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INSTITUTO DE LETRAS
Salvador
2019
KAREN AYESKA COSTA DA SILVA
Salvador
2019
APRESENTAÇÃO
Tendo uma vida pessoal conturbada e uma saúde mental bastante afetada, todo
sofrimento vivido por Florbela aparece em seu eu-lírico. Seus trabalhos publicados
Livro de Mágoas (1919), Livro de Soror Saudade (1923) e Charneca em Flor (1929)
mostram diferentes fases da vida da autora; Reliquiae (1931), obra póstuma, traz a
metalinguagem e declarações a Portugal. Os escritos de Florbela Espanca entre 1913 e
1915 foram compilados em uma obra titulada Trocando Olhares, e desses textos, que
incluíam poemas e contos, a autora selecionou trinta e três poemas que seriam
publicados sob o título O Livro d'Ele - o que não chegou a acontecer. A morte do irmão,
os abortos, os casamentos falidos e a própria depressão que a acompanhara durante toda
a vida a levaram a uma morte precoce aos 36 anos - mesma idade que sua mãe falecera.
Apesar de algumas fontes afirmarem que Florbela Espanca cometeu suicídio, isso de
fato nunca se provou.
Rupi Kaur é uma das primeiras autoras de uma nova geração de poetas que
surgiu juntamente com o avanço das plataformas sociais. Nomes como Lang Leav,
Amanda Lovelace, Nikita Gill e, no Brasil, Ryanne Leão, são recorrentes e importantes
no novo cenário da produção de poesia é que feita a partir das redes sociais. Rupi Kaur
começou seus primeiros posts em blogs pessoais e no Tumblr antes de migrar para o
Instagram, onde seu reconhecimento mundial viria. A indiana chegou a vender 700.000
cópias do seu primeiro livro em 2017, mais do que autores consagrados, como Margaret
Atwood. Em suas entrevistas, Kaur sempre frisa como sua intenção nunca foi vender
poesia, mas sim escrever como forma de catarse, o que inevitavelmente, levou as
pessoas a se identificarem com suas palavras. No prefácio de Outros Jeitos de Usar a
Boca, a autora traz o primeiro dos poemas e que pode ilustrar bem essa fala:
escreva o livro
(KAUR, 2017, p. 7)
Autoras que a um primeiro ver não parecem ter nada em comum são mulheres
que, através da poesia, acabaram por dialogar de forma tão próxima sobre assuntos tão
delicados e inerentes a todos os seres que sentem. Diálogo esse possível através da
articulação de características do textos analisadas pela ótica da Análise do Discurso.
PRIMEIRA PARTE — A DOR
(p. 133)
Para a Análise do Discurso, o sujeito é o indivíduo interpelado pelo discurso,
que o lê através de suas ideologias. O texto - ou discurso - só apresenta significado
quando interpretado por um sujeito que lhe atribua o conteúdo. A dor é de fato
subjetiva, existem pessoas com tendência a sentir mais ou menos dor que outras,
emocional ou fisicamente. E exceto pelos casos raros, todos os indivíduos a sentem. A
dor é sentida pelo eu lírico em Florbela como Dor, personificada e real, presente desde
muito cedo e sem nada que a apazigue. Em Outros Jeitos de Usar a Boca, essa dor volta,
em outra estrutura mas com a mesma potência:
morando em lugares
(p. 39)
A motivação por trás da dor não é a mesma, mas a forma como ela se estrutura,
a interpelação da dor pelo sujeito se assemelha de tantas maneiras que poderia ter sido
facilmente a mesma pessoa se vendo em um espelho de diferentes posições; na primeira
parte de Outros Jeitos de Usar a Boca, a dor acompanha essa personagem principal
também desde muito cedo e durante seu crescimento, é constante e acaba por delinear
quem essa personagem se torna. Apesar do eu lírico florbeliano em Livro de Mágoas
manter o ar de tristeza e pesar pairando sobre si durante todo desenvolvimento do livro,
a constância de sua dor atrelada a metalinguística dá o tom marcante que essa obra
carrega.
Camões, naquele que é um dos seus sonetos mais icônicos, trouxe o amor como
antítese: o famoso fogo que arde sem se ver e de tantas outras formas, a ideia do amor
como antítese foi cantada, escrita, levada aos cinemas e a todas as artes, já que afinal, o
amor e a arte andam tão entrelaçados como sempre estiveram. Florbela e Rupi,
mulheres de épocas diferentes e distantes uma da outra, conseguiram transmitir essa
ideia da inconsistência que é o amor de maneiras bem parecidas, atravessadas talvez
pela terrível alegria que é amar:
(ESPANCA, p.44)
seu nome
é a conotação
positiva e negativa
ou ele me acende ou
(KAUR, p. 69)
A linha entre o amor e ódio é tênue, e tanto já foi dito sobre isso; é justamente
essa linha que aproxima a poesia de Espanca com Rupi Kaur e sua produção
contemporânea. Apesar do ele do eu lírico em Outros Jeitos de Usar Boca ser um ele
que a princípio veio para curar e caminhar ao lado dela, esse sentimento conflitante a
assusta, levando a um extremo ou outro. Ou a dor extrema ou ao amor devastante. Em
ambos os poemas, as personagens lidam com esse amor ao não saber lidar, sabendo que
amam, mas sofrendo justamente por amar. O Amor tão contrário a si mesmo, como
afirmou Camões, foi o que moveu as duas escritoras em cenas tão distintas.
A ruptura como terceira parte remete a primeira, já que não há ruptura sem dor,
de uma forma ou de outra; e como já foi discutido, ambas as autoras trabalham a dor em
suas produções de forma a soar como algo inseparável da construção do eu lírico. O
ponto em que Florbela Espanca e Rupi Kaur dialogaram nesta chamada ruptura, para
além do ato de romper, está ligado também a ideia de invadir, transbordar. E é com a
figura do mar que elas acabam por ilustrar a forma como os eu líricos vem a romper
com o amor, com elas mesmas, por vezes até com a própria realidade.
eu sou água
leve o bastante
violenta o bastante
(p. 146)
Nenhuma dor dura para sempre.Tanto em Outros Jeitos de Usar a Boca quanto
em Livro de Mágoas, a ruptura se dá por sentir demais: a tristeza, o amor, a dor, o
querer. Mas depois do rompimento, existem escolhas a serem feitas e é assim que
passa-se para o último estágio, a cura, onde as poetisas se encontram novamente na fase
mais profunda e a que leva a parte final dessa análise.
PARTE QUATRO - A CURA
Em todos os pontos onde Kaur e Espanca convergiram até então, é na cura que o
diálogo entre elas se firma, sob a luz de um tema que as une mais do que qualquer dor
que elas tenham tentado escrever. Uma conversa entre o presente e o passado sobre a
mulher e ser mulher é onde as autoras executam o que é curar e estar curada e na
realidade, nada melhor e mais preciso poderia ter sido escolhido que não a mulher.
e admiráveis as mulheres
à nossa volta
(p. 201)
Em tempos de luta pela igualdade, o discurso que enaltece a mulher feito por
uma mulher tornou-se quase que uma responsabilidade social. É uma lembrança ao
sistema patriarcal que existe um movimento e ele não vai se calar, e isso feito através da
poesia, carrega em si um valor ainda mais potente. Agora é preciso uma viagem no
tempo para cerca de cem atrás, quando uma jovem Florbela no início dos seus escritos
deixou expressa sua posição:
(p.54)
O estágio da cura fala sobre forças e encontrar essa força na figura da mulher, e
esse ser um ponto de convergência entre as autoras é onde fica evidente que o texto de
ambas, apesar de seres escritos por mulheres em contextos sócio político históricos
completamente distintos e apresentarem co-textos diferentes. Ser mulher e ser uma
mulher que pensa, que levanta e que empodera outras mulheres, as cura como autoras,
como personalidades influentes e como indivíduos, cura a alma de quem escreve e a
alma de quem está lendo.
UMA CONCLUSÃO EM PRIMEIRA PESSOA
REFERÊNCIAS
ESPANCA, Florbela. Poesia de Florbela Espanca v. 1. Porto Alegre: LP&M, 2014.
FISCHER, Molly. Profile: Rupi Kaur, Author of Milk and Honey. The Cut, out. 2017.
Disponível em:
<https://www.thecut.com/2017/10/profile-rupi-kaur-author-of-milk-and-honey.html>.
KAUR, Rupi. Outros Jeitos de Usar a Boca. São Paulo: Planeta, 2017.
MZEZEWA, Tariro. Rupi Kaur Is Kicking Down the Doors of Publishing. The New
York Times. out. 2017. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2017/10/05/fashion/rupi-kaur-poetry-the-sun-and-her-flower
s.html>. Acesso em 30 maio 2019
ORLANDI, E. LAGGAZI-RODRIGUES, S. (Orgs.). Discurso e Textualidade.
Campinas: Pontes, 2006.
SPENCER, Erin. Rupi Kaur: The Poet Every Woman Should Read. HuffPost. 22 jan
2015. Disponível em:
<https://www.huffpost.com/entry/the-poet-every-woman-needs-to-read_b_6193740>.
Acesso em: 30 mai 2019