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Argemiro J. Brum

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O DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO
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Catalogação
Biblioteca Central 22' Edição
B893d Brun:i, Argemiro J.
O desenvolvimento econômico brasileiro /
lro1 •IJr. • fo111,,
Argemiro J. Brum. -- 20.ed. - Jjui: Ed. UNlJUI,
1999. -- 571 p. :YolatJd8 7717 @111 V. Abrsu
otllJaO,co
ISBN: 85.326.0220-7
!.Economia brasileira 2.Desenvolvimento eco-
nômico 3.Capitalismo internacional 4.Modelo VOZES
Petrópolis - RJ
econômico !.Titulo.
em co-edição com a
CDU: 330.342.14(81) EDITORA UNIJUI
330.34 ljui - RS
2002
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O Modelo Econômico i! ,
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Primário-Exportador (1500-1930) 1

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Durante quatro séculos o Brasil permaneceu mergulhado na si- ji


tuação colonial. Nos primeiros trezentos anos, esteve vinculado a Por-
tugal, na condição de Colônia. A partir da vinda da Familia Real Portu-
guesa (1808) e da Independência (1822), estabeleceram-se laços de
dependência mais profundos e diretos com a Inglaterra - sobretudo
econômicos e financeiros. i
Nesse longo período da história brasileira, os interesses da clas- 1

se senhorial, representando apenas cerca de dois por cento da socieda-


de; dominaram o cenário do país. O poder econômico e o poder polí- 1

tico estiveram concentrados, de fato, e de forma quase absoluta, nas 'j:


mesmas pessoas: os senhores de terras (latifundiários). Secundavam 1'
esse poder os grandes comerciantes, dedicados à exportação e impor- ,1

tação ou ao tráfico de escravos, estabelecidos nas principais cidades-


portos do litoral - principalmente Recife, Salvador, Rio de Janeiro e
Santos.
Articulados com os interesses econômicos dos centros
hegemônicos mundiais, dos quais dependiam, os senhores de terras,
coadjuvados pelos grandes comerciantes e traficantes, controlavam a /:li
sociedade, refletindo, no plano interno, a dominação internacional de d
poucos sobre muitos. No período colonial, os prepostos da Coroa exer- :
ceram o poder polífico formal, sobretudo na Capital (Salvador, de 1549 . f:
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a 17 63, e Rio de Janeiro, deste último ano em diante) e na região da 1
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Nem a emancipação política, nem a abolição da escravatura, Neste capítulo b.'isca-se resgatar, de forma sintética, aspectos
nem a proclamação da República abalaram o domínio da aristocracia relevantes desse período da história brasileira (1500-1930), os quais
rural. Também não o conseguiram abalar as inúmeras revoltas e mani- devem ser percebidos no contexto mundial de cada etapa.
festações de caráter popular e revolucionário que eclodiram em dife-
rentes momentos e locais.
Os mais importantes movimentos foram: os inúmeros quilombos, 2.1 - O Projeto de Portugal na América
com destaque para o de Palmares, em Alagoas, no século XVII; as
tentativas de revoltas de escravos, sendo talvez a principal o Levante d,a O descobrimento oficial da nova terra, que viria a ser o Brasil, foi
Escravos da Bahia, em 1835; a Inconfidência Mineira, em Minas Ge, · fruto da expansão marítima e mercantil da Europa, com Portugal na
rais, em •l 789; a Conjuração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798; a vanguarda desse movimento. O móvel das grandes navegações e dos
Revolução Pernambucana de 181 7; a Confederação do Equador, em · grandes descobrimentos foi o comércio, ou mais precisamente os lu-
Pernambuco e outras províncias do Nordeste, em 1824; a Cabanagem, cros que ele poderia proporcionar. Em Portugal, país católico, o objeti-
no Pará, em 1835-1840; a Sabinada, na Bahia, em 1837-1838; a vo oficialmente definido era "dilatar a Fé e o Império". Na prática, mais
Balaiada, no Maranhão, em 1838-1841; a Revolução Farroupilha ou o Império do que a Fé.
Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, em 1835-1845; a Praiei- As novas terras descobertas, usurpadas a seus habitantes nati-
ra, em Pernambuco, em 1849; Canudos, na Bahia, em 1893; Contes- vos, tornaram-se propriedade dos respectivos reis das metrópoles eu-
tado, na região da divisa entre Santa Catarina e Paraná, em 1912- ropéias, que passaram a delas dispor a seu bel-prazer ou de acordo
1915; o movimento liderado pelo padre.Cícero, no Ceará, por vários com os interess"es e as circunstâncias de cada momento histórico. O
anos, a partir de 1913 - entre muitos outros. comércio transoceânico entre as metrópoles e suas colônias, a par do
Essas revoltas - reveladoras de gritantes desigualdcldes e de certo tráfico de escravos, tornou-se a atividade mais rentável - para a Coroa
grau de consciência delas - foram movimentos isolados. Representa- e para. os comerciantes que recebiam o beneplácito das concessões
vam, ora interesses locais ou regionais das populações deserdadas para exercerem essa atividade mercantil. Assim, instituíram-se o
sem perspectivas na estrutura dominada pelo latifúndio e pelas oligar- colonialismo e o mercantilismo, que por três séculos determinaram a
quias estaduais, ora os ideais de independência ou de oposição orientação da economia e a vida da sociedade em formação.
centralismo político-administrativo do Império. Fracamente articuladas, O Brasil foi uma Colônia oficial, isto é, a conquista e a ocupação
não conseguiram abalar a estrutura de privilégios de uma minoria res- do território foram dirigidas oficialmente pelo governo português. E !I
trita da sociedade, nem o poder centralizado do Estado unitário. Tam- processaram-se, ao longo de três séculos, sob a influência dominante
bém não chegaram a ameaçar de ruptura os vínculos de dependência dos interesses do capitalismo mercantil.
em relação aos centros hegemônicos de poder mundial. Foram invari- O mercantilismo, embora apresentasse variações de país a país
avelmente combatidas e esmagadas com rigor, em nome da ordem e de período a período, compreendia normas e concepções gerais de
vigente e da unidade nacional, sem que os detentores do poder e dos política econômica que pressupunham "uma ampla intervenção do
privilégios se preocupassem em remover as causas profundas que leva- Estado, seja assumindo diretamente certas atividades econômicas, seja
vam à eclosão de tais movimentos. criando condições favoráveis a determinados grupos para alcançar os
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Numa sociedade marcadamente elitista, tais movimentos foram, objetivos visados". Partia do principio de que só podia haver ganho de 1

com uma ou outra exceção, ignorados ou apresentados de forma um Estado quando ocorria prejuízo de outro. E o ganho para si devia ,.
1

distorcida na história oficial e nos livros didáticos. Apenas recentemen- ser obtido atraindo e retendo "a maior quantidade possível do estoque '

te se começou a conferir-lhes cidadania, por força de pesquisas mais mundial de metais preciosos". Isso requeria: a) a redução ou proibição
sérias e profundas que buscam compreendê-los no contexto global em · de entrada de produtos manufaturados estrangeiros e a criação de faci-
que ocorreram e interpretar-lhes o significado na formação brasileira. liçlades ao ingresso de matérias-primas; e b) a proibição ou limitação da

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saída de matérias-primas produzidas no país e o estímulo à exportação No contexto global em que se processou a ocupação do Brasil, o
de produtos manufaturados, com maior valor agregado, à medida que objetivo central a que obedeceu todo o esforço colonizador português
pudessem concorrer com vantagem no mercado internacional (Fausto não foi no sentido da criação aqui, de uma nova sociedade - uma
1

1995, p. 55). ' sociedade para si -, lançando para tanto as bases e criando as condi-
ções para que a Colônia se tornasse, dentro de um prazo razoável, uma
Outra dimensão do mercantilismo consistia na exclusividade nação independente. Ao contrário, a ocupação da terra pelos portu-
Metrópole no comércio com suas colônias. Tratava-se de impedir gueses deu-se pelo processo de colonização por exploração. O Brasil
navios estrangeiros fizessem o transporte de produtos da colônia e foi considerado como uma grande empresa extrativa, integrada na
dessem na colônia manufaturados produzidos em outros países. O có" engrenagem do sistema mercantilista, explorada em função da Metró-
mércio com o Brasil era monopólio da Coroa Portuguesa. Por essi pole e destinada a fornecer produtos primários para abastecer os cen-
• dos impostos cobrados, podia-se impor preços reduzidos'
forma, além tros econômicos da Europa. A preocupação central de Portugal consis-
às mercadorias exportadas pela Colônia e forçar a alta dos preços tia, em última análise, na exploração das riquezas da terra e na sua
produtos por ela importados. remessa aos mercados europeus.
A Coroa Portuguesa, no entanto, não conseguiu implantar uma A título de comparação, vale registrar que outra forma de ocu-
política mercantilista plena, nem tirar dela o máximo de proveito - como pação de um território é o processo de colonização por povoamento.
fez a Inglaterra, por exemplo. Primeiro, em decorrência da própria O exemplo mais expressivo desse tipo de colonização foi o que ocorreu
fraqueza de Portugal, que, além de outros aspectos, não desenvolveu a nas treze colônias inglesas que deram origem aos Estados Unidos da
manufatura de modo a poder atender a todas as necessidades de co~- - América. Não foram elas colonizadas oficialmente pela Inglaterra, mas
sumo dos habitantes do Reino e das colônias. Segundo, por basicamente por ingleses que abandonaram, e até renegaram a sua
de concorrentes mais poderosos, que forçaram Portugal•a adotar uma pátria de origem, na qual se sentiam perseguidos, por motivos políticos
política um tanto ambígua em relação ao comércio com sua Colônia ou religiosos. Ao se. aventurarem para o desconhecido da América,
Brasil. Desde o início, a Coroa fez concessões a grupos portugueses, buscavam um lugar onde pudessem construir uma nova sociedade e
depois a luso-brasileiros e, mais tarde, também a comerciantes brasilei- viver em liberdade, autodeterminando-se - uma sociedade para si. Nes-
ros. Teve de fazer concessões também a grupos holandeses e, mais se caso, a sociedade assume a sua vida e decide o seu destino. Gera
tarde, foi obrigada a se submeter a tratados com a Inglaterra (1642, suas próprias formas de organização e se capacita a alterá-las de acor-
1654, 1703 e 1810), pelos quais Portugal recebia proteção política e do com suas próprias necessidades, ~.eu9 interesses e suas ações.
militar, dando em troca vantagens comerciais e econômicas. De outra No caso brasileiro, ao contrário, as normas de organização da
parte, as principais praças importadoras de açúcar eram Amsterdam, sociedade foram impostas - de fora, de cima, de longe (Lisboa). A
Londres, Hamburgo e Gênova, que tinham grande poder na fixação sociedade não se organizou; foi organizada. E essa organização se fez
dos preços (Fausto, 1995, p. 79). predominantemente em função das necessidades, dos interesses e das
ações dos outros. E ainda hoje temos dificuldade de gerar formas pró-
Com os referidos tratados, Portugal passou a viver sob a influên-
prias de organização, de renová-las e adequá-las à realidade mutante,
cia econômica e o guarda-chuva militar da Inglaterra. Sofreu pesadas
ou de fazê-las funcionar a contento.
perdas pela concessão de vantagens econômicas, inclusive não desen-
volvendo manufatura e indústria próprias. Mas teve ganhos políticos: a A chamada Empresa Brasil, segundo Darci Ribeiro (1995, p.
Metrópole e as suas colônias foram respeitadas mesmo pelas potências 176-9), compreendia quatro tipos de ações empresariais: a) a empresa
mais poderosas (nenhum país se atrevia a desafiar o poder militar in- escravista (açucareira, aurífera ... ), que integrou o Brasil na economia
glês); e manteve sob o seu domínio a maior e mais rica colônia do mundial e garantiu a prosperidade dos ricos; b) a empresa comunitária
mundo - o Brasil -, e chegou a triplicar-lhe o território - do que se jesuítica, que, apesar de ter sucumbido na competição com a escravista
beneficiou o nosso país, com a Independência. e nos conflitos com o sistema colonial, sendo os jesuítas expulsos, teve

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destacada importância, tanto no sentido da produção como na tentali, _ nômica, social, política, cultural, psicológica - foi profundamente influ-
va de criar uma forma de colonização alternativa, destribalizando os :: enciada por essa condição colonial e pelo papel dela decorrente no il
índios e buscando integrá-los num tipo diferente de sociedade, e con!ri:- contexto do Im6ério Português e do mundo. Essa situação se caracteri- i
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buiu para amaciar a resistência indígena; c) a multiplicidade de zava, essencialmente em todos os aspectos, pelo despojamento e alie-
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microempresas de produção de gêneros de subsistência e os empreen, nação do próprio em benefício do alheio, ou, mais radicalmente, pela
dimentos (maiores) de criação de gado, que funcionaram como com- negação do ser próprio em benefício do ser dos outros. Uma situação
plemento da empresa açucareira ou mineradora e incorporaram os·\ comparável à do escravo. A Metrópole era o sujeito; e a Colônia, o
mestiços; d) o núcleo urbano-portuário de banqueiros, armadores, co-_ · objeto de exploração em função da Coroa e dos grupos econômicos
merciantes de exportação e importação e traficantes de escravos, que dominantes que influenciavam as decisões da Metrópole. E, nessa con-
foi o componente predominante da economia colonial e o mais lucra< dição de submissão e despojamento, a sociedade brasileira atravessou
tive dela. .·- __ ,·o_- os três primeiros séculos de sua existência.
A tudo e a todos presidindo e regendo, havia uma quinta catego</' Os interesses da empresa exportadora escravista eram domi- 1
ria, constituída pela burocracia estatal, civil e militar (funcionários go- nantes. E as iniciativas para desenvolver a manufatura foram invaria- 1
vernamentais e exatores, e militares encarregados da defesa e da re- velmente truncadas.
pressão). Eram os prepostos da Coroa, que exerciam a autoridade e 1:
atuavam em função dela - e muitos também em proveito próprio. 1 1

Entre a estreita cúpula dominante empresarial-burocrático-ecle- -- 2.1.1 -As Brechas (Truncadas) da Manufatura
1
siástica e a larga base constituída de brancos pobres, escravos, índios e
mestiços, foi surgindo ao longo das décadas uma camada intermediáriá ,, No período colonial é possível identificar momentos e realiza-
1
(embrião de classe média, com ganho próprio), no seio da qual come' <;; ções que poderiam evoluir para a àfirmação da manufatura e desembo- ,1

çaram a germinar as idéias de um Brasil diferente. car na indústria. O próprio engenho de açúcar era uma empresa
1
agroindustrial. Aliás, o maior e mais complexo empreendimento eco-
Como parte integrante do Império Português, na condição dê
nômico existente no mundo, na época. No interior dele poderia ter
Colônia, o Brasil não tinha destino próprio. Integrava o projeto da-
germinado a diversificação de atividades e também a manufatura, não
Metrópole. Em decorrência, 'não existia nem foi configurado em furt~
fosse a mentalidade escravocrata.
ção de si, mas em função dos interesses externos. O que interessava
não era o Brasil em si, mas o que ele podia oferecer, o que dele era Desde que Portugal vinculou seu destino à Inglaterra, de forma
possível extrair. Por isso, a política do Império Português e todo o seu dependente (1642), a política portugues,:i passou a seguir os ditames
aparelho institucional e administrativo, aqui, teve o objetivo de manter daquela potência, concedendo vantage.ns econômicas em troca de pro- ,,]1
essa situação de dependência, para que a Colônia continuasse indefini- teção política e militar. O tratado de 1654 garantia aos ingleses o direi- 1

damente como produtora de gêneros alimentícios e matérias-primas e to de negociar diretamente com a colônia brasileira. Pelo tratado de
1703, em troca da livre entrada de vinhos portugueses na Inglaterra,
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importadora de produtos manufaturados. Da mesma forma, procurou 11!
cercear o desenvolvimento da educação, da cultura e das ciências, Portugal praticamente abandonou o projeto de desenvolvimento de
impedindo ou dificultando o surgimento de uma elite intelectual local uma manufatura própria e passou a consumir manufaturados ingleses. 1
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que viesse a liderar um processo de emancipação, que, obviamente, a Pagava a diferença da balança comercial com ouro e diamante que
Metrópole não desejava. saíam das minas do Brasil. Dessa forma, grande parte dessa riqueza 1/i,,
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Como resultado, a economia não se estruturou voltada para o acabou nos cofres de Londres e contribuiu para financiar o processo de 1
industrialização na Inglaterra.
atendimento das necessidades básicas da sociedade local em forma- 'li1
ção, mas prioritariamente em função do exterior. A sociedade não existia Apesar dos condicionamentos externos, o ciclo do ouro fez sur-
nem produzia para si, mas para os outros. Toda a vida brasileira - eco- gir, na região das minas, uma classe abastada, que procurava imitar o 1,
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requinte das cortes européias, e numerosa classe média com razoável libras esterlina's;-em bancos ingleses, e assinando um tratado de comér-
poder aquisitivo e estilo de vida urbano sofisticado. Essa sociedade cio (1827) pelo qual os produtos ingleses continuavam a pagar taxas
distinta da sociedade rural açucareira, estruturou-se graças à relativa' alfandegárias privilegiadas {baixas) para entrar no país - o que pratica-
·1
distribuição da riqueza decorrente da extração aurífera e à implantação mente impedia o surgimento de fábricas aqui.
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de atividades agropastoris diversificadas, destinadas ao abastecimento 1

da expressiva população urbana interiorizada. Nesse contexto, e ha- 2.1.2 -Aspectos Relevantes do Legado Português i ,:
vendo demanda, ocorreu, concomitantemente, em Minas Gerais - e:
em menor escala também no Rio de Janeiro e outras cidades -, um Apesar de tudo, Portugal transmitiu um legado bastante positi-
surto manufatureiro de relevante importância, quer pela variedade da - vo. Não só defendeu a Colônia da cobiça de outras potências podero-
produção \com destaque para os setores têxtil, de ourivesaria e aprb" • sas {franceses, holandeses ... ), mas também conseguiu anular o Tratado
veitamento do ferro), quer pela qualidade, que nada ficava a dever, de Tordesilhas e triplicar o território. O Brasil foi a mais rica Colônia do
comparada aos produtos ingleses, na época. Para exemplificar: no se' mundo no passado e hoje é o país tropical mais desenvolvido. Somos o
tor têxtil, que era o mais expressivo, produziam-se desde tecidos gros- único país de dimensões continentais no mundo onde todos os habitan-
seiros de algodão para vestimenta dos escravos e sacaria para o açúcar tes se entendem falando a mesma lingua. Transplantou plantas para 1
1

até veludos, cetins, tafetás e outras sedas, passando pelas chitas, fustões outras terras e introduziu outras, como a cana-de-açúcar e o café, que
etc., além de tecidos bordados de ouro ou prata. se tornaram importantes riquezas econômicas. O espírito de tolerância
Todo esse promissor surto manufatureiro foi destruído pelo - português, aliado à necessidade de defender e povoar um vasto territó-
famigerado Alvará de 1785, assinado pela Rainha D. Maria, a Louca. rio, possibilitou ampla mestiçagem e um grau razoável de convivência,
sem atritos étnico-culturais profundos e violentos (caso único no mun-
Por ele se determinava a extinção de todos os teares, manufaturas e
do) - além de outras contribuições.
fábricas existentes no Brasil, na época, além de estabelecer multas
severas aos proprietários que porventura não tivessem cumprido a or- A bem da verdade, deve-se registrar que "a Coroa sempre se
dem de fechamento, quando passados dois meses da publicação do.· preocupou em diversificar a produção e garantir o plantio de gêneros
1
dito Alvará. Na justificativa, afirmava-se que as riquezas do Brasil for, alimentícios para consumo na própria Colônia" (Fausto, 1995, p. 58). 1 1

mavam a base das transações mercantis, da navegação e do comércio, Preocupação idêntica tinham as ordens religiosas e o clero regular.
e elas vinham da terra. E, havendo falta de braços para a produção - Todavia, o interesse do governo português e dos padres batia de frente
básica, o Brasil precisava de colonos e cultivadores, e não de artistas e com as resistências dos grandes proprietários rurais, donos das melho-
fabricantes. Portanto, era preciso cortar o mal pela raiz. Isto é, fechar _- res terras, que se recusavam a utilizar parj:e das propriedades no cultivo
as fábricas. E assim foi feito. de produtos menos rentáveis, quando podiam ganhar lucros maiores
nas culturas de exportação.
Com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, cujo
Embora a produção de alimentos para consumo da população
ambiente acanhado contrastava com os requintes da nobreza, o Prínc local tivesse tido certa importância, ela não teve condições de evoluir
pe Regente D. João baixou alvará (1809) com medidas de incentivo para a produção de excedentes comerciáveis e firmar um processo de
implantação de fábricas e manufaturas, mas já no ano seguinte (181( colonização baseado na pequena propriedade diversificada e com ca-
assinava novo tratado com a Inglaterra, que estabelecia taxas alfand, pacidade de abrir-se também para a produção de manufaturados. Ao
gárias privilegiadas para a importação dos produtos ingleses, liquidar contrário, o projeto da Metrópole e os interesses dominantes a que ele
do, pela concorrência, as nascentes iniciativas manufatureiras locais. se vinculava consolidaram outra diretriz bem distinta, firmando um sis-
E o Brasil independente seguiu a velha lição da antiga Metrópo- tema que caracterizou o Brasil na fase colonial e prolongou suas mar-
le. Nas negociações diplomáticas para o reconhecimento da nossa In- cas também após a Independência: a grande propriedade rural, a
dependência, em que a Inglaterra serviu de intermediária, o Brasil aca- vinculação dependente ao exterior, a monocultura de exportação, a
bou fazendo o seu primeiro empréstimo externo, de dois milhões de escravidão - e suas conseqüências.

128 129

• •
A situação colonial, embora possa ser estudada de diferentes
ângulos - econômico, social, psicológico, cultural, político ... -, é um fe- Produto Ihlerno Bruto (PIB), o que nos caracteriza como um país de
nômeno global, que atinge de modo abrangente a sociedade no seu economia fechada. A perda de peso das exportações na renda nacio-
todo. Por outro lado, a situação de dependência modifica-se no decor- nal deve-se sobretudo à progressiva diversificação das atividades eco-
rer do tempo, assumindo formas e coloridos mais ou menos acentua- nômicas, ao avanço da industrialização e à expansão do mercado inter-
dos. O projeto do colonizador não se implantou na sua plenitude. A no. Mas essa mudança só se operou a partir da segunda e da terceira
realidade é sempre dinâmica. E no seio de cada realidade concreta década do século XX.
geram-se contradições que tendem a superá-la, provocando mudanças No decorrer de mais de quatrocentos anos a economia brasileira
mais ou menos prof~ndas. funcionou predominantemente como reflexo dos interesses externos,
No caso brasileiro, a marca do colonialismo foi particularmente reagindo aos estímulos. vindos de fora. Essa orientação para o exterior
profunda. E a emancipação política não chegou a representar uma conduziu à implantação da monocultura, com produção e exportação
ruptura tbtal com o passado colonial. Assim, a situação de dependên- centradas no produto de maior rentabilidade em certo momento histó-
cia, embora atenuada, prolongou-se no tempo, adquirindo conteúdos e rico. Essa dependência se reflete claramente nos ciclos econômicos
contornos mais complexos e sutis. que caracterizaram esse longo período. .
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O ciclo econômico pode ser definido como o período em que . f


deterrriiiiado'produto, oenencianclo-se da conjõnfüfirfavoráverdõ mo-e ·
2.2 - Os Ciclos e Subciclos Econômicos mento, se constitui no centro dinâmico da economia, atraindo -as }OY:
·ças-iiconômicas - capitais e mão-de-obra - e provocando...mu~,em
As atividades econômicas, desde o início da colonização, foram todo:; o~__o.u!Lo~principais setores da sociedade, como na criação _de
predominantemente dirigidas para a exportação. Essa orientação de- novas atividades, no uso de equipamentos, na distribuição das rendas,
correu da situação colonial e dos interesses dominantes do mercantilismo. 'nac0nstífu1çaõdas classes sociais ou fri.çõiis declasse, com o declínio
Não se criou propriamente um mercado interno. A imensa maioria da dE UITlãSe a ascensãodeõillras etc. Geralmente,-8inb0fa não hecesSa-
população - brancos pobres, mestiços, pretos, índios - vivia submissa, riamenfe,_õ_·cíctõ-se caracteriza pela supremacia de determinado pro-
em condições precárias de subsistência e marginalizada do processo duto na exportação (Buescu & Tapajós, 1958, p. 24-5). Um ciclo pro-
econômico dominante. De outro lado, a classe dos senhores - a única priamente supõe três fases sucessivas: o início da expansão, o auge e a
com rendas e padrões de consumo mais elevados -, além da produção decadência acentuada tendente ao desaparecimento. No caso brasilei-
do próprio latifúndio, consumia produtos importados. ro, alguns dos principais produtos cíclicos tradicionais, com destaque
O colonialismo e o mercantilismo determinaram a orientação da para o açúcar e o café, embora experimentassem declínio, continuam
economia para o comércio exterior, para a exportação da produção ainda hoje a ter relativa expressão, tanto na produção como na expor-
mais rentável em determinada conjuntura. A exportação constituía, na tação.
época, a base da renda da Colônia, sendo a Metrópole a principal A tabela 2 apresenta a participação em percentagens sobre o
beneficiária. Mesmo depois da Independência e do abandono ou supe- total da exportação brasileira dos principais produtos cíclicos em al-
ração do mercantilismo, no início do século XIX, a orientação da eco- guns decênios tlpicos do período 1820-1930. No início desse período,
nomia para o exterior se manteve, e a exportação continuou a ser a embora sem constituir mais um verdadeiro ciclo, a supremacia cabia ao
base da renda nacional. açúcar, seguido pelo algodão e pelo café. Logo a seguir, o café
Ao longo do século XIX, a participação da exportação na gera- assumiu o primeiro lugar, verificando-se o declínio acentuado do açú-
ção da renda global foi se reduzindo lentamente, mas manteve-se ele- car e do algodão nas nossas exportações. Observa-se que o ciclo da
vada principalmente até 1930. De então em diante, esse decllnio acen- borracha teve curta duração. E constata-se, também, a reduzida partici-
tuou-se, sendo que hoje as exportações representam menos de 10% do paçãq global do cacau, um ciclo regional localizado, restrito ao sul da
Bahia.

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Tabela 2 - Participação Percentual no Total da Exportação Brasileira !11
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CICLOS E SUBCICLOS ECONOMICOS HISTÓRICOS
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Fonte: BUESCU, Mircea & TAPAJÓS, Vicente. História doDesenvol-


vimento Econômico do Brasil. Rio de Janeiro, A Casa do Li-
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vro, 1958, p. 24-5.
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Três foram os grandes ciclos que marcaram mais profundamen-
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Intermeados ou concomitantes a eles, tivemos os ciclos menores do
algodão, da borracha e do cacau, além do extrativismo inicial do pau-
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brasil. Os subciclos do gado e do fumo tiveram função complementar,
como auxiliares dos ciclos principais.
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subciclos econômicos. Nele, pode-se observar a evolução do conjunto 1
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e de cada um deles, identificando as respectivas fases. 1 1 78 80
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DO
PRODUTO CICLICO I INFLUENCIA ACESSÓRIA
OU DECLINANDO
DO PRODUTO CICLICO
~ INFLUENCIA EMBRIONARIA
OU RESIDUAL
DO PRODUTO C!CLICO

132 ,,
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a
produção açucareira foram Pernambuco, Bahia e São Vicente (São
Resumidamente, apresenta-se a seguir breve explicação de cada
Paulo) - este último em desvantagem, pela distância em relação à Euro-
ciclo ou subciclo econômico e de suas principais influências.
pa. Tornou-se o produto de maior valor no comércio mundial desde
A extração do pau-brasil possibilitou aos portugueses melhor fins do século XV!. Teve papel decisivo no financiamento do Império
conhecimento do litoral e de seus ancoradouros naturais, bem como Português, para sustentar a Coroa e garantir-lhe a posse da Colônia, e
dos índios e seus usos e costumes e da própria extensão da terra desco- na definição do modelo de colonização do Brasil, baseado na grande
berta e seus segredos; possibilitou o aproveitamento do trabalho indí- propriedade rural, na vinculação dependente ao exterior, na monocultura
gena, com a prática de uma espécie de escambo, e o início do de exportação e na escravidão. Provocou a cobiça dos holandeses, que
intercruzamento dos dois grupos. O sistema de feitorias (acampamen- por duas vezes tentaram assenhorear-se da fonte produtora, já que con-
tos provisórios) adotado não significou uma ocupação efetiva do terri- trolavam a distribuição nos principais mercados da Europa. Expulsos
tório, mas abriu caminho para que ela se realizasse mais tarde. Em do Brasil em meados do século XVII, os holandeses - e também france-
termos econômicos, contribuiu para financiar em parte as despesas ses e ingleses - desenvolveram plantações de cana e instalaram enge-
com as expedições exploratórias. Mercadores franceses disputaram com nhos de açúcar em suas colônias nas Antilhas. A feroz concorrência de
os portugueses a exploração do pau-brasil, ao longo das primeiras dé- preços na disputa de mercados prejudicou as duas áreas produtoras das
cadas, buscando inclusive aliança com tribos indígenas, para consoli- Américas.
dar-se em alguns pontos do litoral. No seu intento de constituir a cha- O açúcar deu origem a uma sociedade rural cujo centro eram os
mada "França Antártica" ocuparam o atual território do Rio de Janeiro engenhos. O engenho de açúcar era um empreendimento complexo e
(1553-1565). E estabeleceram-se mais tarde (1612-1615) no Maranhão. custoso. Além da necessidade de o senhor dispor de razoáveis recursos
Vencidos em ambas as tentativas, conseguiram êxito ao fixar-se ao norte próprios, a sua instalação e o seu funcionamento dependiam de crédi-
da foz do rio Amazonas, onde constituíram a Guiana Francesa. tos. Como até 1808 não existiam bancos no Brasil, as fontes de crédito
O gado foi introduzido no início da ocupação propriamente dita. mais usadas foram os comerciantes e traficantes de escravos, institui-
Sem cercas, a criação teve de ser feita distante dos canaviais. Assim, foi ções religiosas e beneficentes e ainda investidores externos - portugue- ii
a primeira atividade econômica a desenvolver-se afastada do litoral, ses, flamengos e italianos - geralmente ligados ao comércio de açúcar 11

possibilitando, pelas suas características, a ocupação de extensas áreas na Europa. Os comerciantes, além de intermediarem a exportação de i !
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do interior do Nordeste e da região do rio São Francisco. No atual açúcar e concederem empréstimos, também forneciam aos engenhos 11
bens de consumo importados. Os senhores de engenho - explorados 1'
território do Rio Grande do Sul, por sua vez, o gado introduzido pelos • 1

jesuítas espanhóis e índios missioneiros multiplicava-se, xucro, depois nos juros e nos preços pelos intermediários e prestamistas, e tendo :,'
da destruição das primitivas missões pelos bandeirantes (1640). A cria- gastos avultados para repor o estoque de escravos e para sustentar o L
ção de gado também foi a primeira atividade econômica a possibilitar luxo, a ostentação e o prestígio - viviam geralmente endividados ou ,,',
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a ascensão social de brancos pobres e mestiços, sobretudo enfrentavam freqüentes dificuldades financeiras. 1j
pernambucanos e baianos, muitos deles transformando-se em proprie- De acordo com os usos da época, o latifúndio não se dividia por
tários de fazendas de criação, desde os fins do primeiro século. Esse herança. Em caso de morte, o filho primogênito substituía o pai, tor-
processo intensificou-se no século seguinte e principalmente no século nando-se o novo senhor, que impunha autoridade, respeito e obediên- 1:1

XVIII, com o ciclo do ouro, quando também paulistas tornaram-se cia em face de•tudo e de todos. Principalmente pelo tamanho da pro-
tropeiros e implantaram estâncias de criação de gado. Foi um subciclo priedade e pelo número de escravos é que se media o prestígio de um 1

auxiliar dos demais ciclos, principalmente do açúcar, do ouro e do café. ;I,,


senhor. São razões - entre outras - que explicam por que. o latifúndio
O gado era usado na alimentação, no transporte e no trabalho. O cou- permaneceu na realidade rural brasileira. Já a partir do final do século 1
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ro, o sebo e a crina destinavam-se em geral à exportação. XVI, passou a ser costume entre as famílias senhoriais mais ricas o
O açúcar foi o primeiro dos grandes ciclos econômicos. Foi uma segundo e o terceiro filho homem ser destinado, respectivamente, ao
riqueza criada pelos portugueses na Colônia. Os principais centros de estudo de Direito na Europa e ao sacerdócio. Os demais - e principal"

134 -l
135
mente as mulheres - eram figurantes secundários. Consumiam a vida A migração de milhares de pessoas para a região das minas,
predominantemente no ócio, já que o trabalho era um desvalor. A vida sem a contrapartida da produção de alimentos, provocou a "crise da
social acontecia ligada à família e à igreja. Os grandes acontecimentos fome". Foi ela aliviada principalmente através do gado, além da caça e
eram o batizado, o casamento e a morte - ocasiões em que se reuniam de roças de subsistência. Os paulistas, descobridores das minas, perde-
os vizinhos, distantes léguas. Os casamentos eram decididos pelos pais, ram o controle de sua exploração para os vindos de fora. Avançando
por interesse, como ocorria com os príncipes nas monarquias. pelo sertão, descobriram ouro, em veios menos ricos, também em
Ao longo do período colonial, o açúcar ocupou sempre o pri- Goiás e Mato Grosso. Por fim, muitos tornaram-se tropeiros, tangendo
meiro lugar rio valor das exportações brasileiras, ao menos no comér-
tropas de gado do Nordeste ou do Rio Grande do Sul, para abastecer a
cio legal. Ainda hoje, Brasil e Cuba são os maiores produtores e expor- população da área mineradora. E de tropeiros passaram a criadores,
donos de fazendas de criação - no Nordeste, às margens do rio São
tadores de a~úcar de cana.
Francisco, no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
O fumo era um produto nativo da América e conhecido dos Assim, o ciclo da mineração possibilitou a ocupação de um extenso
índios. Apesar de combatido, seu uso difundiu-se. Produzido aqui e território no interior do país, que de outra forma seria difícil, e foi a
levado para a África, tornou-se uma espécie de moeda, ao lado da primeira atividade a provocar uma articulação da economia e da socie-
aguardente, para a compra de negros a baixo custo, possibilitando a dade de diferentes regiões da Colônia, estabelecendo laços que contri-
importação de um número mais elevado de escravos e maior lucro aos buíram para a unidade nacional.
traficantes. Em vista dessa função complementar, houve aumento do Calcula-se que no século XVlll foi extraído das minas do Brasil
cultivo. Nunca chegou a ser propriamente um ciclo econômico, mas
cerca de um milhão de quilogramas de ouro e três milhões de quilates
apenas uma atividade econômica auxiliar dos ciclos principais. de diamantes - quantidade essa cujo valor corresponde ao "equivalente
o ciclo do ouro e do diamante só ocorreu no século xvm, pois a mais da metade das exportações de metais preciosos das Américas"
a expectativa dos portugueses de encontrar metais preciosos só se rea- (Ribeiro, 1995, p. 152). Os principais beneficiários dessa riqueza fo-
lizou depois de quase dois séculos do descobrimento e de várias déca- ram: a) a Inglaterra, para cujos cofres foi carreada a maior parte, para
das de crise econômica e financeira na Metrópole e na Colônia, decor- pagamento do déficit comercial português; b) Portugal, principalmente
rente da concorrência do açúcar das Antilhas. Somente a _partir de para sustentar os gastos da Corte e da nobreza, na sua tentativa de
1694 começaram a ser descobertas ricas minas de.ouro no Brasil. E, imitar o esplendor da Corte francesa de Luís XIV, para a edificação de
algum~; décadas depois (1729), também diamantes. palácios, igrejas, mosteiros e monumentos, e para a reconstrução de ,;:['
Atrás da notícia veio a corrida em direção às minas, na expecta- Lisboa, destruída pelo terremoto de. 17.75; e c) o Brasil, sobretudo na
tiva de enriquecimento fácil e rápido. Gente do litoral deslocou-se para construção dos solares e das igrejas das cidades históricas de Minas
o interior. Escravos dos engenhos e de outras atividades foram envia- Gerais, da Bahia (Salvador) e do Rio de Janeiro - este, o "porto das
dos para a mineração. Algumas centenas de milhares de portugueses minas", para onde foi transfetidà a Capital (1763) - e, ainda, proporci-
(cerca de um terço da população de Portugal, na época, segundo al- onou cabedais a numerosas famílias, que os canalizaram para outras
guns autores) atravessaram o Atlântico. Um numeroso contingente de atividades, como o comércio e a pe·cuária, além
. . de enriquecer os trafi-
funcionários públicos, exatores e militares portugueses veio para a cantes de escravos.
Colônia, para garantir os interesses da Coroa, cobrar o imposto devido O algodão, como o tabaco, também era nativo da América e
e coibir o contrabando. E em torno dos veios auríferos surgiu uma conhecido dos índios. De uma importância irrisória durante mais de
sociedade com razoável poder aquisitivo, estilo de vida urbano, requin- dois séculos e meio, teve dois surtos repentinos de expressão econômi-
tes de luxo e expressivas manifestações culturais, sobretudo na literatu- ca, provocados por dois acontecimentos nos Estados Unidos: a inde-
ra e nas artes. Tudo isso contribuiu para que a língua e a cultura portu- pendência das colônias inglesas na América do Norte, dando origem
guesas se impusessem sobre o tupi-guarani, que havia sido a língua ao novo país; e a Guerra de Secessão entre os estados industrializados
usada pela maioria da população nos dois primeiros séculos. do Norte e os estados escravocratas do Sul, pela abolição da escravatu-
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136 137

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ra. Como a indústria têxtil inglesa se abastecia de matéria-prima (algo-
Em torno dos interesses do café reordenou-se a vida brasileira e li
o intercâmbio internacional. A atividade cafeeira gerou fortunas e a :11
dão) naquelas colônias e a Independência rompeu as relações com a maior parte do capital inicial para a alavancagem do processo de indus-
antiga metrópole, por um longo período de meio século (1776-1825), ·li
trialização. '· ,,i!
e, mais tarde, a Guerra de Secessão (1861-1865) desorganizou as la-
O ciclo da borracha teve pouco mais de duas décadas de dura- ,,
vouras do Sul, a Inglaterra buscou o Brasil como fonte de abastecimen-
til
to dessa matéria-prima. Restabelecida a normalidade entre a Inglaterra ção, no final do século XIX e início do século XX. O látex, extraído da
e os Estados Unidos, o algodão brasileiro teve sua importância econô- · · seringueira, planta nativa da Amazônia, já era utilizado pelos índios. ,,
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mica reduzida no mercado mundial e, conseqüentemente, também em Com o aperfeiçoamento do processo de vulcanização (Charles Goodyear, 1
nível interno. 1839), que tornava a borracha mais resistente ao calor e ao frio, cres- 11;111
ceu a demanda mundial, "sendo utilizada em produtos diversos como 1,1
O ca/é só passou a ter alguma expressão econômica a partir da correias, mangueiras, sapatos, capas de chuva" (Fausto, 1995, p. 239). l:1
última década do século XVIII. Sua importância foi crescendo lenta- Com o surgimento e a difusão do automóvel, a partir da última década t,
mente nas décadas seguintes, mas a fase de expansão acentuada só do século XIX, aumentou rapidamente o consumo de pneus, câmaras 1:1
ocorreu após a Independência. As lavouras de café estenderam-se pri- de ar e outros artefatos. Então, a demanda explodiu no mercado mun- ,,i!
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meiro no Rio de Janeiro e alcançaram mais tarde Minas Gerais e prin- dial. E, com a demanda em alta, subiram também os preços. Seringalis-
cipalmente São Paulo. O ciclo propriamente dito teve mais de um sé- tas e comerciantes movimentaram as praças de Manaus e Belém, fa- 1
culo de duração (1825-1930). Todavia, mesmo depois de encerrada a zendo fortunas - rapidamente dilapidadas no luxo, na ostentação e no
fase de grande expansão, continuou por mais de quatro décadas a ser desperdício. O transplante de mudas pelos ingleses e as plantações
o principal produto de exportação do país e ainda hoje tem uma posi- ordenadas em suas colônias do Oriente (Malásia e Indonésia), em con-
ção destacada. Na segunda metade do século XX, a expansão do café dições climáticas idênticas ao hábitat amazônico, logo desbancaram a 1

alcançou o norte do estado do Paraná, que se tornou o maior produtor


do país, posição hoje ocupada por Minas Gerais. Também ocorreu
produção extrativista brasileira no mercado mundial, competindo em
preço e qualidade do produto. li
uma mudança na estrutura fundiária: enquanto no passado predomina- O cacau, depois de uma fase inicial, teve maior expressão nas 1
va a grande propriedade, nesta nova fase a cultura cafeeira desenvol- primeiras quatro décadas do século XX. Planta nativa da Amazônia, o
1

veu-se em áreas menores. cacaueiro encontrou um hábitat adequado no sul da Bahia, onde se
Com o ciclo do café, deslocou-se o eixo da economia brasileira - desenvolveu o cultivo. Matéria-prima na fabricação do chocolate, pas-

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do Nordeste para o Centro-Sul. E também a hegemonia política. O sou a ter grande procura no mercado mundial, com preços atrativos.
processo de deslocamento do eixo econômico já havia começado com Não chegou a ser um ciclo econômico propriamente dito. Sua impor-
o ciclo do ouro e se consolidou por volta de 1870. tância circunscreveu-se a uma região bem delimitada do país. Localiza- ,,
do numa área restrita, provocou violenta disputa pela posse das terras
Ao longo do período colonial, o açúcar foi o principal produto - o que não é novidade - e deu origem a uma sociedade com caracterís-
de exportação e "os senhores de engenho tiveram um considerável ticas bem específicas, que tem no romancista Jorge Amado seu grande 1
poder econômico, social e político" (Fausto, 1995, p. 80). Na época retratista e intérprete literário. O Brasil continua a ser um dos princi-
da Independência, o ouro já não tinha mais expressão econômica, e o pais países produtores, embora as técnicas de cultivo e de beneficiamento li
,1

Nordeste era a região mais rica, representando cerca de dois terços da pouco tenham evoluído e o produto não tenha grande significado na
riqueza nacional. Com a expansão da lavoura cafeeira, a par da lide- pauta das exportações brasileiras. 11

rança econômica, a hegemonia se transferiu para os barões do café. E


Pode-se situar a presença de um tímido processo embrionário :1,
o tripé básico da Região Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
da atividade industrial, com algum significado na economia do país, a
Gerais) passou a moldar o Brasil independente de acordo com os seus
partir de meados do século XIX. Mas só na segunda década do século
interesses.

139
138
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.~ .
XX e principalmente depois de 1930 é que ocorreu a sua decolagem paimente nos três primeiros séculos da nossa formação, os integrantes
efetiva e continuada. Com a indústria assumindo a liderança do desen- dessas matrizes se enfrentaram é confrontaram, se fundiram e refundi-
volvimento econômico do país, superaram-se os ciclos econômicos tra- ram, sob a hegemonia cios portugueses, dando origem a um povo novo
dicionais, cujos produtos foram progressivamente deslocados para uma (Ribeiro, 1995, p. 19). Esse processo civilizatório foi influenciado pelas
posição econômica secundária. circunstâncias históricas, pelas variadas condições ambientais do vasto
território, pelos objetivos econômicos e pelas motivações políticas, além
O fato de a nossa economia ter evoluído através de ciclos eco-
de outros fatores. Todos os elementos formadores se modificaram, ten-
nômicos sucessivos, e às vezes superpostos, revela uma realidade pro"'.
do que se adaptar ao novo meio e às novas condições que iam se
funda do processo econômico brasileiro. Desenvolveu-se ele nas condi-
criando. Por isso, na verdade, o povo brasileiro originou-se de um pro-
ções<le economia incipiente, colonial, dependente, mercantilista, mes- cesso de convergência e integração, mais ou menos conflituoso, de
mo quando, a partir do século XIX, o mercantilismo foi superado no portugueses deseuropeizados, índios desindianizados e negros
mundo. Trali!va-se de uma economia primária, voltada ao atendimento
desafricanizados.
da demanda externa e comandada de fora, ao sabor dos interesses
alienígenas. Internamente, atendia aos interesses do latifúndio, do co- O próprio colonizador português, embora de pele geralmente
mércio exportador e importador e dos traficantes de escravos, cuja clara, era resultado da mistura de dezenas de povos diversos, processa-
aliança dominou a sociedade, submissa e impotente. da durante mais de trinta mil anos, segundo os estudos disponíveis. Em
virtude de sua posição geográfica, Portugal constituía-se em rota e ponto
Quase não havia mercado interno, pois a maioria da população de ancoragem obrigatório de todos os navegadores do passado que
vivia em condições subumanas de existência, extraindo o sustento de percorriam as costas ocidentais da Europa, bem como em gargalo fi-
uma rudimentar agricultura de subsistência, alguns como pequenos pro- nal, a oeste, de inúmeras migrações de povos de outras regiões da
prietários, outros cultivando áreas de terras menos férteis dos latifúndi- Europa e da Ásia, em diferentes oportunidades, durante séculos ou
os, como agregados, e a grande maioria utilizando parcelas das imen- milênios. Em conseqüência, o português, embora se considerasse su- 1
sas terras devolutas, na condição de posseiros. perior e com direito à dominação, não tinha uma atitude de segrega- 1

Tratava-se ainda de uma economia visceralmente vulnerával, ção radical em relação aos demais componentes da nossa formação i
como povo, sendo particularmente tolerante, e mesmo aventureiro, no i:
baseada na produção e exportação de alguns produtos não-essenciais
(açúcar e café, principalmente), o que nos valia o apelido de "país da relacionamento sexual. '1,
r
sobremesa".
· A terra, na mão de poucos, sempre foi fator de dominação e 2.3.1 -A Mestiçagem
exploração - e também de exclusão. O latifúndio imperou absoluto -
intocado e intocável - concentrando o poder econômico e controlan- No Brasil ocorreu o mais amplo e profundo processo de misci-
do o poder político em benefício da reduzida e poderosa classe senho- genação de que se tem notícia na história da humanidade. Dele surgiu
rial. uma entidade nacional, um povo-nação. A consciência de ser brasileiro
é predominante. Trazemos a marca histórica da integração, não da
segregação. A força dessa dinâmica integracionista possibilitou, após a
2.3 - A Evolução Social - e seu Caráter Independência, a assimilação de numerosos e variados contingentes
de imigrantes europeus, árabes e asiáticos, que se incorporaram à soci- 1,,
'l:1
Integrado nista edade e à cultura brasileira, enriquecendo-as.
1

Principalmente no século XX, a urbanização, a industrialização


O Brasil, na sua gestação como povo e como cultura, resulta da e as modérnas formas de comunicação de massa tendem a difundir e ,11
confluência, do entrechoque, do caldeamento e da aculturação de três reforçar ainda mais essa unidade nacional (Ribeiro, 1995, p. 21), ex- ,,1
matrizes étnico-culturais básicas: o português, o índio e o negro. Princi- tremamente rica nas suas variações singulares.
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Todavia, unidade não é uniformidade. Do substrato comum do- nasceram ao longo dos séculos, Hoje, restam pouco mais de trezentos
1

minante de brasilidade, sob a hegemonia portuguesa, afloram matizes ,1


mil sobreviventes. Contra ela praticou-se um genocídio e um etnocídio
e diferenças variadas, devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou sem precedentes, como de resto em toda a América, por todos os 1

a distintas gradações de miscigenação e aculturação, que conferem colonizadores europeus. Epidemias e pestes trazidas pelos brancos,
múltiplas tonalidades à paisagem humana e às suas expressões cultu- desgaste pelo trabalho escravo e guerras foram as principais formas
rais. Essa riqueza da diversidade na unidade contribui também para desse massacre.
flexibilizar as relações e aproximar a convivência.
Por outro lado, concomitantemente, foi surgindo, cada vez mais
A unidade, porém, não foi pacífica. Resultou de um processo numeroso, um outro tipo humano: o mameluco, descendente de bran-
conflituoso, que até certo ponto ainda continua. As elites dirigentes - co e índio. O acasalamento do branco com as índias começou cedo,
primeiro portuguesas, depois luso-brasileiras e, finalmente, brasileiras - desde a expedição de Pedro Álvares Cabral. O branco era visto como
sempre tiveram medo - e ainda têm - da emergência das camadas opri- um ser superior, e era considerado honroso, tanto para a mulher índia
midas (Ribeito, 1995, p. 23). A par do denominador cultural comum e como pela própria tribo, acasalar-se e ter filhos com ele. Por outro
da unidade nacional, geraram-se - e ainda persistem - disparidades gri- lado, era uso entre os nativos que o estranho que recebesse uma moça
tantes. Mais do que as diferenças raciais, preocupam, hoje, as distânci- índia como esposa estabalecesse laços de parentesco com todos os
as sociais que separam os brasileiros. Além de um país de integração, membros do grupo. Podia, então, usar o trabalho dos parentes e as
somos também, contraditoriamente, um país marcado pela exclusão, mulheres para gozo sexual.
Um país injusto. Os portugueses se aproveitaram dessa instituição social indígena
A mestiçagem foi importante para viabilizar o projeto da Metró- (o cunhadismo) mais do que outros colonizadores europeus. Na falta
pole na Colônia. Portugal era, na época do descobrimento, um país de mulheres brancas, a maioria dos portugueses, contrariando a orien-
pequeno e pobre, com reduzida população (cerca de 1,2 milhão de tação dos padres, tomava várias esposas - alguns mais afoitos até deze- ·,
i'
habitantes). Estava envolvido na grande epopéia das navegações e des- nas -, sem contar o relacionamento sexual aberto com as parentes,
cobrimentos marítimos, de que resultou a constituição de um imenso gerando numerosos filhos (dezenas e até centenas). Principalmente para
Império colonial, com territórios na América, na África e na Ásia. Nes- os portugueses pobres, que eram a imensa maioria, havia ainda um
sa empreitada, sacrificou seus homens mais destemidos. A população atrativo a mais nessas uniões com as índias: na divisão sexual do traba-
/
lho, na cultura indígena, cabia à mulher a tarefa de fazer as roças de
portuguesa disponível era insuficiente para ocupar, defender e garantir
subsistência (plantar e colher). Essa prática fez "surgir a numerosa ca-
o domínio português na extensa Colônia, principalmente tendo que.
mada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil". E, "sem a
enfrentar a cobiça de outras metrópoles mais poderosas. prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil" (Ribeiro,
Para garantir-lhe a posse, a Coroa fez parceria com a iniciativa 1995, p. 82-83).
privada. Através do sistema de capitanias hereditárias, e principalmen- Também havia as uniões legais, estimuladas pela Coroa e as
te da distribuição de sesmarias, comprometia os grandes proprietários, autoridades locais, por razões políticas, e principalmente pelos padres,
com seus bens e dependentes, a participar da defesa da terra. O núme- por razões religiosas e morais. A família era a base da sociedade, e ,,i!
ro de portugueses que vinham para o Brasil, voluntariamente ou força- acreditava-se que só era possível construir uma sociedade ordenada
dos pelo degredo, era pequeno, sobretudo nos dois primeiros séculos - com famílias estáveis e enraizadas. ·11

e durante muito tempo quase só vinham homens. O relacionamento


sexual com as índias e, depois, também com as negras e as mestiças Através de uniões legais ou à margem da lei, o fato é que a
mulher indígena contribuiu para plasmar o povo brasileiro, durante
descedentes desses cruzamentos foi uma decorrência .
séculos, como a principal geratriz étnica. As mulheres mestiças, por
A população indígena na época do descobrimento pode ser esti- sua vez, não só deram continuidade a esse processo, mas, também, à
mada em cerca de quatro a cinco milhões - número esse que deve ser medida que abraçavam o catolicismo, foram as grandes responsáveis
visto com compreensível reserva. A esses, deve-se acrescentar os que pela introdução e difusão da religiosidade popular no Brasil.

142 143
Índios e mestiços, aliciados, foram também, numericamente, os para o gozo sexual, gerando mais mulatos. Muitas acabavam se tornan-
principais combatentes contra as tribos hostis aos portugueses, contra do mucamas ou amas-de-leite, e mereciam certa consideração. A mai-
os invasores europeus de outras nacionalidades (franceses, no Rio de oria, porém, quando perdiam o viço da juventude e os atrativos de
Janeiro, em 1553-1565, e no Maranhão, em 1612-1615, e holande- beleza, eram encaminhadas para o eito e a senzala, em igualdade com
ses, na Bahia, em 1624, e em Pernambuco, em 1630-1654). Tam-
os demais escravos, e só então a elas tinham acesso sexual os escravos
bém, contra os quilombos de escravos fugidos, inclusive Palmares, e na
homens. Obviamente, havia também reconhecimentos de filhos mula-
constituição das bandeiras que devassaram o atual território brasileiro,
tos. Tornaram-se mais freqüentes no século XIX, quando também au-
chegando até os contrafortes da Cordilheira dos Andes.
mentava progressivamente o número de negros livres ou libertos.
Embora geralmente criados pelas mães indígenas e assimilando
a língua e os,traços da cultura materna, os mestiços, que se considera- Apesar de tudo, a mestiçagem contribuiu para atenuar as dife-
vam superiores aos índios graças à ascendência paterna, buscavam renças e os conflitos e para facilitar o processo de integração.
1

sempre que possível, .identificação com o pai, tendo-o como referência


principal. Isso facilitou a cooptação dos mestiços em geral ao projeto 2.3.2 · A Escravidão
colonizador português, inclusive nas guerras e investidas contra as pró-
prias tribos indígenas, cujo exemplo mais relevante foram as bandeiras.
O Brasil foi também o país do mundo onde ocorreu o mais am-
Porém, como ocorriam acasalamentos fortuitos à larga, o nú- plo e prolongado processo de escravidão nos tempos modernos. O
mero de mestiços de pai desconhecido era elevado, constituindo a ampla sistema escravista vigeu ao longq de quase quatrocentos anos, e a sua
parcela dos chamados filhos de ninguém, ou a ninguendade, segun- abolição não representou uma ruptura radical com ele. Além da
do Darci Ribeiro, já que, de acordo com o conhecimento indígena, a escravização do índio, foram trazidos da África entre quatro a cinco
mulher não tinha participação efetiva na formação do filho, sendo ape- milhões de negros, segundo as estimativas mais confiáveis, enquanto
nas um recipiente adequado onde o homem depositava a semente para para os Estados Unidos da América foram levados cerca de quatrocen-
a germinação, desenvolvimento e geração do fruto. Essa situação fazia tos mil africanos, e para as demais colônias da América (espanholas,
da ninguendade uma parcela ainda mais desprotegida e marginalizada francesas ou holandesas) também o número de negros transplantados
do que as outras. Situação idêntica ocorria com os mulatos, filhos de da África foi menor.
pai branco e mãe escrava, sem reconhecimento paterno. Mas, na ava- ·
liação dominante, os menos merecedores de consideração e mais sus- Já antes do descobrimento do Brasil, Portugal tinha iniciado uma
peitos eram os cafuzos, filhos do cruzamento de índio com negro. · experiência escravista, embora em escala pequena, tanto na Metrópo-
le como em ilhas do Atlântico, principalmente Cabo Verde e Porto
Com o passar das décadas e o suceder das gerações, o processo Príncipe, onde introduzira o cultivo da cana e a produçãq de açúcar.
de mestiçagem intensificou-se e complexificou-se, através das descen-
dências, envolvendo indivíduos com variados graus de miscigenação, e No Brasil, como os nativos não produziam excedentes
também do intercurso sexual do homem branco com as mulheres afri- comerciáveis e os portugueses não encontraram, no inicio, metais pre-
canas e crioulas, dando origem ao mulato - o que tornou a mesclagem ciosos para explorar, a Metrópole se obrigou - além de extrair o pau-
cada vez mais entrelaçada. O casamento de branco com escrava, no brasil, um produto de importância econômica menor - a criar aqui uma
entanto, era proibido, e os filhos gerados nas freqüentes relações sexu- riqueza que lhe possibilitasse financiar a conquista, a ocupação e a
ais fora da lei não eram reconhecidos pelo pai. Portanto, os mulatos defesa da Colônia. Contando com abundantes áreas de solo e clima
continuavam escravos. E eram numerosos. As jovens escravas, negras aprop~iados no litoral que vai do Nordeste até São Paulo, não lhe foi
ou mulatas, que possuíssem atrativos de beleza, geralmente eram cha- difícil transplantar e ampliar, aqui, a experiência incipiente de cultivo
madas para o seroiço doméstico na casa senhorial, onde ficavam ao da cana e procjução de açúcar que vinha realizando nas suas ilhas do
alcance do senhor e de seus filhos homens, ou dos capatazes e feitores, Atlântico,

144
145
O Escravo lndigena ( acabou na prática por institui-lo. Assim, os índios que conseguiam so-
breviver ao extermínio ou se internavam no recesso da floresta em
Desde o início, o português usou o índio como mão-de-obra, busca de liberdade, cada vez mais distante do avanço da civilização
sobretudo no corte e no transporte do pau-brasil até os ancoradouros branca, ou iam sendo submetidos e freqüentemente escravizados. Seu /i
1'·
onde aportavam os navios (o mesmo faziam os franceses, inclusive no destino se decidia predominantemente em função dos interesses da
tocante à mestiçagem), em troca de bugigangas de pouco valor (enfei- estreita camada dominante da sociedade. d
tes, colares, espelhos ... ) e ferramentas, estas com o intuito de aumen-
A mão-de-obra indígena foi de utilidade especialmente na pro-
tar-lhes a capacidade extrativa.
dução de subsistência, nas lides do gado e no reforço ao abastecimento
Com o início da colonização propriamente dita, ocorreram dois dos brancos através da caça e da pesca. Tiveram os índios papel pre-
tipos de sujeição dos índios: a escravidão e a catequese. Aos colonos ,/
ponderante, como já foi referido, também nas guerras contra tribos
portugueses •interessava a escravização pura e simples, enquanto as
hostis, quilombolas e invasores estrangeiros. Além disso, os índios fo-
ordens religiosas buscavam catequizá-los. A catequese consistia no es-
forço de transformar os índios em "bons cristãos", isto é, levá-los a ram prestimosos no transporte de cargas e de pessoas, tanto por terra
abandonar seus rituais, valores, usos e costumes e incorporar os que como por água. Conheciam a floresta e seus segredos como ninguém e
lhes eram impostos, embora geralmente sem entendê-los. "Significava eram hábeis canoeiros, servindo também de guias. Registros da época
'I
também adquirir os hábitos de trabalho dos europeus", o que acabou colonial indicam que os índios revelavam ainda aptidões para ativida-
1
por criar um contingente de mão-de-obra valioso para os interesses do des domésticas e ofícios artesanais (carpinteiros, marceneiros, ferrei-
dominador. Apesar da diferença de objetivos das duas orientações, nem ros, serralheiros, oleiros, pedreiros). Nas missões jesuítas, além desses
colonos nem religiosos tiveram qualquer respeito pela cultura indígena e outros múltiplos trabalhos, os índios exerceram também atividades
(Fausto, 1995, p. 49) .
consideradas mais nobres, como tipógrafos, artistas plásticos, canto-
"A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primei- res, atores teatrais, músicos e até escritores, entre outras.
ro século", só sendo suplantada pelo escravo negro no século XVII. Ao longo das décadas, com a dizimação da população indígena
Mesmo assim, o índio subsisÍiu ·como escravo mais barato nas áreas e o aumento extraordinário do número de mestiços, estes passaram a
pioneiras e onde os brancos não possuíam suficientes recursos para a predominar na produção de subsistência. '
.1
compra de escravos africanos, ou em atividades auxiliares (Ribeiro, 1995, ·
p. 98). Os bandeirantes paulistas, por exemplo, vendiam suas presas
em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia e até em Pernambuco. A O Escravo Africano
proteção (duvidosa) dos padres, sobretudo jesuítas, e a legislação frou- As atividades acima referidas, embora internamente importan-
xa que proibia a escravidão indígena, não impediram que o índio fosse tes, eram secundárias e complementares na função que a "Empresa
escravizado. Apenas atenuaram sua extensão e seu rigor. Diante da Brasil" devia desempenhar no sistema mercantilista mundial. Nas ativi- 1
escassez de mão-de-obra, o sentimento geral dominante entre os por- 1,,,
dades econômicas principais, voltadas à exportação, como a açucareira,
tugueses era contar com o trabalho indígena. E as autoridades, tanto a aurífera, de algodão, de tabaco e, mais tarde, do café, a mão-de-obra
civis como eclesiásticas, capitularam diante das circunstâncias e dos escrava foi constituída basicamente de negros transplantados da Áfri-
interesses dominantes. ca, ao longo dos mais de trezentos anos (1540-1860) em que se pra-
A legislação proibitiva, sob a bênção religiosa, tinha tantas li- ticou o tráfico negreiro. Predominavam os homens, aproximadamente
cenças e subterfúgios que, como muitas outras leis, se tornava quase na proporção de três por um, por serem mais fortes e adequados ao
letra morta nos imensos espaços do vasto território, onde o poder em trabalho a que se destinavam.
geral se decidia pelo número de homens armados com que cada um Aprisionados em suas tribos ou seus reinos, vendidos e compra-
podia contar. No fundo, ao proibir o cativeiro indígena, a legislação dos, transportados ·como animais, desenraizados do seu meio, separa-

146 147
dos arbitrariamente, lançados num ambiente estranho, sub'\<Qetidos ao Eles comandavam urna complexa intermediação triangular en-
trabalho forçado desgastante e aos maus tratos - tudo isso levava à tre o Brasil, a Europa e a África, a qual tornava o negócio ainda mais
destruição física prematura dos negros, que morriam em grande núme- lucrativo. Os navios partiam do Brasil levando razoável quantidade de
ro. Estudos recentes "revelam que a expectativa média de vida de um fumo e aguardente de cana para ser trocada por escravos na África.
escravo do sexo masculino, ao nascer, em 1872, era de 18,3 anos" Nas costas africanas, encontravam-se com navios ingleses e trocavam
(Fausto, 1995, p. 54), enquanto o tempo médio de vida útil para o parte dessa carga por produtos manufaturados da Inglaterra, e com a
trabalho variava de dez a quinze anos. Corno a fertilidade das mulheres outra parte adquiriam escravos a baixo custo. Muitos navios partiam do
negras era baixa, em virtude das condições impostas, e as tentativas de Brasil levando tecidos (geralmente importados da colônia portuguesa
implantar empresas de criação se revelaram economicamente inviáveis, de Goa, na lndia), armas, pólvora e outros produtos que interessavam
pelo alto risco, elevados custos e longo tempo de retorno do capital aos comerciantes ligados ao tráfico estabelecidos nos principais portos
investido (dqze a catorze anos), o suprimento de escravos só foi possí- africanos, para trocá-los por negros aprisionados. De volta ao Brasil,
vel pela contínua e crescente importação, o que deu origem a um dos vendiam os manufaturados ingleses em seus estabeleçimentos comerci-
mais rendosos negócios ao longo de três séculos. ais de atacado e varejo, abastecendo a população consumidora, e os
Calcula-se que mais da metade do capital gerado pela exporta- escravos aos mineradores, fazendeiros de café, senhores de engenho
ção do açúcar e do ouro era aplicado na compra de novos escravos. O ou outros interessados. Os comerciantes mais sólidos faziam também
tráfico negreiro, iniciado no final da primeira metade do século XVI, o comércio direto de exportação de bens primários e de importação de 1

ganhou impulso com a expansão da lavoura de cana e da produção de manufaturados com a Europa. À medida que esses intermediários acu-
açúcar, sobretudo em Pernambuco e na Bahia. Era exercido por co- mularam respeitável capital, tornou-se também prática comum finan-
merciantes portugueses e, já no final daquele século, esse comércio ciarem eles a venda de escravos para pagamento na época da colheita, l1,i
li
estava bem-estruturado e apresentava compensadora lucratividade. cobrando juros e aumentando o lucro corno rentistas. Extinto o tráfico,
intensificou-se o comércio interno de escravos, na segunda metade do !:I
Com a corrida do ouro, a partir de 1700, houve falta de mão-de- século XIX, especialmente do Nordeste açucareiro (Pernambuco e Bahia) r
obra escrava. A importação praticada por armadores portugueses e o para São Paulo, onde se expandia a lavoura de café.
deslocamento de parcela de escravos do litoral, e da atividade açucareira,
Esses interesses, aliados a tantos outros, exerceram forte influ-
para a região das minas, eram insuficientes para atender à crescente
ência no sentido de retardar, no Brasil, a extinção do tráfico e da pró-
demanda, e o preço do escravo subiu de cotação no mercado. Então, /
,1,
comerciantes brasileiros estabelecidos no Rio de Janeiro entraram no· pria escravidão. Apesar do idealismo humanitário dos abolicionistas, 1

que teve relevante importância, e da participação dos negros através 11

negócio e, em poucas décadas, superaram os portugueses no controle


de freqüentes rebeldias e deserções em massa, na verdade, só se fez a 1
do tráfico negreiro. Mais tarde, já no século XIX, com a expansão das
abolição quando o sistema escravista se revelava claramente
lavouras de café, primeiro no Rio de Janeiro e depois em Minas Gerais
antieconômico e a imigração européia apresentava-se como alternati-
e em São Paulo, essa posição se consolidou e, conseqüentemente,
va viável ao braço escravo.
aprofundaram-se as raízes de seus interesses nesse comércio.
A massa dos escravos não era homogênea. Ao contrário, era
O tráfico de escravos tornou-se excelente negócio. "Escravos bastante diversificada. Vinham eles de regiões diferentes. Pertenciam a
foram as maiores importações brasileiras" (Toledo, 1996, p. 60), ao distintos grupos étnicos e variadas tribos, com diferentes culturas, lín-
longo de três séculos (1550-1850). O valor do tráfico chegou mesmo, guas e costumes (Toledo, 1996, p. 55). Aos negros importadós acres-
em alguns anos, a superar a exportação de açúcar. A rentabilidade ciam-se os crioulos, assim chamados os que nasciam no Brasil. Negros
média desse comércio ficava em torno de 20% e era a maior do mun- de diversas origens conviviam na ·mesma fazenda ou no mesmo enge-
do, enquanto a fazenda de café rendia 15%, no máximo. E os trafican- nho, ou nos núcleos urbanos. E isso interessava, tanto aos senhores
tes, particularmente do Rio de Janeiro, tornaram-se grandes empre- corno às autoridades, por razões de segurança. Chegavam mesmo a
endedores, passando a constituir provavelmente a fração mais impor- incentivar a animosidade entre os escravos dos distintos grupos étnico-
tante da classe dominante do país. culturais, pois mantê-li' viva facilitava o controle.

148 149
Conseqüências da Escravidão "'- escravista e no miolo do sentimento geral, a negação da pessoa - sujei-
A escravidão foi uma instituição nacional. Penetrou a vida de to de direitos e deveres, e vocacionada para a convivência harmônica :1
toda a população. Marcou profundamente o Brasil. É praticamente em clima de respeito mútuo e responsabilidades compartilhadas.
"impossível entender o Brasil sem entender a importância da escravi- 11
Apesar da iniqüidade do escravismo e da discriminação em rela-
dão no país" (Ricupero, 1994, p. 7). Foi basicamente a força de traba- 1'
ção às pessoas de cor, o número de negros livres ou libertos cresceu
lho escrava que construiu o Brasil ao longo de quase quatro séculos. i1
significativamente a partir do ciclo da mineração. Nessa atividade, era
Produziu o açúcar, o algodão e o café; extraiu o ouro e os diamantes; rj.
freqüente premiar os escravos mais ativos, que ultrapassassem a quota 1

abriu estradas e ruas; transportou mercadorias e pessoasi carregou e


diária ou semanal de produção, com a possibilidade de se apropriarem

.
descarregou navios e embarcações; edificou e urbanizou as cidades;
construiu as igrejas e exerceu inúmeras outras atividades e ofícios no
âmbito doméstico e fora dele. Além disso, é preciso lembrar também a
.
de parte do excedente, através de cuja acumulação acabavam podendo
comprar sua liberdade. Pesquisas mais recentes revelam também que
havia muito mais negros com família do que se pensava até há pouco
imensa contribuição do negro, apesar de submetido à condição de es-
tempo. A Igreja, apesar de conivente, também contribuiu para atenuar
cravo, na mestiçagem, nas variadas formas de manifestação cultural,
os rigores da escravidão através da multiplicação dos dias santificados,
na religião, no enriquecimento da língua, na culinária, nos usos e costu-
em que o trabalho era substituído pelas celebrações religiosas, procis-
mes etc.
sões e festejos multicoloridos, tão do agrado tanto dos negros como
No entanto, a escravidão, em quaisquer circunstâncias, é sem- dos índios e também dos mestiços.
pre uma instituição odiosa. Seu legado histórico é também constituído No entanto, o trabalho braçal era considerado tão degradante, e
de sombras. Ela degenerava e desqualificava tanto o escravo como o o viver do trabalho dos outros tão nobre, que os próprios negros livres
senhor. O escravo não era considerado juridicamente pessoa; era coi- ou libertos, quando dispunham de recursos suficientes, também com-
sa, mercadoria. Seu trabalho não o enobrecia; aviltava-o. Assim, o Bra- pravam escravos para servi-los ou então alugá-los, usufruindo de seus
sil foi construído sob a ética dominante do não-trabalho. Daí, até hoje a ganhos.l Aliás, o aluguel de escravos tornou-se uma prática freqüente,
tendência de aviltar o trabalho humano, particularmente braçal, que principalmente no século XIX, tanto nas fazendas como nas cidades.
continua a ser o fator de produção menos remunerado. Daí também a Famílias senhoriais decadentes passaram a Viver do aluguel de mão-de-
pouca importância dada à vida humana, do que decorre o fato de ser- . ,u , "-il'i obra escrava. Particularmente nas fazendas, essa prática tornava a vida
mos o país campeão em acidentes de trabalho. Os escravos desgasta- do escravo ainda mais dura e desgastante. O senhor a serviço de quem
vam-se e morriam prematuramente compravam-se outros do primeiro
1
· estava o cativo não tinha preocupação em preservar o patrimônio que
navio negreiro que aportasse. Ainda hoje, muitas vezes, o trabalhador não lhe pertencia. Ao contrário, seu interesse maior consistia em sugar
é visto como objeto que se substitui. A escravidão está também na raiz ao máximo o escravo com o menor custo, aumentando-lhe a jornada
1
do desequilíbrio da riqueza e da renda. de trabalho e reduzindo-lhe a ração.
Mas, no sistema escravista, o senhor também se degradava, por- O atraso do Brasil não advém do português, do negro, do índio
que também se tornava dependente. Acreditava que não podia viver ou da miscigenação. Resulta, isto sim, da escravidão e do papel que o
senão através da extração do resultado do trabalho dos outros. Ainda, país foi levado a desempenhar no sistema econômico internacional, ao
julgava-se detentor de todos os direitos, e de nenhum dever. Na con- longo dos séculos. O sistema escravista, tratando pessoas como coisas
cepção dos senhores a lei era para os outros e, quando conveniente,
1 ou animais, tolheu a expressão das manifestações culturais e impediu o
impunham a sua "lei" pessoal. Daí a cultura da impunidade, até hoje desabrochar fecundo das forças criadoras das matrizes étnico-culturais
vigente, e a postura de muitos, que se julgam acima da lei. Daí também no processo integrativo de formação da nacionalidade e de realização
a cultura da dependência que, em vez do talento e do mérito, privilegia de um projeto hi$tórico próprio.
o fisiologismo, o compadrio, o apadrinhamento, o afilhadismo e o
Apesar do conteúdo integracionista da formação social brasilei-
nepotismo. No centro em essência, nos dois extremos da sociedade
1
ra, a escravidão contribuiu para a construção de uma sociedade de

150
151

....à
diferentes. O grau maior ou menor de aceitação estava condidonado à escravista. Sem instrução, sem acesso à posse da terra e sem outras
exigência de que cada um conhecesse o seu lugar - e, conseqüente- condições básicas, os ex-escravos, que se tornavam legalmente cida-
mente, não ultrapassasse os limites permitidos por quem detinha o dãos, ficaram, na realidade, marginalizados.
poder de impô-los. Na essência, o projeto era excludente. E manter as A independência do Brasil, no início do século XIX, ocorreu
diferenças era fundamental para a classe dominante. E acostumamo- quando a Europa já começava a superar o mercantilismo e as forças e
nos com a exclusão. Esse legado de insensibilidade e descompromisso os interesses da Revolução Industrial tornavam-se hegemônicos, sob a
frente às desigualdades e às injustiças sociais está ainda bastante pre- liderança da Inglaterra.
sente no sentimento e nas atitudes de expressivo número de brasilei-
A Revolução Industrial desencadeou profundas transformações
ros. Compromete a cidadania e enfraquece a democracia e a naciona-
econômicas, sociais, políticas e culturais na Europa, alterando substan-
lidade. Superá-lo é um imperativo da nossa condição de pessoas e de
cialmente a fisionomia das sociedades européias. Lá, a indústria tor-
cidadãos. '
nou-se a atividade econômica mais lucrativa, assumindo a liderança do
processo de acumulação do capital; o avanço das idéias liberais foi
pondo fim aos regimes monárquicos absolutos, baseados no princípio
2.4 - A Emancipação Política e a Permanência do direito divino, e dando início ao processo de construção da demo-
da Estrutura Colonial cracia moderna; a burguesia, como classe hegemônica, substituiu a
nobreza no poder; e o monopólio estatal mercantilista cedeu lugar aos
Com a evolução da economia e da sociedade, o passar do interesses do liberalismo econômico, como resultado das pressões pela
tempo e a sucessão das gerações, operaram-se mudanças e surgiram liberalização dos mercados para melhor viabilizar a expansão do capi-
novos interesses. Em conseqüência, Hgrupos da sociedade colonial nas- talismo industrial. Na Europa, a expansão industrial também rompeu a
cidos na Colônia, e mesmo alguns portugueses nela residentes, come- estrutura de classes até então existente, gerando novas classes sociais:
çaram a pensar o Brasil comà uma unidade diversa de Portugal" (Fausto, a burguesia é o proletariado.
1995, p. 113). Foram desaparecendo os laços com Portugal e surgin- No Brasil, romanticamente, tentou-se transplantar as idéias po-
do a consciência de brasilidade, de ser brasileiro. "A consciência líticas liberais mais avançadas, que expressavam a ideologia da burgue-
nacional foi se definindo na medida em que setores da sociedade da sia em ascensão na Europa, mas conservaram-se as estruturas coloni-
Colônia passaram a ter interesses distintos da Metrópole, ou a identifi- · ais: latifúndio, monocultura, escravidão, patriarcalismo, produção pri-
car nela a fonte de seus problemas" (Fausto, 1995, p. 113). As mani- . mária voltada à exportação etc. No Brasil, ao contrário, a Revolução
festações mais relevantes foram a Inconfidência Mineira (1789) e a Industrial ainda não havia chegado. Não havia indústria e, portanto,
Revolução Pernambucana de 1817. As principais fontes inspiradoras nem burguesia nem proletariado. As condições eram distintas. E os
eram as idéias liberais francesas e a revolução americana. resultados também o foram.
Por ocasião da Independência, a população brasileira era esti- A forma como se deu a emancipação politica não possibilitou a
mada em torno de cinco milhões de habitantes, sendo que os brancos formação da nação. Ao contrário, a Independência foi pouco mais que
representavam cerca de 30% desse total. A grande maioria da popula- um arranjo político de cúpula: manteve-se o regime monárquico, e o
ção era constituída de negros e mulatos (em geral escravos), mestiços herdeiro do trono português tornou-se Imperador do Brasil; manteve-
de variados matizes e índios que aceitavam a submissão ao colonizador. se a mesma estrutura econômica e o sistema escravista, com uma es-
Éramos, então, um país quase sem povo, pois po\/o é o conjunto trutura social dicotomizada e acentuada discriminação. A sociedade
dos cidadãos. Conseqüentemente, não formávamos propriamente uma brasileira continuou sendo formada basicamente de senhores e escra-
nação, já que a maioria estava real e/ou juridicamente excluída. E o vos; os numerosos mestiços e brancos pobres permaneceram margina-
sistema escravista ainda continuou oficialmente por mais 66 anos. lizados e sem perspectivas; a classe média era ainda incipiente. Sem
Mais: a abolição não representou uma efetiva ruptura com o sistema condições objetivas, o transplante ideológico-político-administrativo

152 153

~
tornou-se apenas um pálido reflexo do modelo das matrizes européias
- imagem da pequena burguesia nacional alienada (bacharéis, intelectu- do trabalho. Nos estados do Sul, como pequenos proprietários rurais
ais, burocratas, comerciantes etc.). autônomos, fundaram numerosos núcleos coloniais e desenvolveram
uma policultura variada e a criação de aves e animais domésticos - uma
Assim, a autonomia política não foi suficiente para superar a economia voltada à subsistência da família, com excedentes para o
nossa situação colonial. Sem conseguir implantar um projeto nacional mercado interno. Em conseqüência, foi surgindo uma classe média ru-
que contemplasse também a independência econômica e cultural, a ral com crescente poder aquisitivo. Nos núcleos coloniais surgiu tam-
autodeterminação ficou comprometida, revelando-se apenas formal, bém a agroindústria e instalaram-se oficinas e fábricas.
mais aparente do que real, quase ilusória. A situação de dependência
continuou, permanecendo o país numa posição subalterna, mero refle- Para São Paulo, diferentemente, os imigrantes foram atraídos
xo das necessidades, dos interesses e das açôes dos centros de poder com o objetivo de fornecer trabalhadores para a grande lavoura, sobre-
mundial. Dá mesmo modo que no período colonial, também durante o tudo do café, em substituição aos escravos. Com trabalho duro e acen-
Império (1822-1889) e a Primeira República (1889-1930) o Brasil con- tuado senso de economia, apesar da exploração e das injustiças sofri-
tinuou a desempenhar uma função econômica complementar: produ- das, conseguiram amealhar recursos e tornar-se proprietários rurais,
ção e exportação de alguns gêneros alimentícios e matérias-primas tro- ou estabelecer-se no comércio, ou instalar oficinas e fábricas. Enquan-
picais e importação de produtos manufaturados. to alguns chegaram a ser capitães de indústria, já no século XX, outros
trabalhavam como operários e tiveram participação ativa na organiza-
Com a rejeição de Portugal, e ridicularizando o português atra- ção do movimento sindical.
vés de farto anedotário, o Brasil e os brasileiros - já que nos considerá-
vamos incapazes de construir identidade, cultura e civilização originais Um possível projeto de construção de uma sociedade industrial
- passamos a adotar duas outras fontes de influência, consideradas su- não fazia parte da política do Império, nem da classe dominante e das
periores: a Inglaterra e a França. elites políticas. Comprometidas com os interesses da economia
agroexportadora, sua visão estreita estava mais voltada para a perpetu-
A influência inglesa foi mais saliente nos campos da economia,
ação do passado do que para a construção do futuro. Moviam-se ape-
das finanças, do comércio, da política, na área dos transportes e na
nas em face da incipiente pressão de novos interesses fracamente arti-
moda masculina (fornecimento de produtos manufaturados, aquisição
culados e, portanto, incapazes de provocar mudanças profundas. Al-
de gêneros alimentícios e matérias-primas, concessão de empréstimos,
guns propósitos, expressos na retórica liberal, esbarravam no proble-
imitação grosseira e desvirtuada do sistema parlamentarista de gover"
ma da escravidão: a economia era movida pelo braço escravo e o pen-
no e do bipartidarismo durante o Império, estradas de ferro, trem, ser-
samento maciçamente dominante era de que a abolição do sistema
viço de bondes, uso do fraque, da cartola, da bengala, do guarda-chu-
escravista levaria a economia do país ao caos. Confundia-se a econo-
va, da casimira inglesa etc.). A França, por sua vez, foi nossa matriz
mia do país com os interesses da classe senhorial. Seus integrantes
cultural, principalmente no campo das idéias, das letras e das artes
ignoravam ou faziam de conta não ver o que se passava lá fora. O
(filosofia, literatura e manifestações artísticas), no campo da educação,
mundo se transformava sob o influxo do liberalismo econômico e o
através da importação de sistemas de ensino e da ação de ordens reli-
Brasil permanecia praticamente imobilizado.
giosas, como os capuchinhos, os lassalistas os irmãos maristas e as
1

freiras do Sagrado Coração de Jesus, entre outras, e ainda na moda


feminina, na culinária, na etiqueta etc. 2.4.1 · Oportunidade Perdida
O ingresso de imigrantes europeus, após a Independência, e
especialmente no período que vai de 1875 até as primeiras décadas do Em meados do século XIX, dois fatos importantes poderiam ter
século XX, provocou mudanças significativas no perfil da economia e favorecido a emergência de um surto industrial no Brasil, mas não con-
da sociedade brasileira. Os imigrantes contribuíram decisivamente no seguiram abalar as estruturas e a mentalidade dominante: a denúncia
processo de crescimento e diversificação da economia e de dignificação do Tratado de Comércio com a Inglaterra (1844) e a extinção do tráfi-
co negreiro (1850).
154
155
)
Ao se opor à renovação do Tratado, o governo brasileiro elevou ressonância - nem na sociedade, nem no governo. Ao invés de empre-
as taxas alfandegárias de importação dos produtos ingleses, colocan- sários, passamos a ter mais rentistas. Ao invés do aumento e da diver-
do-as no nível das taxas cobradas para a entrada dos produtos de ou- sificação da produção, a manutenção e a acumulação dos cabedais se
tros países, Com a elevação das taxas de importação, a concorrência fazia através dos lucros financeiros obtidos pelos aplicadores e presta-
dos produtos importados passava a ser bem menor, o que poderia esti- mistas. A mentalidade parasitária da escravidão, que contaminava a
mular o surgimento de fábricas no país, para suprir o mercado interno. classe senhorial do mundo rural, consolidava-se também nos degraus
Também, o Tesouro aumentou a arrecadação, o que lhe permitiu não financeiros mais altos do mundo urbano e político, onde já vinha cres-
apenas sair do sufoco financeiro, mas ainda contar com recursos para cendo há algum tempo. E continuou predominante.
investir em obras públicas. É verdade que a decisão de romper o Trata-
do foi tomada para fazer frente às dificuldades por que passavam as A extinção do tráfico de escravos teve também outra conseqüên-
contas públicas, e não propriamente com o objetivo de estimular ou' cia colateral importante: a destruição da frota mercante brasileira de
proteger a~ atividades industriais. Estas, se ocorressem, seriam uma longo curso. Como e por que ocorreu? Desde que os ingleses abando-
decorrência paralela dependente da iniciativa privada, aproveitando naram o tráfico negreiro (1807), os armadores e traficantes brasileiros
oportunidades e as condições favoráveis criadas, fora dos estreitos pro- assumiram o controle, não apenas do tráfico, mas de todo o comércio
pósitos do governo. com uma vasta extensão da costa africana, que ia desde a Guiné até
Madagascar. Por outro lado, a Inglaterra, movida pelos interesses da
Com a extinção do tráfico de escravos houve a liberação de ex- indústria, passou a exercer pressão pela extinção do tráfico de escravos
pressivo volume de capital, que até então era imobilizado nesse negó-
no mundo. Diante das pressões e por força de compromissos assumi-
cio ou na reposição do estoque de cativos, pelos senhores, através da
dos em tratado, o governo brasileiro fez aprovar uma lei (1831) que
importação de novas peças. Esse capital, que então se tornava disponí-
previa o fim do tráfico, severas penas aos traficantes e declarava livres
vel, poderia ter sido orientado para investimentos produtivos em ativi-
os escravos que entrassem no Brasil, após aquela data. A lei, porém,
dades industriais, alavancando um processo de transformação econô-
não foi aplicada. Na prática, era apenas "para inglês ver", como se
mica do país. Havia o exemplo da Inglaterra e dos Estados Unidos,
onde o capital liberado com a extinção do tráfico negreiro (1807) tive- dizia. A Inglaterra, por sua vez, foi endurecendo sua posição, já que por
ra relevante papel na alavanéagem da Revolução Industrial. tratado (1826) tinha se reservado o direito de investigar, em alto mar,
navios suspeitos de comércio ilegal. A posição da Inglaterra tornou-se
Infelizmente, no Brasil daquela época quase não havia empreen-. ainda mais drástica em 1845, quando o Parlamento daquele país
dedores. A classe econômica dominante era constituída de grandes aprovou um ato (Bill Aderdeen) que autorizava "a marinha inglesa a
proprietários rurais, de grandes comerciantes de exportação e impor- tratar os navios negreiros como pin:~têls, com direito à sua apreensão e
tação e de traficantes de escravos. E os comerciantes-traficantes faziam julgamento dos envolvidos pelos tribunais ingleses" (Fausto, 1995, p.
também a intermediação financeira direta com os proprietários rurais, 194-5),
e se apropriavam de parcela significativa da renda agrícola, via cobran-
ça de juros, Calcula-se que ao longo das décadas em que a Inglaterra comba-
teu o tráfico negreiro foram apreendidos e destruídos cerca de 850
Com a ruptura, o capital acumulado através do comércio, do navios brasileiros de longo curso. Ao ser extinto o tráfico, a frota mer-
tráfico e dos juros foi apenas em parte investido em negócios próprios cante brasileira estava reduzida a pcuco mais de cinqüenta navios, em
ou em títulos. A parcela maior, em vez de orientar-se para os investi- estado precário de conservação. Sem navios e sem poder maritimo,
mentos de risco abrindo novas frentes econômicas, foi predominante-
num tempo em que a navegação era o único meio de transporte inter-
mente canalizada para o consumo de produtos importados e para a
nacional, o Brasil, que chegara a ter a segunda maior marinha do mun-
especulação financeira. Os que defendiam a criação de um sistema
do, ficou na dependência de armadores e navios ingleses ou de outras
financeiro voltado à captação dos recursos disponíveis da sociedade e
bandeiras (Caldeira, 1995, p. 220-1).
ao financiamento da produção, com juros baixos, não encontraram

156 /'
157
Mauá iniciara-se na vida dos negócios na atividade comercial e,
Outra medida importante nessa época foi a nova Lei de Terras
por conta própria, adquiriu sólida compreensão do mundo da econo-
(1850). A partir de então, as terras públicas não mais seriam doadas. mia. Coerente com suas idéias, vendeu sua participação acionária nas
Quem pretendesse ser proprietário, precisava comprar a terra. Essa
empresas comerciais, e com o dinheiro comprou a fundição e estaleiro
medida expressava principalmente os interesses dos proprietários das
da Ponta de Areia, no Rio de Janeiro, que se tornou a maior indústria
grandes fazendas de café, em expansão, que precisavam cada vez mais do país, na segunda metade do século XIX. Nela desenvolveu, a par da
de braços, justamente no momento em que a escravidão recebia seu fundição de ferro, a construção de navios e uma variedade de outros
primeiro grande golpe (extinção do tráfico). produtos de metalurgia.
O objetivo da medida era impedir ou retardar aos imigrantes,
Esteve à frente de várias outras iniciativas empresariais pionei-
geralmente pobres, o acesso à propriedade da terra, obrigando-os a
aceitarem a c.,ndição de assalariados ou outras formas de subordina- ras, como: a fundação (ou refundação) do Banco do Brasil (1851), que
mais tarde foi estatizado; a fundação do Banco Mauá; a construção da
ção aos fazendeiros de café pelo maior tempo possível. A lei trouxe
também outra conseqüência nefasta: impediu na prática que os pobres primeira estrada de ferro; a iluminação a gás no Rio de Janeiro; o
em geral e os ex-escravos (quando da abolição) se tornassem proprietá- primeiro cabo submarino ligando o Brasil com a Europa; a companhia
rios de terra. Ficaram impedidos de criar condições para o trabalho de navegação do Amazonas; e fazendas de criação de gado. Chegou a
autônomo e a emergência social. Com isso, manteve-se a discrimina-
ter dezessete empresas, atuando em seis países (Brasil, Inglaterra, Uru-
guai, Argentina, França e Alemanha). Tornou-se o homem mais rico
ção e a exclusão.
do país, cujo patrimônio superava o orçamento do Império, na década
de 1860.
2.4.2 · Uma Estrela na Escuridão À frente de seu tempo, foi um inovador, como empresário e
como administrador. Defendia a criação de boas empresas, em fren-
O maior empresário brasileiro do Império e um dos maiores do
tes pioneiras, com base em rigorosos estudos técnicos, e sempre com
mundo, na época, e também um dos homens mais informados e a 1 1
outros sócios. Descentralização gerencial, acompanhamento vigilante
cabeça mais lúcida do pensamef!to econômico liberal - lrineu Evangelista
e responsabilidade Pf'Ssoal de cada funcionário. Foi o primeiro empre-
de Sousa, barão e visconde de Mauá - estava convencido de que não
seria possível viabilizar o desenvolvimento do Brasil sem resolver duas l sário do mundo a integrar diversas empresas num único conglomera-
do, dando início ao complexo financeiro-industrial. Mas era um gigante
1 1'
questões básicas: a do capital e a do trabalho. 1 num país de pigmeus - empresariais e políticos-, amarrado pelo siste- 1

Quanto ao capital, era necessário, na sua visão, substituir o tra- ii- ma escravista.
ficante de escravos prestamista pelo banco, na função de agente finan- ie' .
ceiro básico da economia (Caldeira, 1995, p. 273). Adotar uma práti-
ca de juros baixos, reduzindo os ganhos dos aplicadores e estimulando !
;
Se Mauá, acompanhado de alguns seguidores menores, corria a
favor da história, na linha do pensamento liberal, tinha contra ele o
imobilismo conservador do Império. "No Brasil imperial havia uma cren-
1.
os investimentos nos setores produtivos. Incentivar o associativismo ' ça forte de que a agricultura era a única grande fonte de riqueza, e que
1 '

empresarial e as sociedades por ações, atraindo sócios em vez de ir'


além dela só o comércio podia se desenvolver no país" (Caldeira, 1995,
rentistas. E, a exemplo da Inglaterra, priorizar os investimentos na in- lt p. 251). Acreditávamos que nós brasileiros não tínhamos a capacidade
11
l/1:
1,
dústria, além de construir uma infra-estrutura adequada, em face de um ,'
inventiva dos povos "superiores" da Europa e dos Estados Unidos para
mundo novo e competitivo que emergia. E pôs mãos à obra.
desenvolver, aqui, uma atividade exigente como a indústria.
Em relação ao trabalho, defendia a extinção do sistema escravista,
a implantação do trabalho livre, o treinamento da mão-de-obra com a Os conservadores, e o próprio Imperador, não viam com bons 1 il
'
1

participação da própria empresa e a valorização do trabalho através de olhos a desenvoltura econômico-financeira de Mauá. O exemplo da
!:
salários mais altos, para ter o melhor pessoal e obter o melhor desem- Inglaterra e dos Estados Unidos não contagiava a elite endinheirada do 1,

penho possível. Brasil. Apenas uma pequena parcela dos capitais disponíveis foi cana- 11

11;

158 159 11

1 J,i

i
'
lizada para investimentos produtivos. A grande maioria dos capitais - Inculcaram-nos o preconceito de inferioridade em relação ao
antes investidos no tráfico e na compra de novos escravos, e agora nosso clima e ao nosso povo. E nos convencemos de que éramos um
liberados - passou a ser aplicada a juros nos bancos ou em ações de povo inferior vivendo num clima inferior - um país sem possibilidade de
empresas, neste caso à espera de imediatos dividendos. Em vez de construir um destino próprio .
mais empreendedores, o país passou a ter mais rentistas. Até as primeiras décadas do século XX, era tido como científico
A estatização do Banco do Brasil atendeu aos interesses dos que grandes culturas e grandes civilizações só poderiam florescer em
aplicadores, mantendo os Juros altos, o que possibilitava também o regiões temperadas ou frias. No caso do Brasil, isso não era possível,
financiamento do déficit público. E assim os homens de dinheiro - como pois o nosso país está situado na zona tropical da Terra. Também era
rentistas, e não como capitalistas - tinham pouco trabalho para acom- tida como científica a crença de que a raça branca era superior, e que o
panhar-lhes o rendimento, e tempo de sobra para consumir os ganhos homem branco não tinha possibilidade de trabalhar nos trópicos. Sua
fáceis de sua§ aplicações financeiras. Aliás, a vida da Corte sofreu gran- pele clara não resistia aos raios ardentes do sol equatorial.
de mudança na segunda metade do século XIX, numa quase imitação Portanto, a situação geográfica e o clima quente dela decorrente
tardia da corte francesa de um século antes. Para atender à demanda eram desfavoráveis ao advento de uma civilização adiantada. Em con-
crescente de bens supérfluos, para regalo e ostentação dos endinheira-
seqüência, estávamos condenados, pela própria natureza, a desempe-
dos, houve necessidade de aumentar as importações, consumindo-se
nhar uma função subalterna no mundo: produção de matérias-primas e
as divisas do país e também fortunas pessoais. cultivo de gêneros alimentícios tropicais a serem fornecidos aos povos
A abolição da escravatura, apenas formal, e a proclamação da "superiores" das regiões temperadas ou frias (Europa e Estados Unidos
República, por um golpe militar, no final do penúltimo decênio do sé- da América).
culo XIX, também não chegaram a abalar as estruturas arcaicas do
passado colonial. O propósito de modernizar a sociedade brasileira, Aliado ao preconcetto em relação ao clima, incorporávamos tam-
através da industrialização e de um esforço educacional, alimentado bém o preconceito de inferioridade em relação ao nosso povo. Ao
pelos primeiros republicanos, permaneceu apenas embrionário, com mesmo tempo em que estávamos convencidos da nossa inferioridade,
limitados resultados práticos. No jogo de forças, os interesses dominan- acreditávamos na superioridade da raça branca européia - só ela capaz
tes do latifúndio ntral acabaram por prevalecer, em detrimento do país de construir uma cultura e uma civilização superior, e destinada por
e da população. Mais uma vez, a maioria do povo foi esquecida, margi- desígnios do alto a submeter, dirigir, mandar e comandar os povos "in-
feriores".
nalizada, lograda.
Em suma, alimentávamos, em relação a nós próprios, todos os
preconceitos que caracterizam e condicionam de forma dependente a
2.5 - Os Preconceitos Coloniais vida dos povos coloniais. Dos preconceitos básicos em relação ao cli-
ma e à cor decorriam os demais, tais como: de inferioridade do negro,
Durante mais de quatro séculos inculcou-se e reproduziu-se, de do índio e dos elementos de cor em geral; da incapacidade hereditária
forma maciça e massiva, a ideologia do colonialismo. Acreditávamos dos mestiços, portadores de taras resultantes de uma miscigenação
naquilo que os outros queriam que acreditássemos, a fim de manter, degenerativa; de preguiça invencível; de incapacidade de trabalho re-
em relação a nós, a sua dominação e exploração. gular e disciplinado, de esforço continuado e construtivo, de apropria-
Preconceito pode ser conceituado como um juízo de valor sobre ção de técnicas modernas e de industrialização; de incapacidade para a
alguém ou alguma coisa, ou em relação a uma situação, sem funda- poupança, a capitalização, os investimentos produtivos e a administra-
mento nos fatos. É um julgamento sem o prévio conhecimento da rea- ção de empreendimentos econõmicos; de incapacidade de organiza-
lidade que está sendo avaliada. Uma vez inculcado, aceito e assumido, ção política e inaptidão para o exercício da democracia; de incapacida-
passa a determinar o pensamento, os interesses, as aspirações, as ati- de de criação original nos campos filosófico, literário, artístico, científi-
tudes, a conduta e as ações dos individuas e também dos povos. . co, tecnológico etc.
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160 161

____...._ Ll
Em conseqüência aprendemos a valorizar e admirar o alheio, o
1
outras por enormes espaços mais ou menos vazios, desabitados. Essas
que é estrangeiro e menosprezar o que é nosso, inclusive a nós própri-
1
"ilhas" ligavam-se mais facilmente com o exterior (Europa) do que en-
os, chegando a ter vergonha de nós mesmos. Igualmente, acreditáva- tre si. Até as próprias vias de transporte e de comunicação estavam
mos ser incapazes, no campo econômico, de viabilizar um processo voltadas para o exterior. Nem as ferrovias nem as rodovias constituíam
industrial próprio, ficando, portanto, condenados indefinidamente a uma rede destinada a põr em contato as diversas regiões entre si. Atra-
sermos importadores de produtos industrializados e exportadores de vés delas escoavam-se para o exterior as matérias-primas e os gêneros
bens primários. Da mesma forma, estávamos condenados à dependên- alimentícios tropicais e traziam-se de fora, até os núcleos povoados do
cia cultural: importação de filosofias, idéias, ideologias, ciências, interior, os produtos industriais e culturais importados, para consumo,
tecnologia, literatura, arte, sistemas políticos, educacionais etc. ornamento e regalo de uma estreita elite alienada, encastelada em pri-
vilégios, vivendo da exploração do trabalho dos outros - escravos ou
Essa ideologia do colonialismo imperou de maneira quase abso-
assalariados mal-pagos.
luta durante todo o período da formação do Brasil. Por mais de quatro
séculos, os preconceitos coloniais impregnaram profundamente a nos- A independência econômica, embora não seja suficiente, é ne-
sa mentalidade, abafando e retardando a emergência e a afirmação do cessária para a efetiva emancipação e para a criação de uma cultura
povo e da nacionalidade. original. Pois, ao exportarmos matérias-primas, estamos exportando
virtualidades, possibilidades de ser. Essas matérias-primas recebem a
Em que grau esses preconceitos ainda persistem? Por quê? Como
forma e o significado que lhes imprimem os que concebem e operam
superá-los? a sua transformação.
É certo que as condições naturais 1 como as circunstâncias histô-
Assim como cada autor imprime na sua obra a marca original,
ricas, influenciam a vida das pessoas e dos povos. Porém, não determi-
própria, da sua personalidade, o mesmo ocorre em relação a cada
nam, apenas condicionam, e devem ser encaradas coma: desafios a
povo, à medida que se auto-assume, se autodetermina e se autoprojeta,
serem superados. operando o seu potencial criativo. 1

Conseqüentemente, essas características negativas, que tanto


Consentaneamente, os produtos acabados que importamos - e
marcaram e ainda marcam ·a nossa vida, o nosso atraso e a nossa
mesmo os que aqui são fabricados com tecnologia importada - refletem
dependência, não são fruto de uma herança invencível, mas o resulta- na sua forma e no seu significado a concepção de homem, de socieda-
do de uma contínua inculcação ideológica dos dominadores para mais de, do mundo e da vida impressa por aqueles que os produziram ou os
facilmente exercerem sua dominação em proveito próprio. Resultam
conceberam, isto é, trazem o complexo de valores e a cosmovisão do-
também de prolongadas condições existenciais precárias, subumanas,
minantes na atmosfera cultural do país em que foram fabricados ou em
a que foi submetida a grande maioria da população do país, durante
que se gerou o conhecimento científico e tecnológico que possibilita a
séculos, e que ainda persistem atingindo extensas camadas. Efetiva-
sua fabricação. E essa antropovisão essa cosmovisão esse complexo
1 1
mente, não é uma questão de raça 1 ou de cor1 ou de clima; mas, sim, de :/
de valores se infundem e influenciam a vida dos indivíduos e povos que
um problema de educação, de cultura e de condições existenciais hu- (
se situam na condição de meros receptores e consumidores.
manas. \,1

De outra parte, a evidência mostra que há uma concomitância ':


entre a independência econômica e a independência cultural. Ê esse
2.6 · Dependência Econômica e Dependência um dado importante no contexto global e no dinamismo da sociedade.
Assim como no plano econômico fomos, durante mais de quatro sécu- ,1
Cultural los, importadores de produtos acabados, fomos, também, no plano
cultural, importadores de idéias prontas e acabadas, pretendendo apli- 1:
O Brasil era um imenso arquipélago, com muitas ilhas humanas, car aqui, copiando-os servilmente, modelos que davam certo em outros
econômicas e culturais diversificadas, isoladas e distanciadas umas das ,,
1:1
países - criados, lá, para dar resposta a problemas e desafios concretos
'I

163
li
162

j,
e identificados de suas respectivas sociedades determinadas num con- - A sociedade era controlada basicamente pelos senhores de terras,
texto histórico determinado. No contexto cultural em que se geram as sendo crescente a presença dos grandes comerciantes de exportação
idéias e os conhecimentos, mantém-se viva a seiva criativa que os impul- e importação e traficantes de escravos, nas principais cidades-portos
siona e os faz avançar e se autosuperar; onde apenas se imita ou copia, do litoral. No extremo oposto da pirâmide social, na condição de
no entanto, o conhecimento tende a cristalizar-se e esterilizar-se. excluídos, estavam os escravos, que, por largo período, chegaram a
A interação cultural entre pessoas e povos é um dado fecundo e constituir a maioria da população. Entre esses dois extremos, sobre-
enriquecedor. Todavia, nós brasileiros permanecemos mergulhados no vivia ou vegetava um numeroso contingente de brancos pobres de
complexo de inferioridade, sem assumir o desafio de criar e dar tam- origem portuguesa (os "miúdos") e de mestiços - marginalizados e
bém a nossa contribuição. Cultivando a mania da imitação, tentávamos sem perspectivas de ascensão numa sociedade primária e escravista,
apenas o tra11splante superficial, artificial, dos modelos e das criações na qual quase ninguém se promovia pelo trabalho, que era conside-
geradas lá fora, para a nossa realidade muito diferente e ainda atrasada rado desprezível. Somente a partir da segunda metade do século XVIII
e pobre, sem adaptá-los, transformá-los e assimilá-los, imprimindo no começou a surgir e se formar lentamente a chamada classe média,
produto cultural estrangeiro a nossa marca, a nossa forma original, o integrada por funcionários públicos, pequenos comerciantes,
nosso modo de ser, o conteúdo da nossa concepção do mundo, do mineradores, alguns letrados e padres oriundos das camadas popula-
homem, da sociedade e da vida. Ao exercitar quase só o esplrito de res, trabalhadores autônomos em ofícios, colonos, pequenos indus-
imitação, não reelaboramos a cultura recebida de fora nem criamos as triais etc. No final do século XIX/início do século XX; a sociedade
nossas próprias produções, os nossos modelos originais. Aceitamos a brasileira já apresentava maior heterogeneidade e crescente Ir
função de instrumentos a serviço dos interesses econômicos alheios ao complexificação, de cujo processo resultava também maior diversifi-
1

Brasil e de reflexos tardios das criações culturais de outros povos. cação de interesses.
Embebidas na cultura européia (Portugal nos três primeiros sé-
- O poder político permaneceu, ao longo do período, concentrado qua-
culos e Inglaterra e França no século seguinte), e refletindo-lhe os inte- I'
se com exclusividade na mão dos senhores de terras, com alguma
resses, nossas elites intelectuais, políticas e administrativas tinham uma
mentalidade importada e uma imagem distorcida do Brasil. Viam o participação dos poucos grandes comerciantes que, estabelecidos nas
Brasil com olhos europeus, e sua ação era influenciada e orientada principais cidades-portos do litoral, controlavam a exportação e im-
pelos padrões e necessidades de fora. De frente para a Europa e de portação e o tráfico negreiro. Após a Independência, a Faculdade de
costas para o Brasil, desconhecendo-nos a nós mesmos, não pensáva- · Direito de São Paulo (1827) e a de Olinda/Recife (1828) tornaram-
mos o Brasil como projeto histórico nosso, não assumíamos a nossa se os núcleos principais de formação dos quadros políticos do Impé-
realidade, para transformá-la. Permaneciamos cegos e surdos aos pro- rio - basicamente filhos da classe senhorial. No Período Colonial e no
i
blemas, às necessidades e às aspirações da imensa maioria da popula- Império, o poder político era centralizado. No Império a vida política
ção. Vivíamos numa posição subalterna, na condição colonial de me- girou em torno dos dois grandes partidos políticos existentes - o
ros importadores e consumidores de produtos industriais e culturais Conservador e o Liberal. Ambos representavam a classe senhorial e,
estrangeiros (Corbisier, 1958, p. 47). na prática, quase não havia diferença entre eles. O Imperador cen- 1ij!
tralizava a coordenação política geral, sobretudo no segundo reina- '.';',
do. Cabia-lhe nomear os presidentes das províncias; escolher os se- [ 1,1

Em síntese:
1

nadores, que eram vitalícios, a partir de uma lista tríplice envíada


- A estrutura econômica, dependente, repousava, nos quatro primeiros pelas províncias; dissolver a Câmara dos Deputados, quando enten- •['.,,
séculos, em cinco pilares básicos: produção primária, destinada à desse ser· do interesse do país, para que se procedesse a novas elei- ,·;

ções; indicar o primeiro-ministro, e ainda influenciava na escolha dos i


exportação, realizada no latifúndio, por mão-de-obra escrava ou as-
salariados mal-pagos, e com características de monocultura. À mar- nomes para a formação do gabinete. No entanto, o Imperador não
gem ou com função complementar, as pequenas lavouras de subsis- era responsável pela ação do governo, pairando Sua Majestade fora :(
i":1
tência da ampla maioria de deserdados. e acima das disputas políticas, não podendo ser criticado por atos da (1
1
1
li'
164 165 !,I

!·!
r,
1
(
administração. Toda a responsabilidade do governo cabia ao Ministé- - A grande maioria da sociedade, mantida na submissão, tinha apenas
rio, sob a coordenação de um primeiro-ministro. Até quase o final do necessidades primárias, subatendidas nos desvãos e à margem da
lmpério o voto era censitário, dependente da renda, sendo que cada
1 ordem dominante estabelecida, A educação estava voltada para a
cem cidadãos masculinos proprietários ou com renda indicavam um elite, para a preparação dos quadros dirigentes; destinada a garantir
eleitor que os representava na escolha dos deputados gerais ou pro- privilégios e dar prestígio social; orientada para a manutenção da
vinciais. Na Primeira República (1889-1930), houve ampla descentra- sociedade, e não para a sua transformação. Nem a economia nem o
lização administrativa, ficando o poder sob o controle das oligarquias sistema produtivo exigiam preparação para o trabalho. O que era
regionais em cada Estado (do açúcar, do café, do gado etc.). Com necessário, nos padrões vigentes, aprendia-se na prática. As massas
isso, o mandonismo local dos senhores de terras adquiriu também permaneciam incultas, alienadas, excluídas. Em conseqüência, Ingres-
uma dimensão estadual. Nessa primeira fase republicana, o sistema samos no século XX com cerca de 80% da população ainda analfa-
político vigente apresentava quatro características principais: beta,
a) o coronelismo, que teve origem na época colonial com os "homens Somente cem anos após a emancipação política, isto é, na déca"
bons" {grandes proprietários rurais e mineradores). Só eles podiam da de 1920, adquiriu dimensões o processo de ruptura com o passado
votar e ser votados para as câmaras municipais. Esse poder foi forta- colonial.
lecido no Império, com a criação da Guarda Nacional, cujos coman-
dantes, de confiança do Imperador, nos diversos pontos do país, re-
cebiam o título de coronel. Finalmente, na República, os coronéis,
elementos das classes dominantes, como intendentes (prefeitos), con-
trolavam o poder político na base - o município - e respaldavam o
poder das oligarquias estaduais;
b) a ausência de partidos políticos nacionais - havia apenas os parti-
dos republicanos estaduais, sem qualquer vínculo do partido de um
estado com o de outro estado;
c) a Política dos Governadores, que foi estabelecida na virada do sécu-.
lo XIX para o século XX, no governo de Campos Sales (1898-1902),
e consistia num grande acordo político entre as oligarquias dos diver-
sos estados, liderados por São Paulo e Minas Gerais, visando ao con-
trole da ordem vigente e do poder politico em nível de país, em face
da ausência de partidos de âmbito nacional;
d) apo/ftica do café-com-leite, que expressava a hegemonia dos cafei-
cultores de São Paulo e fazendeiros de gado (e de café) de Minas
Gerais, revezando-se na Presidência da República. Apoiava-se no
coronelismo e nas oligarquias estaduais e dominava o cenário políti-
co e econômico nacional.
Com o voto a descoberto e controlando os pleitos, todos, em
todas as instâncias, faziam uso da coação e da fraude eleitoral. O gran"
de vazio era a ausência da entidade Povo como força de orientação
política. A cidadania era quase uma ficção.

166 167
A Crise de Transição da
Década de 1920

As estruturas da sociedade brasileira, que, herdadas do passado


colonial, se prolongaram por cerca de cem anos após a emancipação
politica, chegaram a um quase completo esgotamento no início do sé-
culo XX, ou, mais precisamente, na década de 1920. Diversos fatores 1

e circunstâncias amadureceram e conjugaram-se, então, constituindo


o contexto emergente e complexo que fez desse periodo uma fase i!
importante de transição da evolução histórica brasileira. Em conse-
qüência, na década de 1920, a nação viveu sua primeira grande crise i!l
global aguda. :1
A crise pode ser caracterizada como um periodo de crescente i
J:
insatisfação, descontentamento e tomada de consciência de que a con- 1)1
I'
tinuidade do status quo não mais satisfaz, ou é tida como inviável. A
sociedade evolui para a busca de novas alternativas. Aumenta o núme- ,:
,,,'li
ro de descontentes e crlticos, amplia-se a discussão e eleva-se o calor ·1.i

dos debates em torno da situação e das saldas propostàs. Não havendo


medidas saneadoras aceitáveis e confiáveis, dentro da ordem legal vi-
gente, cresce a ação dos que propugnam por mudanças mais profun-
r
das, inclusive através do uso da força armada. Um período de crise é
sempre fecundo. Há uma fermentação de idéias, pois a crise, em es-
sência, é a busca de saída de uma situação tida e sentida como não-
l
satisfatória.

169
No caso brasileiro, a Primeira Guerra Mundial favoreceu o des- Brasil (PCB), em março, marcou a tentativa de organização política da
pertar da consciência nacional, sacudindo o torpor da sonolência his!6- classe operária em emergência; a criação do Centro D. Vital, com sua
rica. O conflito mundial mostrou que os países necessitavam de pode- revista A Ordem, de orientação cat61ica, assinalava o inicio de impor-
rosas forças armadas e que a segurança nacional dependia também do tante esforço de renovação espiritual; a revolta do Forte de Copacabana,
seu desenvolvimento econômico e social. O Brasil começou a perce- em julho, desencadeou o Movimento Tenentista, que levou os militares
ber-se como país periférico, dependente. E a não-aceitação dessa situ- a uma crescente, presença e participação na vida política e administra-
ação começou a ganhar consistência. Alguns setores da sociedade pas- tiva do país (Trindade, 1979, p. 7).
saram a preocupar-se com a superação do atraso hist6rico e com a As mudanças no Brasil processavam-se no contexto mais amplo
necessidade de imprimir novo ritmo e um novo rumo ao país. A eman- de um mundo também em transformação.
cipação política passou a ser percebida mais como ficção do que como
realidade efetiva. Apresentava-se, então, o desafio de completar a obra
da Independência. Para isso, fazia-se mister construir a independência 3.1 -Transformações no Mundo
econômica e a independência cultural. Pensar em independência eco-
nômica era apontar no rumo da .industrialização. Para corroborar esse
Para melhor compreensão das mudanças que se operavam na
pensamento bastava olhar para os países adiantados do mundo, que
sociedade brasileira, nesse período, é importante percebê-las no con-
tinham realizado o seu progresso através da implantação de um dinâ-
texto global das transformações que ocorriam no· mundo a partir da
mico parque industrial.
Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Três ingredientes novos tive-
A velha ordem, comandada pelos interesses do latifúndio expor- ram maior relevo.
tador, perdia sustentação, enquanto, de outra parle, cresciam as forças Primeiro, no mundo capitalista, dava-se o deslocamento definiti-
que propugnavam pela renovação da vida nacional. vo do poder, da Europa para os Estados Unidos da América. As gran- 'i
Importantes transformações operavam-se em diversos níveis: o des potências européias (Inglaterra, França, Alemanha e Itália) desgas- i!
processo de industrialização da.economia ganhava impulso; novas clas- taram-se com a guerra, e seu poderio e sua influência no mundo entra-
ses sociais - burguesia e proletariado - emergiam no cenário social e ram em declínio, enquanto, por outro lado, aproveitando as circuns-
político; a legitimidade do sistema político, dominado pela aristocracia tâncias favoráveis do conflito, ocorria a emergência e projeção dos
agrária exportadora, passava a ser questionada; mudanças ideológicas EUA como potência mundial, assumindo o comando do mundo capita-
operavam-se entre as elites intelectuais, elevando o calor dos debates lista e liderando a segunda fase da Revolução Industrial, marcada pelo
em torno dos problemas nacionais e da busca de novos rumos para o petr6leo, pelo automóvel, pelo avião etc. Encerrava-se a chamada fase
pais; uma nova concepção literária e artística, voltada para a descober- inglesa e passava-se para a fase norte-americana. E o Brasil transitava
ta do Brasil e comprometida com o seu destino, emergia, buscando da órbita da Inglaterra para a órbita dos Estados Unidos (da libra para o 11
alimentar-se nas raízes da nacionalidade - a par de outras mudanças dói.ar), estreitando progressivamente seus vínculos com os interesses li
também significativas. do novo centro de poder mundial. 1
11
Coincidentemente, o ano do centenário da emancipação políti- Segundo, a Europa entrou em aguda efervescência sociopolítica,
ca - 1922 - pode ser tomado como o ano-chave desse processo de em que o jogô•de forças das classes sociais, dos partidos, dos grupos e /.'i
transição hist6rica da sociedade brasileira. Foi ele assinalado pela eclosão das facções, em confronto ou disputa de posições, provocava generali- I'
,ii
de alguns acontecimentos simbolicamente marcantes dessa fase, com zada confusão. Os gastos e a destruição provocados pela guerra, a :!
desdobramentos importantes no futuro. Foram eles: a Semana de Arte inflação, as precárias condições de vida e de trabalho de grandes par- i.l
1,

Moderna, em fevereiro, em São Paulo, com repercussões praticamen- celas da população e outras conseqüências amargas do conflito haviam Í"
te nacionais, desencadeou a revolução estética e se tornou o grito de criado um ambiente de insatisfação e incerteza e de aguçadas reivindi-
independência cultural do Brasil; a fundação do Partido Comunista do cações provindas principalmente das camadas trabalhadoras. Esse qua-
il

170 171

-"-"""---
º"T ,1 1:
1

: 'i,:
dro era agravado, ainda, pela fraqueza, indecisão e indefinição das au- 1 3.2 - Mudanças Econômicas
toridades e dos governos de praticamente todos os países atingidos '
' \i
pela hecatombe. Os governos democráticos mostravam-se incapazes No plano econômico, as mais significativas mudanças que se
de conduzir a sociedade à superação dos problemas e conflitos inter- operaram no Brasil, a partir das primeiras décadas do século XX, ocor-
nos. Esse ambiente exasperado criou as condições objetivas para o reram em duas direções. De um lado, esgotaram-se as possibilidades de
i
surgimento de regimes totalitários em vários países, como o nazismo crescimento da economia baseada na expansão da produção de bens 1
(Alemanha), o fascismo (Itália), o franquismo (Espanha) e o salazarismo primários destinados à exportação, particularmente o café; de outro
(Portugal). lado, intensificou-se o processo de industrialização, a partir da Primeira
Terceiro, '1ª Rússia, em 1917, em plena guerra, ocorreu a vitó- Guerra Mundial.
ria da Revolução Socialista. Esse fato teve influência crescente no mun- Durante um século, desde a Independência, o café foi o produto-
do. O socialismo/comunismo deixava de ser apenas uma teoria que base da economia brasileira, Todavia, já a partir dos primeiros anos do
podia ser encontrada nos livros e na cabeça de alguns "sonhadores" e século XX, o café passou a enfrentar uma crise de superprodução. Tal
passava a ser um ideal colocado em prática numa sociedade determi- situação provocava forte tendência de queda dos preços no mercado
nada e, ainda, com pretensões de rápida expansão no mundo através mundial. Sob pressão dos cafeicultores, o governo foi levado a adotar
da Internacional Socialista, uma política de garantia dos preços, com a utilização de recursos públi-
cos, provenientes do orçamento, de emissões e até de empréstimos
Deve-se ressaltar, também, que, no pós-guerra, se acelerou, de externos. Com tais recursos, o governo adquiria e armazenava os ex-
forma crescente, o processo de monopolização da economia. Esse pro- cedentes da produção anual de café sem colocação no mercado. Em !'
cesso era ainda baseado nas economias nacionais, mas já apresentava contrapartida, os produtores comprometiam-se a não expandir suas
crescente tendência supranacional. Desse fato e dessa perspectiva de- lavouras, já que havia superprodução e o cafeeiro é uma planta perene,
corria a necessidade de os mentores capitalistas, cujo centro mais po- continuando a produzir por cerca de vinte ou mais anos.
deroso passava a localizar-se nos EUA, reunirem-se mais organicamente Essa decisão foi acertada na Convenção de Taubaté, São Paulo,
e planejarem as coisas em conjunto. Que papel cabia aos empresários em 1906, através do famoso Acordo de Taubaté, entre cafeicultores e
americanos, quando seu país assumia a liderança do mundo? Para pen- o governo. Na prática, essa política de impedir o aviltamento dos pre-
sar e definir estratégias comuns, os representantes dos mais poderosos ços do café no mercado às custas dos cofres públicos era um expedien-
grupos econômicos norte-americanos - grandes empresários, banquei- te simplista de capitalização dos benefícios em favor do segmento
ros e políticos influentes - criaram, em 1921, o famoso Conselho de hegemônico dos fazendeiros de café e de socialização dos sacrifícios,
Relações Exteriores (CRE). Apesar de se apresentar como entidade distribwdos sobre a totalidade da população. Embora com dificuldades
privada e apartidária, passou ele a influenciar decisivamente, dai por financeiras, o governo, especialmente do estado de São Paulo, cum-
diante, toda a política externa dos Estados Unidos, naturalmente em priu a sua parte no acordo. Os fazendeiros, no entanto, continuaram a
função da expansão e consolidação de seus negócios e da hegemonia expandir suas fazendas de café, pois tinham preços e comprador ga-
norte-americana. rantidos.
Outra mudança em marcha no mundo - e que se acelerou nesse Um acontecimento externo, no final da década de 20, abalou a
período do pós-guerra - foi a emergência e crescente afirmação do economia mundial e a economia brasileira, com forte impacto negativo
operariado como ator político de peso, em muitos países, particular- sobre o café: a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em outubro
mente nos de maior desenvolvimento industrial. de 1929. "Tudo o que parecia sólido desmanchou-se no ar.". Fortunas
evaporaram-se quase da noite para o dia. A falência da Bolsa desenca-
As mudanças no Brasil relacionam-se com essas e outras trans- deou violenta crise econômica que atingiu profundamente os EUA e os
formações em curso no mundo. países da Europa e teve reflexos negativos sobre o nosso principal pro-

172 173
duto de exportação - o café, esteio da nossa economia. Por quê? Os arrefeceu, em face da concorrência dos produtos importados. Os paí-
Estados Unidos eram o nosso principal comprador de ·càfé. Além de ses da Europa e os Estados Unidos, buscando superar os traumas da
ser o maior consumidor, fazia também a intermediação no comércio
mundial. E os negócios eram predominantemente fechados na Bolsa
guerra e reordenar suas economias, partiram para uma agre!;,siva poli-
tica de exportação de industrializados. A grande exposição internacio- ·,i
de Nova York. Com os países consumidores em crise e os respectivos
governos adotando politicas duras de contenção para a recuperação de
nal, no Rio de Janeiro, em 1922, em comemoração do centenário da
nossa Independência, da qual participaram como expositores cerca de
I:f' ,1

suas economias - inclusive o crédito externo foi suspenso - as exporta-


ções de café despencaram e os preços aviltaram-se no mercado inter-
nacional. Em conseqüência, o café deixava de ser um investimento
cinqüenta países, foi uma excelente oportunidade, para eles, de apre-
sentarem ao público suas novidades, o que lhes permitiu reconquistar
parcela significativa do mercado brasileiro, em detrimento da incipiente
li
atrativo. indústria nacional. [

Por outro lado, a Primeira Guerra Mundial teve influência na É certo que na segunda metade do século XIX - durante o Impé-
criação de condições favoráveis para a decolagem do processo de in- rio e no início da República - surgiram .alguns núcleos industriais no
dustrialização do pais. O bloqueio econômico no Atlântico dificultou as
exportações e as importações. Houve também a suspensão da entrada
país, graças a circunstâncias e impulsos intermitentes. No entanto, o
processo de industrialização no Brasil - sem solução de continuidade e il
de capitais estrangeiros. As economias dos países beligerantes foram com crescente aceleração, e que pôs fim à quase exclusividade da eco-
orientadas para atender prioritariamente às necessidades do conflito. nomia agroexportadora - iniciou-se apenas a partir do primeiro confli-
,1
Assim, o mercado interno brasileiro ficava livre para a iniciativa nacio-
nal - quase sem a concorrência dos produtos importados. Com a escas-
to munclial. O bloqueio econômico internacional, provocado pela guer-
ra, dificultando a importação de produtos industrializados, e a crise do
(
sez, ·os preços subiram. E a demanda do mercado interno impulsionou· café colocaram a economia brasileira diante de uma única alternativa: ,:
1

um surto próprio de industrialização no país. A indústria mostrava-se voltar-se para o mercado interno. '
1
uma atividade econômica promissora. Como a exportação também
estava dificultada, operou-se relativa transferência de recursos financei- O número de estabelecimentos industriais existentes, ou criados li
ros, do setor agroexportador para o setor urbano-industrial. As dificul- no país em determinados momentos ou períodos ilustra a evolução da 11

dades de importação levaram também um número crescente de comer- indústria. Ei-los: no final do Império, 600; em 1907, por ocasião do 1
ciantes a direcionarem parcela de suas disponibilidades financeiras para primeiro recenseamento industrial do país, 3.258; de 1890 a 1914
atividades industriais, com vistas ao atendimento da demanda. (24 anos) foram criados 6.993; de 1914 a 1919 (cinco anos, durante
a guerra) foram criados 5.940 e, no mesmo período, a produção indus- I!
A crise do café comprovava definitivamente a vulnerabilidade e trial cresceu 109%, em termos reais; finalmente, em 1920, o recense-
a inviabilidade da monocultura exportadora como sustentáculo da eco- amento registrava a existência de 13.336 indústrias no país. 11
nomia. E, conseqüentemente, prBssionou no sentido da criação de novas
fontes de riqueza. E a indústria era tida como o setor preferido e defen-
dido pelos que desejavam a modernização do pais, retirando-o do atra- Tabela 3 - Autorização de Funcionamento de Sociedades Anônimas 11

so colonial em que ainda se encontrava. no País -Anos de 1909, 1910 e 1911 '

Por ocasião da visita do rei Alberto, da Bélgica, em 1920, o país Ano Nacionais Estrangeiras
deu um passo importante num ramo fundamental da indústria básica -
1909 10 21
a siderurgia-, com a criação da Companhia Siderúrgica Belga-Mineira,
uma empresa de médio porte (grande na época), formada de capitais 1910 9 23
belgas, luxemburgueses e brasileiros.
1911 13 42
Se o surto industrial durante a guerra permitiu ao Brasil fazer até
algumas exportações de têxteis, depois do conflito, no entanto, ele Fonte: Correio do Povo, 25 de dezembro de 1977, p. 21.

174 175

..
ue ourra parte, e s1gnlticativo reterir-se também à presença cres- A chamada classe média, sempre heterogênea, também foi rea-
cente do capital estrangeiro no país. Estabelecia-se, desde o século lizando avanços sensíveis, à medida que aumentava o número de seus
XIX, preferentemente no comércio e no setor de serviços (transporte integrantes, especialmente nos centros urbanos maiores. Sua expres-
ferroviário, transporte coletivo urbano, eletricidade, iluminação públi- são política mais importante e mais organizada encontrava-se nos mei-
ca, telefonia etc.). Tinha geralmente predominância em relação às gran- os intelectuais e, particularmente, no exército, constituída de jovens
des empresas, como se pode constatar nos dados da tabela 3. Em três oficiais, que deram origem ao movimento conhecido como Tenentismo.
anos (1909-1911), ainda antes da guerra, foram autorizadas a funcio-
nar 118 sociedades anônimas no país, sendo 32 nacionais e 86 estran- A industrialização acelerou também o processo de urbanização.
geiras. Entretanto, no setor industrial propriamente dito, o capital es- As fábricas, instaladas nas cidades, atraíam a população. Com a indús-
trangeiro só começou a ingressar efetivamente na época da Primeira tria, cresceram também o comércio e os serviços. Em conseqüência, o
Guerra Mundial, com a instalação dos grandes frigoríficos Swift, êxodo rural adquiriu mais velocidade. Por múltiplas razões, a cidade
Armour e Anglo, em 1916/1917, em São Paulo e no Rio Grande do tornou-se mais atrativa. Além do crescimento numérico da população 1

Sul, além da Siderúrgica Belgo-Mineira, a que já se fez referência ante- urbana, a urbanização apresenta outra dimensão correlata e também
riormente. • importante: a conquista da hegemonia política. Durante quatro séculos 1
haviam predominado os interesses do latifúndio rural; então, com as
Em decorrência do exposto, o centro dinâmico da economia mudanças em curso, começaram a se impor os interesses urbanos, que
brasileira começou a deslocar-se. De uma economia eminentemente progressivamente sobrepujaram os do campo, tornando-se
agrária e orientada para o exterior, o país passava a transferir, progres- hegemônicos. O poder político foi assumindo outra postura e outra li
sivamente, seu eixo econômico mais dinâmico em direção ao mercado perspectiva, privilegiando a população urbana (burguesia e camadas i
interno, cada vez maior e mais firme, fortalecendo o crescimento iri- médias, principalmente), em detrimento dos interesses do mundo rural.
dustrial e urbano. O processo já estava iniciado, mas o apoio oficial a Foi um processo lento, que só se consolidou depois de várias décadas.
essa guinada só veio mais efetivamente a partir de 1930. j,
A tradicional estrutura da família patriarcal entrou também em
11
crise. Os jovens já não mais se sujeitavam passivamente à imposição
dos pais em relação ao seu destino. Foram conquistando o direito de li
3.3 · Mudanças Sociais '
decidir por si próprios o seu futuro, a começar pelo casamento. A famí- '
j
lia patriarcal, numerosa e monolítica, submetida ao arbítrio do chefe,
A partir da segunda e da terceira década do século XX, opera- foi desmoronando, substituída pela família conjugal, menor e mais fle-
'

ram-se também significativas mudanças sociais, que alteraram a estru- xível nas relações entre seus membros.
tura da sociedade brasileira. As principais foram: o surgimento no ce-
Outro aspecto relevante das mudanças operadas na família, nes-
nário nacional de novas classes sociais - burguesia e proletariado; a
ascensão das camadas médias; o início das reivindicações operárias e se período, foi o início do processo de emancipação feminina. Há tem-
i
da luta social; o processo de urbanização; e o início do processo de po já em gestação, recebeu impulso, na Europa e nos EUA, motivado
emancipação feminina. pelas necessidades da guerra, que exigiu a convocação de grande con-
tingente de homens para constituir os exércitos e éhamou um número :1
Com a aceleração do processo de industrialização, o expressivo de mulheres para o trabalho nas fábricas e em outras ativi-
empresariado adquiriu crescente presença na sociedade brasileira, for- dades carentes de mão-de-obra. A mulher, até então restrita ao lar,
çando sua participação na vida política do país. No início, no entanto, passou a ingressar no trabalho produtivo. Desde então, sua presença 1
a burguesia não tinha, ainda, um papel político relevante. Mas foi pau- avança nas diferentes profissões e atividades. O Brasil não participou !
latinamente conquistando espaço, obrigando as oligarquias rurais a diretamente do conflito armado, mas o processo de emancipação femi- ,li
compartilharem o poder, até afirmar-se, mais tarde, como classe nina também surgiu aqui como, aliás, em todo o mundo. E continua
hegemônica, sem, contudo, romper efetivamente com o latifúndio. avançando.
li
:1
176
177
A passagem do artesanato e da pequena fábrica para a média e também das organizações e das lutas operárias católicos, socialistas e
grande indústria, no pós-guerra, acelerou também a formação do ope- operários sem orientação política definida. Principalmente a partir de
rariado urbano. Com a expansão industrial, cresceu com relativa rapi- 1922, com a fundação do PCB, os comunistas procuraram impor sua
dez o número de operários, principalmente nos centros maiores: São orientação e sua tática e dominar os sindicatos (Carone, 1970, p. 196).
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco,
em ordem decrescente. O número total de operários passou de 54.164, Tanto o anarquismo quanto o marxismo propunham a organiza-
em 1889, para 159.600, em 1910, para 275.512, em 1920, e para ção da classe trabalhadora para a luta contra o capitalismo, a destrui-
450.000, em 1930 (Trindade, 1979, p. 12). ção do Estado burguês e a construção de uma sociedade sem classes.
As principais diferenças entre essas duas orientações podem ser assim
Os operários, no entanto, encontravam-se ainda em situação resumidas: a) enquanto o anarquismo propõe a construção de uma
marginal na sociedade, sem garantias ou proteção legal. Abandonados sociedade sem Estado, gerida por sindicatos e cooperativas, o marxis- 1

à sua própria •sorte, iniciaram uma caminhada em busca de reconheci- mo requer a existência de Estado, devendo o Estado burguês ser subs-
mento e espaço. tituído por um Estado dirigido pelo e para o proletariado; b) o anarquismo
Organizações de trabalhadores surgiram em diferentes pontos considera o sindicato um instrumento suficiente para fazer as transfor- 1

do país, desde 1870, após o término da guerra contra o Paraguai. mações na sociedade, enquanto o marxismo considera o sindicato im- .1
1

Merece destaque a tentativa de unificação das organizações operárias portante, como forma elementar de organização e espaço de luta e i
conscientização da classe trabalhadora, porém, insuficiente, por não i
através do Primeiro Congresso de Trabalhadores Brasileiros, realizado 1
em 1906. ter ele condições para dirigir a luta contra o capital; c) o anarquismo
dispensa o partido politico, opondo-se à sua criação, enquanto o mar- i,I
Todavia, apesar das organizações e atividades anteriores, o fato xismo considera fundamental que os trabalhadores se organizem num
decisivo que marcou a irrupção .das reivindicações operárias no Brasil partido politico, que é uma forma mais elevada de organização, caben-
foi a grande greve dos trabalhadores, em 1917, em São Paulo. Em do a ele dirigir a luta contra o capitalismo e a favor da constfl)ção da
outros centros, como o Rio de Janeiro e Porto Alegre, também ocorre- sociedade socialista/comunista. O partido de orientação marxista deve
ram, na mesma época, importantes movimentos grevistas. Embora atuar no interior do movimento sindical para educar (preparar) politica
sufocados pelas autoridades, novos movimentos grevistas voltaram a e ideologicamente a classe trabalhadora e orientar a ação dos sindica-
ocorrer nos anos subseqüentes, como em 1918 e 1920, tendo São tos, devendo estes, bem como as demais organizações populares, sub-
Paulo como o principal centro. Todos reprimidos com o maior rigor meter-se à estratégia e às táticas definidas pelo partido. Dai a preocu-
pelas autoridades e pelos representantes da ordem, que viam nas mani- pação constante dos comunistas em ocupar a direção dos sindicatos e
festações operárias apenas um caso de polícia. Contudo, essas mani- outras organizações e, a partir dos problemas concretos, utilizar as en-
festações revelavam uma inusitada tensão social e marcaram o início tidades também como braços ou células do Partido. É o fenômeno
da luta sociatno Brasil. · conhecido como "aparelhismo".
/J
Na indústria encontrava-se o núcleo mais atuante das vanguar- O movimento operário, contudo, teve reduzida participação nas
das operárias. É que a maioria dos trabalhadores da indústria era recru- transformações do sistema político em 1930. As dificuldades de articu-
tada principalmente entre os integrantes das correntes imigratórias lação dos interesses da classe trabalhadora eram enormes. Entre ou- 1
européias (italianos, espanhóis, portugueses), os quais possuíam relati- tras: o atraso cultural das massas; sua reduzida expressão numérica, na
va vivência e experiência das lutas sociais nos países de origem, o que época; a ampla extensão do território do pais; a diversidade das regi-
dava certa base e consistência ao movimento operário brasileiro. · ões; a dispersão dos trabalhadores; o precário sistema de comunica-
ções; a vigilância das autoridades; a existência de várias tendências no
Na fase inicial, a ideologia predominante no movimento operá-
interior do movimento operário, disputando a hegemonia. Por outro
rio foi o anarquismo e, mais tarde, o marxismo. Apesar da predomi-
lado, o PCB, com pretensões de se tornar o instrumento politico do
nância ativista ser dos anarquistas e anarco-sindicalistas, participavam
proletariado, nunca conseguiu grande influência sobre o operariado

178

l
179

'
brasileiro. Seus adeptos iam pouco além de uma reduzida liderança A crítica a esse sistema político de cartas marcadas já se fazia
aguerrida; o próprio partido, a não ser em curtos momentos, atuou ouvir desde as primeiras décadas do século XX. Nos anos de 1920, ela
quase sempre na clandestinidade; seus fundamentos doutrinários, sua adquiriu força, com as mudanças em curso, Q desenvolvimento indus-
pregação e suas propostas encontravam fortes resistências num país trial acelerou a projeção da burguesia e o ctescimento das camadas
de ampla tradição cristã (católica). médias urbanas e populares, alterando a estrutura de classes da socie-
dade e fazendo emergir novos interesses.
Entretanto', a questão social estava levantada e avançava com a
expansão da indústria e o aumento do número de operários, não sendo A luta política que, até então, se circunscrevia às divergências e
mais possível ignorá-la ou tratá-la apenas como "caso de polícia". Sua aos conflitos internos no seio das oligarquias rurais, passava a adquirir
força residia principalmente nas condições infra-humanas de vida e de outro conteúdo. Diante dos novos interesses urbanos, a aristocracia
trabalho dos operários, a exigir alguma forma de atendimento, se rural foi obrigada a compartilhar o poder com a burguesia emergente,
não para reso,vê-las, ao menos para diminuir-lhes o ímpeto, a fim de bem como a aceitar a influência das camadas médias.
assegurar o seu controle. Foi o qu.e ocorreu, principalmente depois de Mesmo no alto da pirâmide sociopolítica começaram a ocorrer
1930. divisões no final da década de 1920. Em São Paulo foi fundado o
Partido Democrático (1926), oriundo de uma corrente liberal como
resultado de uma ruptura na cúpula do Partido Repúblicano Paulista
3.4 - Contestação do Sistema Político (PRP), decorrente de uma cisão na classe latifundiária do café. No Rio
1 Grande do Sul, por seu turno, foi fundado o Partido Libertador (1928),
O poder político na Primeira República (1889-1930) carregava
1
i
integrado pela tradicional corrente liberal que se opusera, durante dé-
ainda a marca histórica do autoritarismo. Expressava-se ele através do cadas, sucessivamente, aos governos positivistas de Júlio de Castilhos e
de Borges de Medeiros. ·.
coronelismo, das oligarquias regionais e da política do "café-com-lei-
1
te1' .· OS "coronéis ' controlavam a política local, em nível de município, Outro "fator importante na evolução política do pós-guerra foi a
e foram o esteio político na base. Por sua vez, algumas figuras prestigi- tomada de consciência política das classes médias urbanas oriundas da
osas - oligarquias estaduais - 1 articuladas com os "coronéis,,, controla- burocracia, do comércio, das pequenas empresas e do exército" (Trin-
vam o poder nos estados. Não havendo partidos políticos nacionais dade, 1979, p, 16). Os focos mais agitados de rebeldia, nessa fase,
(apenas estaduais), o controle do poder político em nível federal se localizavam-se nos quartéis e nas faculdades, onde agiam os jovens
dava, como regra geral, através da aliança das oligarquias de São Pau- oficiais - os "tenentes" - e os estudantes.
lo e de Minas Gerais, os dois maiores estados (política do "café-com-
O ponto comum de convergência desses vários segmentos da
leite "), revezando-se no exeréício da Presidência da República e tendo
sociedade era a contestação ao regime político então vigente. Busca-
como coadjuvantes secundários os estados de peso político menor, na vam tornar mais transparentes e legítimas as eleições e o exercício do
expectativa de benesses
. do poder central. poder. A análise da realidade, no entanto, era ainda superficial. E a
1
1

A base de sustentação do sistema político, desde o l':lpério, con- solução apontada, simplista. '

tinuava a repousar em três elementos fundamentais: o latifúndio cafeei- Eram contrários ao sistema político oligárquico vigente e queri-
ro, açucareiro e pastoril; a economia primário-exportadora_; e o con- am a renovação dos costumes políticos. O problema central visualizado
trole do poder político pelas oligarquias rurais. Esse controle do poder era de ordem administrativa: no seu entendimento, as elites dirigentes
pelas oligarquias dava-se através das máquinas dos partidos republka- (oligarquias rurais) que até então tinham exercido o poder no Brasil já
nos estaduais e dos chefes políticos locais ("coronéis"). O voto não era haviam dado suficientes provas de suas incompetência e incapacidade
secreto. As eleições eram controladas pelos detentores do poder. A para enfrentar e resolver os problemas nacionais e conduzir o Brasil
coação e a fraude campeavam em todas as fases do processo eleitoral. aos seus grandes destinos. Era, pois, necessário colocar outra gente no
A oposição nunca tinha vez. poder. Mudando-se os governantes, os problemas seriam resolvidos,

180 181
i
3.4.1 - O Tenentismo 3.4.2 - A Revolução de 1930
Os jovens oficiais do movimento tenentista defendiam também a O acontecimento pol!tico mais relevante dessa década agitada
posição de que a função dos militares não devia restringir-se apenas a foi a Revolução de 1930. Seja como for, esse movimento tornou-se o
suas atividades profissionais na caserna, mas ultrapassar os limites dos desaguadouro de quase todos os descontentamentos e obteve, com
quartéis e influenciar mais direta e mais ativamente a vida política do poucas exceções, o apoio dos setores que se opunham ao sistema 11
país. Como parcela importante da elite, os tenentes aspiravam a maior oligárquico e dos insatisfeitos em geral. Tornou-se também a fonte de
presença e participação no processo decisório nacional.
Os tenentes radicalizaram desde o início sua ação, partindo para
esperanças de renovação dos costumes pol!ticos e de transformações
na sociedade brasileira. Foi o primeiro movimento de âmbito nacional
r
a luta armada. Uma radicalização de forma, não propriamente de con- a contar com razoável apoio e participação popular.
teúdo. •
A década de 1920 foi marcada por um ciclo de revoltas do mo- Contudo, a Revolução de 1930, embora trouxesse mudanças
vimento tenentista, visando à tomada do poder. A primeira delas ocor- significativas e abrisse uma nova fase na evolução histórica brasileira,
reu em julho de 1922, no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. A foi um movimento liderado por políticos tradicionais, de orientação
segunda, mais estruturada, em julho de 1924, em São Paulo, com liberal, contando com a adesão dos setores de vanguarda da sociedade.
adesões em outros estados. Seguiu-se a chamada Coluna Prestes, que Uma parcela da elite, mais uma vez, antecipou-se: "Façamos nós a
teve origem no Rio Grande do Sul, com o levante em apoio às forças Revolução, antes que o povo a faça.", escreveu o então presidente de
paulistas rebeladas. Da junção de ambas, na região de Foz do Iguaçu, a Minas Gerais, Antônio Carlos de Andrada, numa carta de apoio a Ge-
Coluna percorreu o interior de quinze estados e, quase esgotada, aca- túlio Vargas. O próprio tenentismo, que teve peso relevante nos acon-
bou internando-se na Bolívia, em fevereiro de 1927, após ter percorri- tecimentos de 1930, apesar de seus impulsos radicais, ocupou uma
do cerca de 25 mil quilômetros. Seu objetivo principal: depor o presi- i posição auxiliar dos programas políticos liberais, debatendó-se entre
1
dente Artur Bernardes - e, para isso, os rebeldes pretendiam, de um i uma postura autoritária e a necessidade de aprimoramento do regime
lado, conseguir o apoio da população do interior do país para a sua democrático. Não tinha propostas de transformações estruturais mais
).-
causa e, de outro lado, atrair parcela ponderável das forças governistas profundas e foi um dos grandes responsáveis pela sustentação do
para o combate à Coluna, enquanto seus aliados no Rio de Janeiro, ! autoritarismo varguista até 1945. Apesar de tudo, com a Revolução
mais aliviados, derrubariam o governo Bernardes. Não conseguiram. de 1930, rompeu-se o domínio absoluto das oligarquias rurais e do
nem uma coisa nem outra. Nessa década ocorreram ainda outras mani- coronelismo na vida política brasileira e abriu-se o processo de ascen-
1
festações armadas menores, sem repercussões significativas. : são do liberalismo burguês urbano, embora tutelado pelo Estado.
O tenentismo nunca toi um movimento homogêneo. Entretan-
to, uma cisão profunda e definitiva só ocorreu em 1930. A maioria
esmagadora dos "tenentes" (quase a totalidade) apoiou a Revolução de 3.5 - Emergência do Nacionalismo
1930, liderada por políticos liberais moderados. O capitão Luís Carlos
Prestes e alguns poucos seguidores opuseram-se a ela. O capitão con-
siderava o programa dos revolucionários de 30 apenas liberal, sem O impacto provocado pela Primeira Guerra Mundial ajudou o
compromisso com transformações profundas das estruturas da socie- Brasil a descobrir-se como país periférico, dependente. Houve uma
dade brasileira. Aderir a Getúlio Vargas, na avaliação de Prestes, seria tomada de consciência do nosso atraso e da nossa vulnerabilidade.
contribuir apenas para a substituição da oligarquia paulista, em declínio Concomitantemente, ocorreu o renascimento do nacionalismo. Um
em decorrência da crise do café, pela oligarquia gaúcha, no comando nacionalismo mais maduro e mais comprometidq com a transforma-
do país. É que Prestes, então exilado em Buenos Aires, a essa altura, já ção da realidade do que o nacionalismo romântico do século XIX.
havia aderido ao socialismo/comunismo e se preparava para um está- O despertar do nacionalismo, nessa fase, apresentava três di-
gio em Moscou. mensões fundamentais: o nacionalismo literário-artístico-cultural, o

182 183
nacionalismo cívico-político e o nacionalismo econômico. Essés três nações marginais com relação ao sistema capitalista internacional" (Trin- 1
j,
aspectos estavam intimamente integrados e se inseriam no contexto
dade, 1979, p. 24). A consciência dessa situação contribuiu para o '
avanço da posição em defesa da expansão da indústria nacional e da 1,
global mais amplo daquele momento histórico. Orientavam-se no sen-
necessidade de proteção da indústria brasileira contra a concorrência
tido da afirmação do Brasil e dos valores da nacionalidade.
estrangeira. Por ocasião da fundação do Centro das Indústrias de São
O nacionalismo impregnava a atmosfera intelectual nessa fase, Paulo, em 1928, seu presidente, Roberto Simonsen, "reafirmava os
com penetração principalmente nas camadas médias e também popu- fundamentos nacionalistas da nossa política industrial, segundo a qual ,1:

fares urbanas. Esse nacionalismo não se reduzia apenas à exaltação da o Brasil só realizaria a sua independência econômica possuindo esse 1

natureza, das riquezas naturais, da extensão do território, embora esses país um parque industrial eficiente na altura de seu desenvolvimento
ingredientes também estivessem presentes. Dava um passo adiante. agrícola" (Luz, 1961, p. 155). A industrialização do país, sob a lideran-
De uma atitud~ antiportuguesa, avançava para uma atitude antieuropéia, ça da empresa nacional, era considerada fator essencial para a constru-
caminhava no sentido da exaltação das virtudes cívicas e militares, pro- ção da nossa independência econômica.
gredia rumo à necessidade de forjar o nosso povo e promover a O nacionalismo literário-artístico-cultural expressou-se sobretu-
integração nacional, e incorporava também uma dimensão econômica do no âmbito do movimento modernista.
a favor da industrialização do país e uma postura antiimperialista.
O nacionalismo cívico-político manifestava-se através de varia-
3.6 - Revolução Estética r
das formas e tinha como alvo principal a juventude. Quase simultanea-
mente surgiram no país diversas revistas, jornais e movimentos de Cu- li
nho declaradamente nacionalista. Entre os periódicos destacavam-se: No contexto global de renovação da sociedade brasileira desse
Revista do Brasil (1916), Braziléia (1917) e GIi Blas (1919). De outu- período ocorreram transformações profundas, e genuínas, no campo
bro de 1915 até fins de 1916, Olavo Bilac, escritor de prestígio, desen- artístico-literário. O movimento modernista foi o principal desencadeador
cadeou, através de conferências, intensa campanha de mobilização dessas mudanças.
nacionalista em favor do serviço militar obrigatório. A 7 de setembro O modernismo foi um processo de renovação estética. Uma rup-
de 1916, em decorrência dessa campanha, fundou-se a Liga de Defe- tura com o passado, a partir de uma nova concepção de arte e literatu- 1

sa Nacional (ainda existente). Em 1917, os estudantes de nível supe- ra. Rejeitava "a dependência cultural da produção estética nacional em
rior de São Paulo lundaram a Liga Nacionalista e o Centro Naciona- relação às matrizes européias", bem como atacava "os padrões acadê-
lista. Em 1919, no Rio de Janeiro, organizou-se a sociedade Propa- micos da poesia parnasiana e da prosa pós-naturalista". Ao mesmo
ganda Nativista. Em fevereiro de 1920, por iniciativa do escritor Afonso tempo, buscava, "através de uma reavaliação crítica, integrar o folclore
Celso, fundou-se a Ação Social Nacionalista, com ó objetivo de ser o à arte, valorizar a linguagem popular e também as novas formas de
movimento de cúpula do nacionalismo, reunindo mais de cinqilenta apreensão do mundo que a produção estética européia havia realiza-
associações cívicas .., do". Propunha, ainda, "uma atitude nova diante da realidade brasilei-
ra\ em decorrência do que "os conflitos sociais, os problemas huma-
Através desses e outros instrumentos desenvolveu-se intensa ação nos da civilização industrial e as conquistas científicas fazem a sua
visando a sensibilizar a sociedade como um todo e, de modo especial, irrupção no campo da produção artística" (Albuquerque, 1986, p. 556).
os jovens. Esse nacionalismo possuía também uma forte tendência à
A nova concepção estética, que se definia nessa década de tran-
exaltação do civismo, bem como pretendia a integração entre o exérci-
sição da vida nacional, não emergiu de repente. Ao contrário, resultou
to e o povo (Bilac). Certamente, os desdobramentos da Primeira Guer-
de um longo processo de evolução e amadurecimento. Desde os últi-
ra Mundial tiveram acentuada influência nessa orientação. mos anos do século XIX, assistia-se "a um movimento de integração áà.
~

Por outro lado, o nacionalismo teve, também, nessa época, uma inteligência, da cultura, das artes e letras na realidade brasileira" (Cos-
dimensão econômica. "A guerra revela a dependência econômica das ta, 1956, p. 389).

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J
O marco simbólico precursor dessa nova fase foi a publlcação
do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902. Na referida obra, arte quanto na política. Seu objetivo é a demolição de uma ordem
o autor retrata o drama da população do interior brasileiro, descoberta social e política fictícia, colonial, uma arte e uma literatura artificiais,
pelo jornalista-escritor por ocasião da campanha-massacre contra Ca- produzidas à custa da imitação estrangeira, desligada da realidade naci-
nudos. Os intelectuais brasileiros começaram a encontrar-se, ou reen- onal" (Coutinho, 1959, p. 90). Nessa fase inicial demolidora os maio-
. contrar-se, com a realidade do país. Afirmava-se a presença e a valori- res expoentes do modernismo, pelo engajamento e pela qualidade da
zação do que é nacional na literatura e rompiam-se as barreiras que produção literária, foram Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
impediam a afirmação do nativismo brasileiro. As elites europeizadas A partir de 1930, o modernismo chegou a uma fase de maior
do litoral começaram a sentir vergonha da sua ignorância em relação amadurecimento e profundidade. Começou a fase construtiva. Então,
ao seu próprio país e a seu povo e iniciaram a caminhada em busca do além de obras de ficção, publicaram-se os primeiros ensaios de inter-
descobrimento do Brasil pelos brasileiros e das raízes genuínas da naci- pretação do Brasil. Especialmente três livros marcaram profundamen-
onalidade. te essa nova dimensão da nossa cultura e influenciaram as futuras gera-
Outros autores, a partir de então, trouxeram também sua contri- ções de intelectuais e estudantes brasileiros de nível superior: Casa
buição nesse sentido. Vários acontecimentos literários e artísticos, prin- Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freire; Raízes do Brasil (1936),
cipalmente a partir de 1916, embora localizados e sem grande reper- de Sérgio Buarque de Holanda; e Formação do Brasil Contempord-
cussão, punham em questão o passado e prenunciavam novos cami- neo (1942), de Caio Prado Júnior. Outra obra deste último autor -
Evolução Política do Brasi I (1934) - teve também relevante importân-
nhos. Todavia, o acontecimento decisivo da revolução estética foi a
cia. Foram obras consideradas chaves, que exprimem o sopro renova-
Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, em São Paulo. Ela
dor do modernismo, voltadas para a análise sócio-econômico-cultural
oportunizou relativa articulação da jovem guarda de artistas e literatos
da realidade brasileira.
brasileiros e pôs em marcha a difusão do movimento modernista, re- iJ

presentando o grito de independência cultural do Brasil. · No plano cultural, merece referência, também, o início do pro- ,j
cesso de tomada de consciência a respeito da precária situação em que
Embora o modernismo tivesse motivação européia, a inspiração se encontrava a educação no país. Entretanto, apesar de algumas inici-
mais profunda foi nacional, e se integrou na atmosfera nacionalista ativas ocorridas nesse período, as primeiras ações relevantes só se ope- :1
dessa fase histórica. A vanguarda intelectual brasileira encontrava-se raram na década de 1930. !I
insatisfeita com a decadência literária e artística e o esgotamento das 11

escolas anteriores. O momento, portanto, era favorável à emergência


de idéias e propostas novas. 3. 7 - Renovação Espiritual
A postura modernista incorporava também a dimensão de cres-
cente interesse pela política. As opções político-ideológicas dos moder- No campo espiritual, ocorreu, também, vigoroso movimento de ti!
nistas orientaram-se para duas direções: a direita e a esquerda. Apesar renovação, como fruto de um longo amadurecimento, a partir da
das várias correntes - e das divergências - havia um ponto comum de constatação da existência de uma profunda crise religiosa e de fé, prin-
convergência de todos os modernistas: o nacionalismo. Todos se cipalmente nos meios mais intelectualizados da sociedade brasileira. 1
,,

engajavam na afirmação da brasilidade. Propunham-se a abrasileirar o


A religião católica, professada pela grande maioria da popula-
Brasil e a patrializar a Pátria ainda tão despatrializada.
ção (mais de 90%, na época), fora a religião oficial do Império do
A vanguarda modernista, na primeira fase (1922-1930), foi. de- Brasil. Naturalmente, passou a existir um vínculo bastante estreito en-
cididamente demolidora, iconoclasta. Investiu furiosamente contra as tre a Igreja e a Monarquia. Na segunda metade do século XIX, o 1.
formas estéticas do passado e seus expoentes mais consagrados. Ata- positivismo, o naturalismo e o ceticismo avançaram nos meios intelec-
1i
cando o velho, buscava afirmar o novo. Afrânio Coutinho observou tuais, especialmente através das faculdades, da imprensa e da literatu-
que a vanguarda modernista foi "uma geração revolucionária 1 tanto na ra. Igualmente, avançou a propaganda dos ideais republicanos, geral-
mente ligados à filosofia positivista.
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O avanço dessas doutrinas divergentes do catolicismo desenca- No campo politico, sua influência se fez sentir especialmente
deou um processo de descristianização das camadas intelectuais. Em através da Liga Eleitoral Católica, fundada com o objetivo de defen-
conseqüência, a quase totalidade dos intelectuais brasileiros, no final 1
der as reivindicações católicas na Constituinte de 1934. A Liga teve
do século XIX e início do século XX, eram ateus, agnósticos, céticos também relativa influência, mais tarde, quando se reabriu o processo
ou, ao menos, anticatólicos ou anticlericais. No fipal do Império, ape- de redemocratização do pais, em 1945, até a década de 1950, apon-
1
nas um homem de letras no Brasil declarava-se católico militante: Carlos tando ao eleitorado católico os candidatos merecedores do seu voto. A
de Laet (Trindade, 1979, p. 30). Contrastando com a posição domi- influência dos militantes do movimento de renovação espiritual foi ain-
nante nos meios intelectuais, a imensa maioria da população, de me- da importante na definição dos princípios e na ação de dois partidos
nos letras e vida mais simples, conseivava seu sentimento religioso politicos: a Ação Integralista Brasileira e o Partido Democrata Cristão.
tradicional. A respeito dessa influência, Alceu Amoroso Lima escreveu:

O movimento de renovação espiritual definiu-se em 1922, com
a fundação do Centro D. Vital e da revista A Ordem, no Rio de Janei- "O movimento integralista da década de 1930, como o movi- 1

ro. Nos esforços precursores, que contribuíram para esse amadureci- mento democrata-cristão, da década de 40, são movimentos,
mento, destacou-se a ação do padre Júlio Maria que, em 1888, encer- ambos contraditórios em alguns de seus ideais e seus métodos,
rava um de seus sermões com este apelo: "É preciso catolicizar o Bra- que têm raizes ideológicas embebidas na mesma reação
sil!". Em 1916, em Carta Pastoral, o então arcebispo de Olinda e Re- espiritualista, embora com resultados opostos." (apud Trindade,
cife, D. Sebastião Leme, advertia: 1979, p. 34)
Enquanto os integralistas tinham uma clara orientação autoritá-
"É evidente, pois, que apesar de sermos a maioria absoluta do
ria, os democrata-cristãos tinham compromisso com a democracia e
Brasil, como Nação, não temos e não vivemos vida católica( ... )
preocupação com o social, próximos da social-democracia.
chegamos ao absurdo máximo de formarmos uma grande força
nacional mas uma força que não atua, e não influi, uma força
fil,:m;%W.-#;s{~~:%m».:!íw."1
inerte. Somos, pois, u~a maioria ineficiente. Eis o grande mal. '1
(apud Trindade, 1979, p. 32)
Em conclusão, pode-se afirmar, pelo breve panorama exposto,
Jackson de Figueiredo, intelectual ateu oriundo do anarquismo e que, no seio da crise de transição da década de 1920, se movimenta-
convertido ao catolicismo após uma crise existencial profunda (1914- ram todos os setores da sociedade, principalmente os que desejavam a
1919), e o padre Leonel Franca, com sólida base cultural e filosófica, ruptura com o passado colonial, através de mudanças profundas, ten-
tornaram-se as duas principais figuras do inicio da renovação tando definir um novo projeto nacional. A critica ao passado foi con-
espiritualista. tundente - em todas as frentes. A negação de estruturas, instituições e
O movimento de renovação provocou diversas conversões de valores vigentes era, em geral, o primeiro passo na tentativa de abrir
intelectuais, animou as vocações religiosas e dinamizou o apostolado caminho para as novas formas emergentes que se queria afirmar e
leigo. Esse despertar da consciência católica foi influenciado por movi- tornar vitoriosas.
mento idêntico na França, nossa matriz cultural. Teve ele uma orienta- As forças inovadoras fizeram o processo avançar, enquanto a
ção antimoderna e antiburguesa, e um cunho acentuadamente reacio-
velha ordem ia enfraquecendo e ruindo.
nário, principalmente no seu inicio. Mais tarde - e ainda sob a influên-
cia do pensamento francês -, e já sob a liderança de Alceu Amoroso A Revolução de 1930, como desaguadouro de quase todos os
Lima (Tristão de Ataide), assumiu uma posição progressista. Catolicis- descontentamentos e estandarte das esperanças inovadoras, embora
mo, contra-revolução, ordem e nacionalismo eram os temas principais liderada por políticos tradicionais, de orientação liberal, representou a
dos intelectuais engajados no movimento. tentativa de realização de um novo projeto para o país.

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