Sunteți pe pagina 1din 7

A religião é a alma da cultura – em que sentido?

Prof. Dr. Luiz Carlos Susin


PUCRS/ESTEF

O título desta conferência, inspirado em Formas elementares de vida religiosa, de Émile Durkheim, (Rio:
Martins Fontes, 1996), pode, desde sua enunciação, sofrer interpretações diversas. Exatamente por isso pode
ser uma encruzilhada para investigações interdisciplinares. Evidentemente, a amplidão e as aberturas que o
título possibilita obrigam também a um cuidadoso rigor metodológico para não decair na dispersão e na
simplificação. Por isso desenvolvo dois pontos prévios com delimitações semânticas de religião e de cultura,
para, num terceiro, percorrer, de forma mais sistemática possível, através de uma reflexão interdisciplinar, a
relação entre cultura e religião através da categoria de “alma”, o que também exigirá uma razoável explicação.

1. Discernimento em diferentes enfoques do fenômeno religioso.


O conceito de “religião” é tão abrangente que arrisca perder-se na abstração e na pobreza de qualquer
concretude, ou tornar-se inoperante na pluralidade de conotações. Da religião se pode dizer o que Santo
Agostinho disse do tempo: “Se não me pergunta, sei; se me perguntam, já não sei!” Por isso, embora seja útil
percorrer os enfoques importantes para a relação com a cultura, se impõe a escolha do que melhor corresponda
à experiência religiosa e melhor a signifique. Há ao menos dois pontos de partida que aqui nos interessam: a
teologia e as ciências humanas.
1.1. Desde a teologia, a religião pode ser visitada “por dentro”, e este é um privilégio da teologia,
mesmo para tempos em que, tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista religioso, por razões
históricas diferentes, esteja no limbo. É que a teologia é a linguagem da fé religiosa. Mesmo em sua objetividade
conceitual, como no caso da tradição ocidental, a teologia é uma forma da sabedoria religiosa, uma elaboração
da experiência religiosa vivida e expressa culturalmente. Não importa tanto se a experiência religiosa tem a
simplicidade e a força do xamanismo, do êxtase, do sagrado animista ou psíquico, ou se tem a complexidade
estrutural das religiões hierarquizadas, codificadas, institucionalizadas. A sabedoria da qual faz parte a teologia
permite, numa metáfora, que sejamos pegos pela mão e conduzidos para dentro da experiência, no jardim
fascinante e também perigoso da espiritualidade. Ela tem um caráter iniciático, mistagógico 1.
1.2. Desde as ciências humanas, na Europa marcada pelo cristianismo, desenvolveu-se, sobretudo a
partir do século XIX, à medida em que a teologia era delimitada às comunidades confessionais, um método de
aproximação à religião com os instrumentos objetivantes das ciências e da racionalidade filosófica moderna de
tipo cartesiano ou kantiano. Assim, temos a aproximação da filosofia da religião, da sociologia da religião, da
psicologia da religião, da antropologia cultural. Esta última se manifestou extremamente rica, mas as fronteiras
entre antropologia cultural, sociologia e psicologia permaneceram numa fecunda imprecisão. Vale a pena
lembrar algumas características mais marcantes desse caminho:
a) Há uma tradição que tem em Feuerbach, sobretudo em seu a essência do cristianismo, uma
concepção antropologizante de religião: Deus é, ao mesmo tempo, criação do homem e inversão sublimada do
homem. Marx e toda a crítica marxista, na esteira de Feuerbach e numa dialética hegeliana invertida, iriam
estreitar a religião para uma função ideológica conservadora das classes econômicas e culturais hegemônicas,
portanto dissolvendo-a não apenas na antropologia, mas na estrutura econômica da sociedade hierarquizada. A
religião tem um papel ideológico de legitimação e de “amortecedor” dos conflitos sociais, o famoso “ópio” e a
mais sublime alienação. E Deus é “o coração de uma sociedade sem coração”, o consolo da fantasia no meio da
crueldade social. Também Freud, pelo viés da psique humana, reduz a religião a uma situação patológica, a um
arranjo neurótico para suportar a existência ameaçada e, no estágio mais crítico de Freud, para manter o
narcisismo contra a realidade. Não vamos nos delongar em análises de conceitos bastante batidos, mas apenas

1
Nesse mesmo sentido, toda catequese e toda homilia podem ser consideradas teologias facilitadoras e meditações iniciáticas.

1
acenar para o fato de que todos esses autores de referência ocidental partem de um ambiente
predominantemente cristão e judeu em processos de secularização mas sempre supondo-se acriticamente
superior a qualquer outra forma de religião, e buscando na secularidade e na autonomia, no progresso e na
emancipação, o sentido último que poderia ter o ser humano. Nesse sentido, tratou-se de um humanismo crítico
da religião, com concepções reducionistas. Marx não conseguiu pensar, por exemplo, como Roger Garaudy e os
fundadores da Teologia da Libertação, nos aspectos eventualmente revolucionários da religião, nem Freud nos
aspectos libertadores e saudáveis a que uma prática religiosa saudável conduz. Jean Delumeau conclui que este
processo desconstrutivo e redutor acabou por produzir uma ruptura do Ocidente com seu patrimônio religioso,
uma perda de memória, sem renunciar ao preconceito de superioridade. Pelo contrário, na secularidade se quis
assegurar ainda mais superioridade, mas sem o sentido que a memória e o patrimônio religioso sustentariam 2.
b) Nietzsche merece um destaque pela sua originalidade vertiginosa, pelo paradoxo a que conduz a
experiência religiosa, na declaração da morte de Deus e no estímulo ao Homem, com letra maiúscula, a ocupar
este espaço, algo tão estonteante que levou coerentemente Nietzsche à loucura. Também é bem conhecido o
dramático caminho percorrido pelo filósofo da vontade de poder. Religião é uma questão de poder e de libido,
talvez, dizendo melhor, de poder libidinoso, de luxuria transcendental, na fusão de Dionísio com Apolo. A
importância de Nietzsche se põe hoje, de novo, na medida em que é a mais poderosa profecia do que
chamamos pós-modernidade, sobretudo em religião, essa fusão de templo, teatro e mercado centrada na
potencialização subjetiva.
c) Max Weber é uma referência importante por ter se tornado mestre de escola no campo da sociologia
da religião. Dele queria sublinhar, para o nosso caso, três elementos: primeiro, que a religião é considerada uma
necessidade humana junto às demais necessidades. Ou seja, não é ideologia de poder ou de mascaramento da
crueza do real, mas uma realidade em si mesma, que se conjuga com as demais necessidades e valores
humanos. Em segundo lugar, a religião se expressa em mensagens que vão desde mensagens místicas e
proféticas até mensagens canônicas e institucionais. E terceiro, ligado ao que é mais conhecido em Max Weber,
diante das diferentes possibilidades de mensagens e das que existem de fato, há uma seleção das mensagens e
das formas de religião que mais se coadunam com o conjunto das necessidades e valores, formando uma
totalidade coerente. As mensagens, vindas dos três níveis: o místico, o comunitário ou o institucional, podem ser
de caráter “estabilizador” e conservador, mas podem ser – e mais freqüentemente são - também de caráter
libertador e revolucionário enquanto profético, como nas atitudes originais de Moisés, Jesus e Maomé. O que
diferencia Max Weber dos sociólogos e antropólogos que nomearei em seguida, conforme o meu conhecimento
e para o nosso assunto, é que, para ele, há necessidades e expressões especificamente religiosas 3.
d) Émile Durkheim não entende a esfera ou área religiosa como algo em si mesma, distinta de outros
elementos da sociedade e da cultura. Não é um dos elementos culturais, mas é a vitalidade que dá vida e
coerência a todos os elementos culturais. É aqui que entra a expressão “alma”: “Para Durrkheim, “alma” e
“corpo” são metáforas para a formação tanto da subjetividade humana como para a sociedade, e essa condição
dual se perpetua desde as formas mais elementares até na mais sofisticada e secularizada sociedade” 4. O dual
“sagrado-profano” diz respeito ao todo e às partes. O “sagrado” é a precedência do todo e a integração das
partes no todo. Sem algo de “sagrado”, ainda que seja o “ individualismo moderno” enquanto “sagrado geral” de
toda uma cultura individualista, não há como manter uma sociedade com ações recíprocas e complementares.
Numa direção semelhante está Marcel Mauss, sobretudo no seu Essais sur le don, de 1924. A sociedade é fruto
de alianças, que se concretizam através de dons, que, por sua vez, são prescrições sagradas, amparadas pela
narrativa mítica, pela memória e pelo ritual. Marcel Mauss mantém, ao contrário do que faria Levy Strauss, uma
distinção clara entre mercado e gratuidade do dom como entre profano e sagrado. Mas, como seu tio Durkheim,
se trata de polarizações da sociedade e não de realidades distintas. Ambos partem preferencialmente de
sociedades onde a religião é marcadamente xamanística e animista, sem a sofisticação das religiões trans-étnicas
como as conhecemos. Enfim, numa direção semelhante também poderíamos examinar a posição de Victor

2
Cf DELUMEAU Jean, De religiões e de homens. Sâo Paulo, Loyola, 2000, p10-15.
3
“Weber é o único que, sem negar a profunda interação entre a realidade econômica e a religão, parte do princípio que o fenômeno religioso tem vida
própria. Cf. GOMES Alexandre, A seleção natural das religiões, p2. http://resenhas.sites.uol.com.br/gen0072.htm
4
OLIVEIRA Augusto César Freitas de, A modernidade e a sociologia em Émile Durkheim. In: Comum, Rio de Janeiro, vol.6, n.16, p159-173, jan/fev 2001.
Turner, fora do âmbito francês, sobretudo em suas pesquisas em torno de “estrutura e anti-estrutura”, entre
sociedades e communitas5, o espaço humano em que se administra o cotidiano, do lado da estrutura social, e o
espaço em que se está disponível para a experiência de comunhão na gratuidade do sagrado, do lado da
communitas. A religão guarda o segredo desta experiência.

2. Discernimento em diferentes concepções de cultura


Cabe agora, depois de examinar um périplo de concepções de religião, também os variados conceitos de
cultura, na busca dos que melhor a expressem para a confrontação com religião. Para um mínimo de consenso
em torno da relação entre religião e cultura, é necessário saber com que conceito de cultura se está falando.
Marcelo Azevedo, para dar conta do neologismo inculturação, debruçou-se por anos sobre uma revisão
bibliográfica meticulosa, e elencou em torno de 230 conceitos de cultura com boa consistência! 6 Estamos,
portanto, num matagal, ou diante de uma palavra formalmente tão abrangente que arrisca permanecer vazia de
conteúdos específicos. É útil lembrar a famosa definição do antropólogo norte-americano Edward Tylor, de 1871,
que marca mais de século: “Cultura, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é o todo complexo que inclui
conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo
homem como membro de uma sociedade”7. Este tradicional conceito contempla a expressão simbólica, das
significações, mas deixa na sombra a cultura nas suas raízes mais materiais, o cultivo da terra, a relação com o
meio ambiente. O Concílio Vaticano II, ao tratar da “promoção da cultura”, na GS 53ss, enfoca privilegiadamente
este conceito, acentuando o sentido moderno do “homem como produtor da cultura”. Embora aceite da
etnografia a pluralidade de culturas, acaba por tomar a produção moderna da cultura como centro das
preocupações pastorais. Precisamos, aqui, alargar e priorizar conceitos.
2.1. O que é cultura? – privilegiando conceitos operacionais
De maneira perigosamente funcional, para o nosso objetivo, seleciono quatro abordagens possíveis de
cultura, de forma bastante simplificada:
a) Cultura como Ilustração
É o conceito “iluminista”, moderno, bastante comum de cultura como conhecimento, erudição, por
efeito de informações por meios diversos, como cursos, leituras, viagens, etc. A cultura é uma “odisséia”, fruto
da aventura e da experiência, da inquisição, da apreensão e da acumulação. Tem um caráter hierarquizador, e
torna algumas pessoas mais cultas e outras incultas, umas conhecedoras e outras ignorantes. Nessa relação,
saber é também uma forma de poder. Tudo isso é um fato, mas cria uma discrepância com o título deste texto:
alguns teriam mais interioridade e potência, mais alma e mais religião do que outros.
b) Cultura de laboratório
O melhor lugar para observar este tipo de cultura é mesmo o laboratório, desde os alquimistas.
Sintomaticamente, os laboratórios de cultura biológica, hoje altamente desenvolvidos em engenharia genética e
transgenia, são rivalizados pelos laboratórios de tecnologia informática, pela criação virtual. Há inúmeras
modalidades de laboratórios, mas todos estão assentados sobre alguns pressupostos: a cultura é uma questão
de trabalho humano que manipula, programa, constrói e visa resultados. A cultura é ciência e tecnologia, logos
da téchne, da criação saída das mãos humanas. Hoje estamos inundados por todo lado de alta tecnologia
aplicada ao nosso sistema de vida. A tal ponto que esta cultura se torna uma esfinge ameaçadora, e sobretudo
se descortina cada vez mais como uma cultura tecnológica sem alma, sem subjetividade, “pós-humana” 8. “Um
suplemento de alma”, portanto de religião, como clamava Bergson para a cidade contemporânea, parece ser o
clamor diante desta cultura.
c) Cultura de classes
5
Cf. TURNER Victor, O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. p116ss.
6
AZEVEDO Marcello de Carvalho, Modernidade e cristianismo, desafio à inculturação: um enfoque antropológico-cultural. São Paulo: Loyola, 1981.
7
Em: BOFF Leonardo, Nova evangelização. Perspectiva dos oprimidos. Petrópolis: Vozes, 1990. p19.
8
Cf SANTAELLA Lúcia, Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibernética. São Paulo: Paulus, 2003.
Este conceito radicaliza o primeiro em sua forma dialética e em seus sujeitos. Uma é a cultura das elites,
que é uma cultura hegemônica, detentora de meios poderosos de difusão e de massificação por um lado, e por
outro lado capaz de elaborar as distinções para a sua auto-preservação como elite. Outra é a cultura das classes
subalternas, a cultura popular. Somente em sociedades aparentemente simples, nos limites de uma vida
comunitária, de aldeia ou tribo, este conceito seria irrelevante. Na globalização contemporânea, este conceito
pode ser categoria analítica inclusive para as relações internacionais, onde há G8, o grupo dos países ricos, e
onde há países emergentes e outros dos quais não se diz o nome, porque simplesmente estão imersos e passam
a não existir na cena internacional. Em termos de culturas dominantes e de culturas subalternas, pode-se já
discorrer sobre a condição da religião em cada lugar: a religião do Faraó, Filho do Sol, e a religião dos pobres de
Javé.
Merece uma atenção cuidadosa a cultura popular, que se expressa, ao menos aparentemente, com
meios mais frágeis e, pela condição de subalternidade, sofre de “envergonhamento”, uma vergonha que, uma
vez internalizada a partir do juízo e da posição da cultura hegemônica, oculta sua razão e sua vitalidade, inclusive
sua forma de religião.
d) Cultura sistêmica
Este conceito veio sendo elaborado pela etnologia e pela antropologia cultural. Aqui se ousa misturar os
resultados de Max Weber e de Émile Durkheim. Trata-se de encarar a cultura como um sistema multirreferencial
de subsistemas que se organizam formando um sistema coerente, cuja metáfora melhor talvez seja um corpo
vivo. Para encontrar um exemplo de cultura sistêmica e para conhecê-la convém se voltar para culturas
tradicionais e proceder analogicamente aos princípios de indeterminação e de complementaridade da física
quântica9: primeiro detectar a sua posição de forma extática e só num segundo momento os seus processos e
movimentos, o seu tempo e a sua história. Podemos sinalizar três constelações ou subsistemas:
1. O subsistema material, em que a vida humana está imersa no meio, no ecossistema, adaptando-se a
ele e adaptando-o a si, cultivando-o para conseguir alimento, abrigo, remédio, etc. É a constelação do “Pão”.
2. O subsistema social, em que a vida humana está imersa na teia de relações humanas, no parentesco,
entre o familiar e o estranho, na comunidade ou na polis, no companheirismo do trabalho e da festa, na amizade
ou inimizade, na ambigüidade da concorrência e do dom. É a constelação do “Outro”.
3. O subsistema simbólico, em que a vida humana se expressa em muitas formas de linguagens e se
organiza através delas. Nela pode acontecer uma exuberância menor ou maior de sub-constelações: formas de
arte, de literatura e sabedoria, de direito, de rituais e narrativas míticas. É a constelação da “Palavra”.
Como sugeri anteriormente, os subsistemas se interrelacionam tornando-se causantes uns dos outros,
num processo complexo. O sistema cultural é um processo vivo, portanto aberto e histórico, capaz de aprender e
de ensinar, de assimilar de outros sistemas culturais, de incorporar e de dar de si, sem por isso necessariamente
se sentir agredido ou lesado. Pelo contrário, as culturas se enriquecem e se vitalizam com outras e se
transformam tanto em processos internos como em processos de relacionamentos. Por isso há transversalidades
e processos históricos que um mapa teórico ou um momento extático da cultura não consegue identificar.
Mesmo assim podemos nos perguntar se realmente existem hoje culturas sistêmicas que não estejam sofrendo
de fragmentação sob o impacto da globalização que veio se acelerando desde o século XVI.
3. Misturando: o mix e o caldo caótico cultural contemporâneo
Ao contrário, constatamos hoje, mais do que em qualquer outro tempo, com a hegemonia da
modernidade e da pós-modernidade aceleradas por toda parte, a condição e as relações problemáticas das
culturas, agonizando em suas almas, conforme os diferentes conceitos acima descritos. O lugar privilegiado
desta constatação é a grande cidade moderna, a condição urbana que conecta a si globalmente todos os espaços
e também dilui todos os espaços, com a hegemonia dos meios de cultura de massa e da cultura tecnológica nas
9
Segundo os princípios de indeterminação e de complementaridade traçados pelos físicos Werner Heisenberg e Niels Bohr na década de vinte, não se
pode determinar e por isso conhecer ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula; da mesma forma, não se pode conhecê-la ao mesmo
tempo como partícula e como onda. No entanto, é necessário pensar os dois sistemas como complementares, embora não possam ser unificados num
único sistema.
mãos de elites poderosas pouco identificáveis, a fragmentação e a promiscuidade cultural, o empobrecimento e
o mimetismo nas enormes periferias que tornam as grandes cidades do terceiro mundo todas parecidas na
estética do caos, segundo as observações do “fotógrafo dos povos em agonia”, Sebastião Salgado.
E, apesar do mimetismo na subalternidade e do envergonhamento de traços culturais tradicionais
resistentes mas fragmentados nos meios populares, há uma luta contínua por sistematização, por uma certa
Gestalt, ainda que precária e provisória, que torne a vida coerente e comunicável.
“Pluralismo cultural” tornou-se, hoje, além de um clamor, também um direito de dignidade, de
reconhecimento de existência, sobretudo a partir das minorias culturais de todo tipo. É quase escandaloso fazer
objeções. No entanto, no nível da cultura, assim como a experimentamos hoje, exaltar o pluralismo e a
interculturalidade pode se tornar uma cilada. Levinas observava que “a sarabanda de culturas inumeráveis e
eqüivalentes, cada uma se justificando em seu próprio contexto, cria um mundo, certamente, des-
ocidentalizado, mas também um mundo desorientado” – é impossível evitar, segundo Levinas – uma
“disseminação de sentidos” que, além de desorientação, leva ao vazio de qualquer real sentido 10. Mas penso que
há algo ainda mais trágico rondando nossa cultura, comparável ao braço de ferro da ALCA, a criação da Área de
Livre Comércio das Américas. Já constatava a teoria da dependência que corpos de igual peso econômico, ao
entrarem em contato, criam interdependências, mas corpos com desigual peso econômico só criam
dependências, com o séquito de desequilíbrios que tendem a piorar a situação de uns enquanto parecem
melhoram momentaneamente a de outros, dos mais poderosos. De certa forma isso vale culturalmente também
para os franceses que dançam na televisão as danças do Tahiti de forma mais deslumbrante do que as próprias
tahitianas. É o simulacro como cultura, a fotografia mais bonita do que o original de carne e osso, uma cultura
sem alma! A cultura precisa de um “suplemento de alma” que a torne inapropriável para que possa ser,
inclusive, um dom e não uma exposição à violação e à predação. Essa alma habita os sujeitos, criaturas e
criadores de cultura ao mesmo tempo, é sua transcendência que transparece na imanência cultural, mas não é
redutível à imanência.

4. A cultura como expressão de transcendência humana: Religião como “alma” da cultura


É necessário arriscar a busca de uma instância não só interior, mas também anterior à cultura – avant la
culture, é a expressão de Levinas – que não significa uma anterioridade cronológica ou ontológica, mas uma
transcendência. Precisamos, de novo, da analogia do princípio de indeterminação na física quântica: a posição
desta anterioridade é, numa primeira análise, uma certa abstração que está além de toda cultura, de toda
historicidade, de todo sistema, de toda relação justa ou injusta, numa nudez absoluta, transcendente – a nudez
da face, a ficarmos com a lição de Levinas. Trata-se da condição humana como pura transcendência, como a
Idéia de Bem em Platão. Somente a retidão da justiça, cujo primeiro movimento é o do “reconhecimento” e a
exigência da obra como resposta e responsabilidade cultural que o reconhecimento pede – seja o
reconhecimento da “Altura” que inclina à homenagem e à adoração, seja o reconhecimento da “Nudez” que
inclina ao socorro, é capaz de unir cultura e transcendência no humano. Aqui Liturgia e Ética, com suas
expressões culturais, são o mesmo, e talvez possamos compreender melhor que a religião é a alma da cultura.
O conceito de “alma” precisa ser aqui retomado: Segundo Aristóteles e Tomás de Aquino, a alma não é
propriamente uma subjetividade espiritual, mas é “a forma do corpo”(anima corporis forma) e “formalmente
todas as coisas” (anima quaemadmodum omnia)Portanto, a realidade do sujeito é a inteireza de corpo e alma,
substância comunicativa, matéria e forma. Esse sujeito não é só individualidade, mas comunidade, coletividade,
que ganham inteireza quando têm uma alma e são um corpo, como se diz de um corpo diplomático ou um corpo
docente ou ainda um corpo médico: todos têm uma só alma, pois só assim são um só corpo.
A Nouvelle Théologie e praticamente toda a teologia do século XX, marcada por figuras como Maurice
Blondel e suas conexões na Action, fez um esforço de unificação entre transcendência e história, entre revelação
e culturas, entre a experiência da graça e da salvação e as experiências culturais de relações humanas, de política
e da militância. As teologias católicas francesa e alemã, desde De Lubac até Karl Rahner, e a teologia protestante
10
LEVINAS Emmanuel, Humanisme de l’autre homme. Montpellier: Fata Morgana, 1972, p 55.
com Oscar Culmann, Pannenberg e outros da “Revelação como História”, até Jürgen Moltmann, buscaram
apaixonadamente a articulação das categorias de imanência e de transcendência, mundo e Deus, secularidade e
mística. Basta lembrar as categorias rahnerianas de “existencial sobrenatural” e de “ouvinte da Palavra”, que une
o que há de melhor na escolástica tomista e na antropologia de Heidegger, como também na tradição católica de
“sacramentalidade”. A Teologia da Libertação, desenvolvendo as intuições e as expressões do documento de
Medellín, do episcopado latino-americano reunido naquela cidade da Colômbia em 1968, seguem
vigorosamente por este caminho: não há duas histórias e dois planos da realidade, mas uma só, constituída de
eventos, de revelações e interpretações.
A saída do impasse do dualismo que rondou e continua ameaçando a cultura ocidental, inclusive a
moderna e a pós-moderna, não está numa redução à unidade, num monismo sem diferenças, mas no recurso ao
“terceiro excluído”, precisamente o tertium non datur dos primeiros princípios da lógica e da ontologia que
regem a cultura do Ocidente. É necessário um Tertium, que ao mesmo tempo em que integre e unifique todo
dual respeitando e permitindo cada elemento ser em sua plenitude, também torne todo dual fecundo e aberto.
O Terceiro é o começo da pluralidade e da comunhão sem redução. Aqui, utilizaremos, para a articulação de
imanência e transcendência, a terceira categoria, a transparência.
A categoria de transparência, utilizada insistentemente por Leonardo Boff em seus últimos escritos para
a linguagem da ecologia, mas ainda escritos devedores de sua tese doutoral sobre a experiência antropológica
da sacramentalidade, na esteira do pensamento de Karl Rahner, pode nos ajudar no momento seguinte, ao
reconduzirmos a abstração levinasiana da face em sua nudez ao corpo de carne e osso e a tudo que ressoa
culturalmente. A transcendência humana se expressa na transparência em sua própria imanência, e esta
transparência está na cultura, é cultura. Tomemos então a cultura como expressão e transparência imanente da
transcendência. Desde quando cultiva o chão para semear até quando entoa o cântico mais refinado. É esta
transcendência que se expressa em etnia, em gênero, em geração, em companhia, em profissão, em literatura e
ciência, em criatura e criador.
No entanto, o mesmo sujeito transcendente capaz de se tornar presente culturalmente, de se encarnar e
se pôr numa relação de cultivo, de cultura e de culto, por sua própria condição transcendental é capaz de se
rebelar diante do sistema, da hegemonia, e de se ocultar, de resistir, de se recolher num fragmento e esperar por
tempos propícios. Toda cultura tem uma inspiração e uma destinação mística e ética, e quando a ética é ferida,
como no caso de Caim, pai dos construtores, dos conquistadores e dos tocadores de flauta, a violência cultural
não alcança inteiramente a fragilidade de Abel, recolhida na transcendência, na resistência mística, enigma das
religiões. A categoria de “alteridade”, assim como foi ensinada por Levinas, precede e dá dignidade ao pluralismo
cultural. Em última instância, é sua “alma”: a religião é o outro.

5. O privilégio ético da cultura como face, palavra, obra e religião: a cultura entre o sacrifício e a
misericórdia:
Tornou-se conhecido, ultimamente, o axioma de René Girard sobre a gênese da religião: o sacrifício. Esse
enigma se resolveria ou se complicaria assim: Toda cultura provém da religião e toda religião provém do
sacrifício. E o sacrifício é resultante de um acordo sobre o desejo mimético que inquieta e afeta todo humano.
Deuses e demônios, espíritos e assombrações de mortos seriam a sofisticação de relações miméticas, de
fascinação, de poder e de apropriação, de guerras entre gêmeos inimigos. Esse axioma pode ser encontrado
sobretudo em sua obra mais divulgada, A violência do Sagrado11. Mas o reencontro com a Escritura hebraica e
cristã obrigou René Girard a completar sua teoria com a gênese da religião na misericórdia, na compaixão que se
expressa ativamente em favor da vida de outros. Praticamente, trata-se da cultura e da religião de ídolos ou da
cultura e da religião do Deus vivo. Aqui está um dilema ético, tanto para a religião como para a cultura.
A cultura, a despeito de todo reducionismo – psicanalítico, sociológico, historicista – provém do envio à
mútua edificação no âmbito criativo do mistério. Não encontro forma melhor para expressar o momento
transcendente e construtivo da cultura depois de toda desconstrução. É o movimento que começa no pôr-se de
11
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
face e hospedar a quem visita abruptamente de face: começa na posição face a face, desde o xamanismo até as
iniciativas éticas em sociedades modernas. E o que é estar face a face? É acolher e dirigir uma saudação, uma
palavra. É dar uma palavra que é pura palavra, a palavra de honra, sem apoio em nada mais. É estender a mão, o
pão e a casa: é cultura como dom e hospitalidade. Parafraseando Levinas, a ética é a cultura primeira12. É
também a ótica da experiência religiosa, da comunhão com o Mistério, de quem se desenha muitas faces e se
nomeia com muitos nomes, os que culturalmente são tecidos nas relações verdadeiramente éticas,
humanamente construtivas: aí está a religião, ou aí está Deus.
Diante do outro, porém, a condição ética de toda relação cultural é verdadeira quando se faz também a
experiência em sentido contrário: apresentar-se com a nudez e a fragilidade de quem, desastrado de tudo o
mais, tem só uma palavra de honra para pedir hospitalidade, abraço e pão, sem apoio em nada mais, sem
mesmo algum recurso cultural. A ética como cultura primeira supõe esta desapropriação ou desontologização
cultural, este “desenraizamento ontológico” de quem sabe que vive a partir de outro, experiência mais radical do
que a lateralidade cultural proposta por Merleau-Ponty. No princípio da cultura e da pluralidade de culturas está
esta experiência do puro face-a-face. Então se está pronto para o pluralidade de culturas sem disseminação e
sem desorientação de sentidos – a face é o ponto de orientação - e se está pronto para o diálogo na
interculturalidade, um diálogo na retidão da face, diálogo de mãos, de obras e dons, de palavras e de cânticos,
em que cada um pode falar e entender em sua língua.
Em conclusão, pode-se continuar afirmando que a religião é a alma da cultura, mas há um evento
anterior à própria religião, que a constitui, um tertium da relação entre religião e cultura, que qualifica
eticamente tanto a religião como a cultura, que é a relação à alteridade em sua nudez e transcendência. Sem a
autenticidade desta relação, toda religião se torna idolátrica e toda cultura, consequentemente, é de guerra e
morte. No acolhimento – primeira obra da misericórdia – e no reconhecimento e socorro da alteridade está a
religião viva que anima toda obra cultural.

12
Cf. LÉVINAS Emmanuel, Totalité et infini.Essai sur l’exteriorité. La Haye: Nijhoff,1974, 4.ed. p281

S-ar putea să vă placă și