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A BELA :MORTE E O CADÁVER ULTRAJ.A.

DO*

JEAN-PIERRE VERNANT

Ao pé das muralhas de Tróia que o viram, desvairado , fugir de


Aquiles, H eitor está agora parado. Ele sabe que vai rnorrcr. Ate-
na o enga nou; to dos os deuses o aband o na ram. O des tino de
morte (m o2ra ) já se apoderou dele. Ma s, se já nao pode vencer
e sobreviver, depende dele cumprir o que ex ige , a se us olhos como
aos de seus pares , sua condii,ao de guerrei ro: transformar sua morte
em glória imper ecível, fazer do lote comum a todas as criaturas
sujeitas ao traspasso um bem que lhe seja próprio e cujo brilho
se ja eterna mente seu. "Nao, eu nao prete ndo morrer sem Juta e
sem glória (aklei6s) como também sem algum feito cuj a na rrativa
chegue aos homens por vir ( essomé 11o isi puthesthai)" (1 ) .
P a ra aqueles que a Ilíada chama anér es (á 11dres ), os home ns na
plenitude de sua natureza viril, ao mesmo tempo machos e co ra-
josos, existe um modo de morre r em combat e, na flor da idad e,
que confere ao guerreiro defu nto, com o o faria urna iniciai,iio, aq ue-
le co njunto de qualidad es, prestígios, valores , pelos quais, durante
toda a sua vida, a nata dos áristoi, dos melhores, entra em compe-
tii,ao. Esta " bela morte", ka/os thá11atos, para lhe dar o no me com
que a designam as orai,óes fúnebres ateni e nses (2) , faz aparecer, a

• N. da R. Este artigo de Jean- Pierre Vcrnant retoma parte de suas con- ferencias,
realizadas no Departamento de Filosofía da Universidade de Sao Paulo, no
segundo semest re de 1977. (Tradu o de Elisa A. Kossovitch e Joao
A. Hanseo. )
(·l ) Illada, 22, 304-5; cf. também 22, 110.
( 2) Nicole Loraux, em sua tese intitulada Atl,cnes imaginaire, cuja próxi-
ma publica,;áo agua rda mos, estudou o tema da bela morte na ora,;ño fúnebre
ateniense. Este nosso trabalho muito !he deve. Nicole Loraux publicou vários

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maneira de um revelador, na pessoa do guerreiro caído na batalha,
a eminente qualidade de aner agathós (3) , homem valoroso, homem
devotado. Para quem pagou com sua vida a recusa da desonra
no combate, da vergonhosa covardia, ela assegura um renome inde -
fect ível. A bela morte também é a morte gloriosa, euklees thanatós.
E la eleva o guerreiro desaparecido ao estado de glória po r toda a
dura9iío dos tempos vindouros; e o f ulgo r dessa celebridade, k léos ,
que adere doravante a seu nome e a sua pessoa, representa o termo
último da honra, seu extremo ápice, a arelé realizada . Gra9as a
b e la morte, a excelencia, areté, deixa de ter que se medir sem-fim
co m outrem, de ter que se por a prova pelo confronto. Ela se
real iza de vez e para sempre no feito que póe fim a vida do herói.
Tal é o sentido do destino de Aquile s, ao mesmo tempo perso-
nage m exe mplar e ambígua, cm que se inscrevem todas as exigé n-
cias mas também todas as contradi9óes do idea l heróico. Se Aquiles
parece levar as últimas conseqü encias - até ao absurdo - a lógica
da hon ra, é porque ele se situa de algum modo, para além das
regras comuns desse jogo. Como ele mesmo explica, dois destinos
foram-lhe oferecidos desde o seu nascime nto, para conduzi-lo até
o nde toda existencia humana encont ra seu termo, dois destinos que
se exc luíam rigorosa mente ('1) . Ou a glória imorr edoura do guer-
reiro (kléos áphthiton ), mas a vida breve, ou entao urna vida longa ,
retirada, mas a ausencia de qualquer glória . Aquiles nao teve se-
quer que escolher; viu-se inclinado de vez para a vida breve. Pre-
destinado - poder-se-ia dizer por natureza (5) - a bela mort e, vivo,
ele já está como que impr egnado pela aura da glória póstuma para
a qua] sempr e fo i designado. E por isso que nao lhe é possíve l,
na ap.lica9ao do código de honra, compor e aceitar, con forme as
circunstancias e as rela9óes de for9a, os acordos covardes, mas pelo

artigas sobre o mesmo assunto: uMarathon ou J'histoi re idéologique", Revue


des Et11des anciennes, 75 ( 1973), p. 13-42; "Socrate, contre-poison de l"orai-
son funebre", L' Antiquité classiq11e, 43 ( 1974 ), p. 112-2 11 ; "H BH et AN-
DREIA: deux versions de la mort du combattant athénien", Ancie nt Society, 6
(1975 ), p. 1-31; "La 'belle mort' spartiate", a a parecer em Ktema.
( 3) Sobre o emprego de agath6s, como valor absoluto, sem outro qualifi-
ca tivo, em Homero, cf. /1,. 21, 280 e as observa9óes de Verdenius, " Tyrtae us 6-7
D. A commenta ry", Mnemosyne , 22 ( 1969). p. 338.
(4) II ., 9, 410 ss.
( 5) Desde o l. º canto, Aqu iles declara: "Oh, máe, visto q ue me geraste
para uma vida breve, que Zeús Olímpico. . . me de pelo menos a gl6ria". E
Tétis, como a fo.zer eco, respon<le - lhe: '7 eu destino, cm vez ele longos d.ias,
s6 te concede urna vida breve'". Il., l, 352-3 e 415-6 cf. também 19, 329
e 421.

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menos tra nsigir com os necessários arranjos sem os quais o siste ma
niio está mais em condi96es de funcionar. Para Aquiles, qua lquer ofensa,
venha ela de onde vier, é igua lmente ins upo rtável e inex- piável, por
alta que seja a posi9iio que el eva o seu autor ac ima de si mesmo na
hierarquía social; toda desculpa , todo reconhecirnento público de culpa,
por satis fatória que possa parece r a seu amor pró- prio pela extensiio e
pelo ca ráter púb lico da repa ra9iio, pe rmanece vii e ineficaz. Semel
hante a um crime de lesa-majesta de, a afronta feiia a Aquile s só pode
ser paga, a seus olhos, por um rebaixamento total e definitivo do
culpado. E s te ex tre mismo da honra torna
Aquiles um se r marginal, ence rrado na solidiio altiva da sua cólera.
Os o ut ros gregos condcna m nest e excesso um erro r do espírito, uma
forma d o Er ro person ificado, da Áte (6) . Agamemnon re- preende
o herói por levar a tal pont o o esp írito de compe ti iio, pelo qua!
ele se qu er scmpre, em toda parte e em ludo, o primeiro, te ndo ape
nas na cabe9a, po r conseguinte, rivalidade, querela, com- bat e< 7 >; Nes
to r censura-o por nao respeitar na sua conduta a or- dem nor mal da s
precede ncias, ch ega ndo ele a se medir fren te a fr en- te com um rei que
tem de Zeus, ao mesmo tempo que o cetro, o poder e o comando, o d
ireito as mais elevadas honras (8) ; Ulisses, Fenix, Ajax e a té mesmo
Pátroc lo deploram sua du reza int ratável, seu ressentimento selvagem,
se u cora9iío b ravío e desu mano, sur do a piedade, insensíve l t anto
aos pedidos e súplicas dos amigos como as desculpas e re para9óes
com que dcveria satisfaze r-se. Seria Aquiles avesso aos aidós, aque le
sentime nto de reserva e modera9áo que age a maneira de um freio, nos
dois se nt ido s, p ar a cima e para baixo, para man ter equ ilíbrio nas
situa96es em que a disparid ade de pos i9iio, a despropor9iio de for9a
tornam imp ossível uma franca
competi9iio em pé de igualdade? O aidós é esta timidez respeitosa
que manté m o mais fraco a d ista ncia do mais forte e que, expri-
mindo de mane ira aberta a inferio ridade de um dos protagonistas ,
coloca -o a merce do out ro para que, desarmado por esta atitude
su bmissa, ele tome a iniciativa de estabelecer urna rela9iío de ami- zade,
de philia, concedendo aquelc que se coloc a assim sob a sua
prote áo a parte de honra que Ibe cabe. Mas também é, inversa- me
nte, a re nú ncia a vio lencia e a agressividade do mais forte para com o
mais frac o, desde q ue, ent regue a sua merce, ele náo mais
atue como rival; é a reconcilia9áo do ofend ido com aquele que,

( 6) ll., 9, 510-2.
(7) 11., l , 288 e 177.
( 8) 11., l , 278.

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aceitando humilhar- se, rebaixar-se pelo oferecimento da reparacáo,
reconhece publicamente a timé que ele havia ultr ajado anteriormen-
te ; é e nfim o abandono da vinganc;a e o restabelecime nto da a mi-
zade entre dois grupos q uand o, após um assassínio, o prec;o do
sangue, que representa o valor da vítima, sua tim é, foi saldado por
acordo com os se us (9) .
Di ante d a asse mblé ia dos dcuses, Apolo poderá, ele também,
acusar Aquiles de abandona r, ao mesmo tempo, toda piedade e
ignorar o aidós (10).
No cntanto, o alcance dessas indicac;ocs na o é, na sua cssencia,
de ordem psicoló gica. Conce rne meno s a um trac;o pa rtic ular do
ca ráter de Aquiles que as ambigüidades de sua posic;áo, ao eq uívoco de
a
seu estatuto no sistema de valores própr io tradic;áo épica. Exis-
te, com cfeito , na atitude e no comportament o de Aq uile s, um
aspecto paradoxal que é desconcerta nte se se atém a p s icolog ia da
personage m. Aquil es está absolutamen te conve nc ido de sua supe-
rioridade em matér ia de desempenho guer rc iro e, na escala das qua-
lidades que torn a m o homem comp le to, o valor no combate oc upa ,
para ele, como também para os seus compa nheiros empenhados na luta,
um lugar dos mais elevados . Nao existe, por outro lado, um único
grego - nem mes mo tro iano algum - que nao partilhe da con- vicc;áo de
Aquiles e nao reconhec;a nele o modelo incont este da arelé guer reira
(11 ). Ent reta nto , es ta confianc;a cm si, apo iada num consenso unan ime
junto a o utrem , longe de lhe proporcionar certe- za e seguranc;a,
acompa nha-se de urna suscetibilid ade sombria e uma verdadeira mania de
humilh ac;ao .
É claro que, tomand o-lhe Bríseis, Aga me mnon inflige a Aquiles
uma afronta que atinge o guer rei ro no ponto sensível. Ele o des-
poja de seu géras, isto é, da parte de honra da presa comum com a
qual o haviam gratificado. Um géras é um privilégio excepcional,
urna prestac;iio concedida a títu lo espec ial, como reconhecimento
de urna superiorid ade. seja de posic;ao e de func;ao - é o ca so
de Agamemnon -, se ja de valor e de fac;anha - é o caso de
Aquiles. Além da vantagem mate rial que proporciona, o géras vale
como marc a de prestígio, con s agrac;ao d e urna sup remacia socia l:

( 9 ) Em 9, 632 e ss, Ajax opóe ao cora fio inllcxível de Aqu iles a fe liz
disposi ao daqueles q ue aceitam , at é mesmo para uma crian 9a morta, o prec;o
do sangue e a composi fio, a aíde sis .
( 10 ) TI., 24. 44.
( 11 ) 11., 2, 7 68-9 em que é o pr6prio a edo que enuncia como uma verdadc
objetiva a superioridade de Aqu iles .

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para todos sem distinc;iío, aquiJo que é sorteado em partes iguais,
mas para o escol, e apenas para o escol, por acréscimo, o géras.
Confisca r o géras de Aquiles é, pois, de certo modo, negar-lhe a
excelencia no combate, a q ualidade heróica que nele todos con-
cordarn em reconhecer. E o silencio - mesmo car regado de re-
provac;ao - que os guerreiros gregos mantem na assembléia qua nto
a co ndut a de seu p r ínc ipe, associa-os a um ultraje cujas conseqüen-
cias deveriío com ele pagar. No entanto, na reac;ao de Aquiles,
vários trac;os poem dific uld ades. Agamemnon nao procura ofen- de-
lo pesso aJmente e, em nenhu rn momento, mesmo no ardor da quere
la, conte sta seu eminente valo r guerreiro. Em nome do inte- resse
comum , Aquiles pede ao rei que renuncie a Bríse is, sua parte de
honra: para desviar a peste do campo grego é preciso devolver a
jovem ao sacerdote de Apolo, seu pai. Aga mem no n inclina-se a
conse ntir nisso desde que !he deem um géras substit uto para que nao
seja o único, ele, o soberano, a ficar agérastos, privado de gé-
ras (12 ). Caso contrário, lhe será preciso co ntentar- se com o géras
do vizinho, quer se trate de Ajax, Ulisses ou Aquiles, pouco im-
porta - e ele preve a fú ria deles t1 3) . Jo: entlio que Aquiles exp lode,
e sua cólera revela as verdad eiras razoes da quer ela que opoe os
dois homens. Para Aq uiles, nao há medida comum entre a timé
que adere a di gnidade real, esta timé glorificada por Nestor como
proveniente de Zeus H ( ), e aquela que o guerreiro conq uista penando
sem repouso " na primeira Iinh a" dos combatentes, onde o risco é total.
A seus olhos, Agamenmon, nessa guerra que é sobretudo sua e de
seu irmao, deixa a outro s o cuid ado de pagar, a todo instante , com sua
pessoa, no amago da guerra ardente: permanecendo na retaguarda,
6pisthe ménon (15), ao abrigo do campo. perto das pre- ciosas naves,
ele niío é homem que se ave nture com os aristoi numa
emboscada nem se empenhe como carnpeao num duelo sem trégua:
"tudo isso. afirma Aquiles dirigindo-se a Agamemn o n. oarece-te a
mor te, to dé toi ker eídetai e1nai" (1 6l. Quem. dentre os reis,
é o mais rei de todos, basiléu tatos , nao ultrapassou assim a linha
que separa o comum dos homens do universo propriamente heróico,
o uni verso em que o combatente, ace it ando de an tem ao a vida breve,
,devotou -se inteiro e no mesmo movimento a gu er ra. ao feíto, a

( 12) Tl., 1, 119 .


( 13) ll. , l, 138-9; cf. 145-6.
(14 ) 11., 1, 278-9.
( 15 ) 11., 9, 332; cf. l, 227-9.
(16 ) 11., 1, 228; juízo análogo de Diomedes sobre Agamemnon em 9, 38-9.

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glória e a morte. Na prova de honra, para quem adota a perspec-
tiva cavaleiresca própria de Aquiles, é a vida mesma que é a cada
vez apostada na competic;ao (17). E como com esta aposta a der-
rota significa que se perde tudo de uroa vez e para sempre, que
se perde a própria existencia, o sucesso deve render também um
valor que, sendo de outra ordem, niío é mensuráve l pela alna das
distinc;óes e homenagens comuns. A lógica da honra heró ica é a
do tudo ou nada; ela vale fora e acima das hierarqui as de posic;ao .
Se Aquiles nao é reconhecido como o primeiro e, de certo modo,
o único, sente-se reduzido a zero. Também, n o exato momento
em que ele se proclama, sem ser abertamen te con tradito, áristo
Achaion, o melhor dos gregos, em que se gaba de ter carregado
todo o peso da guerra no passado e de constituir para o futuro
o único baluarte contra o assalto troiano, ele pode apresentar-se
nao só como desonrado pela ofensa que lhe foi feita, álimos (18 ) ;
mas, no caso de sua omissiío, como o último dos covardes, um
menos que nada, outidan6s (19 ), um restolho , errando sem estatuto
nem raiz, urna espécie de nao-pe ssoa (20). E ntre a glória impere cí-
vel, para a qual está predestinado, e o último grau de ignom ínia, nao
há posic;a o intermediária em que Aquiles possa encontrar seu lugar.
Qualquer ofensa a sua dignidade provoca um efeito pendular de
urn ext remo a outro porque é atingido através dele um valor que
é preciso aceitar sem reservas, sem comparac;ao, sob pena de de- preciá-
lo por inte iro. Ofender Aquiles equiva le a colocar no mes- mo plano
o covarde e o valoroso, conferir-lhes, como ele diz, mes- ma timé (21).
Negar ao feito heróico sua func;ao de critério abso- luto é, pois, nao
ver nele a pedra de toque daquilo que um homem vale ou nao.
Assim se explica o fracasso de Ulisses, Fen ix e Ajax na missao
que !hes foi confiada para dobrar a resoluc;ao do filho de Peleu
e para convence-lo a renunciar a sua cólera. Embora usem as
mesmas palavras, Aquiles nao fala a mesma língua dos embaixa-
dores que !he foram mandados. Em nome de Agarnemnon, con-
vertido aos melhores sentimentos, eles !be propóem o máximo, e,
mais que isso, tudo quanto um rei pode oferecer na oportunid ade:
primeiramente Bríseis, que ele está pronto a devolver, tal como
a havia tomado, jurando nao ter dormido com ela; tripés, ouro,

( 17) Il. , 9, 322.


(18) II., l , 171 e 356.
(19) ll ., 1, 293.
( 20) Jl., 9, 648.
( 21) ll., 9, 319.

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bacias, cavalos, mulheres para servas e concubinas; a melhor parte
do saque se Tróia for conquistada; e finalmente, por esposa, urna
de suas próprias filhas, a escolher , com o dote mais rico e,
para acompanhar esse casamento que faria de Aquiles se u genro,
a soberania sobre sete cidades de seus domínios. Aquiles recusa.
Se concordasse, ele se colocaría no próprio terreno de seu adver-
sário. Seria admitir que esses bens, apanágios da timé do rei, sig-
nos de seu poder sobre outrem e dos privilégios que acompanham
o seu estatuto, chegam, por seu simples acúmu lo, a pesar em face do
valor autentico, a contrabalan9ar o que Aquiles, e unicamente ele,
traz ao exército aqueu. Por tudo o que representam, esses pre-
sentes lhe sao odiosos(22) ; o próprio excesso de sua magnificencia
aparece corno urna irrisao para quem, quando se empenha no com-
bate, poe em jogo a cada instante, nao carneiros, bois, tripés ou
ouro, mas sua própria vida, sua vida perecível, sua psuché (23) ; as
riquezas de Agamernnon e todos os tesouros que enchem o mundo
sao daqueles que se podem sempre adquirir, trocar, retomar uma
vez perdidos, conseguir de um modo ou de outro. É inteiramente
diverso o pre9 0 que o guerreiro consente em pagar para aceder
ao valor: "a vida de um hornero nao se recupera: ela nao se deixa
raptar nem apanhar a partir do dia em q ue saiu das muralhas de
seus dentes" (2'1) . B esta vida - ou seja, ele mesmo, na sua di-
menslio heróica - que Aquiles punha a servi90 do exército; é
ela que Agamemnon insultou tratando o herói como o fez.. Que
riqueza, que marca de honra, que distin9ao social teriam aos olhos
de Aquiles o poder de recobrar uma psuché a que mais nada no
mundo poderia equivaJer (ou giir emo1 psuches antáxion ) (2 5), a par-
tir do momento em que, arriscando-a sem temor ern cada um dos
encontros de que Agamemnon foge como da mo rte, ele a dedicou
antecipadamente ao kléos, a glória suscitada pelo feíto heróico.
Após Ulisses, o velho Fe nix pleiteará em váo diante de Aquiles
que, se ele ceder aos presentes, segundo o uso e a razao, se retornar
ao combate, os aqueus "pres tar-lhe-ao reconhecimento como a um
deus" mas que, se recusar, nao obterá deles nunca rnais honra igual,
ouké1h'hom6s times éseai (2G), po is ele deveria, retornando nesses
últimos dias a batalha, libertá-los enfi rn do fardo da guer ra. Em

( 22) JI., 9, 378.


( 23) Il ., 9, 322.
( 24) Il., 9, 408-9.
( 25) I,l . 9, 401.
( 26) Il., 9, 605.

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váo. A c1 sao entre duas glór ias, duas hon ras está agora bastante
nítida no espírito de Aquiles: existe a timé ordinária, essa louva-
c;ao da opiniao pública, disposta a celebr á-lo, a recompensá-lo prin-
cipescamen te como o faz com o rei, sob a condic;ao de ele_ ced e r;
existe aque la outra timé, a gló ria imo rredoura que seu de stino lhe
reserva se ele perma necer o mesmo que se mpr e foi. Pela prim eira vez
Aquiles recusa clarament e a homenagem dos aqueus, que pa-
recia procurar mais que tudo. Dessa 1imé, responde a Fénix, ele
nao carece, oú tí me táutes c/1r eo times (2i ), nem mesmo faz caso de
Agamémnon e de suas ofe rtas; ele a co nside ra uma ninh aria (28) . E l e
apenas se preocupa em ser hon rado pelo destino de Zeus, Dios aísa
(20), este destino de pronta morte, ok úm oros (30), que sua miíe
Tét is tinha anterior mente evocado nestes termos : "teu destino, aísa,
em vez de longos dias só te concede uma vida breve". Mas a pron-
ta morte, quando assumida, tem sua cont rapartida: glória imo rtal,
a que a gesta heróica canta.
Essa tensíio, que a recusa de Aquiles ilumina plenamente, entre a
necessidade de ser socialmente recon11ecido para sentir-se existir
- a honra comum - e as exigencia s mais altas da honra heróica
- deseja-se também ser reconhecido, mas como urn s er a parte,
situad o num outro pla no, que celebrarao os " homens vindouros '
- aparece filigranada nos contextos em qu e os dois tipos de honra
sao contudo aproximados a ponto de parecerem con fundidos.
Ocorre o mesmo com as palavras que Sarpedon dirige a Glauco
no canto XII da 1/íada para exortá-lo a encabec;ar os Iícios no ata-
q ue contra a muralha edificada pelos gregos. Por que, pergunta-
-lhe, honram-nos em nosso país, na Lícia, com todos os privilégios
e honras que cabem a um reí, por que nos olham como se fósse mos
deuses? Nao será porque nos sentimos, em contrap artida , obriga-
dos a colocar-nos sempre, na bata lha, nas primeiras linhas dos lí-
cios, Lukíoisi meu) pr6toisi11, de modo que cada um deles pode
proclamar: "Nao sao desprovidos de gló ria, akleées, os rcis que
comandam nossa Lícia ... , combatem na prim e ira lin ha" ( 31 ) . Fi-
lho de Zeus, como Aq uile s é filho de Tétis, Sarpedon é, no campo
troiano, um desses guerreiros cu ja qualid ade de valentía, cujo com-
portamento no combate assimilam a um leao , quando a fera, pa ra

( 27) 11., 9, 607-8.


( 28) Il ., 9, 378.
( 29) ll.. 9, 608: "¡,hronéo di! t etime stlwi Dios aísei'' .
(30 ) ll ., l, 417 e 18, 95.
( 31) I l., 1 2, 315-21.
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saciar a fome que a tort ura, só conhece a presa cobic;ad a. Pouco lhe
importa que o reba nho este ja abrigado num está bulo bem fe- chado,
defendido por pastores armados de lanc;as e assistid os de caes. Se
seu corac;ao o impele ao ataque, nada o fará recuar. Ora, das duas
coisas, urna: o u ele se apossa de sua presa contra todos e contra tudo ,
ou entao cai ferido por um dardo (3 2 ). Dá-se o mesmo com o corac;ao
de Sa rpedon, em vias de assaltar a muralha que pro- tege os gregos e
atrás da qua! a morte o aguarda. Sem hesitar, fon;a o parapeito e
mergulha na batalha. Quando ve seus compa- nhei ros fugirem diante
de Pátroclo, vestido com as armas de Aquiles e entregue ao furor da
chacina, ele os cobre de vergonha; afirma alto e bom som sua clec
isao de enfrentar este homem sob cuja mao
sabemos ser seu destino perecer :(:_i i¡ E le o enfrenta para "conhe-
ce-lo", saber quem ele é, isto é, para medir, pela preva do duelo
de mo rte, seu " valor" de comba:en te (3 1) . Es ta atitude - sem se
falar da afe ic;iio de que o envolve Zeus e do tratamento privilegiado
que os deuses rese rvam ao seu despojo - ap roxima Sarpedo n de
Aquiles; eles se ligam, tanto um como o o ut ro, a mesma esfera ele
existencia heróica e compartilha m de urna concepc;ao rad ical da
hon ra.
Entretanto, se se acredita em Sarpedon, urna total recip rocidade
parece exis tir entre o estatuto de rei e a excelenc ia do guerre iro, entre
a timé r.evida ao primeiro e o k/éos ao qua! aspira o segundo. Com-
bater na prime ira linha, como o fazem Aquiles e Sarpedon, tais
seriam, com efe ito, o fundame nto e a just ificac;ao das prerrpgativas
reais; de modo que se poderia dizer igualment e que, pa ra ser rei, é
preciso mostrar-se heróico e que, para mostrar-se heróico, é pre - ciso
ter nasc ido rei. Esta visiio o timista, qu e unifica no mesmo con- junto
os múlt iplos aspectos da preeminencia social e do valo r pessoal, co
rresponde as ambigüidades do vocabulário homérico em que os mesmos
te rmos - aga1/zós, esth lós, arelé , timé - referem-se, con fo r-
me os contextos, a nobre estirpe, a op ule ncia, ao sucesso nas em-
presas, a bravura guerreira, ao renome, sem d is tingui-los nitida-
mente (35).

(32) 11., 1 2, 305-6.


(33) JI., 16, 434.
(34) 1/., .16 , 423: '"6pl1ra daeí o h6s tis l16c/e kra téei . . . "; atitu de. id en-
tica de Heitor quanto a Diomcdes cm 8. 532 e 535; em 3, 58 Heitor exorta
Páris a enfrentar i\lenelau para ··sabe r o quanto vaJe".
(35) Referir-se, quanto a este ponto, aos lrabalhos, dornvante clássicos, d e
A. W. H. Adkins, por exemplo a Moral values mu/ political behaviour in an-
cient Creece, London, 1972, p. 12-16.

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Nas próprias palav ras de Sarpedo n deixa-se reconhecer, contudo,
tra<;ada levemente, a quebra q ue, no caso de Aquiles, sepa rava, se-
gund o urna linha de demarcai;ao brutal, a existencia heró ica com suas
aspira9óes, exigencias, idea l próprios, da vida comum , regida pelo
código soc ial da honra. Após ter feito compreender que todas as
regalías concedidas ao rei, boa mesa, boas terras, bom vinh o, luga-
res de honra, fama, sao o premio pago aos ho mens de gue rra pelos
ser vii;os prestados por sua exce pciona l valentía no campo de bata lha,
Sarpedon acrescenta uma observa<;áo qu e, desvend ando a verdadei ra
dimensao do fe ito heróico, de rruba toda a sua argument a<;ao ante-
rior: "Se o escapar a esta guerra, declara, nos permit isse viver a
seg uir eternamente, a brigado s da velhi ce e da mo rte, nao seria por
ce rto eu quem combat eria na primeira linha nem quem te enviaria
para a batalha em qu e o homem adquir e a glória . . . M as, como
nenhum mort a l pod e esc apar do traspasso, avante, dem os glór ia a
um out ro ou que e le no-la de (30) . Nao sao, pois, nem as vanta- gens
materiais nem o primado de condi<;a o nem as marc as de honra que
tém o poder de leva r um homem a empenhar sua psuché em
duelos sem trégua onde se conquista a glór ia. S e apenas se tratasse•
de ganhar os bens que se gozam em vida e q ue vos aba ndonam
com ela, nao se encon trar ía um único guer reiro, segundo Sarpedon, que
nao se escondesse no mom ento em que fosse preciso arriscar-se a
tudo perder no jogo. A verda deira rnziio do fe íto heróico r esi de alhu
res; nao ressalta de cálculos utili tár io s nem da nece ssid ade de prestígio
soc ial; pod er-se-ia dizer que ela é de ord em metafísica; ela é própria
da condii;ao humana, condi 9ao q ue os de uses nao fizeram apenas mor tal
mas também su bmetida, como toda cria tura deste mund o, após a
flora9iio e a plen itud e da juventude, ao declínio das
fori;as e a d ec repitude da idade. O feito heróico enraíz a-se na von-
tade de escapar ao envelhecimento e a morte, por " inevitáveis" qu e
se jam, de a a mbos ultrapassar. Ul!rapassa-se a morte acolhen do-a
em vez de a sofrer, torna ndo -a a apos ta constante de uma vida que
to ma, assim , valor exemplar e que os homens celebra rao como um
modelo de " glória imo rredoura". O que o herói perde em honras
prestadas a s ua pessoa viva, ao renun cia r a longa vida para escolher
a pronta morte, ele o torna a ganh ar cem vezes mais na glór ia de
que fica aur eolada, por todos os tempos vind ouro s, sua personage m

(36) JI., 12, 322-8. O mesmo tema em Cnllinos. fr. 1, 1 2-15 ( Edmotids);
ern Pí ndaro, Ol., 1, 81 ss: "Visto que é preciso morre r, por que ficar na
sombra e consumir cm váo uma velhi ce ignorada, Jon ge d e toda beleza." Em
Lísins, Orar;áo fún ebre , 78.

40
de defunto. Numa cultu ra como a da Grécia arcaica, em que cada um
existe em f unc;lío d e outre m, sob o olhar e pelos olhos de outre m,
em que as posic;oes d e uma pessoa sao tanto melhor estabe lecidas quanto
mais longe se este nde sua reputac;ao, a verd adeira morte é o
esquecimento, o silencio, a obscura ind ignidade, a ausenc ia d e fama (3
7 ). Ao co nt rário, existir é - esteja-se vivo ou morto -
ser reconhecido, estimado, honrado ; é sobretudo ser glorificado: ser
objeto de uma palavra de louvo r, de uma na rrativa que conta, sob a
forma de uma gesta, reto mada e repetida sem cessar, um destino por
todos admirado. Neste sentid o, pela glória que ele soube con-
q uista r devota ndo sua vid a ao combate, o herói inscreve na roemó ria
cole tiva do grupo sua realidade de sujeito indi vidual , exprimindo- se
numa biografía que a morte concluiu e tornou ina lteráve l. Pelo
ca nto p úblico dos feítos a que ele se deu por inteiro, o heró i con-
tinua, alé m do traspasso, presente, a seu modo , na comunidade dos
vivos. To rnada lendária, sua figura tece, associada com outras, a
tram a perm anente de uma trad ic;ao que cada gerac;ao d eve aprender
e tornar sua para acede r plena mente, através da cultu ra, a existencia
social.
Ultrapassando as honras corriqueiras, as dign.idades de posic;ao,
efe meras e relativas, aspirando ao absoluto do kléos áphthiton , a
honra heróica press upóe a existenc ia de um a tradic;iio de poesía oral,
repositó rio da cultura comum , que func io na pa ra o grupo como me-
mória social. No que se convenciono u d e nomina r, para encurtar, o
mundo de Homero, honra heróica e poesía épica sao indissociáveis:
nao há kléos senao ca ntado , e o canto poético, quando nao celebra a
ra<;a do s deuses, só tem por objeto evocar os kléa andrón, os altos
fe ítos gloriosos r ealizados pelos homens de antanho e perpetua r-lhes
a lemb ranc;a, tornando-os mais presentes aos ouvint es q ue sua po bre
existe ncia cotid iana (38). A vida breve, a fac;a nha , a bela morte só
adquirem sentido qua ndo encontram lugar num canto pronto a aco- lhe-
las para as magnificar e conf e rem ao própr io herói o privilégio de se
r aoídimos, assunt o de ca nto, d igno de ser cantado. :B pela transpos ic;ao
li te rária do canto épico que a personagem do berói ad- quire tal esta
tura, a densidade de exis tencia e a perenidade q ue,

( 37) Cf. Marce! Oetienne, Les maltres de vérité dans la Crece archai qu e,
Paris, 1967, ¡?- 20-6.
(38) Hes1odo, Teogonia , 100 ; cf. M. Oetienne, op. cit., p. 21-3. Referir-se
tamb ém ao belo livro de James l. Redf ie ld , Nature and culture in th e Jliad.
The traged y of Hector, C hicago and London, 1975, p. 30 ss. O nosso estudo
muito !he deve.

41
apenas elas, podern justificar o extremo rigor do ideal heróico e os
sacrificios que ele impóe. Na exigenc ia de urna honra para alérn
da honra, existe portan to urna dirnensao " literár ia'·. Nao que a
honra heróica seja urna pura conven<;ao de estilo e o herói urna
personagern inteirarnente fictícia. A exalta<;ao da " bela ma rt·e· ern
Esparta e Atenas, ern plena época clássica, rnostra o prestígio que o
ideal heró ico rnanteve e seu impacto sobre os costumes até em con -
textos histó ricos tao distantes do mund o de Homero como o da Ci-
dade. Mas, para que a honra heróica permane<;a viva no se io de
urna civiliza<;áo, para que todo o siste ma de valores permanec;a mar-
cado pelo se u selo, é preciso que a fun<;ao poét ica, mais do que
objeto de divertimelllo, te nha conservado um papel de educa <;ao e
fo r ma<;ao, que p or ela e nela se transmi ta, se e nsine, se atu alize na
alma de cada um este conjunto de sabe res, cren ¡;as, atitudes, valo-
res de que é feít a uma cultura. :É unicamente a poesía épica, por seu
estatuto e fun<;ao, que pode conferir ao desejo de glória im pe- recível, de
que é habi tado o herói, tal base institucion al e legitima<;iío socia l, sem
as quais nao passaria de urna fantasía subjetiva. Já houve quem se
espantasse com urna ambi<;ao de sobrevivencia que se reduziria,
acredita va-se, a urna imo rtalidade "liter ária". Seria desconhecer as
diferen<;as que sepa ram a pessoa e a cultura gregas arcaicas das nossas.
Entre a pessoa antiga, pessoa para out rem, implant ada na opiniiío
pública e sua vontade de sobreviver c m " glória imperecíver •, e a pessoa
de ho je - o e u interiorizado, único, se- parado - e sua espc ran<;a de sob
revivencia sob forma de urna alma singular e imortal, existe m as mesmas
rela9óes estruturais: a epopéia desempenha o papel d e paideía, exaltando
os heróis exemplares, assim co mo os generas literá rios " p uros" co mo o
romance, a auto- biografía, o diário íntimo o fazem hoje.
Entre todas as personagens encenadas pela llíada, Aquiles é a
única qu e nos é descrita praticando o cant o poético ( 39). No mo-
mento em que os embaixado res de Agamemnon chegam perlo do
campo dos mirmidóes, Aquiles está em sua tenda. Acompanhando-
-se com a cíta ra, canta para si e para Pátroclo, sen1ado diante dele
em silencio. Q ue é qu e Aquiles, ern tais circ unstancias, se compraz
em cantar? Aquilo mesmo que os aedos, e Homero prirneiramente,
cantam nos poemas como a 1/íada; "aéide d·ára kléa a11dron" (40 ),
e le canta os feítos dos heróis. O modelo do guerreiro heróico que,

(39) Cf. Pierre Vidnl-Naquct, Pré face a ll ornere, 1/iade, París, 1975, p. 32.
(40 ) Il., 9, 189.

42
escolhendo a vida breve e a glória imperecível, enca rna urna idéia
tao elevada da honra (a ponto de, em seu nome, recusar, juntamen-
te com os presentes do rei, a timé de seus compa nhei ros de armas )
também é aquele figurado pela grande gesta épica no momento decisi-
vo de sua tra jetória ao cantar ele mesmo a gesta dos heróis. Artifício literár
io, procedimento "e m ab is mo", certamente! ( 11) . Mas a li<;áo do
episódio é clara: os feítos de Aquiles, celeb rados por Homero na lliada,
para existire m inteiramente aos olhos do herói que os deseja executar ,
devem refletir-se, prolonga r-se num canto que consag re sua glória.
Enguanto personagem heróica, Aquiles só tero ex istencia para si
mesmo no espelho do canto que lhe reflete sua própr ia ima- gem e que
o faz sob forma de k léa, destes fe itos aos qua is e le esco- lheu sac rificar
a sua vida para tornar-se para sempre aq uele Aquiles que Ho mero
canta na /liada e que todos os gregos cantaráo a segui r.
Ultrapassar a morte é também escapar da velhice. A mor te e a
idade avan<;ad a equipa ram-se para os gregos (42). Tornar-se velho
é ver ¡JOuco a pouco o tec ido da vida em si mesmo desfazer-se, cor-
romper-se , roído por este mesmo poder de destrui<;iío, es ta kere, que
conduz ao traspasso. Hébes ánthos, diz Homero, fó rmul a, que,
retoma da e desenvol vida pelos poetas elegíacos, co mo foi demons-
trado, inspiro u de maneira muito direta a reda<;iío dos ep itá fios fu-
nerários, em lo uvor dos guerre iros caíd os na " flor da juventu de",
isto é, mor tos no combate <·13>. Assim como a flor se fana, os va-
lores pelos quais a vida se manife s ta: vigor, beleza, gra<;a, ag ilid a d e,
quando já ilum inara m um homem com seu fulgo r durante sua ''b ri-
lhante juventude ", ag/aos hébe, em vez de permanecerem firmes e
estáveis em sua pessoa, logo mur cham e se esvaem no na d a. A flor
da idade - quando se está na plena maturidade de sua for<;a vital -

( 41 ) So br e 11111 procedimento ele mesma ordem, com 11111 se ntido diferente,


na Odisséia, cf. Fran ise F ro ntisi-Ducroux, "I-lontCre et le temps retrouvé'\
Critique, 348 ( ma:o 1976 ), p. 542. A Aquiles ca ntando a gesta her6ica cor-
responde Helena figurando-a no tecido, 3, 125 e 6, 357 -8.
(42) Mimnermo, 2, 5-7 (Edmonds).
(43) Cf. Nicole Loraux, "HBH et ANDRElA: deux versions de la mort
d u combattant atbénien", Ancie11t Society, 6 (1975), p. 1-31. Nicole Loraux
escreve: "Quando celebra areté de um combatente, todo epitáfio versivo tende
a recorrer as fórmulas da epopéia em c¡ue aglao11 hébe11 é a penas um exemplo
entre out ros no dem6sio11 si!ma" ( p. 20). Q11anto ao emprego da fórmula:
ele (e les) perdeu a brilhante juventude - para evocar a morte no campo de
batalha, ela observa: "Uma tal continuidade do epitáfio a ristocrático, louvando
um individuo, ao epitáfio colctivo e democrático do de mósion sema merece a devida
atern;áo, pois sugere a pennanencia de un1a cer ta represen· ta ao do morto
como jovem" ( p. 20 ).

43
é esta ftorac;áo pr imaveril de q ue , no inverno de sua vida, antes mesmo
de baixar ao túmu lo, o anciao já se acha despojado ('14) . Tal é o
sentido do mito de Tita n. De que poderia servir torná-lo irnor- tal se
nao o preservassem também do envelhecimento ? Mais avi-
sado, dirigindo-se a Glauco, Sa rpedon so nba ser subt raído, a um
tempo, a idade avanc;ada e a marte, encontrar-se tanto agéraos quanto
athánatos (45 ) ; é entao , apenas entiio, que se poderia dizer do feíto
guerreiro ser ele urn jogo que nao vale a pena. Pois o pobr e Titan,
afundando-se cada dia mais na seni lidad e, nao pa ssa de um espectro de
vivo, um cadáver animado no reduto ce leste onde Eo s teve de o relegar; se
u envelhecimento sem-fim o destina a uma ilusiio de exis- tencia que a
marte destruiu inteiramente a partir do interior (46 ).
Cair no campo de batalba desvía do gue rreiro este inexo rável de-
clínio, deteriora c;ao de todos os valores que compoem a arelé viril.
A marte heróica colhe o combatente quando ele está no seu acme,
se u acmé , homem já realizado (anér), perfeit arnente inta cto, na inte-
gridade de urna potencia vital ainda pura de qua lq uer decrepitude.
Aos olhos dos ho mens vindouros, cuja memória habitará, ele se acha, pelo
traspasso, fixado no fulgor de urna juvent ude definitiva. Neste sentido, o
kléos áphthit on., q ue o herói conquis ta pela vida breve,
abre-lbe tambérn o acesso a mna inalterável juventude (4;_) Como Hé-
rakJes d eve passar pela pira do Oeta para desposar Hebe e qual ificar-
- se ass im como agéraos (48) , é a " bela ma rte" que torna o guerreiro
co njuntamente athána10s e agéraos. Na glória imorredou ra em que
o canto de seus feítos o int roduz, ele ignora a velhice do mes mo modo
que escapa, tanto guanto pode um homem , a aniquilac;ao da marte.
Esse tema do guerreiro , que se assegura para sempre a juventude
quando aceita perder a vida no combate, reencont ra-se modulado de
outra maneira na retórica da orac;ao fú nebre ateni ense. Mas, como

( 44) Sobr e a associa,;iio da juventude com batent <:_ e da pri mavera, cf. Nicole
Loraux, loe. cit., p. 9-12, q ue recorda a ora,;ao fúnebre de Péricles ( sem
dúvida o epitaph:os de Samos), em que o homem de Estado ateniense compara a
juventucle, ra p tada p e la m a rt e e m comba te Cidade, pr imaa vera retirada
a do ano (
Aristóteles, Retórica, l , 7, 1365 a 31 -33 e III , 10, 1411 a 1-4 ) .
( 45) Il., 12, 323; cf. 8, 539.
(46 ) Hino homé rico a A frodite, (1), 2l8-238; cf. também Mimnermo, 4
(Eclmonds) : " A T ito n, Zeus concedeu possuir como mal imortal a velhice,
o que é ainda pior do que a horrível morte." Observar-se-á o jogo verbal
kakon áphthiton que le mbra, para opor-se, o kléos á¡,l,t.hiton. Para o jove m
guerreiro morto, a g l6ria imorredou raJ p a ra o anciáo indefinidamente vivo, o
mal imo rredouro.
( 47) Hesíodo, T eogonía, 955.
(48) 11., 9 , 52 -61; 11, 786 - 9.

44
observa Nicole Loraux, é na epopéia que é preciso buscar-lhe a ori-
gem; q uando Atena s o emprega para celebrar , quando dos funerais
públicos, aqueles que, por amor cívico, caíram pela pátria durante o
ano, ela projeta na figura do hoplita, soldado -cidadao, adulto e pai
de família, a imagem heróica do guerreiro da epopéia que é, pri-
meiramente, um jovem. Certame nte, a oposi ao na sociedade ho-
mérica dos kouroi e dos gérontes nao se limita ape nas a urna d ifere n9a
de idade, e os gérontes nao sao todos anciaos, no sentido que daría-
mos a este termo. Nao é menos verdade que é nítida a clivagem
entre dois tipos de atividades e competencias: as que, conce rni11do a
guerra, evidenciam a for9a dos bra9os e o ardor valente, e aque las
que, dependendo da reflexáo, requerem o bem falar e o espírito
prudente. Entre o bom fazedo r d e fe itos (prekter érgon) e o bom
dizedor de casos (múthon rheter), a fronteira é inicialmente a da
maior ou meno r idade (49) . A razao do géron opoe-se a cabe a louca
dos jovens, designados pelo termo ho p/6t ero í, que define sua juven-
t ude pela aptidáo para portar armas (00) ; e, se o " orador sonoro"
de P ilos, o velho Nestor, é hábil como ninguém em prodiga lizar
seus sábios cons elhos, se sua experiencia em matér ia de combate se
man ife sta em palavras sábias mais q ue em a9oes brilha ntes, é que sobre
ele a idade pesa e ele deixou de ser um kouros (51) . Co nselho, palavras
(bou/e, múthoi), tal é a tarefa, tal o privilégio dos gérontes; aos mais
jovens (ne6te roi ) cabe atirar a lan9a e assegurar-se nas suas próprias
for9as (52 ) . Daí a fórmula que pontua, como urna arenga, a maior
parte das lo ngas digressoes que Nestor impóe aos mais jovens para
admoestá-los ou para exortá-los a urna Juta da q ua!, dista nciado, ele
só participa um pouco: "Eíth hos hebooimi bíe dé moi émpedos eíe,
Oh, se eu ainda fosse jovem, se meu vigo r fosse inteiro" (53). seu perdido
valor guerre iro que Ne s tor lamenta jun- tamente com sua juventude
esvanecida. Neste contexto, Hébe desig- na menos urna faixa etária
precisamente definida que um período de vida em que há condi óes de
ultrapa ssar-se, em que o sucesso, o bom

( 49 ) Jl., 3, 108-10.
(50 ) 11., 4, 321. "Se entáo eu era Kouros, agora a idade avan ada me
atingiu".
(51 ) JI., 4. 323 -5 ; cf. 3, 150 : em Tróia, sáo os demogérontes que presidem o
conselho; "para eles, a idade pi'>s fim a g uerra mas sao belos discursadores".
(52) Tl., 7, 157; cf. também 11. 670; 23, 629 e 4, 314-5, onde Agam e mnon diz
a Nestor: "Náo tens teu vigor intacto, émpedos, mas a velhice pesa sobre
ti ". Em 8, 103, Diomedes diz no mesmo sentido: "Teu vigor está
alguebrado, a desa¡¡;radável velhice te acompanha".
(53) II., 11, 225: erikudes hébe.
45
resultado, o kudos, parecem ligados aos vossos passos, associados as
vossas empresas (54) , mais prosa icamente, em que há plena posse das
fon;:as. Em primeiro lugar, foq;:a física certamente, mas que tarn-
bém implica a Je veza do corpo, a agilidade e segurarn;a dos membros, a
rapidez dos movimentos ("ó ). Ter a h é be é r e unir em sua pessoa
todas as qualidade s que const ituem o g uerreiro co mpleto. Quando
Idomeneu, guerreiro temível mas já grisalho (mesai pó/ios ) C•6), con - fessa
seu pán ico <liante de Enéias que marcha ao seu encont ro, e pede
socorro a seus compa nheiros, justifica-se nestes termos : "kal d'échei
hébes ánthos, hó le krátos esú mégislon, ele tem a flor da juventud e, o q
ue é o k rátos s upre mo" (5i) . D e fato, por valente que seja, ldo meneu se
nte o peso da idade: "Suas pernas movendo-se nao tém mais a mes ma
seguran9a ( ou gar éi' émpeda gu'ia ), quer se trate de saltar em
conseqüéncia de um tiro de lan9a ou entao de se esqui- var de um
golpe ... ; para fugir, seus pés nao mais o carregam tao depressa para fora
do combate" (58). Como ressaltou E. B enveniste, krátos nao designa a
simples for9a física como o fariam bíe ou ischús, mas a potencia
superior que permite ao guer reiro dominar seu adversário, triunfar dele e
vencé-lo na Juta. Neste sentido, a aris- téia gue rreira está como que
incluída na hébe. Compreendem-se entao melhor os la9os que une m,
na perspectiva heróica, a morte do guerre iro e a juvent ude. Como
existe, ao lad o da honra comum, urna honra heróica, ao lado da
juventude comum - a mera juven- tude - existe urna juvent ude
heróica que brilha no feíto e encont ra na morte em combate sua
realizac;ao. P assemos neste ponto a pala-
vra a Nicole Loraux que viu e disse as coisas tao bem quanto po ssí-
vel: " A epopéia homérica dá duas versóes muito dife re nte da morte
do Kouros. Niio há com que se espa nt ar: simples q ualidade entre
os heróis, a juventude res ta ma is pro s aicamente para aqueles que
os deu ses favorecem meno s, 1.1111 dado fisiológico. Se a morte de
jovens combat entes é freqüente na llíada , ela nao é sempre pateti -
camente glorio sa ( . . . ) No primeiro caso. a juventude nao passa de
um co mpo nent e entre out ros, que nao distingue o morto da massa
imensa e finalmente inesse nc ial das vítimas. Nout ros termos, como
qualidade , a juventude nao preside aos últimos insta ntes do g uer-
reiro, que morre de modo viril mas sem brilho particular. Na
versiio heróica, pelo cont rário, o traspasso realiza-se sob o signo d e

(5 4 ) Il ., 11 , 669; 13, 512-5; 23, 627-8.


(55) 1/., 13. 361.
( 56) 11., 13 , 484.
( 57) II. , 13, 512-5.
( 58 ) "Lipousa ad roteta kai hében"; 11., 1 6, 857. e 22, 363.
46
hébe; mesmo que a juventude nao tenha sid o explicita mente con-
cedida ao guerreiro, ele a conquista no mome nto prec iso em que perde;
hébe é a última pala vra, para Pátroclo como para Heitor, cuja alma
voa para o Hades, chora ndo seu destino, aba ndonando a for<;a e a
juven t ude (5 9). Na realidad e, esta men<;áo da juventude perdida e
chorada mas por isso mesmo enaltec ida é recusada a todos o s out
ros combatentes. Hébe toma figura de carisma, reser-
vado a nata dos heróis - o mais valoroso adversário de Aquiles é
aq uele que, mais que um amigo, !he é um duplo" (60 ) .
A hébe que Pátroclo e Heitor perdem com a vida e que possuíam,
portanto , de modo mais completo que os outros kouroi de idade
avan¡;ada, é aquela mesma que Aquile s s e assegura escolhendo a
vida breve, pela qua!, através da marte heróica , a pronta ma rte, ele
permanece para sempre revestido. Se a juventude se manifesta na
pessoa do guerreiro vivo, primeiramen:e pelo vigor, bíe, potencia,
krátos, fortaleza, a/k é , no cadáver do her ói este nd ido sem fori;:a e
sem vida, seu brilho tran sparec e na excepcion al beleza d e um
carpo doravante iner te. Em Homero, o termo soma designa
precisamente o carpo cuja vida se retirou, o despojo de um se r
defunto . Enguanto o carpo está vivo, é vis to como uma multip li-
cidade de órgaos e memb ros animados pelas pulsóes qu e !he sao
próprias: é o lugar em que se desdobram e as vezes se afrontam
impu lsos, for¡;as contrári as. :E com a morte que, aba ndonado por
etas, o carpo adq uire sua unidade formal. De sujeito e suporte de
a<;óes diversas, mais ou menos impr evistas, to rna-se puro e simpl es
o bjeto para outrem: e primeiramente objeto de conte mpla<;áo, espe-
táculo para os olhos, a segui r objeto de cuidado s, de deplor ac,:áo , de
ritos funerá rios (61) . O mesmo guerrei ro que aparecía d urante a
batalha como amea¡;a, ter ror ou reconforto, provocando o panico e

( 59) Nicole Loraux, o p. cit., p. 22-3.


( 60) Cf., sobre este ponto, J.-P. Ve rnant, Problemes de la perso,me, sob
a direl,'áo de I. Meyerson, Pa ris, 1973, p. 54 e James M. Reclfield, op. cit .,
p. 178 SS,
( 61 ) JI., 24, 348. Tra ta-se de Hennc s que tomou o aspec to d e mn jovem
príncip e. cu ja ba rba mal come,;a a d esponta r. Em 3, 44-5, a beleza
kalóu eido s - de Páris nao eleve iludir: nele, nao é nem for<;a n e m valentia.
Cf. tarnbém 3, 39; 55; 392. Em 21, 108, Aquiles diz a Licao n. que l be supüca
que o poupe: ''Eu mesmo, ves, sou belo e grande. kal ego kal6s t e mégas te."
Mas é para expli ca r-l he 'l"e é che¡:ado o tempo ele mo'.rer. Po'. belo que
se ja Aq uiles, a morte paira sobre ele também; está pr6x1mo o dia em que
se )he a rrancará a vida no combate. Nao é Aquiles no furor da a áo, mas
o her6i se vendo sob o signo da morte. Sobre a beleza "real", mais 4ue
g uerreira, de Agamemnon quando da trégua do combate, cf. 3, 169-70.

47
a fuga ou excitando o ardor e o ataque, a partir do momento em que
jaz no campo de batalba, oferece -s e aos olhares como urna simples
figura cujos trac;os sao identific áveis: é certamente Pátroclo, é cer-
tamente Heitor, mas reduzidos a s ua aparencia exterior, a este aspecto
singular de seu co rpo que os torna reconhecíveis por out rem. Sem dú-
vida, no homem vivo, a excelenc ia , a grac;a, a beleza d esempe nham seu
papel de elementos da pessoa. Mas, na figura do guerrei ro em ac;ao ,
e s tes as pectos ficam como que eclipsados por aqueles que a batalha
coloca em primeiro plano. O que resplandece no corpo do herói
é menos o brilho gracioso da juvent ude (cha riestáte hébe) (62) que o
do bronze que o reves te, o faiscar de suas armas, armadura e capa-
cete, a chama que emana de seus olhos, a radiac;ao do ardor que o
queima (63) . Q uando Aquiles reaparece no ca mpo de bata lha após
sua longa ausenc ia, um atroz terror se apossa dos tro ianos, vendo-o
" brilhante em sua armad ura" (6 4). Diante das portas Céias, Príamo
geme, empalidece, suplica a Heitor que venh a ter com ele sob a
protec;áo das mur alhas: é o primeiro q ue aca ba de percebe r, irrom-
pendo na planície, resplandecente como o astro que vem no outono
e cu jos fogos fulgente s faíscam no meio das estrelas sem-número, na
so mbr a da noile. Cha mam-no o ciio de ó rion e seu brilho é sem -
-pa r . . . "O bronze luz de urn br ilho se melhante em volta do peilo de Aqu
ile s co rr e nte" (65) . E q uando o próprio Heitor ve Aquiles,
cujo bronz e resplandece "s emelhante ao fulgor do fogo flamejante
ou do sol levante", o terror o apanha; póe-se em fuga (66). :E: p re-
ciso disti nguir en t re esta radiac;iio ativa q ue emana do guerreiro vivo,
provocando terror, e a espantosa beleza de que se reveste o corpo
do herói abatido como se fosse o brilho mesmo de sua juvent ud e -
urna juventude que a idade nao pode mais mac ula r. Mal a psuché
de Heitor deixou seus memb ros , " abandonando s ua forc;a e juven-
tude" , Aquiles lhe sepa ra as armas dos ombros. Os aqueus acorrem
entáo de todo s os lado s para ver o inimigo que mais qu e qualquer
outro !hes fez tanto mal e pa ra desferir ainda golpes no seu cadáve r.
Aproximando-se do herói que nao é mais, diante deles, senao soma,
cadáver insensível e inert e, eles o conte mpla m: " Admiram o porte,

( 62 ) 11., 1 9, 3 65 ; 375-7 ; 381; 398.


(63 ) 11., 20, 46.
( 64) II ., 22, 25-32.
(65 ) I! ., 22, 13 4-5 .
( 66 ) Tl. , 22 , 370-1 ; cf. também Odis séia, 24, 44: morto Aqu iles, lava-se
seu "belo corpo" na água morna: e Eurípedes, Su plicantes, 783: a visao
dos cadáve res dos guerreiros argivos é kaw n tl,éama. um bela espetáculo. em-
bora amargo.

48
a belcza invejável de Heitor, ho) kal theésanto phuen ka) eídos ageto11
Hék toros" (67). Rea9ao para nós surp reendente, se o velho P ríamo
nao a tivesse desvendado , opondo a marte deplorável e hor renda do
velho a bela marte do guerreiro, ceifado em sua juventude. ·'Ao
jovem guerreiro, néoi , ma rta pelo inimigo, dilacerado pelo bronze
agudo, tuda convém, pánt' epéo iken; tuda é belo, pánta kalá - na-
quilo que ele mostra, mesmo morto" (68).
No espírito de Pría mo, a evoca91ío do jovem guerreiro estendido
ma rta em sua beleza, longe de encorajar Heitor a enfrentar Aquil es,
deve, por contraste, ente rnece-lo acerca do ho rror do traspasso que
espera um velho como ele se, privado do amparo de um filho como
o seu, vier a perecer sob a espada ou a lan9a dos guerreiros adversos.
O quadro repugnan te que pinta o velho rei expr ime de maneira
impressionante o caráter escanda loso, antinat ural, da ma rte guerreira,
a ma rte " vermelba", quan do ela ferc um anciao cuja ma jes tade exige
um fim digno e sereno, quase solene, em sua casa, na paz doméstica,
rodeado pelos se us. Os ferimentos, o sa ngue, a poeira que, no
cadáver d o jovem heró i, evocavam sua valentía e ressa ltava m sua
beleza com um toque mais viril, no caso de uma cabe9a encanec ida, de
uma barba branca, de um cor po de velho, adquirem, gra9as a s ua
fealdade horrenda, um aspecto quase obsceno: Príamo nao se ve
apenas ferido mortalme nte as portas de sua habita9ao, mas, des-
membrado, devorado pelos caes - nao por caes quaisquer - mas
suas próprias bestas domésticas que ele mesmo alirnentava cm seu
palácio e que, caindo na selvageria, d lc vao fazer urna presa, de suas
carnes repasto, vao devorar seu sexo, e estcnder-se, saciadas, no
vestíbulo cuja gua rda outrora ele !hes confiava. "Caes que se veem
ultrajar uma ca bC9a b ra nca , uma barba branca, as partes vergonho -
sas de um vclho massacrado, nada é mais digno de pieda de'' (6°). Evo-
ca Príamo um mu nd o as aves sas, todos os valores se m pé nem ca-
bec;a, a bestialidade instalada no seio do l ar, a dignid ade do velho
to rnada ir risao na fealdade e impud icíc' a, destruic;iio de tudo o que
no cadáver pertence propri amente ao homem. A mo rte sangrenta,
bela e gloriosa quando int eiramen :e jove m. elevava o herói acima da
condic;ao human a; arrancava-o do traspasso comu m con fe rindo a

( 67 ) II., 22, 71-3.


(68 ) ll ., 22, 74-6.
(69) Além do comcntár:o de C. Prato <les te fr agmento ( p. 93-102 de sua
ediciío de Ti rteu ), cf. C. R. Dawson, " Spoudaioge loin. Randon T houghts on
occasional Poems", Yale Classical Studies, 19, 1966. p. 50-58; W. J. Verdenius,
"Tyrtaeus 6-7 D. A commentary"', M11é mo s y11e, 22, 1969, p. 337-55.

49
se u fim um caráte r de fulgurante sublim id ade. A mesma ma rte,
sofrida pelo velh o, rebaixa-o aquém do homem; ela torna seu decesso,
em vez da sorte comum , uma horrível monstruosidade.
Tirteu, num dos f ragmentos que chegaram até nós, imita esta pas-
sagem da llíada, cujas termos por vezes ele retoma exatamen te. As
dife rem;;as, freqüen tem ente ressa ltadas no por menor e no quadro
geral (70), referem-se ao próprio contexto de Esparta: o hop lita que,
na falange, combate ombro a ombro, escudo a escudo , nao é mais o
cam peíio da epopéia hom érica; pede-se-lhe que se ma nten ha firme,
sem a bando nar seu posto e nao que se ilustre em combate singular ;
se " morr er é urna bela coisa, tethnamenai giir kaló n, quando se caí na
primeira linha como homem de coragem·• (71) , é pr ec iso ainda que
seja defendendo a terra da pát ria; é sob esta condi ao que a glória do
defunto perma nece imo rredoura e, o herói, imorta l - athánatos -
apesar de jazer sob a terra (72) ; de ste ponto de vista, na
o poderia haver entr e honra heróica e a simp les honra um corte tao
radical quanto antes : nao há compatibilidade alguma, em Esp arta, entre a
vida longa e o feito guerreiro, entre a glória, tal como a concebe
Aquiles, e a idade avan ada. Se os combaten tes, que so u- beram manter-
se firmes em seu posta, tiveram também a sorte de retornar saos e salvos,
compar tilham durante toda a sua vida as mesmas honr as e a mesma
glória que aqueles que caíram; enve lhe- cidos, sua exce le ncia !hes vale a
homeoage m de toda a Cidade" (73) .
E s p arta ut iliza assim o pre stígio do feíto do guerreiro épico, da
honr a heróica , como inst rumento de compet i ao e promo ao sociais.
El a instituí, desde o agogé, espécie de regulam ento cod ifica do da
glória e da vergonha, <losando e distribuind o, segundo os méritos
guerreiros, louvor ou descrédito, respeito o u desprezo , marcas de
estima ou medidas de denegr irnento, conde nando os " tre mentes" -
trésantes - as ironía s humilh antes da s mulheres bem como a infa-
mia - óneidos ka) atimíe (74) - de todo o corpo social.
Por outro lado, em T irteu, o " mais velho" , palaiotéros, o mais
veneráv el, geraiós, cuja ma rte cont rasta c o m a do jovem - néos -,
nao é o infeliz anciao evocado por Príamo para comove r seu filho,
mas um hop lita corajoso, um anciao cheio de ardor que combateu e

(7 0 ) Fr. 6 (C . P rato ), 1-2.


( 71 ) Fr. 9, 31-2.
( 72 ) Fr. 9, 39 ss.
( 73 ) Cf. Heródoto, Vll , 231.
( 74) Fr. 7, 21-30.

50
pcreceu "na primeira linha'·, no lugar que toca normalme nte, na
falange, aos 11éoi . P o der-se-ia pensar que seu sacrifício só merec;a
maior exaltac,iio. Pelo contrário, se o fragmento 6 afirmava que
era belo - kalón - mo rrer na primeira linha, este mesmo traspasso torna-
se feio - aischrón - para o mais velho que cai diante dos 11éoi . f;
cerio que, na "fealdade" que o termo aischrón denuncia, há
um matiz de rep rovac;iio " moral" : trata-se, pelo horror do quadro,
de exortar os néoi a nao ceder seu lugar na primeira linha aos mais
velhos. Mas todo o contexto, a oposic;iio aischrón - ka/611, e o
caráter "espetac ular" da descri iio em seu conjunto mostram a per- siste
ncia de uma visao "estét ica' ', no sen tido mais forte e amplo do termo, da
morte he róica em sua associac;iio íntima com a hébe.
"Pois, na verdade, é coisa feia que um homem mais velho, caído
na primeira linha, jaza a frente dos jovens, cabec;a branca e barba
gris, tendo cxalado o seu ardor valente no pó, scgurando o sexo
ensangücntado nas miios - horror para os olhos, vergonha para con-
temp lac;iio. aischrii ta g'ophtha/1110,s kai 11emese1on ideí11 - e ainda
tcndo o corpo nu. Mas, para os jovens, tudo convém - néoisi de
pánt' epéo iken - engua nto está com e.les a brilhante flor da amável
juventud e, o bjeto de admir ac;iio para os homens, andrási men teetos
idein, de desejo para as mulheres, eratos de gunaixí, enquanto se
está vivo, zoos eón, mas beleza quando se está mo rto na primeira
linha - ka/os d' en promáchoisi pesón" ¡;_;;)
Niio devemos admitir, como sugere Cbristop her M. Dawson, urna
dupla dimensiio da beleza tanto da honra quanto da juventude? No fim de
sua análise do texto de T irteu, D awson escrcve: "Sensuous beauty may
come in life , but true beauty comes in hero ic deat h" (iO).
Bela, a mo rte heróica. f; sem dúvida a ela que se refere a regra
instituída, diz-se, por Licurgo, para o uso dos guerreiros lacedemonios
- deixar lo nga esvoac;ar sua cabeleira, sem cortá-la, e dela cuida r
mui to espec ia lmente na véspera do combate. A cabeleira é, na
cabec;a do homem, co mparável a flor de sua vitalidade, a florac;iio
de sua idade. E la exprime a condic,iio de vida daquele cujas tem-
poras coroa, e é ao mesmo temp o uma parte do corpo que, por seu
crescime nto próp rio, sua vida iadepea dente - co rtam-na, eta cresce,
conserva-se sera se corromper - é suscetível de vos representar: a
cabeleira é oferecida, dela se faz dom como de si mesmo. Se o

(75) Lec. cit., p. 57.


(76) Cf. Esquilo, Agamémrwri, 78-9: "Que é um homem muito velho
qunndo a sua folhagem está inteiramcnte ressecada?"

51
an c1 ao se define por sua cabe1,a e barba brancas, a hébe marca-se
também pela primeira flo ra1,áo do pelo da barba, pela maturidade
do penteado. f, conhecida a rela1,áo de kouros com keíro: cortar-se
os cabelos; de modo mais geral, as grandes fases da vida humana,
as mudan1,as de condi1,áo sao pontuada s pelo corte e pela oferenda
de urna mecha de cabelos, até mesmo de toda a cabeleira, como no
caso da recém-casada em Esparta. Na Jlíada, os companheiros de
Pátroclo e o próprio Aquiles cortam sua cabeleira sobre o cadáver
de seu amigo defunto antes de dá-lo as chamas. Vestem-lhe o corpo
inteiro com seus cabelos como se o revestissern para a sua última
viagem, com sua jovem e viril vitalidade. "O cadáver está vestido
por inteiro com os cabelos que eles cortaram de suas frontes e que vieram
jogar em seguida sobre ele" (77) .
Seus companheiros o rnam o morto com o que neles expr ime
sua natureza de guerreiros ardente s, ao passo que sua mulh er, se ele
a tern, ou sua mae - no caso, por exemplo, de Heitor - oferecen-
do- lhe as vestes prec iosas que elas !he teceram, ligam-no até no além
a esse universo femini no ao qua! o ligava seu estatuto de filho e
esposo. Quando Xenofonte interpreta o porte dos cabelos longos
como maneira de tornar os guerreiros espartanos " maiores, mais
nobres e mais terríveis" (78), ele nao contradiz o valor de beleza que
esta prática lhes confere; enfatiza apenas que nao se trata de urna
beleza qualquer, urna beleza sensual como a de Páris, ou urna beleza
feminina, mas da beleza propriamente gue rreira que já procurava m,
sem dúv ida, os comba tentes homéricos, aqueles que a epopéia chama
aqueus cabe ludo s, káre komóontes Achaiói (79).
Heródoto relata- nos urn episódio sig nificativo (80). Antes de sondar
a resistencia do punhado de lacedemonio que guarda m as Te rmó-
pilas, Xerxes envía Demarato como espiáo. Ao voltar, Demarato
faz seu relatório. Ele viu os lacedemon ios p raticando tranqüila-
mente exercícios corporais e ocupando-se em pentear os cabelos. O
rei, estupefato, pede explica91íes . "T al é o costume de Esparta,

(77) I!., 23, 135-6; <¡uanto a cabeleira de Aquiles: 23, 144-151. Com-
parar as palavras de Andromaca a Heitor, seu esposo: 22, 510-4.
(78) Lac. Poi., 11, 3. Cf. Nicole Lorau.,, "La belle mort spartiate",
Ktema.
(79 ) 2, 443 e 472; 18, 359; 3, 43: passagem especiahnente signifi ca tiva:
os aqueus "cabeludos" devem rir com certeza ao verem a jovem beleza de
Páris que, Jonge de ser um bravo, nao tem no cora áo nem for a nem va-
lentia.
(80) Heródoto, VII, 208-9.

52
responde Demarato; quando estao em vias de expor suas vidas, esses
homens cuidam de suas cabeleiras". A véspera do combate em que
a aposta é a vida (e nas Termópilas a alternativa, que é a leí de
Esparta, vencer ou morrer, reduz-se talvez exclusivamente a um dos
termos: bem morre r), é urna só coisa impress ionar o inimigo com um ar
"grande , nobre, terrível" e preparar-se para ser, no campo de batalha,
um belo morto, semelhante em sua juventude ao Heitor admirad o pelos
gregos (81).
Se juventude e be leza refletem, no corpo do herói abatido, o brilho
desta glória pela qua! ele sacrificou a vida, ultrajar o cadáver inimigo
adquire um novo significado. Charles Paul Sega! e James M. Red-
field enfatizaram a importancia do tema da mut ila<;ao dos corpos na
/liada: ve-se que ele toma, com o passar dos cantos, urna imp ortancia
crescente, para culmin ar no furor demente das sevícias que Aquiles
inflige ao cad áver de Heitor. Nao se pode duvidar de que o poeta
faz assim compr eender as ambigüidades da guerra heróica. Quando
os combates tornam-se mais duros, a confronta<;ao cava leiresca, com
suas regras, seu cód ig o, seus interditos, transforma-se em Ju ta se l-
vagem em que a bestialida de , escondida no seio da violencia, aflora
nos dois campos. Nao basta mais triunfar num duelo leal, confirmar
sua areté confrontando -a com a de outrem; morto o adversário, en-
carni<;a-se, como se fosse um predador agarrado a sua presa, sobre o
cadáver que, por nao se poder comer cru - desejo qu e é, aliás, for-
mulado - faz-se desmembrar, dando-se as suas carnes a devorai;:ao
dos caes e pássaros interpostos. O herói épico está assirn dupla-
mente ameai;:ado de perder sua figura humana; se perece, terá talvez
o corpo deixado as bestas, nao na bela morte mas no mesmo horror
monstruoso que o rei Príamo evocava corno um pesadelo; se mata,
ele se a rrisca, ao mutilar o corp o de sua vítirna, a cair nessa mesma
selvageria que o anciao temía nos seus caes. Tudo isso é verdadei-
ro, mas é preciso perguntar se a ligai;:ao entre o ideal heróico e a
mutila<;ao dos corpos nao é mais estreita, se a bela morte do herói, abrindo-
lhe o caminho a urna glória imorredoura , nao atra i como sua
contrapar tida necessária, seu avesso sinistro, o afeamento, o aviltam
ento do corpo do adversário defunto, para vedar-lhe o acesso a
memória dos homens vindouros. Se, na perspectiva heróica, é pouco
impo rtante permanecer em vida, sendo essencial o bem morrer. na
mesma perspectiva o essencial nao pode ser tirar a vida do inimi- go,
mas despojá-lo da bela morte.

(81) Cf. Plutarco, Vida de Licurgo, 22, 1: os cabelos compridos conferem


aos belos t1ma aparenc ia mais nobre, aos feios tornam mais terríveis.

53
A aikía (homérico: aeikeíe), a ª!.ªº de aikí zei11, de ultrajar o
cadáver, apresenta-se até no plano lingüístico (82) como a denega9ao
deste pám'epéoiken, que Homero e Tirteu aplicavam ao carpo de
néos exposto no campo de bata lha, a substitui9ao nele do pánta ka/á pelo
aischrón. Aikízein é também aischúnei11, en fea r, aviltar (83). Trata- se
de fazer desaparecer, no carpo do guerreiro defunto, os aspectos de
juventud e e beleza viris que nele se rna nifestam como signos visíveis
da glória. Procura-se substituir a bela ma rte do herói, aureolado de hébe,
pelo fon horrendo cuja irnage m rondava o espí- rito do velho Príaruo;
um cadáver em que tod a juventude , beleza, virilidad e, toda figura
humana enfim foram apagadas (é preciso ent ender neste sentido,
tanto em Tirteu como em Homero, a estranha alusiío ao sexo devorado
ou segurado em maos cheias de sangue). Por que um tal enca
rni9amento contra o que Apolo denom ina kophe ga7a( 8 4) , urna argila
insensíve l, por que em um despojo, roupa velha vazia, querer desalo jar a
pessoa do inimigo cuja psuché já se retirou, se nao pelo fato de que sua
pessoa permanece ligada a este ca rpo defunto e ao que ele re pre senta
por seu aspecto, se u eídos? Para obter o kléos áphth iton , o he rói
precisa de que seu nome e seus feítos sej am conhecidos pelos home ns
que virao e que subs ista m na sua memór ia. A prime ira condi9ao é que
se jam celebrados num canto que nao perecerá; a segunda, que seu cad
áver tenha recebido a sua parte de honra, o géras thanónton (85 ), qu e ele
nao tenha sido privado da timé que lhe é devida e que o faz penet rar até
o fundo do traspasso e ter acesso a um novo estado, ao estatuto social
de ma rta, perma- nece ndo portado r dos valores de vida, juventude,
beleza que o ca rpo encarna e que fora m, nele, consag rados pela marte
heróic a.
Que s ignifica penetrar até o fundo do t raspasso? O golpe fatal
que fere o herói l ib e rta sua psuché: ela deixa os seus memb ros,
abandonando a for9a e a juventud e. Mesmo assim e la nao franqu eia
as portas da mar te. A marte nao é u rna simples priva 9iío da vida, um
decesso; é urna tran sforrnac,iío e m que o cadáver é ao mesmo tempo o
inst rumento e o ob jeto, urna transmuta9 iío do sujeito que se opera
no car po e pelo ca rpo. Os ritos funerários realizam essa

(82) CE. Louis Ge rnct, Recl,ercl,es sur le dé veloppeme nt de la pensée


juridique et morale en Crece, Paris, 1917, p. 211. Estes tennos comportam,
com o a privativo, a raiz sik que marca a conveniCncia, a conformidade, a se-
melh an a.
0

(83) Cf. Il., 22, 75 a comparra com 22, 336; cf. tamb ém 18, 24 e 27;
24, 418.
( 84) Cf. II ., 24, 54.
(85) Cf. Il., 16, 457 e 675.

54
mudall(,a de estado: a seu termo, o ind ivíduo deixou o univer so dos
vivos, como o corpo consumido esvaneceu-se no além, como a sua
psuché chegou sem retorno iis marg ns do Hades. O indivíduo de-
saparece u entao da rede das rela<;oes soci ais em que a sua existencia
constituía urna malha; desse ponto de vista, ele é doravante uma
ausencia, um vazio; mas continua a existir num outro plano, nu ma
forma ele ser que escapa a usura do tempo e a dest rui<;ao. Ele exis-
te pela permanencia de seu nome e pelo brilho de sua fama, que
persistem presentes nao só na memória daqueles que o conheceram
em vicia, mas também para todos os homens vindouros. Esta ins-
cr ii;ac na memória social toma duas formas, so lidárias e paralelas:
o herói é memor izado no canto épico que, para celebrar sua glória
imortaJ, coloca-se sob o signo de Memór ia, faz-se memória, tornan- do-
o memorável; ele o é tam bém no mnéma, o memo rial que consti- tuem,
no fim do ritual funerário, a edifica<;ao do túmulo e o ergui- mento de
um séma, rele mb rando aos bomens por vir, "essoménoisi",
como o faz o canto épico, urna glória assim assegurada de nao mais
perecer (80). Gra<;as a s ua fixidez, a sua estabilid ade, a estela con-
trasta com o caráter tra nsitór io e passage iro dos valores que ilum i-
na m o corpo humano durante a vida. "Ela permanece imóvel, imu-
tável émpedon, uma vez levantada na tumba de um homem ou de
urna rnulber morto s" ( 8i). E:mpedos: intacto , imutáve l - se as
qualidades que constituem a aristeía guerreira: o ardor, ménos, a for<;a,
bía, os membros, guia, possuíssem tal ca ráter de émpedos (88), o herói
guerreiro esta ría ao abrigo da velhice. Na morte heróica, ele nao
teria que perder sua juventude e beleza para apro priar-se delas de
modo defi nitivo no outro mundo. O mnéma traduz, a sua ma neira,
na imutab ilidade de sua matér ia e forma, na cont inu idade de sua
presen<;a, o paradoxo dos valores de vida, juventude e beleza que
so mente sao assegurados quando perdidos, que somente sao possuídos
para sempre quando se deixa de existir.
O tratame nto do cadáver no ritual funerário destaca-se de um pa-
radoxo de mesma ordem . O corpo é inic ialmente embeleza do : la-

(86) Mesma f6mmla para o sema, em Odisséia, 11, 76 que a da JI., 22,
305: kol essorné noisi putliéstlwi; em Odis ., 4, 584. Menelau faz erguer um
ti'.imulo pa ra Agamemnon .. para que sua gl6ria, kléos, pennane a imorredoura",
como em 11., 7, 91, Heitor pensa que o sema de um inimigo, do qua! triunfará
no combate, lembrará este feito aos homens da posteridaae: assim, seu kléos
nunca perecerá.
(87) JI., 17, 434-5.
( 88) Sobre o ernprego de émpedos com ménos: Il., 5, 254; com bfa: 4
314; 23, 629; com guia: 23, 627.

55
vado com ág ua morna para desembarac;á-lo daquilo que o cons purLa
e s uja; suas feridas, untadas com um ungüen to, sáo apagadas; sua
pele, esfregada com óleo brilhantc, adquire mais brilho: perfumado ,
o despojo é ornado com tecidos preciosos, exposto sobre um catafalco
a vista dos que lhe sao chegados para a deplorac;áo (89) . Em seguida,
o cad áver é, na tra dic;áo homérica , queimado numa pira cujas cha-
mas devoram tudo o que, nele, é feíto de carne e sangue, isto é, a
um tempo comestível e sujeito a corrupc;áo , o que entao se liga
a esta forma efe mera de existe ncia em que vida e morte estao inex-
tricavelmente misturadas. Subs iste m apenas os "ossos brancos",
incorruptíveis, nao inteira mente calcinados, fáceis de reconhecer ;
separados das cinzas da pira, sao reunid os e depostos na tumba.
Comparando-se o ritual do sacrifício e as práticas funer árias, veri- fica-
se que "a parte do fogo" se inverte: na pira fúnebre , o fogo conso me
o que , no sacrifício, é pr ese rvado para ser consumido pelos homens - as
carnes da vítima, pesadas de gordura - parte dos " homens mor tais' '
que com elas se rcpastam, tendo necessida de de comer para subsistir
segun do as exig e ncias de urna vida perecível q ue é preciso nutr ir
indefinidamente para q ue náo se apague. O s "ossos brancos" do animal
sacrificado, nao comestíveis e incor rup- tíveis, nao comest íveis porq ue
incor rupt íveis, siío queimados no altar como parte dos deuses imort ais
aos quais eles chegam so b a forma de fumac;as perfu madas. Esses
mesmos ossos brancos, nos fune rais , p e r manece m sob a ter ra como
o vestígio - prolongado pelo túmul o. o sema, a este la - que a pessoa do
morto deixa cá emba ÍJ{o como forma na qua!, em sua ausencia, ele
permanece presente no mundo dos vivos. Pe lo co nt rá rio, o que o fogo da
pira fúne bre envía para o invi- sível q uando o devora, com as carnes e o
sangue perecíveis, é toda a aparencia fí s ica, aqui lo que se dá a ver no
corpo: porte, beleza, juven- t ude, forma singt1la r, bri lho, cabeleira;
nesses aspec tos do corpo enca rnam-se os valores ao mesmo tempo
estéticos, religiosos, socia is, pessoais, que definern, aos olhos do grupo, o
estat uto de um indi- víduo singula r. Tais valores sao tanto mais precio
sos em sua fragi- lidade quanto, mal desabrochados, a própria vida
que os fazia f lo- re sce r logo os fez murchar . A forma visível do corpo,
tal qua! é apresentada como espetác ulo no início dos funerais quando
exposta, só pode ser salva da corrupc;ao ao desaparecer no invisível. Beleza,
juventude, virilidade do cadáver, para pertence r-l he definitivamente
e ligar-se a figura do morto, exigem que o despojo tenha deixado
de existir, asslm corno o herói tenha deixado de viver. ·

( 89) JI., 1 8, 346-353; Odis., 24, 44-6.

56
Tal finalidade das práticas funerárias revela-se co m maio r nitidez
exatamente ali onde fazem falta, e sobretudo o nde siío ritualmente
denegadas, nos procedimentos de ultraje do cadáver inimigo. Pro- pondo-
sc impedir que o adversário aceda ao estatuto de morto glo- rioso, que
seu fiin heróico fez merecer, o ultraje permite-nos melho r compreender, pela
natureza das sevícias que ele efetua, o caminho tomado normalmente
pelos ritos funerár ios para imortalizar o guer- reiro pela bela morte.

Um primeiro tipo de sev1cia consiste em sujar de poeira e terra


o corpo ensangüenta do, em dil acerar sua pele p a ra q ue ele perca sua
figura singular, a nitid ez dos trac;os , sua cor e brilho, a um tempo sua
forma distinta e seu aspecto humano, para que assim ele se torne
irreconhecível. Quando Aquiles empree nde ultr ajar Heit or, amar- ra-
o a seu carro para arrancar-lhe toda a pele<ºº), deixando seu corpo,
especia lmente ca bec;a e cab elos, a rrastar-se pelo chao, na poei- ra: "uma
nuvem de poeira leva nta-se em torno do cadáver assim ar- rastado; seus
cabelos negros espalham-se; sua cabec;a jaz toda na poeira, essa cabec;a o
utror a encantadora, páros charíen" (91) . Sa-
jando e desfigurando o cadáver em vez de purificá-lo e untá-lo, a
aikía procura destruir a indi vidualidad e de um corpo de onde ema-
nava o encanto da juventude e da vida . Aquiles gostaria de que
Heitor tivesse o mesmo destino de Sarpedo n, de que " nenbum ho-
mem, por perspicaz que fosse, nao reconheceria mais os trac;o s, de
tal modo o sangue e a po eira o cobrem por intei ro da cabec;a a os
p és" (92 ) . Tornando o corpo uma massa informe que nao se distin-
gue mais da terra na qua ! permanece este nd ido, nao some nte se apaga
a figura particular do defunto, mas suprime-se a diferenc;a que se-
para a matéria inanimada da criat ura viva, reduz-se o cadáver a nao
se r mais o aspecto visível da pessoa, mas essa argila inerte de que
falava Apolo. A terra e a poeira suja m o cor po porque o seu con-
tato é para ele uma conspurcac;ií.o, na medida em que pertencem a
um território que é o cont rári o da vida. Durante a deplorac;iío, no
momento em que os parentes do morto o aproximam do s vivos
fazendo brilhar em seu cadáve r um último reflexo da vida, eles ta m-
bém se aproximam do morto simulando sua entrada no mundo in-
forme do traspasso; infligem a seu próprio corpo urna espécie de

( 90) 11., 24, 2 L e 23, 1 87. Nas duas passagens encontra-se o verbo
apodrúplw.
( 91 ) TI., 22, 401-3.
( 92) 11., 14, 638.

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ultraje fictíc io conspurcando -se e arrancan lo-se os ca belos, ro la1 do
na poeira, enfeando-se o rosto com a cmza. Ass1111 faz Aquiles
quando sabe da mo rte de Pátroclo: "charíen dºéisch11ne pr6sopon,
ultraja seu rosto encan tado·r • (9" ) , como ult raja o rosto encantado r
de Heito r.
Urna segunda forma de aikía é a seguinte: o corpo é desmem-
brado, esquartejado, cortado e m peda9os; cortam- se a cabe9a, os bra-
90s, as miíos e as pernas; é dividido em pedayos: meleis/1 ta-
meín <º4) . A jax, furioso, separa a cabe9a de Tmbr ios de seu pes-
coyo delicado e a a rrernessa, corno urna b ola, sphaired6n, a rolar na poeira
(º 5) ; H ei tor gostaria de espetar a cabeya de Pátroclo no alto de urna
cerca após té-la decepado (9G) ; Aga mémnon mata Hi- póloco q uando
este está por terra, "corta-lhe as maos e decepa-o com a espada,
joga-o rolan do como um cepo, hólmon h6s, no meio d a mult.idiío"
(97) . Urna ca be9a como urna bola, urn tronco como um cepo,
perdendo sua unidade formal, o corpo hu ma no é redu- zido ao estado
de coisa ao mesmo tempo em que é desfigurado. "Vieram", escreve
Pín daro na quarta Pítica, "cortar com o ma-
chado os ramos de um grande carvalho, e nfea r- lhe a espantosa be-
leza aisc/11ínei de h oi thaeton eidos'' (9 8) . f. justamente a esta bc-
leza , com que se espantavam os gregos <liante de Heit or defunto,
que visam ao s procedimentos de ultraje que atacam , no cadáver, a
integridade do corpo huma no.
O despeda9amen to do cadáver, cu jos restos sao jogados ao aca-
so, culmina na p rática, evocada desde os primeiros versos da 1/íada
e lembrada ao longo do poema, de deixar o corpo para repa sto de
caes, aves e peixes. O ultraje leva aq ui o horror a seu acme.
De speda9ado , o corpo é devorado cru ao invés de ser entregue ao
fogo que, queimando-o, o restitu i ao além, na int e ireza de s ua forma.
O herói, cujo corpo é assim largado a voracidade das feras, é ex-
cluíd o d a morte ao mesmo tempo em que é diminuído da condi -
9ao humana. Nao atravessa as portas do Hades, porque nao teve
sua " parte de fogo"; niio tem lu gar de sepultura, nao tem túmulo

( 93) I!., 1 8, 24.


( 94) 1/., 24, 409. Deixamos aqui de lado os problemas do maschalism-0s,
so br e os qua is co nsulte-se E. Rohde, 1' StJCh é, ed. francesa por A. Re ymond,
Paris, 1952, apendice 2, p. 599-603. Eles sobressaem-se de um outro plano
ae análise, que esperamos desenvolver num próxi mo estudo.
( 95) ll., 13, 202.
(96) Il ., 18, 176-8.
(97) 11., 11, 1 4 6-7.
(98) Verso 469-70.

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nem sema, nem mesmo corpo funerário local izado que marque pa-
ra o grupo social o ponto da terra em que ele se acha situado e
em que se perpet uem suas relac;óes co ro seu país, sua linhage m, sua
descendencia ou até mesmo simplesmente com os passantes. Ex-
pulso da marte, ele se acha, no mesmo ato, riscado do universo
dos vivos, apagado da memó ria dos homens. E mais, dei xá-lo pa-
ra as bestas nao é somente, recusa ndo-lhe os funerais, interditar-
-lhe o estatuto de morto, é dissolve-lo na confusao, remete-Jo para
o caos, para urna completa inum anidade: tra nsfo rmado ero carne
e sangue de animais selvagens, no ventre das bestas que o devo-
ra m, nele nao há mais a menor apare nci a, o menor vestígio do
hum ano: ele nao é mais pessoa alguma.
Por fim, o último modo de ul traje. Abre-se o campo para
as pote nci as de cormp<;ao, que operam no corpo das criaturas mor-
tais, deixando o cad áver insepulto decomp or-se e apodrecer po r s i,
comido pelos vermes e pelas moscas que nele penet raram pelas fe-
ridas abertas. Quand o Aqu ile s se a pronta para retomar o com- bate,
inquie ta-se junto de sua mae. Que vai acontecer , enquanto dura a
batalha, com o carpo de Pátroclo? "Tenho muito medo de que
duran te esse tempo as moscas entr em 110 carpo do valente f ilho de
Menetios através das feridas abertas pelo bronze e aí fa- c;am nascer
os vermes, ultrajando assim este cadáver de onde a vida foi expulsa,
e cor rompam todas as suas ca rnes" (99 ).
O cadáve r abandonado a d eco mpos ic;ao é a compl eta inversao
da bela marte, seu oposto. Num pólo está a jove m e viril b e le za
do gue rreiro cujo cor po fere de espanto, inveja e admirac;ao até
seus inimigos; noutro pólo, aquilo que es t á para além do feio , a
monst ruosidade de um se r tornado pior do que nada, de uma forma
desaparecida no inom inável. Por um lado, a glória imperecível que
eleva o herói acima da sorte comum, fazendo que seu nome e sua
figura singular sobrevivam na memória do s home ns. Por ou- tro, uma
infamia mais terrí vel que o e sq uecimento e o silencio re- se rvados
aos mort os comu ns, esta coa rte indistinta dos defuntos norm alme nte
enviados para o H ades, onde se fundem, na massa
daq uele s que, por oposi<;iío aos " heróis gloriosos" , chama m-se os
"se m nome" , os nónumoi (100). O cadáver ultrajado nao toma
parte nem no silencio que envolve o morto habitual, nem no ca nto em
louvor do mor to heróico; nem vivo porque foi morto, nem mor-

(99) Verso 19, 23-27; cf. também 22, 509 e 24, 414-5.
(100) Hesiodo, Os trabalhos e os dias, 154; t sq uilo, Os persas, 1003 ;
cf. J.-P. Vernant, Mythe et pensée chez les Crees, 1, p. 29 e 62.

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to porque privado de funerais , detrito perdido nas margens do ser,
ele repre senta o que nao se pode celebrar nem muito menos esque-
cer: o horror do indizível. a infamia absoluta: a que vos cxclui con-
juntamente dos vivos, dos mortos, de si mesmo.
.É Aquiles, o guerreiro glorioso, o co mbatente da honra her6ica,
que empeoba toda a sua paixáo em desonrar o cadáver daquele
que, campeáo dos troianos, era se u correlato no campo adverso e
que, no imolar Pátroclo, abateu-o co mo se fosse seu pr6prio outro.
O homem da gl6ria imperecív el pretende destinar seu rival as for-
mas ma is ext remas da infamia. Nao o conseguirá. A Jlíada fala
apenas em geral de guerreiros mo rtos, ent regues aos caes e aos
pássaros. Mas, todas as vezes que se precisam as ameac;as de ul-
tra je e que se efet ua m sevícias, trata-se de um combatente cujo corpo
é finalmente preservado. Evoca-se o horror do cadáver ul- trajado a
respeito d e Sarpedon, Pátroclo e Heitor, isto é, tres per- sonagens q ue
partilham com Aquiles da qualidade de her6 is. Nos tres casos, a
evocac;ao do ultraje leva a enfatizar, por efeito de con- traste , a be le za
de uma mo rte her6ica que, a despeito de tud o ,
con fe re ao defunto seu tr ibuto de gl6ria imortal. Quan do Sarpe - don
cai pela espada de Pátroclo, é seu valor e sua audácia que le- vam os
aqueus a apoderar-se dele para ultr ajar-lhe o corpo (10 1 ). Na
confusáo que se segue, Sarpedon, coberto de sangue e poeira da cabec;a
aos pés, já nao é mais reconhecível. Zeus envia Apolo com a
missiio de limpar-lhe o sa ngue negro, de o lavar na água corrente de
um rio, de untá- lo com amb rosia e de cobri-lo co m vestes divinas e
entregá-lo a Sono e Traspasso para que eles o de- ponham na Lícia, onde
seus irmaos e pais o enterrarao num túmulo,
sob urna estela, " po is tal é a parte de honra devida aos mortos, to
gdr géras estí tha11611ton" (102) .

A inquietude de Aquiles co m o corpo de Pátroclo, que corre o


risco de apod rece r, co mido de vermes, Tétis responde: "jaza ele um
ano in teiro, sua carne permanece rá sempre intacta , érnpedos, ou mes-
mo até em melhor estado, e ka1 areíon" (lO])_ Juntando o gesto a
palavra, a deusa destila no fundo das narinas de Pátroclo ambrosia
e néctar vermelho, para que sua ca rne fique intacta, émpedos (10·1).
D urante todo o tempo em que Aquiles se encarnic;a contra o cadáver
de Heitor, arrastando-o no pó, dando-o a devorac;ao dos caes, Afro-

( 101) 11., 1 6, 545 e 559.


(102) Il.. 16. 667-675.
(l03) Jl., 19, 33.
(104 ) 11., 19, 38-9.

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dite, dia e noite, afasta as feras do morto; "ela unge-o coro um óleo
divino, cheirando a rosa, de medo que Aquiles !he arranque toda a
pele ao arrastá-lo" (105). Por sua vez, Apolo traz do céu uma nuvem
escura; "ele nao quer que o ardor do sol lhe resseque muito r ápido
a pele q ue cobre os tendóes e os membro s" (106). Muito rápido -
antes que o corpo, entregue a Pría mo, se ja objeto do ritua l fun erário
que o enviará, intac to, para o além, na int eireza de sua b ele za, e1í111or
phos, como diz :esquilo no Agamémnon , dos cadáveres gre- gos
enterrados sob os muros de Tróia (107). A caminh o da tenda de
Aquiles, Príamo encontra Hermes, disfar9ado de jovem escudei- ro.
Ele lhe pergunta se seu filho já foi cortado cm peda9os e jo- gado
como com ida aos caes. Hermes lhe responde: "Nao, an- ciiio, nem
os caes nem os pássaro s o devoraram ainda ; ele cont inu a perto da nave
de Aquiles, tal como era, keinos. Eis que já se pas- saram doze auroras
e ele está lá, caído por ter ra, e sua carne i1ao se corrompe, nem os
vermes o atacam. . . Sem dúvida, to do día Aquiles o arrasta brut
almente em torno da tu mba de seu amigo... ; ele nao o estraga com
isso , oude min aischúnei. Se te aproximasscs cic le, tu mesmo le adm
irarías, theo1o ken autósi, com o frescor cm
que jaz, eerséeis, lavado o sangue qu e o cobria, sem nenhum a má-
cula, oudé pothi miarós. . . :e. assim que os d euses velam por teu
filho, mesmo mo rto" (108).
Nos tres casos, o cenár io é mais ou meno s o mes mo. Os deu-
ses, milagrosamente, afastam do herói a vergo nha de sevícias q ue,
d esfigu rando, desnaturando-lhe o corpo a ponto de que, nele, nao
se possa mais reconhecer nem se u se mbla nte nem um cor po huma-
no nem mes mo um cor po, o reduziriam a nao ser mais nada nem
ninguém. Para mante- lo tal como é, keínos, tal como a mortc o
colheu no campo de batalha, os deuses, nos gestos d e lavagcm e
embelezarne nto que os homens praticam, se se rvem de u ngüentos
divinos: estas d rogas de imort alidade preservam " intacta s", apesar
de todas as sevícias, a beleza e a juventudc que, no corpo do homcm
vivo, apenas passam, mas que a morte cm combate eterniza, fixan- do-
as na pessoa do herói assim como urna este la per manece para sempre
erigida sobre um 11'.1mulo.
P elo te ma da mutila9iío dos co rpo s, a epopéia enfatiza o lu- gar
e o estatuto excepcionais da honra heróica, da bela mo rte, da

( 105 ) 11., 23, 185-7.


(106 ) 11., 23, 190-1 e 24, 20-1.
(107) Os mortos gregos repousam éunwrp/ioi no solo troiano; verso 454
a aproximar dos éumorp/1oi kol o ssol do verso 416.
(108 ) JI., 24, 411-24; cf. 757.

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glória imper ecível: elas ultrapassarn de tao longe a honra, a morte,
a fama comuns que, no quadro de urna cultura agonística, em que
só se prova o valor contra outre m, as custas e em detrimento de
um rival, elas pressupóem, em contrapartida, urna forma radical de
desonra, urna nadifica ao absoluta, urna infamia de finitiva e total
tiío abaixo da no rm a quanto mais acima se eleva m.
Se a nar rativa desenha o lugar em que se vem inscrever o duplo
invertido da bela morte - com o tema do cadáver ultrajado, com
as alusóes constantes aos corpos devorados pelos ciíes ou apodre-
cendo ao sol - esta perspectiva de urna pessoa reduzida a nada,
perdida no horror, é afastada, conlud o, no exato momento de sua
evoca ao. A gue rra, o ódio, a viole ncia destruidora nada podem
contra aqueles que, animados pelo sentido heróico da honra, dedi- caram-
se a vida breve. A verdade do feíto, desde que tenha sido c ump
rido, nao mais podcria ser embaciada: é ela que constituí a matéria do
épos. Como poderia ultrajar-se o corpo do herói e extirpar-se sua
lembran a? Sua mcmória é scmpre viva: ela ins- pira a visao direta
do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela
morte: seu fulgor se prolonga e se funde 11a fulgura ao da palavra
poética que, dizendo-lhe a gló ria, a torna real para sempre. A
beleza do kalós thánatos nao difcre da do canto que, celebrando-a,
torna-se ele mesmo, na cadeia contínua das gera óes, memória imo
rtal.

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