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JOSÉ FREIRE MONTERROIO MASCARENHAS

O MONSTRO DE JERUSALÉM
(Cordel português do séc. XVIII)

EDIÇÕES VIRTUAIS ARABESCO


Mascarenhas, José Freire Monterroio (1670-1760), O monstro
de Jerusalém (1726).

Título original: Relação de um formidável e horrendo monstro


silvestre que foi visto e morto nas vizinhanças de Jerusalém.

Coleção Clássicos do Prata nº 02.

Fonte, em fac-simile de cordel português do século XVIII: Sítio


da Bayerische Staatsbliothek Digital (Biblioteca Estadual da
Baviera- Digital) (http://www.digitale-sammlungen.de).

Transcrição, digitalização e atualização ortográfica e notas:


Paulo Soriano.

A imagem reproduzida na capa e no corpo do livro consta da


edição original de 1726.

Edições Virtuais Arabesco ― Salvador ― Bahia ― Brasil. 2015.


Os folhetos de cordel – chamados de papéis
volantes – inundavam as ruas e praças de Lisboa
no século XVIII. Assim como os nossos, eram
escritos para o povo numa linguagem popular.
Era – diz-nos Clara Pinto Correia – num
português plebeu que se imprimiam os folhetos
anônimos de dez páginas, vendidos na esquina
da rua por dois centavos. Escrevia-se num
português das massas, que era o único que todas
as massas que sabiam ler o faziam com avidez.

Nesses papéis volantes pululavam fatos e


feitos extraordinários, fantásticos, formidáveis.
Tais folhetos, relembra-nos a historiadora Mary
Del Priori, prendiam a atenção e respiração de
seus leitores, mergulhando-os num mundo
fantasmagórico e de fantasmagorias. Monstros,
aberrações, eventos prodigiosos enchiam de
terror os homens do povo, numa época em que o
absurdo era plausível e a superstição milenar não
se deixava permear pelas luzes do racionalismo
incipiente.

“O monstro de Jerusalém” – cujo título


original é “Relação de um formidável e horrendo
monstro silvestre que foi visto e morto nas
vizinhanças de Jerusalém” –, cordel atribuído ao
escritor lusitano José Freire Monterroio
Mascarenhas (1670-1760), redator da Gazeta de
Lisboa, narra a tenaz e perigosa perseguição a
um ser monstruoso e sanguinário que
despedaçava homens e animais. Ao texto
principal é agregada uma suposta carta de um
culto mercador que, lá estando por ocasião da
morte do monstro, especula acerca de sua terrível
origem, recurso que vem a conferir
verossimilhança ao texto principal. E, para
arrematar, com chave de ouro, a credibilidade da
narrativa, no folheto vem impresso o “retrato
verdadeiro do dito bicho”, talvez o mesmo retrato
cuja cópia fora enviada pelo mercador ao seu
correspondente... Ei-lo abaixo:
RELAÇÃO
DE UM FORMIDÁVEL E
horrendo
MONSTRO SILVESTRE
QUE FOI VISTO E MORTO
nas vizinhanças de Jerusalém,
TRADUZIDO FIELMENTE DE UMA QUE
se imprimiu em Palermo, no Reino da Sicília, e se
reimprimiu em Gênova e em Turim, a que se
acrescenta uma carta escrita de Alepo sobre esta
matéria.
Com retrato verdadeiro do dito bicho.

13
LISBOA OCIDENTAL
Na oficina de JOSÉ ANTÓNIO DA SILVA
M DCC XXVI
Com todas as licenças necessárias e privilégio real1.

1
Embora apócrifo o cordel, o "Catálogo dos livros que hão de
ler para continuação do dicionário da língua portuguesa
mandada publicar pela Academia Real de Lisboa", de 1799,
atribui, às páginas 87/88, a sua redação a Montarroio.

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No território de Jerusalém, quatorze milhas
desta antiquíssima e famosa cidade, para a parte
do monte Foresta, se havia notado por muitos
dias um notável estrago de homens
despedaçados, bois, gado miúdo, cavalos e outros

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animais dos que pastavam naqueles contornos,
meios comidos, sem nunca se poder averiguar
qual fosse a causa de tão grande dano. Porém,
caminhando um passageiro por uma estrada
pouco distante da montanha, viu que outro, que
ia mais adiante, fora assaltado por um animal
monstruoso, o qual com suas garras o dividira
em dous. E cheio de um temor igual a perigo
tamanho, retrocedeu o caminho, fugindo para
uma povoação vizinha, onde, contado o sucesso,
encheu de medo a todos os ouvintes, que
reconheceram o ignorado motivo de tantos
estragos. E considerando o modo com que
podiam livrar-se dos insultos desta fera, deram
parte aos povos circunvizinhos, pedindo-lhes que,
como interessados no benefício de extinguir um
inimigo tão formidável e comum, quisessem
concorrer com eles a fazer uma grande montaria,
com que pudessem, cercando a montanha e
batendo os matos, dar-lhe caça e tirar-lhe a vida.

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Convindo todos na proposta, se ajuntou um
grande número de gente, provida de toda sorte de
armas, levando por guia o passageiro de que
haviam recebido esta notícia. Chegaram até o
sítio onde ele viu despedaçar o caminhante, de
cujo truncado cadáver acharam ainda vestígios.
E, ocupando alguns postos na circunferência da
montanha, dentro de poucas horas viram
aparecer o horrendo bicho que buscavam.
Era este monstruoso animal: na grandeza,
como um cavalo, mas com cabeça de leão; e,
nela, duas pontas de um palmo de comprimento,
como de boi. Na extremidade do nariz lhe fazia
um bico como de águia. Os dentes eram de leão,
mas as prezas como de javali, com meio palmo de
comprido. As orelhas caídas como de elefante e
de dous palmos cada uma. Quatro tetas como de
vaca de um palmo de comprimento. O peito
povoado de pelo mui denso e forte como de leão,
mas muito mais comprido. Os pés com garras

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mui longas e fortes como grifo. A cauda como
basalisco, do tamanho de seis palmos, repartidas
em nós e farpada na ponta. Do espinhaço lhe
saíam seis esporões como de galo, porém
maiores, os quais continuavam por toda a anca
até os pés. Duas asas nervosas, como de
serpente. E todo corpo coberto de conchas do
mesmo feitio, que as chamamos comumente de
madre pérola; mas tão juntas e dobradas uma
sobre outras que se fazia impenetrável aos tiros.
Se a visita de um monstro semelhante
intimidou os ânimos dos aventureiros, a sua
primeira ação os desanimou a todos. Porque,
lançando-se sobre a gente com tanta velocidade,
como um falcão sobre a ave, do primeiro assalto
deixou dezassete homens mortos. Porque, com
uma unhada que dava em algum, o despedaçava
logo. As balas não tiveram efeito, porque,
tocando-lhe nas costas, deixando no final só
alguma escara, saltavam fora. Muitos dias se

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gastaram em dar caça a este animal, sem lhe
fazer dano. O receio de perderem os gados, e
talvez as vidas, os fazia não largar a empresa. O
temor de serem vítimas da ferocidade do monstro
os fazia entrar nesta diligência com mais
desordem que acordo. Deu-se parte de todo o
sucedido ao baxá2, o qual mandou a esta
expedição dous regimentos: um de infanteria,
outro de cavalaria. Estes se formaram no sítio
onde se tinha visto aparecer mais vezes o
monstro. E uma tarde do dia 15 de novembro do
ano passado de 1725, pelas três horas, saiu do
bosque em que habitava e, vendo os cavalos, se
lançou furiosamente sobre eles. Estes animais,
intimidados de vista tão horrível, se espantaram
de tal maneira que, sem obedecer ao freio, nem
temer a espora, lançaram por terra a maior parte
dos soldados que os montavam. Destes acabaram
muitos na garra do monstro, outros com mais

2
Ou seja, paxá, governador provincial do Império Otomano.

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fortuna puderam escapar nos bosques, onde,
mais mortos de temor que vivos, eram
testemunhas do estrago que padeciam os
companheiros. A infanteria, formada em uma
figura que os militares chamam porco-espim,
procurou salvar a pé quedo as vidas, não só
opondo-se ao ímpeto do bicho, mas marchando
mui unida e cerrada contra ele. Este movimento,
que lhe pareceu estranho, o fez também entrar
em temor, e pouco a pouco começou a retirar-se,
fugindo aos bosques. Com o seu retiro tornaram
a reanimar-se os soldados. E começando a segui-
lo, o fizeram pôr em uma fugida tão precipitada
que, procurando intrincar-se no íntimo da
floresta, rompia tudo o que encontrava,
quebrando ramos de árvores tão grossas como
braços, e lançando urros tão horríveis que
podiam causar temor aos corações mais
animosos. Os que se tinham retirado no princípio
da batalha para o bosque tornaram a entrar em

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novo perigo, porque o monstro, acrescentando à
sua bravura natural o furor que lhe causou o
medo, a tudo que encontrava fazia em pedaços.
Entre estes refugiados havia um soldado que,
vendo caminhar o monstro contra o seu cavalo,
se lançou dele em terra. E vendo-se em termos de
perder a vida, tirando dos desalentos força,
empunhou uma lança com que se achava, e com
tão oportuno sucesso lha empregou na garganta,
que logo subitamente desanimado o monstro
caiu por terra. À vista de tão feliz acidente,
começaram a animar-se os que já se tinham por
mortos, e concorreram todos a empregar as suas
armas na moribunda fera. Porém, nem todos a
feriram a seu salvo, porque com o mesmo
movimento a que as ânsias da morte a
obrigavam, prostrou alguns por terra, e não só
com unhas, mas com a cauda feriu, e matou
outros, porque parecia um tiro de besta cada
movimento da cauda.

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Inexplicável foi a alegria que receberam
todos os povos circunvizinhos com a notícia da
morte de animal tão cruel. O dano que fez
naqueles contornos é muito maior que o que se
refere. Porque só dentro de um mês, não falando
em gados, faltaram de pessoas conhecidas
quarenta e nove. Correram todos à montanha
para verem o morto; e como em triunfo dos
aventureiros, o trouxeram sobre um carro a
Jerusalém, onde se tiraram vários retratos, que
se mandaram a diferentes partes do mundo. Não
falta quem tenha receio de que haja macho da
mesma espécie, e que tenha filhos de que se
possam receber semelhantes insultos.

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Tradução de uma carta da cidade de Alepo
em 10 de janeiro de 1726

Há muito tempo que desejava merecer-vos o


gosto de me dar novas vossas, por meio da
diligência de vo-las pedir. Mas os embaraços em
que me tem posto os meus negócios, obrigando-
me a fazer um giro por várias escalas da Ásia, me

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impossibilitaram procurar a satisfação deste
desejo. Não duvido que esta carta, depois de um
silêncio tão profundo em que havemos estado, e
de um intervalo tão grande que tem tido a nossa
correspondência, vos parecerá que vai do outro
mundo, principalmente se por essas partes tem
soado os estragos, que por estas tem feito tão
repetidamente o contágio, levando um infinito
número de gente. Mas, para que vejais que ainda
estou vivo, e que não quero estar morto na vossa
memória, quero aproveitar da via do Capitão
Justiniano, que aqui chegou de Alexandria, onde
se acha o seu navio de partida para esse porto, e
dizer-vos que, depois de vos haver escrito de
Astracã3 os prodigiosos progressos de Mohaidin,
me foi preciso atravessar a Geórgia, ir à Ásia
Menor e passar à Síria, onde me parece que farei

3 Cidade russa situada no delta do rio Volga, tornou-se, a


partir do século XVII, importante centro de negócios,
consistindo num dos portões russos para o Oriente.

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uma residência dilatada, por haver feito
sociedade com uns comerciantes armênios de
cabedais grossíssimos e vastíssimas
correspondências, e assim espero nela largas
notícias vossas e de todos os amigos.
Não faltam desta banda algumas, que
poderão ser do vosso agrado. Mas dar-vos-ei
uma, ao meu parecer mui rara, que é o haver-se
visto nela um animal monstruoso, que dos
montes da Cilícia4 passou aos deste país, e assim
nas estradas, como nas povoações, devorando
todo o animal vivente que encontrava, enchendo
de consternação a todos estes moradores. O que
se referia da ferocidade do bicho, a quantidade de
gado que despedaçava, o número de pessoas a
que tirava a vida, ao mesmo tempo que influía
espanto e causava horror, punha em mais alto
grau a curiosidade de reconhecer o autor de tanto
estrago.

4 Antiga região situada na costa meridional da Ásia Menor,


inserida, hoje, território da moderna Turquia.

25
Esta me obrigou a achar-me em várias
montarias, que se fizeram no termo desta cidade
para evitar dano que todos os dias padeciam os
camponeses, mas não tiveram o efeito que se
esperava estas diligências, porque apenas o
poderão afugentar para a parte de Jerusalém,
onde, emboscado nos matos circunvizinhos, saía
a fazer os mesmos insultos nas estradas e nos
campos. Só a figura deste animal impunha medo
aos que viam: a violência com que acometia
desanimava o valor5 dos que o buscavam. E como
todos na sua vizinhança tinham o perigo por
certo, todos procuravam vê-lo, mas de longe. E,
assim, se não podia reconhecer a sua espécie.
Entendia-se ao princípio que era algum leão
que tinha saído das terras da Hircânia6, obrigado
da indigência do sustento. A outros lhe parecia
urso. Porém, a grandeza de seu corpo desmentia

5Isto é, a coragem.
6 Antiga região que bordejava a parte meridional do mar
Cáspio, localizada, atualemente, nos territórios do Irã e do
Turcomenistão.

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estas opiniões, porque era maior que nenhuma
destas feras. Depois de morto nos confins de
Jerusalém, se me mandou o seu retrato, de que
vos envio cópia. Por ela vereis que não tem
semelhança alguma com algum dos animais que
descreve Plínio e retratam Gesnero e Adrovando.
Não faltou quem quisesse persuadir-me que era
grifo; animais que, ainda que façam grande figura
nos brasões, tenho por tão fabulosos como a ave
fênix. Também houve quem dissesse que era
serpente, ao que eu me inclinava mais, porque
como estas não multiplicam a sua espécie: cada
uma pode ser de diferente forma. Mas é
necessário capacitar-me primeiro que há
serpentes. Bem me lembro de haver lido que
produziu a terra uma, depois do dilúvio de
Deucalion7, a que se deu o nome de Píton, cuja
prodigiosa grandeza e deploráveis estragos

7 Personagem da mitologia grega, era filho de Prometeu. Por


este advertido, construiu uma nau, com a qual escapou ao
dilúvio juntamente com Pirra, sua mulher.

27
referem os poetas antigos, decantando o triunfo
de Apolo e a origem dos jogos pítios. Mas sei que
os naturalistas, comprovando a sua tese com a
significação da palavra Píton, que na língua grega
significa podridão, dizem que a origem desta
fábula foram os grossos vapores e densas
exalações, que saíram da terra depois daquele
dilúvio, e faziam morrer infinito número de povo;
com que já lá vai esta serpente e este exemplo. A
lérnea, nascida dos vapores do paul de Lerna, no
Reino da Moreia, chamada por outro nome de
hidra, e pintada com sete cabeças pelos poetas,
também, apesar dos devotos de Hércules, a tem a
Mitologia por monstro fabuloso. A que Perseu
matou para livrar Andrômeda, sacrificada à sua
ferocidade em benefício da pátria, os que a não
tem por fabulosa a consideram por crocodilo. Aos
meus argumentos me instavam como a serpente
de Berito8 que, no governo do imperador

8 Isto é, Beirute.

28
Diocleciano, matou o glorioso coronel de cavalaria
S. Jorge. Mas a isto respondi que deste sucesso
não há prova mais que tradição, que se conserva
nas pinturas da sua imagem, pois os atos de sua
história não fazem menção dele, com que
nenhuma das referidas serpentes nos servem de
prova de que as há. Não duvido, que pela Sagrada
Escritura se pode mostrar, que são as serpentes
tão antigas como o mundo. Bem sei que em
figura de serpente era adorado no tempo da
gentilidade o deus da Medicina; que os sacerdotes
de Baco, Ceres e Proserpina, falsos simulacros
das suas fingidas deidades, guardavam serpentes
nos seus templos; que os egípcios faziam o
mesmo no de Serápis e Ísis; que São Justino
Mártir repreendia os idólatras, por terem ainda
no seu tempo por misteriosa esta superstição. E
que o mesmo se refere dos hereges chamados
ofitas, depois da promulgação dos evangelhos,
sustentando nas suas igrejas serpentes e

29
beijando-as, como afirma Santo Epifânio. Porém,
todas essas serpentes não eram outra cousa mais
que uns animais reptílios9, a quem chamamos
cobras; nem a que enganou no Paraíso a nossos
primeiros pais, segundo no-la pinta a tradição,
tinha mais diferença das outras cobras que o
falar. Não consta que tivessem outra figura a em
que se converteram a vara de Moisés e a dos
magos do faraó. E a todas chama o Sagrado Texto
serpente. É verdade que as cobras se dividem em
diferentes espécies, porque entre elas se contam
as víboras, as áspides, as que habitam as casas,
as que andam nos campos, as que se criam nos
rios, que todas têm a mesma forma, e só se
diferenciam com alguma pequena propriedade,
como as de capelo na América e as suiges10 em
Angola. De todas se distinguem as jiboias pela
sua desmedida grossura, as anfizibenas11 por

9 Sic.
10 Sic.
11 Sic

30
terem duas cabeças e as que chamam cascavel
por trazerem um [chocalho] na cauda. Porém,
nenhuma destas espécies, nem alguma outras de
que temos notícia, tem semelhança alguma com
as serpentes que nos mostram nas pinturas, e eu
tenho por efeito da imaginação, querendo-nos
propor um animal feroz, violento e horroroso.
Já vejo que me direis vós agora que se
tenho banido do mundo as serpentes, que nome
pretendo dar a este bicho que vos mando pintado.
Pudera-vos dizer que o de dragão, mas receio que
este possa encontrar em vós a mesma
implicância que em mim as serpentes.
Assentemos antes que é um monstro dos que a
natureza costuma produzir algumas vezes nas
grutas das serras, em países despovoados,
gerados da putrefação da terra, como a que em
Rodes matou no ano de 1345 o famoso cavaleiro e
depois mestre da sagrada Ordem de S. João de

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Jerusalém Fr. Adeodato de Gozon12; como a que
no Reino de Cinde13 matou o valeroso Gaspar de
Monterroio, e como a que existia no Reino da
Noruega no tempo do arcebispo de Upsália Olao
Magno, como ele mesmo escreve. Que ainda que
a todos estes deem os autores o nome de
serpente, todos na minha opinião são uns
monstruosos partos da natureza, gerados nas
águas, embalsados na terra, com a concorrência
de algum outro acidente. O que se refere da
origem deste de que vos mando cópia, deixando à
vossa filosofia a averiguação de sua possibilidade,
é que um dos príncipes da Tartária,
independente, querendo tomar vingança de um

12É possível conhecer a história de Adeodato (ou Deodato) de


Gozon e o monstro no periódico português "O Panorama",
edição de agosto de 1838, p. 261, disponível no Google Books.
13 Reino situado no norte das antigas Índias Orientais,

banhado pelo rio Indo, e no qual se situava a cidade de Tatá,


destruída por Pedro Barreto Rolin, a mando de Francisco
Barreto, no século XVI (cf. J. V. Barreto Feito e J. G. Monteiro,
“Obras Completas de Camões”, T. II, 1843, p. XLVIII. Vide,
também, Diego de Couto, “Da Ásia”, Década VII, Livro III, cap.
XIV, 1782 e João de Barros, “Da Ásia”, Década IV, Livro I,
cap. X, 1777.

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povo, que, negando-lhe a obediência, se sujeitou
ao julgo de seu contrário, fez ajuntar todos os
moradores dele sobre uma montanha; e depois de
haver, à sua vista, mandando degolar suas
mulheres e seus filhos, ordenou lhes abrirem
feridas por todo o corpo para que, evacuados
vagarosamente do sangue, tivesse mais duração a
sua agonia e fosse a sua morte mais penosa. Este
sangue, em que se envolviam tantos espíritos
exasperados, coado por entre as rochas, em uma
dilatada gruta, que há no mesmo monte, fazendo
um misto com a terra, se foi fermentando pouco a
pouco e produziu este monstruoso animal; o
qual, conservando e si unidas as mesmas
desesperações e raivas, que levaram consigo os
espíritos de tantos corpos de que foi gerado, se
pode chamar símbolo da maior crueldade, porque
não tirava a vida aos homens para os tragar, mas
só para lhes beber o sangue. Despedaçava
cavalos, bois e outras reses, e, sem cevar-se nas

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suas carnes, os deixava em pedaços pelos
campos. Não havia fera que nos bosques pudesse
refletir o seu furor, nem animal nos montes que
não devorasse a sua perversidade.
Também vos pudera dar notícia de um
homem monstruoso, que da Ásia Menor foi levado
ao sultão, de que se contam cousas notáveis. Mas
espero cartas de Constantinopla com algumas
circunstâncias que mandei perguntar para vos
dar informação mais exata de sua estrutura, que
dizem ser uma composição de membros de vários
animais. Também vos darei notícia do mais que
tem sucedido ao velho Mohadin no seu governo,
em que vereis cousas mui dignas de vossa
curiosidade.

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Edições Virtuais Arabesco

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