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O título desta conferência, inspirado em Formas elementares de vida religiosa, de Émile Durkheim, (Rio:
Martins Fontes, 1996), pode, desde sua enunciação, sofrer interpretações diversas. Exatamente por isso pode
ser uma encruzilhada para investigações interdisciplinares. Evidentemente, a amplidão e as aberturas que o
título possibilita obrigam também a um cuidadoso rigor metodológico para não decair na dispersão e na
simplificação. Por isso desenvolvo dois pontos prévios com delimitações semânticas de religião e de cultura,
para, num terceiro, percorrer, de forma mais sistemática possível, através de uma reflexão interdisciplinar, a
relação entre cultura e religião através da categoria de “alma”, o que também exigirá uma razoável explicação.
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Nesse mesmo sentido, toda catequese e toda homilia podem ser consideradas teologias facilitadoras e meditações iniciáticas.
1
acenar para o fato de que todos esses autores de referência ocidental partem de um ambiente
predominantemente cristão e judeu em processos de secularização mas sempre supondo-se acriticamente
superior a qualquer outra forma de religião, e buscando na secularidade e na autonomia, no progresso e na
emancipação, o sentido último que poderia ter o ser humano. Nesse sentido, tratou-se de um humanismo crítico
da religião, com concepções reducionistas. Marx não conseguiu pensar, por exemplo, como Roger Garaudy e os
fundadores da Teologia da Libertação, nos aspectos eventualmente revolucionários da religião, nem Freud nos
aspectos libertadores e saudáveis a que uma prática religiosa saudável conduz. Jean Delumeau conclui que este
processo desconstrutivo e redutor acabou por produzir uma ruptura do Ocidente com seu patrimônio religioso,
uma perda de memória, sem renunciar ao preconceito de superioridade. Pelo contrário, na secularidade se quis
assegurar ainda mais superioridade, mas sem o sentido que a memória e o patrimônio religioso sustentariam 2.
b) Nietzsche merece um destaque pela sua originalidade vertiginosa, pelo paradoxo a que conduz a
experiência religiosa, na declaração da morte de Deus e no estímulo ao Homem, com letra maiúscula, a ocupar
este espaço, algo tão estonteante que levou coerentemente Nietzsche à loucura. Também é bem conhecido o
dramático caminho percorrido pelo filósofo da vontade de poder. Religião é uma questão de poder e de libido,
talvez, dizendo melhor, de poder libidinoso, de luxuria transcendental, na fusão de Dionísio com Apolo. A
importância de Nietzsche se põe hoje, de novo, na medida em que é a mais poderosa profecia do que
chamamos pós-modernidade, sobretudo em religião, essa fusão de templo, teatro e mercado centrada na
potencialização subjetiva.
c) Max Weber é uma referência importante por ter se tornado mestre de escola no campo da sociologia
da religião. Dele queria sublinhar, para o nosso caso, três elementos: primeiro, que a religião é considerada uma
necessidade humana junto às demais necessidades. Ou seja, não é ideologia de poder ou de mascaramento da
crueza do real, mas uma realidade em si mesma, que se conjuga com as demais necessidades e valores
humanos. Em segundo lugar, a religião se expressa em mensagens que vão desde mensagens místicas e
proféticas até mensagens canônicas e institucionais. E terceiro, ligado ao que é mais conhecido em Max Weber,
diante das diferentes possibilidades de mensagens e das que existem de fato, há uma seleção das mensagens e
das formas de religião que mais se coadunam com o conjunto das necessidades e valores, formando uma
totalidade coerente. As mensagens, vindas dos três níveis: o místico, o comunitário ou o institucional, podem ser
de caráter “estabilizador” e conservador, mas podem ser – e mais freqüentemente são - também de caráter
libertador e revolucionário enquanto profético, como nas atitudes originais de Moisés, Jesus e Maomé. O que
diferencia Max Weber dos sociólogos e antropólogos que nomearei em seguida, conforme o meu conhecimento
e para o nosso assunto, é que, para ele, há necessidades e expressões especificamente religiosas 3.
d) Émile Durkheim não entende a esfera ou área religiosa como algo em si mesma, distinta de outros
elementos da sociedade e da cultura. Não é um dos elementos culturais, mas é a vitalidade que dá vida e
coerência a todos os elementos culturais. É aqui que entra a expressão “alma”: “Para Durrkheim, “alma” e
“corpo” são metáforas para a formação tanto da subjetividade humana como para a sociedade, e essa condição
dual se perpetua desde as formas mais elementares até na mais sofisticada e secularizada sociedade” 4. O dual
“sagrado-profano” diz respeito ao todo e às partes. O “sagrado” é a precedência do todo e a integração das
partes no todo. Sem algo de “sagrado”, ainda que seja o “ individualismo moderno” enquanto “sagrado geral” de
toda uma cultura individualista, não há como manter uma sociedade com ações recíprocas e complementares.
Numa direção semelhante está Marcel Mauss, sobretudo no seu Essais sur le don, de 1924. A sociedade é fruto
de alianças, que se concretizam através de dons, que, por sua vez, são prescrições sagradas, amparadas pela
narrativa mítica, pela memória e pelo ritual. Marcel Mauss mantém, ao contrário do que faria Levy Strauss, uma
distinção clara entre mercado e gratuidade do dom como entre profano e sagrado. Mas, como seu tio Durkheim,
se trata de polarizações da sociedade e não de realidades distintas. Ambos partem preferencialmente de
sociedades onde a religião é marcadamente xamanística e animista, sem a sofisticação das religiões trans-étnicas
como as conhecemos. Enfim, numa direção semelhante também poderíamos examinar a posição de Victor
2
Cf DELUMEAU Jean, De religiões e de homens. Sâo Paulo, Loyola, 2000, p10-15.
3
“Weber é o único que, sem negar a profunda interação entre a realidade econômica e a religão, parte do princípio que o fenômeno religioso tem vida
própria. Cf. GOMES Alexandre, A seleção natural das religiões, p2. http://resenhas.sites.uol.com.br/gen0072.htm
4
OLIVEIRA Augusto César Freitas de, A modernidade e a sociologia em Émile Durkheim. In: Comum, Rio de Janeiro, vol.6, n.16, p159-173, jan/fev 2001.
Turner, fora do âmbito francês, sobretudo em suas pesquisas em torno de “estrutura e anti-estrutura”, entre
sociedades e communitas5, o espaço humano em que se administra o cotidiano, do lado da estrutura social, e o
espaço em que se está disponível para a experiência de comunhão na gratuidade do sagrado, do lado da
communitas. A religão guarda o segredo desta experiência.
5. O privilégio ético da cultura como face, palavra, obra e religião: a cultura entre o sacrifício e a
misericórdia:
Tornou-se conhecido, ultimamente, o axioma de René Girard sobre a gênese da religião: o sacrifício. Esse
enigma se resolveria ou se complicaria assim: Toda cultura provém da religião e toda religião provém do
sacrifício. E o sacrifício é resultante de um acordo sobre o desejo mimético que inquieta e afeta todo humano.
Deuses e demônios, espíritos e assombrações de mortos seriam a sofisticação de relações miméticas, de
fascinação, de poder e de apropriação, de guerras entre gêmeos inimigos. Esse axioma pode ser encontrado
sobretudo em sua obra mais divulgada, A violência do Sagrado11. Mas o reencontro com a Escritura hebraica e
cristã obrigou René Girard a completar sua teoria com a gênese da religião na misericórdia, na compaixão que se
expressa ativamente em favor da vida de outros. Praticamente, trata-se da cultura e da religião de ídolos ou da
cultura e da religião do Deus vivo. Aqui está um dilema ético, tanto para a religião como para a cultura.
A cultura, a despeito de todo reducionismo – psicanalítico, sociológico, historicista – provém do envio à
mútua edificação no âmbito criativo do mistério. Não encontro forma melhor para expressar o momento
transcendente e construtivo da cultura depois de toda desconstrução. É o movimento que começa no pôr-se de
11
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
face e hospedar a quem visita abruptamente de face: começa na posição face a face, desde o xamanismo até as
iniciativas éticas em sociedades modernas. E o que é estar face a face? É acolher e dirigir uma saudação, uma
palavra. É dar uma palavra que é pura palavra, a palavra de honra, sem apoio em nada mais. É estender a mão, o
pão e a casa: é cultura como dom e hospitalidade. Parafraseando Levinas, a ética é a cultura primeira12. É
também a ótica da experiência religiosa, da comunhão com o Mistério, de quem se desenha muitas faces e se
nomeia com muitos nomes, os que culturalmente são tecidos nas relações verdadeiramente éticas,
humanamente construtivas: aí está a religião, ou aí está Deus.
Diante do outro, porém, a condição ética de toda relação cultural é verdadeira quando se faz também a
experiência em sentido contrário: apresentar-se com a nudez e a fragilidade de quem, desastrado de tudo o
mais, tem só uma palavra de honra para pedir hospitalidade, abraço e pão, sem apoio em nada mais, sem
mesmo algum recurso cultural. A ética como cultura primeira supõe esta desapropriação ou desontologização
cultural, este “desenraizamento ontológico” de quem sabe que vive a partir de outro, experiência mais radical do
que a lateralidade cultural proposta por Merleau-Ponty. No princípio da cultura e da pluralidade de culturas está
esta experiência do puro face-a-face. Então se está pronto para o pluralidade de culturas sem disseminação e
sem desorientação de sentidos – a face é o ponto de orientação - e se está pronto para o diálogo na
interculturalidade, um diálogo na retidão da face, diálogo de mãos, de obras e dons, de palavras e de cânticos,
em que cada um pode falar e entender em sua língua.
Em conclusão, pode-se continuar afirmando que a religião é a alma da cultura, mas há um evento
anterior à própria religião, que a constitui, um tertium da relação entre religião e cultura, que qualifica
eticamente tanto a religião como a cultura, que é a relação à alteridade em sua nudez e transcendência. Sem a
autenticidade desta relação, toda religião se torna idolátrica e toda cultura, consequentemente, é de guerra e
morte. No acolhimento – primeira obra da misericórdia – e no reconhecimento e socorro da alteridade está a
religião viva que anima toda obra cultural.
12
Cf. LÉVINAS Emmanuel, Totalité et infini.Essai sur l’exteriorité. La Haye: Nijhoff,1974, 4.ed. p281