totalmente como dos vaga-lumes pode hoje se dirigir?
··- -- - - --- ·- ---

o sonharam - o projetam, o programam e querem no-lo


'
''
!' '' imp~r- nossos atuais "conselheiros pérfidos"? Postulá-lo é, \
11

'
' !
justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer 1

crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos


projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencicios
''
' I
de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem ''
''

f: nào ver mais nada. ~ É, portanto, não ver o


4
'

I resistência.
'

espaço- seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado '•

I '',

no improvável -das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, 'i

elos apesar de tudo.


' '
''

I
,! ' I

'

"' J/Jid., p. Cl2.


r: No ori~~inal: "C'cst nc vo ir que dutoul." ()jogo Ul\11 os ~igniCic.u1tcs (: rcLOJnado
i·I'
'
. '
nesse trecho: tout, mnfgn; tnuf, c no JJ<lr<igrafo :-.cguintc, !ou te, paLwras Lamiw111
'
'
gri(adas em iL~llico no original. (N.T.)


'
I'
: ':'
''
'

42 Georges Didi-Huberman l-INFERNOS? 43


'''

'• ''
i
I
I
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I'
, I
-
I
'
SOBREVIVENCIAS
'

'! '
; ;
.! I
, I
I
Primeiro, desapareceram mesmo os vaga-lumes? De-
'
I / ! i
sapareceram todos? Emitem ainda - mas de onde? - seus
, I
"' ' maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em
'
algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do
'

' i'
todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos
projetores ferozes? Em 1982 foi publicada na França uma
-
obra intitulada, justamente, La disparition des lucioles [O
desaparecimento dos vaga -lumes]. Nela, Denis Roche;:,seu
4
'
autor, descrevia suas experiências de poeta-fotógrafo. R O
título, evidentemente, soava como uma homenagem ao
poeta -cineasta assassinado sete anos antes. Denis Roche '
--·
'

-~ ---- -·------· -

utilizou, para um capítulo de seu livro, a forma de uma


'
, ; I'
carta - estilo do qual o próprio Pasolini já havia feito
grande uso - endereçada a Roland Barthes,) na qual lhe
fez a firme, ainda que carinhosa, crítica póstuma, de ter
omitido, em La chambre claire [A câmara clara], tudo o que

-----------

,,, ROC!!F, D. L1 díspr11ition dcs /uciolcs: ré!kxíons sur l':JCtc photographíquc.


Paris: Jé.ditiom de I'Ftoilc, 19S2.

I
'' 45

I
.
i
\.I a fotografiasemostra capaz de operar no plano do "estilo",_ campo, ao cair da noite. E eis então a reaparição, a desco- . .
.. . . . .
'
• da "liberdade" c, diz ele, d<Y "itJl~[l11it~rlcia", ') _ 1
berta encantada dos vaga-lumes: "Eles são uns vinte que se
-.. ·-·-·'
-- ------ ·-
-- - ., -- - ---
' .
. ' Esse motivo da intermitência parece inicialmentes~~r_prc- movimentam em torno das folhagens. Nós exclamamos [... ]
I - .

endente (mas somente se consideramos uma fotografia como cada um conta onde e quando os viram [... ]:'Beleza inespe-
' I'
I
um objeto e nào como um ato). De fato, ele é fundamental. rada, no entanto, tão modesta: "Outros dois voam um atrás
• - --- ~

como não pensar, nesse sentTaü; -no car=áter intermitente. do outro, um pouco mais longe, dois pequenos traços alter-
(saccãaerdàú11ageál-di8Jéti<:~1, de acordo com.iVValter Bep- . .
nados de morse luminosos na parte inferior do talo:' Beleza
janlin\ essa noçào precisamente destinada a compreender siderante que é a de "ver isso, ao menos uma vez na vida': 51
de que maneira os tempos se tornam visíveis, assim como a Em certo momento, entretanto, "os últimos vaga-lumes se
'
' '
própria história nos aparece em um relâmpago passageiro vão, ou desaparecem pura e simplesmente". 52 E a página de
que convém chamar de "imagem"?~ ~_f\:_ir1ten11itência da
1 maravilhamento se fecha. Redes aparecimento dos vaga-lumes .

'
imagem (image-saccade) nos leva de volta aos vaga-lumes, Mas como os vaga-lumes desapareceram ou "redesapare-
.
I .. . .

certamente: luz pulsante, passageira, frágil. Tornam, ainda, ceram"? É somente aos nossos olhos que eles "desaparecem
. i
os vaga-lumes os tempos visíveis sete anos após a morte de pura e simplesmente". Seria bem mais justo dizerqueeles"se
Pasolini? O título escolhido por Denis Roche para seu texto vão", pura e simplesmente. Que eles "desaparecem" apenas
-- --- --· --·--·- -

parece dizer: não. Tudo se altera, entretanto, a certo momento na medida em que o espectador renuncia a segui-los. Eles
de nossa leitura. O motivo geral esboçado na crítica a Barthes desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu
'

dá lugar, de repente, a um fragmento de diário escrito em 3 ' lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. O próprio ·
de julho de 1981 numa cidadezinha italiana. Como na carta "",'' Denis Roche,/mais adiante em seu livro, fornece todos
de 1941, trata-se de um passeio inocente enlre amigos, no ()S elementos para compreender essa relação através da
necessidade fotogrúfica defazerimagen1 - o que Barthes

'
I
não teria observado, imobilizado que estava no luLo frontal
., · 1 '~ JlJid., p. !58 (CapíLulo cn1 que a n1orlc de Pasolinl {\então, esponlancamcnlc
I ' •
do "isso foi"- a partir de uma iluminação intermitente que
evocada).
"' B FN JAIVJ IN, W. Paris, cnpit ale du X X·sii:c/c. l.c Iin c dcs passagcs (I '!2~ -19~1 O). é também, assim como para os vaga-lumes, uma vocaçào à
'I Trad. ). Lacoslc. l'aris: I .c C: cri; I 9S 9. p. 4 7S 4 79 U. I lI[) l-li C 11 F R i\ L\ N, G. C: c
q u c no us voyons, u' lfll i nous rcgd rde. Jla ris: J\.'1 i nu i l, I 9'-JI. p. 5 :~ · I ~l '). C L l am hl~m:
' '; " 1\0U-11 • l l_ Of'· cit .. p. 165.
Ii [)JI)I-I!UilF!ZiVl!\N, c;_ llcV!lill /c l<'ilif'S: hisloir,· ele: J'arl c\ anat:hro11ismc cks
i1nagcs. Paris: 1\~Iinuil, 2000. p. ~5-l :15.
-. Jl,id .. I'· 16fl.
'
' i !'
I

•I
'. 46 Georges Didi-Huberman li·· SOBREVIVÊNCIAS 47

I'
'
I

I '
'

' I'
iluminação em movimento. Os fotógrafos são, primeiro, via- de France [Biblioteca Nacional da França], com o título Les
54
jantes, explica Denis Roche: como insetos em deslocamento, lucioles de la Vi !la Médicis [Os vaga-lumes da Villa Médicis ].
·com seus grandes olhos sensíveis à luz. Eles formam uma Mais recentemente, eu percebi, com tristeza, que o "Bosque
' i de Bambus" do Pincio havia sido derrubado. Os vaga-lumes
! :' '
I [... ]tropa de vaga-lumes avisados. Vaga-lumes ocupados com haviam, portanto, novamente, desaparecido.
I' ,
'
sua iluminação intermitente, sobrevoando a baixa altitude os Há provavelmente motivos para ser pessimista a res-
descaminhos dos corações e dos espíritos da contemporaneidade. peito dos vaga-lumes romanos. No mesmo momento em
Tique-taque mudo dos vaga-lumes errantes, pequenas ilumina- que escrevo essas linhas, Silvio Berlusconi .~e . exibe ' como
- -

ções breves [... ] com o acréscimo de um motor que fará do olhar sempre, sob a luz dos projetores, a Liga do Norte age com
' .' ' 55
' I'
, ' I· atento um salmo de luz, clique-claque, de luz, clique-claque etc. 5
3
eficácia e os Roms são fichados, uma boa maneira de
. I'
colocá-los para fora. Há sem dúvida motivos para ser
I
,I
'
Eu mesmo vivi em Roma uns dez anos após a morte de pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos
Pasolini. Ora, havia ali, em determinado lugar da colina de na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os
' '

Pincio- um lugar chamado "Bosque de Bambus"-, uma ver- vaga-lumes. Aprendo que existem ainda, vivas, espalha-
dadeira comunidade de vaga-lumes cujos lampejos e movi- das pelo mundo, duas mil espécies conhecidas desses
:' mentos sensuais, com essa lentidão que insiste em manifestar pequenos bichinhos (classe: insetos, ordem: coleópteros,
seu desejo, fascinavam a todos aqueles que por lá passavam. família: lampírides ou lampyridac). sr, Certamente, como
I !'

Eu me espanto hoje de não ter pensado em fotografá-los (pelo observava Pasolini, a poluição das águas no campo faz
' ' menos de fazer uma tentativa). Em todo caso, os vaga -lumes com que morram, a poluição do ar na cidade também.
I:

não haviam desaparecido entre 1984 e 1986, até mesmo em Sabe-se igualmente que a iluminação artificial - os lam-
'
I

Roma, até mesmo no coração urbano do poder centralizado. padários, os projetores - perturba consideravelmente a
. .
vida dos vaga-lumes, como a de todas as outras espécies
' I'

Eles sobreviveram ainda muito bem no início dos anos de


1990. Eles deviam estar lá há muito tempo, uma vez que uma
partitura para piano, datada da Primeira Guerra Mundial, foi :;~ SA M U EL- ROUSSEAU, M. Lcs lucioles de la Vi/la lvlédicis. Paris: ). 1-Jamclle, s.d.
:;r, Na França, o termo "Rmn" designa os Tzigancs (ciganos) originários dos países
conservada no "Fonds Casadeus" da Bibliotheque Nationale
da Europa do Leste, Romênia e Bulgúria, principalmente. (N.T)
i 'i
"' "' CC MCDERMO'J', F A. Colcoptcrwn Cutalogus. Supplcmcntu, IX. Lampyridac.
' W. O. Slecl (di r.). Gravcnhagc: W. junk, !966.
'I '·' Ibid., p. !49-150.
'
' i

'

' '' 11- SOBREVIVÊNCIAS 49


48 Georges Didi-Huberman

:i
'I

I
i;
'' li
'li
'

I.
I noturnas. Isso conduz, às vezes, em casos extremos, a Vale dizer que, em tais condiçôes, os vaga-lumes f(x-
I
,I
comportamentos suicidas, por exemplo, quando larvas mam uma comunidade anacrônica e atópica (Figura 1).
'

de vaga-lumes sobem nos postes elétricos e se transfor- Eles estão, no entanto, na ordem do dia, talvez mesmo no
mam em pupas- da palavra latina pupn, a boneca, e que cel1tro clenossos modernos questionamentos científicos. o
i
I designa o estágio intermediário entre larva e imago, ou prêmio Nobel de química acabou de ser atribuído a\f;:lsamp
'
'' I
' i' seja, a ninfa -, perigosamente expostas aos predadores Shimomuraf.
---··· '
trata-se
'---...- -
de um
-
hibakusha, um sobrevivente das.
I i '

I diurnos e ao sol que as resseca até a morte. É preciso saber radiações da bomba americana lançada sobre Nagasaki em
I '
i '
'
' ,I'
!, ' '
que, apesar de tudo, os vaga-lumes formaram em outros 9 de agosto de 1945, quando ele tinha dezessete anos, e que
' '

'
I ' 1,
'
I ,'I'
'
lugares suas belas comunidades luminosas (lembro-n1e, dedicara toda a sua vida de pesquisador aos fenômenos de
I '
' ' '
' então, por associação de ideias, dc algumas imagens do bioluminescência observáveis em certas águas vivas, sua
' '
!
final de fiahrenheit 151, quando-.
o personagem ultrapass~ --- -
especialidade, mas também entre nossos caros vaga-lumes." 7 •
I '1 1 ' '
' '
' '
os limites da cidade e se encontra na comunidade dos Já em 1887, o fisiologistaRaphael Dubois:havia isolado nas
'
··---- ------ -
' I
' homens-livros). lampírides uma enzima que chamou de luciférase e que
''
I - . -- . ----

' !'
age sobre um substrato químico, a luciferina, no fenômeno
'' '
' de bioluminescência nos vaga -lumes ( de_cididamente, não.')- -d)·
.,• - ·- I ·
• •·f '

'
11' '
' '
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) I' '
cessamos de volt.tr_aQ__diahQ\1(;-ª0Ülf~ru_o,_s:ujQ.fogo_= a Ql,á/1 'I

' ( '
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j\ luz _-:-_1_1_!-:lnca_e§J<Í.l!luitQJong~).
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pour: \Vmld Scicntil'ic Puhlishing C:o., 2006. 1\ prccisiío hiogrMica que apre-
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(1%7). Trad. 1'. de Vos. ;\rlcs: f:dilions Philippc Picquicr, l~SS (é·d. 1995).
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p. llJ-67: relato em que Nosaka dú ;:_\ palavn.1 ''vaga--IUJne" uma grafia original
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significando literalmente "fogo que cai got·a <:1 gota': c em que os pequenos
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discrclo, mc1s !"irmc- das bon1bas
II •
----~··-----"""_. ______ _.c_. ___________ .... --··----·----- - - -- - -- . -- - ------ --- --- -·-··-· --------
inccnditiria:-., das balas riscanlcs, cül~ ll1CSJ110 da pocir<l em movin1e11to que
l{cnala Siqueira Bueno, Luciu/cs, 2000. Serra da C:;LncLslra (nrctsi\). l:olografia. pas:--,<1 sobre as cidcllks japonesas bombardeadas em Jl)iJ S.
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11- SOBREVIVENCIAS 51
. ''I' 50 Georges Didi Huberman
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Seria criminoso e estúpido colocar os vaga-lumes sob Como se, de repente, ele renunciasse a levantar os olhos em
li
um projetor acreditando assim melhor observá-los. Assim direção a essas regiões improváveis de nossas sociedades que
como não serve de nada estudá-los, previamente mortos, ele havia, no entanto, tão bem descrito; como se ele próprio
alfinetados sobre uma mesa de entomologista ou observados não pudesse mais se colocar em movimento, assim como ele
'
''
li como coisas muito antigas presas no âmbar há milhões de o havia feito tão bem ao preparar Accatone nas zonas mise-
'' ''" anos. 58
Para conhecer os vaga -lumes, é preciso observá -los ráveis do subúrbio romano, tendo Sergio Citti- o irmão de
' . - - -- - - --- -- --- -

no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar Franco, o intérprete de Accatone- como "dicionário vivo"
;i
' vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida do dialeto romanesco. "Eu passei, assim, os mais belos dias
'
I
' '
'
por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. de minha vida", disse ele a propósito dessas incursões numa
I •
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' ' !
I
Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de região da humanidade que era ainda invisível - marginal,
cinco mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à menor- à maioria de seus contemporâneos. r-o
de uma única vela. Assim como existe
-· -··· - . uma literatura
'
..
menor
.
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~" -·---- -
Mas, em 1975, Pasolini postulará a unidade sem recurso
I \- .

- como bem o mostraram Gilles Deleuze


·····-·-
e Félix Guattarica '
de uma sociedade subjugada em sua totalidade, sem temer,
' '
respeito de Kaí1za -, haveria uma luz menor possuindo os aliás, contradizer a si mesmo: "É certamente uma visão· ----- ------ -------- -- ---~ --·---- ______________ ... _ • •j

'
'
'
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mesmos aspectos filosóficos: "um forte coeficiente de dester- apocalíptica (une visione apocalittica, certamente). Mas se, ao:
. I'·

ritorialização"; "tudo ali é político"; "tudo adquire um valor Iado dela e da angústia que a suscita, não houvesse também',,
••
'
coletivo", de modo que tudo ali fala do povo e das "condições em mim uma parte de otimismo, ou seja, o pensamento de
59
revolucionárias" imanentes à sua própria marginalizaçãp. que é possível lutar contra tudo aquilo, eu simplesmente não
'
'
Acreditando ter constatado o irremediável desapareci- estaria aqui, no meio de vocês, para falar."hl
I
! mento dos vaga-lumes, Pasolini, em 1975, teria somente se
'
-----------------
' '
imobilizado em uma espécie de luto, de desespero político. ''" PASO!Jl\ I, I) 1'. La willc (I% I). Trad. A. Boulcau c S. Bevacqrw. Cahicrs du
' "
:;

Cinc 5ma, Hors série, p. I R, 19R I (Pc1solini ciné·aste).


'
' ,., P.\SOI.1l\1, P P. Lc génocidc. In: .. _ . Lcrits mrsoircs. Paris: Flammarion,
·;s Encontran1-sc cxcn1plos de vaga-lumes (secos, escuros), capturados no ânl- 1976 (éd. 201b). p. 266. Poderíamos sem dúvida analisar essa posiçJo 11 partir
bar, no livro de GRIMALDJ, D.; ENGFL, Ivl. S. Fvoluticm oj'tlzc iJ,;ccls. Cam- do que franco l'ortini chamavc1, j{J em 1959, ele a "contradição" operando em
. '' bridgc-Ncw York: Cambridgc Universily Press, 2lHb. p. 3'74-306. Pasolini. C f FORriJ\1. L1 contradizionc (I '!59). In: __ . i\1/rnvcrso l'asolini.
I i
:'' .'' ''' IlELLU/.F C.; GUATTARI, 1·'. Kaflw: pour une liltér:llurc mincure. Paris: Tu ri n: F in aud i, 199 J. p. 2 I -37. C: f também, Hl lZT IN L Pasol in i poli 1ico ( I 979).
· 1"-c
Ivl .111lltl,
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w ··.U.
I-'· p. ~-;J oo Jl,iJ, p. 191-206.

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52 Georges Didi-Huberman li- SOBREVIVÊNCIAS 53
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. '• '
Inútil recorrer à chave biográfica para compreender o Mas é preciso opor a esse desespero "esclarecido" o Ülto
laço fundamental que une, em Pasolini, a imagem dos vaga- de que a dança viva dos vaga -lumes se efetua justamente
-lumes- tanto em 1941 como em 1975- a alguma coisa no meio das trevas. E que nada mais é do que uma dança

.'
I' que se poderia nomear história política da sexualidade ou, do desejoj(mnando cornuniâade (isso que Pasolini deveria
'\\ , melhor ainda, umaEist~ria sexttalizada da política. Em 197 4, . colocar em cena no último plano de Salà, isso que ele bus-
I !
I , ji
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·. ··. : .\, 1por
-
exemplo,
-
Jean- François
,_, ____ ... -.
LyojarcUmbiicava seu Économie
- cava ainda, sem dúvida, na praia de Ostia, pouco antes de
· iI libidinale" [Economia libidinal],
2
.. - -. -
enquanto Michel Foucault\ aparecerem os faróis do carro que o dilacerou). Os órgãos

'I
' ! começava sua grande investigação sobre a Histoire de la fosforescentes dos vaga-lumes ocupam nos machos três seg-
!' : I " --

. 'I
'
II sexualité [História
. . ..
da sexualidade]
.
no Ocidente.
.
6
) Pasolini,
. mentos do abdômen; nas fêmeas, somente dois. Enquanto,
,
' i.
I
'
I de sua parte, havia compreendido há muito tempo, por em algumas espécies animais, a bioluminescência tem por
''
:1 exemplo, em seu documentário Comizi d'amore [Comício função atrair as presas ou defendê-las contra o predador
' :I . i de amor], em 1963, que as formas assumidas ou marginais (por exemplo, espantando o inimigo através da emissão de
i da sexualidade implicam ou supõem uma certa posiçüo ·. um brilho luminoso inesperado), ·~-------·
nos varra-lumes trata-se /
_o__ _ . __ -·'1
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' '., '
: política que vem sempre acompanhada - como no amor -
'
antes de tudo, de uma exibição sexti~l. Os vaga -lumes não:
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',de uma certa dialética do desejo. A infelicidade é que, em : se iluminam para iluminar um mundo que gostariam de'
f ' I '
'I
1975, a vida sexual de Pasolini se encontrava sob o fogo dos ',"ver melhor", não.''' Um belo exemplo de desfile sexual é,
. ii
'' '
projetores; que sua Trilogie de la vie havia sido despejada, .fornecido pelo Odontosyllis, um pirilampo das Bermudas: •
"' . '
como o analisa Alain Brossat, no circuito mercadológico
I
'
da "tolerância" cultural; como se seu desespero dissesse O acasalamento ocorre na lua cheia, cinqucnta e cinco minutos
I I
I respeito indissoluvelmente ao desejo sexual e ao desejo de após o pôr do sol. 1\s fc\meas aparecem, primeiro, na superfície e
I

I'
' emancipação política. nadam rapicbmente, descrevendo círculos c emitindo uma luz viva
I ,

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'
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' . ''' C L C: I L\:\ ll' IAT, Il. I. a hi oi um i 11 csccn elO. In: C Hi\ i'vl P Ii\T, [); L;\ RP FNT, J_ P.
'
'
II (di r.). Hio· c!u'nzi-lunzinesccncc. Paris: J\lasson, ]9Sl3. p. l S: ".i-\ função de um
,.. LYOTi\Rll, j.-1'. hollrJ/11/C lilmli;wlc. l'aris: Minuit. I Y/1.

sin~1l luminoso qut.' pctrL'O.Tia ~l llL1is evidente scricl <1 de ilumin<Jr. Faradoxal-
i i

''' l·'ClUC:AU t:l~ NL llistoirc de In scxu!lli1< 1: la volonté· de savoir. l\1ri." C:1llimard. nwnlc, C.\i~ll'm pou"-·os exemplos não equívocos desse papel." Nenhum caso
'
:"'i '
I Y76. v. L (_ks.sc lipo pan'L.L' kr sido idcnliflc1do nos vaga-lumL'S .
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I

54 Georges Didi-Huberman
I' 11- SOBREVIVÊNCIAS 55
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' "' I colorida, e não pelas cores habituais visíveis durante o dia. Isso
I
que aparece como um halo. [... ]Os machos sobem então do fundo
'
ii
do mar, emitindo também uma luz, mas sob a tórma de raios. Eles não acontece sem certa malícia. O vaga-lume fêmea do gênero
'

I se dirigem com precisão em direção ao centro do halo c giram ao Pholuris responde aos lampejos do macho em voo, uma conversa
I!
"'
mesmo tempo que as fêmeas durante alguns instantes, liberando \ luminosa se segue c os amantes se acasalam. Mas,_clepois dissO,•\

'
I seu esperma com um exsudato luminoso. A luz desaparece em \' a fêmea_adota a_se<:[ttência dos cl<lrôesde un;-outro
I ·---------~------··-··----------·
vaga~lum~· i
.. ---··--------... -------I
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'

I seguida brutalmente. 65 . /
!d()__ gênero Photinus eenga~laot; machos que posam perto dela e
i ---·----------·--
:
---------------- ·------- --- --···---------- -----,

i. I
'I
-' i acabam sendo
--
devorados.
\--------- -----
Nesse
--
caso, está claro
--- '----
que --
Lúcifer está
...
- -- ------ ------ -------- --- __ ,,.,,

' prcsente('''
i , I
Em nossas regiões do sul da Europa, onde predomina a 1
--
Ii

,, :I
espécie chamada Luciola Italica ou vaga-lume da Itália, as
,I I' I''
'
'
coisas se passam de forma diferente, e diferentemente ainda Através dessa nova evocação do diabo "portador de luz"
I ' '
'
,I
'I
no continente americano, como bem o descreveu Claude - ou do mal-, o que está em questão, antes de tudo, é apenas
'

' Gudin em sua Histoire naturelle de la séduction [História o jogo cruel da atraçào inerente ao reino animal: dom de
' '
'
natural da sedução]: yida e dom de . morte, alternadamente, apelo à. reprodução
e apelo à destruição mútua. Ora, no centro de todos esses
fenômenos, a bioluminescência ilustra . um princípio II~~- .
.'i I

Conhece-se bem, de nossas noites estivais, esses pequenos
, · gistralmente introduzido em etologia por:Adolf Portman:\ ).
: .I sinais luminosos amarelados emitidos pelos pirilampos. São as ' '.- . '-'- __ ' - - ' -- "" ; ------.:~;' ,; '

larvas de um pequeno coleóptero do gênero lampíride. Ignora- \J


, _ .;nãoj1á co111unidade Jviva sem umaf<::nQmtÚ1QÜ:2gia_da_ap'l:e.c If/

I
' : I I , . .
I

-se porque a larva é luminescente, mas sabe-se que a lampíridc


'1 sentaçào em que cadaindivíduo afronta- atraiou repele, V .
I

fêmea, que mantém um aspecto larvar apesar de sua maturidade,


atrai os machos voadores, com suas duas pequenas lanternas, ao "'' CUDlt\, C:. Une !ústoirc ;wturcllc de lo séductioJI. Paris: Lc· Scuil, 2003 (éd. 200S).
I, I , ' p. 3G-.l7. Sobre a biocjuímica desse "sistema Vél"a-lume"
b ,c(., CHi\i\111'1'''1'
. .t ' \ , !) . !·r .L

canto de um arbusto. Nos primos americanos, os vaga-lumes do biolumincscc·ncc. Art. cit., p. .l•1-5S ("l.c systc·mc luciolc: lucilerinc typc bcnzo-
i
• •
I' I gênero Photinus, machos c fêmeas comunicam-se entre s1 atraves thiamle, oxydalion précédéc d'activalion du substral''). Ci". também: Ci\SJ:, j. F
I I
' ' cf n/. (dir.). fJrod.:cdings (!/lhe I J-'h lntcnwtionnl S)1JJljJOsiztlll on 13íolwninesccnce
de vários raios. Assim, o desfile nupcial dos vaga-lumes do Antigo mui U;c!Jiilunúncsu'IICC. Singapour-Londres: World Scicntilic l'ublishing Co.,
; ' '
i ; '
I' , I, I
.; I e do Novo Mundo, adaptados à noite, se faz por luminescência 200 l. p. I ·13- 21H (I 'irely lliolumi ncsccncc ). SDbrc os debates concernentes à ori-
gl~m da biolumincscl·nda --- Ílllcrpret<H;<lo acla]Jlacionista contra a intcrprctaçlo

.. ,...I.I' i"ilogcnética , cl·. CRI ~1.-\l.Df, ll.; FNGEL, iVI. S. EFo!ution o/til c inscct. Op. cil ..
...
p. _)()_)-_)()/.
• ~,,-. .._,~

'·'· 1/;id., p . .lO.


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I 11- SOBREVIVÊNCIAS 57
' '
56 Georges Didi-Huberman

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I'
' I
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I
'
i : \
I' ' \
' deseja ou devora, olha ou evita- o outro.('~ Os vaga-lumes
'
por Michel Foucault\e Gilles Deleuze 1- "não existem mais '
. --"--- I

se apresentam <~ seus congêneres por uma espécie de gesto ·


' I'
'
'
seres humanos" aos olhos de Pasolini, nem comunidade
I .

mímico que tem a particularidade extraordinária de ser viva. Há apenas signos a brandir. Não mais sinais a trocar..
Ii
·. apenas um traço de luz intermitente, um sinal, um gesto, Não há mais nada a desejar. Não há então mais nada a ver
' '

. nesse sentido. 6 ~ Sabe-se hoje que no nível mais fundamental nem a esperar. Os brilhos - como se diz, "lampejos de
' i '' todos os seres vivos emitem fluxos de fótons, seja no espectro esperança" - desapareceram com a inocência condenada
'
9
visível ou no ultravioleta." à morte. Mas, para nós que o lemos hoje com emoção,
'
{'-{'-{'- admiração e assentimento, coloca-se doravante a questão:
'I

.'
por que Pasolini se engana assim tão desesperadamente
'' Tal foi, no entanto, o desespero político de Pasolini em
.I I
e radicaliza assim seu próprio desespero? Por que ele nos
''
1975: teriam as criaturas humanas de nossas sociedades
inventou o desaparecimento dos vaga-lumes? Por que sua
contemporâneas, como os vaga -lumes, sido vencidas, ani-
própria luz, sua própria fulgurância de escritor político aca-
quiladas, alfinetadas ou dessecadas sob a luz artificial dos
baram de repente consumindo-se, apagando-se, dessecando,
projetores, sob o olho pan-óptico das câmeras de vigilância, aniquilando a si mesmas?
sob a agitação mortífera das telas de televisão? Nas socie-
Pois não foram os vaga-lumes que foram destruídos,
dades de controle - cujo funcionamento geral foi esboçado
mas algo de central no desejo de ver- no desejo em geral,
. '


logo, na esperança política - de Pasolini. Compreendem-
;' I
''' PORTMANN, A. I:aulopréscntation, motifdc l'élaboralion dcs formes vivan- -se globalmente as razões exteriores a esse esgotamento: os
tes (1958). Trad. ). Dewitte. f.:tudcs Phénoménologiqucs, v. XII, n. 23-4, P· 131-
':i
lM, 1996. E, em geral, PORTMANN, A. La forme mlinwle (19)8). Trad. e_, ataques contínuos de que era objeto, o fracasso -ligado a seu
i ! Rémy. Paris: Payot, 1961. Sobre a obra de Portmann, cf. Tlll:-JES, G. Lal.ormc próprio triunfo- da Trilogie de la vic, e tantas outras coisas
'
animal e selem Brrytendijk et Portmann. Etudes Phéiwmclwloglqucs, v. ~li, n.
'
' ' 'i
23-24, . 195-207, 1996. Cf. também: ;\nimalité et humanité. ;\utour dAdoll que se encontram facilmente na biografia do cineasta. Mas
Portmr~1 n.
P.evuc f.uropécnne dcs SciCilces Sociolcs, v. XXXVll, n. 115, 1999. quais fcJram as razões intrínsecas, ligadas à sua própria forma
1,s LLOYD, J. E. Biolutninescencc and cotnmunicalion in insccts. /\nmwl ~<c~iÚ!W
of t:illomology. v. XXVlll, p. 131-160, 1983. BRAH;\:VI, M. 1\.; Wl:-.:-JZLL, f. de linguagem? Que movimento interior de seu pensamento
I' ' \:V. lhe origino f photic bchavior anel thc cvolution oi sexual communicliton o levou assim a esse desespero sem recurso, ou antes, sem
'
'
in !'ircllics. Uodislic, v. XIX, p. I 22, 21111:\.
I, ,,., C: f. CHANG, j. ].; !'!SI l ].; l'OI'I', 1'.-A. (dir.). Diophoto11s. [)ordrccht-Boslon-
outro recurso a não ser o de se afirmar uma última vez,
I,
-Londrcs: Kluwcr Acadcmic l'uhlishcrs, l 99S.
. .
' '
· iI;
' I

; '

'
"
:
58 Georges Didi-Huberman 11- SOBREVIVENCIAS 59

' '
. I
i: I

ardentemente, como uma falena nos últimos segundos de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa
. .

sua trágica e luminosa consumação? Dou-me conta de que, ser levado em consideração .. Reciprocamente, a política,

ao colocar essa questão, não é tanto o próprio Pasolini que e1n u11~ mon~ento ou_outro>.se~lcomvanh<:t.cJ_ajaculdade de

-------- --------- ----- --------------------- ------·---.-----------·-··
. '
.' ' estou querendo ardentemente compreender melhor, mas um irp.aginar, assim coJ11o(f-Ja!JJ1.<lh"A&eJldLo mostro11, porsua
I
certo discurso- poético ou filosófico, artístico ou polêmico, vez, a partir de premissas bem gerais extraídas da filosofia
de Kant. E não nos espantemos de quea exte1;~~~~fle~ão .
71
• filosófico ou histórico - proclamado atualmente em seu
; I rastro e que quer fazer sentido para nós mesmos, para nossa política empreendida por Jacques Ranciêre devesse, a certo
I
' I'
'
situação contemporânea. momento crucial de seu desenvolvimento, se concentrar
I, As consequências desse modesto exemplo poderiam em questões de imagem, de imaginação e de "partilha do
I
'. ' .'
sensível': ~o

bem ser consideráveis, fora mesmo da significação extrema, •

hiperbólica que Pasolini lhe veio a conferir. }rata-se nada Se a imaginação - esse mecanismo produtor de imagens
' mais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio para o pensamento- nos mostra o modo pelo qual o Outrora
"princípio esperançà' através do modo como o Outrora I
I encontra, aí, o nosso Agora para se liberarem constelações .
encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, uma '· , I '
ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto

I
I
constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio

esse encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um
' 711
.'
!' '
.' ' ''
'
Futuro.
'
Ainda que beirando o chão,
-----·------
ainda que
.
emitindo
··-··-
presente ativo com seu passado reminiscente. Deve-se sem •

" -- " ' I
uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente, \
' dúvida a(\Valter Benjaminessa colocação do problema do
.. ~ã~ciesenham os vaga -lumes, rigorosamente falando, uma
'•
' '
li I'


tempo histórico em geral.n Mas cabe inicialmente ai Aby •
_,.. , I
I
tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo '•
'
' ' --- ' ' -- ------------ -----·--·--- ''

I'
' . dos vaga-lumes é afirmar que em nosso rnodo de imaginar
I ,' ' AREI'\DT, H. fugcr. Sur la philosophic poliliquc de Kant (1975). Trad. M.
jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de . Rcvault d'Ailonncs. Paris: Lc Seu i!, I 991. p. IIS-126 (1 :imagination).
'•
-- .
RA:\C:IFRF, ). !.c jlurtogc du scnsif,fc. Paris: La l'abriquc, 2000. Id., Lcs dcstin dcs
:I
;I ii imngcs. Paris: La !:ahriquc, 2003. E, rcccntcmentc, Td., Lc spcctuteur éJJUlllCÍp(!.
I
, :I '. :-o Rcconhccenlos, n1ais uma vez, a JJn')]-nia dcCiniç:w da "imagem dialética", cf. Paris: !.a Fabrique, 201JS.
'
BENJA~·IIN, W. l'aris: capitalc du XIX' siêdc. Op. cil., p. •17S-9. 1'\oçào que de- -_, C I. ;\KlS['S, S. L' unge de /'h isto ire: Roscnzweig, Benjamin, Scbolem. Paris: Le
verei, a parlir de agora, ser cunf"rontada com a das "imagcns--souhaits'~ segun- Scuil, 1992. Jl. 93-1 SI. U)WY, ívl. Wultcr 1-lcnjmnin: avcrlisscmenl d'inccndic. Une
do 1\I,OCII, F. Lc {Jrincipc cspcmncc. (I YJS-1 9:19). Trad. 1°. \Vuilmarl. Paris: lcct urc d cs thc"'s Su r /c mnupl d'h isloirc. Paris: PUI ,; 200 I . D fD 1- H UI li' Ri'v1 A N,
Callimard, I 976. p. •103-529. v. I. G. lh:l'll/1//c 1<'1//f'S. np. c'it., p. S5-15:'.

'
I

I 60 Georges Didi-Huberman li· SOBREVIVÊNCIAS 61


I
• ' I'I; •
'
I' I
II
i Ii
I

Warburg· ter mostrado não apenas o papel constitutivo das\ imagens em perpétua metamorfose. É o que aparece em
\
sobrevivências na própria dinâmica da imaginação ocidental, : seus filmes, mesmo os mais "contemporâneos"- penso, por
'
mas ainda as funções políticas de que os agenciamentos exemplo, nos gestos de Laura Betti em Théorerne [Teorema]
' '
'
memorialísticos se revelam portadores. Isso aparece com - e, vale dizer, em todos os seus filmes mitológicos, reli-
força, notadamente, num dos últimos artigos do grande giosos ou "medievais". É o que determina nele a conjunção,
- - - - -- - --- - - - I I
'
I , historiador da arte sobre o uso da adivinhaç;lo
.
pagã nos ' -·- '-._./
~ssumida do arcaico e do contemporâneo, fazendo dizer a i I
'
,'

. 'I ' '


I , I,

I .

. .. .'
,'
I .
" escritos e imagens políticas da Reforma luterana, ou ainda 1, fr! ()rson \Velles\ em "La ricotta": "Mais moderno que todos os' ''

'

. .. '•
; , I
'
nas questões de teologia política i1ue surgem nas últimas \ 'li modernos [... ] eu sou uma força do Passado" (piü moderno 1: •.

. . .I '
. I
. li pranchas de seu atlas de imagens Mnemosyne.~ 4
· · '· di ogni moderno [. .. ] io sono una forza del Passato ). 7 r, Não :
'I

I '
I Histórica e intelectualmente próximo do grande an- .: nos esqueçamos de que essa frase, no filme, é pronunciada ,' .
/-- --·----------- ----- ---.
I
'
I tropólogo italiano das sobrevivências\E~.ne~to
-
Dt:_lvl9.rtüw. ---- ·::--· -
por um artista carregado de experiência e de amor pela \
'
- que trabalhou notadamente a longa duração dos gestos história. Mas sentado diante de um jornalista incapaz,
de lamentação e a história do imaginário apocalíptico~; -, · por sua vez, de fazer outra coisa a não ser reduzir todo
Pasolini sabia, poética e visualmente, o que sobrevivência .o profundo contemporâneo à atualidade das banalidades
'
' '
queria dizer. Ele sabia do caráter indestrutível, aí transmi- ·necessárias à sociedade do espetáculo.
i
'
' tido, lá invisível, mas latente, mais além ressurgente, das .. ,
No momento de "La ricotta", Pasolini consegue
--
então, ----- ______

,·.•- e soberbamente - reivindicar uma posição dialética: sua I


;'
I'
!I

'' WARBURG, A. La clivination pa'ienne ct antiquc dans les écrits et lcs imagcs à dprópria narrativa é construída como a colisão do Outrora il
' l'époque de Luther (1920). In . l'.ssais(lorcntins. Trad. S. ,\lulkr. l'aris•
Klincksieck, 1990. p. 245-294. ld., Gesamrndtc SchriCLcn, II-I. In• Wi\1\NKI:.
;1. (filmado em cores) e do Agora (filmado em preto e branco). r'
M.; BRINK, C. (éd.). Der Bildcm.tlos Mncnwsync. Bcrlin: i\kadcmic \'crle1g, De modo que, ainda que o fim do pobre Stracci seja cruel,
'' 2000. p. 132-133. Sobre a noção de sobrevivência, cf Illlli I IUBL!~.'\!Al\, c;.
'
ümagc mrvivantc. Histoirc de l'arl ct tcmps dcs lcmtómcs scl<l!l 1\by Warhurg.
o filme inteiro aparece como uma tomada de posição efi-
Paris: lYfinuit, 2002. Sobre a dimensão política da iconologia warburgiana, cf. caz, perturbadora, inventiva, alegre sobre as relações entre
SCHOII.f.I.-GI.ASS, C:. Ahy \.\'orlwrg 1!1/d der .:\ntisc/1/itismlls• Kulturwisscns-
chal·l ais Geilespolitik. Francfórl-sur-lc-t\Iélin: Fischcr, I9~S.
a história (da arte, sobretudo) e o presente (da sociedade
:c DF. Iv!;\RTINO, E. i\!lorlc c pianto rilu!llc: dai lamento funcbrc antico ai pianto di
;'
' .
' .
Maria ( 195S). Turin: l\ollati lloringhicri, I975 (éd. 200~). /ri., /.11 f/nc dcln!ondo•
'

i'i : contributo all'émalisi dcllc apocalissi cullurali (I% 1-1 %5). Turi11: l 1.inaudi. 1'!77 " l'ASO 1.1 t\ L I' I) L1 rico i ta (I %2- I %3). In: SlTI, W; !:1\ BM; LI, 11. ( éd.). Per i/
iI I
J; (écl. 2002). rifiWIII, I. ,\Iil1111: :\rnoldo iVIondadori, 2001. p, 337.

' '
,'
I
''

62 Georges Didi-Huberman li- SOGREVIVENCIAS 63


I ' I' I'

I I
111 !
'I . '
'
''
''
'
'

'
' italiana). Mas parece-nos que, em 1975, tendo abjurado seus compreendidas através de um tal prisma, sejam as que se
últii~1c~~-filr~;-~s ê Ú<"Íh<ílhando na
, I'
I. :' ; I.
três vala infernal de Saló, referem às revoltas estudantis, aos cabelos longos dos jovens
"'li' :'
,' I ,
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I:
I
! Pasolini tenha se desesperado de qualquer impertinência, burgueses, à liberação sexual ou ainda ao aborto). Agindo
': !
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'
I
de qualquer alegria dialética. É o momento, então, do de- dessa forma, Pasolini não somente perdeu in fine o jogo
' _, /

''
I'' saparecirnento das sobrevivências - ou o desaparecimento dialético do olhar e da imaginação. O que desapareceu nele ' . /

'
'
---------
das condições antropológicas de resistência ao poder cen- \'
'I
foi a capacidade de ver- tanto à noite quanto sob a luz feroz
tralizado do neofascismo italiano-, que opera na pequena dos projetores - aquilo que não havia desaparecido com-
amostra que representa o desaparecimento dos vaga-lumes .. pletamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo,
1
' '·.\ A obj~çãoque poderia ser feita ao Pasolini do "desapa- . como novidade reminiscente, como novidade "inocente",
\ ,. --- '

'
'I; ,/, recimento dos vaga-lumes" seria então enunciável neste.s no presente desta história detestável de cujo interior ele não
•. termos: como se pode declarar a morte das sobrevivências~~
'

- - ' - - -
sabia mais, daí em diante, se desvencilhar.
·Não seria tão vão quanto decretar a morte de nossas obses~
sões, de nossa memória em geral? Não seria abandonar-se
,,
à inferência desgastada que vai de uma frase como o desejo
não é mais como era antes, à outra como nc1o há rnais desejo?
'' '
I Aquilo que o cineasta foi tão magistralmente capaz de ver
I
' I'
no presente dos anos de 1950 e 1960- as sobrevivências
operando e os gestos de resistência do subproletariado em
Chroniques romaines [Crônicas romanas], em Accatone ou
I
em Mamma Roma - ele terá perdido de vista no presente
dos anos de 1970. A partir de então, ele não veria mais onde
------ - - - -- - - - - - - ·------· - -------
c como
--
o
---
Outrora vinha percutir

o Agora para
------ - - - - - - - - -
produzir
---
o
----------------· ---

pequeno lampejo e a constel<lÇ~odos vaga-lumes. Ele se


. ' - - - - -----------
-- ··----------
-- --.
-- ------- ---

desesperava de seu tempo, nada mais (daí, todas as suas


- - - '- - --- -- -- .. -------------- .. - ------------- ------- ·-- ------ ---- -- - - - - - - -
' '' posições ditas "reacionárias", nessa_é)JQS::<l_,_pc~deri a m se_r
'

'
'' 64 Georges Didi-Huberman li- SOBREVIVÊNCIAS 65
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APOCALIPSES?

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I
capaci~ade de
'

Por um lado, admirável


.
visãodialética: '

<\'' - - ------- -- "


--~---·----

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I
·- -~:..·
reconhecer
--
no mínimo
- -
vaga-lumeuma
·-- - - -
resistência, uma -
i
. I' ', ~----- ' '

'
lqzpara todo o pensamento. Por outro, d~sespero não dia- i
lético: incapacidade em buscar novos vaga-lumes, uma vez :
'
I que se perderam de vista os primeiros- os "vaga-lumes da '
' J . '
l/
' '" -

·., juventude". É o mesmo tipo de configuração problemática


'

•. que me pareceu reconhecer em alguns textos recentes de ·


((;'igrgioAgapber1,
. -- um dos filósofos
-
mais importantes, dos .·
I i
·. mais inquietantes de nosso tempo. O que mais pedir a um ·
filósofo senão inquietar seu tempo, pelo fato de ter ele pró-
prio uma relação inquieta tanto com sua história quanto
com seu presente? Não nos surpreendamos se Giorgio
Agamben for um grande leitor de Walter Benjamin. Não
nos espantemos de que ele tenha sido, depois de Edgar
Wind, um dos muito raros filósofos a medir todo o alcance
teórico da antropologia das sobrevivências elaborada por
' '
. I' ·.
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67
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------·, \
' ' \j\by Warburg; 77 Stanze 70 [Estâncias] é um soberbo livro exemplo" e uma verdadeira "arqueologia filosófica'' que, de
-- ----- --- --· --- - -·-
benjaminiano no sentido de que diz respeito exatamente ao maneira ainda bastante benjaminiana, "retoma em sentido
gênero que Benjamin põe em prática em seu Passagemverk inverso o curso da história, assim como a imaginação"
[Passagens]l9 e que pretendia desenvolver sob a forma de restabelece o curso das coisas fora das grandes teleologias
uma "obra documental" (Dokumentarwerk), tendo por conceituais. 81 A revelação das fontes aparece aqui como a
objeto a própria imaginação. 5° Não por acaso, esse livro fc>i, condição necessária- e o exercício paciente- de um pensa-
;
;
em parte, escrito por Agamben entre as prateleiras/ estan- mento que não procura de imediato tomar partido, mas que
I tes - -~s prateleiras/ estantes exaltantes, simultaneamente quer interrogar o contemporâneo na medida de sua filologia
I: ''
oculta, de suas tradições escondidas, de seus impensados,
'

I ;'I
' inesgotáveis minas de saber e máquinas imaginativas - da
. I' ..•
; i
biblioteca Warburg, em Londres. de suas sobrevivências. !.
I' '' ' ..
'
.
'-,\ \ '• '
I
. ' .-· '

Como certos textos seus mais recentes o desenvolvem .


..
~.,,
·, \
''
Distante, portanto, dos filósofos que se apresentam como "
luminosamente, Giorgio Agamben é um filósofo, não do dogmáticos para a eternidade ou como fabricantes imediatos I
!
dogma, mas dos paradigmas: os objetos mais modestos, as de opiniões para o tempo presente - a propósito da última •
imagens mais diversas tornam-se para ele- além dos textos
1

canônicos, da longa extensão filosófica que ele comenta e : Agamben vê o contemporâneo na espessura considerável
1 i
'
discute sem trégua - a ocasião de uma "epistemologia do e complexa de suas temporalidades emaranhadas. Daí o I
i:

aspecto de montagem,·ele também warburguiano e ben-


j~miniano,que seus textos adquirem com frequência. O
" AGAMBEN, G. Aby Warburg et la science sans nom (1984). Tn: __ . Inwge
et rnémoire: écrits sur J'image, la dansc ct !c cinéma. Trad. M. Ddl'Omodarme, contemporâneo, para ele, aparece somente "na deüsagem e
I
'i revista por D. Loayza e C. Coquio. Paris: Desclée de Brouwer, 2004. p. 9-35. no anacronismo" em relação a tudo o que percebemos como
! ;s Citamos a tradução em português, elaborada por Selvino Assmann. AGAM-
'
BEN, G. Estâncias; a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:
nossa "atualidade".'' Ser contemporâneo, nesse sentido, seria
Editora UFMG, 2007. (N.T.)
79 Citamos a tradução em português, organizada por Willi Bolle: BE0!)AMIN,
W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFJ\!G, 2006. (l\.T.) ~1 AGAMBEJ\, G. S1gnotura rcrum: sur la méthode (2008). 'l'rad. ). C:avraud.
'
"" AGAMBEN, G. Stanze: parole et fantasmc clans la culturc occidenlale (1977). Paris: Vrin, 200R. p. 20 c 123.
Trad. Y. flcrsant. Paris: Christian Bourgois, 1931. O projeto de um Dokumcn- "' ld., ()ucst-cc I)UC /c contcmpomin' (2008). Trad. M. Rovcrc. Paris; Payot & Rivag;cs,
tarwcrk sobre a imaginação é evocado por \V fkniamin, no founwl de Moscou 2008. p. 11. Publicado em português, sob o título de: O IJUC é o contelllj)()r!ÍIU'O'
(I 926-l 927). Trad. ).-F. Poirier. Paris: l:t\rche, 1983, p. l 53. e outros ensaios. Tracl. Vinicius Nicastro Honesko. C:hapccó: Argos, 2009.

68 Georges Didi-Huberman 111- APOCALIPSES? 69


i'
'

obscurecer o espetáculo do século presente a fim de perce- ' ~nontagens temporais para toda reflexão consequente sobre\
-· .. · . - . I
. '
ber, nessa mesma obscuridade, a "luz que procura nos alcan- o contemporâneo. Como Pasolini, Agamben é um grande 1

I
3
''
'
çar e não consegue':R Seria, então, retomando o paradigma profanador das coisas que se admitem consensualmente
~·•---Uo·--•-0 .,.-·---- ----·-·
• . ..
I ;'
'I
I
que nos ocupa aqui, dar-se os meios de ver aparecerenz os ·
----------------------------·- -----·-- -· - ·-- .
como "sagradas". E, assim como o cineasta quando t~1lava '
vaga-lumes no espaço de superexposição, feroz, demasiado ,. ------------.
i
:
do "sacral", o filósofo dedica-se a repensar o paradigma
luminoso, de Í1ossa histÓria presente. Essa tarefa, acrescenta i antropológico contido na extensão da palavra sacer.
I
. I
' i' Agamben, pede ao mesmo tempo coragem '-virtude política • Agamben, até onde sei, jamais se dedicou a um estudo
'' '
- e poesia, que é a arte de fraturar a linguagem, de quebrar específico da poesia ou do cinema de Pasolini. Mas ele
I' .rI
' .
. I í . as aparências, de desunir a unidade do tempo. 84 próprio, e muito cedo, fez parte desse cinema, visto que
.' .'

•'
Ora, essas duas virtudes são as mesmas que Pasolini;c · encarnava em L:Évangile selon saint Matthieu [O Evangelho
-·-- .. '
-- --

pusera em prática em cada um de seus textos, em cada segundo São Ma teus], em 1964, um dos doze apóstolos de
uma de suas imagens. De Pasolini a Giorgio Agamben, as Cristo. É, sobretudo, surpreendente encontrar no filósofo
referências históricas e filosóficas apresentam, de certo, dife- um conjunto de reflexões que atravessam as preocupações
' renças consideráveis. Mas o gestus geral de seus respectivos dramatúrgicas e antropológicas do poeta-cineasta: é o elogio
------- -- ··---
pensamentos deixa adivinhar um inegável parentesco, até da gíria e da potência "antiga" dos gestos populares, notada-
' . . " .

em seus efeitos de provocação e nos ataques virulentos que mente, na cultura napolitana; 87 é uma reflexão recorrente
I suscitam com frequência seus posicionamentos. Ambos sobre a noção de gesto e sua temporalidade profunda. 88
afirmam que "há entre o arcaico e o moderno um encontro Enfim, trata-se de uma atenção ética no que diz respeito
- - -. '• ···- ---····' ··-···· ...
secreto". 85 Ambos fazem de seu trabalho um obstinado con- _ao rosto humano "qualquer", atenção que, no fundo, deve
fronto do presente - violentamente criticado - com outros talvez menos ao pensamento de Levinas do que à prátic(l
tempos, 86 o que é um modo de reconhecer a necessidade de

s; AGAMDE~, G. Qu'est-cc qu'un pcuple? (1995). In: . Moyens sans fins.


,_, lbúl., p. 24.
Kotcs sur la politique. Trad. D. Valin. Paris: Payot & Rivages, 1995. p. 39-46.
-"·' Ibid., p. 13-17. Id., Les langues el les pcuples (1995). Jbid., p. 73-81.
w. lhid., p. Yl. "' h!. Lc' corps à venir. Lirc ce qui n'a jamais été écrit (1997). (Texto original em
i: '" lbid., p. 39. francês). In: . Jmagc ct rnémoire. Op. cit., p. 113-119.
'

70 Georges Didi-Huberman 111- APOCALIPSESl 71


' '
'

'
I'
,I
' ''

amorosa do gros plan em Pasolini. Linguagens ~opovq,


89
fazer. Pois, assim como foi privado da sua biografia, o homem
'---
---··
---- - - --- -- ----- -------

gestos, rostos: tudo issoquea história não consegue expri- contemporâneo foi expropriado de sua experiência: aliás, a inca-
mir nos simples termos da evolução ou da obsolescência. pacidade de fazer e transmitir experiências, talvez, seja um dos
Tudo isso que, por contraste, desenha zonas ou redes de poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo. 91
'
''
sobrevivências no lugar mesmo onde se declaram sua ex-
"'
I :1
traterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, sua Essas frases, escritas apenas alguns meses após o texto i
'' '
'
''
vocação para a revolta. de Pasolini sobre o desaparecimento dos vaga-lumes, proce- ·
i'
dem, no fundo, da mesma lógica. Num primeiro momento,
tratava-se de se referir a uma situação de apocalipse ma-
'
i
Ora, o primeiro livro de Agamben que trata explici-
nifesto, concreta, indubitável, explosiva, quero dizer, uma
situação de conflito militar. Agamben, naquele momento,
tamente da questão da história inscrevia, em seu próprio
não evocava o fascismo histórico, mas a Primeira Guerra
subtítulo, a palavra destruição. Nessa palavra ressoa um
90

Mundial, cuja paisagem mental Walter Benjamin havia



•diagnóstico inapelável sobre os tempos atuais, diagnóstico
apresentado em "Expérience et pauvreté" [Experiência e
'
''
'

'abruptamente enunciado desde as primeiras linhas da obra:


pobreza], em 1933, depois em "Le conteur" [O narrador],
'
''
' em 1936, texto ao qual ele remete explicitamente e cujo
Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da
'
trecho central citamos a seguir:
constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado
'

89
Id., Pour une éthique du cinéma (1992). Trad. D. Loayza. In:·-- . 1mage É como se nós tivéssemos sido privados de uma faculdade que
I
' et mémoire. p. 121-127. Id., La communauté qui vicnt: théorie de la singularité nos parecia inalienável, a mais segura entre todas: a faculdade de
quelconque (1990). Trad. M. Raiola. Paris: Le Senil, 1990. p. 25 e 68-70. Id., Le
'
!' visage (1995). Trad. D. Valin. In: . Moyens sans fin. Op. cit., p. 103-112. trocar experiências (das Vermogen, Erfahrungen auszutauschen).
90
Id., Enfance et histoire. Destructiou de l'expérience et origine de l'histoire Uma das razões desse fenômeno salta aos olhos: o valor da
{1977). Trad. Y. 1-!ersant. Paris: Payot, 1989 (éd. remaniée). A obra de Giorgio
experiência caiu de cotação (di e Erfahrung ist im Kurse gefallen).
Agamben, Infância e história: destruição da experiência e origem da história,
foi traduzida para o português por Henrique Burigo e publicada pela Editora
li
91
''
I
UI'MG em 2005. Para as traduções das citaçôes de autoria de Agamben, no AGAMBEN. Infància e história: destruição da experiência e origem da his-
livro de Didi-l-Iubcrman, utilizaremos, a partir de agora, a edição brasileira, tória. Traduzida para o português por Henrique Burigo. Belo Horizonte:
publicada pela referida editora em 2008 (1" reimpressão). (N.T.) Editora UI'MG, 2008. p. 21.

' ''
' '
'I I

72 Georges Didi-Huberman I li· APOCALIPSES? 73

. I' '
'li'' 'I
'

'
I
I

'i, ·,
'
I E parece que a queda continua indefinidamente. Basta abrir o de evocar o tempo presente como uma situação de apocalipse
jornal para constatar que, desde a véspera, uma nova queda foi latente, onde nada mais parece estar em conflito, mas onde
' '

'
'
i
I'
registrada, que não apenas a imagem do mundo exterior, mas a destruição não deixa de fazer estragos nos corpos e nos
'
;,j

"i: também a do mundo moral sofreram transformações que jamais espíritos de cada um, até nos fenômenos de massa os mais
,I
',1 pensamos serem possíveis. Com a guerra mundial, vimos o início inocentes, o turismo, por exemplo:
de uma evolução que, desde então, nunca mais parou. Não se
''
constatou que, no momento do armistício, as pessoas voltavam Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência,
do campo de batalha - não mais ricos, senão mais pobres em uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica
i' '
I
I experiência comunicável?[ ... ] Não havia nisso nada de surpreen- existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, per-
!

dente. Pois jamais experiências adquiridas foram tão radicalmente feitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo
:i'
'
'' '
desmentidas do que a experiência estratégica o foi pela guerra de não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência:
I '
i ''
Ii '' trincheira, a experiência econômica pela inflação, a experiência nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito,
'
'
''
! ' corporal pela batalha de material, a experiência moral pelas a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao
'
'I . '

'
I.
manobras dos governantes. Uma geração que tinha ido à escola volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas
!
'

i em bonde puxado a cavalo encontrava-se desprotegida numa nos vagões do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia
''
paisagem onde nada mais era reconhecível, exceto as nuvens e, no a rua; nem a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os
meio, num campo de força atravessado de tensões e de explosões edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola
92
I·, 'I
' '
destrutivas, o minúsculo e frágil corpo humano. detonados não se sabe onde; nem a fila diante dos guichês de uma
II I,
I
repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado; nem
II,
i i' Tratava-se, num segundo momento- e seguindo sempre os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos
iii
'
'
' '
a mesma lógica colocada em prática por Pasolini em 1975 -, no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa, à
I '
I !

I' I
1
noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos- divertidos ou
I '
'
' I' maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes -, entretanto
n BENJAMIN, W. Lc conteur. Réflexions sur l'ceuvre de Nicolas Leskov (1936).
'

'i' ' Trad. M. de Gandillac revista por P. Rusch. In: . CEuvres. Op. cil., p. 115-
nenhum deles se tornou experiência.
'

''
' 116. (Citado parcialmente por G. Agamben, Enfance et hisloire. Op. cil., p. 20). É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna
iI Cf. também id., Expérience et pauvreté (1933). Trad. P. Rusch. In: ·
hoje insuportável - como em momento algum no passado - a
CEuvres. Paris: Gallimard, 2000. p. 365. v. 11.

74 Georges Didi-Huberman 111- APOCALIPSES? 75

''
''
'
• '

,I' I'
I' I'

!I
''
'
; I
existência cotidiana. [... ] Uma visita a um museu ou a um lugar Pa_LJ_l_Cel~n_.Ou dopróprio Pasolini, diga-se de passagem.
'I
'
ele peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente Tem :SE: a lmpressão, defat~)-,-d~que Agan~ben
____
teria-préte11-
---··----- -----
instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas ela terra (diga- dido retomar as coisas no ponto exato em que o cineasta
'
'• I
-· ----------
. I·. .
' '
mos, o patio dos leoncs, no Alhambra) a esmagadora maioria ela as havia abandonado em 1975: no ponto preciso em que o
-----·- --····-
-

j I humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja elogio


.
da infância - inerente à carta de 1941 e até aos filmes
........ ---
"

'
:! a máquina fotográfica a ter experiência delas. 0íão se trata aqui, da Trilogie de la vie - se transforma em luto de toda infân-
I
93
naturalmente, ele deplorar essa realidade, mas de constatá-la. cia. Donde a definição negativa, depois transcendental, da
.' '
I
I
''
infância em Agamben. "O inefável é, na realidade, infância
I
I
Esta descrição do tempo presente - formulada sobre a
. ,I
. '
'' :''"
i: base de uma situação de guerra total- constitui uma verda-
. '• deira matriz filosófica: é a partir dela que, na sequência do /mas que tena s1do destnuda, apagada como um vaga-lume, ;1
'

.• . texto, será formulada toda uma série de reflexões em que a , nos tempos de nosso pobre hoje. 95
''
'
palavra crise, por exemplo, se transforma inelutavelmente De que maneira
.
procede '
Agamben,
'
aqui? Primeiro,.
ele -

em falta radical; em que toda transformação será pensada afirma uma destruição radical - em seguida, constrói uma
'

'• '
II como destruição, assim como se pode constatar no julga- transcendência. Esta seria a matriz filosófica, o movimento.
'. i
mento desesperante sobre a história da poesia moderna após que estrutura essa inquietação e essa potência do pensamen-
I' '
'

Baudelaire, enquanto poeta de uma "crise da experiência": to. A maior parte dos paradigmas, elaborados pelo filósofo,

"Pois, observando bem, a poesia moderna - de Baudelaire na longa extensão de sua obra, parecem todos marcados,
:. I'

'I
I em diante~-hãose funda em uma nova experiência, mas com efeito, por alguma coisa que, infelizmente, atravessa de
'

.. !
"'
' em uma ausência de experiência sem precedentes" -pro-
94 forma latente a extraordinária acuidade de seu olhar: é como

posição insustentável, a meu ver, em face do menor texto um movimento de pêndulo entre os extremos da destruição
'
'.I
'''' I' de Rilke, de Michaux, de René Char, de Bertold Brecht, de e de um tipo de redenção pela transcendência. Em seu ensaio

' i sobre o "muçulmano" dos campos de concentração nazistas,


..
I'

'd
I' ' por exemplo, Agamben parte do "intestemunhável" e da
''-' AGAMBEN. lnfi1nciu c /Jistória: destruição da cxperiétKJa c origem da histó- / _ _ _ _ _ __
: "
' ria. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora ULII,fG, 2008. p. 2l-23.
''
I' .... J/Jid., p. 63, 04.
,I "' 117!U.,
·.J p. _)C] -·--S7~·
..
iI'
I
li 111- APOCALIPSES? 77


76 Georges Didi-Huberman
• •

:1 !i
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''

I' I
"impossibilidade de ver" com o objetivo de evocar, ao final Agambcn, de seu lado, anuncia que o homem contempo-
Ii
I de seu percurso, uma condição transcendental - sublime, râneo se encontra "despossuído de sua experiência", nós
;I
'
' em certo sentido, como em Lyotard - do "testemunho nos encontramos, decididamente, colocados sob a luz
integral" c da "imagem absoluta".')" Em lvioycns sans fim
ofuscante de um espaço e de um tempo apocalípticos.
[Meios sem fins] -um livro dedicado significativamente a ~pocalipse: é uma figura maior da tradição judaico-cristã. ·.
1I Guy Debord -, a dimensão "absoluta, integral" do gesto e Ela seria a sobrevivência que absorve todas as outras em
, 'L .I .
,' .I"'"
I. I I
seu valor "místico", no sentido de vVittgcnstein, são afirma- sua claridade devoradora: a grande sobrevivência "sacra!"
' "li I
''
'
'
dos apenas na base de uma destruição, de um luto inicial: 1/ - fim dos tempos e tempo do Juízo Final - quando todas
I I I
:I.
' '
"Desde o fim do século XIX, a burguesia ocidental havia •
as outras terão sido aniquiladas. A grande sobrevivência
definitivamente perdido seus gestos [... ]:' 9
~ Como se cada anunciada para matar todas as outras, essas "pequenas"
coisa devesse sua dignidade filosófica apenas ao fato de ter, sobrevivências das quais fazemos a experiência, aqui e lá,
primeiro, desaparecido - destruída por algum neofascismo em nosso caminho pela selva oscura, como outros tantos
' ' '

---·--·
ou sociedade do espetáculo - de nosso mundo comum. lampejos em que esperança e memória se enviam mutu-
' I -- - "
'
'

"
' amente seus sinais.
"' .I
'
Na contramão dessa experiência modesta, as visões
'I
'' Trata-se, de fato, nesse caso, como o havia admitido o apocalípticas nos propõem a grandiosa paisagem de uma
próprio Pasolini, de uma "visão apocalíptica''. Ou, antes, destruição radical para que aconteça a revelação de uma
de operar um modo apocalíptico de "ver os tempos" e, sin- verdade superior e não menos radical. Não encontramos
- -~·

Ii
gularmente, o tempo presente. Quando Pasolini anuncia aqJ,Ii__o__ªntigo_refrão _cla_111~~~tafísica, ()_enunciado da '~qui.::__
'
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''
que "não existem mais seres humanos" ou quando Giorgio didad(por Aristóteles, sob a forma doto ti
', ------- -- -- -
en einai'("q ----·-

''
I
qt-Ie era o ser")? O ser di r-se-ia, então, apen<lSil()_jJassqcfo_?_
''

Revel_ar~s_e~ia, apenas, uma vez morto? 9 s Compreende-se,


9
'' AGAMBEN, G. C:c qui reste d'Auschwitz: l'archivc et !e témoin. In: _ _ -- -------- -------·---··
.••.
Homo scl(Ci" (l'J'JH). Trad. P. Alfcri. Paris: Payot & Rivagcs, 1999. p. 49, 57 c acqui, que é preciso ao metafísico a morte de seu objeto
I'
- -.- -
!
. '
65-66. V. I li.
'
:'i:'
'" td., Nolt's sur k gcstc ( 1902). Trad. ll. Loavza. In: . Jlloycns S!I//S fins:
' I:''''
' '1° )Jo origin<ll t'm francês, grif~1do em itúlico: trépnssé (trespassado, n1orto), cn1
I!' notes sur la politiquc. 'l'racl. D. Valin. 1\uis: l'ayol & Ringcs, l9LJS. p. ~9 c 71.
contraponto a ji!ISSc; (passado), na índaga1cüo que precede. (N.T)
' '
' . '•
'
'
' '•

78 Georgcs Didi-Huberrnan
111 · APOCALIPSESl 79
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I I

i' 11
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I I'
' ''

I
para se pronunciar, a título de um saber definitivo, sobre [... ] antes, mais verdade da revelação, do que verdade
'

' '
-- -·- ---' ------ "

revelada." 101 Derrida afirma então


'

'I
I:
;ua verdade ultimai.''') Para verdades derradeiras, portan-
- --- - -- - -- - -
i'
to, realidades destruídas: este seria o "tom apocalíptico"
'

dos filósofos quando eles preferem às pequenas "luzes [ ... ] que é preciso conduzir essa desmistificação [do tom
• r ' ' •
'
'' de verdade" - que são fatalmente prov1sonas, empmcas, apocalíptico J tão longe quanto possível, e a tarefa não é modesta.

I'
'
I intermitentes, frágeis, díspares, passeantes como os vaga- Ela é interminável porque ninguém pode esgotar as sobredeter-
-lumes- uma grande "luz da verdade" que se revela, antes, minações e as indeterminações dos estratagemas apocalípticos. E,
'''
'
' ' '
uma transcendente luz sobre a luz ou sobre as luzes fadadas, sobretudo, porque o motivo ou a motivação ético-política desses
'
!'
,I' 1112
'
'I, :
cada uma em seu canto de trevas, a desaparecer, a fugir estratagemas nunca é redutível ao simples.
. I

De um lado, então, a crítica kantiana dos "mistagogos" do


. I
' ' pensamento deve se prolongar na das figuras catastróficas
'' '
I
ou redentoras de todos os gêneros, desde o maítre à penser
I'

I : ,
'

---·-~----··-·-
sectário até ao Führer totalitário. 1113 Mas, de outro lado,
i'
.-hoje como outrora- por vários pensadores "radicais" dos Derrida quer reconhecer na frase apocalíptica uma voz que,
' ' '' .
',
''
quais ele mesmo faz parte. "Toda escatologia apocalíptica'', como em Nietzsche:ou
.-------- "'
Maurice Blanchot, seria envio (en-
escreve ele, "é prometida em nome da luz, do vidente e da vai), indicando a via (vaie) em um enunciado do tipo venha
1114
. I
'
visão, e de uma luz da luz, de uma luz mais luminosa do (viens) [... ]. A crítica termina então por se reabsorver em
"' ' ''
; 'i
que todas as luzes que ela torna possível. [... ] Não haveria
verdade do apocalipse que não fosse verdade da verdade, 101
DERRillA, ). J)'un ton apowlyplil[ue odopté Jl!lguére en pllilosoplúe. Paris:
Galiléé, I 983. p. 03, 69 e 79.
, '' ', I
'' "". Ib"il1.,p.8l.
"' ARJSTOTE, l. iVIétaphysique: 1029a-1030b. Trad. ).lricot. Paris: Vrin, 1974.
1()1 Ib ..I
''
" . lú., p. 27.
p. 352-367. Cf. a análise clássica dessas passagens por ACBENQUE, P. Lc pro·
11
blcme de l"être chcz Aristotc: essai sur la problématique aristotclzCJenne. Pans: " Jbid., p. 94·95. Significativamente, o próprio Agamben articula seu "apocalíptico
PUF, 1962 (éd. 1972). p. 46(H711.
da experi[:ncia" a uma rdlc-:ão 'obre a \"OZ: AC.\:IIf)E::--J, G. Tuj!Ínciu c hislóriil:
'
dcstruiçüo da experiência e origcn1 da história. Trad. _Henrique Burigo. Hclo
'' ""' KANT. F. IYun to11 grmul scigrli'ur adoptc; noguáe ,·n pl!ilosophic (1796). Trad.
Horizonte: Editora lT:\lC, 2008. p. 9-1 ~-
' L. Cuillermit. Paris: Vrin, 1975 (éd 1987). p. 87-109.
' ''

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111· APOCALIPSESl 81
I 80 Georges Didi-Huberman
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um discurso do anúncio que seria, indecidivelmente, "apo- virtude da esperança positiva da ressurreição. Heidegger não /"
c~Üpse sem apocalipse" ou verdade "sem visão, sem verdade,
' ' ''
' ' /
'' ' vê que, ao secularizar essa estrutura, que ele assume, em todo ( ·1
f·_ /--
1115
sem revelação". ) caso, tacitamente na sua obra, esses conteúdos teológicos não ...
'
' Mas isso - que tenta Agamben por sua própria conta, são simplesmente descompostos, mas que, sem eles, essa mesma
\ '

' ' /
~ r •
I!
I ;'
me parece - é possível? Não se pode fazer a essa hipótese I •A • 1

expenenna nao e mais poss1vel, deixa de ser possível. O que eu


'
''
' geral, a esse projeto filosófico muito bem intencionado, diga- · realmente critico nessa forma de metafísica é a tentativa de se
'
I!'
I
'' I '
'
'
-se de passagem, a crítica que Adorno dirigia a Heidegger apropriar, sub-repticiamente, sem teologia, das possibilidades da
'
I
'
'' no plano da impossível secularização de um pensamento , experiência que foram teologicamente colocadas. 106
I. !
I
i
'
metafísico cujas estruturas mais fundamentais se apoiam :
" I Ii
I em um mundo teológico cuja retomada, justamente, nada ' E~s.§_gesyio, sem dú.vi.da, complicaaind<l.ll.m_p_o.uco_rnais
' '

' '; tem de profanação? Vale a pena lembrar essa passagem em. • ~osso caso no plano filosófico. Mas aclara a própria difi-
'i !
que Adorno precisa sua crítica a respeito do impensável da 1 culdade em que Pasolini)eria seencontrado, por exemplo,
ressurreição em Heidegger: quando se remetia à tradição cristã- essa "religião positiv<l'',
,I ,
' como a chama aqui Adorno - para legitimar politicamente .
''
' '

as sobrevivências colocadas em prática na linguagem o~ n~


'
" '
' Gostaria de dizer que, a abordagem de Être et temps [Ser e
I,
'
'
'

"
I
'
' tempo] [... ] não é talvez em parte alguma mais ideológica do que gestual popular dos italianos "miseráveis·: 107 Ele esclarec~
I'""'
"
'' no momento em que seu autor busca compreender a morte a partir igualmente certas dificuldades teóricas com as quais lida
'
,
:I ' I
' '
I
de um "esboço do ser-todo do estar-aí", uma tentativa na qual ele Agamben ao manipular, conjuntamente, a historicidade
suprime o caráter absolutamente inconciliável da experiência da heideggeríana e a imagem dialética benjaminiana, ou ain-
:' '

vida com a morte tal qual nos aparece com o declínio definitivo da o messianismo de São Paulo, com uma reflexão sobre a
''
I '
'
das religiões positivas. Desse modo, ele procura salvar as estruturas "Solução final" projetada pelos nazistas a respeito do povo
:,' I
:I ' I
, I
'' '' da experiência da morte como se fossem estruturas do "estar-aí"
[être-là], do próprio ser humano, mas essas estruturas, tais como
'
:, I

' ' ele descreve, existem apenas no mundo positivo da teologia, em wo ADORNO, T. W Métaphysique: concept et problemes (1965). Trad. C. David.
I' !
I ,
Paris: Payot & H.ivages, 2006, p. 160-161.
107
'
Sobre a distinção capital entre tradição e sobrevivência, cf DI DI- HU BERMA N
I 10
fb l'd ., p. 9",,,
'' I
' G. L'imagc survivante. Op. cit., p. 35-114. '
'
' '
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''
''
'

82 Georges Didi-Huberman
111- APOCALIPSES? 83
'' ' ''
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I
I.
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I I

~ li


I•
II•

judetL111 B Somente a tradição religiosa promete uma salvaçào 9
" Ernesto De Martino.w Há, então, uma ambiguidade, tanto
••
::
~para além de qualquer apocalipse e de qualquer dcstruiçào no plano do método quanto no plano político, em passar,
das coisas humanas. As sobrevivências, por sua vez, ccm- como Agamben ó faz com frequência, de uma reflexão
I
,I
cernem apenas à imanência do tempo histórico: elas não antropológica sobre a potência das sobrevivências a uma
I•
têm nenhum valor de redenção. E quanto a seu valor de assunção filosófica do poder das tradições. Tal é, por exem-
I,
revelação, ele nada mais é do que lacunar, em trapos: sinto- plo, a interpretação dada pelo filósofo italiano ao tempo
I.
mal, em outras palavras. As sobrevivências não prometem· • messiânico segundo São Paulo: desemboca de um lado, em
nenhuma ressurreição (haveria algum sentido em esperar de · uma referência preciosa à imagem benjaminiana enquanto
'• .
• um fantasma que ele ressuscite?). Elas são apenas lampejos "legibilidade" do tempo e "agora de sua conhecibilidade': 11 0
I I
I ' ,:
'
'•
. passeando nas trevas, em nenhum caso o acontecimento de Mas, de outro lado, essa interpretação se reapropria do
.•


' uma grande "luz de toda luz': Porque elas nos ensinam que a horizonte teológico de toda a tradição judaico-cristã para
'• destruição nunca é absoluta- mesmo que fosse ela contínua fazer dela um paradigma político, o que aparece com força
I ;'
I

I -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de na obra mais recente do filósofo, "Le rêgne et la gloire" 111
..,' i
[O reino e a glória J.
:

I .
. ' que uma "última" revelação ou uma salvação "final" sejam

'
necessárias à nossa liberdade . Or~,~rrz_a_gem não é horizonte. A imagem nos oferece algo

pr~~i111o a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a


''• I
grande e longínqua luz (luce). Tratando-se da relacão fu11- .
I •• '
I '
Uma "política das sobrevivências", por definição, dispen- \ damental- mas oh! quão problemática- entre pensamentos
··-
.. ---------------------------- ---- ---- · - - - · - - - --

' , . I' '


.. sa muito bem- dispensa nec~ssariame~te=._o_fim dos !em~
p~s. Ja~ais~arb~rg;:d.o que conheço, faz alusão a isso no
--------- ----. '------ --- --- '" vV;>RBURG, A. La divination pa'ienne et antique dans lcs écrits ct les imagcs
.. plano do método. Ele fala sobre o assu11tQ apenas do]2_onto . . a lepoque de l.uther. In: DE MAR'J'INO, F.. La fine dei Jllondo: contribulo
- -- - -
al\'analisi dellc apocal!ssi culturali (1%1-1%5). Turin: Einaudi, 1977 (éd.
' II
de vista histórico e sintomal, assim como o fará depois dele 2002). p. 24:J-29>J.
I , ';'
I '''' .I• 110
• •

AGAiv!BEN, G. Lc temps qui reste: un commcntairc de l'Jôpilre aux Romains


I' '
'' . (2000). Trad. ). Revel. Paris: Payot & Rívages, 2000. p. 220-227.
: I: 11


• •
11
" AGi\iV!BEN, G. Cc <[lli reste d'Auscl1wit. Op. lil.; e ainda AGA:viBF'-i, C . : ld., Lc regnc el la gloire: pour une généalogie théologique de l'éconon1ic et du
Lc tcmps qui reste: un commcnlaire de l'f,pítrc aux Romains (21100). lrad. ). gom·crnemcnt. In:.. . _. Ilomo sacer. (2007). Trad. ). Cayraud ct /vi. Ruelf.
Revel. Paris: Payot & Rivagcs, 2000. Paris: Lc Seu i!, 200S. v. li. 2.

. ..••' .

I•
I I :'
.: I 84 Georges Didi~Huberman
,I

:

111- APOCALIPSES? 85
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.I ,·' .
!:' .I : .
'

..

da história, posições políticas c tradições mcssiônicas, essa mais acalentar ilusôes, uma vez que ela desaparecerá logo)
.
.

. ;I
'• distinção pode se mostrar preciosa para se considerar o ou como horizonte (que apela para uma crença unilateral,
'

recurso às sobrevivências e o retorno às tradições, em pen- orientada, apoiada no pensamento de um além permanente,
'

sadores tais como Franz Rosenzweig e \Valter Benjamin; ele na espera de seu futuro sempre). A imagem é pouca coisa: •
I ' - '
I

'
112
' '
\ um lado, Carl Schmitt e Ernst Jünger, de outro. Como bem I resto ou fissura (fêlure). Um acidente do tempo que a torna
'
' ''
I' o mostrou Stéphane Mosês em um de seus mais recentes momentaneamente visível ou legível. 1 15 Enquanto 0 hori-
'
' '
' textos, o messianismo benjaminiano, depois daquele de ' •
zonte nos promete o todo, constantemente oculto atrás de

i :
'
I' ' sua grande "linha" de fuga. "Uma das razôes pelas quais eu
''
I
I tenho reservas a respeito de todos os horizontes'; escreve
Derrida em Force de loi [Força de lei], "por exemplo, a ideia
reguladora kantiana ou o advento messiânico, ao menos
tempo que é preciso a um vaga-lume para iluminar- para em sua interpretação convencional, é que são justamente
I I

I :
II chamar - seus congêneres, pouco antes de a escuridão re- 1

I
horizontes. Um horizonte, como seu nome
o
0 indica, em
••
tomar seus direitos . grego, e ao mesmo tempo a abertura e o limite da abertura
I
' '
A imagem se caracteriza por sua intermitência, sua fragi- que define ora um progresso infinito, ora uma espera."IJ6
' .. -- '
lidade, seu intervalo de aparições, de desaparecimentos, Q.e A complexidade do pensamento de Agamben talvez se
. I' reaparições e de redesaparecimentos incessantes. É, então, deva ao fato de que o regime da imagem e 0 do horizonte


••

uma coisa bem diferente pensar a saída messiânica como se encontram constantemente misturados ou sub-repticia-

imagem (diante da qual não se poderá durante muito tempo mente associados, como se o primeiro - que é um reuime
• ' b
. I

empmco de abordagem c de aproximação locais - valesse
'
: '
apenas para liberar o espaço imenso do segundo, regime
11
• ' E também Hermann Cohen, Martin Buber, Gershom Scholem, Ernst Bloch,
i'
Hans Jonas, Leo Strauss ou Emmanuel Levinas, cujo messianismo foi objeto do longínquo, do apogeu, do absoluto. Enquanto leitor de .
' '

da importante síntese de BOURETZ, P. 'Iémoins dufutur: philosophie el mcs-


sianisme. Paris: Gallimard, 2003. 115
Cf
~ , CClllEJ\
· " - 1·F_.\!· l'JAS,
1 •
f} Le temps ele la fêlure, Ugnes, n, 27, p, 5-8, 2008;
11 1
· MOSÍ'.S, S. Messianismc clu tem]>S préscnl. Ugucs, n. 27, p. 35, 2003. Id, Tcmp; c'Oiltrc· lcmps: le messianismc de l'autrc; ihid,, p. 79-92,
11 1
' i)EN)AMlN, W Sur lc conccpl d'hisloirc (I 940). 'lrad. ívl. de Gandillac, re,·isla "'' DEJZ!UDA,). Forc"c de !oi. Lc "f(mdcmcnt mystiquc de l'autorité': Paris: C·]']'·.
' ]')').\ c- . .>cl I CC,
II por i' !ZusdL In:-··._ . CL!uvrc;;, Paris: Callimarcl, 20110. p, ,,,13, \.li L 1
't'-'"
I
' , i I

I' 'I
I '
86 Georges Didi-Huberman
I
111- APOCALIPSES? 87
I
I

I
li
' I' '
.

'I
I ,
'
,' I
'

I' i
Benjamin, Agamben é um filósofo da imagem (um pouco parecem ocupar, no pensamento de Agamben, o papel
como Pasolini quando construía seus filmes porjázgrnentos dedicado à poesia no de Pasolini: eles dão forma à potência,
I I: ou em gros plans), daí essa maneira de filologia pela qual · à violência intrínseca de seu pensamento. Por outro lado, é i
I
'
descobrimos, frequentemente com encantamento, a poten- o mundo dos fins que se abre à nossa vista e concerne, desde ,
i

II
'
'' '
cia oculta do menor gesto, da menor letra, do menor rosto, logo, a nossa própria situação contemporânea. Mas tudo
'

i
117
do menor lampejo. Mas, enquanto leitor de Heidegger, isso sobre o fundo de uma terrível, de uma desesperante ou :
Aaamben
1::>
procura o horizonte atrás de cada imagem (um
. desesperada, de uma inaceitável equivalência política dos ·
. '
! '
' pouco como Pasolini quando decidiu julgar o todo e os fins extremos imersos no mesmo horizonte, na mesma claridade •
. I, I'
'
' da civilização na qual vivia). Ora, esse horizonte modifica ofuscante do poder.
I
I'
infalivelmente o cosmos metafísico, o sistema filosófico, o
'' corpus jurídico ou o dogma teológico.
'' '
É assim que "Le rêgne et la gloire" se apresenta como
i' uma grande investigação filológica que se abre em dois
I ,, planos fundamentais: de um lado, o mundo das fontes no
I'
qual Agamben nos faz descobrir uma fundamental "cisão da
I soberanià' entre "reino" e "governo': 118 A erudição filológica,
I
I
' i' I a glosa e o método arqueológico - o de Michel Foucault
!' 119

I I ' '

I'
e, mais ainda, o de Ernst Kantorowicz, por exemplo -
''
'

117
Cf., por exemplo, os estudos reunidos em AGAMBE>J, G. Image et mémoirc:
I I
' écrits sur l'image, la danse et ]e cinéma. Trad. !v!. Dell'Omodarme, revista por
D. Loayza e C. Coquio. Paris: Desclée de Brouwer, 2004; ou em Profanations

. '
! (2005). Trad. M. !Zueff. Paris: Payot & !Zivagcs, 2005 .
11 " AGAMBEN, G. Le rêgnc et la gloirc: pour une généalogie tbéologiquc de
I, ]'économie ct du gouvcrncmenl. In:___ . Ho11to suuT. (2007). Tracl. l.
Gayraud et M. Rucff. Paris: Le Seu i!, 200S. p. 11 > 1ó7. v. li, 2.
' ll'J lbid., p. 257-2<J5.
''
""

88 Georges Didi-Huberman
111- APOCALIPSES? 89
'''
I'
I,
I
'
I'
I , IV
I ;
I !
' ' :
' '
POVOS
'' '
I

I ,

O que desaparece nessa feroz luz do poder não é senão


' ' '

'
'
!
a menor imagem ou lampejo de contrapoder. Eis porque
'

i
o judeu Walter Benjamin se vê convocado por Giorgio
1 1

' '
'

Agamben no mesmo plano que o nazista Carl Schmitt, e


eis porque o comunista Pasolini se vê convocado no mesmo
I plano que o personagem fascista de seu próprio filme Salà:
"Benjamin tinha razão nesse sentido, quando afirmava que
'
não há nada de mais anárquico que a ordem burguesa; e o
dito espirituoso que Pasolini colocava na boca de um dos
; hierarcas de seu filme Salà era perfeitamente sério: 'A única
I
I
anarquia verdadeira é a do poder':' 120 Benjamin, sabe-se, ..
·. utilizou por conta própria certos conceitos extraídos da
i' 'I !
''
'
· Théologie politique [Teologia política] de Carl Schmitt, em
r particular o famoso "estado,de
- .
exceção'; cujo valor de uso
,_' -
1
o'próprio Agamben estendeu à análise de nossas socieda-
121
des contemporâneas. Mas a utilização por Benjamin do

120
:' Ibid., p. I 08.
!I
121
Id., Étal d'exception. In: _ _ . Homo saccr (2003). Trad. ). Gayraud. Paris:
Le Seu i], 2003. v. 11, I.

91
' '
' '
II
I' I

'
'
conceito schmittiano tinha somente como objetivo derrubar entanto, sua própria energia teórica, Taubes formulava, a
I
'
'
'
justamente seu conteúdo: para substituir à tradição do poder respeito de Martin Heidegger como de Carl Schmitt, um
I -que se radicaliza e se "totalizà' exemplarmente na política diagnóstico de uma grande clareza: "São homens levados
' '
: I

' '
'
nazista formalizada pelo próprio Schmitt - uma tradição
122
por um ressentimento [... ] mas que, com o gênio do ressen-
dos oprimidos que caracteriza, à sua época, a luta a qualquer timento, renovam a leitura das fontes", em troca do que, eles

preço contra o fascismo: ''A tradição dos oprimidos nos·: revelam melhor que ninguém o próprio horizonte de todo
':• ' .'
. '
I
I ' ensina que o 'estado de exceção' no qual vivemos é a regra. o pensamento ocidental do poder. 125
Devemos chegar a uma concepção da história que dê conta
<··~----- ----------- -- ---- ---- - -- - ----------~----·
Mas, ao recusar "julgar" aqueles mesmos que formali-
dessa situação. Descobriremos, então, que nossa tarefa con- zavam sua exclusão enquanto inimigo radical, 126 Taubes,
-· -- --- --
,' I·i .: i siste em instaurar o verdadeiro estado de exceção; e assim

'
11
. ------
ao que me parece, já se absteve de compreender a falha, o
consolidaremos nossa posição na luta contra o fascismo."]) 3 ponto de bifurcação que, decisivamente, separa um con-
Agamben, ao retomar Carl Schmitt, parece caminhar na ceito formulado com todo rigor, com toda legitimidade
esteira deiJacob Taubes., cujas glosas ele prolonga, tanto na - seja ele o de "soberanià' ou de "estado de exceção"-, 127
extensão dos conceitos escatológicos, quanto naquele mais das escolhas através das quais gostaríamos de orientar sua
124
pontual do comentário de São Paulo. Taubes havia tentado colocação em prática. Ora, essas escolhas são elas próprias
explicitar a razão de ter recorrido a Carl Schmitt através da
I'
'
expressão- emprestada ao vocabulário heraclitiano- de ge- 125
Id., En divergent accord: à propos de Carl Schmitt (1952-1987). Trad. P. Ivernel.
genstrebige Fügung, a "junção de tensões opostas" [la jointure Paris: Payot & Rivages, 2003. p. 112.
'" Ibid., p. 67-68 e 107: "Enquanto judeu no mais profundo justamente, eu hesi-
contre-tendue]. Estigmatizado como judeu e como inimigo tarei a condenar irrevogavelmente. Porque em todo esse horror inexprimívcl,
por uma corrente de pensamento de onde ele extraía, no ficamos preservados de um mal. Não tínhamos escolha: Hitler nos escolheu
cotno inirnigo absoluto. ?\'Tas onde nüo há nenhun1a escolha, taJnbém não
há julgan1ento, e sobretudo julgamento sobre o outro. f... ] E cu disse a min1
.. '' tnesn1o: escuta un1 pouco, Jacob, você não é o juiz, enquanto judeu precisa-
172
' . SCHMITT, C. ftat, rnouvement, peuple: l'organisation triadiqne de l'unité mente, você não é o juiz [... ]."Sobre C:arl Schmitt e sua "questão judia", cf.
' '•
politiq rre ( 1933). Trad. A. Pillenl. Paris: F.ditions Kimé, 1997 . o estudo de GROSS, R. Carl Schrnitt et les juifs (2000). Trad. D. Trierweiler.
121
BENJAMIN, W. Sur le concept d'histoirc, art. cit., p. 433. Paris: PUF, 2005.
1
TAUBl'~S, ). Abcndliindischc Esclwto/ogie ( 1947). ,\•lunicl1: ,\latthes und Seitz
1
'
,,- SC:ll MITT, C. Théologie politique: qualre chapitrcs sur la théorie de la souve-
' Verlag, 1991. Jd., /.a 'J'Iu'ologie politiquc de sainl 1'11111 (1987). Trad. M. Kiillcr
I' raineté (1922). Trad. ).-C. Schlegcl. In: . Théologic politique (I Y22, 1969).
I I' cl D. Séglard. Paris: Lc seu i!, 1991. Paris: Gallimard, l9BB. p. 9-75.
'

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I
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"' 92 Georges Didi-Huberman IV- POVOS 93

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orientadas por um horizonte: toda a questão é de saber o toda totalização: a segunda estaria sempre dividida, e a
que queremos Ü1zer com um conceito seja ele qual for, até primeira sempre totalmente, radicalmente operando nessa
I
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I onde se quer torná-lo operatório. Um dos raros momentos genealogia do poder no Ocidente.''"
'
I em que Taubes marca claramente sua escolha, isto é, seu O paradoxo de tal economia - palavra central em toda
I
'
I
I
protesto, sua tomada de posição no debate que ele enseja análise de Agamben - é que permite assumir "seriamente"
'
I
com Carl Schmitt, é quando escreve: "Pretendo lhe mostrar o dito espirituoso do carrasco de Salà: ''A única verdadeira

que a separação dos poderes entre mundano e espiritual é


' ! 131
anarquia é a do poder:' Não haveria, assim, mais distin-
'
.I I.•
absolutamente necessária, se essa linha de demarcação não ção a fazer - enquanto Taubes, por sua vez, insiste ainda
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.i i''
for traçada, não poderemos mais respirar. É o que eu queria em sinalizar sua importância (a da distinção) - entre os
I 'j

I
fazê-lo assimilar contra a ideia totalitária que ele tinha:' 128 "apocalípticos da revolução", como o foram Léon Trotski,
'! A recente contribuição de Giorgio Agamben nesse debate
. Bertolt Brecht ou o próprio Benjamin, e os "apocalípticos
concerne não à reivindicação da separação contra a totaliza- da contrarrevolução'; como o foram Oswald Spengler, Ernst
'
ção do poder, como o faz aqui Taubes, mas à observação des- Jünger, Martin Heidegger ou o próprio Carl Schmitt. 132 O que
'
' !
sa separação até nas formas mais totalizantes da soberania, cai por terra, em tal horizonte de pensamento, não é senão
'
'
por exemplo na "distinção entre reino e governo", distinção a possibilidade de trazer uma resposta ou uma objeção à
' i
'
de longa duração que Carl Schmitt, segundo Agamben, economia do poder assim descrita .. Agamben sabe muito
'
"reelabora numa nova perspectiva'' no momento em que bem - na esteira de Guy Debord; por exemplo - que não
' II
. . .
reflete, em 1933, por conta de Hitler, sobre as relações entre há reino nem glória sem efeitos destrutivos de trevas e de
: I ,
' ! '

"estado", "movimento" (isto é, o partido nazista) e o "povo".' 29 opressão. Mas ele se abstém de falar disso, parece ver somente
O autor de Homo sacer se situaria então, em seu pensamento a ofuscante luz do reino e de sua glória. Para onde foi então
sobre a soberania, além de toda separação, assim como de o "verdadeiro estado de exceção" que Benjamin desejava em
1940, no contexto de sua própria "luta contra o fascismo"?
'
I'
,I '" TAUBES, ). Op. cit., p. 111.
'" AGAMBEt-;, G. Le rcgne et la gloire: pour une généalogie théologiquc ele
130
' I i
l'économie cl clu gouvcrnemcnl. In: . . ··-· llo111o ,cace r. (2007). Trad. ). Jbid., p. 115-167.
'' 111
Gavraucl et M. Rcteff. Paris: Le Scuil, 2008. p. 124. v. 11, 2 (em referência a Jbid., p. 108.
'
' '
I ! SCI-!MITT, C Úal, 11/0UVcmclll, pcup/c. Op. cit.). "' TAUBES, ). Hn divcrgcnt accord. Op. cit., p. 37 e 109.
I

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94 Georges Didi-Huberman
IV- POVOS 95
!:
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I Pode-se
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fazer
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uma genealogia
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do poder sem desenvolver o. i '·
) -, neoÜ1scismo ofuscaram tudo: Pasolini, então, deixa o povo 1
• contratema que aí constitui a "tradição dos oprimidos"? Para ( . desaparecer- "infelizmente, cu o amava, esse povo r... ]"-, ele !
:r' ' 'I

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I
I onde foram, em tal econornia, os vaga-lumes? o abandona sob a lei do reino c sob a luz da glória. O povo,
. a seus olhos, a partir de então,joi esquecido. Estilisticamcnte
' ------- ------ -----
I f~l(lndo,.? artigo elos vag(l-lumes é somente um túmulo dos •·
I
I Os vaga-lumes, em tudo isso, não sofrem nada menos • povos perdidos. 131
I ---
----- --- ·--· ·
' ~' -··- ~------

- metaforicamente, é evidente - que a sorte dos próprios As recentes conclusões de Agamben, uma vez mais, não
-
' 'i
' i' povos expostos ao desaparecimento. No início dos anos de deixam de ter relação com tal desespero político. Após dois
''
'
'
1970, Pasolini se mostra ainda em toda sua potência de notáveis capítulos "arqueológicos" dedicados - via Erik
ver e de se mover: ele deixa a Itália para ir para a Eritreia, Peterson e Carl Schmitt, Andreas Alfi:ildi e Ernst Kantoro-
·-·- -- -- --

uma viagem cujo objetivo é o de fazer uma reportagem e o wicz, Percy Ernst Schramm e Jan Assmann - à história dos
casting para seu filme Les mille et une nuits [As mil e uma aspectos cerimoniais do poder, em seguida à própria noção
!
''
noites]. Ali, tudo é vaga-lume, uma sequência incomparável de "glória" (Hcrrlichkeit) "desestetizada'; com a finalidade de
de maravilhas diante da luminosidade, beleza dos povos ser melhor articulada à do "reino" como tal (Herrschajt), 135
'
'I
encontrados: " [... ] eu me emocionei até às lágrimas com Agamben abre,_umli1lliarqueaparecec()n10 a própria con-
aqueles traços delicados, um pouco irregulares [... ) essa clusão de sua investigação, ainda que provisória, 1~0 i-Íne11so
violência não excluía a graça, ela fazia parte das coisas da arquipélago de Honzo sacer. 136
Investigação que o terá cc;n-
I I
vida [... ] de uma população revoltada. [... ] Decidi-me por duzido, enfim, "à proximidade do centro da máquina que a
'' !
'' '
Fessazion Gherentiel, o barman de um desses pequenos glória recobre com seu esplendor e seus cantos". 117
' '
bares, aparição esplêndida, o sorriso explodindo em seu I

'

rosto como uma luz silenciosà: 133 e cosi via. Mas, dois anos '
3
; \Jo original em fn:nc~s: "Lc pcuplc esl, à scs ycux, désormais, tonz/J(;. Stylisti-
mais tarde, tendo retornado a Roma, os ferozes projeto~~sdo quemcnt parlant.lartrcle dcs luciolcs n'cst qu'un tombmu dcs pcuplcs pcrdus."
~a t.r~:duçao par~1 o portuguCs nilo J'oi possívclJnantcr a equivalência entre os
srgtlliicantes grifados pelo autor. (N.T)
' ~ ":GAj\fB~.\J,
3
'"' PASOLINI, P P Mes mille et une nuits (1973). Trad. H. )oubert-Laurencin. In: G. Le rt:gnc e1 la gloirc: pour une généalogic théologiquc de
---··-· f:crits sur /e cinéma. Lyon: Presscs Universitaires de Lyon-Instítut Lu- lecononne cl du gouverncmenl. In:-------· Jlcmw socer. (2007). Trad. j.
miere, 19R7. p. 232-LlH. (Texto infelizmente não incluído na cdi~Cto mais rccenlc Gayraud ct "'L PudL Paris: I.c Seu i], 2008. p. 2~o7-376. v. IJ, 2.
I ''
.. I!' de Hcri ts sur /c cinéma. Pelits dialogues avcc les films 1957- 197 •L Paris: Cah icrs UI· j/Jfd., ]-l. 377-30:1.
.I
du cinéma, 2000. Meus agradecimentos a Delpbine C:baix pela inic1rmaçüo.) " Jl,úf., p. 37:-.

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96 Georges Didi-Huberman
IV- POVOS 97

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:I . Máquina do reino (Herrschajt) e espetáculo da glória do momento em que o povo está fisicamente reunido - pouco
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(f-lerrlichkeit): esta oferecendo àquela sua própria luz, senão importa com que objetivo [... ]nas festas públicas, no teatro, no
sua voz. "Jamais, sem dúvida, uma aclamação no sentido hipódromo ou no estádio -, esse povo com suas aclamações está
técnico foi pronunciada com tanta força e eficácia como o lá e constitui, ao menos potencialmente, uma potência política. 140
Heil Hitler na Alemanha nazista ou o Duce Duce na Itália
; I '
fascista:' 13 s E hoje? "Esses clamores unânimes que ressoavam i Onde Carl Schmitt evocava um povo unânime reunido 1 i
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I I .' . ,-
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ontem nas praças de nossas cidades", responde primeiro II no estádio seis anos antes das grandes manifestações de Nu-
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Agamben, "parecem hoje pertencer a um passado longínquo 'remberg, seja no horizonte do totalitarismo nazista, Giorgio/
(
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' .
e irrevogável:' "Mas é de fato assim?", interroga-se ele ime- Agamben buscará, nesse mesmo texto, alguma coisa q11tô va-
i' !
.l I diatamente depois. 139 Compreende-se, então, que a questão lha como diagnóstico para aquilo que nos cabe, hoje, oittôntil
.' •''
'
' ''
'•
deveria, antes, ser formulada da seguinte maneira:_como a . - -

anos depois dele, e no horizonte da democracia ocidental. \


- -

vitória das democracias ocidentais sobre os totalitarismOs·.· . I


Mas será preciso, para isso, reduzir a "potência política'' I
da Alemanha hitlerista e da Itália fascista terá transformado? • do povo de aclamação - romana, bizantina, medieval.. .. \
:

.. '
''
"secularizado", até prolongado um fenômeno de culto cujo· totalitária-, e devolvê-la ao que as democracias nomeiam.\
!i !
'
' apogeu se encontra perfeitamente colocado em cena no,·. a opinião pública: i

. I
.· . Triumph des Willens filmado por Leni Riefenstahlf
; .
Ora, é a Carl Schmitt que Agamben dá a palavra para

..
I', A opinião pública é a forma moderna da aclamação. É talvez
I
I responder a essa pergunta. Ele cita a Verfassungslehre [Teoria ... - -- ·"··~--.--- ,

uma forma difusa, e o problema que ela coloca não se resolve nem
da Constituição], texto de 1928 em que se exprimia a crítica
sociologicamente nem em direito público. Mas é a possibilidade
conservadora do jurista a respeito da República de \Veimar:
' de interpretá-la como aclamação que lhe confere sua essência

e sua importância política. Não há democracia e nem Estado
. ''
Somente uma vez fisicamente reunido é que o povo é povo, e sem opinião pública, da mesma forma que não há Estado sem
.
,I
'
somente o povo fisicamente reunido pode fazer o que cabe espe- aclamações. l·!l
'i •
! cificamente à atividade desse povo: ele pode aclamar[ ... ]. A partir
1 1
'' lbid., p. 378-379 (citando C Schmill, Théoric de la conslitutúm ( 1928). Trad.
l.Hl lbid., p. 377-378. L Lkruche. l'aris: PU!', 1993. p. 382-383).
' 1.w Ibid., p. 378. 111
1bid., p. 379 (citando C Schmitt, Fhéoric de la constitution. Op. cil., p. 385.)
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98 Georgcs Didi-Huberman IV- POVOS 99

I
I

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Perguntar-se-á então: o que L1Z da opinião pública nas ficava outrora confinado nas esferas da liturgia c do cerimonial
democracias um eslrito equivalente - haveria diferenças, , se concentra nas mídias e, ao mesmo tempo, através delas se di-
elas não são evocadas- da aclamação nos sistemas de poder funde e se introduz em todos os momentos e em todos os meios,
- - - -- - -

absoluto? I~ a Guv Debord que Agamben passa, de agora em


. '
tanto públicos quanto privados, da sociedade. [Assim,] o Estado
diante, a palavra, para responder a essa questão: a "sociedade holístico fundado sobre a presença imediata do povo aclamando

'
do espetáculo" é para a opinião pública hoje o que a sub- e o Estado neutralizado, dissolvido nas formas comunicacionais
I' ,
' missão das multidões foi para os totalitarismos de ontem. sem sujeito estào em oposiçào apenas aparentemente. Eles são
somente as duas faces do mesmo dispositivo glorioso sob suas
[... ] o que aqui nos interessa, é o fato de que a esfera da glória , duas formas: a glória imediata e subjetiva do povo aclamante e a
-cujas significação e arqueologia tentamos reconstituir- não de- glória midiática e objetiva ela comunicação social. ' 12
saparece nas democracias modernas, mas se desloca simplesmente
para um outro contexto, o da opinião pública. ·Se esse for mesmo As imagens - que Agamben reduz aqui à "forma midiá-
o caso, o problema da função política das mídias nas sociedades tica da imagem" - assumem, assim, no mundo contempo-
contemporâneas, hoje tão discutido, adquire uma nova significa- râneo, a função de uma "glória" presa à máquina do "reino":
- . .
çao e uma nova urgenna. imagens luminosas contribuindo, por sua própria força, para
) Em 1967, com um diagnóstico cuja justeza nos parece hoje fazer de nós povos subjugados, hipnotizados em seu fluxo.
'
evidente, Guv Debord constatava a transformação em escala O_Qiagnóstic?não é, sem dúvida, falso. Ele em-responde às
' ·-·- ·-· --·· ---· ·---- -·"-·--··-
' ---- ~-"~"--·---·------·-·-~---

planetária da política e da economia capitalista em uma "imensa sensações de sufocamento e de angústia que nos invadem
---·-· ----

acumulação de espetáculos", onde a mercadoria e o próprio capital diante da proliferação calculada das imagens utilizadas, ao
'

tomam a forma midiática da imagem. Se aproximarmos as análises mesmo tempo, como veículos de propaganda e de merchan-
de Debord da tese de Schmitt sobre a opinião pública como forma dising. Mas esse diagnóstico aparece, no livro de Agamben,
moderna da aclamação, o problema da atual dominação espeta- !
\ como verdade última: a conclusão de seu livro tanto quanto
i '

cular das mídias, em todos os aspectos da vida social, aparece '' o horizonte apocalíptico do qual ele procede. De m.odo que
'\
sob um novo olhar. O que está em questào não é nada mais que I
''
2
uma nova e espantosa concentração, multiplicação e dissemina- r-r ;\(;Afv1 BI_,:N, C. L: rl'gne el la g1oirc: trJour Ul1l' 0ut'nl'alouie
<.. <,_ ~
thl,oloFitlUC de
'-'
:'
l'économic ct du gnu\TrncJncnt. Tn: ___ . J-JoJJJn suu:r. (2007). Tn1d. J.
çào da funçào da glória como centro do sistema político. O que Gayraud et rvl. Rucf{ l'aris: Te Scuil, 7008. I'· :>R0-381 c' 383. , .. 11, 2.

100 Georges Didi-Huberman IV- POVOS 101


ele acaba por desdialetizar, desconflitualizar, empobrecer alternativa à assustadora "glória" do espetáculo. E, sobre-
tanto a noção das imagens quanto a dos povos. A imagem não tudo, vê no povo apenas o que dizem Carl Schmitt e c;uy
é mais, nesse caso, uma alternativa ao horizonte, a lucciolo Debord: ou seja, algo que só se pode definir privativamente,
1; I
: i

como alternativa à fuce. Ela não parece mais que uma pura negativamente.
I
. '
função do poder, incapaz do menor contrapoder, da menor "Como isso devia ser hoje evidente, povo-nação e povo-
insurreicão, da menor contraglória. O que indica bem mais -comunicação, apesar da diferença dos comportamentos e
'
do que uma simples questão de estética, lembremo-nos: do.·. das figuras, são as duas faces da doxa que, enquanto tais,

I
estatuto da imagem - do valor de uso que se lhe atribui - ', se entrelaçam e se separam sem cessar nas sociedades
I
depende efetivamente o aparecer do político enquanto tal,; contemporâneas:' 143
Todas as diferenças, num tal cqnceito
i . -- -·
--· ---· --- - -
~i I ' --~·-

'
o que compromete todo o "valor de exposição" dos povos:; dos povos, seriam então redutíveis ao mesmo estatuto, ao
-- -.-

confrontados ao "reino" e à sua "glória". mesmo destino: a doxa, à opinião, a crença. O que sucumbe
Se o desenvolvimento de Agamben acaba por estabelecer aos enganos das aparências sensíveis, o que pensa mal e
uma espécie de equivalência desencantada entre democra- produz falsos conhecimentos. Numa palavra, tudo o que ,
cia e ditadura no plano de uma antropologia da "glória'', é o idealismo filosófico opõe tradicionalmente à épistéme, o .
' . ..
porque imagens e povos foram inicialmente reduzidos, as conhecimento verdadeiro, a ciência inteligível, a apreensão
primeiras a puros processos de assujeitamento, os outros a das ideias justas. Essa definição vem, talvez, de muito longe,
i ;
'• ' puros corpos subjugados. Pasolini, eml975, terá sem dúvida isto é, de Platão. Mas, na economia do livro de Agamben,
declarado seu desencorajamento quanto ao povo italiano, ela se conclui com Carl Schmitt, que recolhe, no que lhe diz
mas as pequenas pessoas que assistiam ao espetáculo de respeito, toda uma tradição conservadora do medo das mul-
1 1
marionetes, em Che cosa sono le nuvole? [O que é o novo?], tidões e a amplia, prolonga-a numa vontade constitucional
<

em 1967, não hesitaram em protestar, em se levantar de seus de_Iiomjná-jas, de contê-las, de subjugá -las.
assentos, em invadir a cena, numa palavra, em se insurgir
por uma ruptura concreta das regras impostas pela repre- "' Tbid., p. 383 (proposição reiterada injine, p. 385).
111
CC MOSCOVICI, S. I.'âgc desfoulcs: un traité historiquc de psychologie eles
sentação. Ao deixar falar em seu lugar Carl Schmitt, de um
masscs (1981). Bruxellcs: Í:ditions C:omplcxc, l'JYJ (éd. rel{mduc). 1·:, para 0
lado, e Guy Debord, de outro, Agamben não vê nenhuma contra-argumento dialético, id., Psydwlogic dcs minorffLis uctivcs ( llJ76). Tr;_1(_L
A. RiYic'!T. 1\ms: J'lll', 1979.

.
.
.'
. 102 Georges Didi-Huberman IV- POVOS 1 03
. '
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f: o que se vê em Carl Schmitt, em 1928, no contexto Notemos, enfim, que essa definição negativa se encontra
'
,,'I
'
mesmo das páginas que Agamben extraiu da 1/crfassungs- na abertura do capítulo da Verfassungslehre dedicada aos
'
. lchrc: a noção de povo aí está, primeiramente, reduzida_à "limites da democracia". 116
E que o texto de 1933 intitulado
------- ---- - - - - - - - - - - - ---- --- --- -----

unificação de uma essência (não há multiplicidades, não há : St!!clt, l~etvegung, Volk- que conheceu, até 1935, três edições
-
i' singularidades naquele povo); em segundo lugar, reduzida
.
Sl1cessivas - C()nsagrará,lbgi~amente, a "unidade do povo"
· a se expressar como simples negatividade. sob o reino do Estado, sob o controle do partido único e no
horizonte que indica claramente sua última frase: "tod~s as
.I
'

Em razão de sua essência, o povo não é uma magistratura e, perguntas e respostas desembocam na exigência de uma
'
il' mesmo em uma democracia, jamais uma autoridade constituída
"
I
identidade da raça (Art), sem a qual um Estado total do
'

,,
dotada de uma competência. [... ] Anoç:ãode_p_ovo é <1qui definida Führer não pode subsistir um só dia:' 117
'
'
negativamente,en1
.
realidade, poroposição ao sistem'!_or_ganizado
---------------
Ao adotar os diagnósticos de Carl Schmitl, Agamben
li
I
do Estado em administrações e em magistraturas. Além dessa ne-
----------
não adota, evidentemente, as visadas "terapêuticas" dele.
gação do caráter administrativo, é característico da noção de povo Mas uma resposta sempre está inscrita na forma mesma
''
que ela se defina negativamente mesmo em outros campos. Definir de toda questão colocada: ela insiste sobre isso, por assim
o povo negativamente, dessa maneira, não toca unicamente, em dizer. Por colocar a questão nesses termos unilaterais -
geral, num ponto sociologicamente importante (por exemplo, num esses termos que não admitem a menor contraforma ou
.1 ,,'
teatro, o público define-se como a parte da assistência que néio "contraquestão" -, Agamben fecha sua investigação sobre a
'
representa); essa negatividacle específica também não deve mais cor sombria, cinzenta, de uma consciência infeliz condenada
ser desconhecida no estudo científico das teorias políticas. Num : a seu próprio horizonte, a sua própria clausura. A respeito

sentido particular da palavra, o "povo" são todos aqueles que nao .. da consciência infeliz e sua "cisão interior'; Hegel escrevia
são distintos e diferenciados, todos os que não são privilegiados, . que a "consciência da vida, [a] consciência do estar-aí e da
I'
'I todos os que nao são colocados acima do conjunto por suas posses, operação da própria vida, é somente a dor impostGJ ao sujeito
sua posição social ou sua formação. 1'15 deste estar-aí e dessa operação; pois ela tem aqui somente
- - - - ~-~

' ''' SC:IIMITT, C. 'f'lu'oric de /11 co11stituliou. 'l'racL L Dcmcbc. l'aris: I'Ul; 1928. ; ,,, 1/Jir/" p. !10-120.

'' SCH ~IJTT, C:. ,:-/oi.


i p.21Sc3SJ.
·i

IIIOII!'C!llcnt, pcup!c. Op. cit., p. C.J.

104 Georges Didi-Huberman


IV- POVOS 1 05
.: .!

_, ___
148
'\j1 a consciência de seu contrário e de seu próprio nada:' 150
em État d'exception [Estado de exceção]. A essas críticas
. 1 ·Quanto a mim, eu não consigo imaginar um pensamento · '

,· unilaterais, Giorgio Agamben respondeu, recentemente, que ·.


político que deixa a seu inimigo a definição e o controle de
o julgávamos no plano dos "fenômenos históricos" - aqui .•
" seus conceitos mais fundamentais. Poder-se-ia, desse ponto
\ Auschwitz, lá Guantánamo -,quando sua análise tinha um •
de vista- e sem mesmo prejulgar os resultados obtidos nes- '
c~ráter arqueológico e tratava apenas de paradigmas, "tendo
\
'
'

ses dois exemplos -, comparar o horizonte cruel concebido


por função construir e tornar inteligível por inteiro um
por Giorgio Agamben ao horizonte alegre imaginado, em ·contexto histórico-problemático bem maior". 151
outra obra, por Antonio Negri c Michaclllardt, ao oporem o
Agamben articula filosoficamente o aparecimento dos
"impérid' do reino e da glória contemporâneos à "multidão"
I paradigmas, e sua "escavação" arqueológica da história como
I
como nova "possibilidade da democracià'. 149 j
Pasolini, antes dele, articulava poeticamente suas imagens
do presente a uma energia que ele extraía das sobrevivências,
na arqueologia sensível dos gestos, cantos, dialetos, arquite-
i,

Da mesma forma que Pasolini, por suas posições tão turas em ruínas de Matera ou dos subúrbios de Roma. Há,
extremas quanto paradoxais, havia suscitado reações tão es- em ambos os pensadores, uma grande impaciência quanto
candalosas quanto unilaterais, Agamben foi alvo de críticas ao presente; mas sempre ligada a uma infinita paciência
'
" com uma violência que ofusca, com frequência, toda leitura quanto ao passado. Nisso, eles nos são necessários uma vez
'
I'
mais aprofundada de seu trabalho. Por exemplo- e para ficar que olham seu mundo contemporâneo com uma violência
apenas no domínio francês -, Philippe Mesnard e Claudine sempre apoiada em imensas pesquisas na espessura do
'
' Kahan fustigaram a análise do "muçulmano" desenvolvida tempo. Por isso mesmo eles escandalizam: porque levantam
em Ce qui reste d'Auschwitz [O que resta de Auschwitz], impensados, porque nos colocam com frequência face aos
'
enquanto Éric Marty atacava a noção de "exceção" elaborada
~

150
MESNARD P.; KAHAN, C. Giorgio Agambcn à l'éprcuvc d'Auschwitz. Paris:
1 Kimé, 2001. p. 14-76; MARTY, É. ilgambcn et les tâchcs ele l'intcllectuel: à
" HEGEL, G. W. F Plzénoménologie de l'esprit (1807). Trad. ). Hyppolite. Paris:
propos d'état d'exception. Les Tepms Modernes, n. 626, p. 215-233, 2003-2004
Aubier-Montaigne, 1941. p. 178. v. I.
(retomado c revisto em Une querelle com Alain.Tladiou, philosophc. Paris:
11
" Cf. HARDT, M.; NEGRI, A. Empirc (2000). Trad. D.-A. Canal. Paris: Exils, Gallimard, 2007. p. 131-155).
2000 ( éd. "10/1w: 2004 ). id., Multitude, guerrc ct dénwcratic á /{Jge de l'Empire
"' AGAMBEN, G Signutum rerum: sur la méthode. Trad. T. Cayraud. Paris: Vrin,
(2004 ). Trad. N. Guilhot. Paris: La Découvcrte, 2004 ( écL "1 0/18", 2006). 2008. p. 9.
i
"
'

106 Georges Didi-Huberman


IV- POVOS 107
'
I
I
'
retornos do recalcado histórico. É, evidentemente, muito e de Overbeck, de Hermann Usencr, de Heidegger, de
I desagradável, quando se grita Forza Italia em um estádio Dumézil, de 1'\!Iichel Foucault [... ] e, certamente, ele VValter
'
I
de futebol- e mesmo quando não se grita para apoiar ex- Benjamin.b" Este participa com sua célebre tese sobre
olicitamente Silvio Berlusconi -, ler os avisos de Agamben o "anjo da história" que "avança em direção ao futuro
'
' ',
sobre as aclamações medievais e seu destino no Ducc Ducc tendo os olhos fixos no passado". 153 Mas uma passagem

,I \ '.. 'I
dos fascistas. mais fundamental sobre essas questôes, na expectativa de
, I
."· I
' ' .\
'
Agamben e Pasolini nos interessam, cnlão, antes de tudo;' i/
--------
outros textos mais explícitos sobre a ideia de escavacão
• •
arqueológica, ~ encontra-se em "Préface épistémo-critique"
13
'
' pelo que nomeei aqui uma política das sobrevivências; que
I
'
''
!
'
vai de par com toda política das imagens e da exposição de Origine du drame baroque allemand [Origem do drama
------ -

política em geral. Não serve de nada acreditar em refutá- · barroco alemão], em que Benjamin constrói a no cão do
'' •
' ' -los sobre o único plano histórico (se argumentamos, por que seria uma verdadeira "história filosófica considerada
'
exemplo, que o entusiasmo pelo futebol não tem nada a ver como ciência da origem"iSS (philosophische Geschichte als
com a política, o que pode ser verdade, ou que o campo de die Wissenschaft vom Ursprung). Esta, diz ele, "não e,merge
\ --
' '' Guantánamo não tem nada a ver com o de Auschwitz, o dos fatos constatados" - o que pode justificar a defesa de
''
-. '- '
'
que é verdade). Parece-me necessário, ao contrário, debater, Agamben a respeito de seus detratores -, "mas toca a sua pré
1 6
discutir as construções de Agamben no próprio plano em e pós-história" ' (er betrifft dessen Vor- und Nachgeschichte).
que elas querem se situar. E uma vez que o pensamento de Uma maneira, para Benjamin, de dar uma nova direcão
'
\Valter Benjanün, parece-me, dá a essas construções sua à dialética como "testemunha da origem" (der Dialcktik
condiçào mesma de possibilidade, pode ser útil voltar um dic dcm Ursprung bciwohnt), no que ela "faz proceder dos
pouco sobre o valor de uso das hipóteses benjaminianas,
tanto no plano do método "arqueológico" como no plano
i
::_: J!Jid., p. 93-128.
da revelação dos "paradigmas". 1.'·' 1/Jid., p.ll·l.
A ,araueo logiafilos áfica que9iorgig_A_gªm \)erueinvid ica 15 1
BFi\]'\ 0:11 i\, W !'ou i li es ct souvenir (I 9 32). Trad. ). -F. Poirier. I11 w~cs de pc usá:.
-·---- "+ .>.... -- '-- '"'

Paris: C: h ristian Bourgois, J 998. p. 181-182. c


possui, ela própria, uma arquelogia ou, pelo menos, uma
'" ld., Origine du drmuc i'llroifiiC ullcnuuu;/ (I 928). Tn1d. S. rdullcr c;\. !li ri. Paris:
tradição marcada pelos nomes de Kant, de Nietzsche Ha1nmarion, 1~JS:>. p. -l :1.
c, 1/Jid., p. ·1'1.
'
I ; I
'

108 Georges Didi-Huberman IV- POVOS ! 09


I
''
I
!'
I'
'

extremos afastados, dos excessos aparentes da evolução sujeitos políticos por inteiro, de modo a mudar as regras
[... ] onde tais oposições podem coexistir de uma maneira do reino e da glória. Tudo isso é sublinhado por Benjamin
,I

que faça sentido". 157 Eis também porque "a origem nunca se em Paris, capitale du XIX'' siecle !Paris, capital do século
dá a conhecer na existência nua, evidente do factual, e sua XIX] ou, ainda, nas Theses sur le concept d'histoire [Teses
'
.I rítmica (seine Rhythmik) só pode ser percebida numa dupla sobre o conceito de história], quando evoca a Revolução
perspectiva. Ela pede para ser reconhecida, de um lado, Francesa, a de 1848, e o movimento espartaquista, ou ainda
como uma restauração, uma restituição ( Wic derherstellung), quando descreve esse momento da Revolução de Julho em
de outro lado como algo que está, por isso mesmo, inacabado que "se viu em vários lugares de Paris, no mesmo momento
158
(unvollendet), sempre aberto:' e, sem que houvessem previamente combinado, as pessoas
159
Isso significa, concretamente, que uma arqueologia filo- atirarem contra os relógios".
! ·,
I
sófica, em sua própria "rítmica", é obrigada a descrever os Caberia logicamente a uma filosofia dos paradigmas
' tempos e os contratempos, os golpes e os contragolpes, os assumir a descrição dessa maneira de mudar as regras que,
temas e os contratemas. Isso significa que falta fundamen- a despeito de sua radical novidade, encontra suas fon'tes ou
talmente a um texto como "Le rêgne et la gloire" a descrição seus recursos em algo como uma tradição oculta. Escreve
'
I' de tudo o que falta ao reino (quero dizer a "tradição dos Agamben:
.. oprimidos" e a arqueologia dos contrapoderes ), como à
I
glória (quero dizer a tradição das obscuras resistências e
(
O paradigma é um caso singular que é isolado do contexto
a arqueologia dos "vaga-lumes"). À arqueologiaciasacla- . de que faz parte apenas na medida em que, ao apresentar sua
1

'
mações, oriunda de Ernst Kantorowicz e de Carl Schmitt, )
própria singularidade, torna inteligível um novo conjunto cuja
:i
'
I
falta uma arqueologia das mCinifestaçQes, e mesmo das \ homogeneidade ele mesmo constitui. [... ] Enquanto a indução
revoluções, <::~;-que os povos fazem bem mais que dizer r procede do particular ao universal c a dedução do universal ao
'I
"sim" - ou "não", aliás, pois o "não" eventual das aclamações •
particular, o que define o paradigma é uma terceira espécie de
' está sujeito às mesmas condiçôes do cerimonial que fixa a
I
"
movimento, paradoxal, que vai do particular ao particular [... j da
instância do poder. É quando os povos se constituem em
r-• BE\I)Ai\11'.1. W. l'uris: capilalc du XlXc siéclc. Op. cit .• p. ó35 684 c /BK-7'!3;

'
I
,I ,., 1/Jid., p, 44-'15. id .. Sur k concepl d'hisloirc (1 '!40). 'J'rad. i\1, de c;andilbc, revista po1· P.
I
Rusch. In: ___ . Cbt\Tcs. p. 440. v. fi L
r" Ibid., p. ·13-44.

'
ii
'
11 O Georges Didi-Huberman IV-POVOS 111

'

'
I

singularidade à singularidade e que, sem sair desta, transforma vt:Edac:l_~ramente. Ele só faz reconduzir, por deslocamentos
..I
' todo caso singular em exemplo de uma regra geral impossível de ou secularizações, as relações tradicionais do reino e da
!
' '•

ser formulada a priori. 11' 0 glória. Ironia da história, sem dúvida, é que seja em um
.I

fllósofo bem diferente de Agamben - e mesmo hostil a seu
i
;I E Agamben precisa, a respeito dessa paradoxal e infor- trabalho - que se encontre um caso exemplar, um paradigma
'
''
mulável regra: "A suspensão da referência e do uso normal em que a voz do povo soube impor sua singularidade para
161
' é aqui essencial:' além de todo cerimonial de aclamação: penso nesse Cri du
'
:I '

r '' I Ora, o que propõe o paradigma da aclamação, na análise peuple [Grito do povo] restituído por Jacques Ranciere, com
i

!' que dele é feita em "Le regne et la gloire" - ou, antes, nas Alain Faure, à "tradição dos oprimidos", na abertura de sua
conclusões a que Agamben, aí, chega, de Carl Schmitt e de investigação sobre La parole ouvriere [A palavra operária]. 162
! --- -- -- -----·

"I I Guy Debord reunidos- ignora justamente essa capacidade


,, I
,I
de suspensão, de transformação, de bifurcação. Schmitt
~

,,'
i :' procede antes por indução, inferindo de uma situação
. I particular (aclamar) o universal de uma definição do povo
I

II
'
'
(que, justamente, só sabe fazer isso, aclamar). Já Debord
'' '
procede com mais frequência por dedução, inferindo de uma
'

. I
situação universal (a sociedade do espetáculo) a totalidade
.1 '

dos comportamentos particulares em que cada gesto dos


'
povos acabará por se enconlrar assimilado à doxa, variante.
'
'
I impotente da aclamação. Em resumo, o paradigma perdeu.
,I sua própria potência: sua potência de sintoma, de exceção, ;
; j I

de protesto em ato. Ele se transmite sem transformar


! '
' '
' ''

., I' '"" AGAMIH·:N, C. Sig11utura rcrw11. Sur la méllwdc (200~). 'lre1d. \. Canaud.
Paris: Vrin, 200S. p. 19-20 c 24.
'' Ft\URE, c\.; R.\NCIÜ'-1', ). !,a puro/e ouvric'rc (1976). 1'<1ris: La l'<lbriquc,
I ''" 1/Jid., p. 26. 200;. p. 37-43.
1. '

i!
I

112 Georges Didi-Huberman


IV- POVOS 113
'I

v
-
DE§J~U iÇO E§?

I
'

I
,I
I
'' '

Não se percebem absolutamente as mesmas coisas se


'
' 'I
ampliamos nossa visão ao horizonte que se estende, imenso
'
!
e imóvel, além de nós; ou na proporção que se aguça nosso
olhar sobre a imagem que passa, minúscula e movente, bem '

, r
. ,I'
' ' .' próxima de nós.--A imagem é lucciola das intermitências pas- ·
I"' '
• sageiras; o horizonte banha na luce dos estados definitivos,
'

,, '
:' tempos paralisados do totalitarismo ou tempos acabados do.
'
' '
:1
'
· Juízo Final. Ver o horizonte, o além é não ver as imagens I
' ',,
' '
,' I' que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e !
,'
'

"
I• lampejo a nossa frágil imanência, os "ferozes projetores" 1

da grande luz devoram toda forma e todo lampejo - toda 1

1 diferença - na transcendência dos fins derradeiros. Dar 1


'
exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar 1
,

',, •
''
'
, a menor Imagem.
Talvez, somente em momentos de exaltação messiânica
I é que se pode, eventualmente, começar a sonhar com um
'
''
. ;I
,I horizonte que acolheria, que tornaria visíveis todas as ima-
''
''
gens. Em raras ocasiôes, é o que aparece em Walter Benjamin
I' :
,,
I
'I
'

'I 11 5
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li
.,

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''
li i
I
''

quando se trata de uma hipotética história bem-sucedida, do passado que está arriscada a desaparecer com cada
'i
I' em que cada instante - cada imagem - poderia ver-se con- presente que não a reconhece". 1 5
" Na versão francesa de seu
' . . .

vocada na duração absoluta, paradoxal, do Juízo Final: texto, Benjamin escreve que essa definição da imagem "se
apoia sobre (um) verso de Dante" que ninguém, de meu co-
166
O cronista que relata os acontecimentos sem distinguir entre nhecimento, pôde ainda identificar. Mas essa lembrança,
os grandes e os pequenos tem direito a esta verdade: de que nada embora vaga, nos é preciosa: ela faz da imagem, algum lugar
do que um dia aconteceu está perdido para a história. Certamente, entre a Beatriz de Dante e a "beleza fugaz" de Baudelaire, a
'
I
somente à humanidade redimida é devido plenamente seu pas- passante por excelência.
''
'

sado. Isso quer dizer que somente para ela seu passado tornou- • A imagem seria, portanto, o lampejo passante que 'I
'I -se integralmente citável. Cada um dos instantes vividos por ela transpõe, tal um cometa, a imobilidade de todo horizonte: '·
torna-se uma "citação na ordem do dià' -e esse dia é justamente "A imagem dialética é uma bola de fogo que transpõe todo
163
.I o do Juízo Final. o horizonte do passado", escreve Benjamin no próprio con-
texto - os "paralipomênes et variantes" [paralipômenos e
'i
Mas esse "dia" não nos é dado. Cabe a nós ap~n~~_uma variantes] manuscritos - de sua reflexão sobre a história e a
··--"-" ----- ------------ ·------- ------ .. ______ ·--- - --··--
_,.--.. ., ,_ ---·------------~-------

"noite" atravessada, aqui, pelo doce lampejo dos vaga-ll!r11~s;


e-···· .. , ---- -- ..• -··- .....
política. ~ Nesse nosso mundo histórico - longe, portanto,
16

' I'

lá, pelo cruel raio~(_)S __R]"Oj~!or~s. As teses de Benjamin, de todos os derradeiros fins e de todo Juízo Final -, nesse
·--- -·· ---------- --· -- . ~---
iI
I
I
sabe-se, se interrompem - com palavras que são, para nós, mundo onde "o inimigo não para de vencer" 168 e onde o
ii
suas últimas palavras- sobre a imagem desta "porta estreità' horizonte parece ofuscado pelo reino e por sua glória, o
'
messiânica que encerra "cada segundo" de tempo investido
''
pelo pensamento. 161
Essa moldura estreita, essela11so ínfin~o~
····-· -------
- -- - -- - ------ •·: Ibid., p/130.
I ' ' '
''
'
designam apenas, parece-me,------ __ .
a propna unage~:_1111age~n
,______________ '"'' Id., Sur Ie conccpl d'histoirc (1940). In: MONNOYFR, ).-ivl. (éd.) Écrits jiwzwis.
'
q~e "pass~l-~orn~
'

'
'' ' '
'
·--------
----·--.
um relâmpago
.. ----·-·-·-····----·-----··
-·---- ·--
[
----
... ] imagem irrecuperável
---·-------- ------ ------· ----- - ------ -- - _,
Paris: Gallimard, 1991. p. 341.
'
II

'' · B FN )AMI'I, \V Paralipomêncs ct variantes des thêses sur !e concepl d'histoirc

(l'HO). In: IVIO'\'IOYER, ).-M. (éd.) Écritsfrançais. Paris: Gallimard, 1991.


"'' BEN)i\IV11N, W. Sur !c concepl d'hisloirc ( 1940). Trad. ,\I. de Gamlillac, rcYista p. 3\R.
por 1'- Rusch. In:. .... (f!uvres. p. 42~. v. li!. '"' ld .. Sur lc conceptcfhistoire. ( 1940). Trad. :VI. de Candillac, revista por P Rusch.
lúl /lJid., p. 4•13. In: . ChnTes. l'aris: PUc; 2001. p. 431. v. 111.

' '
; :
'

116 Georges Didi Huberman V- DESTRUIÇÕES? 117


...
'
I:
'I
li
I
I
,I
"


'
'

I
'
primeiro operador político de protesto, de crise, de crítica imóvel das ideias eternas: em geral, ela desce, declina, se
..
I

ou de emancipação, deve ser chamado imagem, no que diz precipita e se danifica sobre nossa terra, em algum lugar
''
respeito a algo que se revela capaz de transpor o horizonte das .·. diante ou atrás do horizonte. Como um vaga-lume, ela aca- i
I
construcões totalitárias. Este é o sentido de uma reflexão, a ba por desaparecer de nossa vista e ir para um lugar onde I
'
1

I'
' meu ver capital, esboçada por Benjamin sobre o papel das será, talvez, percebida por outra pessoa, em outro lugar, lá !
'
imagens como modos de "organizar" - isto é, também, de onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda. Se, de!
I
iI
desmontar, de analisar, de contestar - o próprio horizonte acordo com a hipótese que tentamos construir, a partir de i
de nosso pessimismo fundamental: Warburg e Benjamin, a imagem é um operador temporal de
. . . d
so brev1venoas - porta ora, a esse titulo, de
.
uma potência/
I
Organizar o pessimismo significa ... no espaço da conduta política relativa a nosso passado como à nossa "atualidade
'
''
'. .
política ... descobrir um espaço de imagens. Mas esse espaço de integral", logo, a nosso futuro -, é preciso então dedicar-se
imagens, não é de maneira contemplativa que se possa medi-lo.
~ a melhor compreender seu movimento de queda em nossa
'
' Esse espaço de imagens (Bildraum) que procuramos ... é o mundo direção, essa queda ou esse "declínio", até mesmo essa decli-
- - • I
"' de uma atualidade integral e, de todos os lados, aberta (die Welt naçao, que nao e, por mais que Pasolini o tenha temido em!
'

allseitiger und integraler Aktualitat) . 169 1975, seja o que for que pensa Agamben hoje, desaparição./
I
\

':
I
I i A imagem: aparição única, preciosa, é, apesar de tudo, '
I' ',
'
' muito pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai. 170
Tal é É preciso então voltar ao horizonte sem recurso (horizon
a "bola de fogo" evocada por Walter Benjamin: ela apenas sans ressource) que sugere a proposição liminar de Giorgio
"transpõe todo o horizonte" para cair sobre nós, nos atingir Agamben em Enfance et histoire, para confi·ontá-lo a essa
, I
'
'
I
.'
' (échoir). Ela apenas raramente se ergue em direção ao céu ressurgência da imagem (ressource de l'image) que tentamos
I

aqui apreender.'~' Agamben, como vimos, encara todo o con-


"''' Id., Paralipoméncs e\ variantes des thcses sur lc concept d'hisloirc. Op. cit., temporâneo sob o ângulo de uma destruição da experiência,
i p. 350.
""CC. llllll+IUBFIUvlAN, C. J'Tmagc brúk.ln: I:I!IIMFR'.·IAN, L (dir.). f'cnscr
'' ' 1
'
pnr lcs i magcs. Autou r dt's t ravau \ de C corg~s Di di -1-lubcrmcm. Nantcs: f·: di li ons :; Lllilizo este termo, "ressource': c1pús un1a discuss<Jo reccnk com Ludgcr
Cécilc !Jdaut. 2006. p. ll.S!. Sclnvartc, que comenta, ncs~c sentido, o tcnno hcidcggcriano de tVlóglicl!J~cit
!
' ''
'• .

'
li' 118 Georges Didi-Huberman V· DESTRUIÇÕES? 119
'''

''
'
''· I'
''
I

c funda sua tese sobre uma leitura de Benjamin: "O valor diagnosticada por Benjamin em ocorrência passada, em
--
-- -- - -· ..

172
da experiência caiu de cotação [... ]:' Trata-se, certamente, "destruição" sem recurso.

para Agamben, de uma destruição efetuada, acabada: e é "A experiência caiu de cotação" (qie Erfahrung ist irn
'
'
isso que "torna hoje insuportável - mais do que ela foi no Kurse gefallen): o particípio gefallen, "caído, fracassado",
'
i ,
I
passado - a existência cotidiana", 173 mesmo nos momentos indica certamente um movimento terrível. Mas continua
I
de guerra evocados pouco antes. Da mesma forma que, aos sendo um movimento. Mais ainda, ele soa estranhamente
olhos de Pasolini, havia uma destruição efetuada no desa- a nossos ouvidos, uma vez que o verbo gefallen significa,
' ''
''
••
parecimento dos vaga-lumes, Agamben converte a "que d a)) por outro lado, o ato de amar, de agradar, de convir. E,
sobretudo, esse movimento não diz respeito à própria expe-
• I'
' .

para criticar seu uso por Agambcn no sentido- no duplo sentido.- do "11oder"
'
(potcrc). CL SCJ-IWAlU'E, L. l'hilosophie der Architclctur. J\lumch: \\!lhclm riência, mas a sua "cotação" na bolsa de valores modernos
I Fink Verlaa, 2009. p. 325-336. Sigrid Weigel, por outro lado, cntrcou longa- (o diagnóstico de Benjamin se confirma ainda se se consi-
mente a ]ei~ura feita por Agamben dos textos de Benjamin sobre a liolência, o
I

estado de exceção, a noção de secularização, a relação entre 1nártir e soberano, dera a "bolsa de valores" pós-moderna). O que Benjamin
• assin1 con1o 0 uso dos conceitos jurídicos-teológicos proYenientes da tradição descreve é, sem dúvida, uma destruição efetiva, eficaz; mas J,
' '
judaico-cristã. Cf. WEIGEL, S. Walter Benjamin: die Kreatur, das Hcilige, dic
.,"' Dilder. Francfort-sur-le-Main: Fischer Verlag, 2008. p. :o~-109. é uma destruição não efetuada, perpetuamente inacabada,/
'
Em e-mail, datado de 9 de dezembro de 2010, o autor reforça o emprego do
seu horizonte jamais fechado. O mesmo aconteceria então
termo rcssourcc como "uma maneira pessoal (em francês) de traduzir a pala\Ta • h • •

I alemã Mô~licheit, possibilidade. No interior de ressourcc há a palana sourcc, com a expenencra e com a aura, po1s o que se apresenta, em
que é, ao ;11 esmo tempo, filológica CWarburg) e dinâmica (a águ~l, a fonte):'
geral, sob o ângulo de uma destruição acabada da aura nas
'
Devido a seu caráter polissênüco, ben1 corno à obscr\'açao do propno autor,
' !' optan1 os por traduzir ressource por "recurso" ou "ressurgéncia". Eslc últi1no imagens à época de sua reprodutibilidade técnica pede para ' '
-.-·-·--- -~-------- ------ - -- ------
sentido leva em consideração a etimologia de ressource) do verbo rcsourdre que
significa rejaillir, jorrar, surgir de novo, do latim resurgere. A opçJo por uma
ser corrigida sob o ângulo do que chamei uma suposição:
"'
' '
ou outra das formas, em diferentes passagens do texto, foi feita tendo em \'ista o que "cai" não "desaparece" necessariamente, as imagens
o contexto específico da passagem. (N.T)
"' BENJAMIN, W. Le conteur: rét1cxions sm l'oeu\Te de Nicolas Leskov (1936).
estão lá, até mesmo para fazer reaparecer ou transparecer
Trad. M. de Gandillac revista por P. Rusch. In: ..-· ([uvres. p. 115. v·. III. · algum resto, vestígio ou sobrevivência. 171
cf. Supra, p. 47-52.
173 AGA!'v!BEN,G. Enjclllce cl llisloirc. Op. cit., p. 19-20. Tradução de I lcnriquc
Burigo: "n
csla incapacidade de tradu'fir- se cJn C.\pcril~n~ia, <-pl.c lon_1a. lHlJ~ ~~~ rlJD r-HlJDL'RJ\TAJ\, G. J.image-aura.
, Du maintenant, de l'autrei()is e\ de ma
insltportóvcl- como em m01ncnlo algUJn no JJassado- a cxJstcnc1a cottd1ana. modcrnitc' (19%). In:... . .. · Devcmt !c tcrnps: hisLoire de l'arl ct anachronis-
Tnfanciu c liistóriu, p. 22. me dc's imagcs. Paris: :vfinuit, 2000. p. 233-260.

I '
i I,I
120 Georges Didi-Huberman V- DESTRUIÇÕES? 121
'
'
' ''

i
i
I
''

:
I; \

11
Todo o vocabulário utilizado por \Valter
··-
Benjamin em
-··-··-· ··•
desaparição.' Trata-se, portanto, da questão do "declínio" ' '
I
------·----- .... --·- ·-- ' ~---·· -·-- --- --------·. - ·- . ,,.-
----- -- "-.
'i /'

'' ' seu artigo sobre "Le conteur" [O narrador] é, sem dúvida, e não de desaparição efetuada: a palavra(Niedergans~,'>em-
------ - ----,
'
I //
t- . /

o do decÚnio.)Mas declínio entendido em todas as suas pregada - aqui como, frequentemente, em outros lugares
''
' ' ·- - A • -
:' :
harmonias, em todas as suas ressurgenCJas, que supoem a - por Benjamin, significa a descida progressiva, o pôr do
declinação, a inflexão, a persistência das coisas decaídas. sol, o ocidente (isto é, um estado do sol que desaparece de
Desde o início, Benjamin fala do "declínio da experiêncià' nossas vistas, mas nem por isso deixa de existir em outro
I
'' em termos de "fenômeno": m Erschein ung, ou seja, uma apa- lugar, sob nossos passos, nos antípodas, com a possibilidade,
!
'
' rição, justamente, uma "aparição apesar de tudo", se assim . o "recurso" de que ele reapareça do outro lado, no oriente).
posso dizer. Em seguida, ele evoca uma "evolução que [... ] Um pouco mais adiante ainda - tento nada deixar na
iI
nunca parou": 176 "um Vorgang, ou seja, um processo, um sombra-,
. .
Benjamin escreverá que "a arte de contar tornou-
118
I '
I
acontecimento, uma reação (como se diz em química) ou -se coisa rara", o que supõe de fato o vir-a-ser (Werden)
' '

'
',
'
' '
'
'' um incidente, palavra que descreve exatamente o que Ben- e não a estase mortal, assim como a subsistência, fosse ela
jamin quer significar, por sua referência ao movimento de minoritária, "rarà' ou "extraordinárià' (selten), daquilo que
queda e ao fato de que ele não está isento de consequências, não terá sido destruído. A experiência transmitida pelo
sem incidência. narrador, sem dúvida, "caminha em direção a seu fim'', mas

I
'
Vocabulário de processo, portanto. Quando Benjamin o verbo aqui empregado, geben, supõe de fato que o fim do

'
nos diz que "a arte da narrativa tende a se perder", ele ex- caminho- o horizonte- não está ainda na ordem do dia. 179 É
' '
i pressa ao mesmo tempo um horizonte de "fim" (Ende) e um a própria "caminhada" que deve nos ocupar inteiramente. A
' ''
movimento sem fim {neigen;pender/ debruçar-se, inclinar, última frase do texto- "o narrador é (ist) a figura sob a qual
abaixar) que evoca não a própria coisa como desaparecida, o justo se encontra consigo mesmo" - 1' 0 emprega o tempo do
mas "em vias de desaparecer", o que o verbo aussterben, aqui, presente: não a intemporalidade de uma definição regulada
traduz como despovoar-se, apagar-se, ir em direção a sua
' I' I'' Ibid., p. 120.
" ' Ibid., p. 123.
••c BFNJAMlN, W. Lc conlcur: réflexions sur 1\ruvre de Nicolas Lcskov (1936). I'' J/Jid., p. 129.
'
I 'J'rad. M. de Gandillac revista por P. Rusch. ln: _ _ . CFuvrcs. p. 1 15. v. 111. :~" lhid., p. 1:ll. ~<a traduçJo de Sérgio Paulo Rouanet: "()narrador é a figura na
I
171
' Thid., p. 115. qual o justo se encontra consigo n1csmo." p. 221.

i.' I'
' '

122 Georges Didi-Huberman V- DESTRUIÇÕES? 123


sobre o eterno ou o absoluto, mas a própria temporal idade tardia ou -no que diz respeito a Benjamin em seu trabalho
daquilo que, hoje, entre nós, na extrema precariedade, sobre- sobre o Trauerspiel- o maneirismo c a arte barroca. 1g 2
vive e se declina sob novas formas em seu próprio declínio. Se voltarmos, nessa óptica, ao texto sobre "Le conleur",
A urgência política e estética, em período de "catástrofe" não tardaremos a encontrar nele todos os elementos dessa
- esse leitmotiv corrente em toda obra de Benjamin -, não mesma vitalidade: é a impressão (empreinte) indestrutível
consistiria, portanto, em tirar conclusões lógicas do declínio pela qual o narrador "imprime sua marca na narrativa,
'
'
até seu horizonte de morte, mas em encontrar as ressur- como o oleiro deixa sobre o vaso de argila a impressão de
1 3

'• gências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens suas mãos" s (die Spur der Topferhand an der Tonschale). É
I !

que aí se movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados. a memória épica cuja transformação revela, nos romances
Lembremos o maravilhoso modelo cosmológico proposto modernos - de Proust ao surrealismo - tantos processos
I

de rememoração"" (Eingedenken). É a intermitência dessa
, I

memória que atinge o leitor de hoje, como tantos "instantes


' .'' ' ' '
'

de felicidade", a despeito de sua pobreza em experiência. 185


Ao utilizar aqui as palavras nur bisweilen,í"somente às vezes'; ,
I , Benjamin nos dá uma indicação preciosa sobre o estatuto 1
I
' 1

;', temporal das sobrevivências. "É por isso", diz ele a respeito
· de uma história contada por Heródoto na Antiguidade e lida
. "
em nossa epoca, que essa narrativa vinda do antigo Egito
' ,,' I

é ainda capaz, após milhares de anos, de nos surpreender


'
'

" BENJAMIN, \V. Origine du drame boroque allenwnd ( 1928). Tracl. S. Mullcr e
A. Hirt. Paris: Flammarion, 1985. p. 54.
'' Id., l.e conteur: réflexions sur l'ceuvrc ele Nicolas Lcskov (1936). Trad. M. de
Gandillac revista por P. Rusch. In: . CEuvres. p. 127. v. 1!1. Na tradução
de Sérgio Paulo Rouanet: '~.:\ssin1 se in1prirne na narrativa a nu1rca do narrador,
corno a n1ão do oleiro na argila do vaso." p. 205.
'' '! !/!I 1o c··
'' l.'l u.,p.,)).
" 1 LLICRLCE. /)c la noturc, 11, 216-250. Tracl. A. Frnoul. Paris: Lcs Bcllcs
Lettrcs, I %6. 1, p. 50-51. IHC J!Jid., p.Jc\1-J-±2.

I' ' 124 Georges Didi-Huberman V- DESTRUIÇÕES? 125

'
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I
e nos Ü1zer refletir. Ela parece esses grãos fechados her- comprados e vendidos a nossa volta, além do exercício dos
meticamente durante milênios nas câmaras das pirâmides reinos e da luz das glórias. Somos "pobres em experiência"?
' e que conservaram até hoje seu poder germinativo (ihre Façamos dessa mesma pobreza- dessa semi escuridão- uma
''

Keimkrajt):' 1 6
x experiência. A paixão de Adorno pelo trabalho de Samuel
188
Beckett não terá sido, sem dúvida, isenta de um recurso
implícito aos preceitos já enunciados por Benjamin em seu
O valor da experiência caiu de cotação, é verdade. Mas . ensaio de 1936: "Le conteur".
"'
cabe s~mentea nós não apostarmos nesse mercado. Cabe O valor da experiência caiu de cotação, mas cabe so-
' '
. I' i' somente a' nós compreendermos onde e como "esse mo- mente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda
''
'
' ii
vimento [... ] ao mesmo tempo, tornou sensível uma nova à dignidade, à "nova beleza" de uma coreografia, de uma
187
beleza naquilo que desaparecia (eine neue Schónheit)". invenção de formas. Não assume a imagem, em sua própria
'
Agamben nos mostra com gravidade, com acuidade, um fragilidade, em sua intermitência de vaga-lume, a mesma
'
'
horizonte derradeiro para essa desvalorização. Mas ir muito potência, cada vez que ela nos mostra sua capacidade de,
:I
I
longe nesse sentido é, paradoxalmente, condenar-se a só j
I reaparecer, de sobreviver? Em um artigo intitulado 'Timage
j

fazer a metade do caminho necessário. A "imagem dialéti- . '


' '
immémoriale" [A imagem imemorial], Giorgio Agamben
I .
I
'
' '
' cà' à qual nos convida Benjamin consiste, antes, em fazer radicalizava a noção de imagem atribuindo-lhe dois desti-
' ''
surgirem os momentos inestimáveis que sobrevivem, que nos, dois horizontes: o primeiro é o de destruição pura ("a
ji resistem a tal organização de valores, fazendo-a explodir em imagem morre"): o outro é de sobrevida no Hades (versão
• A •

momentos de surpresa. Busquemos, então, as expenenoas pagã) ou no apocatástase, a "restauração final" segundo
que se transmitem ainda para além de todos os "espetáculos"
Orígenes (versão cristã). Em resumo, a sobrevivência era
aqui compreendida como sobrevivência após a morte,
1.% Jbid., p. 125. Na tradução de Sérgio Paulo Rouanet: "Por isso, essa história do
;i :
"'
anlioo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reOexao. sobrevivência do apocalipse, do fim dos tempos, de pura
b L -,

Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos llca-
ranl fechadas hcrn1etic;:unentc nas cân1aras das piràmides e que conscrvan11n
i ' I'
'
até hoje suas í(Jrças gcnninalivas~' p. 204. ··'·' ADOF'-10, T. W Notes sur llcckett (1960-1968). Trad. C. David. Cacn: Nous,
IKl fbid., p. 120. 201lS.
..: i
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I
'

126 Georges Didi-Huberman V- DESTRUIÇOESl 127

'
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'

redenção. 's" Agamben acrescentava que esse mesmo parado- pessimismo" pela ressurgência de certas imagens ou con-
xo- paixão radical e potência radical- encontra-se "inscrito figurações alternativas de pensamento, a vida cotidiana
190
na própria origem da metafísica ocidental". Uma maneira certamente não lhe dava descanso. Pode-se imaginar o que
de assumir a imagem no plano da própria metafísica, tendo era a vida de um judeu alemão "sem recursos", em fuga
Nietsche e Heidegger como artesãos de sua vertigem. perpétua diante do cerco que se fechava em torno dele? A
Bem outra era a proposta de Walter Benjamin, que reto- impressão de Agamben sobre a destruição da experiência
'' . .· . ))
mamos aqui por nossa conta: orgamzar o pess1m1smo no em "nossa existência cotidiana hoje insuportável - como
mundo histórico, descobrindo um "espaço de imagens" em momento algum no passado -" 191
deve ser orientada
no próprio vazio de nossa "conduta política", como ele na medida desse contraste. Contraste ainda mais forte, na
. ' diz. Essa proposta se refere à temporalidade impura de : medida em que Benjamin soube "organizar seu pessimis-
"'' • • ,.,. '

nossa vida histórica, que não se compromete nem com ' . mo" com a graça dos vaga-lumes, buscando, por exemplo,
a destruição acabada, nem com o início de redenção. E é entre o teatro épico de Bertold Brecht e a deriva urbana
nesse sentido que é preciso compreender a sobrevivência dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca N aciona] e a
das imagens, sua imanência fundamental: nem seu nada, Passage des panoramas, esse "espaço de imagens" capaz
nem sua plenitude, nem sua origem antes de toda memória, ·. de contradizer a polícia - as terríveis restrições - de sua
nem seu horizonte após toda catástrofe. Mas sua própria vida. O valor da experiência havia caído, mas Benjaminr
..

ressurgência, seutecurso__ E!)J:H~io e de experiência no 1 respondeu a isso com imagens de pensamento e com expe- .·
1

' .
I
próprio vazio de nossas decisões mais imediatas, de nossa •
riências de imagem cujos textos sobre o haxixe oferecem.
vida mais cotidiana. ainda, entre outros, alguns exemplos surpreendentes por
'
Na mesma época - de 1933 a 1940 - em que Walter suas ressurgências de "aura autêntica" ou de infância doi
'

Benjamin evocava essa possibilidade de "organizar o •


olhar sobre todas as coisas. 192
' '

,,,, AGAMBEN, C. Enjizncc ct histoire. Op. cit., p. 20; ACAMBEN, G. lnjáncia e


twt AGAMllEN, G. Limage immémoriale (1986). Trad. ). Cayraud c M. Rueff. história. Trad. Henrique llurigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 22.
In: . La pui.'>snncc de ln pcnséc. Essais ct confércnces. Paris: Payot & ,.,, BEN]A?Vlll\', \V.lmagcs de pcnsée. Op. cit. E também, Jd., Sur !c haschich ct autres
'' Rivages, 200ó. p. 283-292. à:rits sur la droguc (1927-1934). Trad. ).·F. Poiricr. Paris: C:hristian llourgois,
eogo
190
1/Jid., p. 290. l9 l)'
_-'· p. C'(()
_)~- J _ 00
o-::;o.

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''
128 Georges Didi-Huberman -
V· DESTRUIÇOES? 129

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Agambep se:r1tenciou a destruição_da exp_~riê~cia _!_o


'
195
pensamento. Pensemos em LTI: la Zangue du IIIe Reich,
luto de toda infância, como Pasolini
--------------
.----- ------------
o desaparecimento
--
----
dos
---- --· ----------- -- __ _,- - --·-~-----~--
de Victor Klemperer, esse "meio de legítima defesa, [este]
~~ga-lumes, projetando
-- --
sobre
---------- ----
o presente
--------··---·-·---
o que ele_c~~~e~i~-
-----·-- --·--·- ----- ---
SOS enviado a mim mesmo'; como ele escreve de imediato,
d~ diferentes situações de guerra mundial, notadamente as ). a partir do espaço de opressão cotidiana: trabalho em que a
d~scritas po~ W~Ite~B~~jamin. Ora, a própria experiên- (~/ l elucidação da linguagem tornava-se, nas trevas necessárias
. 1! ~ia da guerra nos ensina - no que ela terá encontrado as ·· da clandestinidade, uma réplica das "palavras-vaga-lumes"
I i I I !

,~ condições, por mais frágeis que sejam, de sua narração e '·' às ferozes "palavras-projetores" impostas pela propaganda
.,
· de sua transmissão- que o pessimismo foi, às vezes, "orga- nazista. 196
\ ;

',· nizado" até produzir, em seu próprio exercício, o lampejo ,_·


I
\
Aconteceu até mesmo de as palavras mais sombrias não
j \
,· e a esperança intermitentes dos vaga-lumes. Lampejo para . ., serem as palavras do desaparecimento absoluto, mas as de
1 fazer livremente aparecerem palavras quando as palavras
uma sobrevivência apesar de tudo, quando escritas do fun-
, parecem prisioneira~de {un~-sit~wçio sem saída. Pensemos do do inferno. "Palavras-vaga-lumes'; àinda, as dos jornais
'
\ na coletânea de textos composta por Henri Michaux'entre do gueto de Varsóvia e das crônicas de sua insurreição;
,·. 1940 e 1944 com o título de Épreuves, exorcismes [Provas, "palavras-vaga-lumes" as dos manuscritos dos membros do
\ exorcismos]: "sua razão de ser", escrevia ele na abertura, Sonderkommando ocultos sob as cinzas de Auschwitz e cujo
"manter em fracasso as potências que circundam o mun- "lampejo" dependia do soberano desejo do narrador, daque-
do hostil:' 193 Pensemos nas admiráveis Feuillets d'Hypnos le que quer contar, testemunhar para além de sua própria
'
'
'
[Páginas de Hypnos], escritas por René Char durante suas 197
morte. Entre as trevas sem recurso das câmaras de gás e
:·'
lutas cotidianas no maquis, e onde a Resistência política-
194

'
'i
ativa, militar, a cada instante perigosa para sua vida - fazia '" CHAR, R. Feuillets d'Hypnos (1943-1944). In: _ _ . Cl'uvres completes.
Paris: Gallimard, 1995. p. 171-233.
corpo com o que abordamos aqui como "resistência'' do
'"" KLEMPERER, V. LTJ: la languc du lll' Reich. Carnels d'un philologue (1947).
Trad. É. Guillot. Paris: Albin Michel, 1996. p. 31 cl passim.
IYJ MICHAUX, H. Épreuvcs, exorcismes: 1940-1944 (1945). In: BELLOUR, R.; 197
Cf. RINGELBLUM, E. Chroniqac du ghctto de Varsovie (1912-1944). Trad. L.
TRAN, Y. (éd). CEuvres completes. Paris: Gallimard, 1998. p. 774. v. I. Poliakov. Paris: Robert Laffont, 1978. SEIDMAN, H. Du fond de l'abíme. jour-
1Y 1 O rnaquis é uma vegetação proveniente de uma degradação da floresta mediter- nal du Ghetto de Varsovie (1942-1943). Trad. N. Weinstock. Paris: Piem, 1998.
' ' '' rânea em solo silicioso. Sob a ocupação alemà, o termo se referia ao local pouco Id., Des voix sous la cendre. Manuscrils des Sondcrkommandos d'Auschwitz-
'
acessível onde se reunian1 os resistentes. Por extensão, trata-se de organização -Birkenau (1944). Trad. M. Neffer e B. Baum. Paris: Calmann-l.évy-Centre de
de resistência armada (de acordo com o Dictionaire le pctit kobert). (N.T.) Documentation juive contemporaine, 2005.

130 Georges Didi-Huberman V- DESTRUIÇÕES? 131


''
'
o dia ofuscante do verão de 1944, esses mesmos resistentes VI
. ' do Sonderkommando conseguiram até mesmo fazer aparecer
I
! imagens quando a imaginação parecia ofuscada por uma
IMAGENS
i
I' realidade imensa o suficiente para ser pensada. r~s Imagens
' clandestinas, certamente, imagens por muito tempo ocultas,
por muito tempo inúteis. Mas imagens transmitidas a nós,
anonimamente, naquilo que Benjamin reconheceu como a
derradeira sanção de toda narrativa, de todo testemunho de
"Ninguém morre tão pobre a ponto de não deixar alguma
·d d d "bu do
experiência, a sab er, a au ton a e o mon n . ~ 19

coisa." Neste dictum de Pascal, citado por Benjamin, 200


deveríamos encontrar a energia para ver como um legado
precioso - sobrevivente -, a menor borboleta esboçada
sobre um papel amarelado, no campo de Theresienstadt, por
Marika Friedmanova, pouco antes de ser deportada e morta
pelo gás em Auschwitz, aos onze anos de idade. 201 Até mesmo
os sonhos, esses enigmas ocultos no mais profundo, podem
chegar até nós - em pedaços, evidentemente,
, por lampejos
intermitentes - como tantas "imagens-vaga-lumes". Essa
foi a tarefa irracional empreendida por Charlotte Beradt,
tarefa de narradora benjaminiana: ela conta que, em 1933,
''" DJDI-HUBERMAN, G. Irnages rnalgré tout. Paris: Minuit, 2003. assustada com o rumo dos acontecimentos na Alemanha,
'" BENJAMIN, W. Le conteur: réflexions sur l'ceuvre de ;\Jicolas Leskov (1936). começou a ter sonhos angustiantes recorrentes:
Trad. M. de Gandillac revista por P. Rusch. In: . CEuvres. p. 129-132.
v. 111. Seria, sem dúvida, necessário relacionar essa "autoridade do moribundo"
ao lema da "força fraca messiânica" em Benjamin, cujos ecos se encontram em '"" Tbid., p. 138.
Jacques Dcrrida. Sobre este último, cf. o trabalho, ainda inédito, de L. Odello, 2
m VOLAVKOVf\, H. (dir.l.l never saw rmother butterfly: childrcn's drawings and
Jlcriturcs du politique. À partir de jacques Derrida, capítulo intitulado:. 'Tim-
pocms Crom Tcrezin Concentration Camp, 1942-1944 ( 1959). Trad. Ncmcová.
-pouvoir de la souveraineté (ou force f'lible)". Trata-se de uma tese dcfenchda
Ed. ampliada pelo Unitccl Statcs H.olocaust Memorial Muscum. New York:
na Universidade de Trieste, em 2007.
Schocken Books, 199J. p. VI e 185.

132 Georges Didi-Huberman


133
II '' !''

'

I'
I' Eu acordava [uma manhã j, molhada de suor, batendo os den- tendo em vista oferecer alguma coisa como um documento
' ~------------· ·------ -

tes. Uma vez mais, como tantas outras inúmeras noites, haviam ps~quico do totalitarismo, do terror político enquanto pro-
me perseguido, no sonho, de um lugar para outro - atiraram 114
C(CSSo ante- persecutório -' até o mais profundo das almas.
em mim, torturaram-me, escalpelaram-me. Ivlas naquela noite, Coletânea extraordinária, constitui essa "investigação oníri-
diferentemente de todas as outras, me veio a ideia de que entre ca" conduzida junto a trezentas pessoas aproximadamente.
milhares de pessoas eu não devia ser a única - condenada pela O conjunto dos textos não explica nada, nem a natureza do
.
211
ditadura- a sonhar daquela maneira ê nazismo, nem a psicologia dos sonhadores, mas fornece,
assim como a própria Charlotte Beradt o dizia a esse respeito,
Charlotte Beradt, nesse momento, que marcou sua uma "sismografia" íntima da história política do III Reich.
deci~ã~) de consignar os sonhos das pessoas que lhe eram
próximas, ascendia ao estatuto de "narrador" no sentido de Tais sonhos não deveriam ser perdidos. Eles poderiam ser
que, conforme Benjamin, levados em consideração no dia em que se faria o processo desse
regime enquanto fenômeno histórico, pois pareciam cheios de
[... ] o grande narrador está sempre enraizado no povo [... ] ensinamentos sobre os afetos e os motivos dos seres que eram
todos os grandes narradores têm em comum a facilidade com inseridos como pequenas rodas no mecanismo totalitário. 205
a qual sobem e descem os escalões de sua experiência, como os
degraus de uma escada. Uma escada que se afunda nas entranhas • Compreende-se, então, que uma experiência interior)por
i da terra e se perde nas nuvens: esta é a imagem de uma experiência mais "subjetiva", por mais "obscura" que seja, pode apare-
' '
'

coletiva (KollektiveJfarhnmg) [que] reconforta [mesmo] quando cer como um lampejo para o outro, a partir do momento
203
a aflição atinge seu auge. i em que encontra a forma justa de sua construção, de sua
'
' narração, de sua transmissão. Os sonhos recolhidos por
Assim,
----
Charlotte
-------- -
Beradt, entre_l93l_e_l939-
··-------
"----·-~--
data cie_ Sl!a.
~,-, 1\'o original ern francês:"[ ... ] de la tcrreur polilique en twzt que processus
1
fuga ela Alemanha- recolheu todou111.corpus desonhos,
<llltc'- lumtont· jusqu'an plus profond des iunes" (grifo nosso). ()autor tira
partido, aqui, das assonáncias em ant, acentuando a noção de duração do pro-
""' BEIZi\IJ'J", C. llrcams undcr diclalorship. Frcc 1Vorld, v. VI, n. 4, p. 333, 1943. cesso. (I\ .T.)
:•.ru BFN]AMIN, \V. Lc contl'ur: rl-Clesions "'r l'ccuvrc ele 1'\icolas Lcskov (1936). ·'"' BEIZADT, C. li<'l'crsolls !c 111' licich (I W1Cl). Trad. P. Saint c;crmain. Paris: Payot
Tracl. ,\~.de ( ;andillac revista por 1'. Rusch. In:... . Ocuvrcs. p. l •10·141. v. 111. & Ri\'agcs, J()()2 (écl. 211lll). p. 50.

134 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 135


de lixo. Eu me sento na lixeira e dependuro em torno do pescoço
Charlotte
_____ _______ ...
Beradt
-- --- ..
transformam
-- -
a realidade,
.
certamente;
. .
mas
·-··
" ,-~ -' ,.,._ "" -·'""''"' "----- "- - ' - - "-·------
um letreiro, como aqueles que, às vezes, os mendigos cegos carre-
essa transformação reveste-se de um valor de conhecimento - -- ... - - - - -
gam, mas também como aqueles que as autoridades dependuram
clandestino, precisamente no ponto em que uma ameaça, ..a
nos "impuros de raçà': se necessário, eu cedo o lugar aos papéis. 208
de ser representada, terá valor de diagnóstico antropológico,.
de profecia política, como um saber heterotópico - mas
também "hiperestésico"- do tempo vivido durante o dia E, mesmo, saber das atrocidades cometidas, em um
'
I pelas imagens sonhadas à noite. Saber dos tempos de chum- sonhador que ainda ignorava a realidade nos campos: "Eu
bo (chapas muito pesadas, matéria dos projéteis mortais, sonho que me obrigam a enumerar todas as punições bes-
' cor da melancolia): "Vou me esconder no chumbo. Minha tiais que existem. Eu as inventei no sonho. Depois me vingo,
'
209
'
I
língua já foi chumbada (jestgeschlossen). Meu medo passará gritando: 'Todos os oponentes devem morrer:"
I'
'
quando for toda de chumbo. Eu jazerei imóvel, chumbada, No posfácio da edição alemã do livro de Charlotte

fuzilada (bleierschossen). Quando eles vierem, eu lhes direi: Beradt, o historiador Reinhart Koselleck comentou com
I
' .
i ·I
I
as pessoas de chumbo não podem se levantar:' 206 pertinência o paradoxo de uma coletânea de ficções psíqui-
· ,,~aber-vaga-lurne, Saber clandestino, hieroglífico, das \ cas que, evidentemente, "não propõem uma representação
realidades constantemente submetidas à censura: "Eu sonho \ realista da realidade, mas que não deixam de lançar uma
que sonho apenas com quadrados, triângulos, octógonos luz particularmente viva sobre a realidade de onde elas são
que se parecem todos com doces de natal, porque é proibido 1 provenientes':zw Seria talvez mais justo dizer que a luz em
sonhar". Saber de uma humanidade descartável, como
207 questão não é "vivà: mas estranha- zebrada de obscuridade,
I papéis que vão para o lixo, ou ainda pior (o sonhador era muito perto ou muito longe para tornar seu objeto clara-
'
mente visível - e, sobretudo, intermitente. Nesse ponto, o
judeu):
importante é que o historiador reconheça à narrativa onírica
uma autoridade no conhecimento histórico como tal. Não
Há dois bancos em Tiergarten, um que é normalmente verde,
' o outro amarelo [na época, os judeus só tinham direito de se sen- "'" BERADT, C. Rêver sous /e IJ[" Reich (1966). Trad. P. Sainl-Germain. Paris:
.I
'
''
tarem nos bancos pintados de amarelo J, e entre os dois uma cesta Payot & Rivages, 2002 (éd. 2004). p. 160-161.
200
Ibid., p. 129.
2111
21
° KOSELLECK, R. Postface (1981) à edição alemã do livro de Charlotte Beradt.
' Ibid., p. 69.
p. 182.
207
Ibid., p. 87.

VI-IMAGENS 137
136 Georges Didi-Huberman
'
I ' ,,'

' ' f
..'
I
. por acaso, Koselleck evoca Kleist, Hebbel e Katlza, a saber, ••

\

Se é verdade, como dizia, Pierre Fédida, que "o sonho '
J /
/
;J
' • ' •/
'I ~-----··---- - - ' " --

"'
I três "narradores" paradigmáticos dessa noção formulada • .
,I
tocou o morto" em sua constituição metapsicológica fun-
'' ''
por Walter Benjamin. ' É então, diz ele, que "a f~lcticidade
21
damental, se é verdade que "o tocar o morto é que torna o
ganha em espessura, uma multiplicidade de camadas que 15
• sonho vidente",' então podemos compreender essa vidên-

contém os conhecimentos trazidos pelos sonhos". As 212


cia, recontlgurada por pedaços nas narrativas oníricas, sob
imagens sonhadas sob o terror tornam-se então imagens
a autoridade do moribundo, de cuja experiência transmitida
produzidas sobre o terror. "Um traço comum aos sonhos
I , . /Benjamin fazia o paradigma derradeiro. Mas o moribun-
·i aqui apresentados é que eles revelam uma verdade oculta
'
'
.I' .,' - - do não está inteiramente no agonizante, no sem-voz, no
•' cuja evidência ainda não foi demonstrada empiricarrlente:'m ,·. . /

I ' "mulçumano", segundo Agamben. Moribundos, todos nós·


..
Conclui-se que as "imagens-vaga-lumes" podem ser\~''

~-·-

0 somos, a cada instante, somente por afrontar a condição


' ''
'
vistas não somente como testemunhos, mas também como,/,
l ·, ' ! temporal, a extrema fragilidade de nossos "lampejos" de
profecias, previsões quanto à história política em devir: ."
1
vida. "Nós todos morremos incessantemente",.
escrevia ·, .
I
'
'
Georges Bataille na época da Segunda Guerra Mundial. E '1
Para o historiador especialista do Terceiro Reich, a docu-
: acrescentava: "O pouco tempo que nos separa do vazio tem r'
mentação onírica aqui apresentada constitui uma fonte capital. ' '
·' a consistência de um sonho:' 216
••

Ela permite o acesso a camadas que até mesmo os diários não '

atingem. Os sonhos que nos são contados[ ... ] nos fazem entrar de
'
modo exemplar nos nichos da vida aparentemente privada onde
'
.
'

penetram as ondas da propaganda e do terror. Eles testemunham Seria necessária uma obra inteira para compreender
i
I
• i que o terror, no início, foi às claras, depois insidioso, e preveem exatamente o que determinou, em Georges Bataille, no mo-
sua vio lenta esca lad a. 214 mento da guerra, essa mistura de recuo para a obscuridade
I
'
I
' e essa "vontade de acaso'; como ele dizia, a saber, a vontade
I

"I fbid., p. J 83. 1


' ' FÉDIDA, F. Crise ct contre-tmnsfert. Paris: PUF, 1992. p. 37 e 4•1.
212
lbid., p. 184.
.;u. BATAll.LE, G. Sur l\ietzschc: volonté de chance ( !944-1945). In: -··· __
"' KOSF1.J.FCI<, 1(. l'osiLKe (!Y8l) à edição alemã do livro de Charlottc Bcracll.
(FurTes COIII['I<'tes. Paris: Gallimard, !973. p. 155. v. VI. No original "volonté
p. !87.
de chance", que t r<1tiutin1os por "vontade de acaso" no sentido mallarmaico no
·'·'' Tbid., p. !75. qual Batailk St' baseia.
1:

138 Georges Didi-Huberman


VI- IMAGENS 139
I
I
'

soberana, ansiosa, frenética, que o fez lançar tantos sinais \ cujo resultado, sabemos, se chamará r expérience intérieure 219
'

na noite, tal como um vaga-lume querendo escapar do fogo [A experiência interior].


'
!' :'
I
dos projetores para melhor emitir seus lampejos de pensa- Enquanto isso, Bataille ·publicou sob pseudônimo, na
mentos, de poesias, de desejos, de narrativas a transmitir, editora de nome significativo - Éditions du Solitaire -, sua
a qualquer preço. narrativa escandalosa, Madame Edwarda, na qual compre-
O texto que ele decidiu empreender, desde o início da endemos que a experiência erótica poderia oferecer uma
' - ' --

guerra, in titulava -se Le coupable [O culpado]. O primeiro primeira resposta do"culpado" aos acontecimentos de morte
capítulo desse livro, "La nuit" [A noite], começa assim: "A que reinam em toda a Europa. É uma dança do desejo na
;,I
data em que começo a escrever (5 de setembro de 1939) não noite parisiense, um contratema aos movimentos dos aviões
~I é uma coincidência. Começo em razão dos acontecimentos,
" '
e aos ferozes projetores da guerra em curso. Assim como, no
mas não é para falar disso:' 217 Paradoxo, fissura do não saber, 'II .
.
/' mesmo momento, o jovem Pasolini <) fazia em uma clareira
I ----·- ' ---
iI
I

I
soberania longe de todo reino: não falar dos acontecimen- perto de Bolonha, o narrador de Madame Edwarda se des-
- -- -

tos para melhor lhes responder, para melhor lhes opor seu nuda "nas ruas propícias que vão do cruzamento Poissoniêre
' '
'' desejo (seu lampejo na noite), sabendo que esse desejo não com a rua Saint-Denis". A prostituta que ele t:_~~ontra então
- - ---~,r--e-;-·< <C: - __ ~ --.-- · -- -- ----,-·--::,- ·--~- -- --- -~ ·---- -

passa de brechas, fragilidades, intermitências do moribun- - uma lucciola, portanto, não no sentido próprio, mas, se
do, entre a "degradação" e aquilo que ele quer loucamente, 220
posso dizer, no "sentido sujo" - aparecerá e desaparecerá
ainda, nomear uma "glória'': "Não existe ser sem fissura, \ nas intermitências de sua luz ("rosa e velosa, cheia de vida''),
'

i
mas nós passaremos da fissura sofrida, da decadência, à ''
'
'', e de sua obscuridade ("ela era negra, inteiramente, simples,
'' !

'
glória''... com a condição de acrescentar, para se diferençar I
i
'
angustiante como um buraco"). Ela se retorcerá "como um
de qualquer prestígio e de qualquer via religiosa: "O cris- pedaço de minhoca'' (ver de terre) no espasmo e na branca
tianismo atinge a glória fugindo do que é (humanamente) nudez, tal qual um pirilampo (ver luisant). Para adormecer
:1'
I ''
'
' li'.
' ! glorioso:' 218 Longe do reino e da luz, portanto, Bataille
',

1
tentava emitir seus sinais na noite como tantos paradoxos
i I
'
'
' m BATAILLE, G. I:Expérience intérieure (1943). In: _ _ . CEuvres completes.
'
1\tris: Gallimard, 1973. p. 7-189. v. V.
'" UATAILLE, G. Le coupable (1939-1944). In: _ _ . CEuvres completes. Paris: 020
No original em francês: "une lucciola, donc, non pas au sens propre mais, si je
Gallimard, 1973. p. 245. v. V. puis dire, au 'sens sale':' O autor joga com o duplo sentido da palavra "propre",
''" Ibid., p. 259. ou seja, "próprio" e "limpo". (N.T.)
' 'I
''
I

'
140 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 141
I
'
ii
'

à noite, bruscamente, e se evaporar da narrativa como os A escrita deLe coupable, durante todo esse período, pro- 1
' ----- ---· . - ·-·------------·····---·-··-- ····--··-·- .. ···- • . . . .-...............,1,
' '
vaga-lumes sabem tão bem desaparecer de nossas vistas." 1 '

curava criar algo como uma colisão entre o espaço imenso 1



'' :,

~~JQ~L~lt1!~~?~~pat<till~}~ncontrará J\!Ialtri~e BláiJf}!.SJ_~,que


:•
'

-. . ------~--- -
''
'' das ''desgraças do tempo presente" e o lugar infinitamente /
'' ----·--- -······-- • - - , " ,, I

acabara de publicar Thornas l'obscur [Thomas, o obscuro]. '

fechado do "acaso", do riso luminoso, da "negatividade sem !


' '
No outono de 1941, na casa de Denise Rollin, ele tentou re- I 1.ltilidade". 225
Em seguidabl' expéríence zntf'rieure terá tentado .•
'' .
constituir alguma coisa parecida com uma_comu11id_ag~~~- apreender a "viagem ao fim do possível do homem'', esse
I,
' --- - ··- -- - --
I
·-----

' vaga-lumes-
- ........ - ·-
reuniões
- -
de um "colégio
-
socrático"
----
onde ele lia homem abandonado ao reino da guerra e da destruição.22ó
I'
fragmenteis de L expérience intérieur cuja escrita estava em ,.J' .·· NexperiêncTa-rt, nesse sentido, fissura, não saber, prova do
!
. ">. \ ---- ·---· -- - - -
andamento -, mas na "ausência de salvação [e] na renúncia
I
)) •A '
! desconhecido, ausência de projeto, errância nas trevas. 227 Ela
---- - -

",,'I a qualquer esperança, uma vez que es?~ ~~E~X}er1EHk\P~~a ..·.. . é não poder (írnpouvoir) por excelência, notadamente com
'
ele, se iniciava apenas na medida em que fosse "contestação •

----- .. . --_~·--·.. . - -
' relação ao reino e à sua glória. Mas ela é potência -!Nietzsche
222
"•' dela -·mesl11a e não... saber". Em 1942, ele contraiu uma tu-
I '
·----
-·- - - - "_- '"· ' :·:·---
assombra todo esse vocabulário - de outra ordem: potência
berculose pulmonar, que durou um tempo de sofrimento que
de contestação, diz Bataille. "Eu contesto em nome da con-
I
i: devia, como diz Michel Surya, "adensar um pouco mais [sua]
' !
223
testação que é a própria experiência (a vontade de chegar ao
solidão". Em uma pequena cidade da Normandia, Bataille
fim do possível). A experiência, sua autoridade, seu método . ,
,.. : se retirou e escreveu salvas de poemas assim como Le rnort, I

I. Ii ;,: não se distinguem da contestação:' 228


breve narrativa de uma experiência erótica lúgubre para a '' ''
O valor da experiência caiu de cotação, sem dúvida. Mas a
..i I ''
qual um projeto de prefácio incluía terríveis visões- viven- - - -- •

·. queda ainda é experiência, ou seja, contestação, em seu próprio


'• ' '
ciadas - da guerra em curso: avião alemão abatido, chamas,
rostos calcinados, informes, e esse pé, "única coisa humana movimento, da queda sofrida. A queda, o não saber se tornam
'

; I
i'
de um corpo", que jazia intacto no meio dos escombros. 224 potências na escrita que os transmite. "A impotência grita em
' .
'

221
Id., Madame Edwarda (1941). Jn: ... _. CEuvres complétes. Paris: Gallimarcl,
I'
' 1971. p. 9-31. v.lll. 2
'
' '·' ld., Lc coupable (1939-1944). ln: --·--· CEuvrcs completes. Paris: Gallimard,
.! I''
'
222
BATA li.IF, C. Colil'gc socratique (1941 ): ln: . CJ:uvres completes. Op.
)073.p. 287-369.v\'
'I
.' I' cit., p. 2Hó. v. V I.
22
' Id., fexpéricnce inlérieurc. Ibid., p. 19.
'
I' t
22 ·1 SURYJ\, 1\11. c;cm;~es
Hutllillc: la mort ,\ l'<euvrc. Paris: c;allimard, 1992. p. 388.

-·' { /J/(.,p.-
'/ 0) cl)
C,!_,
I "·
1
1\i\Ti\JLI.E, C. !.c morl ( 19•12): In: . (}:uvrcs cmnph1tcs. Paris: Gallimard,
I 971. p. 36-51 c 3M 3ó5. v. I V. '> 1/Jir/.. p. 2~.

;'
I'
. . i'
I 142 Georges Didi-Huberman VI-IMAGENS 143
'
'I
I
' II
'
; I' .
I I
'
I, I II
' ' !' ''

! mim", escreve sem dúvida Bataille. ~ 22


Mas esse grito, se ele [... ] é um espectador, são olhos que procuram o foco, ou pelo
i'
acontecer, se emitir seu sinal, seu lampejo, será potência menos, nessa operação, a existência espectadora se condensa nos
' '

'
I
'
de contestação. O ·~ilêncio 'também é fraqueza, mas "a r e-

olhos. Esse caráter não acaba se a noite cai. O que se encontra,
'

I cusa de se comunicar é um meio mais hostil, [portanto], o então, na escuridão profunda é um áspcn? de.~ejQ 1 c;Je ver, quando,
' ,'--" -•-• r- •

mais potente de comunicar". 230


É bastante significativo que diante desse 1desejc>/!udo escapa. Mas o des~jó da existência assim
- -------------·- --·- - --- -- . ·-· . -

Bataille, dessa potência, ofereça alguns exemplos que con- dissipada na noite recai sobre um objeto de êxtase. 232
----------- ------ - - -- - -
cordam com aquilo que Waltcr Benjamin havia esperado
das imagens, precisamente: corpos luminosos passageiros na Objeto saccadé, espetáculo intermitente, não é preciso
noite. Bolas de fogo que atravessam o horizonte, cometas que dizê-lo, assim como se abrem e se fecham nossas próprias
.. •

'I '
I :. i aparecem e vão se perder mais adiante. Vaga -lumes mais ou pálpebras: "Meus olhos se abriram, é verdade, mas seria
'
i menos discretos, de alguma forma. Mais ou menos próximos melhor não dizê-lo, ficar estático como um animal. Eu
,' .I.
'
de nós na noite. "Um homem é uma partícula inserida em quis falar, e, como se as palavras carregassem o peso de mil

conjuntos instáveis e emaranhados", escreve ainda Bataille; sonos, como parecendo não ver, meus olhos vagarosamente
I
, I
233
i ,I
"uma parada favorável ao jorro"; mas uma parada portadora se fecharam." (Em seguida eles se abriram novamente,
'

I
de energia, capaz de irromper: "jorrar inflamado, excedente, como sabemos, para que o autor de E expérience intérieure
·' .i
'
I
livre até de sua própria convulsão [e possuindo] um caráter pudesse escrever isto à luz de um abajur, talvez, na noite,
I
' '
I I
: i
de dança e de leveza decomposta:'m sobre uma folha de papel branco.)
I
I 4 experiênc;~él_estaria para o saber assim como uma dança Ora, é nesse contexto que Bataille, no final da guerra,
na r1oit;;-p;~f~r;d~1 está para uma estase na luz imóvel. Ora; volta à contestação filosófica e à construção de um saber
na noite, nem o(~1h#nem_o<1[~§-~~k),çessam, capazes de aí outro- que ele chamará, por um lado "ateologia", por outro,
'
I'
I
encontrar lampejos inesperados: o sujeito da experiência, "heterologia" - capaz de se ressituar, de retomar posição
'•
..
I' .
afirma Bataille, na história política dos tempos atuais. Sur Nietzsche [Sobre

. I
'
'
'"' li7!t.,p.!_.v.
··· .I ~·l \ ·.1 "' llJ\Ti\ILLE, G. L e"I'L'ricnce inléricurc. fn: _ _ . CFuvrcs completes. Paris:
"" lhid., 1'· h4. Callimard, 1973. p. J.14. v. V.
''
I 211
lbid., p. I 00, 112 c 14S. ·'·'·' 1/Jid., p. 25.
'
'
,, ! '

144 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 145

'
;!'
'
I
" I:
' !'

I• I" '•

'

Nietzsche], escrito em 1944 "no atropelo" da derrota alemã ' independente das consequências:' 238
Enfim, tratar-se-á de
---- .- -.

2

\ -- ---·----~--~-~---·---··---·---·---" ------ -- .. ·--'
iI e do centenário do filósofo, "' publicado em fevereiro de • _ • •
1
afirmar que o pensamento à altura dCJ; _e)(per)ência é algo .
--- ------ - ------------- ----... -. ....... . r
'
''
1945, é um livro extraordinário. Mistura um errático diário · como uma bola de fogo ou um. . vaga-lume, admirável e em
'

'
de guerra - seja o nã(; saber de uma experiência onde se

' '. - - -. ' - ' ' '
!
• · d.esaparecimento: "As doutrinas de Nietzsche têm isso de
-- - --- . --
\• ·'' • •

~-'-

111esclam de modo espantoso bombardeios aéreos e parques l

'
' '
• .í ' .
.

· estranho: não se pode segui-las. Elas se fazem preceder de
'
235
t~n~

de diversões, ruínas trágicas e jogos infantis - a uma -

! lampejos imprecisos, deslumbrantes, mas com frequência _


li -- ~--·

. '
·tativa
. ---
de elucidação conceitual
---··---·--
destinada

------.----------- ·---
a atribuir um valor
----- --- --- ----- -----_:.---'-~----------------"•"-~
._ nenhum caminho conduz à direção indicada:' 239
' •

de' -------·---
uso aos textos de Nietzsche para além de sua utilização

Nada ciisso_impe_Qitl Batailkde se r~posicionar, ap<)s o _i_



'
.... --- .. ...............
--·-··--- ._ ··------ '. ' - ·-- .... ' .. -·--· ..... ..
I'
-- - ' ' ' ·---~--~----------~"''
--~---·-··---~-~------------'é:c...,_.; ---~-~----~- "-."--·~

I
p~losfascistas, sobre a qualBataille desenvolve, mais mn~ •

I \ fim das hostilidades, para lembrar que lá onde havia iniciado ·


"--.....--. \- .. . '
- - .. ·-
236
vez, a crítica mais virulenta.
. - a "tragédia" da guerra mundial, a saber, a Espanha da guerra .
E a questão
-----------
-- -~--
n~s_§_as págin(l~_s_erá ainda-ªd~_l!:l__Il(l ~~2_~ri- civil, lá mesmo ainda se mantinha "o último reduto fascistà' '

ência_tel1s.ª-~Dt:t:<: p~rda e êxtase, treva~ e lu!!lfnosidacjes. O • sob o reino de Franco. 2411


Ao editar um caderno intitulado

.,
livro se abre com uma citação de Nietzsche assim traduzida: ·-._ Actualité [Atualidade] e consagrado especialmente à "Espa-
"É com grande dificuldade que eu impeço111ir1ha chélm~-de

,i'
'
- '• ----- .,, ____ --- - ---· -- - - - -- --- "'" ·- -----------<-
nha livre" - estavam ali reunidos, entre outros, os textos de _, _ _
.. '

brilhar para fora de meu corpo:' 237 Em seguida, será ques-


-- - ..-
Albert Camus, de Jean Cassou, de/'f[e_deri~·õ"G~;ciaLoi-Ç_(!)
-----.. _, .............._____...... _,_ ...... -"
_- i ·-------.1~·--

I
I
tão de uma "escapada movente" em direção a alguma coisa de Maurice Blanchot e de Ernest Hemingway -, Georges ·
' '

I
como um "brilho solar": "Por menor que seja a aposta, eu Bataille reencontrava o sentido político de toda experiência,
I
abro uma perspectiva de sobrevalorização infinita. Nessa cuja complexidade ele descrevia relacionando em seu pró- .
''
escapada movente se deixa entrever um vértice. Como o prio texto, o Tres de mayo, de Goya, a morte de Granero nas
I ponto mais elevado - o grau mais intenso - de atração por arenas de Madri, a "cultura da angústia", inerente ao cante ·
' '!
si mesma, que possa definir a vida. Espécie de brilho solar, jondo, e a "liberdade íntima" dos anarquistas andaluzes,
,I :
:1 I 21 1
' Jd., Sur Nictzsche: volonté de chance (1944-1945). I n : - - · a~uvrcs COrll-

! I'

plhes. Paris: Gallimard, 1973. p. 15. v. VI. ,,, Jbid., p. 49 .
' '
n'' Ihid., p. 65 181. ,,,, 1/Jid., p. I 07.
: '
21
"

-" Jbid., p. 185-188. "" CL SL;RYA, i\1. Gcorgcs Bataillc: la mort à l'ceuvre. Paris: Gallimard, 1992.
'
211


Ihid., p. 11. p. •I •13 -44S
i
.I I ' I
• •

'

". 146 Georges Didi-Huberman VI-IMAGENS 147


'
' i!
i
'

.I
'
I , :'
'
'
!'
I

fossem eles prisioneiros dos calabouços de Franco, tendo enquanto amável, ou sobre o rosto humano, considerado o
.--------- ------- ------ -·-

como única luz a brasa de um cigarro, no escuro, e o apelo que "passa do comum ao próprio e do próprio ao comum"
·-- --- __ , --- - .

dilacerante de seus cantos chamados carceleras.' 11 quando essa passagem abre o espaço de uma ética?12 Mas ele
' não escapa, para terminar, ao "irreparável" heideggcriano
i
I
e à questão, ofuscante a meu ver, do "reino messiânico", 243
Não se pode, portanto, dizer que a experiência, seja que ainda é um reino.
·-----,_, ___ , ____ - --- --- -- --- --- - --- ----- -------------~----

qual for o momento da história, tenha sido "destruída". Ao Não seria necessário buscar, primeiro, nas comunidades
I
I ----- --- ---- -------- ---- ---- ------. --- -··--· - -· ---·--·--··-···-"""""·--·---------- .. ------ -- -.. " ' ... .
! I
'
contrário, faz-se necessário - e pouco importa a potência querestam - sem reinar---, a própria ressurgência, o espaço
-- --·-·-- ·- ------ . - -- "•

do
----
reino e de sua glÓria~ poiiC:() importa a eficácia universal aberto das respostas a nossas perguntas? Os reinos, "gover-
---· - . - . ' ' ~ .. . '

da "sociedade do espetáculo" -, afirmar que a experiência é '


'
nabilidades" segundo Foucault ou, ainda, "polícias" segundo
. I - .

li
indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevi- ~anciere,
·--
tendem certamente
---
a reduzir ou subjugar os povos. ,,
' '

vências e às clandestinidades de simples lampejos na noite. Mas essa redução, ainda que fC?ssee.J(Jremo
------------ -- ----········---- ------ --
..comonas.deçi_~_Çí_e.lL '

I,
''
Talvez se pudesse estabelecer uma relação, dentro do pes- ... de genocídio, quase sempre deixa restos, e os restos quase 1
---- . -- ---- .. . . " - - -----
' '
I' simismo de Agamben,,entre sua tese sobre a "destruição da ' sempre se movimentam: fugir, esconder-se, enterrar um tes- .·
experiência''- seu luto de toda infância, a partir de 1978- e temunho, ir para outro lugar, encontrar a tangente ... é o que
•' a definição dos povos que ele acabará por tomar emprestada . nos ensinam, cada uma a seu modo, as livres "experiê11ciªs .
!
'
1
. . -------··· ---- '' ""'' - - ._., '

I'
I
, a Carl Schmidt em 2008. Se um dos mais belos livros de 'I" I
interiores" escritas por Georges Bataille, as e~p~.rJi1l~Übre ·:
'

1
Agamben permanece, a meu ver, La communauté qui vient .· a linguagem ou os sonhos transmitidos por Victor Klemperer ·.
I'
1
1 [A comunidade que vem], é porque parece escrito para:! ou Charlotte Beradt. E mesmo as "garrafas jogadas ao mar",
''
'
.~I abrir um campo de ressurgências: livro sobre o "ser comum" i
''
1 desesperadas mas endereçadas, agonizantes mas precisas,
1
I \
dos membros do Sonderkommando de Auschwitz. ·
''
:I
211
BATAILLE, G. À propos de Pour qui sonnc le glas d'Ernest Hem i ngway ( 194o).
"
In: SURYi\, M. (dir.) Gcorges llataille: une libcrté souveraine. Paris: Fourbis,
1997. p. 11-47. (Faço referência a esta edição em razão do caráter truncado
' I:''
,
das Obras completas.) Sobre esse texto admirável, d. DlLJ!-Hlil',FRi\JA'\, C. '" ACA:\IBJ-::\, G. Lu conunull!llll!' qui vic11t: théoric de la singularité qucl-
J: 02il de l'expérience (2004). In: . Vivre /e sem. Paris: !.e Scuil··Centrc conquc (' 990). Trad. ,VI. Raiola. Paris: Le Seu iI, 1990. p. 9 -1 I e 22-27.
'
Roland-Barthcs, 200S. p. 117-177. e~.·. Tl•id .. p.91-l19.
II .
,I
I : I

I'

148 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 149


' i'
I

I
I


• '
I Todas essas experiências clandestinas se dirigem- tanto ' direito à palavra" à experiência dos povos nas formas de
. . .
- - - --

mais
-
imperiosamente por terem sido, primeiro, coibidas - . - -- - - ----- - - - - - - -
sua transmissão.'''
aos povos que poderão ou estarão dispostos, em determina- 1
De tal resistência do pensamento, dos signos e das ima-
I
do momento, a ouvi-las:J:?das_são atosp_olíticos fundados) gens à "destruição da experiêncià' - quando não se trata de
\ sobre
------- -
a ''comunidade
--
que
--
restà'.
'
Todas
'
"se ligam ao povo -
i
'
destruição simplesmente -, ninguém melhor que~fi~.IJ!lélh.
--- ---------- --
• •
-------- -----'"1

pelas raízes mais profundas", assim como \Valter Benjamin i Arepqt,'Jalvez,


---· -
para exprimir a

paradoxal
··---
ressurgência, essa
·- -----------------------·--- ------·-
~' I ---- --------~ -

•• o reconhecia em toda narrativa capaz de transmitir uma 1, liberdade


------------- -
de fazer
---
aparecerem
-
os povos
-
apesar
-- -
de
---·
tudo,
----------
..
apesar
-------·----
- - - -- - -- --·-- ------- ·--·-
' \ '

experiência a outrem. Não foi o fato de Robert Antelme ' d(lS censuras. do reino e das luzes ofuscantes da glória (isto
ter voltado vivo dos campos de concentração que sugeriu é, quando o reino mergulha tudo na escuridão ou quando a



• a Maurice Blanchot sua noção de indestrutível. Antes, foi glória só se utiliza de sua luz para melhor nos cegar). Em seu
-:'

o fato de r; espece humaine [A espécie humana]manifestar elogio a Lessing, intitulado "De l'humanité dans de 'sombres.
literalmente, em seu estatuto de escrita dirigida à espécie, temps"' [Da humanidade em tempos sombrios], Arencit
de narrativa transmitida - e não consigo imaginar que esse evotava a situação daquele que se encontra confrontado
r


livro, um dia, assim como Si c'est un homme [É isto um com um tempo desse gênero, um tempo em que "o domínio
•I

homem] de Primo Levi, deixe de ser lido -, esta força: a de público perdeu o poder de iluminar", 246 tempo em que não

I,
que "o homem é indestrutível e que, no entanto, ele pode ser nos sentimos mais "esclarecidos", de acordo com a ordem
'
i''

destruído", 244 paradoxo que se explica evidentemente pela das razões, nem "radiantes" segundo a ordem dos afetos.

li
I.
I
I noção de sobrevivência. Sobrevivência dos signos ou das
--~·-··-~~---·-- - _,: _____ ., - - ... ··-·-·"
Ii
Eis, então, o que alguns em tal situação escolherão fazer:
.'
I' '


. imagens, quando a sobrevivência dos próprios protagonistas, i retirar-se "para fora do mundo", da luz, mas continuando
• •
. . .
'

,• •
••
se encontra comprometida. Ora, essa força se comprome- . a trabalhar em algo que possa "ainda ser útil ao mtmdo",w
• . --- -
'.
. te, como diz ainda Blanchot, com "o ponto de partida de
uma reivindicação comum" fundada sobre o ato de "dar o
·"·" Jbid., p. 197 e 199.
·'"· AREJ\DT, H. De l'humanité dans de "sombres tcmps": réllexions sur Lcssing
( 1959). Trad. 1\. Cassin c: P. Lévy. In: _ . Vics poliliqucs. Paris: C:lilimard,
!' '
·'
11
BLANCJ-IOT, iVL I:espccc humainc (1962). I n : - - · . J.'cnircticn in/ini. Pa- I 'J/4 (éd I 997;. p. 12.
'I,I
j I ris: Callimard, I 969. ]'· I '!2. 1/;id., p. Li.
!I
•••
• •

I
I
150 Georges Didi-Huberman VI-IMAGENS 151
:I ,' ,
. I I

.I!'
I '
...
um lampejo, em suma. Retirar -se sem se fechar, assim con1o bruscamente, de improviso, e desaparece novamente em
fez Lessing, que perm<meceuem sua solidªQ "radicalmente outras condições misteriosas", nalgum lugar na brecha
2 1
'' ' crítico e, no que toca à vida pública, completamente revo- aberta entre memória e desejo. s Seria ainda preciso que a
'
I
I
I
lucionário": "Lessing se retira no pensamento, sem se fechar memória fosse "uma força e não um fardo''. 252 Seria ainda
I I

I
em si mesmo; e se para ele existe um elo secreto entre ação e preciso reconhecer a essencial vitalidade das sobrevivências

pensamento [... ] esse elo consistia no fato de que, [... ] ação e e da memória em geral quando ela encontra as formas jus-
pensamento, ambos acontecem sob a forma do movimento tas de sua transmissão. Nessa combinação geométrica do
e que, portanto, a liberdade que os funda, é a liberdade de !retraimento e do não fechamento, depreender-se-ia então i,,
rnovirnento:' 248 Então, o sofrimento inerente à retirada torna- ·.i o gue Arendt chama magnificam~nte d~ urnaforçadi;g~n~T;{
-se alegria inerente ao movimento, esse desejo, esse agir ·•, que difere das duas forças - a do passado e a do futuro -das 11

'
apesar de tudo capaz de fazer sentido em sua transmissão a ~,quais, no entanto, resulta.
'' .'
outrem: "O sentido de uma ação", escreve Arendt na linha-
gem direta de Benjamin, "só é revelado quando o próprio As duas forças antagônicas são ambas ilimitadas quanto a
249 -,
.: :'
agir [... ] se tornou história narrável': · sua origem, uma vindo de um passado infinito e a outra de um
E eis então como "uma parcela de humanidade num futuro infinito; mas, ainda que não tenham um início conhecido,
250
mundo que se tornou inumano [terá] se realizado". No elas têm um ponto de chegada, aquele onde se chocam. A força
belo texto de abertura de La crise de la culture [A crise da. diagonal, ao contrário, seria limitada quanto a sua origem, tendo
cultura], intitulado "La brêche entre le passé e le futur" [A seu ponto de partida lá onde se chocam as torças antagônicas, mas
' i'
' brecha entre o passado e o futuro], Arendt evocará ainda seria infinita no que concerne a seu fim - sendo o resultado da
os exemplos deReqé-C_h8!:ie de(franz Kat1za, esperando que ação combinada de duas forças cuja origem é o infinito. Essa força
----' . ' -------
se transmita a mais inestimável das lições por esse "tesouro diagonal, cuja origem é conhecida, cuja direção é determinada
sem idade que, nas circunstâncias mais diversas, aparece
'•••

' "" Ibid., p. 13 c 18 (grifo do autor). ''' hl., l.u crise de lu wltura: huit cxcrciccs de pcnséc poli tique ( 1954-1968). Trad.
' I'
'I') Ihid., p. 31. dirigida por P Lévy. Paris: Callimanl, 1972 (éd. 1995). p. 13.
;' '
I
,.,,, Ibid., p. 20.
' --"iO 11){(. I., p. -'-
"l .

' I
..''
1j I'
• •
• 152 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 153
'
,,I

. I
''
'' '
I

p_clo passadoe pelofut~~,111as CLtjofi111 últin1o_scenco1~tra 110 1y


'
i a_tran_smitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e
~· -· - - - - - -
~ -~--- ----· --·-·"··~- .. -- -- ..- -.... ~ ........ ___ ,~_._, ... ----
intiDito,é aJ:netát<rra perfs:ita para a atividacie do pensamento.>'' 'i não se contentar em descrever o ncl.o da luz que nos ofusca.
---- ----- --
---
-----

------ -
............... __ , ____ ., ,

Tal seria, para finalizar, o infinito recurso dos vaga-


· - - - - - - - - - - - - - - . , , ,___ .-··--·· - ----~--- ..•. \;:-<"-..,

I -lumes: sua retirada, quando não se tratar de fechamento


I' I Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois .
sobre si mesmo, mas "força diagonal"; sua comunidade clan-.
mundos pelo menos. O prirnt:il'P está inundado de luz,
! destina de "parcelas de humanidade", esses sinais enviados
' i o segundo atravessado por lampejos. No centro da luz,
'''
por intermitências, sua essencial liberdade de movimento; como nos querem fazer acreditar, agitam .. se aqueles que
'
'' sua faculdade de fazer aparecer o desejo como o indestrutível
' i '
' '
I,
'
chamamos hoje- por uma cruel e hollywoodiana antifrase
' ''
' ''
por excelência (e me vêm à memória as últimas palavras. - alguns poucos people, ou seja, as stars - as estrelas, que,
escolhidas porFreudjpara sua Traumdeutung: "esse futuro, como se sabe, levam nomes de divindades _êss sobre as quais
' ' '

presente para o sonhador, é modelado, pelo desejo indes- regurgitamos informações na maior parte inúteis. Poeira
I 254
trutível, à imagem do passado" ). Os vaga-lumes, depende nos olhos que faz sistema com a glória eficaz do "reino": ela
' '
II ''i, II apenas de nós não vê-los desaparecerem,. Ora, para isso, nos pede uma única coisa que é aclamá-la unanimemente.
'
''
'

·nós mesmos devemos assumir a liberdade


__ ___,___ do movimento,
-------- . ,
IVIill'-'.. 11.'-!§.]Jl_\).Eg~.~;s,
isto é, através de um território infini-
i '
a retirada que não seja fechamento so?resi, a força_dja~o- tamente mais extenso, caminham inúmeros povos sobre
-- --------·-··-·-·------·--······--------"·-··-··---·· -·-······ ---------------·· ··-·-···- ---------
'
'"
I nal, a faculdade
-------------.-----·-··------- - .
de fazer-
aparecer
-----------
parcelas de humanidade,
-·- ----------- os quais sabemos muito pouco, logo, para os quais uma
------~-

0 desejo indestrutíveL Devemos, portanto, - em recuo do


contrainformação parece sempre mais necessária. Pqyos~. 1
''
' '
' .I

r~il1~eda
'''
"'
. .
--·
glória,
·-
na brecha aberta entre
. ... ,
o passadoe
' ---
o futuro - ·, -vajJ_~1~.lumes, quando se retiram na noite, buscam como !
-nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar novamente .l podem sua liberdade de movimento, fogem dos projetores '
mna ~omunidade
. . .. .
do desejg,
..
'- '
uma comunidade de
-
lampe- •'
'

' do "reino", fazem o impossível para afirmar seus desejos, ;


I
;i
',.' :; ' I
jos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos •

i emitir seus próprios lampejos e dirigi-los a outros. Penso .


'

I'
q :

'" l'iisso residia, por contraste, a escolha de Eiscnstcin por um cinema regido
,.,, Il )/(·1., p. 11 7"
~~-"'-'~).

'i
pela história dos povos. Cf. EISFNSTEIN, S. M. C:Fuvrcs. J\u-dclir dcs étoiles
. I' ,,., I'FEUD S. l.'inlcrpn'latiou des n'vcs (I 900). Trad. I. Mcycrson revista por D. ( 1923-1 9•15). Trad. dirigida por). J\umont. 1\rris: Union Cénéralc d'í'.dilions-
' '
' '

: I'
1\erger. Paris: PUF, I 967 (éd. I 971 ). p. 527. -Cahicrs du cinéma, 1974. v. I.
' I

'
'
''
'
'
I 154 Georges Didi-Huberman VI· IMAGENS 155
I
:;
! I'
novamente, de repente - será aqui um último exemplo, ••
'·• '.

•, ·. invisf~eis_,_I?.1as sim "parcelas_de h~1111_a11idade" que o filme \
i' .' haveria n1uitos outros a convocar - em algumas imagens
I I
!!
frágeis surgidas na noite do campo de Sangatte, em 2002, e
\, c_on~e9uiujustamente fazer aparecerem, por m~is frág~is e ·I

! · b:~yesque sejam suas aparições.


' '
'
2 6
. .·
filmadas por Laura vVaddington sob o título de Border. "
O que aparece nesses corpos da fuga não é mais do que
Laura Waddington passou vários meses nas periferias
a obstinação de um projeto, o caráter indestrutível de um
do campo da Cruz- Vermelha em Sangatte. Ela filmava os
I c1esejo. O que aparece é também a graça, às vezes: graça
I refugiados afegãos ou iraquianos que tentavam desesperada-
que contém todo desejo que toma forma. Belezas gratuitas
. .' .
" mente escapar da polícia e atravessar o túnel sob o canal da
~.inesperadas, como quando esse refugiado c urdo dança na
' iI
. ' Mancha a fim de chegar à Inglaterra. Ela pôde, disso tudo,
' '
I' ' ' noite, ao vento, tendo seu cobertor como única vestimenta:
"
• extrair apenas imagens-vaga-lumes: imagens no limiar do.
' este é o ornamento de sua dignidade e, de certa forma, de
!..
''
desaparecimento, sempre movidas pela urgência da fuga,
I, sua alegria fundamental, sua alegria apesar de tudo (Figura
'' sempre próximas daqueles que, para realizar seu projeto, se
.I 2). Border é um filme ilegal atravessado, de fato, por todos
'I
escondiam na noite e tentavam o impossível, correndo risco
os estados da luz. Por um lado, há esses lampejos na noite:
de vida. A "força diagonal" desse filme se dá em detrimento
infinitamente preciosos, pois portadores de liberdade, mas
da claridade, certamente: necessidade de um material leve
' também angustiantes, pois sempre submetidos a um perigo
obturador aberto ao máximo, imagens impuras, focalização
palpável. Por outro lado - como na situação descrita por
' !' '
'
'
difícil, grão invasor, ritmo sincopado produzindo algo como
i' '' Pasolini em 1941 -,vemos os "ferozes projetores" do reino,
um efeito de lentidão. Imagens do medo. Imagens-lampejo,
se não for da glória: feixes de luz das tochas da polícia no
'' ''
entretanto. Vemos pouca coisa, trechos somente: corpos '
'
campo, implacável raio de luz que varre, de um helicóptero,
recostados no acostamento de uma autoestrada, seres que
as trevas. Mesmo as simples luzes das casas, os lampadários
!
'

' atravessam a noite em direção a um improvável horizonte.


' ''
'' ou os faróis dos automóveis que passam na estrada nos
Apesar da escuridão reinante, não são corpos tornados
apertam a garganta no contraste dilacerante - visualmente
. I' ~ "''" Waddington, L llorder. 2002. 1 vidco (27 mm). Cf. Didi-Huberman, G. Figu- ·. dilacerante - que se instaura com toda essa humanidade.
I '
..' '
' ' I

' .
rants. In: Gervereau, L (dir.). Dictionnairc mondial des imagcs. Paris: Nau .. lançada na noite, rejeitada na fuga. ~
25

' : veau Monde éditions, 2006. p. 398--100. cr também a \Trsão em português:


Os figurantes. In: CASA NOV/\, Vcra; CASA :-JOV/\, Andréa. I!tim e imugem.
i Belo Horizot1tc: C/ Arte, 201 O. p. 129-133. .':;"; No_(~riginal cn1 francf's: "cette hunlanitéjctéc dans la nnit, rcjetée dans la fui te"
'I
. Ii (gnlo nosso). (NT)

156 Georges Didi-Huberman


' i' ! VI-IMAGENS 157
'

I
I'
I
'
I'
i '
i; :I
. I
. ' .'
! :
I
I

precisão (Omar, Abdullah, Mohamed), sem que seja omitida


I
' i
I
a perspectiva assustadora de todo o fenômeno (sessenta mil
I
refugiados aproximadamente terão passado por Sangatte,
I
.I conforme fomos informados). Quando nós, espectadores do · .
''•

filme, somos às vezes ofuscados por um plano superexposto,


. ~a~~a Waddington
-
--~-----·-*-•--
nos diz como os próprios refugiados
''
voltavam ao campo cegos pelos gases lacrimogêneos.
"' ..
''

' i•~ ''


De repente, no meio dessa narrativa e de sua voz -
'•
'
'' que não deixa de evocar o lamento lírico que recitava a
I

poetisa Forough Farrokhzad em acompanhamento ao seu
--

' I
implacável documentário sobre um leprosário iraniano,
intitulado La maison est noire [A casa é negra] -,explode
I
I 'I
uma sequência gravada em som direto e filmada do interior

_,._ ..,
---·-::•";\_: de uma manifestação dos refugiados contra o iminente
' I
Laura Waddington, B01·der, 2004. \'ideograma. fechamento do campo. Então, não são mais lampejos, mas

'
'• explosões, flashes; não são mais palavras, mas urros em
i'
I Os contrastes nos estados da luz alternam-se com um pura perda. A própria câmera manifesta-se e se debate.
I
I
forte contraste sonoro em que dois estados da voz conferem A imagem é toda maltratada, posta em perigo: ela tenta,
, I
à narrativa de Laura Waddington toda sua sutileza dialética, a cada plano, salvar a si mesma. Mais tarde o silêncio

a despeito da extrema simplicidade de suas escolhas formais. se reinstalará. Veremos um grupo de refugiados - mas
. '

' De um lado, é a voz da própria artista: voz de uma mulher não podemos dizer "refugiados", devemos dizer ainda
:

muito jovem, musical embora sem efeitos, de uma extraor- "fugitivos"-, guiados por um passador, afastarem-se nas
'•
dinária ternura. Ela cumpre modestamente as exigências do trevas em direção a um horizonte vagamente luminoso.
..
I' testemunho: ela nos diz sua história e seus limites intrínsecos; Seu objetivo está ali, além, atrás daquela linha. Mesmo
I'
ela não julga nada, não domina nada daquilo que conta; ela sabendo que esse ali nem sempre lhes será um refúgio.
se dirige a seres singulares, encontrados, nomeados com



I ;
' .•
I.
. I
158 Georges Didi-Huberman VI- IMAGENS 159

I I
'
I .I
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I I ;
'
' . 'I
I

,I
iI
I !'

I ',
Eles acabam por se confundir com a escuridão da mata e a
I
. '
! Os--- .faróis
linha do horizonte.·-------
'-----·----
- -
surgem
-
mais umavez. Qfil111,e ,

j \ • termina com alg() con1o uma parada sobre o ofuscamento.


1 1: , I -- · --------- ----"- 'I /1
Imagens, portanto, para organizar nosso pessimismo: 1 ;/
1
1 • ,\) , /

••. 1, Imagens para protestar contra a glória do reino e seus feixes i i


I \ de luz crua. Os vaga-lumes desapareceram? Certamente ',


não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na es- 1
curidão; outros partiram para além do horizonte, tentando I,
'' •

I
reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, I
I
seu desejo partilhado. Aqui mesmo as imagens de Laura
I
Waddington permanecem, assim como os nomes - nos 1
'
créditos do final - de todos aqueles que ela encontrou. I

' .
Pode-se ver novamente o filme, podemos dá -lo a ver, fazer I
circular alguns trechos, que suscitarão outros: imagens- !
' /

-vaga-lumes. .· ·
' . 'I
I '
' Outubro-novembro 2008.

'

. 'I

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I ,'
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'
i .
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. ''
'

' 160 Georges Didi-Huberman


'•


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