O relógio de Königsberg: qual a função das ideias na epistemologia de Kant?
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O relógio de Königsberg - André Assi Barreto
Copyright © André Assi Barreto, 2023
Todos os direitos reservados
EDITORES: Laerte Lucas Zanetti
COORDENADOR DE PRODUÇÃO: Laerte Lucas Zanetti
CAPA: Déborah Sandy
DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO: Spress
EDIÇÃO E REVISÃO DE TEXTO: André Assi Barreto
REVISÃO DE PROVAS: André Assi Barreto
IMAGEM DO COLOFÃO: Monteiro Lobato, por Fátima Lódo.
Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde 01/01/2009.
Nenhuma parte dessa publicação pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios sem a permissão por escrito dos editores.
2023
Todos os direitos desta edição reservados à Linotipo Digital Editora e Livraria Ltda.
Rua Álvaro de Carvalho, 48, cj. 21
CEP: 01050-070 – Centro – São Paulo – SP
www.linodigi.com.br – 55 (11) 3256-5823
Aos meus avós José, Arlindo e
Maria e Isabel, in memoriam.
(...) indagar a natureza, até o mais íntimo, segundo todos os princípios possíveis da unidade, entre os quais o da unidade dos fins é o mais elevado, mas nunca para ultrapassar os seus limites, fora dos quais só há, para nós, o espaço vazio
(A702/B730).
Ninguém tenta estabelecer uma ciência sem ter uma ideia por fundamento
(A834/B862).
FORMA DE CITAÇÃO
BARRETO, A. A. "Razão e conhecimento: a questão das ideias no Apêndice à Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura". Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2015.
NOTA SOBRE AS CITAÇÕES, ABREVIATURAS E TRADUÇÕES
As obras de Kant são citadas conforme a Academia (Akademieausgabe von Immanuel Kants Gesammelten Werken Bände und Verknüpfungen zu den Inhaltsverzeichnissen, 23 vols.) e de acordo com o seguinte modelo: Prolegomena. Ak, IV, p. 328; p. 111, isto é, abreviação do nome da obra, seguida de volume e página da Academia e página da tradução portuguesa utilizada. As citações da Crítica da Razão Pura seguem o seguinte padrão: sirvo-me da tradução publicada pela editora Calouste Gulbenkian (2008) de autoria de Alexandre Fradique Morujão e Manuela Pinto dos Santos. As referências a obra serão feitas de acordo com a sagração da tradição: sigla em alemão (KrV), A
e B
, correspondentes à primeira e à segunda edições da obra, respectivamente, seguida de número de página. Todas as obras em inglês são citadas com traduções de minha autoria.
As abreviaturas das obras citadas seguem a referência dos seguintes títulos em alemão:
KU Kritik der Urteilskraft – Crítica do Juízo.
Prolegomena Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik – Prolegômenos a toda metafísica futura.
WDO Was heißt: Sich im Denken orientiren? – Que significa orientar-se no pensamento?
SUMÁRIO
Nota sobre as citações, abreviaturas e traduções
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 - O princípio do fim: razão e ideias
CAPÍTULO 2 - O legítimo lugar das ideias
CAPÍTULO 3 - Razão e natureza: Deus como fiador da ordem
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APRESENTAÇÃO
O texto aqui apresentado é resultado, em sua grande maioria, da minha dissertação de mestrado, defendida e aprovada com sucesso em novembro de 2015 na Universidade de São Paulo (USP). Desde então o texto ficou parado, até que eu fosse instado por amigos a publicá-lo.
A prosa, portanto, é acadêmica. Para solucionar esse problema
e tornar a obra interessante ao público em geral, curioso por temas filosóficos ou mesmo pelas ideias que correm em paralelo aos temas políticos, redigi uma nova apresentação, esmiuçando os argumentos e mostrando por que precisamos prestar bastante atenção em Kant, inclusive em suas reflexões epistemológicas – isto é, sobre como o ser humano adquire conhecimento e sobre as bases que funda o conhecimento humano – para entendermos a Modernidade, inclusive em seus aspectos políticos, talvez mais interessantes para o leitor que chegou até aqui.
Contida nessa apresentação está uma explanação geral sobre o pensamento de Kant. A bibliografia original foi revisada e aumentada e o texto sofreu pequenas alterações de revisão e preparação textual, mas nada que altere o sentido de sua versão original. A despeito do caráter um pouco mais acessível que a obra passa a apresentar para esta publicação, não deixa de continuar objeto de interesse para o eventual acadêmico que fizer sua leitura.
Por que conservadores deveriam ler Kant?
Os leitores interessados nessa obra que eventualmente queiram uma exposição mais longa sobre os motivos que nos deveriam levar a ler Kant podem encontrá-los em meu Os Fundamentos do Globalismo (Linotipo Digital, 2021). Lá, mostro por que Kant pode ser considerado o precursor intelectual de entidades hostis ao estado-nação e às tradições nacionais como a ONU e suas sucursais e da ideologia que move a mente de bilionários e financistas, aqueles que mandam no mundo, o globalismo.
Como cheguei a afirmar em algumas palestras de divulgação do livro, enquanto conservadores costumamos apontar nossos canhões para Karl Marx (1818-1883). E deixamos de lado figuras provavelmente mais perigosas – ainda que menos badaladas
– como Moses Hess (1812-1875), Georg Friedrich Hegel (1770-1831) e... Immanuel Kant (1724-1804).
Kant nunca deixou o vilarejo onde nasceu, estudou, lecionou e escreveu suas obras, a pequena Königsberg, na extinta Prússia. A despeito disso, acompanhou com entusiasmo as implicações das obras do filósofo cético e empirista David Hume (1711-1776), o decorrer da Revolução Francesa e foi profundamente abalado e positivamente influenciado pela leitura de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Apesar do perfil aparentemente inofensivo, da ética do imperativo categórico, do pietismo controverso e de seu republicanismo centrista, Ayn Rand dizia que Kant e seu legado constituem algo pior que os atos do tirano genocida, totalitário e comunista Joseph Stalin, o filósofo prussiano de um metro e cinquenta e sete teria sido o homem mais perverso da história
¹, segundo a autora americana.
No caso de Rand, o motivo para esse diagnóstico se deve à epistemologia kantiana, que compõe, justamente, parte considerável do que abordei na minha dissertação. Para Kant, a razão humana é limitada, está condenada a conhecer
dentro das suas possibilidades, que são um tanto escassas. A razão humana e o restante de seu aparato cognitivo (intuição, imaginação, entendimento) sequer tem acesso à realidade em si mesma (a coisa em si), mas apenas aos fenômenos, isto é, a como a realidade se apresenta para nós e nosso citado aparato cognitivo.
E como Kant foi um pensador sistemático, sua epistemologia reverbera em sua ética, em sua filosofia política, em sua visão do direito etc. E em nenhuma dessas áreas há espaço para pontos de vista favoráveis aos conservadores. E minha dissertação não deixa, em certa medida, de reforçar esse ponto. Portanto, pode ser bastante útil para conservadores interessados em prover seu conservadorismo com estofo intelectual e alocar as ideias em seu devido lugar na história.
Em meu texto, trato de um recorte da principal obra kantiana, a Crítica da Razão Pura, justamente onde Kant fundamenta sua epistemologia, que rompe com toda a tradição anterior. Um dos principais movimentos da obra é, justamente, revolucionário. No prefácio, Kant desloca o ponto de referência da ontologia dos objetos (o que toda a tradição que o precedeu considerava foco para o conhecimento) para os sujeitos. Tal como Copérnico deslocou o centro das atenções da Terra para o Sol, Kant, fazendo sua própria revolução copernicana, deslocou a atenção dos objetos para os sujeitos. E a discussão passa a ficar centrada, então, em como os sujeitos conhecem e o que são capazes de conhecer, dado os limites da nossa razão e outras faculdades cognitivas.
Uma das consequências do pensamento de Kant é, para alguns intérpretes, a extinção da metafísica. Para alguns outros, não chega a ser sua extinção, mas um golpe duríssimo, legando a metafísica para o terreno da especulação, que deve ser feita com cautela e com a admissão que sobre metafísica nada pode ser propriamente conhecido. Os objetos da metafísica clássica são golpeados brutalmente: Deus, alma imortal e mundo (no sentido de totalidade da realidade, da existência) não podem ser apreendidos pela inteligência humana conforme acreditavam antigos e medievais.
O pulo do gato e o calcanhar de Aquiles da coisa é o que abordo na dissertação, que está contido no Apêndice à Dialética Transcendental
da Crítica da Razão Pura. Com a eliminação dos objetos da metafísica, estão eliminados os problemas e as controvérsias atrelados a eles², contudo, de certas coisas não se pode escapar e Kant teve de oferecer lá suas soluções.
No caso da ética, por exemplo, Deus precisa ser tomado como postulado (não o conheço, não provo sua existência, mas a presumo), pois, do contrário, não é possível (e realmente não é) fundamentar uma ética baseada em valores objetivos, escorregando no lamaçal do relativismo.
E no caso da epistemologia, que me interessa especificamente, sem Deus não há como garantir ou pressupor a ordenação da realidade³. A menos que eu pelo menos presuma a existência de um Deus arquiteto que criou uma realidade ordenada e, daí, suscetível de ser conhecida (cientificamente), não temos epistemologia e muito menos ciência. E isso é um problema colossal, especialmente para Kant e sua época, que viviam o entusiasmo europeu com o sucesso da física newtoniana.
Posto o problema vem o pulo do gato: Deus e alma imortal seguem impossíveis de se constituírem como objeto de escrutínio científico, pois não se submetem às faculdades básicas de cognição. Entretanto, segundo Kant, podem ser concebidos como ideias (ênfase em ideias) da razão. Não os conheço como objetos, mas os concebo como ideias, cumprindo também a função heurística necessária para a pesquisa científica.
Há quem considere essa solução uma tentativa de reintroduzir pela porta dos fundos a metafísica. Particularmente, não vejo dessa maneira, acredito que Kant preferiria dispensar totalmente ao reino da especulação a metafísica, o que o obrigou a trazê-la de volta para a arena foi, simplesmente, a implacabilidade da realidade.
Embora Kant possa ser considerado também um precursor do subjetivismo radical que observamos hoje, sua formação e espírito sistemático e lógico não permitiam estripulias que flertassem com o puro irracionalismo e relativismo. Sem Deus não há ética objetiva e também não existe garantia de ordenação para a realidade que desejamos conhecer, portanto, Deus não pode ser eliminado da equação.
As minúcias de como Kant operou essa salvação
de Deus estão expostas com detalhe a seguir, com o estilo acadêmico da prosa, todas as citações em formato ABNT e referências bibliográficas extensas.
Por fim, enfatizo que, tal como não afirmei que Kant foi um globalista em meu Os Fundamentos do Globalismo, não afirmo aqui que Kant foi um franco relativista ou ateu, mas apenas que, no moroso ritmo da história das ideias, o pensamento de Kant contribuiu para a vitória intelectual dessas ideias que, evidentemente, são hostis aos princípios conservadores.
André Assi Barreto
São Paulo, janeiro de 2023
INTRODUÇÃO
O propósito de Kant com a Crítica da Razão Pura é colocar a metafísica no caminho seguro da ciência
⁴. Para executar tal tarefa é preciso se perguntar se algum tipo de conhecimento propriamente dito é possível com relação à metafísica, se seus objetos, que transcendem a experiência possível, podem ser conhecidos pelo aparato cognitivo racional humano. Tendo isso em vista, nosso propósito é lidar com o problema das ideias da razão e sua relação com a própria possibilidade do conhecimento, visto que tais objetos
não podem se submeter à intuição. Nos reportamos particularmente ao Apêndice à Dialética Transcendental, onde Kant vincula as ideias à possibilidade da investigação da natureza, do estabelecimento de conhecimento seguro, na esteira de seu projeto teórico.
Investigamos, portanto, de que maneira as ideias da razão se vinculam à formulação do conhecimento. Kant afirma tanto na Dialética quanto no Apêndice que o conhecimento começa com intuições, passa por conceitos e termina em