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Roma e os Bárbaros
O Império Romano dos séculos III-V foi o teatro de uma crise profunda, que se
agravava constantemente. A produção mercantil periclitava2 e tinha-se operado um
retorno parcial à economia natural3. Algumas províncias emancipavam-se. A população
diminuia, principalmente nas cidades, que atravessavam um período de regressão. A
exploração e pauperização das massas populares, privadas de quaisquer direitos,
acentuaram-se em proporções nunca vistas e exacerbaram4 a luta de classes e a oposição
ao poder. Eram constantes as disputas internas entre as diversas categorias e camadas
intermédias da classe dominante. O Império já não conseguia proteger as suas fronteiras
contra as incursões dos Bárbaros, que se tinham tornado senhores de algumas
províncias, embora ainda virtualmente a soldo dos imperadores. O declínio da cultura
antiga e a impopularidade crescente da ideologia da sociedade esclavagista foram os
sintomas mais evidentes da decadência da vida espiritual do Império. A crise atingiu o
seu paroxismo5 na zona Ocidental do Império Romano (em virtude das condições
particulares que existiam na “pars orientalis”, ver cap. V).
1
Sistema político pelo qual é regido um país.
2
Estar em perigo; correr perigo; perigar.
3
Chama-se economia natural aquela em que os produtos do trabalho se destinam a ser consumidos dentro
da mesma unidade que os produz. (Gatovski p. 30).
4
Tornar-se mais intenso ou grave. Fazer ficar ou ficar mais áspero, violento. Irritar-se.
5
O mais alto grau de uma sensação, de um sentimento.
interessados em fazer frutificar a economia dos seus donos e a sua exploração só era
rentável porque o custo do seu labor era muito baixo. A produção nunca podia
progredir. Os donos de escravos, em vez e estimularem a sua iniciativa, reprimiam-na,
temerosos de que, adquirindo personalidade, os escravos se tornassem menos dóceis.
Segundo Paládio, escritor romano do século IV, um escravo preguiçoso, lento e
estúpido, era sempre preferível a um escravo activo, enérgico e empreendedor, porque
estas qualidades o incitavam a praticar o mal ao passo que a preguiça é irmã da
bonomia. Os autores de tratados de agronomia, no entanto, não podiam passar em claro
o prejuízo que os escravos causavam à agricultura: “Abandonamos a agricultura às
sevícias do mais incapaz dos escravos como se a entregássemos ao carrasco...”
(columelo). O escravo era obrigado a executar todos os trabalhos que o dono resolvesse
dar-lhe; a organização da produção e as preocupações com o seu progresso eram
apanágio exclusivo dos donos, ou dos intendentes dos domínios. Manter uma apertada
vigilância sobre os escravos e coagi-los a trabalhar, constituíam grandes dificuldades
para os proprietários e entravavam o desenvolvimento econômico. As técnicas
agrícolas, de nível medíocre, faziam com que a pequena exploração se perpetuasse.
Qualquer que fosse o número de escravos, o seu trabalho conservava, em geral, um
caráter individual: a simples cooperação só era aplicada em certos trabalhos. Os
melhores resultados não eram obtidos nos grandes “latifundia”, onde era difícil
organizar a vigilância, mas sim nas propriedades médias. Em resumo, o regime de
exploração dos escravos impedia o progresso que consistiria em passar para a produção
individual, o que implicava a existência de um proprietário independente.
O excedente de produção fornecido pelo trabalho escravo não era utilizado para
rentabilizar a produção, visto que a parte de leão era delapidada improdutivamente:
acumulação de tesouros, construção de igrejas, palácios ou circos. Os escravos, bem
como todas as camadas exploradas, mantinham os donos e o volumoso aparelho de
Estado, incluindo o exército e um sem número de funcionários, sem contar com um
número cada vez maior de cidadãos desclassificados e improdutivos (o
lumpenproletariado) que exigiam “pão e circo”. A sobrevivência da sociedade baseada
na escravatura dependia do agravamento constante da exploração, o que contribuía para
acentuar ao máximo as contradições que lhe eram inerentes.
A situação jurídica dos colonos era diferente da dos escravos. Mas estas
diferenças foram desaparecendo à medida que o colonato se propagava. No século IV,
já os colonos estavam adscritos à gleba em todo o Império e o governo romano tentava,
assim, atrasar o abandono da agricultura pelos produtores directos, e a diminuição das
receitas fiscais. Um édito de Constantino I, datado do ano 332, mandava entregar os
colonos fugitivos, aos seus proprietários, pô-los a ferros. O colonato tornou-se a
condição hereditária do cultivador. Embora formalmente diferenciados dos escravos
rurais (servi rustici), os colonos eram, na prática, escravos da terra (servi terrae). O
colono deixa de ter o direito de abandonar o domínio do seu senhor e fica praticamente
em poder deste. O proprietário fornecia-lhe frequentemente os utensílios para lavras a
terra, bem como as sementes, e, por consequência, era dono dos meios de produção.
Facilitando a extensão do colonato o Estado esclavagista privava legislativamente os
colonos de qualquer direito sobre as suas explorações. Como indica um rescrito dos
imperadores Arcádio e Honório (fim do século IV), todos os bens do colono, e ele
próprio, eram propriedade do senhor. O colono não podia alienar fosse o que fosse sem
o seu acordo. Os juristas romanos, que aplicavam aos colonos as normas do direito
esclavagista, acentuavam que, tal como o escravo, o colono não estava autorizado a
possuir nada, e que o produto do seu trabalho pertencia, de direito ao senhor.
Os colonos não tinham qualquer estímulo para fazer frutificar a terra, tanto mais
que a quase completa ausência de direitos cívicos lhes retirava qualquer garantia de
conservar a posse das suas parcelas e os seus instrumentos de trabalho. A isto deve
ainda acresncentar-se o jugo implacável que pesava sobre eles, aplicado pelos
proprietários e pelo Estado esclavagista, em concorrência um com o outro. Os primeiros
extorquiam-lhe uma grande parte dos resultados do seu trabalho sob a forma de
múltiplas rendas. O segundo esmagava-o com impostos e obrigava-o a corveias
públicas. O colonato formou-se numa sociedade onde as pressões extraeconômicas
reduziam infalivelmente qualquer trabalhador à categoria de escravo. O colono
distinguia-se do escravo pela forma de exploração a que estava sujeito, mas ainda não
era o camponês servo da Idade Média, que já possuía a sua parcela de terra e os seus
meios de produção; além disso, era membro de uma comunidade, o que não só
condicionava a sua actividade produtiva como lhe permitia resistir aos grandes
proprietários agrícolas. Por outro lado, ao contrário dos camponeses da Idade Média,
cujas relações com o senhor feudal se regiam principalmente pelo direito privado, os
colonos romanos dos séculos IV e V, eram fixados à terra pelo Estado.
Não foram mais do que os “antecessores dos servos da Idade Média”. O Estado
não se limitava a fixar os agricultores à terra; imobilizava os artesãos na sua profissão,
ligava os comerciantes às suas agremiações, e os curiais (membros das cúrias das
cidades) aos seus locais de domicílio. Os curiais eram proprietários rurais de
envergadura média, mas com muitos escravos; eram responsáveis pela cobrança de
impostos nas circunscrições, cujos centros eram as cidades ou os municípios. Não
tinham o direito de abandonar a cidade, sob pena de castigo. A partir de então, parte dos
rurais ficou arruinada, ou quase. Para escapar a esta alternativa, alguns preferiam o
exército, ou procuravam refúgio nos mosteiros; alguns chegavam mesmo a esconder-se
nas florestas ou em locais afastados e tornavam-se colonos ou escravos de grandes
proprietários. O aparelho administrativo, cujo elo principal era o município, ia-se
desmoronando. A independência dos grandes proprietários de terras aumentava
constantemente.
Nas margens do Império romano, a Europa era povoada por tribos que viviam
em regime de comunidade primitiva e que constituíam, grosso modo, dois grupos
étnicos: Germânicos e Eslavos. Quanto aos Celtas da Gália e da Bretanha, a sua
organização em clãs tinha começado a desagregar-se mais cedo do que nas outras tribos;
a conquista da Gália pelos Romanos e, em seguida, da Bretanha, precipitou o
aparecimento da escravatura. A evolução das tribos germânicas e eslavas, que não
tinham ficado englobadas no Império Romano, e onde a formação das classes tinha
começado mais tarde, seguiu um caminho diferente (quanto aos Eslavos, ver cap. VI).
Tácito, por fim, relata a guerra de Roma contra os Germanos nas suas Histórias e
Anais, e no ano 98, escreveu a sua obra Costumes dos Germanos (frequentemente
intitulada Germânia), que constitui um estudo muito pormenorizado destes povos. Era-
lhes impossível, no entanto, compreenderem as particularidades de uma estrutura social
tão diferente da sua. Estes autores, salientando a natureza belicosa e ardente dos
Germanos – inimigos ferozes de Roma – confundiam-nos na realidade com nómadas,
ou pelo menos, tinham deles a ideia de povos para quem a agricultura desempenhava
um papel subsidiário. Além disso, esses escritores antigos aplicavam com frequência a
denominação de “Germanos” a povos que não eram germânicos, como, por exemplo, os
Eslados, seus vizinhos ocidentais.
As informações que as obras dos autores latinos contêm acerca dos Germanos
são do maior interesse, mas a sua autenticidade pode, por vezes, ser contestada. É
necessário, portanto, submetê-las a uma análise crítica profunda e a uma verificação
escrupulosa. Para se ter uma ideia mais objetiva sobre o regime social e sobretudo
econômico das populações da Europa Central e Setentrional na época romana, não basta
um estudo profundo das fontes escritas; é necessário tomar em consideração também os
dados da arqueologia, da linguística, da geografia histórica e de paleobotânica,
acumulados durante os últimos decénios.
O facto de o capítulo pecar por uma certa falta de clareza é devido provavelmente a
Tácito não poder analisar o problema com toda a clareza necessária. A sua descrição
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Agr. Desmatar, preparar (terreno) para posterior plantação. 2. Agr. Fazer o primeiro cultivo; lavrar pela
primeira vez.
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1. Que se pode aceita como válido ou razoável. 2. Digno de aplauso ou aprovação.
dos costumes dos Germanos não se baseou em qualquer experiência pessoal; foi buscar
informações a fontes literárias, interessou-se por relatos feitos por soldados romanos, ou
por mercadores que voltavam da Germânia, por escravos ou cativos germânicos.
Mesmo supondo que as populações de que fala Tácito tivessem praticado o
desbravamento de terras incultas, é difícil aplicar esta conclusão a toda a Germânia, à
luz das recentes descobertas arqueológicas. As condições naturais e climáticas dessas
vastas áreas eram diferentes de região para região; é natural que as tribos que as
povoavam se encontrassem em estádios diferentes de evolução econômica. A economia
agrícola praticada entre os (Frísios), por exemplo, era ignorada pelos Chaucos, também
instalados no litoral do mar do Norte. Há a certeza de que pelo menos uma parte dos
Germanos sabia cultivar o solo de maneira a não provocar o seu esgotamento demasiado
rápido e que podiam utilizar um único e mesmo terreno durante um período bastante
longo.
Os Germanos eram caçadores e pescadores, mas, para a maior parte das tribos, estas
atividades eram subsidiárias8. No entanto, a importância desta ou daquela ocupação
variava conforme as condições naturais.
As tribos fixadas nas costas do mar do Norte e do Báltico construíram navios e iam
para o alto mar. Os Suíones da península escandinava e os Frísios da Germânia
setentrional eram navegadores experimentados. As buscas de Schleswig permitiram
descobrir um navio que teria sido construído, segundo os arqueólogos, no século I antes
da nossa era; mas navios análogos apareciam já nas pinturas rupestres da Europa
Setentrional desde fins da Idade do Bronze. A olaria atingiu um nível elevado. A
tecelagem era uma das principais ocupações das mulheres; os Germanos sabiam utilizar
várias substâncias vegetais para tingir o vestuário. O sal desempenhava um papel
importante no comércio. Os habitantes das terras à beira-mar apanhavam o âmbar, tão
apreciado pelos Bárbaros e pelos povos vizinhos.
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1. Diz-se de um fator ou elemento secundário, que converge para um elemento de maior importância e o
reforça. 2. De menor importância.
livres e iguais em direitos. Quando um jovem atingia a maioridade, recebia solenemente
as suas armas das mãos dos pais ou dos anciãos. Passava então a poder tomar parte nos
assuntos de interesse comum: guerra, assembleia popular onde os anciãos eram
escolhidos, julgamento dos criminosos, debate dos problemas de maior importância
para todos os membros da tribo.
O séquito9 armado. O chefe tinha sob as suas ordens um séquito armado, constituído
por jovens com espírito combativo e por guerreiros valorosos. A acreditarmos em
César, qualquer notável podia reunir tropas e correr o risco de uma operação militar. A
guerra, segundo Tácito, tornou-se a única ocupação dos companheiros de armas. As
suas explorações agrícolas eram geridas por membros das suas famílias e por
prisioneiros de guerra que se tinham tornado escravos. O chefe do séquito armado
fornecia aos guerreiros as armas e cavalos de combate, partilhava com eles os despojos
9
[Do lat. sequitu.] S.m. 1. Conjunto de pessoas que acompanham outra(s) por obrigação ou cortesia;
comitiva, acompanhamento, cortejo.
e organizava os festins. Como a manutenção de uma tropa era dispendiosa, o chefe era
obrigado a fazer guerra, mesmo quando os interesses da tribo o não aconselhavam. A
guerra e as expedições de rapina fortaleciam o poder do chefe e constituíam o principal
meio de fazer fortuna. A tropa estava ao serviço do chefe e não da tribo. Considerava-se
uma ignomínia10, e um opróbrio para um guerreiro, voltar são e salvo de um combate
em que tivesse perecido o chefe, a quem ele jurara fidelidade. Quanto maior e mais
aguerrido era um séquido, maior era a influência do chefe, não só dentro da sua própria
tribo, mas também perante os vizinhos. O chefe consolidava o poder apoiando-se nos
companheiros de armas. Em certas tribos, escrevia Tácito, há “o costume de fazer
oferendas voluntárias aos chefes e todos lhes trazem uma certa quantidade de gado, ou
de produtos da terra”... Não é possível imaginar, naturalmente, que uma tribo inteira, ou
qualquer dos seus membros, recusasse fazer este donativo ao chefe todo-poderoso. Era
inevitável que, com o tempo, as ofertas perdessem o seu caráter voluntário. Assim, os
chefes e seus camaradas já viviam parcialmente á custa do trabalho dos outros membros
da tribo. Engels considera o séquito armado como “o germe da ruína da antiga liberdade
popular”.
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[Do lat. ignominia.] S.f. Grande desonra; opróbrio, infâmia.
A religião. As forças da natureza (o Sol, a Lua, o fogo), eram divindades para os
antigos Germanos. Adoravam principalmente Wotan, Donar e Tuvaz. Mais tarde,
Wotan assumiu o papel de divindade superior, Donar tornou-se o deus do raio, e Tuvaz
o deus da guerra. Os Germanos não construíam templos nem representavam os deuses
em efígie. Celebravam os cultos e faziam os sacrifícios (incluindo sacrifícios humanos)
nos bosques sagrados ou no cimo das montanhas. Cada tribo tinha os seus deuses
protectores; alguns eram adorados em comum por várias tribos. As adivinhadoras eram
muito veneradas pelos germanos, que davam grande importância às suas profecias e
práticas mágicas.
O comércio entre Roma e os Germanos. Não havia só relações hostis entre Roma e
os Bárbaros, Havia também um comércio particularmente ativo. Os estabelecimentos
romanos do Reno (nomeadamente Augusta Treverorum, hoje [Trèves]; Colonia
Agrippina, hoje Colónia) e do Danúbio (Augusta Vindelicorum, que veio a ser
Augsburgo, ou Castra Regina, mais tarde Regensburgo, etc.) eram simultaneamente
praças fortes e centros de comércio com os Germanos. Pode avaliar-se o
desenvolvimento do comércio, nesta época, pelo grande número de obras de arquitetura
que os Romanos realizaram nas suas cidades-fronteiras. As regiões fronteiriças
cobriram-se de estradas. Tácito escreveu que a moeda só era conhecida pelas tribos
estabelecidas nas proximidades das fronteiras romanas e que no interior da Germânia se
praticava a troca. Mas os mercadores procedentes do Império começaram rapidamente a
penetrar no país. Os chefes bárbaros atraíam os mercadores e artesãos às suas casas.
Descobriram-se moedas romanas datando da época imperial em toda a Europa Central e
Setentrional. Os Germanos não utilizavam as moedas de ouro e prata apenas como
moeda, mas como adorno. Também as enterravam, guardando-as como tesouro. As
rotas comerciais seguiam o Oder, o Elba, o Reno e o Danúbio. Os Germanos
comerciavam com os povos que viviam a norte do mar Negro e os seus barcos sulcavam
os mares do Norte e o Báltico.
Não ficou praticamente nenhum vestígio dos séculos IV e V que permite emitir uma
opinião sobre as relações sociais das tribos germânicas. Só o estudo das Leis bárbaras de
uma época recente tornou possível uma reconstituição parcial. Estas Leis constituíram
as primeiras versões do direito germânico e foram redigidas por algumas tribos, no
período após as invasões, ou seja, desde o século V até ao século IX. Codificavam em
parte os costumes populares elaborados ao longo de séculos e aplicados muito antes de
serem reduzidos a escrito. Trazem, evidentemente, a marca das novas relações, nascidas
com a conquista do Império, com o desenvolvimento da divisão da sociedade em
classes, do aumento do poder real e da influência romana. O estudo destas fontes
permite esclarecer alguns aspectos característicos do regime social das tribos
germânicas dos séculos III e IV.