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Gilson Iannini1
É verdade que toda carta chega a seu destinatário? Uma das cartas
mais célebres da história da psicanálise é, sem dúvida, o Projeto para uma psicologia2,
enviado por Freud a Fliess em 1895. Gostaríamos de sugerir neste trabalho que
uma das perguntas centrais que move o Projeto pode fornecer o fundamento teó-
rico para a discussão de duas ideias bastante atuais3: a “forclusão generalizada” e
a consequente “clínica universal do delírio”. A pergunta talvez possa ser formu-
lada nos seguintes termos: dado que o modelo de funcionamento do aparelho
ϕ−ψ−ω baseia-se na ativação alucinatória do objeto de desejo e que a condição
necessária à distinção entre memória e percepção é a precária inibição pelo eu do
curso dos processos psíquicos primários, “por que não somos todos psicóticos?”
Uma das lições mais conhecidas da psicanálise freudiana é acerca das
experiências fundamentais do infans. A ideia pode ser resumida mais ou menos
do seguinte modo. As experiências fundamentais – satisfação e dor – deixam
atrás de si facilitações/trilhamentos permanentes entre, de um lado, os neurô-
nios nucleares investidos/ocupados pelo estado de urgência e, de outro, o com-
plexo formado pela percepção de um objeto e a notícia de eliminação devido a
um movimento reflexo no corpo. Assim, uma reativação do desejo vai investir as
vias já facilitadas/trilhadas. O papel determinante, atribuído aos trilhamentos
resultantes das vivências de satisfação e de dor na constituição do sujeito, expli-
car-se-ia pelo que Freud chamou de “lei fundamental de associação por simulta-
neidade”4: todo o funcionamento do sistema ψ baseia-se nesta lei. Eventos
dados à memória na linha da diacronia serão retidos sincronicamente, “pois, evi-
dentemente, os três pilares da cena prototípica – a necessidade, o outro e a satis-
fação – não são produzidos simultaneamente, mas em sucessão”5.
As Palavras e a Coisa:
rumo à forclusão generalizada
NOTAS
1 Psicanalista. Professor no Depto. de Filosofia da UFOP. Professor convidado dos cursos de
especialização Teoria Psicanalítica (UFMG) e Fundamentos da Clínica Psicanalítica (FUMEC).
2 FREUD, S. Projeto de uma psicologia. RJ: Imago, 1995. Seguiremos principalmente, mas não exclu-
sivamente, a excelente tradução de Osmyr Gabbi Jr. Doravante, para referências, utilizaremos ape-
nas Projeto.
3 Empreitadas dessa natureza enfrentam, necessariamente, o risco da ilusão retrospectiva, isto é,
de um certo anacronismo. No entanto, este risco acaba por tornar a aventura mais saborosa. De
uma ou de outra maneira, para quem conhece a Parte II do Projeto, onde Freud formula o concei-
to de Nachträglichkeit, é impossível não pensar que toda leitura é, por princípio, anacrônica.
4 FREUD, op. cit., p. 33.
5 GABBI Jr., Osmyr. “Projeto para uma psicologia científica: máquina falante ou fala maquinal?”
In: Discurso, n. 16, p. 104.
6 Ver a nota n. 1, à página 108 do Projeto. Não é a mesma posição que ele sustentava no artigo refe-
rido acima.
7 A fim de matizar as teses naturalistas de Gabbi Jr seria preciso ler o excelente trabalho de P-L
Assou intitulado Introdução à epistemologia freudiana.
8 GABBI Jr., Osmyr. Notas Críticas sobre Entwurf Einer Psychologie. In: FREUD, op. cit., p. 111.
9 Devemos essa observação ao amigo Guilherme Massara Rocha, com quem tivemos mais de uma
vez o privilégio de estudar o Projeto de Freud.
10 Segundo James Strachey, a citação de Freud, em inglês no original, refere-se a George Wilkins
(The painfull adventures of Pericles Prince of Tyre). Seriam palavras dirigidas por Péricles à sua filhinha
de colo (cf. FREUD, S. O Mal-estar na civilização, p. 111).
11 “Entrevista a Pierre Daix” (26/11/1966), Psicanálise: ilusões contemporâneas, p. 49.
12 LACAN, J. In: A ética da psicanálise, p. 55.
13 A sugestão é de Silverstein. Cf. a nota n. 4, pág. 11, do Projeto.
14 Em alemão, Hilflosigkeit; em inglês, helplessness. Literalmente, “sem ajuda”.
15 FREUD, op. cit., p. 32.
16 Ibid, p. 76.
17 Ibid, p. 45. Cf. as notas 172, 174 e 176, bastante elucidativas.
18 LACAN, op. cit., p. 151.
19 LACAN, op. cit., p. 172.
20 O artigo de Antônio Teixeira publicado neste número aborda isso, a partir do bordão de
Breton, com maestria.
21 FREUD, op. cit., p. 33.
22 Ibid, p. 40.
23 Ibid, p. 30.
24 Cf. toda a seção 10 da Parte I do Projeto.
25 LACAN, op. cit., p. 56.
26 FREUD, op. cit., p. 37. O funcionamento no caso da dor é análogo. Ele consiste em tentar evi-
tar o
investimento do objeto hostil quando este não ocorre no mundo exterior.
27 Ibid, p. 41.
28 LACAN, op. cit., p. 43.
29 MASSON, J. (ed) A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, p. 132.
30 FREUD, op. cit., p. 147-148.
31 Ibid, p. 153.
32 Ibid, p. 145.
33 É assim que Freud se refere ao Projeto na carta de 16 de agosto. O sistema ϕ−ψ−ω parece, pois,
esse primeiro esforço de literalização do real.
34 Ibid, p. 147.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOUN, P-L. Introdução à epistemologia freudiana. Rio de Janeiro: Imago, l983.
FREUD, S. Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
FREUD, S. “O mal-estar na civilização”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição
Standard Brasileira), v. 21, Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GABBI Jr., O. “Projeto para uma psicologia científica: máquina falante ou fala maquinal?”. In:
Discurso, n. 16, São Paulo: Ed. Polis, 1987.
LACAN, J. “Entrevista a Pierre Daix” (26/11/1966). In: Psicanálise: ilusões contemporâneas, APPA, 10,
Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994.
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1991.
MASSON, J. (ed) A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de janeiro:
Imago, 1986.
MILLER, J-A. A psicose no texto de Lacan. In: Curinga, 13, Belo Horizonte: EBP, 1999.