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ON-LINE
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 466 | Ano XV
01/06/2015
ISSN 1981-8769
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)
A s eleições municipais
espanholas realizadas
na semana passada
com a vitória em Barcelona e
Madrid por parte de movimen-
mas, de Minnesota, EUA, com
Gilles Routhier, da Universida-
de de Laval, Canadá, com John
O’Malley, da Georgetown Uni-
versity, EUA, e os depoimen-
tos que emergiram das grandes tos de participantes do evento
manifestações de 2011, conhe- abordam alguns aspectos do A IHU On-Line é a revista do Instituto
cidas com 15-M e o desafio da evento realizado nos dias 19 a Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-
busca de institucionalidades de 21 de maio, na Unisinos. A edi- cação pode ser acessada às segundas-feiras
no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço
novo tipo é um dos temas desta ção traz, ainda, uma entrevista www.ihuonline.unisinos.br.
edição. Rudá Ricci, sociólogo, com Christoph Theobald, pro-
A versão impressa circula às terças-feiras, a
e Bruno Cava, da rede Univer- fessor do Centro Sèvres – Fa-
partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo
sidade Nômade e coeditor das cultés Jésuits de Paris. Outras da IHU On-Line é copyleft.
revistas Lugar Comum e Global duas entrevistas, respectiva-
Diretor de Redação
Brasil, contribuem no debate. mente, com Olga Consuelo Ve- Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br)
Para mais informações e aná- lez, professora da Universidade
Jornalistas
lises das eleições espanholas Javeriana, Bogotá, e com Pa-
João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
confira as Notícias do Dia pu- blo Bonavía, teólogo uruguaio, (joaovs@unisinos.br)
blicadas na página do Instituto completam o informe. Leslie Chaves – MTB 12415/RS
2 Humanitas Unisinos – IHU. “A Escola Ibérica da Paz nas
(leslies@unisinos.br)
Márcia Junges - MTB 9.447/RS
Universidades de Coimbra e (mjunges@unisinos.br)
“Michel Foucault, o cuidado
Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS
de si e o governo de si (enkra- Évora (Século XVI)” é a obra que (prfachin@unisinos.br)
teia)” é o título do artigo de será lançada no dia 02 de junho, Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
na Unisinos, com a presença do (ricardom@unisinos.br)
Castor Bartolomé Ruiz, pro-
fessor e pesquisador do PPG seu autor, Pedro Calafate, co- Revisão
Filosofia da Unisinos. “O que -coordenador da edição das Carla Bigliardi
está em questão – escreve - é a Obras Completas do Padre Antó- Projeto Gráfico
possibilidade de criar a própria nio Vieira (Círculo de Leitores, Ricardo Machado
vida de modo crítico e com po- Lisboa, 2013), em 30 volumes.
Editoração
der de si (enkrateia), resistin- Uma entrevista com o professor Rafael Tarcísio Forneck
do à tendência hegemônica de da Universidade de Lisboa pode
Atualização diária do sítio
corrosão da capacidade de au- ser lida nesta edição. Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
tonomia efetiva”. E o pesqui- Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner,
“Uma relação obscura. Po- Matheus Freitas e Nahiene Machado.
sador destaca duas questões: lítica, ciência e economia no
“a) Quais são os critérios para universo jesuíta” é o tema da
definir qual é a melhor forma entrevista com Ugo Baldini,
de vida?; b) Qual a importância professor da Università degli
do Outro numa ética que visa Studi di Padova e da Faculda-
criar uma forma de vida pró- de di Lettere dell’Università di
pria?” O artigo aqui publicado Chieti, Itália.
é o segundo da série “A filosofia Instituto Humanitas Unisinos - IHU
A todas e a todos uma boa lei- Av. Unisinos, 950
como forma de vida”.
tura e uma ótima semana! São Leopoldo / RS
Os 50 anos do Concílio Va- CEP: 93022-000
ticano II foi celebrado com a Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
Crédito das fotos (no sentido horário):
realização do II Colóquio Inter- e-mail: humanitas@unisinos.br
Horrapics-Flickr-Creative-Commons /
nacional IHU. Três reportagens Lothar- Wolleh- Wikimedia Commons
Diretor: Inácio Neutzling
Gerente Administrativo: Jacinto
realizadas com Massimo Fag- / Neil Kandalgaonkar- Wikipédia / Schneider (jacintos@unisinos.br)
gioli, da University of St. Tho- Foucault - Site Pensar é grátis
Tema de Capa
18 #DossiêEspanha: Rudá Ricci
22 #DossiêEspanha: Bruno Cava
27 Castor Bartolomé Ruiz: A Filosofia como forma de vida (II)
33 #DossiêVaticanoII: Christoph Theobald
39 #DossiêVaticanoII: Olga Consuelo Velez
44 #DossiêVaticanoII: Pablo Bonavía
46 #DossiêVaticanoII: John O’Malley
49 #DossiêVaticanoII: Massimo Faggioli 3
53 #DossiêVaticanoII: Gilles Routhier
55 #DossiêVaticanoII: Depoimentos
58 #DossiêVaticanoII: E se você recebesse uma ligação do Papa, o que lhe diria?
60 #DossiêVaticanoII: Johan Konings, Olga Consuelo Velez Caro e Érico Hammes
62 #DossiêVaticanoII: Cobertura Colóquio
IHU em Revista
66 Agenda de Eventos
68 Pedro Calafate: A dignidade da pessoa humana como fundamento da comunidade internacional
76 Publicações
77 Sala de Cinema
78 Sala de Leitura
79 Retrovisor
Destaques da
Semana
DESTAQUES DA SEMANA TEMA
Destaques On-Line
Entrevistas publicadas entre os dias 19-05-2015 e 29-05-2015 no sítio do IHU.
Linha do Tempo
A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU publicadas entre os dias 25-05-2015 e 29-05-2015, relacionadas a
assuntos que tiveram repercussão ao longo da semana.
ENTREVISTA
IHU On-Line - Em setembro de ta a expulsão de 5 mil jesuítas es- vencional, muito difundida, é que
1759, mais de 1.700 jesuítas fo- palhados em todos os territórios o Marquês de Pombal1 e as monar-
ram expulsos de Portugal. Cinco espanhóis. O que levou a esta si-
1 Marquês de Pombal (1699-1782): Se-
anos depois, a França ordenou tuação, que culminaria na supres- bastião José de Carvalho e Melo, nobre e
a dissolução da ordem no país — são da Companhia, em 1773? estadista português. Foi secretário de Esta-
do do Reino durante o reinado de D. José I
que contava com 3 mil membros. Ugo Baldini – Essa pergunta re- (1750-1777), sendo considerado, ainda hoje,
Por fim, em 1767, Carlos III decre- quer muitas respostas. Uma con- uma das figuras mais controversas da Histó-
quias bourbônicas (mais o pequeno justificativas tradicionais da base fim da presença dos Jesuítas pode-
ducado de Parma, também este do poder monárquico. O controle ria parecer a eles como uma condi-
preso a um ramo da família que ex- absolutista do Estado podia atuar ção para a consolidação do poder
pulsou os Jesuítas em 1767) agiram também sem uma perseguição sis- (não necessariamente num sentido
por inspiração de princípios ilumi- temática aos Jesuítas e, mais do negativo e egoísta, mas também
nistas, considerando a Companhia que isso, também os usando como como premissa a uma maior liber-
como a principal força de resistên- um instrumento do governo (como dade de ação).
cia contra a afirmação daqueles acontece no Império de Habsburgo
princípios. Essa explicação vê nas durante os reinos de Maria Teresa IHU On-Line – Por que os Jesuítas
expulsões dos Jesuítas um episó- e de José II2, que usaram os Jesu- exilados tiveram dificuldade em
dio da luta dos “Lumi” contra uma ítas como principais especialistas buscar asilo em Roma? Como pu-
junção de usos, papéis e crenças em muitas funções técnicas funda- deram se assentar na Itália?
de origem medieval, identificados mentais). Os bens da Companhia,
como um obstáculo à afirmação acima de tudo nas colônias, não Ugo Baldini – A chegada de apro-
da “razão” na organização da vida tinham valor relevante, como foi ximadamente 7 mil pessoas à Itália
associada. sustentado por várias vezes, tanto criou objetivamente sérios proble-
que as suas províncias missionárias mas logísticos e financeiros, tanto
Uma segunda é que o Marquês de ao Estado pontifício (cujas finan-
tinham dificuldades financeiras
Pombal e os governos bourbônicos ças na metade do século XVIII não
graves e praticamente contínuas.
quiseram incrementar o controle eram muitas) quanto à Companhia,
absolutista sobre seus respectivos Provavelmente a explicação não cujas sedes não tinham espaço
Reinos, como premissa para um seja referida a outro fator, intei- para contê-los, nem recursos finan-
incremento da efetividade do go- ramente diferente daqueles pre- ceiros para mantê-los. De fato, foi
verno. Com isso, decidiram reduzir cedentes, mas acima de tudo uma nítido que o acolhimento mais cor-
o tradicional espaço de autonomia junção, localmente variáveis, da- dial aos exilados nas portas em que
e prerrogativas detido pelo clero, queles fatores. Um aspecto impor- chegaram veio dos religiosos de
agindo não contra o clero secular tante, até então não considerado, outras Ordens (também dos Domi-
(onde a alta administração era con- é que a expulsão da Companhia nicanos, antagonistas históricos da
trolada de certa forma pela monar- era útil também para o interesse Companhia), e não dos seus irmãos
quia), mas contra a mais potente pessoal de poder dos ministros. Jesuítas.
das ordens religiosas, que tinha Deve-se então observar que, em 11
uma base consistente de populari- todos os Estados, a pressão para Em seguida, uma solução foi en-
dade e, proporcionando a instrução a expulsão parece ter sido dese- contrada pela Cúria Papal (não da-
de grande parte da nobreza e da jada primeiramente não na vonta- quela da Ordem), distribuindo os
alta burguesia, tinha uma grande de pessoal dos soberanos, mas na exilados em uma pequena parte de
influência sobre a parte mais re- obra de convencimento desenvol- Roma e em localidades próximas,
presentativa da população. Uma vida acima deles pelos ministros mas, na maioria, no lado centro-
terceira (parcialmente ligada à (Pombal, Campomanes3, Choiseul4, setentrional do Estado Pontifício
precedente) é que o estado endê- Du Tillot5, Tanucci6): todos estes — nas atuais regiões italianas da
mico de dificuldades financeiras no detinham um poder muito amplo, Umbria, Marche e Emilia-Romagna.
qual se encontravam as monarquias baseado no suporte de parte de Até a Supressão da Companhia, em
dos países católicos sugeriram o in- determinados dirigentes distintos 1773, os exilados pertenciam ain-
cremento dos bens estatais através daqueles em relacionamento mais da formalmente às suas respecti-
do confisco de propriedades rele- direto com a Companhia; assim, o vas províncias, assim foram distri-
vantes da ordem inaciana. buídos marcando uma localidade
2 José II (1741-1790): Imperador do Sacro àqueles provenientes de determi-
Todas essas explicações contêm Império Romano-Germânico entre 1765 e
nadas províncias (por exemplo, os
algum elemento real, mas ne- 1790. Deteve ainda os títulos de rei da Boê-
mia e da Hungria e de Arquiduque da Áustria mexicanos em Bolonha, os Catalãos
nhuma é totalmente convincen- (1780-1790). Filho mais velho de Francisco I em Rimini, etc.).
te. Nada prova que o Marquês de e de Maria Teresa. (Nota da IHU On-Line)
Pombal ou os ministros dos estados 3 Conde de Campomanes (1723-1802): Os Jesuítas da Assistência Espa-
bourbônicos consideravam acima Pedro Rodríguez de Campomanes, político, nhola recebiam uma pequena pen-
jurista e economista espanhol. (Nota da IHU
de qualquer suspeita as ideias do On-Line)
são de Carlos III7, que, unida aos
Iluminismo no campo social e po- 4 Étienne-François, conde de Stainvil- pequenos ganhos realizados com
lítico, porque aquelas ideias po- le e duque de Choiseul (1719-1785): foi
embaixador e depois secretário de Estado de 7 Carlos III da Espanha (1716-1788): Rei
diam colocar limites ao poder ab- Luis XV. (Nota da IHU On-Line) da Espanha e das Índias Espanholas entre
soluto dos governos e ameaçar as 5 Léon Guillaume du Tillot (1711-1774): 1759 e 1788. Como rei de Espanha, Carlos
político francês conhecido por suas ideias li- III tentou salvar o império da sua decadên-
ria Portuguesa. Leia a edição 220 do caderno berais e iluministas. (Nota da IHU On-Line) cia através de reformas profundas, tais como
IHU Ideias intitulado O Marquês de Pombal 6 Bernardo Tanucci (1698-1783): estadis- o enfraquecimento da igreja e dos seus mos-
e a Invenção do Brasil, de autoria de José ta italiano, conhecido por trazer um governo teiros, promovendo a ciência e a investigação
Eduardo Franco, disponível em http://bit. iluminista ao Reino das Duas Sicílias. (Nota universitária, facilitou as trocas comerciais e
ly/1PQ7NwI. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) o comércio, modernizou a agricultura e evi-
atividades culturais (ensino pri- saberes plurais adquiridos nestas Ugo Baldini – No plano da pura
vado, atividades nas bibliotecas e localidades em um mundo predo- teoria científica, a contribuição
nas paróquias, etc.), permitiu que minantemente eurocêntrico? dos missionários (daqueles na Amé-
eles vivessem modestamente, mas rica e África muito mais dos que na
Ugo Baldini – Foi de grande im-
ao menos de forma decente. Os ir- Ásia) pode se definir como insigni-
portância com relação ao princí-
mãos portugueses não tinham pen- ficante, por uma série de motivos
pio; de fato, porém, foi notável, facilmente compreensíveis. As suas
são, e muitos deles foram distribuí-
mas não muito ampla. Dada a si- condições de vida e atividade não
dos em localidades menores e mais
isoladas; isso produziu situações tuação econômica e o estado de eram favoráveis à pesquisa pura,
de sofrimento econômico e psico- isolamento dos exilados, suas nar- para a qual não havia nem livros
lógico, que pareciam corresponder rações e descrições de eventos e ou instrumentos adequados. Além
a uma taxa de mortalidade muito contextos coloniais permanecem disso, a estratégia geral da Com-
mais elevada do que com relação em grande parte inéditas (algu- panhia destinava os missionários
aos espanhóis (aproximadamente mas foram publicadas somente no cientificamente mais preparados
50% de mortes nos primeiros 10-12 século XX, outras ainda são inédi- para o campo astronômico e físico-
anos). tas). Em geral, pode-se dizer que a -matemático em missões asiáticas
influência dos Jesuítas exilados na (especialmente na China), onde
Itália foi maior nos setores da teo- existiam civilizações superiores as
IHU On-Line – A Companhia,
logia, da teoria política e da crítica quais podiam ser atingidas de ma-
surgida na Europa, já havia se
e história literária, porque nestes neira maior pela evidência do nível
espalhado para o Oriente, bem
setores existiam canais de publica- científico da cultura dos Padres.
como para o continente America-
ções mais imediatos, e porque os Nas missões americanas foram en-
no, Africano e na Oceania. Com
mesmos setores estavam presentes viadas poucas pessoas cientifica-
a expulsão e a vinda dos mem-
nas atividades das Academias das mente qualificadas, e não antes do
bros para a Europa, há relatos de
quais muitos Jesuítas tornaram-se fim do século XVII.
certo preconceito diante dos re-
membros.
cém-chegados dos países do Sul.
Como eram vistos pelos outros IHU On-Line – Ao se pensar a
jesuítas europeus? E pela comu- IHU On-Line – Quais foram as relação entre igreja e ciência, é
nidade eurocêntrica? principais contribuições dos Je- fácil remeter a uma posição in-
12 Ugo Baldini – A Espanha tinha
suítas para a história natural das tolerante e censora da primeira
Américas? — tal como ocorreu a Nicolau Co-
ocupado por cerca de dois séculos pérnico. No entanto, muitos jesu-
quase metade da Itália, e por isso Ugo Baldini – Membros da Com-
ítas eram estudiosos das ciências
em geral os espanhóis não eram panhia detiveram as primeiras naturais. De onde vinha esta rela-
amados. Com relação aos portu- descrições de contextos territo- ção mais intensa dos jesuítas com
gueses, não existiam motivos es- riais na íntegra e, acima de tudo, a ciência?
pecíficos de ressentimento, mas muitos deles foram os primeiros a
é possível que a origem ibérica tentar descrever integralmente as Ugo Baldini – A imagem de into-
os fizesse se envolver, em parte, regiões coloniais, unindo os ele- lerância e censura da Igreja com as
nos prejuízos contra os espanhóis. mentos geográficos, cartográficos, ciências torna absolutistas e extre-
Também no interior da Companhia naturalísticos, étnico-linguísticos. mistas certo número de episódios
existiam prejuízos com o compo- Para muitas regiões, a geografia, reais. A nova ciência experimen-
nente ibérico, devido às diversi- a história natural, a antropologia tal e a astronomia heliocêntrica
dades nacionais e também, em física e a etnologia foram, até o tiveram opositores também entre
parte, ao fato de que o monopólio século XVII, um fato inteiramen- os acadêmicos não religiosos, ge-
espanhol e português sobre todas te “Jesuítico”. Para as exigências ralmente fixados no aristotelismo8
as missões extraeuropeias (exce- das suas viagens pelos territórios, ortodoxo até a metade do século
tuadas as zonas do Mediterrâneo as suas descrições foram parti- XVII, e a mesma oposição também
oriental) subordinava os missioná- cularmente importantes para a foi em grande parte das Igrejas
rios das outras Assistências a supe- protestantes. Do contrário, uma
hidrografia fluvial e a orografia;
riores quase sempre ibéricos, mui- fundamentais também as contri- 8 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322
to animados pelo orgulho nacional buições na descoberta e difusão a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira.
e também diferentes dos demais Suas reflexões filosóficas — por um lado, ori-
dos valores medicinais de plantas ginais; por outro, reformuladoras da tradição
pela diversidade cultural. locais (iniciando pela China), das grega — acabaram por configurar um modo
quais aprenderam as propriedades de pensar que se estenderia por séculos. Pres-
tou significativas contribuições para o pensa-
IHU On-Line – Qual foi a impor- com os indígenas.
mento humano, destacando-se nos campos
tância deste retorno para pro- da ética, política, física, metafísica, lógica,
mover o compartilhamento de IHU On-Line – E no caso do pro- psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia
e história natural. É considerado, por muitos,
tou envolver-se em conflitos armados. (Nota gresso científico, houve contri- o filósofo que mais influenciou o pensamento
da IHU On-Line) buições relevantes? ocidental. (Nota da IHU On-Line)
parte não muito pequena dos cien- des jesuítas o direito e a medici- XVII, para permanecer formal-
tistas mais significativos do século na sempre foram ensinados por mente no interior das categorias
XVII e XVIII foi constituída por re- pessoas fora do clero). Todavia, tradicionais, R. Boskovic9 se une
ligiosos católicos, e em particular por exigências concretas, a Com- a uma teoria de fenômenos físicos
pelos Jesuítas. Uma razão pela panhia sempre teve especialistas fundamentais que foi antes de tudo
qual a censura católica historica- em direito canônico, e muitos mis- a mais moderna formulada até a
mente é muito mais conhecida, sionários tiveram conhecimentos metade do século XVIII. O mesmo
sendo identificada com o completo médicos, acima de tudo sobre as vale para a matemática: os homens
sistema de censura eclesiástica, é ervas usadas em terapias (os “sim- da Companhia foram contrários ao
que a estrutura administrativa do ples”). Isso permitiu a alguns deles nascimento da geometria analítica
catolicismo, e a instituição neste estudar as propriedades medicinais e da análise infinitesimal, mas de-
de órgãos centralizados para a cen- de novas plantas encontradas nas tiveram contribuições fundamen-
sura (o Santo Ofício e a Congrega- zonas de missão e usadas pelas po- tais nos setores mais tradicionais
ção do Índice para a Cúria Romana, pulações locais. Todavia não foram da geometria pura e da trigono-
as Inquisições locais pela Espanha os Jesuítas os autores da clínica metria, além da análise lógica dos
e Portugal), torna o trabalho deles médica, de anatomia ou fisiologia processos matemáticos.
mais “eficaz”, sistemático e acima humana (se excluirmos as análises
de tudo reconhecido; do contrário, — feitas pelos matemáticos — das IHU On-Line – Estimativas apon-
a censura dos protestantes e dos características mecânicas do corpo tam que, quando da expulsão de
anglicanos foi mais fragmentada, e humano ou do olho como aparelho Portugal em 1759, 20 mil estu-
por isso não foi percebida de forma óptico). Os limites filosófico-epis-
dantes estudavam em instituições
unitária. temológicos foram mais graves e
jesuítas — o que mostra a impor-
condicionantes.
As razões do desenvolvimento da tância da Companhia no ensino do
atividade científica na Companhia Tendo adotado a teologia tomis- país. No entanto, com a reforma
são questões discutidas. Uma foi ta, a Companhia estava vinculada pombalina, muitas críticas surgi-
certamente o grande desenvolvi- à fidelidade a, pelo menos, alguns ram ao ensino jesuíta, tido como
mento vivido pelo sistema escolás- princípios da ontologia e da cosmo- “demasiado aristotélico”, ou ain-
tico, que o coloca em competição logia aristotélica, que eram adota- da restritivo (valorizando princi-
com as escolas e universidades não das naquela teologia. A fidelidade palmente os próprios membros da
religiosas e, então, impõe a criação ao aristotelismo era também uma Companhia). Qual a pertinência 13
de muitas cátedras de matemática, delimitação das potencialidades da destas críticas?
que renderam a formação de mui- matemática, porque Aristóteles ti-
Ugo Baldini – Naturalmente o en-
tos especialistas e com isso criaram nha demarcado nitidamente a sua
sino dos Jesuítas, em geral e par-
um componente científico perma- diferença da física e a impossibi-
ticularmente nos países ibéricos,
nente. Uma outra razão foi a exi- lidade de usá-la para estudar os
tinha limitações e defeitos, devido
gência missionária (principalmente processos de formação e transfor-
a razões de princípios ou pela influ-
as da Ásia), onde a competência mação dos corpos materiais. Essas
ência de tradições que restringiam
científica era um meio para obter razões de princípio, que diferen-
escolhas possíveis para o ensino em
respeito da classe dirigente local e ciavam a filosofia da ciência e a
algumas cátedras. Quanto ao fato
era também um instrumento para metodologia jesuíta daquelas que
de que as cátedras estavam confia-
as exigências práticas (a partir da se afirmaram a partir de Galileu e
das somente a membros da Com-
necessidade de se orientar em via- Descartes, impediram que os Jesu-
panhia, isso é verdade para essa
gens a regiões desconhecidas). ítas tivessem um papel evolutivo
como para todas as outras Ordens
em alguns dos pontos centrais da
religiosas, e tem um paralelo em
renovação. Naturalmente este pen-
IHU On-Line – Havia limites im- restrição ainda mais presente nas
samento tem valor sobre um plano
postos aos desenvolvimentos e Universidades não religiosas (como
estatístico e tendencioso, não es-
projetos científicos propostos pe- a reserva de elevados percentuais
tritamente sobre aquele individual
los jesuítas? de cátedras a pessoas nascidas na
(alguns Jesuítas foram abertos às
Ugo Baldini – Existiram limites novas ideias e as cultivaram). Por sede da Universidade).
tanto institucionais como filosófi- outro lado, os matemáticos e filó- Sobre o aristotelismo já respon-
cos e epistemológicos. Enquanto sofos naturais da Companhia deti- di, mas observo que muitos críticos
Ordem religiosa, a Companhia era veram notáveis contribuições em das instituições jesuíticas têm uma
vinculada ao Direito canônico, que setores da ciência independente imagem muito estática, ignorando
proibia aos membros do clero o da escolha conceitual ao fundo: a ou subavaliando os notáveis fatos
exercício da advocacia e da me- óptica física antes de Newton e a de evoluções alcançados entre o
dicina. Por esta razão, nas Consti- acústica no século XVI foram qua-
9 Ruder Boskovic (1711-1787): jesuíta, físi-
tuições, Santo Inácio proibia tanto se que totalmente “regiões jesuí-
co, astrônomo, matemático, filósofo conheci-
o ensino como a prática pública ticas”, e em grande parte o foi o do por ser conselheiro científico da Igreja Ca-
destas duas áreas (nas universida- estudo do magnetismo. No século tólica no Vaticano. (Nota da IHU On-Line)
final do século XVI e a metade do so presentes no ensino jesuítico se foram bastante unificadas, de todo
século XVIII (por exemplo, por vol- atenuam muito. sorrateiramente, com papel de
ta de 1740, na maioria dos colégios censura, atribuindo à Companhia
italianos se ensinava — mesmo que IHU On-Line – O sentimento muitas das iniciativas de denúncia
de modo simplificado — a mecâni- antijesuítico ainda persiste em e das escolhas convictas sobre as
ca de Newton10). Por outro lado, alguns países, como Portugal? Congregações da Inquisição e do
os termos de uma discussão dire- Existe dificuldade, a partir deste Índice, embora essas não tivessem
ta devem ser uniformes: o ensino sentimento, de aceitar a colabo- parte formal (o papel diretivo era
ração da Companhia para o avan- dos cardeais da Cúria, e os funcio-
nas escolas da Ordem não deve ser
ço histórico e científico? nários eram sempre dominicanos
confrontado com o conteúdo da
ou franciscanos; os Jesuítas po-
ciência acadêmica avançada, mas Ugo Baldini – O antijesuitismo
diam ser somente consultores).
com aquele das cátedras corres- foi, com a crítica à Inquisição e
Dada a grandiosidade da polêmi-
pondentes nas universidades. Se à censura literária, o elemento
cultural mais forte na crítica “não ca e a gravidade das acusações
isso é feito, os elementos de atra- contra eles, certos julgamentos
religiosa” ao catolicismo por mais
10 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrô- de dois séculos. Isso se explica se basearam na generalidade da
nomo e matemático inglês. Revelou como o
considerando que se trata de um opinião pública (paradoxalmente,
universo se mantém unido através da sua te-
reconhecimento implícito: sendo nos países católicos tanto e talvez
oria da gravitação, descobriu os segredos da
luz e das cores e criou um ramo da matemáti- (justamente) reconhecido como o mais que nos protestantes). A fun-
ca, o cálculo infinitesimal. Essas descobertas principal órgão de defesa da dou- damentação foi tão profunda que
foram realizadas por Newton em um interva-
trina católica — em áreas como a a mudança acentuada dos julga-
lo de apenas 18 meses, entre os anos de 1665
e 1667. É considerado um dos maiores nomes teologia, a exegese, o direito, a mentos que estavam em curso há
na história do pensamento humano, por cau- teoria política, a visão científica mais de 20 anos em nível superior
sa da sua grande contribuição à matemática, dos estudos teve pouco impac-
à física e à astronomia. O IHU promoveu, de
—, a Companhia sofreu o ataque
03-08 a 16-11-2005, o Ciclo de Estudos Desa- principal que na guerra vem dire- to sobre ela. O processo, porém,
fios da Física para o Século XXI: uma aven- tamente contra o baluarte de um está em desenvolvimento, e uma
tura de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, mudança no julgamento histórico,
forte identificado como essencial
em específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu
palestra em 21-09-2005, intitulada A cosmo- para sua defesa. Por outro lado, a mesmo que junto ao grande públi-
propaganda e a polêmica jesuíta co, é inevitável. ■
14 logia de Newton. (Nota da IHU On-Line)
COBERTURA DE EVENTOS
15
FOTO: João Vitor Santos/IHU
A capa do jornal carioca Extra, comum e virou rotina. Para Alves, fico de drogas. Porém, na verdade,
de 21 de maio, materializa uma si- os fatos mostram os efeitos de uma serve uma estrutura que defende
tuação trazida pelo sociólogo José polícia militarizada que busca im- uma ideia de ordem urbana que
Claudio Alves em sua conferência por uma ordem na Metrópole. “Mas contempla poucos. “O papel que a
no Ciclo de Estudos Metrópoles, essa ordem só existe para alguns”, polícia cumpre hoje é praticamen-
Políticas Públicas e Tecnologias de destaca, ao lembrar que enquanto te unilateral, é unidimensional, se
Governo. Territórios, governamen- a classe média se choca com latro- estabelece a partir de uma lógica
to da vida e o comum, realizada na cínios na zona sul, a polícia entra militarizada, que é a que predomi-
quinta-feira, 28-05. No topo da pá- nas comunidades matando e mor- na na sua formação. Teoricamente,
gina está a manchete que destaca rendo para impor suas regras. ela está ali para garantir a ordem, a
a morte de um médico, esfaquea- segurança, mas na verdade trata-se
do enquanto andava de bicicleta O professor explica que se a po- de um papel do Estado de garantir,
na Lagoa Rodrigo de Freitas. Mais lícia é militar, a lógica é de guer- sim, interesses em determinadas
abaixo, é lembrada a morte de dois ra. “E a essência, o que motiva, é estruturas, determinados segmen-
jovens em comunidades cariocas vencer o inimigo. Ninguém vai para tos, determinados espaços sociais,
em uma das ações da PM. O primei- guerra para perder”. Guerra essa econômicos e políticos que estão
ro crime choca, o segundo é mais que se anuncia como guerra ao trá- presentes ali”, analisa.
Na prática, o que acontece é a ves explica que há um fator histó- corporações, há algumas iniciati-
imposição de forças. De um lado rico importante. “Esse caráter de vas, algumas pessoas que come-
o tráfico, e de outro a polícia. No força de repressão da polícia se es- çam a questionar o sistema depois
meio, a população, principalmente tabeleceu no período da ditadura. de provar da angústia gerada por
as comunidades mais carentes. Al- Isso desde o caráter hierarquizante ele. “São ações pequenas, mas que
ves, que vive na Baixada Fluminen- até a questão do armamento, pois devem ser destacadas.”
se, explica que a lógica institucio- é preciso cada vez mais estrutura
nalizada é a de que a polícia chega Uma desmilitarização não é tare-
bélica para encarar essa guerra”. É
aonde o tráfico comanda. Destitui fa fácil. O professor lembra que vai
por isso que o pesquisador conside-
o esquema do tráfico e ela mesma além de realinhamentos institucio-
ra que a polícia é a área que menos
passa a operar o controle do local, nais ou jurídicos. “Tirar as ‘divisas’
passou por uma redemocratização.
movendo toda a lógica da ilegali- da polícia não resolve. Mas pode
“Tivemos isso em várias estruturas,
dade. “Antes era o traficante que ser um começo.” Para ir além, é
mas a polícia continua tão repres-
mandava e matava. Agora, é a po- preciso políticas que mexam nas
sora como naquele tempo.”
lícia”, completa. As consequências estruturas, criando uma polícia não
são danosas para todos, inclusive O debate sobre a desmilitariza- de repressão, mas horizontalizada,
para a própria corporação. “Temos ção da polícia emerge pós-mani- disposta a dialogar e reconhecer a
a polícia que mais mata e mais festações de junho de 2013. Para comunidade em que se insere. “Di-
morre, que também mais adoece. Alves, “porque a classe média ex- fícil, o cenário é complicado. Mas o
Sua estrutura hierarquizada impri- perimentou um pouquinho do gosto cenário está posto.”
me essa lógica e não permite uma de como age a PM”. Por isso, con-
horizontalidade dentro dos bata- sidera importante o momento para A polícia na Metrópole
lhões. Isso faz com que todas ajam “pegar carona no debate”. Mas
da mesma forma, não questionem e destaca que ainda é preciso mais. Ainda antes da sua conferência,
sejam pressionados pelo comando”. “É errado pensar que para comba- realizada na última quinta-feira,
ter o tráfico é preciso repressão, José Claudio Alves concedeu uma
Herança da ditadura guerra. É uma questão de saúde, entrevista por telefone à IHU On-
de desenvolvimento de uma série Line, que pode ser lida no sítio do
Mas de onde vem esse espírito de políticas para mudar a realida- IHU, através do link http://bit.
16 militar da polícia? José Claudio Al- de das comunidades.” Dentro das ly/1Qf8yu6.
LEIA MAIS...
—— Metrópole e Ordem Urbana. Pela desmilitarização da polícia. Entrevista com José Claudio
Alves publicada nas Notícias do Dia, de 28-05-2015, no sitio IHU, disponível em http://bit.
ly/1PZmbTv;
—— As UPPs são uma fuga para a frente. Entrevista especial com José Cláudio Alves. Entrevista
com José Claudio Alvez publicada nas Notícias do Dia, de 08-01-2015, no sítio do IHU dispo-
nível em http://bit.ly/1I4oA8p;
—— UPPS e a reestruturação do tráfico no Rio de Janeiro. Entrevista com José Cláudio Al-
ves publica nas Notícias do Dia, de 24-10-2013, no sítio IHU, disponível em http://bit.
ly/1dGs0Es;
—— “A lógica do PCC é a lógica da sociedade brasileira”. Entrevista com José Claudio Alves
publicada nas Notícias do Dia, de 13-11-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1BCdd2I;
—— Rocinha: uma favela conveniente à classe média. Entrevista com José Cláudio Alves publi-
cada nas Notícias do Dia, de 21-011-2011, no sítio IHU, disponível em http://bit.ly/1FXoIH2.
IHU ON-LINE
Tema de
Capa
DESTAQUES DA SEMANA TEMA
#DossiêEspanha
vens estão assistindo na Europa. rário e feminista foi muito forte. que se chama Raiz. A Luiza Erundi-
Veja, ele é muito esperto e orga- Com isso, quero dizer que a vitória na7 está vindo para esse novo par-
nizou um livro com pessoas comen- dessas mulheres, Colau e Manuela, tido, o Roberto Amaral8 está discu-
tando o Game of Thrones a partir não é à toa. tindo a possibilidade de se vincular
das suas militâncias, ou das suas a ele, e alguns petistas também
Uma das características da mu-
categorias profissionais, ou seja, estudam a possibilidade de sair
dança da composição política de
são economistas, ambientalistas. A do PT e migrar para esse partido.
2011 para cá na Espanha vem do
capa do livro é o trono do Game Então, está tendo uma movimenta-
movimento feminista, do movi-
of Thrones, cheio de espinhos, e ção, mas principalmente do Centro
mento de autonomia e indepen-
quem está sentado na poltrona Sul do país. Se vê que está tendo
dência dessas regiões, como é o
é o Pablo Iglesias. Veja que eles uma quebra do sistema partidário
caso da Galícia e Catalunha. Esse
têm uma capacidade de comunica- por dentro, porque os brasileiros
movimento contra as hipotecas é
ção de massa ampla, sendo muito não conseguem se ver dentro dos
liderado por mulheres.
irônicos. partidos criados nos anos 1980.
Em Portugal, o grupo de esquer- Está tendo uma procura por novos
Eu estou trazendo eles para o
da, que é outro partido, que tem partidos, como foi a procura pela
Brasil nos dias 20 e 21 de junho,
esse estilo mais tradicional do Syri- Marina9 nas eleições passadas. Os
mas me reuni com eles no ano pas-
za e do Podemos, é liderado por brasileiros querem tentar outra
sado, na Espanha. Lá, eles me dis-
mulheres. Inclusive, nesse evento via. Isso aconteceu na Espanha,
seram que não gostam de falar de
dos dias 20 e 21 de junho, vamos mas lá teve uma explosão nacional.
esquerda e direita, mas, sim, falar
trazer as duas irmãs Mortágua, que
de “castas dos de cima e dos debai- Eu me reuni com o pessoal do
são dirigentes do Bloco de Esquer-
xo”. Segundo essa interpretação, Podemos, na Espanha. Eles mar-
da. As mulheres estão significando
os partidos que acabaram de per- caram comigo numa praça no cen-
uma expressão dessa mudança po-
der a eleição para eles são os “de tro de Mérida, no inverno. Quando
lítica que é muito maior na Europa.
cima”, que se aliaram aos grandes cheguei na praça, não vi ninguém,
empresários, que estão expulsando No Brasil também não é conhe- aí telefonei para um dos mem-
as pessoas de suas casas. cido o fato de que há, na Europa, bros do partido, que disse já estar
uma articulação muito forte entre chegando. Nesse meio tempo, dei
O Podemos está crescendo e será
esses partidos de tipo novo, como uma olhada para os lados e vi duas
o grande novo partido da Espanha
20 nos próximos meses. Eles é que
o Podemos, o Syriza, o Bloco de Es- pessoas, um senhor e uma jovem,
querda de Portugal e a articulação que estavam abrindo um portão e
irão dirigir as principais cidades da
de esquerda na Irlanda. Pelo menos acendendo uma luz numa sala em
Espanha, com um perfil jovem, ino-
esses quatro grupos estão muito ar- que tinha uma mesa grande, cheia
vador e de esquerda.
ticulados entre si. de jornais. Fui até lá e perguntei
se era ali que iria acontecer a reu-
IHU On-Line - Qual a represen- nião do Podemos. Eles confirmaram
IHU On-Line – No Brasil sem-
tatividade da eleição de Colau,
pre se faz referência ao Podemos
em Barcelona e de Manuela Car- 7 Luiza Erundina de Sousa (1934): assis-
como o principal partido que sur- tente social e Deputada Federal pelo estado
mena6, em Madri? Qual a expec-
ge desse descrédito com os par- de São Paulo, pelo PSB. Foi Coordenadora-
tativa em torno de se ter duas -Geral da coligação Unidos pelo Brasil, que
tidos tradicionais, sem se men-
prefeitas que surgiram das mani- lançou Marina Silva como candidata à Presi-
cionar esse novo quadro político, dência da República, em 2014. Ganhou noto-
festações de rua? Qual o significa-
com o surgimento de novos parti- riedade nacional quando foi eleita a primeira
do político disso? prefeita de São Paulo e representando um
dos regionalizados.
partido de esquerda, o PT, em 1988. (Nota da
Rudá Ricci – Queria lembrar que
Rudá Ricci – Sim, trata-se de um IHU On-Line)
no país Basco, que fica a Nordeste 8 Roberto Átila Amaral Vieira (1939):
quadro novo, muito regionalizado.
da Espanha, a organização feminis- jornalista, professor e político brasileiro. Foi
É como se de repente surgisse uma presidente do Partido Socialista Brasileiro até
ta é muito forte e em outras regi-
série de novos partidos no Nordes- Outubro de 2014, quando renunciou por oca-
ões do país também. Em novembro sião do apoio dado pelo partido ao então can-
te brasileiro. Na verdade, no Brasil
e dezembro eu estive em regiões didato a Presidência da república pelo PSDB,
está, timidamente, acontecendo
mais rurais da Espanha, em Méri- Aécio Neves. (Nota da IHU On-Line)
algo parecido. 9 Marina Silva (1958): política brasileira,
da, e lá o movimento feminista é ambientalista e pedagoga. Foi senadora pelo
fortíssimo. Essa é uma cidade polo Por exemplo, o PSOL está ocupan- estado do Acre durante 16 anos. Foi Ministra
regional, mas ali o movimento ope- do um lugar em algumas regiões do do Meio Ambiente no Governo Lula do seu
Brasil, como no Rio de Janeiro, no início (1/1/2003) até 13 de maio de 2008.
te. Também conquistou o Emmy de melhor Também foi candidata à Presidência da Re-
projeto de créditos principais. Possui uma Rio Grande do Sul, em Brasília e no pública em 2010 pelo Partido Verde (PV),
das melhores notas entre os telespectadores Pará. Mas tem uma articulação em obtendo a terceira colocação entre nove can-
para séries em exibição no site IMDb. Possui São Paulo e no Rio de Janeiro de didatos. Também foi condidata à presidência
14 Emmy Awards. (Nota da IHU On-Line) em 2015 pelo PSB, depois da morte de Edu-
autonomistas, ecossocialistas, que
6 Manuela Carmena Castrillo (1944): ardo Campos. Marina era vice de Campos e
jurista espanhol, juiz emérito e eleita prefeita vieram do PT, do PCdoB, da Rede e acabou assumindo a chapa. (Nota da IHU
de Madri em 2015. (Nota da IHU On-Line) estão formando esse novo partido On-Line)
e perguntaram de que país eu era e vernar, porque não têm dinheiro. de, fazendo com que o discurso do
já me convidaram para participar - Eles vão frustrar os mais radicais, FMI caia de uma vez por todas em
eu vivi isso no início dos anos 1980, porque vamos lembrar que houve desuso. Vamos lembrar que a crise
com a formação do PT. O senhor um racha no Podemos no mês pas- dos EUA de 2008 gerou um pacote
foi um líder importante da região sado. O grupo do Pablo Iglesias, do FMI que foi rechaçado pelo Oba-
e era do Partido Comunista Espa- que é mais tradicionalista e cen- ma, mas é o mesmo pacote que a
nhol e a jovem era do movimento tralizador em termos de organiza- Dilma quer implantar no Brasil.
feminista. Essa era uma das poucas ção, ganhou as eleições internas
do Podemos, e os mais inovadores Eu estou falando do pacote da
sedes físicas do Podemos na Espa-
em termos de organização saíram Dilma, porque estamos vendo um
nha. Eles se reúnem toda semana,
do partido. Então, vamos ter como possível suicídio político do PT e,
à noite, e cada noite um coletivo
consequência agora um banho de nesse sentido, a eleição da Espa-
deles usa o espaço da sede. Naque-
realismo político. Por outro lado, os nha pode significar um farol para
la noite, era o dia da reunião das
cinco deputados eleitos para o Par- enxergarmos o futuro do Brasil. Te-
feministas. No dia seguinte seria a
lamento europeu do Podemos, que nho a impressão de que o Podemos
reunião do grupo que estava orga-
nizando a campanha da eleição que foram eleitos no ano passado, vão terá a dificuldade de governar na
eles ganharam nesse domingo. En- se encontrar com o Syriza e com os crise, mas terá a vantagem de se
tão, o que quero mostrar ao falar irlandeses com muito mais força. O juntar aos seus amigos do Syriza,
isso é que há uma autonomia im- que temos de entender é que se, que também são poder. É o início
pressionante do uso do espaço da por um lado, a crise econômica de um efeito dominó que atinge
sede. Não tinha um dono: e esse é estará na conta do Podemos e eles outros países nessa mudança. Va-
o Podemos. terão de inovar em termos de polí- mos lembrar que os três países que
tica pública, e agora vem a prova comandam essa austeridade são a
de fogo, por outro lado, agora au- Alemanha, a França e a Inglaterra.
IHU On-Line - Quais as expec-
mentam as forças políticas da Eu- Vamos lembrar ainda que na Fran-
tativas em relação às eleições
ropa que são contra os pacotes de ça, na Áustria, na Bélgica e na Su-
nacionais do final do ano e qual
austeridade, que estão na Grécia, íça a extrema direita está ganhan-
poderá ser o peso político do Po-
na Irlanda, em Portugal, em todo do ainda mais votos. A Europa está
demos daqui para frente?
o leste europeu. Neste momento é numa radicalidade ideológica dos
Rudá Ricci - Agora é a hora de possível que estejamos vivencian- dois lados muito forte. A eleição do 21
o realismo cair pesado sobre os do o efeito dominó, ou seja, o iní- Podemos pode significar uma força
ombros de quem vai governar. Eles cio de uma nova onda de políticas para a esquerda nesse momento.
terão dificuldades imensas para go- desenvolvimentistas antiausterida- Ou seja, tudo está em aberto.■
LEIA MAIS...
—— “A disputa política está nas ruas”. Entrevista com Rudá Ricci, publicada em Notícias do
Dia, de 27-07-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1n3ZKLx;
—— O enorme fosso entre as ruas e a política institucional. Entrevista com Rudá Ricci, publica-
da em Notícias do Dia, de 17-03-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Ln1Ipg;
—— O crescimento do Syriza e do Podemos. Algo a ver com o Brasil? Entrevista com Rudá
Ricci, publicada em Notícias do Dia, de 08-02-2015, no sítio do IHU, disponível em http://
bit.ly/1C068rY;
—— Disputa entre PT e PSDB e o pêndulo do eleitorado frustrado e descontente. Entrevista
com Rudá Ricci, publicada em Notícias do Dia, de 06-10-2014, no sítio do IHU, disponível
em http://bit.ly/ZNPb8W;
—— “O PT se tornou o PCB do século XXI”. Entrevista com Rudá Ricci, publicada em Notícias
do Dia, de 31-03-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1on82xy;
—— O PT a reboque do lulismo. Entrevista com Rudá Ricci, publicada em Notícias do Dia, de
10-10-2009, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1J8r2xD
#DossiêEspanha
IHU On-Line - Que avaliação para 50% dos votos válidos. O PP Nisso, o processo de mobilização
você faz das eleições municipais perdeu as maiorias absolutas nas tocou um nervo positivo do traba-
espanholas? Qual é o significado 10 comunidades que governava. lho metropolitano contemporâneo,
político da eleição de Ada Colau Portanto, são resultados históricos ao fomentar uma disputa no tecido
em Barcelona? que sinalizam a abertura de um biopolítico em que funciona a me-
novo ciclo institucional, sinalizan- trópole hoje, onde molar e mole-
Bruno Cava - Foi a primeira expres-
do uma tendência de esgotamento cular são duas dimensões articula-
são eleitoral de um ciclo de lutas ini-
do sistema político representativo das e indissociáveis das formas de
ciado com as revoluções árabes em
conhecido por “Régimen de 1978”, produção e controle.
dezembro de 2010 que foi bastante
isto é, o regime da redemocrati-
intenso na Espanha, a partir do Movi-
zação pós-ditadura franquista. O
mento do 15 de Maio (15M) de 2011. IHU On-Line - Como as eleições
significado extrapola o cenário es-
Há uma relação direta entre o 15M e municipais espanholas são inter-
panhol ao demonstrar como é pos-
as frentes cidadãs que conquistaram pretadas à luz do conceito de
sível transpor o ciclo de lutas para
resultados extraordinários nessas comum?
a ocupação de instâncias de poder,
eleições. Ada Colau4, do Barcelona
com alto poder de contágio no res- Bruno Cava - O “comum” é um
em Comum (antigo Guanyem), ven-
to da Europa e no mundo. Põe-se
ceu na capital da Catalunha, com conceito que explica o ciclo de
em questão, daqui por diante, qual
25% dos votos; enquanto Manuela lutas das revoluções árabes, 15M,
a capacidade e com que estraté-
Carmena5, do Ahora Madrid, obte- Occupy, Gezi Park na Turquia, mo-
gias essas coalizões vencedoras po-
ve um resultado percentual ainda bilizações na Islândia, no Iêmen, na
derão impactar as formas de poder
maior (31%), ficando em segundo lu- China, jornadas de junho no Brasil,
na fugidia e vacilante franja entre
gar por apertada margem na maior praça Maidan na Ucrânia, e um
instituições e mobilizações.
cidade da Espanha. longo etcétera de novos coletivos,
Coalizões cidadãs semelhantes ocupações e lutas. O comum, decli-
IHU On-Line - Pode-se dizer que
venceram em La Coruña e ficaram nado no singular (e não ‘commons’)
essa eleição é fruto das mobiliza-
em segundo lugar em Cádiz e Za- explica porque essas não são lutas
ções que ocorrem na metrópole,
ragoza, além de outros bons resul- ou seja, é fruto do comum? unicamente políticas, como se fos-
tados noutras cidades pequenas e sem apenas um antagonismo ao ca-
médias. Os dois partidos tradicio- Bruno Cava - Todos os temas de pitalismo globalizado e integrado.
nais que se revezam no poder, o protesto do 15M reapareceram com São lutas que exprimem também 23
Partido Socialista Operário Espa- força nesta eleição: “Não pagare- uma nova composição do traba-
nhol (PSOE)6 e o Partido Popular mos pela sua crise”, “Não nos re- lho vivo, com múltiplas dimensões
(PP)7, juntos desabaram de 80% presentam”, “Democracia real já”, simultâneas: são políticas, eco-
“Não somos mercadoria nas mãos de nômicas (o comum é produtivo),
4 Ada Colau Ballano (1974): ativista social banqueiros e políticos”... As cam-
e política espanhola, fundadora da Platafor- biopolíticas (produzem formas de
ma de Afetados pela Hipoteca em Barcelona. panhas de Barcelona em Comum
vida), cosmológicas (trazem outras
Foi cabeça de lista nas eleições municipais (BC) e Ahora Madrid (AM), apenas
concepções de natureza, de huma-
de 2015 da coligação eleitoral Barcelona na para ficar nas duas principais cida-
Comu, formação que foi a mais votada. (Nota des, foram construídas com o apoio no, da Terra). Antonio Negri8, por
da IHU On-Line)
entusiasmado de redes, mídias exemplo, quando fala do “comum
5 Manuela Carmena Castrillo (1944): jurista
espanhol, juiz emérito e eleita prefeita de Ma- e coletivos que, nas palavras do em revolta”, aponta como mesmo
dri em 2015. (Nota da IHU On-Line) pesquisador Bernardo Gutiérrez, as revoltas mais destrutivas e an-
6 Partido Socialista Operário Espanhol compõem o “ecossistema do 15M”. tagonistas trazem, atrás do “não”,
(PSOE): é um partido político da Espanha,
Ou seja, sem a estrutura tradicio- um “sim” maior, uma positividade
fundado em 1879. Na atual legislatura 2011-
2015 é o principal partido da oposição. Faz nal de financiamento dos partidos de reexistência e novos arranjos
parte do Partido Socialista Europeu. (Nota da tradicionais, BC e AM funcionaram produtivos e de vida.
IHU On-Line) quase que exclusivamente devido
7 Partido Popular (PP): partido político 8 Antonio Negri (1933): filósofo político
conservador da Espanha fundado em 1989, a uma rede de alta intensidade e moral italiano. Durante a adolescência,
definido nos seus estatutos como de centro que ocupou as redes sociais, as as- foi militante da Juventude Italiana de Ação
reformista. Tem a sua origem em Aliança Po- sembleias de bairro e as tertúlias Católica, como Umberto Eco e outros inte-
pular, quando se uniu com o Partido Demo- lectuais italianos. Em 2000 publicou o livro-
(grupos de discussão na cidade),
crata Popular e Partido Liberal Espanhol em -manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro:
1989. É um dos dois partidos majoritários da gerando um efeito de escala. Foi Record, 2003), com Michael Hardt. Em se-
Espanha, junto ao Partido Socialista Operário uma ação do tipo “multicamada”, guida, publicou Multidão. Guerra e demo-
Espanhol, de âmbito estatal com representa- em que dinâmicas moleculares (re- cracia na era do império (Rio de Janeiro/São
ção nas Cortes Generales. Faz parte do Par- Paulo: Record, 2005), também com Michael
des transversais de singularidades)
tido Popular Europeu (PPE), da Internacio- Hardt – sobre esta obra, publicamos um arti-
nal Democrata de Centro (IDC), e da Unión sustentam um efeito molar (toma- go de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU
Internacional Democrata (IDU). Sua orga- da do poder), ao mesmo tempo que On-Line, de 29-11-2004. O último livro da
nização juvenil são as Nuevas Generaciones a vontade de vencer o Régimen no “trilogia” entre os dois autores Commonwe-
(NNGG). No Congresso Nacional de 2008, alth (USA: First harvaard University Press
Mariano Rajoy foi reeleito Presidente Nacio-
plano eleitoral (as campanhas) re- paperback, 2011), ainda não foi publicado em
nal e María Dolores de Cospedal, Secretária- alimentam uma agitação no nível português. (Nota da IHU On-Line) (Nota da
-Geral. (Nota da IHU On-Line) molecular (novos agenciamentos). IHU On-Line)
Barcelona em Comum e Ahora em de, com foco na moradia, endivi- des, de maneira disseminada. Por
Madrid, mais do que grupos que as- damento, ajudando os imigrantes isso, é fundamental que não haja
piram a tomar uma esfera política, sem documentos e acesso à saúde, ilusões de que enclaves ou localis-
exprimem um complexo de fatos de exercitando o autogoverno e a co- mos resolverão qualquer problema,
vida que estão muito além de uma operação transversal. A PAH se de- mas uma preocupação estratégica
vontade de poder: está em questão senvolveu bastante, quantitativa e em concatenar governos munici-
toda uma forma de organizar a vida, qualitativa com o 15M de 2011, se pais entre si e com forças para
de viver a democracia, a organiza- desdobrando em mais de 150 nú- além dos limites territoriais e nou-
ção, a produção social e colaborati- cleos pelo país, com concentração tras escalas.
va. Essa multiplicidade não pode ser na Catalunha.
reduzida a mero multiculturalismo, IHU On-Line - Quais as diferen-
Ada é o rosto dessa geração de
como se fossem apenas plataformas ças das eleições e dos movimen-
militantes e novos movimentos, em
voltadas a exprimir a diversidade tos que ganharam expressão em
total contraposição aos burocratas
de pautas. Não. A indignação que Madri e Barcelona?
cínicos do PSOE ou do PP. Não se
as impele contra o sistema político
trata apenas de um discurso ci-
existente, o Régimen, é baseada Bruno Cava - Ambos têm uma
dadão em prol do “social”, algum
nessa multiplicidade. dimensão tática declarada: ga-
tipo de populismo raivoso e oportu-
nhar as eleições de 2015. São, por
O comum é antagonista, porque nista, mas de toda uma estética e
isso, abertamente “eleitoralistas”.
as formas existentes de exploração uma lógica organizativa que são de
O primeiro tabu que esses grupos
e dominação não podem admitir novo tipo em relação às forças par-
enfrentaram foi dizer: precisamos
uma alternativa capaz de produzir tidárias existentes, e que por isso
e podemos ganhar eleições. Nisso,
governamentalidade e, efetivamen- contagiaram cidades inteiras com a
tiveram que romper com dogmatis-
te, destituir e substituir o poder. força do comum. Existe então uma
mos movimentistas ou anarquistas,
Isto exprime o grau de aposta, e grande expectativa pelas inova-
que são os primeiros a condenar a
de desafio, dessas plataformas. O ções que o Barcelona em Comum,
organização eleitoral como “pro-
“poder do Podemos”, como explica sob os signos de Ada e da PAH, vai
jeto de poder” ou “oportunismo”.
o pesquisador madrilenho Raúl Sán- ousar nos próximos anos.
Pois é, de fato, um projeto de poder
chez Cedillo, consiste nessa multi-
e é oportunista: como tem de ser,
plicidade criativa e conflitiva do co- IHU On-Line - Quais os desafios num momento em que os movimen-
mum. E é essa a única força capaz
24 de, efetivamente, mudar a “corre-
que ela enfrenta no sentido de go-
vernar mantendo o apoio às lutas
tos e ativismos vivem uma sequên-
cia de impasses, derrotas e autofa-
lação de força” e impedir, daqui por populares contra as hipotecas? gias (devorando-se uns aos outros,
diante, uma reocupação pelas ins-
tâncias do Régimen montado sobre Bruno Cava - A hipótese municipa- culpando-se, desmobilizando-se).
a farsa bipolar entre PP e PSOE. lista se baseia na avaliação de que É uma saída fácil? Certamen-
é preciso primeiro tomar o que é te que não, e só quem participou
mais próximo, mais concreto, mais desses processos sabe do grau de
IHU On-Line - Ada Colau, ao lon-
rápido. É preciso começar de algum cerco midiático, político e afetivo
go dos últimos anos, atuou como
lugar e a escala da cidade é enten- que seus ativistas e articuladores
porta-voz da Plataforma dos Afe-
dida, segundo essa hipótese, como o enfrentaram. O sucesso veio, em
tados pela Hipoteca – PHA. Por
primeiro terreno para medir forças meio a tudo isso, graças à capa-
que e em que medida Ada Colau
com a classe dominante e a sua ar- cidade de dosar a indignação in-
se torna uma alternativa política
madura de consensos e polícia. contornável com a composição de
em relação aos demais represen-
tantes políticos espanhóis? No entanto, esse municipalismo diferentes, o que significa deixar
não pode ser confundido com um de lado tabus, dogmas, símbolos
Bruno Cava - Ada Colau é uma sagrados. Nenhuma dessas plata-
localismo romântico, como se fos-
militante e co-organizadora do formas venceu apenas dizendo seu
se possível construir um enclave
principal movimento autônomo da nome, como se defendesse uma
de comum em meio à devastação
Espanha, que foi um dos maiores ideia ou uma bandeira.
da crise política-econômica. Isso
protagonistas do 15M. A PAH existe
já não funcionou com a Comuna Barcelona em Comum foi um es-
desde 2009 com um programa con-
de Paris, no século XIX, que dirá paço de confluência, preenchido
tra os despejos pelo não pagamen-
no momento em que a metrópole
to de prestações da casa própria. por novos movimentos como a PAH
é imediatamente atravessada por
Mas não só. É um programa de res- e as Mareas (como a Marea Bran-
processos globais de financeiriza-
gate cidadão, em meio a medidas ca, ligada à pauta da saúde), mas
ção, que fagocitam com grande fa-
de austeridade fiscal e repressão também setores ambientalistas e
cilidade áreas de “autogestão” e/
de movimentos adotadas indistin- esquerdistas, inclusive vindos de
ou “sustentabilidade”.
tamente pelas forças políticas nos setores críticos de partidos peque-
governos. Mais do que reivindicar A hipótese municipalista só tem nos como a Esquerda Unida (IU) e
ações diante dos governos e suas vigor, portanto, quando dotada de Equos, e uma capacidade fina de
falsas polarizações, a PAH constitui força de propagação, quando pu- compor com pessoas que não par-
ela própria redes de solidarieda- der ser exercitada em muitas cida- ticipavam de nenhum ativismo ou
movimento mais organizado, e que zante e centralista, operando com mar uma síntese de indignações e
estavam indignadas com a crise uma cúpula de expertos comunica- desejos numa nova força.
econômica, a corrupção e a falta dores, em busca de uma ligação sem
de perspectiva. A diferença, talvez, esteja no
mediações com o “cidadão comum”,
com maiorias sociais, com aqueles fato que nem Ada nem Manuela
O Ahora Madrid vem de um processo contrapuseram estratégia hegemo-
que, para além dos signos de esquer-
semelhante, um pouco menos estru- nista x tática de movimento, teoria
turado, de confluência entre grupos da ou direita, querem uma renova-
ção da política que reconduza a eco- do discurso hegemonista x militân-
de contestação do consenso biparti- cia “grassroots”, conseguindo assim
dário PP-PSOE sem deixar de lado a nomia a sua função social.
uma síntese mais ampla e mais po-
inovação organizativa, tais como o Então, a verticalização seria ne- tente. Por isso, o Podemos precisa
“EnRed” e o “Alternativas desde Aba- cessária, para aproveitar a opor- aprender com o 24M eleitoral para
jo”. O Ahora Madrid não tinha uma fi- tunidade histórica das eleições reorientar seus rumos na direção
gura como Ada, mas mesmo assim fez de 2015: sem uma alternativa de do que é mais potente, com vistas
uma campanha envolvente a partir poder, o Régimen não teria como
da criatividade em rede. à eleição nacional no segundo se-
ser destituído somente pelos movi-
mestre. O “poder do Podemos” é o
mentos de luta. Além disso, não é
15M em seu manancial de vitalidade
IHU On-Line - Quem são os ati- possível uma “síntese horizontal”
política e organizativa, e não uma
vistas do Guanyem e do Barcelona dos movimentos e redes, sendo
“máquina de guerra eleitoral”.
em Comum? Em que eles se dife- necessário um tipo de “cadeia de
renciam do Podemos? equivalentes” para servir de guar-
da-chuva ao espírito do 15M. IHU On-Line - Quais as implica-
Bruno Cava - O Podemos está ções de o Podemos se inspirar nas
concentrado na disputa da eleição O hegemonismo do Podemos, visões políticas do “comum” que
nacional espanhola, marcada para com essa superconcentração co-
surgiram na América Latina, como
o segundo semestre. O Podemos municativa na cúpula, seria um mal
Bolívia, Equador e Venezuela?
não participou diretamente das necessário a fim de derrotar eleito-
eleições municipais, concorrendo ralmente o bloco bipolar PP e PSOE Bruno Cava - O Podemos reivin-
apenas nas regionais (ou “auto- e ocupar o poder. Já Barcelona em dica a experiência de governos na
nômicas”). Nelas, tiveram um re- Comum e Ahora Madrid seriam mais América do Sul, como Bolívia, Equa-
sultado modesto, com uma média horizontais, mais movimentistas, dor, Paraguai e Venezuela, por onde
nacional de 12% dos votos. Depois mais fiéis à utopia do 15M, e por passaram os membros de sua cúpu- 25
de conquistar 8% dos votos nas isso menos dependentes da ocupa- la, na qualidade de pesquisadores
eleições ao Parlamento Europeu ção dos grandes meios de comu- e consultores governamentais, ao
em maio de 2014, o Podemos im- nicação e da ação conjunturalista longo da década passada. O antro-
pressionou ao tomar a dianteira de cúpulas estratégicas, a quem pólogo argentino Salvador Schavel-
nas pesquisas eleitorais, ultrapas- deveríamos conceder um mandato zon, num artigo recente, escreveu
sando PP e PSOE, oscilando na fai- excepcional e temporário, quase essencialmente que o Podemos faz
xa entre 20 e 30% das preferências. um tipo de “ditadura comissária” uma tradução cultural enviesada
Além de aderir às coalizões de Bar- da multidão, a fim de não deixar- dessas experiências. Para ele, o que
celona em Comum e Ahora Madrid, mos passar a “janela histórica” de
o Podemos contribuiu na medida há de mais inovador e democráti-
tomada do poder.
em que sua emergência no último co nas experiências constituintes
ano gerou uma onda de otimismo Essa contraposição, no entanto, sul-americanas consiste num novo
sobre a possibilidade de concorrer tem limitações claras, a situação é paradigma de desenvolvimento en-
e vencer contra os grandes parti- mais complexa do que isso. As rela- dógeno e pluridimensional, assenta-
dos. Existem semelhanças e dife- ções entre Podemos e as platafor- do sobre as lutas e modos de vida
renças entre o processo Podemos mas municipalistas são sobretudo indigenistas: o “bem viver”; bem
e os de Ahora Madrid e Barcelona de interpenetração e não de sepa- como a capacidade não de criar um
em Comum, mas nenhum dos três ração. Assim como Pablo Iglesias do poder indígena, mas de indigenizar
existiria sem o 15M, que produziu o Podemos, Barcelona em Comum e o poder, por exemplo, com a matriz
“comum” a partir do que cada um Ahora Madrid necessitaram de um boliviana da plurinacionalidade.
dos projetos hoje se apoia. rosto expressivo (Ada Colau e Ma-
nuela Carmena) para fazer conver- O Podemos levaria à experiência
Alguns analistas traçam uma di- gir a indignação e o desejo de mu- espanhola pós-15M, em vez dessa
cotomia apressada entre Podemos e dança. Todos os três convergiram riqueza cosmológica e biopolítica,
as plataformas municipalistas, a fim num programa mínimo de resgate apenas o foco no “social”, segun-
de fazer a apologia ou a condenação do uma tradição histórica populista
cidadão, sem se deixarem rotular
de um ou outro aspecto, segundo as e hegemonista da América Latina.
pelos discursos, signos e tradições
várias estratégias de composição Isto aparece, por exemplo, na au-
já existentes, à direita ou esquer-
(ou crítica) desses processos. sência de proposta plurinacional
da. E ambas as plataformas muni-
Em linhas gerais, basicamente, o cipalistas souberam driblar rótulos, para Catalunha, País Basco e Galí-
Podemos teria uma linha verticali- evitar teses defensivas, para afir- cia, assim como numa visão econô-
mica essencialmente keynesiana9 levante brasileiro da multidão de ecossistema do 15M de 2011, e que
de seu programa econômico. junho de 2013, é a mesma das re- viria, por sua vez, com quatro anos
voluções árabes. Aqui não há nenhu- de desdobramentos, impasses e
Como escrevi com Alexandre
ma “ideia fora do lugar”, nenhum encruzilhadas, propiciar a existên-
Mendes ao Le Monde Diplomatique
nivelamento despropositado, mas a cia de algo como o Podemos.
de maio, eu concordo em parte
compreensão que a dimensão global
com essa análise. O esgotamento O enigmático aqui é que o Pode-
do ciclo de lutas deriva de uma nova
do ciclo constituinte na América do mos discursivamente aponta para
composição de classe que é global - o lado exaurido desse processo
Sul não se dá, me parece, apenas
de resistência e êxodo de um capita- (governos na América do Sul, espe-
pelo esgotamento da abertura aos
lismo, que há 40 anos se apresenta cialmente o venezuelano), em vez
movimentos indigenistas, sindica-
globalizado e financeirizado. É fácil de se apoiar diretamente no 15M,
listas de novo tipo ou altermundis-
tas (como defendem, por exemplo, acusar generalizações e exigir res- que já seria um passe qualitativo
a boliviana Raquel Gutiérrez ou o peito à diferença geográfica: o difí- aos impasses das lutas globais (e
uruguaio Raúl Zibechi); como se os cil é apreender a dimensão global no do próprio Podemos). É por isso
governos “progressistas” deixaram local e vice-versa, o que o capitalis- que, paradoxalmente, qualquer
de sê-lo a partir de um determina- mo aliás faz muito bem desde pelo refundação do Podemos a fim de
do ponto. Esse esgotamento se dá, menos os anos 1970. se reenergizar para as eleições do
sobretudo, pela incapacidade de os O tecido biopolítico ultraconec- final do ano precisaria passar não
governos lidarem com uma muta- tado da metrópole energizou as apenas pela retomada do sentido
ção na composição de classe que revoluções árabes, revoluções já comum do 15M (e das revoluções
foi contemporânea aos próprios de novo tipo e que não podem ser árabes), com uma revalorização
governos e que não estava, portan- explicadas, em chave colonialis- dos círculos autônomos e novos
to, apenas no ciclo insurgente que ta, como meras revoltas pelo pão movimentos, como também por
determinou a tomada do poder. ou, em tom liberal, pela demo- uma reconsideração de sua refe-
cracia contra arcaicas ditaduras. rência sul-americana.
Para além de movimentos e iden-
tidades subalternas, que tiveram o O 15M espanhol já é, de fato e de A recente saída de Juan Carlos
seu papel parcial nesse esgotamen- direito, essa nova composição de Monedero, o podemita da cúpu-
to, este está associado também à classe mundial, contagiada desde la mais ligado ao chavismo, não
transformação da produção social a Praça Tahrir e a insurreição de pode ser encarada apenas como
26 nas condições do subdesenvolvi- Túnis. Por isso, hoje sucede um uma concessão aos ataques difa-
mento, a uma transformação que grande quiproquó interoceânico: matórios, um reconhecimento de
excedeu as instituições políticas e os indignados do Podemos fazem fraqueza diante da campanha de
econômicas com que os governos referência aos governos “progres- “desconstrução”, promovidos pelo
constituíram uma governamentali- sistas” na América do Sul no exato status quo PP-PSOE, mas como uma
dade (na acepção de Foucault). Essa momento em que estes se esgotam oportunidade, antes que seja tar-
mutação, exprimida por exemplo no enquanto poder constituinte, mas de demais, para uma refundação.
o esgotamento tem a ver, antes de Nisso, está em jogo não apenas o
9 Keynesianismo: pensamento da Escola qualquer coisa, com a afirmação de “poder do Podemos” e sua deseja-
Keynesiana. Teoria econômica consolida-
da por John Maynard Keynes, que consiste uma nova positividade do trabalho da eficácia no voto. Mas o devir de
numa organização político-econômica oposta na metrópole, uma nova composi- um inteiro ciclo global que, num
às concepções liberais. Sua base é a afirma- ção de classe frente ao capitalis- tempo crítico de embates e revira-
ção do Estado como agente indispensável de
mo global. Esta positividade bio- voltas, aguça os corações de quem
controle da economia. O objetivo é conduzir a
um sistema de pleno emprego. (Nota da IHU política é a mesma que, irrompida deseja mudar o mundo e a sua pró-
On-Line) das revoluções árabes, catalisou o pria existência nele.■
LEIA MAIS...
—— Metrópole como usina biopolítica. Artigo de Bruno Cava, publicada na revista IHU On-Line 464, de
27-04-2015, disponível em http://bit.ly/1AyAqYA
—— O lastro da crise: peemedebismo é a lógica que sustenta o PT. Entrevista com Bruno Cava, publi-
cada na revista IHU On-Line 461, de 23-03-2015, disponível em http://bit.ly/1ACnY9W
—— A esquerda e o desejo por trás do rugido da plebe. Entrevista com Bruno Cava, publicada nas No-
tícias do Dia, de 05-07-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/K1bX4l
—— A esquerda desconectada e o impasse das novas manifestações. Entrevista com Bruno Cava, publi-
cada nas Notícias do Dia, de 15-04-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/K1bX4l
—— A reeleição de Dilma e a síndrome do ‘menos pior’. Entrevista com Bruno Cava, publicada nas No-
tícias do Dia, de 29-10-2014, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1wCezcM
ARTIGO
nalidade filosófica de criar uma forma de vida é uma momento crítico desse declínio aconteceu no século
tarefa essencialmente ética. Aliás, a ética era enten- XVII, quando a razão moderna separou definitivamen-
dida como uma prática constitutiva da forma de vida te o conhecimento da ética, o saber do modo de ser.
dos sujeitos. Só há ética no modo como o sujeito cons- O que Foucault denominou de “momento cartesiano”
titui sua vida. Como consequência, esse ethos influía representaria o declínio definitivo da filosofia moderna
nas formas coletivas que os sujeitos criaram nas pólis, em sua missão de auxiliar os sujeitos a criar uma forma
política. Havia uma estreita relação entre a forma de de vida.
vida (ethos) e a forma política de governo.
Vários autores contemporâneos voltaram parte de
suas pesquisas para esta problemática da filosofia
III como forma de vida, entre eles: Pierre Hadot, Michel
Foucault, Giorgio Agamben.5 Cada um dirigiu seu olhar
A preocupação da filosofia por ajudar os sujeitos por um motivo diferente e com um objetivo específi-
a criar uma forma de vida foi desaparecendo a par- co, mas todos eles identificam na filosofia um saber
tir do século V d.C., transferindo esta tarefa para a que tem a potencialidade de constituir formas de
teologia cristã, que vinha se consolidando como um vida para os sujeitos. No caso específico de Foucault e
28 saber que adaptou a mensagem bíblica e a tradição Agamben o interesse pela filosofia como forma de vida
sapiencial oriental, própria da teologia semita, aos deve-se, também, ao fato de que estes autores per-
parâmetros da filosofia grega. A absoluta maioria dos cebem nessa potência da filosofia uma possibilidade
teólogos cristãos dos primeiros séculos eram filósofos de constituição da autonomia efetiva dos sujeitos e,
ou foram formados em escolas filosóficas, por este como consequência, uma prática que possibilite resis-
motivo a influência da filosofia na teologia cristã foi
vista como algo muito natural. Inclusive, para uma
parte significativa dos pensadores cristãos, a teologia 2011, intitulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate,
disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo
cristã, do modo como eles a estavam construindo, era biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.
vista como a culminação da filosofia clássica. Trans- ly/ihuon343, e edição 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua.
ferir para a teologia a responsabilidade por criar uma Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edi-
forma de vida foi percebido neste momento como um ção nº 13 dos Cadernos IHU em formação, disponível em http://
bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)
passo natural da filosofia. Pierre Hadot3 considera que 5 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facolta di
foi principalmente nesta transição que a filosofia de- Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College
clinou para a teologia sua originária missão de criar International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi pro-
fessor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York
uma forma de vida. Michel Foucault4 considera que o
University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo
estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, li-
3 Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos coautores do livro Dicio- teratura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais
nário de ética e Filosofia Moral (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Suas obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Ho-
pesquisas concentraram-se primeiramente nas relações entre helenis- rizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte:
mo e cristianismo, em seguida, na mística neoplatônica e na filosofia Ed. UFMG, 2005), Infância e história: destruição da experiência e
da época helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de
geral do fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em português exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A pala-
pode ser lido o livro de sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Pau- vra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
lo: Loyola, 1999). Para uma resenha da obra confira a revista Síntese 75 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-
(1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de Henrique C. de 09-2007, o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a
Lima Vaz. (Nota da IHU On-Line) entrevista Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben,
4 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, des- com o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http://bit.ly/
de a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou
pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova
do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, experiência, ética, política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Za-
rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, nin, disponível em http://bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publicação,
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida
18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06- nua: a lei política moderna, disponível para acesso em http://bit.ly/
11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06- ihuon81. (Nota da IHU On-Line)
tir aos dispositivos biopolíticos de sujeição e contro- destaca que o ponto crítico da prática do cuidado de
le que dominam nossas sociedades. Para Foucault e si se cruza com a noção de governo. Cuidar de si e
Agamben, a filosofia como forma de vida é uma prática governar-se se identificam na filosofia antiga. Cuidado
capaz de criar estilos de vida com autonomia efeti- e governo são práticas assimiladas. Aprender a cuidar
va que resista aos ingentes aparatos de domesticação de si significa saber governar-se. É clara a intersecção
social, oferecendo uma alternativa à hegemonia dos ético-política destes dois termos e suas corresponden-
dispositivos de controle das condutas e neutralizando tes práticas. Só poderá ser bom governante da pólis
o predomínio da sujeição voluntária dos indivíduos aos quem antes tenha a aprendido a governar sua vida.
apelos da maquinaria biopolítica dominante.
V
IV Epiméleia heautoû (cuidado de si)
e a forma de vida Ainda permanece a questão, o que é governar a
vida cuidando de si? Todas as escolas filosóficas an-
Foucault destacou em suas pesquisas sobre a filoso- tigas coincidem no diagnóstico, embora se diferen-
fia antiga a importância do termo epiméleia heautoû ciem no método que propõem para o cuidado de si.
(cuidado de si) como eixo central da prática filosófica Em primeiro lugar, o dilema que guia a problemática
da forma de vida na filosofia antiga. Epiméleia heau- do epiméleia heautoû é a liberdade ou a escravidão.
toû é um termo amplamente utilizado pelos diversos A pessoa tem que aprender a não ser escrava de si
filósofos gregos e romanos desde Sócrates até Santo e das influências sociais. Como alguém pode ser es-
Agostinho.6 O termo designa uma prática específica do cravo de si? Escravo é aquele que não tem vontade
sujeito sobre sua subjetividade que lhe permite cons- própria ou cuja vontade é arrastada por outras forças
tituir uma forma própria de existência. sem que ele as consiga dominar. Este é o ponto crítico
do epiméleia heautoû e do governo de si. Não tem
Tomando como exemplo a obra Alcibíades, de maior escravo que aquele que é escravo de si mesmo
Platão, encontramos o termo epiméleia heautoû porque perdeu ou não desenvolveu a capacidade de
pela primeira vez em sua forma mais elaborada. domínio de si (enkrateia).
Alcibíades é um jovem da aristocracia ateniense
que tem pretensões de atingir altos cargos de go- Os gregos distinguiam entre vício e virtude. Cha-
verno na pólis, para tanto se dirige a Sócrates, en- mavam de vício aquilo que escravizava o indivíduo,
quanto filósofo, para que lhe ajude a preparar-se virtude (areté) o que lhe dava a potência da felici-
para essa missão. Sócrates, utilizando seu método dade (eudaimonia). O vício, denominado por eles de 29
maiêutico, lhe interroga acerca do modo como ele cui- pathos ou paixão, era a força interior que domina o
da de si (epiméleia heautoû), levando-o a descobrir indivíduo conduzindo-o para formas nefastas de vida.
que não tinha nenhuma preocupação nem experiên- O vício escraviza o indivíduo impedindo-o de governar
cia prática sobre o cuidado de si. Nesse caso, alguém sua vida por si mesmo e lhe arrasta a praticar hábi-
que não sabe cuidar de si, como pretende cuidar dos tos (hexis) destrutivos de sua existência. O vício é um
outros? Ainda mais, alguém que não sabe se governar, hábito destrutivo, a virtude é um hábito construtivo.
porque não sabe cuidar de si, como pretende governar O vício é um hábito que dobra a vontade negando-a,
os outros? a virtude é um hábito que domina sobre a vontade
governando-a. Vícios como ambição, cólera, ódio,
Alcibíades chega até Sócrates cheio de vaidades pela inveja, luxúria, avareza, gula, preguiça tornam o in-
estirpe aristocrática a que pertence e pelo futuro pro- divíduo um escravo de si, por isso aqueles que não
missor que se imagina como governante de Atenas. Só- desenvolveram a virtude do domínio de si (enkrateia)
crates mostra-lhe o seu despreparo total para governar são denominados pelos vícios. De igual forma, as in-
os outros uma vez que nem aprendeu a governar-se. fluências sociais, honras, honores, riquezas, status,
Alcibíades descobre que não tem nenhuma habilidade induzem os indivíduos a influenciar-se para atingi-las
(virtude) desenvolvida no cuidado de si, por isso está sem perceber o quanto eles se submetem para conse-
sem preparo para o exercício das virtudes essenciais guir o que a sociedade almeja como melhor. Esta dupla
para o governo de sua vida e, como consequência, sem polaridade pode tornar o sujeito escravo de si e dos
capacidade para poder governar outros. apelos sociais.
Sócrates continua a questionar, mas o que é cuidar Todas as escolas filosóficas coincidem, com breves
de si? Cuidar dos bens é cuidar de si? Cuidar da casa? divergências, neste diagnóstico da escravidão e tam-
Cuidar do corpo? Tudo isso não é cuidar de si, mas cui- bém coincidem em que a filosofia tem por objetivo
dar das coisas. Então o que é cuidar de si? Foucault propiciar uma prática que possibilite a liberdade, en-
6 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, 354-430): bispo, escritor, tendendo esta como capacidade de governo de si. Há
teólogo, filósofo foi uma das figuras mais importantes no desenvolvi- consenso em todas as escolas filosóficas de que o meio
mento do cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado pelo neopla- para atingir a liberdade é a virtude, para atingir a vir-
tonismo de Plotino e criou os conceitos de pecado original e guerra
justa. Confira a entrevista concedida por Luiz Astorga à edição 421 da
tude é necessário o epiméleia heautoû. O cuidado de si
IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A disputatio de Santo Tomás é concomitante com a prática da virtude. Consegue-se
de Aquino: uma síntese dupla, disponível em http://bit.ly/ihuon421. ser virtuoso em algo se se mantém uma adequada
(Nota da IHU On-Line)
prática do cuidado de si. E vice-versa, só é possível cimento exigido era o gnôti seauton (conhece-te a ti
o epiméleia heautoû através da prática contínua da mesmo).
virtude. A diferença entre as escolas filosóficas come-
Conhecer sem praticar uma forma de vida era a
ça quando há que escolher o modo como atingir essa
negação da filosofia. Ninguém poderia se considerar
virtude e também se diferenciam na definição de qual
filósofo só porque conhecia conteúdos. Os conteúdos
a virtude mais importante para conseguir a liberdade
filosóficos deveriam conduzir a uma forma de vida
de si. No centro das diferenças filosóficas, permanece
sem a qual ninguém poderia ser denominado de filó-
a convergência de que o epiméleia heautoû é a práti-
sofo. Cada escola filosófica identificava-se pela forma
ca que define a filosofia enquanto tal e que a virtude
de vida que propunha para viver. A forma de vida qua-
é o objetivo principal do cuidado de si para atingir o
lificava a filosofia para ser filosofia e não mera ma-
governo de si.
thesis. Diferentemente da filosofia antiga, a filosofia
moderna enfatizou o valor filosófico do gnôti seauton
VI (conhece-te a ti mesmo), já que a modernidade valo-
riza o conhecer como a marca essencial da filosofia, e
Poderíamos dizer que uma virtude inicial do epimé- ignorou quase que por completo a outra dimensão da
leia heautoû é a enkrateia (poder de si, domínio de filosofia clássica epiméleia heautoû. Na filosofia clás-
si). Um primeiro objetivo do epiméleia heautoû é ha- sica estas dimensões não eram excludentes. O gnôti
bilitar o sujeito para ter o domínio de si (enkrateia) seauton é uma condição necessária para o objetivo
e conseguir não ser dominado por outros, mesmo que principal epiméleia heautoû. Porém o que determina
esse outro sejam os impulsos viciosos da natureza. se alguém é filósofo ou não é sua forma de vida, os
Esse domínio de si é uma habilidade que deverá se ensinamentos devem ser parte constitutiva do modo
transformar em hábito (hexis) para conseguir não ser de viver. Mas, se alguém ensinasse algo sem vivê-lo,
dominado pelos impulsos negativos da natureza, ví- seria denominado de retórico ou sofista, porém nun-
cios, nem pelas más influências sociais. ca de filósofo. Os debates entre sofistas e filósofos,
Os gregos, diferentemente dos modernos, tinham que se alastraram ao longo dos séculos, tinham por
a convicção de que a liberdade não era algo natural. delimitação a forma de vida destes e o descompro-
Não somos livres por natureza, temos que aprender a misso com qualquer forma de vida por parte dos so-
ser livres, para tanto é imprescindível que o sujeito se fistas. Sofista era denominado aquele pensador que
habilite na prática contínua e permanente do domínio vendia conhecimentos ou vivia dos conhecimentos fi-
30 de si (enkrateia). Sem essa virtude inicial, o indivíduo losóficos (leis, lógica, retórica,...) sem se preocupar
estará muito vulnerável às influências de todo tipo e em levar uma vida coerente com aquilo que ensinava.
será facilmente conduzido por outros ou levado pelos Pelo contrário, filósofo era aquele que, mesmo dando
impulsos mais primários. A tarefa primeira da filoso- aulas e cobrando pelo que ensinava, se esforçava por
fia, através do epiméleia heautoû, era conseguir que viver uma vida acorde com aquela filosofia que en-
o sujeito tivesse a enkrateia e através dela conseguis- sinava. Os melhores filósofos eram identificados por
se governar com autonomia sua vida, conduzindo com seu estilo de vida e não pelo discurso, por isso Só-
liberdade efetiva suas decisões a fim de construir a crates não escreveu nada. Os cínicos eram as escolas
forma de vida que escolheu viver. A liberdade era en- filosóficas que levavam a forma de vida de modo mais
tendida como capacidade de governo de si. Liberdade estrito, viviam em extrema austeridade para obter a
e governo eram dois conceitos assemelhados na filo- total liberdade, praticavam a parrésia (dizer franco e
sofia antiga. Só é livre quem tem poder e capacidade verdadeiro) sempre que tinham oportunidade e ape-
para se governar. Os estoicos levaram esta convicção nas escreviam os princípios de sua escola filosófica,
ao extremo de considerar a possibilidade de um escra- pois consideravam que a verdadeira filosofia se reali-
vo, como Epícteto, ser um exemplo de homem livre e, zava na forma de vida cínica.
vice-versa, considerar um homem livre juridicamente
um escravo de si porque não é capaz de governar seus VIII A forma de vida e a biopolítica
impulsos e vícios mais primários.
Foucault realiza a pesquisa do cuidado de si na filo-
VII sofia antiga no contexto das suas pesquisas coetâne-
as sobre biopolítica. Foucault sempre enfatizou que
O cuidado de si é uma prática ética que habilita o o método genealógico não pode nos induzir a imitar
sujeito para constituir uma forma de vida específica. o que outras pessoas e épocas fizeram, mas pode nos
O sujeito há de decidir qual a forma de vida que es- iluminar num duplo sentido. Primeiramente a genea-
colhe. Lembramos que, para os gregos, a diferença de logia nos permite construir uma consciência crítica de
nossas sociedades pós-metafísicas, a escolha pelo bem nossas verdades e discursos, sua origem histórica e seu
ou pelo mal é algo evidente que se consegue através significado no presente. Em segundo lugar, oferece-nos
da razão, a qual mostra que o bem é a virtude e o aberturas para pensar nosso presente de modo crítico
mal o vício. Por isso, a escolha do modo de vida exi- e alternativo.
gia também conhecimento (mathesis) correto, embora
não poderia se reduzir a conhecer. O primeiro conhe-
As pesquisas de Foucault sobre a ética do cuida- que nega a autonomia efetiva dos sujeitos e estimula o
do de si se conectam com a problemática biopolí- mimetismo massificador dos comportamentos. A auto-
tica no ponto crítico da sujeição do indivíduo e da nomia é só formalmente defendida já que efetivamen-
possibilidade de sua autonomia. A lógica biopolítica te se promovem modos de subjetivação de submissão
atual governa os outros através do gerenciamento de voluntária. Isso traz como consequência uma espécie
suas vontades. Os dispositivos biopolíticos visam a de totalidade sistêmica no modo de vida. O modelo
governamentalidade das condutas. Este neologismo homogeneizante dos modos de vida massificados pro-
proposto por Foucault, governamentalidade, define voca uma sensação de individualidade no contexto de
o tipo de governo como governo das vontades ou go- uma identificação cada vez mais indiferenciada de to-
verno dos outros. dos com o todo. O indivíduo massificado é governado
com docilidade. As subjetividades flexibilizadas pelos
Os dispositivos biopolíticos contemporâneos inves-
dispositivos de controle se submetem com muita doci-
tem maciçamente em produção de “subjetividades
lidade aos apelos indutores de condutas assimilando-os
flexibilizadas”. Este tipo de subjetividade adapta-se
como parte de sua própria “decisão livre”. A massifi-
com facilidade e rapidez às demandas do sistema. Por
cação tende a ser a versão moderna do súdito ou da
não cultivar a enkrateia (domínio de si), as subjeti-
sujeição voluntária.
vidades flexibilizadas são facilmente influenciáveis e,
como consequência, são governamentalizadas com
alta maleabilidade. Este modelo de subjetivação é in- IX
duzido em grande escala na nossa contemporaneidade
por uma ampla gama de dispositivos que estimulam Neste contexto de maquinaria biopolítica, entende-se
determinadas condutas e formatam comportamentos. a pertinência e a urgência de pensar formas de vida
Neste marco biopolítico, os indivíduos que se consti- que possibilitem aos sujeitos criarem uma autonomia
tuem com subjetividades flexibilizadas são alvos al- efetiva nas suas vidas. Essa autonomia não virá por
tamente vulneráveis aos apelos de propagandas, dos meras reflexões conceituais ou metaéticas transcen-
métodos de controle e das técnicas de normatização dentais, mas através da criação de práticas éticas
de condutas. que ajudem os sujeitos a criar uma forma de vida
alternativa.
Este modelo de subjetivação produz a massificação
como forma de vida. O individuo massificado tende a Nestes debates não se persegue a consecução de
reagir segundo o comportamento da maioria. No cerne uma autonomia absoluta ou a efetivação de uma li-
do indivíduo massificado opera um dispositivo mimé- berdade ideal, mas uma prática de vida que possibilite 31
tico através do qual o indivíduo tende imitar a maio- o máximo de autonomia em cada contexto histórico e
ria; sua individualidade se autoafirma ao fundir-se a prática de liberdade dos sujeitos como capacidade
nos comportamentos majoritariamente observados. A de autogovernar-se nos limites das contingências his-
massa arrasta o comportamento individual fundindo as tóricas. A autonomia sempre é uma prática possível e
decisões “livres” do seu comportamento com a imita- nunca uma totalidade dada, a liberdade apresenta-se
ção mimética da maioria. Subjetividades flexibilizadas como prática histórica que pode ampliar-se ou enco-
reagem coletivamente a modo de populações massifi- lher-se e não como um modelo transcendental a ser
cadas. O indivíduo massificado é governado como po- atingido. Do mesmo modo que não encontramos a au-
pulação cujas demandas tendem a ser induzidas, con- tonomia pura nem a liberdade total, podemos esfor-
duzidas e administradas segundo os estímulos naturais çar-nos em construir modos históricos de maior auto-
de uma espécie. Neste marco biopolítico, é possível nomia e formas práticas de mais liberdade. O que está
perceber que nas denominadas sociedades de massas em questão é a possibilidade de criar a própria vida de
rege um alto índice de sujeição voluntária. modo crítico e com poder de si (enkrateia), resistindo
à tendência hegemônica de corrosão da capacidade de
Em nossa contemporaneidade, a despeito de falar autonomia efetiva.
tanto da liberdade, nunca se criaram tantos mecanis-
mos sociais de normalização. Mesmo enunciando-se à X
exaustão que vivemos em sociedades livres, em ne-
nhuma outra época da humanidade houve uma rede Neste esboço de debate ficam abertas muitas ques-
tão densa de manipulação de condutas e indução de tões, entre elas destacamos duas: a) Quais são os cri-
comportamentos. Ainda que se proclame formal e ju- térios para definir qual é a melhor forma de vida?; b)
ridicamente que todos nascemos livres por natureza, Qual a importância do Outro numa ética que visa criar
nossas sociedades investem amplamente em mecanis- uma forma de vida própria?
mos de controle e vigilância de condutas com objetivo
de induzir os sujeitos a normatizar seus modos de vida A ética do cuidado de si e a filosofia como forma de
aos padrões requisitados pelas demandas estruturais. vida ressaltam a potencialidade e a responsabilidade
A liberdade é efetivamente corroída pelos dispositivos do sujeito em criar sua forma de vida. Para os antigos,
biopolíticos de sujeição e controle. Este modelo bio- não tinha perigo da ética do cuidado de si recair num
político de governo dos outros está produzindo, em rit- narcisismo egoísta, pois a noção de bem e de justiça
mo acelerado, uma massificação dos comportamentos eram constitutivas da razão humana e pelo raciocínio
correto se chegava ao bem, à verdade e à justiça evi- vida, ela está em franca expansão em nosso modelo
tando que o sujeito confundisse a noção de eudaimo- neoliberal. Deste modo, a problemática do cuidado de
nia com seus próprios interesses. A noção de interesse si e da forma de vida foi colonizada, também, pela
próprio, tão hegemônica na modernidade, era neu- lógica capitalista do lucro, pela utilidade do interesse
tralizada na filosofia antiga pela convicção de que o próprio e pela mercantilização biopolítica.
bem, a verdade e a justiça eram inerentes à natureza
humana e acessíveis pela reta razão. Para os antigos, o
XI
mal era, essencialmente, ignorância, pois se a pessoa
tivesse um conhecimento correto da natureza e de si
Ao nosso ver, as questões sobre o critério ético da
mesmo perceberia que ao fazer o bem faz o bem para
forma de vida e o papel do outro na ética do cuida-
si mesmo e com isso produz seu melhor interesse.
do de si estão entrelaçadas. A alteridade humana é o
A perspectiva racionalista da verdade e do bem critério ético que desde uma exterioridade interpela
ético, dominante nas sociedades antigas, está em a interioridade dos critérios do bem e do justo, lem-
profunda crise em nossa contemporaneidade. Há brando que o sujeito é uma alteridade humana para
convicção de que os valores que vivemos são nossa os outros e por isso tem a potência de definir-se como
criação e nossa responsabilidade. Somos criadores
sujeito. A alteridade humana é o limiar de referência
dos valores que decidimos viver e por isso totalmen-
para a eudaimonia do sujeito na medida em que sua
te responsáveis pelo que criamos. Esta perspectiva
própria condição humana é alteridade a partir da qual
histórica dos valores trouxe novas questões, que não
eram para os antigos, especialmente a possibilidade haverá de definir os valores mais condizentes para sua
de escorregar para um relativismo ético onde o bom realização como sujeito. Mas a alteridade interpela,
seja aquilo que melhor propaganda tem ou aquilo também, como alteridade do Outro. A realização do
que se impõe com mais força. No caso específico sujeito numa forma de vida não pode ser ao preço da
que nos ocupa, surge a questão sobre o critério ético negação do outro, como pregam as morais do interesse
para criar uma forma de vida que não se transfor- próprio e do egoísmo racional. O outro, que é condição
me num egoísmo narcisista ou em um individualismo necessária para o epiméleia heautoû (Foucault desen-
egoísta, tão em voga. volve a importância do mestre e do amigo como ou-
O relativismo ético está entre nós e coloca-nos ques- tro), é o referente ético da minha própria ação. A al-
32 tionamentos difíceis de resolver. Um exemplo concre- teridade humana é o critério ético pelo qual podemos
to atinge, inclusive, o sentido da própria noção de for- optar ou negar, porém somos responsáveis por esta pri-
ma de vida ou cuidado de si. Não é casualidade que meira opção. Se ultrapassarmos o limiar da alteridade
o modelo neoliberal de sociedade esteja empenhado humana relativizando seu valor como uma coisa a mais
em desenvolver o modelo de subjetivação individual entre as outras, estaremos abrindo as portas para a
a partir do que foi denominado “empresário de si”. barbárie, mais uma vez.
Este termo se oferece como referente ético dos novos
sujeitos liberais. Reduzir a alteridade humana a mera objetivação re-
lativa possibilita utilizar a vida humana, o outro, como
A fórmula “empresário de si” espelha a lógica bio- uma coisa útil, instrumentalizando-a como recurso
política que produz modos de subjetivação em que natural eficiente. Reconhecer seu valor em si repõe
o sujeito se catapulta a si mesmo como modelo de um critério ético, o da alteridade humana, a partir do
empresa e de negócios. Tudo na sua vida vira um em-
qual poderemos pensar em criar uma forma de vida
preendimento, uma oportunidade de negócios, uma
em que a vida humana seja inseparável de sua forma
possibilidade de lucro. O empresário de si sabe apro-
veitar todas as dimensões da vida (família, amizades, uma vez que outorgamos o valor ético da realização
lazer, afetos, encontros, etc.) em oportunidades para plena da vida como critério de uma forma de viver.
beneficiar-se. O empresário de si aprende a rentabili- A alteridade humana, repetindo que o sujeito é uma
zar todas as facetas da vida a modo de empreendimen- alteridade para os outros, é o critério ético que nos
tos e oportunidades de benefícios. A vida se torna um resta para pensarmos uma prática ética, uma forma de
campo ilimitado de empreendimentos com potenciali-
vida que procura a eudaimonia do sujeito sem recair
dade de rendimentos. Tudo está sob a ótica do negó-
num narcisismo individualista nem submeter-se a uma
cio (não-otium), nada escapa à utilidade do interesse
heteronomia autoritária.
próprio. A vida, nesta fórmula, é capturada no íntimo
da liberdade do sujeito como recurso produtivo em Estes debates acompanharão a humanidade até o fi-
toda sua potência. O paradigma de subjetivação do nal dos tempos, como corresponde ao modo aberto da
empresário de si reflete o horizonte biopolítico ao que forma de vida humana. Contudo, isso não nos exime
se pretende conduzir a totalidade da vida humana no da urgência e da responsabilidade de pensarmos alter-
modelo capitalista de produção. nativas de formas de vida que não se sujeitem volun-
O empresário de si é uma fórmula sintética da per- tariamente aos dispositivos da maquinaria biopolítica
versão mercantilista do cuidado de si como forma de dominante. ■
#DossiêVaticanoII
dium et Spes4? Como entender 1965 e 2015 é completamente ou- chama de ponto Ômega; ou seja,
essa constituição? tra, trata-se de um ponto a ser dis- uma espécie de orientação. Esta
cutido desde outro paradigma so- visão messiânica foi muito marca-
Christoph Theobald – A primei-
cial e de tempo. Este é o primeiro da pelo grupo que chamamos no
ra potencialidade de futuro de
resultado. Concílio de Igreja dos Pobres. Um
Gaudium et Spes é o fato de nos
grupo que se formou em 1962, bem
propor uma maneira de proceder,
no início do Concílio, com várias
discernindo os sinais dos tempos.
pessoas importantes e que dese-
Gaudium et Spes pela primeira vez
jou que o eixo do Concílio fosse
é um texto consciente de seu en-
voltado para a evangelização dos
raizamento histórico. O que esta-
mos dizendo aqui não é atemporal.
O Concílio Va- pobres. Não foi assim, mas influen-
ciou muito o Concílio. Dom Helder
O hoje de ontem, o hoje de hoje, ticano II foi o Câmara7 estava nesse grupo.
o hoje de ontem e de amanhã não
é o mesmo presente. Essa inter- primeiro a ser É notável que esse grupo influen-
pretação do mundo moderno e das
escrituras que precisa ser recome-
difundido pe- ciou todos os grandes textos do
çada cada vez que houver muta- las mídias de a edição 45 edição do Caderno IHU Ideias A
realidade quântica como base da visão de
ções da história na sociedade. Isso
é notável, uma espécie de consci- massa, televi- Teilhard de Chardin e uma nova concepção
da evolução biológica, disponível em http://
ência histórica e ao mesmo tempo
um método que não é pronto e
são e rádio bit.ly/1l6IWAC; a edição 78 do Cadernos de
Teologia Pública, As implicações da evolução
científica para a semântica da fé cristã, dis-
acabado. ponível em http://bit.ly/1pvlEG2; e a edição
22 do Cadernos de Teologia Pública, Terra
É preciso reconhecer, pois exis- A segunda potencialidade de fu- Habitável: um desafio para a teologia e a es-
tem elementos — e isso foi muito piritualidade cristãs, disponível em http://
turo é o que podemos chamar de bit.ly/1pvlJJL. (Nota da IHU On-Line)
discutido — que apontam para o visão messiânica do cristianismo.
inacabamento do Concílio Vatica- 7 Dom Helder Câmara (1909-1999): arce-
Ou seja, o horizonte não é somente bispo lembrado na história da Igreja Católica
no II. É preciso distinguir o método a Igreja e apenas os seres huma- no Brasil e no mundo como um grande de-
e o resultado obtido em 1965 com fensor da paz e da justiça. Foi ordenado sa-
nos presentes, mas sim, também, o
a tarefa de recomeçar esse traba-
futuro da humanidade. Mas afinal,
cerdote aos 22 anos de idade, em 1931. Aos
55 anos, foi nomeado arcebispo de Olinda e
35
lho que o Concílio realizou. O que
qual é o futuro da humanidade em Recife. Assumiu a Arquidiocese em 12-03-
demonstro5 é que a situação entre 1964, permanecendo neste cargo durante 20
todas estas mutações? É aqui que anos. Na época em que tomou posse como ar-
a tradição bíblica e judaica, em
4 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atu- cebispo em Pernambuco, o Brasil encontra-
al. Constituição pastoral, a 4ª das Constitui- particular a tradição cristã, convo- va-se em pleno domínio da ditadura militar.
Paralelamente às atividades religiosas, criou
ções do Concílio do Vaticano II. Trata funda- ca para o que Teilhard de Chardin6
mentalmente das relações entre a igreja e o projetos e organizações pastorais, destinadas
mundo onde ela está e atua. Trata-se de um pois. A Igreja no contexto das transformações a atender às comunidades do Nordeste, que
documento importante, pois significou e mar- tecnocientíficas e socioculturais da contem- viviam em situação de miséria. Dedicamos a
cou uma virada da Igreja Católica “de dentro” poraneidade está disponível em http://bit. editoria Memória da IHU On-Line número
(debruçada sobre si mesma), “para fora” ly/1LNzAr7. A íntegra da conferência será 125, de 29-11-2005, a Dom Helder Câmara,
(voltando-se para as realidades econômicas, publicada no Cadernos de Teologia Pública. publicando o artigo Helder Câmara: cartas
políticas e sociais das pessoas no seu con- (Nota da IHU On-Line) do Concílio em http://bit.ly/ihuon125. Na
texto). Inicialmente, ela constituía o famoso edição 157, de 26-09-2005, publicamos a
“esquema 13”, assim chamado por ser esse o 6 Pierre Teilhard de Chardin (1881- entrevista O Concílio, Dom Helder e a Igreja
lugar que ocupava na lista dos documentos 1955): paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta no Brasil, realizada com Ernanne Pinheiro,
estabelecida em 1964. Sofreu várias redações que rompeu fronteiras entre a ciência e a fé que pode ser lida em http://bit.ly/ihuon157.
e muitas emendas, acabando por ser votada com sua teoria evolucionista. O cinquentená- Confira, ainda, a editoria Filme da Semana da
apenas na quarta e última sessão do Concí- rio de sua morte foi lembrado no Simpósio edição 227 da IHU On-Line, 09-06-2007,
lio. O Papa Paulo VI, no dia 7 de dezembro de Internacional Terra Habitável: um desafio que comenta o documentário Dom Helder
1965, promulgou esta Constituição. Formada para a humanidade, promovido pelo IHU em Câmara – o santo rebelde. O material pode
por duas partes, constitui um todo unitário. 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU On- ser acessado em http://bit.ly/ihuon227. Veja
A primeira parte é mais doutrinária, e a se- -Line, de 09-05-2005, Teilhard de Chardin: também as entrevistas “A amizade espiritual
gunda é fundamentalmente pastoral. Sobre cientista e místico, disponível em http://bit. entre Paulo VI e Dom Helder Câmara”, dis-
a Gaudium et spes, confira o nº 124 da IHU ly/ihuon140. Veja também a edição 304, de ponível em http://bit.ly/1uFCR7r; e “Dom
On-Line, de 22-11-2004, sobre os 40 anos 17-08-2009, O futuro que advém. A evolução Helder Câmara: A síntese da melhor tradição
da Lumen Gentium, disponível em http:// e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin, espiritual da América Latina”, ambas com
bit.ly/9lFZTk, intitulada A igreja: 40 anos de em http://bit.ly/ihuon304. Confira, ainda, Ivanir Rampon e publicada nas Notícias do
Lumen Gentium. Leia também: A Gaudium et as entrevistas Chardin revela a cumplicidade Dia, de 02-11-2014 e 08-09-2013, disponível
Spes 50 anos depois e o Papa Francisco como entre o espírito e a matéria, na edição 135, em http://bit.ly/1S1nSy7. O processo de bea-
o parteiro de uma igreja global. Conferência de 05-05-2005, em http://bit.ly/ihuon135 tificação e canonização foi recentemente au-
de Massimo Faggioli publicada nas Notícias e Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, pu- torizado pelo Vaticano e iniciado na arquidio-
do Dia, de 21-05-2015, disponível em http:// blicada na edição 142, de 23-05-2005, em cese de Olinda e Recife, sobre isso leia “Dom
bit.ly/1JerEBX. (Nota da IHU On-Line) http://bit.ly/ihuon142, ambas com Waldecy Helder Câmara. Hoje é a abertura oficial do
Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, Ge- processo de beatificação e canonização”, pu-
5 A reportagem sobre a conferência de The- orge Coyne concedeu a entrevista Teilhard e blicado nas Notícias do Dia, de 03-05-2015,
obald durante o II Colóquio Internacional a teoria da evolução, disponível para down- disponível em http://bit.ly/1cL289g. (Nota
IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos de- load em http://bit.ly/ihuon143. Leia também da IHU On-Line)
Concílio. Por isso que no início de locais e caseiras, então uma diás- Francisco, que vai para além de
Gaudium et Spes temos essa fór- pora, uma dispersão. Estamos che- uma reforma da Cúria?
mula de que tudo que é humano gando cada vez mais, na Europa, Christoph Theobald – Sim. Há
tem eco no coração de um cristão e à situação de uma igreja em diás- algo muito interessante no Papa
em particular aquilo que acontece pora. E aí que surge a questão da Francisco que já tem uma história.
com os pobres. Temos aí essa visão, estrutura. O que vai contar nesse Durante o Vaticano II, Paulo VI es-
que não é integralista, englobando
teve muito sensível ao decreto so-
o mundo, e sim uma visão messi-
ânica que tenta alcançar o último bre a missão.
na sociedade. São as duas grandes Em relação à concepção da mis-
potencialidades de futuro desse são, estamos saindo de uma divi-
texto.
A incultura reli- são bipartite do mundo, de uma
parte já cristianizada e os países
IHU On-Line - É uma potenciali- giosa gera o fun- ainda em missão. Diria que temos
dade que se pode dizer que leva uma eclesiologia para os países
em conta a cultura local?
damentalismo, já cristianizados, é a Lumen Gen-
Christoph Theobald – Sim. É o o extremismo tium9, e uma eclesiologia para os
países de missão, que depende da
global e local ao mesmo tempo.
Porque já percebemos que no Vati-
e também pode Propaganda Fide e isso é Ad Gen-
cano II há uma espécie de articula- gerar violência tes10. Há, portanto, uma espécie de
desequilíbrio. Em 1975 se descobre
ção entre os dois níveis. Há uma ci-
que, por fim, todos os países são
vilização global que está nascendo.
momento? O que vai contar, em de missão, cristianizados ou não.
Ainda não pudemos perceber bem,
primeiro lugar, na linha da primeira Há um famoso texto de 1944, do
naquele momento, as ambiguida-
carta de Paulo, é o carisma de um Cardeal Suhard11, de Paris, intitula-
des dessa civilização global — o ca-
e de outros. do “França país de missão”. Então,
pitalismo, o liberalismo, também
não percebíamos a questão ecoló- devemos dizer: Europa país de mis-
A Igreja não tem que se compre- são, Ásia país de missão, América
gica, por exemplo. Ainda assim, é ender a partir da hierarquia. Ela
o global compreendido a partir do Latina país de missão... E como se
36 local. No local o menos é o que é
precisa ser compreendida a partir vê, isso aparece pela primeira vez
daquilo que Deus dá de fato a cada na Evangelii Nuntiandi.12
mais importante.
um dos fiéis. E é nessa associação
com o bem comum, o carisma, 9 Lumen Gentium (Luz dos Povos), é um
aquilo que cada um representa dos mais importantes textos do Concílio Va-
ticano II. O texto desta Constituição dogmá-
IHU On-Line - O senhor defende para o bem comum da comunida- tica foi demoradamente discutido durante a
uma mudança na estrutura ecle- de, é aí que encontramos o lugar segunda sessão do Concílio. O seu tema é a
sial? Por quê? Como? do ministério. No Vaticano II, há Igreja, enquanto instituição. Foi objeto de
muitas modificações e emendas, como, aliás,
concepções diferentes do ministé-
Christoph Theobald – Vamos, todos os documentos aprovados. Inicialmen-
antes, nos entender sobre essa rio. De um lado a concepção muito te surgiram, para o texto base, cerca de 4.000
sacerdotalizante, que nos vem do emendas. Sobre o tema, confira os Cader-
questão de mudança de estrutura. nos Teologia Pública número 4, intitulado
A hierarquia não pode existir sem Concílio de Trento8, e mais na figu- No quarentenário da Lumen Gentium. (Nota
o que Lumen gentium, capítulo ra do padre que acompanha, que da IHU On-Line)
II, chama de “povo de Deus”. E aí educa e que se preocupa com os 10 Ad gentes: em 7 de dezembro de 1965, o
está a relação com a questão an- carismas de cada um dos fiéis. É a Papa Paulo VI promulgava o decreto Ad gen-
tes, sobre a “Actividade Missionária da Igre-
terior. Ou seja, povo messiânico, garantia da unidade. ja”, um dos documentos mais relevantes e
diz o texto, que em primeiro lugar mais trabalhosos que resultaram do Concílio
é uma expressão local. Mas que IHU On-Line - Pensando assim,
Vaticano II. A ele se deve toda uma revolução
na forma de encarar e praticar a missão. E
também tem uma expressão glo- podemos dizer que essa reforma também o respeito pela cultura, pela histó-
bal. Esse povo é muito pequeno. Aí ria e pelas religiões dos povos a evangelizar.
das estruturas a que se refere
que surge a ideia, no Vaticano II, (Nota da IHU On-Line)
está relacionada à reforma de
de que esse povo está na diáspora. 11 Emmanuel Suhard Célestin (1874-
1949): foi um francês cardeal da Igreja Cató-
Em 1965, estamos saindo da cris- 8 Concílio de Trento: realizado de 1545 a lica. Serviu como arcebispo de Paris de 1940
tandade que engloba tudo e che- 1563, foi o 19º concílio ecumênico. Foi con- até sua morte, e foi elevado ao cardinalato em
vocado pelo Papa Paulo III para assegurar a
gamos a uma Igreja de muitas cé- unidade da fé (sagrada escritura histórica) e
1935. (Nota da IHU On-Line)
lulas locais. Voltamos àquela ideia a disciplina eclesiástica, no contexto da Re- 12 Evangelii Nuntiandi: exortação apos-
do Novo Testamento, de que toda forma da Igreja Católica e a reação à divisão tólica editada em 8 de dezembro de 1975 pelo
então vivida na Europa devido à Reforma Papa Paulo VI. Afirma o papel de cada cristão
a Igreja está presente num lugar.
Protestante, razão pela qual é denominado (não só os ministros ordenados, sacerdotes,
A Igreja de Corinto, Atenas, Roma como Concílio da Contrarreforma. (Nota da diáconos e, ou religiosa, ou do pessoal da
eram pequenas células. Igrejas IHU On-Line) igreja profissional) em difundir o Evangelho
A ideia de reforma está presente Podemos pensar numa ideia de a humanidade não é feita de uma,
no início do Vaticano II. A ideia de descentralização em que os conti- duas, três ou quatro gerações ha-
missão emerge progressivamente. nentes recebem uma autoridade. bitando o planeta, mas que a hu-
As duas nunca estão ligadas. Mas, A Igreja de Roma interviria como manidade é uma unidade que en-
com o Papa Francisco, há uma con- uma corte de apelação ou cassa- globa todas as gerações. Dizer isso
vergência das duas. É da missão ção. Seria um tribunal superior. é dizer implicitamente a ressurrei-
que vem a ideia de saída que per- Mas estamos longe disso. Por en- ção. Como cristão, é uma maneira
mite que a Igreja se reforme a si quanto, é utópico, pois a transfe- de representar a ressurreição. Nós
mesma. Esse é o aspecto original rência de competências é muito acreditamos que o planeta não é só
da ideia. complicada. E a Cúria está presen- para nós, mas também para as pró-
te demais no imaginário do católi- ximas gerações que nascerão e que
Tem razão ao dizer que é mais do
co. Mas observe o primeiro gesto ainda não conhecemos.
que uma simples reforma da Cúria.
do Papa Francisco, primeiro Papa Não podemos agir unicamente
Ligado a isso está a noção dos dis-
cípulos, de missionários. A comu- que vem de outro continente. Seu como se o planeta pertencesse so-
nidade é missionária, a diocese é primeiro gesto foi fazer-se acolher mente à nossa geração e que com
missionária, a Igreja não deve mais como bispo pela Igreja de Roma. nossa morte tudo acaba. Devemos
estar centrada sobre si mesma. Ela Não primeiramente como Papa, agir de modo a pensar que a terra
deve estar descentrada em direção mas primeiro como bispo de Roma. tem de permanecer para os outros.
a Cristo e à sociedade nas quais E este gesto é extraordinário, de A fé na ressurreição nos permite
está inserida. Então, para uma re- recepção, pois ele se inclinou para ver isso. Encontrar energia, a força
forma da Cúria, no centro desta, o que o povo o abençoasse como interior para mudar nossos com-
não deveria figurar a Congregação novo bispo. Só depois ele abençoou portamentos. Esta é a contribuição
para Doutrina da Fé13, e sim uma o povo. da fé cristã para a questão ecoló-
congregação para missão, o anún- gica e para essa tripla transição,
cio do Evangelho. Este é o ponto IHU On-Line - Quais suas expec- geracional, energética e ecológica.
original do Papa Francisco. tativas sobre a próxima encíclica
de Francisco, que deve tratar do IHU On-Line - De que forma o
IHU On-Line - Então, a refor- Meio Ambiente? estudo teológico incide sobre a
ma da Cúria é parte muito pe- Christoph Theobald – É um dos fé?
quena da reforma proposta por pontos decisivos que mudou des-
37
Christoph Theobald - A fé não é
Francisco? de o Vaticano II. Uma questão que algo evidente. Senão, deixaria de
Christoph Theobald – Sim. Mas, emerge, dentro de nosso sistema ser fé. Isso vale para a existência
mesmo assim, essa questão é im- capitalista neoliberal, é como vi- individual, e para que alguém viva
portante por ser simbólica. Pode- ver a transição energética e demo- toda a sua vida é preciso entender
mos entender a reforma da Cúria gráfica, duas coisas intimamente que isso valha a pena. Às vezes,
como uma simples reforma admi- relacionadas, juntamente com atravessamos situações que não
nistrativa e já tivemos algumas re- uma transição ecológica? Essa é a são fáceis e novamente nos vemos
formas da Cúria. Reforma burocrá- tripla transição. Podemos ter, aqui, diante da questão: nossa existên-
tica, redução de pessoal... Mas o cenários catastróficos. Na tradição cia tem sentido? Não podemos se-
problema é: será que a Igreja pre- bíblica, tivemos cenários apoca- parar a fé desse questionamento
cisa dessa Cúria? E aí entra outro lípticos. Jesus, de vez em quando, fundamental. É notável na enun-
problema com relação à mudança usava ameaças: “como vocês po- ciação quando lembro daquela
estrutural que é a descentraliza- dem dizer que as coisas vão melho- cena, no início de Lucas, em que
ção. A questão do local e global rar? A torre caiu sobre as pessoas, Maria é uma mulher que questio-
entra aqui. Como entender a Igreja mas também pode cair sobre vocês na. E quando ela questiona: ‘seja
a partir da Igreja universal ou com- se não se converterem”. Cenários feita de acordo com a tua palavra’.
preendê-la a partir das comunida- catastróficos não vão fazer com Mas isso supõe que ela interroga o
des e Igrejas locais? que a humanidade se converta. E aí interlocutor. Eu penso que honrar
que surge algo muito específico da a Deus é interrogá-lo. As grandes
de Jesus Cristo. (Nota da IHU On-Line) tradição cristã: é uma esperança. questões de ‘por que’, ‘até quan-
13 Congregação para a Doutrina da do’, ‘onde estás’, são vistas nas
Fé: a mais antiga das nove congregações da Qual é o desafio ecológico? Consi-
grandes figuras proféticas da tra-
Cúria Romana, um dos órgãos do Vaticano. deramos que o planeta que conhe-
Fundada pelo Papa Paulo III, em 21 de julho dição bíblica. Até a última questão
cemos hoje foi herdado por nós.
de 1542, com o objetivo de defender a Igreja de Jesus: ‘meu Deus, por que me
da heresia. É historicamente relacionada com
Somos os herdeiros e não fizemos
abandonaste?’.
a Inquisição. Até 1908, era denominada como nada por este planeta, e temos a
Sacra Congregação da Inquisição Universal responsabilidade de transmiti-lo Tento ilustrar através desses
quando passou a se chamar Santo Ofício. Em
para as gerações futuras para que exemplos que a fé sempre está em
1967, uma nova reforma, durante o pontifi-
cado de Paulo VI, mudou para o nome atual. ainda continue sendo habitável. busca de compreensão. E compre-
(Nota da IHU On-Line) Isto já é dizer implicitamente que ender não é destituir. É nos condu-
zir sempre para uma maior profun- mos nos perguntar como Jesus fez de somente na vida privada. Isso
didade do mistério da existência isso? Ele falou através de parábo- não pode funcionar. O Vaticano II
humana, do planeta no qual vive- las, que são formas complexas de não expressa apenas a liberdade
mos, e por fim do mistério de Deus. se expressar não expressam um religiosa, mas milita também pela
Essa é a tarefa da Teologia. Desde sentido moralizador simplesmente. liberdade da expressão das religi-
o Vaticano II, há uma nova tarefa ões. E quando as religiões apare-
IHU On-Line - O tema diálogo in-
para a Teologia. Vivemos numa plu- cem no espaço público, torna-se
ter-religioso é tratado no Concílio
ralidade de culturas e sempre nos muito complicado.
descobrimos diante de uma Bíblia Vaticano II e está muito presente
plural, que é uma biblioteca, que no pontificado de Francisco. Esse Surge aqui uma segunda questão:
precisamos interpretar. Interpretar é um tema ainda muito delicado a troca entre as religiões. Por isso
a Bíblia, a tradição, a pluralidade na França? Como a Igreja na Fran- que o termo diálogo inter-religioso
das culturas. Sem teologia é impos- ça conduz essa discussão? é ambíguo. Diria que se trata ini-
sível anunciar o Evangelho de ma- Christoph Theobald – É uma cialmente de diálogo cotidiano,
neira ajustada a cada cultura. Esta questão delicada, porque na Fran- entre os muçulmanos e cristãos.
é a tarefa da teologia de hoje. ça houve os acontecimentos de ja- Na minha comunidade jesuíta, a
neiro com Charlie Hebdo e há uma grande parte das pessoas que tra-
Às vezes, encontramos um movi-
mento de sentimentalização da fé. tradição laica. Há duas coisas en- balham é muçulmana. Como viver
Como se a fé fosse algo aéreo, lon- volvidas no diálogo inter-religioso. então juntos cotidianamente? Há
gínquo, distante da existência co- Em primeiro: qual é o lugar que a questões de vida que se apresen-
tidiana. Se a fé for encarnada, ela sociedade dá para a expressão das tam. Nos subúrbios parisienses,
tem uma tarefa de interpretação. religiões? Percebemos atualmen- como as pessoas vivem o dia a dia?
Isso é muito importante para aque- te que a simples distinção a que Aí que está o respeito, os cristãos
les que anunciam o Evangelho, os tende a laicidade francesa estabe- sendo convidados pelos muçulma-
pregadores, aqueles que fazem a lece entre o público e o privado, nos e vice-versa. É uma espécie de
catequese fazer teologia. É difícil pressupõe que na esfera pública hospitalidade que pode se formar
expressar o Evangelho de maneira haja ausência total do religioso, e, em longo prazo, pode transfor-
simples. Qual a dificuldade? Pode- que deve manter sua religiosida- mar as coisas. ■
38
LEIA MAIS...
—— As grandes intuições do futuro do Concílio Vaticano II: a favor de uma “gramática gera-
tiva” das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja. Cadernos de Teologia Pública,
edição 77, disponível em http://bit.ly/1RvnrLt;
—— Lumen Fidei. “Uma fé mais itinerante que doutrinal”. Entrevista com Christoph Théo-
bald, publicado em Notícias do Dia, de 13-07-2013, no sítio IHU, disponível em http://bit.
ly/1EEQrXZ
—— O cristianismo como estilo. Entrevista com Christoph Theobald, publicada na IHU On-Line
308, de 14-09-2009, disponível em http://bit.ly/1KCMT0D
—— Por uma Igreja pluripatriarcal e não somente centrada em Roma. Entrevista à edição 408
da IHU On-Line, de 12-11-2012, disponível em http://bit.ly/ZkWPmg
#DossiêVaticanoII
Pontificado de Francisco:
avanços e expectativas
A teóloga colombiana Olga Consuelo Velez analisa os avanços da Igreja com
Francisco, mas também destaca pontos que ainda precisam evoluir
Por Patrícia Fachin
IHU On-Line - Quais os aspectos O Papa Francisco, neste momen- e fala dos pobres com bastante
positivos dos dois anos do ponti- to, está jogando com uma linha força.
ficado de Francisco e acerca de dupla: por um lado, que bom que
Mas, por outro lado, o Concílio
quais pontos podem se esperar ele está dando uma imagem di-
Vaticano II já não responde aos de-
melhoras? ferente à Igreja, mas, por outro,
safios de hoje. O que se fez, se fez,
as pessoas estão amando tanto o
Olga Consuelo Velez – Em geral, agora temos de avançar. O Concí-
Papa, que parece que a Igreja é o
o Papa Francisco tem transmitido lio começa a ficar desatualizado
Papa. Eu gostaria de uma Igreja em
uma imagem de um pontificado porque agora temos uma situação
que o Papa não fosse o centro, mas
próximo, simples, preocupado com muito diferente. Se no Concílio se
que Jesus fosse o centro. Em uma
os pobres. Adota outra maneira de falou de ecumenismo e do diálogo
entrevista, Francisco disse: “não
ser, a qual não estávamos acos- inter-religioso, hoje temos de con-
digam que amam o Papa, digam
tumados, porque Bento XVI, por siderar que a maioria das pessoas
que amam Jesus”. Essa é minha
ser alemão, tinha um jeito de ser já não é mais católica, porque as
preocupação: a boa fama do Papa
alemão, mais rígido, sério. Nesse pessoas estão migrando para ou-
é boa porque precisávamos, mas
sentido, Francisco gera um impac- tras religiões ou não estão mais
acabamos novamente marcando a
to imediato em sua imagem. Todos crendo em Deus. Então, já não se
centralidade da Igreja na imagem
os gestos que ele tem feito de se trata mais de falar de uma abertu-
do Papa. Quando vamos abandonar
aproximar dos doentes, quebrar ra a outras religiões — algo que o
essa centralidade tão marcada? E
o protocolo tantas vezes, é um Concílio conseguiu; agora se trata
quando a Igreja será mais autôno-
ar fresco a uma Igreja que é tão de ver de que maneira a Igreja irá
ma? Isso não quer dizer não estar
rígida. falar num contexto de pluralismo
em articulação com Roma, porque
religioso ou pluralismo cultural. Eu
Mas falta que tudo isso se colo- justamente o papado tenta ser um
já fui a muitos encontros em que
que não somente na pessoa dele, símbolo da unidade, mas uma coisa
os indígenas dizem que não querem
mas na estrutura eclesial. Esse é é isso, e outra coisa é a dependên-
que a religião católica seja o que
o maior desafio, porque a maioria cia absoluta.
os constitui, porque querem recu-
das pessoas não tem se convertido Encontro muitos padres, bispos perar as suas próprias crenças. En-
a esse jeito dele. Elas falam para e leigos que têm uma dependência tão se trata de outro contexto. Se
observarmos o jeito do papa, fi-
40 cam contentes com o papa, mas as
absoluta do que o Papa fala. Em mi- o Vaticano II deu uma possibilidade
nhas aulas sinto isso, e, agora que de abertura, o mundo já mudou.
estruturas não mudam. Ainda não o Papa Francisco fala tanto dos po-
vi nenhum padre amigo meu que bres, aproveito para dizer aos meus IHU On-Line – Acerca de que ou-
tenha me dito para não chamá-lo alunos que antes, quando eu fala- tros pontos o Concílio não ofere-
mais de monsenhor. Não vejo os va dos pobres, eles diziam que eu ce mais respostas?
padres se perguntando a si mes- era da Teologia da libertação, mas
mos como podem se tornar mais agora não sou eu quem diz, e sim o Olga Consuelo Velez – Além
próximos, sem estar presos aos Papa. Mas eu digo isso para chamar desses que mencionei, o Concílio
títulos. atenção para a lógica com a qual não oferece resposta ao tema da
eles pensam, que é de sempre afir- mulher. Esse é um tema que está
IHU On-Line – Que tipo de mu- mar somente o que o Papa diz. pendente, porque nem o Concílio
dança estrutural você espera? tratou muito disso. Em alguns pa-
íses praticamente ainda não exis-
Olga Consuelo Velez – Mudanças IHU On-Line - Que linhas gerais
tem mulheres doutoras em teolo-
na estrutura que façam com que a do Concílio Vaticano II aparecem
gia. Não há uma possibilidade total
Igreja deixe de estar tão centra- no Pontificado de Francisco?
de sermos mais protagonistas. E o
lizada e possa ser um pouco mais Olga Consuelo Velez – O Papa Concílio não falou desse tema num
descentralizada. Eu sei que as está valorizando essa descentrali- momento em que as mulheres ha-
Conferências Episcopais de cada zação da Igreja com as Conferên- viam tomado consciência do seu
país têm certa autonomia, mas a cias Episcopais. Na Evangelii Gau- papel e de não serem, como o Papa
mentalidade não é essa. Sinto que dium, ele faz referência a muitas disse, “a cereja do bolo”. Não, nós
todas as Conferências não são ca- conferências de outros países, ou não queremos ser a cereja do bolo,
pazes de mudar nada, no sentido seja, faz suas palavras o que foi mas queremos ser iguais, estar aí
de serem autônomas, porque sua dito nas conferências. Isso é bom. partilhando com os homens. Essas
referência é sempre ao que disse E de algum modo ele retoma o uso são mudanças de mentalidade,
o papa, ou as Conferências têm do termo “povo de Deus”, que e numa sociedade em que a mu-
medo de pronunciar algo que não depois de 20 anos ficou um pouco lher quer ser o centro e a subs-
esteja de acordo com a visão de esquecido por medo que houvesse tância das coisas e não somente
Roma. Isso nos faz ter uma Igreja uma identificação com o marxis- uma participação, como a Igreja
muito dependente do papado. mo. Esse papa retoma esse termo responde a isso? Esses dias o Papa
comentou que as mulheres têm de alguns, explicitamente, tratam da Essa discussão, como eu a enten-
contribuir a partir de seu gênero mulher como protagonistas. do, ajuda que homens e mulheres
feminino, ou seja, sendo somen- recuperem o seu ser integral e, a
Se os teólogos e teólogas estão
te a “cereja do bolo”. É preciso partir daí, possam construir a Igre-
atentos aos desafios do mundo,
mudar a antropologia feminina, ja sem que as mulheres sejam de
têm de se perguntar como esta-
porque o importante para a Igreja um jeito e os homens de outro,
mos vivendo e trabalhando esses
é que a mulher tenha característi- para depois se complementarem.
desafios na teologia e aí surge a
cas próprias, enquanto os homens Ao contrário, nós somos diferen-
necessidade de fazer uma teologia
não precisam tê-las, porque o im- tes, temos nossos dons e nos com-
de gênero, uma teologia feminis-
portante para a Igreja é que nós plementamos enquanto seres hu-
ta. Surge ainda a necessidade de
mulheres possamos contribuir com fazer uma teologia que ofereça manos e não por sermos homens ou
algumas características, enquanto respostas às questões culturais, às mulheres.
para os homens a situação é dife- questões econômicas e sociais. Um Agora, não podemos esquecer
rente. Eu sinto que os homens são dos mandatos do Vaticano II é jus- que as teorias de gênero se esten-
vistos como a “base do bolo” e as tamente o de escutarmos os desa- dem a outras identidades sexuais.
mulheres são apenas o detalhe di- fios do mundo e os sofrimentos do Não sei nada disso, esse não é meu
ferente. Não tem de ser assim: os mundo. Então, se a teologia escuta campo de estudo, mas sei que é
dois devem ser a “base do bolo” e isso, passamos a fazer uma teo- uma realidade que está aí e que
o detalhe diferente. logia ameríndia, uma teologia da tampouco podemos fechar os olhos
mulher, da libertação, porque se para ela. Na Javeriana, por exem-
IHU On-Line – De onde surgiu a escutam os clamores. E esse é um plo, que é uma universidade cató-
necessidade de relacionar teolo- esforço a responder aos desafios do lica, existem professores homosse-
gia com discussão de gênero? mundo. xuais e são bons professores e nós
Olga Consuelo Velez – Isso vem somos colegas. Por isso pensamos
da sociedade, porque em uma so- IHU On-Line – Que contribui- que temos de teologizar sobre isso.
ciedade em que a mulher era su- ções essa discussão de gênero São desafios que a Igreja tem de
bordinada, todos estavam tranqui- pode oferecer à Teologia? tratar.
los, porque isso era normal, mas Olga Consuelo Velez – Que pos-
depois que a mulher conquistou e sa ser uma teologia onde homens IHU On-Line - Como o Papa está 41
reconheceu seu lugar, e quis ocu- e mulheres estejam presentes. abordando tanto as discussões de
par o lugar de igual, vieram as Agora, a palavra gênero tem muita gênero, chamando atenção para o
perguntas das feministas. Elas dis- complicação, e a Igreja tem mui- que ele denomina de “coloniza-
seram que a religião era uma das to medo dessa palavra porque, no ção de gênero”, quanto as discus-
causas de manter a subordinação fundo, essa categoria diz que as sões feministas?
das mulheres. Aí, as mulheres te- identidades sexuais são produto da Olga Consuelo Velez – A Igreja
ólogas não se tornaram feministas, cultura. Então, a Igreja tem medo tem uma postura pastoral de mi-
mas escutaram as feministas e dis- de que a partir de agora cada um sericórdia e acolhimento, e nin-
seram que sim, a religião é uma das pode escolher se quer ser homem, guém nega isso, ainda mais agora
causas dessa submissão da mulher. mulher, meio homem, meio mulher. que o Papa fala sobre o tema. Mas
E a partir do estudo da Bíblia e da
Eu acho que de fato essa palavra quando abordamos a doutrina, te-
doutrina, se concluiu que a leitu-
tem problemas, mas na origem, mos de ver que o Papa é filho de
ra da Bíblia estava invisibilizando
essa categoria analítica da socio- sua época. Além disso, a palavra
as mulheres. Então, começou-se a
logia nos chamou atenção de que gênero tem um problema para a
resgatar a imagem das mulheres.
muitos dos estereótipos atribuídos Igreja, o qual eu compreendo —
Quando estudei o catecismo, a homens e mulheres são cultu- será que por isso vou ser consi-
somente aprendíamos sobre a rais e não essenciais. Então que o derada tradicionalista? —, que
imagem dos grandes profetas, en- homem não chore é algo cultural, é a pluralidade das identidades
quanto as mulheres da Bíblia eram porque comprovamos que os ho- sexuais. Então, quando os bispos
tratadas a partir da imagem de Eva, mens querem chorar, mas ficam re- escutam essa palavra, eles devem
que comeu a maçã. Parece que as primidos porque a cultura diz que pensar que se perdeu a identida-
imagens que conhecemos são de eles não podem. Nesse sentido, a de masculina e feminina. O Papa
mulheres más. Nós não estudáva- categoria gênero, na sua origem, responde com um certo prejuízo a
mos as mulheres com tanta força e nesse ponto concordo com ela, essa questão, porque se você es-
como estudávamos os patriarcas. serve para perguntar se os estere- tudar, verá que se trata simples-
As mulheres teólogas, portanto, ótipos que se atribuem aos homens mente de uma categoria de análi-
passaram a fazer releituras das mu- e às mulheres são essenciais ou po- se das ciências sociais, a qual nos
lheres, das doutrinas, dos tratados dem mudar. Eles podem mudar e tem ajudado a dialogar com essa
teológicos e se deram conta de que de fato devem mudar. questão.
No que se refere à mulher, o Papa, Na universidade temos um curso ram. Mas, como houve problemas,
assim como muitos homens e mu- de graduação de Ciências Religio- ficou uma igreja ferida, como disse
lheres, ainda não tem claro como sas, que tem alunos de diferentes o Papa Francisco, porque muitas
falar da mulher e do homem não religiões. Claro que com um bom pessoas se equivocaram ou tiveram
como a mulher sendo algo anexo ao fundamento bíblico podemos expli- problemas e a Igreja se assustou e
homem, mas pensar que homens e car — muitos são pastores e são ca- voltou atrás, reforçando as estrutu-
mulheres são essenciais e suple- rismáticos, mas não sabem muitas ras. Então, as comunidades religio-
mentares. Na Igreja ainda se tem coisas sobre a Bíblia — e ensiná-los sas saíram aos bairros, mas como
essa mentalidade de que a mulher a estudar. Num primeiro momento, tiveram problemas e tiveram de
é suplementar a algo que falta ao eles rejeitam o que falamos, mas recuar, agora parecem ainda mais
homem. Define-se a mulher como depois, quando começam a apren- tradicionais do que antes. Como há
mãe, como esposa, como filha. A der a interpretar a Bíblia seriamen- medo, se afirmam as estruturas. Al-
pergunta seria: Por que não definir te, mudam de ideia e fazem algo gumas pessoas preferem ficar fora
o homem também como pai, como diferente. Com isso, quero dizer dessa estrutura da Igreja e buscam
esposo, como filho? Parece que o que a evangelização se dá pela via estruturas mais flexíveis, e outras
homem é simplesmente homem e do diálogo e pelo fundamento de retomam essa estrutura com mais
a mulher é sempre em relação ao mostrar o que os textos significam. força e permanecem aí porque têm
homem. Não sei se Francisco vai Às vezes nós sabemos mais da igre- segurança.
conseguir mudar essa visão, porque ja deles do que eles próprios, por-
Isso mostra que causa e efeito
ele é filho da cultura patriarcal. que eles ingressaram nas igrejas
não são tão claros e por isso temos
à medida que foram convertidos,
O Papa é um pastoralista e não de estar abertos ao que acontece
mas não porque sabem a gênese da
está fazendo doutrina. Teria de se amanhã, porque as coisas mudam
sua igreja. Quando eles estudam,
aproximar mais a teologia à refle- de forma surpreendente. Pensá-
podem ter mais clareza não para
xão pastoral e continuar com mais vamos que a religião iria acabar e
que se tornem católicos, mas para
autonomia e liberdade para falar todos virariam seculares, mas não,
que possamos ter consciência de
desses temas. Ele disse que prefere surgiram novas religiões. Depois,
que podemos aprender uns com os
uma Igreja ferida. Temos de correr pensávamos que a Igreja estava ca-
outros e fazer um caminho.
o risco de dizer algo e depois ter de minhando para um inverno eclesial,
42 recuar se for preciso. Mas às vezes
IHU On-Line – Como interpreta
mas de repente nomearam o Papa
se tenta dizer algo novo e vem uma Francisco e em dois anos parece
série de pessoas tentando calar o a queda do número de católicos que mudou a ideia de que estamos
que se disse, porque é algo escan- ou o crescimento de outras reli- no inverno. Ao menos estamos na
daloso. Eu entendo a Igreja ferida giões ou até o crescente número primavera e vamos ver se chega-
não somente como saindo para fa- de pessoas sem religião após o mos ao verão. Se o Papa continuar,
zer pastoral, mas uma Igreja que Concílio? talvez se solidifiquem algumas mu-
busca também um desenvolvimen- Olga Consuelo Velez – Esses da- danças, mas tudo pode acontecer.
to intelectual e teológico. dos mostram que o caminho do Passamos do inverno à primavera,
secularismo não seguiu uma linha e depois podemos permanecer na
IHU On-Line – Como a Igreja reta. Imaginava-se que todos iriam primavera ou voltar para o inverno.
pode dialogar com o pluralismo? ficar sem fé e aí teríamos de falar
para os sem fé. Mas não foi isso IHU On-Line – Em que sentido a
Olga Consuelo Velez – A Igreja
que aconteceu. Mudamos de fé e a Igreja agora é diferente da Igreja
deve definitivamente deixar seu
procura se dá de outro jeito. Minha comandada por Bento XVI e João
papel de se sentir protagonista,
interpretação sobre isso é de que o Paulo II? A Igreja de fato mudou ou
como se ela fosse o centro e os de-
ser humano é definitivamente reli- o que há no momento é uma ex-
mais tivessem de vir à Igreja por-
gioso e procura, a cada época, ma- pectativa em torno de mudanças
que ela tem misericórdia deles.
nifestações religiosas, e o que fica por conta da figura de Francisco?
A Igreja tem de passar a falar de
em crise são as estruturas eclesiás-
igual para igual, vendo o que pode Olga Consuelo Velez – É uma pri-
ticas. Se as igrejas não são capazes
aprender dos outros e o que pode mavera anunciada, mas não uma
de reformar suas estruturas, o pes-
oferecer a eles com gratuidade. primavera concreta. Todavia, as
soal não quer ficar em estruturas
Esse proselitismo tem de mudar, e flores não estão em todas as par-
milenares e inamovíveis.
a evangelização não pode mais ser tes. O Papa parece um ramalhete
algo como resgatar os maus que es- O Concílio fez mudanças e tentou de flores passeando pelo mundo,
tão em outras igrejas, mas dialogar abrir-se ao mundo, mas a estrutura mas nas igrejas particulares não
e aprender mutuamente. A Igreja da Igreja não mudou totalmente. sei se há tantas flores. Há uns dias
tem de ser o testemunho e a cla- Logo no início, de fato, as comu- ouvi a entrevista de um padre no
reza; não pode ser imposição, mas nidades foram para os bairros, as Peru, dizendo que a Teologia da
um fundamento. comunidades religiosas se renova- Libertação não serve para nada, o
que serve é o capitalismo, porque lavra profética frente à realidade Olga Consuelo Velez – Exata-
o capitalismo cria empresas que social e política. Romero, que será mente. Essa é a minha preocupa-
dão trabalho aos pobres do Peru. É beatificado nesta semana, justa- ção, especialmente na Igreja co-
um discurso feito no pontificado de mente é um símbolo de uma pala- lombiana. Agora, por outro lado,
Francisco. Então esse padre, que vra profética que se levanta contra o povo colombiano está contente
não é da teologia da libertação, as injustiças. Os valores de frater- com o pontificado. Mas a Igreja te-
quer desmontá-la. Não vi nenhum nidade, por exemplo, são valores ria de se perguntar por que as pes-
bispo se manifestar sobre o que humanos, porque do contrário não soas estão tão contentes.
esse padre falou. viveríamos em comunidade. A Igre-
ja tem de dar essa capacidade de IHU On-Line – Como vê o discur-
IHU On-Line – Se a Igreja ado- profetismo e de solidariedade com so de pessoas que eram contrárias
tasse uma postura de maior aber- os pobres, falar de uma presença à Igreja, e que agora manifestam
tura, isso garantiria que mais do sagrado não “nas nuvens”, mas publicamente apreço pelo Papa?
pessoas se convertessem ao cato- aqui nesta Terra, cuidando dos po-
bres e da natureza, e ser capaz de Olga Consuelo Velez – Vejo como
licismo ou que um número maior
valorizar esse mundo com mais fi- positivo, mas é uma interpelação,
de pessoas seguisse os valores do
nura evangélica. O reino de Deus porque eles teriam de dizer isso de
catolicismo?
anunciado por Jesus é isso: uma nós. É o que mais ou menos disse
Olga Consuelo Velez – Não, acho palavra profética frente à realida- Gandhi, ou seja, que gostava de
que não, porque estamos num con- de da sua época; por isso mataram Cristo, mas não do testemunho dos
texto diferente e já não temos Jesus. A Igreja tem de correr o cristãos. Isso teria de ser uma inter-
uma cosmovisão tão marcada, mas mesmo risco e anunciar a palavra pelação para nós, ou seja, como as
a Igreja seria mais testemunha; é de Jesus. pessoas gostam tanto do Papa por
isso que a Igreja tem de ser. Às ve- ele ser tão simples, por alegrar-se
zes penso que não se trata de ter com as situações simples e por ser
IHU On-Line - Como a Igre-
mais adeptos à Igreja, mas que as misericordioso. É isso que teríamos
ja na Colômbia tem recebido o
pessoas tenham referência de valo- de fazer. Onde estávamos que não
pontificado de Francisco e como
res que valem a pena serem segui- fazíamos isso? É uma vergonha para
o pontificado reflete na Igreja
dos. Então, as pessoas, embora não nós o fato de não estarmos fazendo
colombiana?
sejam ligadas à Igreja, podem ter o que o Papa faz agora. É também 43
uma referência de algo que vale a Olga Consuelo Velez – Com a um sinal de que as pessoas não es-
pena nesta vida. Com a mentalida- mesma ambiguidade que está sen- tão esperando grandes coisas, mas
de do pluralismo, não se trata de do recebido em todos os lugares que detalhes marcam uma linha
ter mais adeptos, mas de oferecer do mundo. Ninguém vai falar mal e, portanto, o Evangelho pode ser
sentido à vida das pessoas e capa- do Papa. Então a maioria das pes- significativo.
cidade de fraternidade, justiça so- soas fala bem. Mas já ouvi alguns
cial. Se a Igreja tem mais clareza padres dizendo que Francisco está IHU On-Line – Já que o Vaticano
do seu testemunho, isso será bom rompendo a tradição e nesse sen- II não responde mais aos desafios
para o mundo e é isso que interes- tido há um certo desgosto. Alguns do mundo de hoje, como deve se
sa, porque a Igreja não é feita para até dizem que se nos descuidarmos fazer teologia daqui para frente?
ela mesma. O objetivo não é que a ele nos levará ao comunismo ou ao
Igreja seja a Igreja mais poderosa marxismo. Mas isso se escuta mais Olga Consuelo Velez – Justa-
como foi no passado, mas que ela nos círculos oficiais. mente vou falar que a relação
faça bem a este mundo e que to- entre teologia e magistério atua
Por outro lado, como disse no iní- nesse círculo hermenêutico. Se
das as pessoas possam gostar desse
cio, não tenho visto nenhum padre não houvesse teólogos abertos à
bem que a Igreja irá fazer.
ou bispo dizendo que quer abdicar modernidade, o Concílio não te-
de cargos e títulos e tampouco te- ria acontecido. Mas o Concílio deu
IHU On-Line – Além dos valo- nho visto as pessoas ou os padres uma carta de cidadania à teolo-
res que a Igreja já prega, que deixando de ter seus carros mara- gia, e assim a teologia produziu o
outros ela pode vir a oferecer vilhosos. Não vejo práticas oficiais Vaticano II e pode continuar seu
neste momento de pluralismo e de que de fato a Igreja deva ser esforço de responder aos desafios
multiculturalismo? mais simples. de hoje. Temos novos campos e,
Olga Consuelo Velez – A Igreja portanto, não precisamos só fazer
não pode perder seu caráter pro- IHU On-Line – Há um entusias- memória ao Concílio, mas olhar
fético. E profético é mais que tes- mo de que o Papa faça algo e as- para frente. A teologia tem de
temunho de caridade — a Igreja suma uma postura diferente, mas continuar fazendo seu trabalho
tem muitas obras de caridade, o isso não significa que a postura porque, embora seja tão lenta a
que é muito bom —, mas a Igreja dele será adotada pelos cristãos articulação, vai se criando uma
tem muito medo de dizer uma pa- ou pelas igrejas no mundo? nova mentalidade.■
#DossiêVaticanoII
A recepção do pontificado de
Francisco no país mais secular
da América Latina
Pablo Bonavía destaca a postura do Papa ao colocar o doutrinal a “serviço do
anúncio e vivência original da fé” e a repercussão no Uruguai
Por Patrícia Fachin
IHU On-Line - Qual é a expressi- após o período do episcopado de te necessitamos voltar a sentir que
vidade da religião, e do catolicis- D. Carlos Partelli, que era o bispo todos somos sujeitos na Igreja.
mo em especial, no Uruguai? de Montevidéu, e que participou do
Tivemos um período em que o laica-
Pablo Bonavía – O catolicismo Concílio Vaticano II e de Medellín,
to se sentiu marginalizado, e o gran-
no Uruguai está num momento de veio um período de empobreci-
de desafio hoje é desenvolver uma
transição, porque vivemos um pe- mento, de incapacidade de ofere-
pastoral recorrendo aos desafios que
ríodo de certa pobreza em nível cer uma proposta para a sociedade
como um todo, e a Igreja tornou-se vêm de Francisco e também da socie-
de proposta eclesial. Houve uma dade latino-americana. Precisamos
capacidade de apresentar propos- mais autorreferencial e encerra-
da em sua dinâmica interna, com voltar a dizer a todos os integrantes
tas após Medellín, com uma pasto-
pouca capacidade de diálogo com da Igreja que eles são sujeitos e que
ral “agressiva” — no bom sentido
da palavra —, com a presença de a sociedade. Os desafios que temos suas experiências valem.
laicos e a partir de uma imagem nesse momento são grandes e a fi-
de Igreja comprometida com a dig- gura do Papa Francisco pode signi- IHU On-Line – O que significa ser
nidade do ser humano. Mas, logo ficar um estímulo, porque realmen- sujeito em diálogo com a Igreja?
Pablo Bonavía – Ser sujeito na IHU On-Line - Qual a importân- voltar a Jesus pelos Evangelhos,
Igreja significa dizer que a expe- cia de o Papa recuperar a catego- mas de uma forma contextualizada.
riência de cada pessoa e de cada ria “povo de Deus”, a qual o se-
comunidade é levada em conta e nhor sempre lembra? IHU On-Line - Qual é a diferen-
valorizada pela Igreja local e que, ça de se ter um papa mais pasto-
Pablo Bonavía – É muito impor-
por pertencerem à Igreja local, ral e menos teólogo? Que lugar a
tante recuperá-la, porque de al-
podem pertencer à Igreja univer- doutrina e a pastoral devem ocu-
guma maneira se deixou de lado
sal. Há um costume de que as or- par na Igreja?
essa categoria, porque se conside-
dens venham da autoridade, mas
rava que ela estava mesclada com Pablo Bonavía – Esse é um dos
isso pode ser invertido, porque as grandes aportes de Francisco: colo-
questões ideológicas e políticas. O
autoridades têm de saber escutar Papa volta a usar essa expressão do car o doutrinal a serviço do anúncio
não somente as pessoas que con- Vaticano II e, sobretudo, insistindo e da vivência original da fé. Não é
sideram importantes, mas também no que se chama de “sensus fidei”. que o doutrinal não tenha um pa-
o povo comum e os setores margi- Quando se diz que tem de escutar pel no sentido de precisar aquilo
nalizados da sociedade. Ser sujeito a todos os cristãos, não se diz isso que queremos. Sim, tem um lugar,
significa dizer que a experiência apenas como uma estratégia peda- mas não é um lugar principal; tem
original de cada cristão vale e que gógica, mas porque há a convicção um lugar importante de apoio, de
cada cristão não é simplesmente de que a unção e a ação do Espí- confirmar e convidar a revisar a
um soldado que acata ordens. rito Santo estão presentes em cada forma como se vive o Evangelho,
cristão e em cada grupo de cristãos. mas a vivência do Evangelho tem
IHU On-Line - Com o pontifica- E, portanto, não escutá-los significa o primeiro lugar. A pastoralidade
do de Francisco, percebe alguma não escutar o Espírito Santo. que ele vive e aplica envolve não
mudança na Igreja uruguaia e até subordinar a vida da Igreja ao dou-
mesmo um entusiasmo de uru- IHU On-Line - Como foi o pro- trinal, mas colocar o doutrinal a
guaios em se tornarem cristãos? cesso de responder aos questio- serviço do pastoral.
Como os uruguaios têm recebido nários do Sínodo Extraordinário
o pontificado? sobre a Família no Uruguai? IHU On-Line - Que avaliação faz
Pablo Bonavía – Creio que ainda do ex-governo Mujica?
Pablo Bonavía – Parece menti-
veremos se as provocações de Fran- ra, mas no momento em que uma Pablo Bonavía – O governo de Mu-
cisco e se o entusiasmo pelo carisma proposta chega a um país, o desen- jica foi um bom testemunho de al- 45
pessoal dele poderão se converter volvimento dela depende também guém que governou sem esquecer o
em uma compreensão de sua propos- da maior ou menor repercussão seu passado, sem deixar de escutar
ta de Igreja, que passa precisamente que ela tem. No Uruguai, os meses o povo, principalmente os mais po-
por sair ao encontro dos desafios da de dezembro, janeiro e fevereiro bres. A vida dele é uma mensagem
sociedade, sem prepotência. são meses de desativação de ins- positiva para a vida política. Como
tituições e comunidades, e o pri- governante, também teve suas di-
IHU On-Line - Como avalia os meiro questionário chegou nesse ficuldades, sobretudo no que se
dois anos do pontificado de Fran- momento, por isso as respostas ao refere a questionar seus objetivos
cisco? O que faz com que ele seja questionário foram respondidas de enquanto governante. Nesse senti-
aclamado por pessoas tão dife- modo apressado e não deu tempo do, ele deixou uma série de tarefas,
rentes, desde cristãos a ateus? de processá-las adequadamente. umas incompletas e outras que ain-
Que mudanças espera dele? Em relação ao segundo questioná- da precisam ser feitas. Apesar das
rio, não sei como foi a repercussão. dificuldades que teve, como qual-
Pablo Bonavía – As mudanças quer governo, ele passou a mensa-
dependem do conjunto da Igreja. gem de que hoje precisamos recu-
O Papa está nos convidando a não IHU On-Line - Quais são os dis-
perar a sensibilidade de uns para
esperar dele o que todos temos de cursos mais importantes feitos
com os outros, num mundo em que
fazer. Portanto, a melhor maneira pelo Papa Francisco nesses dois
a prática propõe a indiferença. Por
de seguir o Papa é escutar-nos uns anos?
outro lado, foi consciente de que
aos outros e, sobretudo, escutar Pablo Bonavía – Sua mensagem as necessidades de financiar seus
aqueles que não têm autoridade principal sugere voltar ao Jesus dos projetos sociais o fizeram entrar no
na Igreja. Então, o Papa está di- Evangelhos, ao elementar de Jesus, que é a vida econômica mundial.
zendo que a sua autoridade serve e isso não somente no sentido de re- Portanto, ao mesmo tempo em que
para autorizar a todos os cristãos cuperá-lo no mais original e radical proclamou uma volta ao essencial,
a tomarem suas experiências e as cristianismo, mas também de atua- se deu conta de que precisava ne-
experiências dos demais e, a par- lizá-lo e ressignificá-lo, e de pôr em gociar com grupos poderosos e que,
tir disso, viver a sinodalidade. Isso atenção o que se vive na sociedade nesse sentido, garantir trabalho
significa que as decisões na Igreja de hoje. Portanto, ele nos convida para os uruguaios implicava ter in-
devem ser tomadas sem deixar de a superar os conflitos em torno do vestimentos, e isso significava não
lado o conjunto da comunidade e Concílio, porque a principal mensa- questionar muito os custos ecológi-
das pessoas. gem do Concílio foi voltar à fonte, cos e sociais dos processos.
#DossiêVaticanoII
fessores de Antigo Testamento”. Ele lecionou História numa escola de sorri e dispara: “oh, Deus. Quem
ainda recorda que um dos primeiros Ensino Médio em Chicago. “Apren- sabe?! Não há como saber. Mas será
livros que leu como um jovem jesu- di como simplificar as coisas e me interessante”. A reação é cheia
íta foi de um dominicano francês, comunicar. Eu me dei conta de que de significados, pois ele sabe que
intitulado A Vida Intelectual (La vie conseguia fazer isso. Consegui atin- há nos Estados Unidos certa re-
intellectuelle, de A.-D. Sertillan- gir os ouvintes”, destaca. Estava, sistência à forma bergogliana de
ges). Entre os autores que o influen- assim, pela primeira vez, cristali- conduzir a Igreja. Tanto por parte
ciaram, também destaca Henri de zada sua essência de professor. “Eu do episcopado quanto na questão
Lubac2 e Karl Rahner3. sempre tive essa sensação. A sensa- política. “Por isso será interessan-
ção de que eu era professor”, recor- te a fala dele ao Congresso. Muitos
No entanto, o que O’Malley apon- da, enquanto aperta suavemente não compactuam com sua visão so-
ta como fundamental na sua for- os olhos. É um olhar de quem en- bre os pobres, a imigração, entre
mação foram os três anos em que controu o seu caminho e é feliz por outros temas”. Há católicos tanto
em 1928, ele entrou na Província de Chicago
isso. E como nunca perde o humor, entre republicanos como entre de-
da Companhia de Jesus e foi ordenado sa- logo dispara em meio a risadas: “E mocratas, embora as posições dos
cerdote em 1939. Atuou como professor du- também é só o que sei fazer”. democratas pareçam mais alinha-
rante 19 anos, no teologado jesuíta em West
Baden, Indiana, antes de se transferir para Mais tarde, foi para a Áustria das com as do Papa. Por isso, brin-
Loyola University Chicago. Deixou Loyola com o objetivo de se dedicar à ca: “quando o Papa encerrar sua
para se tornar o primeiro membro Faculdade
História da Alemanha. “Só que, fala, certamente terá muita gente
Católica na Universidade de Chicago Divinity desapontada. Seja de um lado ou
School. Após isso, ele lecionou na Universida- durante esse período, passei uma
de de Notre Dame, em Seton Hall Universi- semana na Itália e isso acabou mu- de outro”.
ty, e na Universidade DePaul. (Nota da IHU
On-Line)
dando tudo.” Sobre a Itália, não Outro ponto curioso da visita do
2 Henri de Lubac (1896-1991): teólogo je- esconde que foi seduzido pela co- Papa é com relação ao próprio pre-
suíta francês. Foi suspenso pelo Papa Pio XII. mida, a beleza natural e artística, sidente Barack Obama. O’Malley
No seu exílio intelectual, escreveu um verda- a arquitetura.
deiro poema de amor à Igreja que são as suas
considera que há um alinhamento
Méditations sur l’Eglise. Foi convidado a par- Encantado com os estudos da entre os dois. Um exemplo é a pro-
ticipar do Concílio Vaticano II como perito e
História Italiana, voltou aos Esta- posta de reforma na saúde, defen-
o Papa João Paulo II o fez cardeal no ano de
1983. É considerado um dos teólogos católi- dos Unidos, desta vez em Harvard. dida pelo presidente e, de certa
cos mais eminentes do século XX. Sua princi-
pal contribuição foi o modo de entender o fim
E, na universidade, tem como forma, apoiada por Bergoglio. No
entanto, essa reforma não é acei-
47
sobrenatural do homem e sua relação com a
“mentor” outro grande apaixonado
pela História da Itália. O resultado ta pelos bispos norte-americanos.
graça. (Nota da IHU On-Line)
3 Karl Rahner (1904-2004): importante foi sua tese de doutorado sobre um “Não sei se devo falar isso, mas
teólogo católico do século XX. Ingressou na reformador italiano da Igreja do não sei do que os bispos estão fa-
Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se lando”. Isso no sentido de que há
em Filosofia e em Teologia. Foi perito do Con- século XVI. Assim, nunca mais dei-
cílio Vaticano II e professor na Universidade xou de ser professor e historiador. crítica ao projeto com relação ao
de Münster. A sua obra teológica compõe-se controle de natalidade. “Não é um
de mais de 4 mil títulos. Suas obras principais plano perfeito. Mas pelo menos é
são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), História e “A” História algum. E ele ajuda os pobres.”
1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Pala-
vra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos
dos Estados Unidos
de Teologia). Em 2004, celebramos seu cen- A Companhia de Jesus
tenário de nascimento e a Unisinos dedicou Agora, imagine O’Malley, um ex-
à sua memória o Simpósio Internacional O pert em História Italiana, num lugar
Lugar da Teologia na Universidade do sécu- O’Malley também é profundo co-
lo XXI. Veja Karl Rahner. A busca de Deus a onde os norte-americanos conside- nhecedor da história dos jesuítas,
partir da contemporaneidade, edição 446 da ram como “A História” mais impor- tanto que escreveu a obra Os pri-
IHU On-Line, de 16-06-2014, nossa edição tante a dos Estados Unidos. “É ver-
mais recente sobre o assunto. Dez anos atrás, meiros Jesuítas (São Leopoldo/Bau-
a edição número 102 da IHU On-Line, de
dade. Valorizam demais. Até porque ru: Editora Unisinos/Editora Edusc,
24-05-2004, dedicou a matéria de capa à não falam outra língua”, brinca. 2004). Ele vê a Companhia de Jesus
memória de seu centenário, em http://bit.ly/ Mas, na realidade, gosta da História como uma ordem dentro da Igreja
maOB5H. Neste meio tempo, a edição 297,
norte-americana. O que houve com Católica, como outras tantas. No
de 15-06-2009, Karl Rahner e a ruptura do
Vaticano II, também retomou o tema e está a italiana foi uma paixão. “Achei entanto, com muitas particularida-
disponível para download em http://bit.ly/ muito mais interessante.” des. “A primeira delas é que todos
o2e8cX. Além de diversos artigos sobre o
pensamento do teólogo ao longo do tempo, os dez primeiros jesuítas, encabe-
destacamos também Cadernos Teologia Francisco nos Estados çados por Inácio de Loyola, haviam
Pública n° 5, Conceito e Missão da Teolo-
gia em Karl Rahner, do Prof. Erico Ham-
Unidos estudado na Universidade de Paris.
mes, disponível em http://bit.ly/18XbPcU. Isso é importante porque tinham a
Em 2014 a IHU On-Line publicou a edição Ao ser questionado sobre sua ex- melhor formação, de cultura mais
446 intitulada Karl Rahner. A busca de Deus pectativa quanto à visita do Papa elevada, para sua época. Não havia
a partir da contemporaneidade, disponí-
vel em http://bit.ly/112CjfG. (Nota da IHU Francisco aos Estados Unidos, outro grupo semelhante a eles”,
On-Line) O’Malley dá um profundo suspiro, explica.
Essa formação foi fundamental também foram afetados pelo Con- perceber o espírito do Concílio. Por
para fundação da Companhia. É cílio”, destaca. Isso significa que exemplo, as ações diante de outras
nessa perspectiva que se consolida foram levados a refletir sobre suas religiões, a colegialidade, entre
a visão dos jesuítas. Além disso, há origens. outros aspectos. “Claro, tem a ver
dois livros singulares para o grupo. com o Concílio, mas também com a
Para exemplificar, o professor re-
O primeiro é Os Exercícios Espiri- experiência de Bergoglio enquanto
toma o documento do Vaticano II, A
tuais, de Inácio de Loyola. “É um jesuíta”, frisa.
Igreja no Mundo de Hoje6. Os prin-
clássico. Criou um novo ministério,
cípios desse documento funcionam
o do retiro espiritual. Teve um efei-
como uma espécie de atualização O’Malley durante o
to profundo sobre os membros da Vaticano II
da própria ordem, “podendo assim
ordem, pois todos que entram na
aplicar a ideia de ‘os jesuítas’ no
Companhia têm que passar pelo re- O professor é um dos especia-
mundo de hoje e não mais como
tiro de 30 dias, ou seja, completar listas em Vaticano II, escreveu o
no século XIX, com a resistência
os exercícios espirituais”, pontua. livro What Happened at Vatican II
à modernidade, contra o mundo”.
O resultado é um estímulo para o (Harvard, 2008)7. Mas o que fazia
O’Malley reluta ao afirmar que
estado de oração, motivação e pro- durante o Concílio? “Oh, escrevia
Gaudium et Spes é o documento do
funda orientação espiritual. minha dissertação para a Univer-
Vaticano II mais importante para
O segundo livro é a Constituição os jesuítas. No entanto, reconhe- sidade de Harvard, mas estava em
dos jesuítas, redigida pelo próprio ce que é o mais significativo para Roma”, brinca. No entanto, revela
Inácio de Loyola. “É um documento a Companhia. “É simbólico, como que conseguiu sim acompanhar al-
importante, mas que é insuficien- um símbolo do que aconteceu com guns movimentos muito de perto.
temente estudado. E também não os jesuítas”, pontua. “Pude assistir às sessões públicas
havia nada comparável nas outras e também às coletivas de impren-
Relacionando ao atual pontifica- sa. Mas nunca achei que escreveria
ordens”, considera. Isso porque, na
do, lembra que Bergoglio é o pri- profissionalmente sobre o Concílio,
maioria das ordens, a constituição
meiro Papa que não participou do já que era especializado no sécu-
era formada por um conjunto de
Concílio. “Então, não tem aquelas lo XVI”. No entanto, em 1971 es-
regras. Já a Constituição dos Jesu-
memórias anteriores — e mesmo creveu o primeiro artigo sobre o
ítas tem uma progressão psicológi-
durante — do Vaticano II. E pare- Concílio. E nunca mais parou. “Em
ca, estabelece ideais e apresenta
ce ter tido ótimos professores e
48 uma certa flexibilidade. Há cláu-
captado muito bem a mensagem
2008, escrevi o livro e achei que
sulas fixas, mas há certa liberdade era suficiente. Mas depois vieram
básica do Concílio.” Isso significa os aniversários e jubileus. E aqui
“Acompanha o jesuíta desde que
dizer que a compreensão que tem estou eu no Brasil.”
entra na ordem até que professe os
da Igreja é a do Concílio Vaticano
votos. E ela pressupõe uma ideia de
II, tomando a experiência do en- Marcas do Brasil
evolução, progresso. Assim, aquilo
contro eclesial como algo dado.
que é próprio para um noviço não
Assim, a partir dele estruturan- Estando no Brasil pela primeira
é necessariamente apropriado para
do sua perspectiva. Nas ações do vez, o historiador diz que quando
um membro mais maduro.”
Papa, segundo O’Malley, é possível pensa no país não consegue disso-
O Concílio Vaticano II ciar das imagens de Francisco no
6 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atual. Rio de Janeiro. Perguntado o por-
Constituição pastoral, a 4ª das Constituições
Os jesuítas estiveram entre os quê, ele brinca: “um observador
do Concílio do Vaticano II. Trata funda-
arquitetos do Concílio Vaticano mentalmente das relações entre a igreja e o da viagem do Papa ao Rio disse
II. O’Malley destaca nomes como mundo onde ela está e atua. Trata-se de um que presenciou dois milagres: um
documento muitíssimo importante, pois sig- argentino humilde e um brasileiro
John Courtney Murray4, Henri de nificou e marcou uma virada da Igreja Cató-
Lubac, Jean Daniélou5, entre ou- lica “de dentro” (debruçada sobre si mesma),
devoto, religioso”. Esse é o jeito
tros. “Por um lado, eram os ar- “para fora” (voltando-se para as realidades John O’Malley de ser. Um senhor
quitetos do Concílio. E, por outro, econômicas, políticas e sociais das pessoas no encantador, de sorrisos largos e
seu contexto). Inicialmente, ela constituía o apaixonado por história, da atua-
famoso “esquema 13”, assim chamado por ser
4 John Courtney Murray (1904-1967): in- esse o lugar que ocupava na lista dos docu- lidade ou antiga. Nessa passagem
gressou na Companhia de Jesus em 1920. Foi mentos estabelecida em 1964. Sofreu várias pelo Brasil, terminou um livro so-
ordenado padre em 1933 e recebeu o doutora- redações e muitas emendas, acabando por bre um barco chamado Lusitânia,
do em teologia pela Universidade Gregoriana ser votada apenas na quarta e última sessão
de Roma, em 1937. Posteriormente, assumiu do Concílio. O Papa Paulo VI, no dia 7 de de-
que foi naufragado por um subma-
o teologado jesuíta em Woodstock, Maryland, zembro de 1965, promulgou esta Constitui- rino alemão na guerra. E começou
onde foi professor de teologia até a morte. ção. Formada por duas partes, constitui um outro sobre a atual suprema corte
Além disso, Murray editou a revista Ameri- todo unitário. A primeira parte é mais dou- dos Estados Unidos. ■
ca e a revista acadêmica Theological Studies. trinária, e a segunda é fundamentalmente
(Nota da IHU On-Line) pastoral. Sobre a Gaudium et spes, confira o
5 Jean Daniélou (1905-1974): foi um jesu- nº 157 da IHU On-Line, de 26-09-2005, in-
íta francês e também cardeal. Teólogo e his- titulada Há lugar para a Igreja na sociedade 7 Edição traduzida em português: O’MALLEY,
toriador, também foi membro da Académie contemporânea? Gaudium et Spes: 40 anos. John W. O Que Aconteceu No Vaticano II.
Française. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) São Paulo: Edições Loyola, 2014.
#DossiêVaticanoII
49
FOTO: João Vitor Santos/IHU
A agitação chega juntamente de religião na sociedade. “Francis- entanto, teve a aproximação atra-
com Papa Bergoglio ao Vaticano. co fala muito sobre tudo. Isso é vés dos Escoteiros Católicos, grupo
Suas ações e discursos provocam, importante porque ninguém tocava muito forte da juventude católica
imprimem outra lógica à Igreja. E nesses pontos enquanto papa. Por na Itália. Nasce aí seu interesse,
isso se dá depois de um período outro lado, isso também gera opo- que culmina academicamente na
visto por muitos como sombrio e sição”, avalia. influência de professores como
de dúvidas. Afinal, para onde vai a Giuseppe Alberigo1. “Trabalhei com
Igreja? Como atualizar essa institui- Faggioli também destaca que o
jeito Francisco de ser Papa agu- ele na Universidade de Bologna por
ção com mais de dois mil anos sem
çou a curiosidade do mundo sobre 12 anos, de 1996 a 2008”.
perder a tradição? Tais questões
não desaparecem com a chegada a Igreja. Esse interesse pode ser 1 Giuseppe Alberigo (1926-2007): histo-
de Francisco. São oxigenadas e há mensurado na própria trajetória riador da Igreja Católica e teve como mestre
Don Giuseppe Dossetti, teólogo e jurista. Foi
linhas que podem indicar cami- do historiador. Embora de família um dos fundadores da Faculdade de Ciência
nhos. Para o doutor em História da católica, Faggioli não figurava fre- Política da Universidade de Bologna. Sua
Religião, Massimo Faggioli, a Igreja quentemente nos bancos da Igreja. obra mais importante foi a direção da inicia-
tiva editorial Storia del Concilio Vaticano II
“muda de posição” com a chegada “É, minha família não era parti- (Bologna: Il Mulino, 2012). (Nota da IHU
do novo Papa. Isso reorienta a ideia cularmente religiosa”, conta. No On-Line)
E ainda há diferenças do ponto dição; Lumen Gentium, Igreja; Segundo o historiador, isso fica
de vista eclesial. Bergoglio era um Gaudium et Spes: Pastoral e a mais claro quando se observa a
jovem sacerdote quando a encícli- relação da Igreja com o mundo condução que Bergoglio faz nos
ca Humanae Vitae2 foi publicada. moderno sínodos. Pela primeira vez, bis-
Acompanhou a recepção da encícli- pos puderam se manifestar sobre
Sacrosanctum Concilium: Litur-
ca junto aos estudos que fez e não assuntos que lhes eram reais e
gia extremamente importantes.
do ponto de vista de um bispo, ou presentes. É dessas reformas que
No entanto, destaca que Francisco
de alguém já centrado em Roma. Faggioli fala. Movimentos que pa-
dá claros sinais de que Gaudium et
“Tem algo a ver com sua biografia, recem pequenos, mas têm grande
Spes3 é, para ele, a fundamental.
mas também com sua origem cul- significado. “Para fazer isso, não
“Interessante que esse documento
tural. Como historiador, diria que, precisou mudar o Direito Canônico.
é o menos citado pelo Papa Bento
para ele, a história anterior ao Va- Mas mudou todo o espírito, o cli-
XV. Isso já é uma mudança interes-
ticano II é simplesmente algo que ma”, pontua.
sante”, acrescenta.
passou. Uma situação para a qual
A maior mudança, para Faggioli,
não queríamos voltar.”
A Reforma de Francisco é o fato de estar governando sem
a cúria romana. Isso o diferencia
Vaticano II: caminho O Papa Francisco tem condições crucialmente dos dois antecesso-
para atualização de promover uma reforma sem me- res. “É o caso do Santo Ofício. Qual
xer no Direito Canônico.4 É o que sua função?”, questiona. O episó-
Passados 50 anos da conclusão do acredita Massimo Faggioli. “O Di- dio envolvendo o cardeal Müller5
Concílio Vaticano II, ainda pode- reito Canônico pode ser mudado também é significativo sob esse
mos tomar seus documentos como aos poucos. Ele já está fazendo aspecto. “O que ele disse já teve
principal via para atualização da alguma coisa. Está fazendo mu- reações. Ninguém acredita no que
Igreja? “É exatamente isto que o danças na estrutura sem dizer que disse. Ninguém acredita nele”. Na
Vaticano II é para o Papa Francis- todo pontificado se resume a esse visão do historiador, é uma tentati-
co e para a maioria dos católicos”, aspecto”. Assumir isso colocaria o va de marcar presença, “uma de-
responde Faggioli. “O Vaticano II Papa numa situação complicada, claração de impotência”.
não é um momento de criação de potencializando seus opositores.
uma nova teologia, e sim uma es- “Está em busca de reformas, mas a A Igreja nos EUA e a
pécie de síntese da experiência maioria das coisas que faz não está resistência 51
pela qual a Igreja Católica global relacionada a isso.”
estava passando. Quando fala do
Os bispos italianos têm uma boa
Vaticano II, há coisas típicas de um
aceitação de Bergoglio, na opinião
latino-americano. Mas ele fala pou- 3 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atual.
Constituição pastoral, a 4ª das Constituições de Faggioli. “Só acho que muitos
co do Vaticano II. Toma como base
do Concílio do Vaticano II. Trata fundamen- estão confusos. Acham que o que
o que a Igreja já é. E é interessante talmente das relações entre a igreja e o mun- ele está fazendo é algo ingênuo. Na
ainda observar que não tem a in- do onde ela está e atua. Trata-se de um docu-
verdade, quem não gosta simples-
tenção de rediscutir o Vaticano II mento importante, pois significou e marcou
uma virada da Igreja Católica “de dentro” mente ignora”. Claro, ignora de
ou reinterpretar questões-chave”.
(debruçada sobre si mesma) “para fora” uma forma “benigna”, como que
Com relação aos documentos (voltando-se para as realidades econômicas, tirando o foco das questões levan-
políticas e sociais das pessoas no seu con-
conciliares, Faggioli conside- texto). Inicialmente, ela constituía o famoso tadas pelo Papa. “Já nos Estados
ra as quatro constituições – Dei “esquema 13”, assim chamado por ser esse o Unidos é completamente diferen-
Verbum, Revelação divina e Tra- lugar que ocupava na lista dos documentos te”, assinala. Para ele, porque nes-
estabelecida em 1964. Sofreu várias redações
e muitas emendas, acabando por ser votada
se país o catolicismo é muito mais
2 Humanae Vitae (em português “Da vida apenas na quarta e última sessão do Concí- ideológico. “Os católicos conser-
humana”): encíclica escrita pelo Papa Paulo lio. O Papa Paulo VI, no dia 7 de dezembro de vadores votam em um partido. Já
VI. Foi publicada a 25 de Julho de 1968. In- 1965, promulgou esta Constituição. Formada os progressistas votam em outro.
clui o subtítulo Sobre a regulação da natali- por duas partes, constitui um todo unitário.
dade, descreve a postura que a Igreja Católica A primeira parte é mais doutrinária e a se- Numa divisão muito clara”.
faz em relação ao aborto e outras medidas gunda é fundamentalmente pastoral. Sobre
que se relacionam com a vida sexual humana. a Gaudium et spes, confira o nº 124 da IHU
A essência da divisão, para o
Segundo alguns geraria polêmica porque o On-Line, de 22-11-2004, sobre os 40 anos historiador, se dá porque a Igreja
Papa nela definiu que a contracepção exclusi- da Lumen Gentium, disponível em http:// nos Estados Unidos se fixou basi-
vamente por meios artificiais é proibida pelo bit.ly/9lFZTk, intitulada A igreja: 40 anos camente no debate sobre sexo,
Magistério da Igreja Católica. Leia no sítio de Lumen Gentium. (Nota da IHU On-Line)
do IHU: Martini: “Humanae Vitae” excluiu 4 Sobre o tema leia as entrevistas: O Papa que
muitas pessoas da igreja. Reportagem com deixa os livros e se volta à humanidade. En- 5 Em abril de 2015, o cardeal Gerhard Lu-
Carlo Maria Martini, publicada nas Notícias trevista com Felix Wilfred publicada na IHU dwig Müller, prefeito da Congregação para
do Dia, de 08-11-2008, disponível em http:// On-Line 465, de 18-05-2015, disponível em a Doutrina da Fé, declarou que como Bergo-
bit.ly/1SE35ks; Devemos ir além do impasse http://bit.ly/1Hydk15; e Os ouvidos abertos glio não é teólogo, a função da Congregação
da “Humanae Vitae”. Editorial da National de Francisco, depoimento de Luiz Carlos Su- é dar estrutura teológica para o pontificado.
Catholic Reporter, publicado nas Notícias do sin publicado na IHU On-Line 465, de 18-05- Confira a notícia sobre o tema publicada
Dia, de 26-01-2015, disponível em http://bit. 2015, disponível em http://bit.ly/1LLzAZA. no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1LMhuG6. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) ly/1LasZH4 (Nota da IHU On-Line)
#DossiêVaticanoII
53
Ao longo do II Colóquio Inter- inter-religioso com o que considera mais entre a relação cristão/ju-
nacional IHU – O Concílio Vatica- o maior legado do Concílio e muito deus. “Na primeira montagem do
no II: 50 anos depois. A Igreja no presente do pontificado bergoglia- documento, tratava apenas dessa
contexto das transformações tec- no: a colegialidade e o respeito às relação entre judeus e cristãos.
nocientíficas e socioculturais da diferenças nas comunidades em Mas foi aí que os bispos de outros
contemporaneidade, conferencis- que a Igreja está inserida. continentes sentiram que era pre-
tas e público entenderam a reunião ciso dizer alguma coisa sobre o bu-
Routhier lembra que, no momen-
eclesial como uma atualização da dismo, o hinduísmo, os muçulma-
to do Vaticano II, a questão do di-
Igreja. Isso porque, sob vários as- nos, outras religiões. E felizmente
álogo inter-religioso era algo novo.
pectos, traz à luz assuntos e temas o Concílio se expressou nesse sen-
“Padres e teólogos estavam mal ar-
que não era tratados de forma cla- tido”, explica.
mados, mal preparados para abor-
ra entre os católicos. Minutos antes dagens dessa questão”, destaca. E O professor destaca essa mudança
de sua conferência, Gilles Routhier, não era por menos. Pela primeira como salutar. Se a abordagem não
professor doutor da Universidade vez se reuniram bispos de diferen- tivesse sido ampliada, atualmen-
Laval do Canadá, conversou com tes continentes, que tinham muito te não se teria instrumental para
a IHU On-Line sobre alguns pontos presente no cotidiano o contato abordar o tema e encarar o momen-
do Concílio que possuem esse cará- com outras religiões. Era o caso de to em que estamos vivendo. “Claro,
ter modernizador. Nesse bate-papo bispos da Ásia, por exemplo, mas como não estavam bem preparados,
de cerca de meia hora, o profes- também da Europa. Nesse segundo o Concílio não disse tudo sobre o as-
sor relaciona temas como o diálogo caso, a preocupação se centrava sunto e também não se alcançou a
maturidade”, pontua. Porém, para ma, prossegue na tradição de João Rota para tornar a
Routhier, o mais importante dito Paulo II. “Porque, na Polônia, os Igreja viva
naquela época e que ainda serve judeus foram muito perseguidos
para hoje é que se passou a “falar e João Paulo ajudou a esconder É importante observar esse mo-
dos outros não como inimigos, mas judeus. Conhecia judeus e foi o vimento de inculturação como algo
considerando-os como membros da primeiro a entrar numa mesquita. que não impõe uma forma de reli-
família humana”. É este primeiro Também foi ele que iniciou os en- giosidade, mas sim deixa a religio-
movimento que destaca: o reconhe- contros de Assis, onde as religiões sidade, a fé, se manifestar essen-
cimento do outro. se uniram para orar pela paz.” cialmente na forma da cultura. É
diferente da ideia de catequizar.
Lacunas conciliares A novidade em É conhecer um povo e entender
Francisco como relaciona com a fé. Para Rou-
O que o Concílio deixou a desejar, thier, esse conceito tão presente
na opinião de Routhier, foi o fato Gilles Routhier reconhece os em Francisco pode ser o novo ar
de não ter pensado numa espécie avanços de Francisco em suas que deixa a Igreja viva. Isso porque
de “teologia das religiões”. Isso ações de diálogo inter-religioso. o Papa vai ao povo e os escuta, ver-
porque até não tinha o objetivo de No entanto, destaca que não é so- dadeiramente. “Ele é simples. Não
fazer isso. Lembra, por exemplo, bre esse tema que estão as maiores tem linguagem ideológica. É em
que Nostra Aetate1 não está entre inovações. O que lhe chama aten- sua autenticidade e espontaneida-
os documentos conciliares mais di- ção é a liberdade que dá aos bispos de que é possível perceber isso. Ele
vulgados. Não chegou a ser recebi- na tomada de decisão. Isso tem seu realmente quer tocar as pessoas.”
do no Canadá e nem na Europa. Foi significado. Como se as decisões
muito mais remetido à Ásia, Orien- Ainda relacionando à experiência
não partissem de Roma, mas sim do
te Médio, Índia. “Era como se não do Concílio, o professor destaca
lugar onde está o bispo, a Igreja.
dissesse respeito aos ocidentais.” que Francisco não fala muito do
É outro princípio do Vaticano II: a
Assim, é possível entender porque Vaticano II. No entanto, põe em
colegialidade. “É uma liberdade de
a teologia das religiões emergiu movimento as ideias do Concílio.
palavra e que confere mais impor-
principalmente na Índia. “O modo de agir dele está presen-
tância às conferências episcopais.”
te nos documentos do Concílio”,
Mesmo assim, o professor enten- O fato de deixar com que as de-
54 de que o Vaticano II abriu as por- cisões partam do local é, de certa
enfatiza. Significa, então, afirmar
que agora, de fato, o Vaticano II
tas para as discussões em torno de forma, respeitar a particularidade, acontece na Igreja? Para Routhier,
questões sobre o inter-religioso.
as diferentes formas de uma mesma a Igreja já mudou e algo está acon-
“Isso permitiu que, nos últimos
Igreja. Em Francisco, é o que aparece tecendo nos últimos 50 anos. As-
50 anos, progredíssemos nesse ca-
sob o conceito de inculturação da fé. sim, hoje, falamos menos em Va-
minho.” Assim, agora no mundo
“Francisco tem experiência pastoral. ticano II, mas o temos muito mais
ocidental, começou a se levar em
É um pastor que conhece a mentali- presente no modo de agir. “É exa-
conta a importância desse diálogo.
dade popular. A primeira imagem que tamente isso. Não tem que falar o
E Francisco pode ser um motivador
se tem dele é quando vai à sacada e tempo todo do Concílio, e sim agir.
para evolução dessas discussões.
faz milhares de pessoas na Praça de É isso que o Papa está fazendo.”
“Francisco sempre teve, de fato,
São Pedro orarem. Ele tem a capaci-
diálogo profundo com um rabi- Porém, considerar que age en-
dade de sentir e perceber a mentali-
no (Abraham Skorka2)”. Por outro quanto Concílio não quer dizer que
dade popular”, destaca.
lado, reconhece que, de certa for- não terá mais desafios. Para Rou-
Para Routhier, esse espírito pasto- thier, a Igreja na atualidade ainda
1 Nostra Aetate (em português, No nosso
Time): é a Declaração sobre as relações da ral se articula na ideia de colegiali- tem incontáveis desafios. “Vamos
Igreja com as religiões não cristãs-do Con- dade, na medida em que convida os ouvir falar muito na reforma da Cú-
cílio Vaticano II. Foi promulgada em 28 de bispos e padres a serem pastores e ria. E de fato precisa ser reformada.
outubro de 1965, por Papa Paulo VI. (Nota da
IHU On-Line)
se aproximarem do povo. “Quando Mas também falamos de bispos e
2 Sobre Abraham Skorka leia: “Comparti- teve encontro com bispos da Améri- padres, para que se tornem pasto-
lhamos muitos sonhos com o Papa”, ca Latina, durante viagem ao Rio de res. Está aí outro grande desafio. E
afirma rabino Skorka. Reportagem Janeiro, disse: ‘vocês têm que ser falamos de viver como cristãos num
publicada nas Notícias do Dia, de 17-01-
2014, sítio do IHU disponível em http://bit. pastores do povo de vocês’. Convida mundo secularizado. Todo desafio
ly/1ENWr0m; O sonho do rabino amigo para toda uma conversão pastoral e então está em conseguir pronun-
de Francisco. Reportagem publicada nas não somente permanecer como um ciar o Evangelho diante de todas as
Notícias do Dia, de 20-12-2013, sítio do IHU
disponível em http://bit.ly/1eLkjNu; “Em
administrador”, explica. O profes- questões políticas do mundo atual.
maio levarei Bergoglio a Jerusalém”. sor acredita que se bispos e padres E como dizer, com que linguagem.”
Entrevista com Abraham Skorka, por atenderem a esse chamado e esti- Desafio que para o professor está
Marco Politi. Reportagem publicada nas
verem “próximos de suas ovelhas”, posto a Francisco, que divide e cha-
Notícias do Dia, de 08-01-2014, sítio do IHU
disponível em http://bit.ly/1a8YBdj. (Nota poderão de fato entender e incultu- ma cada um para caminhar e buscar
da IHU On-Line) rar seu povo. a superação dos desafios. ■
#DOSSIÊVATICANOII
“Para mim, é importante perceber que as discussões, em nível teológico, de estudos científicos são muito
importantes, mas também que Francisco traz a Igreja para perto do povo. É uma busca que o povo tem de se
aproximar dessa Igreja e de Francisco. Acredito que esse seria o principal diferencial desse Papa.”
Marli Wandelbruck, funcionária do Centro de Cidadania e Ação Social da Unisinos.
“Pessoalmente eu diria que é um momento de esperança, por uma série de fatores. Pela forma como o Papa
age e fala, pela forma como ele tem conduzido a Igreja nesse período de pontificado. Ele faz com que retomemos
questões fundamentais, coloca elementos novos, mas que são da tradição antiga da Igreja, que porém também
não deixam de ser novos, como, por exemplo, a misericórdia e a acolhida, que nos estimulam muito. Naturalmente
que, entre os jovens, há diferentes posições e formas de perceber. É muito comum posturas mais conservadoras
também, que de alguma maneira enxergam com certa resistência a forma dele ser Papa nesse tempo. Mas, por ou-
tro lado, tem muita esperança, muita alegria, abertura àquilo que ele está propondo. É a minha reflexão pessoal,
mas também de muitos que nós escutamos, de que se trata de um Papa deste tempo. Portanto, aberto, de diálogo,
que se aproxima, que sabe falar a linguagem até das novas tecnologias, não só porque tem uma conta no Twitter,
mas porque tem uma linguagem que consegue atingir as pessoas. Tudo aquilo que ele faz, acaba sendo também
fato jornalístico, no sentido de que abre as pessoas para a reflexão por conta de romper com certas coisas; isso
gera a necessidade de uma reflexão, de verificar se algo era realmente fundamental ou não. Então, eu vejo com
muita esperança.”
Marciano Guerra, graduado em Teologia pela PUC-RS, atuando na Paróquia de São Marcos, Diocese de Caxias
do Sul - RS. Ele será ordenado padre no dia 29-11-2015.
“O Papa Francisco é uma agradável surpresa, é um grande sinal de esperança para uma multidão de homens e
mulheres, que talvez tenha diminuído sua presença na Igreja hoje, mas que efetivamente acredita que a Igreja
deve ser luz, sal e fermento. Ele nos estimula cada vez mais a ser uma Igreja aberta para o mundo, em diálogo
com a sociedade, revendo papéis e conceitos. Então eu só desejo que nós façamos uma grande corrente no mun-
do inteiro para apoiar as iniciativas dele, para dizer que não é só algo dele. É o desejo de tornar efetivo o projeto
de uma Igreja em diálogo com o mundo, do Concílio Vaticano II. Aqui nas discussões alguém disse que Francisco
é o primeiro Papa pós-Vaticano II, que efetivamente traz no seu coração e na sua prática as propostas do Concí-
lio. Então nós queremos somar com ele, com as comunidades, com os religiosos e religiosas, com os presbíteros
e os bispos nessa grande causa. Temos encontrado dificuldades efetivas e reais, não só o Papa Francisco tem
encontrado obstáculos na cúria romana, como nós temos encontrado nas dioceses, e nas próprias congregações
religiosas, um movimento que quer frear esse processo da Igreja com a sociedade. Mas acreditamos que isso não
só é possível, como necessário. Desafios temos muitos. Eu penso que esse congresso do IHU está nos abrindo cada
vez mais as perspectivas de esperança e a convicção de que temos que continuar encarando a mudança como
algo necessário. Transformações nas estruturas da Igreja, na nossa percepção, na forma de realizar o diálogo
com outras religiões, com outros grupos dentro da própria Igreja e com a sociedade civil.”
Afonso Murad, irmão Marista e professor de Teologia na Faculdade Jesuíta – Faje e no Instituto Santo Tomás
de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte - MG.
“Eu avalio que a figura do Papa Francisco é indubitavelmente muito positiva para a Igreja. Há, contudo, um
56 perigo de ficarmos olhando para o Papa Francisco e não conseguirmos perceber em profundidade o que as ati-
tudes dele implicam em mudanças para a nossa vida, porque mais do que um exemplo para ser admirado, ele
é um exemplo pra ser seguido. Então, eu vejo o perigo de aplaudirmos o Papa e não copiarmos no nosso dia a
dia as atitudes dele. Por exemplo, a renovação, de ir ao encontro das pessoas, conforme ele vem falando de
uma Igreja em saída. Até fizemos um discurso parecido com o dele, mas não conseguimos seguir as atitudes que
ele tem. Se a gente vai olhar hoje para os nossos seminários é ali que se encontra uma grande ala de rejeição
à figura do Papa. Porque quando ele fala em mudança, em saída, isso pode gerar uma certa instabilidade e al-
guns medos, e a nossa tendência natural é quanto mais dentro de casa ficarmos, compreendendo a Igreja e a
estrutura, mais seguros nós podemos nos sentir. Então percebo que, embora haja uma simpatia pelo que o Papa
diz, há uma dificuldade em seguir o que ele faz. Creio que a grande questão é o contato com o mundo. Aqui na
conferência se falava justamente sobre isso. O Concílio quis colocar a Igreja em consciência de que ela está no
mundo, e tudo o que acontece no mundo repercute na Igreja. Então a Igreja não fala para o mundo, trabalha
para o mundo, mas ela fala de dentro do mundo, de dentro do mundo ela trabalha, e tem que ter essa atitude de
diálogo que só é possível estando dentro da realidade. Ser cristão não é fugir do mundo, mas é entrar no mundo.
Por isso na formação dos futuros padres a gente tenta trabalhar essa parte, um profundo contato de dentro das
comunidades, com as realidades sociais também e não apenas religiosas, porque onde está o ser humano, ali é
o lugar da Igreja estar.”
Eduardo Haas, padre, reitor do Seminário São João Batista, em Viamão, Diocese de Montenegro – RS.
“Eu acho que houve uma mudança dentro desses 50 anos do Concílio Vaticano II. É possível ver que houve uma
caminhada na Igreja, claro que ainda não é uma mudança do tamanho que gostaríamos, mas no dia a dia a gente
percebe os esforços do Papa Francisco para que os fiéis acompanhem as transformações. Entretanto, essa trajetó-
ria ainda deixa muito a desejar, é preciso modificar algumas coisas na Igreja, como ampliar o diálogo e incentivar
mais a participação dos leigos no trabalho das pastorais, pois eles são uma grande força. Também acho que o papel
da mulher na Igreja poderia ser revisto, e deveria receber mais destaque. As mulheres têm um trabalho muito
importante na Igreja, que começa já nas pastorais, junto às comunidades, mas seria interessante que elas ocupas-
sem novos espaços. Tenho esperança de que o Papa Francisco examine essa realidade e dê uma resposta para as
gerações futuras.”
Maria Laura Almeida de Oliveira, teóloga e integrante da pastoral da Paróquia Santa Rita de Cássia, de Guaíba – RS.
“Acho que Francisco é um Papa moderno, que está compreendendo as coisas que ainda não foram compreen-
didas, está querendo relê-las. É um ‘Papa pé no chão’, povo, ele é um pastor, vai ao encontro das ovelhas, dos
menos favorecidos, dos pobres num sentido geral. Ele valoriza muito a mulher, o jovem e as minorias. Esse é o
grande diferencial dele. As mudanças que Francisco está propondo, aos poucos já estão refletindo nos jovens,
nos grupos que eles participam na Igreja. Eles estão mais alegres, mais despojados. Parece-me que após a vinda
do Papa ao Brasil esses jovens se soltaram, espiritualmente eles estão diferentes, até pra tratar com as pessoas.”
Terezinha de Fátima Medina, catequista de crisma da pastoral da Paróquia Santa Rita de Cássia, de Guaíba – RS.
“Basicamente olhando para o Papa Francisco, penso que ele está levando muito a sério todas as intenções do
Papa João XXIII. Eu diria que particularmente seriam três as grandes ênfases de revisitação do Concílio por parte
de Francisco. Primeiro a questão da pobreza, a Igreja que leva a sério a opção pelos pobres, não simplesmente
materiais, mas também as pobrezas espirituais. Depois, um outro aspecto é a questão da reforma. O Papa Fran-
cisco está muito preocupado com uma reforma, não só institucional, mas profundamente espiritual. A ideia de
reforma que teve início fortemente com João XXIII convocando o Concílio, também é retomada pelo Papa Fran-
cisco. E um terceiro aspecto é a colegialidade. Sem dúvida nenhuma, olhando o Papa Francisco, conseguimos
perceber essa intenção dele de trabalhar de forma colegial. Ele como Bispo de Roma, e assim ele se pronunciou
desde o primeiro dia em que foi eleito, mas também no incentivo às conferências episcopais, e a liberdade
que ele dá para o grupo dos nove que o está ajudando a governar a Igreja enquanto conselho consultivo.
Pobreza, reforma e colegialidade, segundo meu parecer, são palavras chaves para entendermos que o Papa
Francisco está profundamente em sintonia com as intuições de João XXIII e do Concílio Vaticano II.”
Fabiano dos Santos Barbosa, padre e professor do curso de teologia do Centro Salesiano de São Paulo –
UNISAL – SP.
“Para mim o Papa Francisco traz à tona todo o desejo do documento Gaudium et Spes, de uma Igreja que se
encarna na história, que não tem medo do mundo, apesar dos riscos que ela corre, porque uma Igreja que não
corre riscos não é uma Igreja do próprio Senhor Jesus. Essa é a metáfora que ele usa de uma Igreja doente ver- 57
sus uma Igreja acidentada, que corra riscos, que vá para as periferias existenciais e geográficas, para que possa
levar a misericórdia, a alegria do Evangelho. Então nesse sentido me parece que ele é um autêntico herdeiro do
Concílio Vaticano II, por conta do seu gesto, da sua fala bem centrados na Gaudium et Spes, e isso me parece ser
a grande atualização do Concílio hoje com o Papa Francisco.”
Sérgio Ricardo Coutinho, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura e do curso de Serviço
Social do Centro Universitário IESB, em Brasília - DF.
“Acho que o pontificado do Francisco está sendo muito interessante pela quebra do estilo monárquico. Em ma-
téria de estética e de governo da Igreja, ele está aplicando o que o Concílio Vaticano II chama de povo de Deus. Se
entende o Papa não mais como um monarca, um soberano, mas como um grande Bispo que governa e ajuda a Igreja
a crescer na fidelidade ao Evangelho. Esse esquema é totalmente novo, e isso está surgindo totalmente a partir
de Francisco. Ele é o primeiro Papa que não esteve no Concílio, mas é o primeiro a aplicar o Concílio na prática.”
Paulo Fernando Dala Dea, professor de Filosofia da Universidade UNESP – SP.
“O primeiro e grande desafio desse papado é que a Igreja abra os olhos de novo, como o Papa vem fazendo,
para as grandes angústias do mundo de hoje. Questões como o tema da guerra, e Francisco tem se empenhado
para que converse quem não conversava, como foi Cuba e os Estados Unidos, e a mesma coisa com o Oriente, Irã
e Síria; e a acolhida aos imigrantes, que passam por momentos trágicos, como o caso de Lampedusa. Então ele
está convocando a Igreja para que ela se debruce sobre o grito dos pobres, que ela se torne protagonista ativa
em favor da justiça e da paz, acho que esse é o grande desafio. Depois chama para uma Igreja de misericórdia,
para fora e para dentro, que faça com que as pessoas voltem com alegria no coração. A sua primeira exortação,
Alegria do Evangelho, conecta-se com o discurso de abertura do Concílio, que também fala da alegria, Gaudet
mater ecclesia — Que se alegre a mãe Igreja. Então, tanto João XXIII quanto Francisco fazem essa ligação. Em
um lugar que é alegre, aberto, misericordioso, compassivo e justo você tem gosto de ficar.”
José Oscar Beozzo, padre, teólogo, doutor em História Social, coordenador geral do Centro Ecumênico de
Serviços à Evangelização e Educação Popular – Cesep e integrante do Centro de Estudos de História da Igreja
na América Latina – CEHILA/Brasil. ■
#DOSSIÊVATICANOII
“Eu agradeceria a ele a ligação que fez para mim, e diria a ele que continuasse nessa busca de abertura ao
diálogo inter-religioso. Na própria Evangelii Gaudium ele salienta uma Igreja muito próxima das pessoas, uma
Igreja em saída. Então eu diria que essa é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, uma Igreja próxima das pessoas,
que está atenta à necessidade do outro. Ele diz que quando nós vamos em busca do outro, nós não sabemos como
vamos encontrá-lo, então por isso sempre devemos ter uma palavra de consolo, saber escutar e saber falar. Eu
diria a ele para continuar sempre renovando, apesar de ele não trazer essencialmente nada de novo, o que ele
faz de fato é colocar em prática o Vaticano II, que representa uma Igreja aberta e atenta aos apelos do outro e
do mundo contemporâneo.”
Jordan Carvalho, teólogo, pré-noviço Lassalista da Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs, em Porto
Alegre – RS.
“Papa Francisco, estou muito feliz com a sua ligação, me sinto privilegiada e lisonjeada. Também quero lhe agra-
decer pela sua missão profética. Nós estamos aqui no colóquio em São Leopoldo, retomando o documento Gaudium
et Spes, e nesse momento oportuno de sua ligação me deixa muito mais feliz.”
Carmélia Chaves Soares dos Santos – estudante de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e
Catequista da Paróquia São Carlos, em Curitiba – PR.
“Primeiramente eu agradeceria pelo testemunho que ele é, com certeza um exemplo de pessoa, de cris-
tão, que nos inspira enquanto religiosos e católicos. Também diria pra ele que a Igreja se aproximasse mais
dos jovens, e que se fizesse o esforço de trazer esses jovens para a Igreja, fazendo esse duplo movimento
de aproximação. Isso significa talvez mexer na própria liturgia, na forma de culto e celebração para atrair
a juventude, que sabemos que também é responsável pelas mudanças e por esse diálogo com a cultura.”
Marcelo Cesar Salami, irmão Lassalista, em Porto Alegre – RS.
“Se eu recebesse uma ligação do Papa eu ficaria muito feliz e diria a ele que estamos aqui no colóquio reto-
mando a Gaudium et Spes e seguindo as suas orientações, vivenciando o que ele está propondo para a Igreja
hoje, para toda a sociedade e para a transformação de mentalidades, principalmente a respeito da nossa visão
sobre aquelas pessoas mais necessitadas, os excluídos, porque é aí que temos que alimentar e suscitar a vida.”
Vilma Tereza Rech, irmã Pastorinha e integrante da coordenação do setor de animação bíblico catequética
da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, regional 3, em Porto Alegre – RS.
“Eu agradeceria a revolução que ele vem fazendo na Igreja. São necessárias mudanças, e abertura da Igre-
ja, para que ela entre em diálogo com outras vozes, outras religiões e até mesmo com outras ramificações
cristãs. Então essa é uma grande revolução que o Papa Francisco vem fazendo na Igreja, que é alegria não
só para os católicos, mas para os cristãos de outras denominações e também para fiéis de outras religiões.
Ele vem fazendo esse diálogo muito aberto.”
Leandro Sousa Brito, teólogo, pré-noviço Lassalista da Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs, em Porto
Alegre – RS. ■
LEIA MAIS...
—— A matéria que inspirou a reportagem é intitulada “Cinco minutos com o Papa Francisco. O
que você diria?”, publicada nas Notícias do Dia, de 19-05-2015, no sítio do IHU, disponível
em http://bit.ly/1GRsxhU.
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#DOSSIÊVATICANOII
As complexidades contemporâneas
abertas pela chave da teologia
Por Ricardo Machado | Foto: João Vitor Santos
são o novo olhar eclesial, um novo ao ler os documentos do Vatica- Bíblia não ilumina apenas a dou-
olhar social, um novo olhar sobre no II é que se está navegando em trina, mas deita o olhar sobre a
a história, um novo fundamento da um mar tranquilo. “Imediatamen- sociedade que oferece os temas
teologia cristã. A opção pelos po- te após o Concílio começaram as que devem ser iluminados por
bres é o novo paradigma teológi- críticas. Isso fica evidente quando ela. O estudo da sagrada escritu-
co”, defende a professora. lemos os documentos da Congre- ra deve ser a alma da teologia,
gação da Doutrina da Fé e, mes-
Olga chamou atenção para o fato e o próprio sentido metafórico da
mo na prática, na forma como as
de que ainda há muita resistência palavra alma é respiração, a Bí-
pessoas que buscaram novos ca-
ao que foi proposto pelo Vaticano blia é a respiração da teologia”,
minhos foram torpedeadas”, re-
II, e que a sua impressão é de que complementa.
toma Hammes.
a mentalidade entre os estudan-
tes de teologia é a do Vaticano I. Para Hammes uma nova forma Ao repensar a importância da
“Ouvi recentemente de um padre possível de fazer teologia passa Bíblia às análises prospectivas
do Peru, que falava contra a Teo- pela transformação dos padres. da teologia, Konings sugere que
logia da Libertação, que a Igreja “Os alunos (de teologia) devem ser se faça uma leitura mais herme-
deveria fortalecer o capitalismo, levados a conhecer melhor as Igre- nêutica e menos argumentativa.
porque o capitalismo gera empresa jas e as Instituições cristãs. Uma “Fazer uso da Bíblia para empo-
e a empresa gera emprego”, recor- característica de destaque da te- derar determinadas teses teoló-
da Olga. “Por isso nosso desafio de ologia pós-conciliar é a aprendiza- gicas não faz jus ao sentido de
conversão é constante e seria bom gem da teologia a partir de outras ouvir palavra, portanto deixe-a
que fosse uma conversão atenta religiões”, frisa.
falar por si mesmo, no sentido
ao pluralismo cultural, religioso e
da teologia com outras ciências”, da memória que Deus fez com
Sentido vivo seu povo”, indica o teólogo. “A
sugere.
“No Concílio coloca-se a Bíblia obediência da palavra não pode
Miragem do mar em relação com a liturgia, o que se basear somente no estudo da
tranquilo dá um lugar de honra à Bíblia. En- letra, mas em ouvir o mundo, que
tão a renovação litúrgica deverá é, ao mesmo tempo, o destinatá-
De acordo com Erico Hammes, ter a primazia na escuta da pa- rio e quem dá um sentido vivo aos 61
uma falsa impressão que se tem lavra”, propõe Johan Konings. “A textos”, analisa. ■
NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR
#DOSSIÊVATICANOII
Cobertura Colóquio
Entre os dias 19 e 22 de maio, a IHU On-Line acompanhou as conferências e mesas
de debate do II Colóquio Internacional IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos
depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais
da contemporaneidade. Confira trechos das reportagens publicadas no sítio IHU
durante o evento.
Vaticano II: a crise, 11 de outubro de 1962 pelo Papa ca. Para ele, muitas das mudanças
a resolução, o fator João XXIII. Seu modo de condução que temos presenciado desde sua
era pautado pela compaixão, mise- escolha em março de 2013 es-
Francisco. Conferência
ricórdia e amor. “Um evento com- tão relacionadas com o papel da
com John O’Malley plexo assim não pode ser resumido Gaudium et Spes, a constituição
a uma palavra e fórmula simplista. pastoral sobre a Igreja no mundo
Vivemos um tempo forte na nos-
Os documentos do Concílio formam moderno. “Agora está claro que o
sa igreja, que começou com a va-
uma unidade coerente, e alguns pontificado do Papa Francisco pro-
cância da sede episcopal de Roma,
temas e orientações o atravessam duziu uma das mais surpreendentes
quando Bento XVI renunciou, em como fios condutores. Tais docu- inversões de destinos referentes ao
fevereiro de 2013. Desde então, a mentos transmitem uma mensa- legado teológico de um concílio
Igreja retoma pontos e tópicos da gem maior do que seus documentos
agenda pós Concílio Vaticano II, ecumênico, e isso se aplica espe-
62 obnubilados no debate da recep-
pensados isoladamente”, observou
O’Malley.
cialmente à constituição pastoral
ção conciliar nos últimos 25 ou 30 Gaudium et Spes, cuja história no
anos. As observações são do Prof. Lei mais em http://bit.ly/1FRILa6 Vaticano II e cuja recepção após
Dr. Marcelo Fernandes de Aquino, o Vaticano II são particularmente
SJ, reitor da Unisinos, na abertura A Gaudium et Spes 50 significativas para entender todo o
Vaticano II.”
solene do II Colóquio Internacional anos depois e o Papa
IHU – O Concílio Vaticano II: 50 anos Francisco como o Documento que ficou pratica-
depois. A Igreja no contexto das parteiro de uma igreja mente “esquecido” durante o
transformações tecnocientíficas e papado de Bento XVI, a Gaudium
global. Conferência de
socioculturais da contemporanei- et Spes é citada com frequên-
dade, na manhã de 19 de maio, no Massimo Faggioli
cia pelo Papa Francisco. “Não há
Auditório Central da Unisinos. muita dúvida de que a constitui-
“Gaudium et Spes” 50 anos de-
Em seguida o historiador norte- pois: seu sentido para uma Igreja ção pastoral é o documento-chave
-americano John O’Malley, SJ, um aprendente foi o tema da con- do Vaticano II para orientar nossa
dos nomes mundialmente reconhe- ferência de Massimo Faggioli na compreensão do Papa Francisco e
cidos na historiografia da Igreja, manhã de 20-05-2015. Professor sua relação tanto com o próprio
professor na Universidade de Ge- na University of St. Thomas, nos Concílio quanto com o período
orgetown, em Washington, iniciou Estados Unidos, o historiador ita- pós-conciliar. O renascimento de
sua conferência Concílio Vaticano liano iniciou sua fala no II Colóquio Gaudium et Spes é visível em tudo
II: Crise, Resolução, Conclusão. Se- Internacional IHU – O Concílio Va- que ele diz e faz, e especialmen-
gundo ele, Francisco é o primeiro ticano II: 50 anos depois. A Igreja te em seus dois mais importantes
papa em 50 anos que não partici- no contexto das transformações atos: no título do mais importante
pou do Concílio Vaticano II. “Ele tecnocientíficas e socioculturais da documento de seu pontificado até
marca o início de uma nova era. contemporaneidade recuperando a agora, desde a exortação Evan-
Para quem estuda o Concílio isso é importância do resgate do Concílio gelii Gaudium (24 de novembro
uma oportunidade que enseja um Vaticano II por ocasião de seu 50º de 2013) até a bula Misericordiae
estudo minucioso”. aniversário. Vultus de proclamação do Jubileu
Extraordinário da Misericórdia (13
A reconciliação era o objetivo Faggioli questionou se a eleição
de março de 2015).”
do concílio, observa O’Malley, re- do Papa Francisco não mudou o pa-
ferindo-se ao evento iniciado em pel do Vaticano II na Igreja Católi- Leia mais em http://bit.ly/1RuG1mK
A experiência que vência, adquirindo novas conscien- ção aquilo que o povo chama de
transforma tizações sobre os temas a serem vocação humana da visão messi-
debatidos. ânica. Esse ponto de vista repre-
Para além dos documentos re- senta uma segunda potencialidade
Leia mais em http://bit.ly/1FkgqoU
sultantes do Concílio Vaticano II, do texto hoje, que se insere em
o foco das análises e investigações uma constelação cultural espiri-
Por uma teologia tual suficientemente diferente da
de Gilles Routhier são as vivências
que enfrente os década de 60 e do ultimo século”,
e aprendizados que as experiências
trazem. O tema foi objeto de de-
desafios da fé na explica Theobald.
bate da conferência Concílio Vati- contemporaneidade
Leia mais em http://bit.ly/1LNzAr7
cano II e o aggiornamento da Igre-
ja. Três processos no coração da O ato de produzir racionalidade
para interpretar o mundo, compre- As três ecologias:
experiência: a liturgia, uma leitura
contextualizada das Escrituras e o endendo as complexidades de ma- Francisco, a Igreja e a
diálogo, que aconteceu na manhã neira clara e fazer as relações que Contemporaneidade
de 20-05-2015, durante o II Coló- nos permitam compreender o certo
quio Internacional IHU – O Concílio e errado se chama discernimen- O diálogo possível entre a Igreja
Vaticano II: 50 anos depois. A Igre- to. Se fôssemos resumir os ecos e e a contemporaneidade conta, há
ja no contexto das transformações as potencialidades dos 50 anos do dois anos, com o elemento Fran-
tecnocientíficas e socioculturais da Concílio Vaticano II em uma única cisco. A simples (na verdade nem
contemporaneidade. palavra ela seria justamente a jun- tão simples assim) escolha do nome
ção das cinco sílabas que forma o Francisco por Bergoglio coloca na
O canadense Gilles Routhier, enunciado “discernimento”. Fácil pauta uma série de elementos con-
doutor em teologia, especialista na de escrever, difícil de executar. Foi temporâneos. “Quando Bergoglio
recepção do Concílio Vaticano II, e em torno deste eixo que Christo- escolhe Francisco ele faz isso em
professor na Université Laval, do ph Theobald, professor doutor do nome da simbologia que a nomen-
Canadá, justifica sua escolha pela Centre Sèvres, Facultés Jésuites de clatura suscita em favor da paz,
experiência conciliar como ponto Paris, na França, debateu os devi- em favor dos pobres e porque ele
de análise em função da importân- res da Gaudium et Spes (Alegria e se importa com a natureza”, subli-
cia das práticas vividas para o con-
texto de construção e reconstrução
Esperança), durante a conferên-
cia As potencialidades de futuro
nha John O’Malley, professor dou- 63
tor na Georgetown University, nos
da Igreja. “A experiência da comu- da Constituição pastoral Gaudium Estados Unidos.
nhão para a formação da eclesio- et spes. Por uma fé que sabe in-
logia foi fundamental no Concílio. terpretar o que advém – aspectos Pensar o papel de uma instituição
Levou à formulação da colegiali- epistemológicos e constelações duas vezes milenar como a Igreja
dade e produziu nos padres a di- atuais, que integrou o II Colóquio Católica na contemporaneidade é
ferença de horizontes culturais, a Internacional IHU – O Concílio Va- um exercício não somente teológi-
partir do convívio. Esses momentos ticano II: 50 anos depois. A Igreja co e social muito difícil, como no
de encontros, debates, e liturgia, no contexto das transformações âmbito comunicacional exige, ao
os fez ‘homens novos’”, ressalta. tecnocientíficas e socioculturais da mesmo tempo, sofisticação e sim-
contemporaneidade. plicidade. “Ao falar sobre o mundo
Para o teólogo, os participantes contemporâneo nós precisamos ter
do Concílio tiveram uma oportu- Discernir é também o modo uma resposta simples, clara e dire-
nidade valiosa de sentir a univer- como interpretamos o mundo. Se ta. Mas ao mesmo tempo a Igreja
salidade e catolicidade da Igreja, temos uma compreensão vulgar do precisa ser ouvinte, pois parte do
além de terem se transformado que isto significa, consequente- ato de ouvir consiste em ler ampla-
nesse processo. “Até o Concílio, mente teremos uma interpretação mente as complexidades que estão
os padres eram marcados por uma vulgar do que quer que estejamos em jogo e criar uma linguagem
postura anti-modernista, e depois olhando, seja os fenômenos cul- sofisticada para a ‘Inteligência’”,
do evento se sentiram impelidos a turais ou religiosos, entre tantos defendeu O’Malley, referindo-se
mudar. Os bispos também não eram outros. Perceber e conhecer as aos formadores de opinião pública,
mais os mesmos, descobriram- dimensões históricas permite que
mais especificamente à revista New
-se possuidores de uma realidade se observe os processos históricos
Yorker Reviews. Esta publicação
própria. Os discursos saíram da a partir de suas particularidades e
em 50 anos publicou poucos conte-
defensiva e tornaram-se ofensivos que se leia o Concílio Vaticano II
údos relacionados ao catolicismo e
de uma maneira cristã, passaram a com inteligência. “O discernimen-
mesmo em relação ao cristianismo,
evitar a negação e a condenação. to em 1965 consistia em articular
mas em 2013 publicou uma capa
Então, quando os debates em torno as dimensões do humano e de uma
com o Papa Francisco.
da construção dos documentos se outra a doutrina cristã da vocação
iniciaram eles estavam transfor- humana, deixando transparecer Leia mais em http://bit.
mados pela experiência da convi- no pano de fundo desta articula- ly/1FwLo0D
Para além dos muros A busca pela ganismos vivos no corpo eclesial”,
do Vaticano. A periferia compreensão da pontua.
como o centro da Igreja mensagem Theobald, professor doutor do
Centre Sévres – Facultés Jésuites
A própria arquitetura do Palácio Embora tenha sido assunto cor- de Paris, seguiu numa linha similar.
Apostólico, cujas suntuosas portas rente nos três dias do II Colóquio No entanto, destacou os desafios
abrem-se empurrando-as para den- Internacional IHU – O Concílio Va- de se entender as mensagens de
tro do prédio, sugere que aquele é ticano II: 50 anos depois. A Igreja Francisco e também de tornar tais
um espaço onde as pessoas devem no contexto das transformações ideias ações concretas. O primeiro
entrar, não sair. A estética monár- tecnocientíficas e socioculturais da obstáculo é encarar o conservado-
quica de séculos que se ergue na contemporaneidade, o pontificado rismo doutrinal. Algo que tenta mi-
margem dos tapetes vermelhos que de Bergoglio foi dissecado durante nimizar Francisco, considerando-o
levam direto ao Trono de Pedro, “apenas” pastoral e pouco teoló-
o encontro entre Gilles Routhier,
operam na contramão de um pon- gico. “É assim que se chega a um
Christoph Theobald e Massimo Fa-
tificado que subverte a lógica, in- grande mal-entendido no espaço
ggioli. E mais do que isso: os três
clusive, da arquitetura dos palácios doutrinal da Igreja”, destaca, ao
pesquisadores refletiram sobre a
vaticanistas e ultrapassa os muros apontar que a pastoralidade não é
conjuntura eclesial e como a che- contrária à ideia de doutrina.
de Roma. A Igreja, a partir do Papa gada de Francisco movimenta a
Francisco e sob influência do Con- Igreja. Entender o que significa a Já o professor doutor Faggioli, da
cílio Vaticano II (re)descobre o belo chegada do Papa argentino e tam- University of St. Thomas, EUA, bus-
– ou o bem na perspectiva estética bém o que de fato diz e o que quer cou entender o atual pontificado
sustentada por Santo Agostinho – com suas mensagens foi o exercício pela perspectiva da historicidade.
nos últimos, nos descartáveis, nos desenvolvido com o público ao lon- Por isso foi até o conclave que ele-
marginalizados, naquilo que a so- geu Bento XVI, e que teve Bergo-
go da manhã de quinta-feira, dia
ciedade joga fora. glio entre os votados. São momen-
21-05.
tos significativos para se entender
O hiato de 50 anos entre o Con- Routhier, professor doutor da Francisco que, enquanto cardeal
cílio Vaticano II e a atualidade é Universidade Laval do Canadá, que perdeu o conclave, teve um
64 marcado por uma série de nuances
e complexidades que se misturam
deteve-se em analisar como a fi- tempo de preparação e maturação.
gura do Papa é tirada de uma cen- Como se visse os desafios da Igreja,
à própria história da América Lati- tralidade pelo próprio Francisco. avaliasse as posturas de Ratzinger
na no contexto mundial. O próprio É a manifestação de mais um dos e pensasse como agiria naquela
Papa Francisco pode ser considera- situação. “Por isso digo que Fran-
princípios do Vaticano II: a colegia-
do a materialidade de uma Igreja cisco foi um presente de Bento. E
lidade. E não só uma colegialida-
que transforma a periferia em cen- digo, também, que Bergoglio de
de que divide as decisões com os
tro, afinal é o primeiro Bispo de 2013 é diferente do conclave ante-
pares, mas aquela que incita todos
Roma que veio do “fim do mundo. rior”, avalia.
a participarem e a exercerem seu
Leia mais em http://bit.ly/1EYdrS9 papel evangelizador. “É preciso or- Leia mais em http://bit.ly/1FkguVQ
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02-06-2015 e 08-06-2015
67
ENTREVISTA DE EVENTOS
tionaram os fundamentos éticos, quando um povo não possuía chefe ção ou guerra justa) e não foi isso
jurídicos e políticos da conquista ou guia ele era o seu próprio guia que sucedeu.
e colonização da América? e chefe.
Em conclusão, o império era uma
Pedro Calafate - Conciliando a Logo, pensava-se a legitimidade expectativa jurídica dependente
origem divina do poder temporal do domínio de jurisdição e proprie- de um pacto entre livres.
com a tese da soberania inicial do dade, bem como os demais direi-
povo, consideravam estes mestres tos naturais à preservação da vida, IHU On-Line – Qual era a ques-
jesuítas e dominicanos que Deus integridade física, autodefesa e tão de fundo que estava em jogo
era a origem do poder temporal dignidade, em termos universais, naquela época?
enquanto autor da natureza social independentemente da fé ou da
Pedro Calafate - Era o reconheci-
do homem, e que quem dá a na- caridade, do grau de desenvolvi-
mento de que o direito das gentes
tureza de uma coisa dá também mento cultural ou civilizacional,
era verdadeiramente universal, e
o que dela se segue. Ora, como do local do mundo em que se exer-
por isso era necessário tratar estas
o homem não pode realizar a sua çam, da raça, da cor e dos costu-
questões da relação entre povos de
natureza social sem um poder mes razoáveis.
coordenadas culturais e civiliza-
temporal ou civil instituído, pode
E se o domínio de jurisdição e cionais distintas fora do contexto
então dizer-se que Deus é a causa
posse era constitutivo das comu- estrito do direito positivo nascido
universal do poder temporal. Toda-
nidades humanas livremente for- das realidades europeias, trans-
via, Deus não é a causa próxima e
madas pelos homens em todo o ferindo-o para o direito natural,
imediata do poder com que os reis
orbe, só poderia compreender-se o que era o fundamento do direito
governam, pois este lhes é transfe-
das gentes e, mesmo, retirando-o
rido ou conferido pela comunidade
do controle estrito dos juristas,
dos homens, no qual naturalmente
passando-o para a esfera bem mais
radica. Partindo de teses sugeridas
ampla e abrangente dos teólogos,
por Tomás de Aquino, considerava- bem mais capazes de se alçarem às
-se que todas as entidades dotadas
de fim próprio deveriam possuir
Trata-se de mo- questões éticas, antropológicas e
metafísicas subjacentes.
70 as faculdades necessárias para o mentos relevan-
Passávamos, então, a abordar a
atingir e realizar e que sendo a
comunidade uma entidade, cujo
tes da doutrina diversidade dos homens à escala da
fim próprio é o bem comum, deve- ibérica da paz redondeza da terra, na base de um
ria também possuir, constitutiva- direito igualmente válido para to-
mente, as faculdades necessárias dos os lugares e tempos, afirmando
para o realizar. Logo, o poder era um sistema de convivência humana
domínio de um povo pelo outro em independente de crenças e formas
constitutivo das comunidades hu- caso de guerra justa ou de eleição
manas formadas pelos homens em de organização política, a todos
e livre consentimento, expresso aproximando na base da razão na-
qualquer parte do orbe, radicada sem temor ou ignorância. Sucede
na natureza social dos homens e na tural e da comum paternidade di-
que a guerra justa era, sobretu- vina. Sublinho muito este aspecto
razão natural. do, a resposta a uma agressão e a porque o direito internacional que
Ora, quando se fala aqui de na- uma grave injúria, e como os povos viria a triunfar posteriormente, a
tureza, para qualificar o direito, americanos não tinham agredido os partir de Westfália, não era verda-
invocamos um referencial de uni- europeus nem os tinham injuriado deiramente universal, e tinha como
versalidade, de inteligibilidade, gravemente, concluía-se que quan- modelo o quadro civilizacional eu-
de ordem e de racionalidade que a do as armadas espanholas chega- ropeu e as suas soberanias estatais,
todos aproxima numa base comum, ram à América, nenhum direito impondo o seu domínio aos povos
estabelecendo direitos e deveres levavam para ocupar aquelas ter- considerados mais atrasados.
universais e, por isso, iguais para ras, escravizar os seus moradores e
espoliar os seus bens. De modo que, com o passar do
todos.
tempo, com a afirmação do indivi-
Portanto, eram da mesma natu- Como dizia Martín de Azpilcue- dualismo de viés liberal ou do abso-
reza o poder com que os reis gover- ta em Coimbra, em 1548, as leis lutismo estatal, os escolásticos ibé-
navam e o poder com que poderiam imperiais não podiam suprimir as ricos ficaram em terra de ninguém,
governar-se a si próprias as cidades providências naturais. Logo, onde pois nem eram liberais nem abso-
livres, não podendo impor-se uni- houvesse comunidades organizadas lutistas, verificando-se um claro
lateralmente o quadro ou modelo politicamente, a transferência de retrocesso ou involução rumo a um
de soberanias imperante numa de- domínio tinha que fundar-se em tí- direito internacional estadocêntri-
terminada parte do mundo, porque tulos jurídicos justos (livre aceita- co, em que os indivíduos e povos
são objeto da proteção que os Es- o mesmo que defender a imposi- mesma dignidade de cada um de
tados lhes concedem e não sujeitos ção desse maior grau de perfeição nós é o fundamento da comunidade
de direitos naturais inalienáveis; pela força, porque o cristianismo internacional.
em que os direitos humanos dizem era uma religião de paz, e Cristo
Queria isto dizer que antes de
apenas respeito a indivíduos e não enviou os seus apóstolos como ove-
sermos cidadãos de um Estado ou
já também a povos e comunidades; lhas entre lobos, e não como lobos
súditos de um príncipe todos éra-
em que, fora do quadro das sobera- entre ovelhas.
mos cidadãos do mundo, criados à
nias estatais estabelecidas na Eu-
imagem e semelhança de Deus, por
ropa, o mundo ultramarino passa
não haver para Ele, como dizia S.
a ser res nullius; em que o direito
Paulo, distinção entre judeu e gre-
internacional passa assentar numa
go. Então, os nossos direitos não
ideia de equilíbrio entre os Estados
eram apenas aqueles que o Estado
europeus e não num exercício da
razão universal em face da diver-
Se os danos des- nos quisesse conceder, não depen-
sidade dos povos; em que a ordem sa intervenção diam da vontade do Estado, mas da
consciência jurídica universal que,
internacional vigente entre as po-
tências europeias assentava na ex-
fossem maiores como sempre diz o Professor Can-
çado Trindade6 em seus numerosos
clusão de todos os não europeus e que os males que votos na Corte Interamericana de
em que as rivalidades entre potên-
cias europeias no Novo Mundo não se pretendia evi- Direitos Humanos - CIDH, é a fonte
material última de todo o Direito.
eram analisadas à luz das regras tar, devia pre-
que regulavam os conflitos entre Acima dos Estados, acima da von-
essas potências na Europa. valecer um juízo tade do príncipe há uma autoridade
Vários Mundos
de prudência universal que, à falta na época de
instituições que a exercessem e re-
presentassem, radicava na consci-
Havia, pois, vários mundos den- IHU On-Line – O que foi e como ência de cada homem. Se os súditos
tro do nosso mundo, marcados por funcionava o princípio de inter- de um príncipe fossem injustamen-
relações de domínio e de imposi- venção humanitária em defesa te supliciados e violados nos seus di- 71
ção de modelos civilizacionais, le- dos direitos naturais dos homens? reitos naturais, quem pudesse inter-
gitimando a guerra pela hegemonia Pedro Calafate - Em linguagem vir e não o fizesse atentava contra
e pelo domínio. Acresce que as dos nossos dias diríamos tratar-se si próprio, porque a agressão a um
teorias escolásticas dos mestres da gênese da consagração do prin- ser humano era também uma agres-
peninsulares abriam ainda o neces- cípio da titularidade jurídica inter- são ao gênero humano a que todos
sário espaço conceitual para equa- nacional do ser humano, no quadro pertencíamos. Pela mesma razão,
cionarmos a titularidade coletiva de direitos que não sofrem preju- qualquer Estado poderia e deveria
de direitos, ao nível do povos e ízo com base em argumentos de intervir militarmente contra outro,
comunidades, de tanta importân- relativismo cultural, tão ao jeito em defesa dos súditos deste último
cia nos nossos dias, no contexto da da conveniência dos poderosos e injustamente supliciados.
diversidade dos povos americanos. sempre propalados pelo positivis- Todavia, os mestres jesuítas de
Portanto, do lado dos autores mo jurídico. Por outras palavras: a Coimbra e Évora tinham o cuidado
ibéricos, a ideia fundamental, tal pessoa humana é sujeito de direito de alertar que essa intervenção ti-
como a definia Francisco Suárez no tanto interno como internacional. nha exclusivamente como fim o res-
seu tratado Das Leis, era a de que Era, no fundo, uma consequên- tabelecimento da dignidade humana
o poder dos príncipes pagãos, em cia da tese da universalidade do e não o domínio dos bens do Estado
si mesmo, não era de menor nem gênero humano, marcada pelo sen- ou comunidade invadidos. Ou seja,
de distinta natureza do poder dos timento de pertença a uma comu- 6 Antônio Augusto Cançado Trindade
príncipes cristãos, pois tinham a nidade universal de que emergem (1947): jurista brasileiro, membro do Tribu-
mesma natureza e o mesmo fim. direitos e deveres para todos, no- nal Internacional de Justiça, com mandato
de 2009 a 2018. É graduado em Direito pela
Todavia, como ensinava Luis de meadamente o direito à vida dos Universidade Federal de Minas Gerais -
Molina em Évora, no De iustitia et inocentes (não condenados à mor- UFMG, mestre em Direito Internacional pela
Iure (1593), fundado em Tomás de te em punição de um crime à luz Universidade de Cambridge e doutor em Di-
reito Internacional pela mesma instituição. É
Aquino, a graça não contraria a na- do direito) e o dever de socorro e professor titular na Universidade de Brasília
tureza, mas a aperfeiçoa, logo: o prestação de auxílio. Neste contex- - UnB desde 1978 e do Instituto Rio Branco
poder dos príncipes cristãos é mais to e em situação de grave violação desde 1979. Foi juiz da Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos entre 1994 e 2008,
perfeito do que o poder dos prínci- dos direitos da pessoa humana, ocupando sua presidência entre 1999 e 2004.
pes pagãos. Mas dizer isto não era ninguém está sozinho, pois essa (Nota da IHU On-Line)
a causa e a intenção da guerra tinha espada em defesa do que era justo, da jurisdição universal, fundada
que ser claramente definida e legíti- ou seja, em garantia das condições numa ideia de justiça objetiva. Foi
ma, e a defesa dos direitos da pessoa da paz. Cristo ao ordenar a Pedro talvez Francisco de Vitória quem
humana não poderiam ser pretexto que embainhasse a espada esta- mais contribuiu para esta ideia ao
para alargamento do império e da va apenas a invocar a lei vigente defender na sua Relectio de Indis,
luta pelas hegemonias. entre as autoridades que naquele proferida em Salamanca na déca-
momento o prendiam, não estava da de trinta do século XVI, que o
Outra questão não menos rele-
a condenar em absoluto o uso da orbe inteiro deve ser considerado
vante era a da equação dos danos
espada em defesa da justiça. Aliás, como “uma única República” à
que tal intervenção pudesse cau-
sar: se os danos dessa intervenção como dizia o Padre Antônio Vieira,7 qual devemos reconhecer pode-
fossem maiores que os males que se o próprio Cristo, ao esmagar o De- res para promulgar leis justas para
pretendia evitar, devia prevalecer mônio, enquanto usurpador dos todos os povos, como eram as leis
um juízo de prudência. Repare-se reinos da terra, exerceu plena- do direito das gentes. Para Vito-
que esta questão coloca-se ainda mente esse direito de resistência ria, o direito das gentes (falando
hoje com toda a evidência, e o juí- à tirania, contra um tirano por em gentes no sentido de nações)
zo de prudência tem cada vez mais usurpação. fora promulgado pela “autoridade
que ser reforçado e garantido pela de todo o orbe”, uma autoridade
multilateralidade da decisão. virtualmente instituída, baseada
na consciência jurídica universal.
Como ensinava Suárez, em Coim-
IHU On-Line – O que estava se
discutindo, à época, sobre a or-
Em conclusão, bra, a consciência era a obra da
razão que nos diz se agimos bem
dem internacional e os limites à o império era ou mal consoante nos aproxima-
soberania do Estado? O que era,
exatamente, o “bem comum uni- uma expectativa mos ou distanciamos do ditame
natural da “recta ratio”, de matriz
versal” defendido pela Escola
Ibérica?
jurídica depen- ciceroniana.
Sublinho ainda este primado da ra justa é a resposta a uma ofensa do texto de Aristóteles sobre a es-
autoridade universal baseada na grave, sendo a idolatria uma ofen- cravatura natural. O jesuíta Joseph
consciência na afirmação de ou- sa a Deus, podem os cristãos vingar de Acosta10 chegou a dizer que a
tro princípio essencial: o da ob- tais ofensas recorrendo à guerra; este respeito Aristóteles não falou
jeção de consciência. A esta luz, os crimes contra a natureza comum como filósofo, mas como adulador
qualquer soldado, por mais baixa dos homens, como o canibalismo, a de Alexandre o Grande. Domingo
que fosse a sua condição, poderia de Soto entendia que o Estagirita
e deveria recusar-se a combater estava se referindo a certos ho-
se estivesse plenamente convicto mens que viviam nas cercanias das
de que a guerra era injusta. Logo, comunidades humanas, à maneira
não poderia, neste caso, invocar o de feras, sem respeitarem as leis
cumprimento de ordens superiores A ideia funda- ou os pactos, podendo estes ser
para se escusar de crimes contra o “repelidos pela força” ou, em al-
gênero humano.
mental era a ternativa, “submetidos à ordem”
Se assim não fosse, também po- de que o poder para que não invadissem o que é
alheio por onde quer que passas-
deríamos escusar os soldados que dos príncipes sem. Las Casas perguntava a Sepúl-
crucificaram Jesus Cristo.
Quem parte para uma guerra
pagãos, em si veda se lhe parecia justo e razoável
que os romanos, sendo mais cultos
contra a autoridade universal do mesmo, não que os hispanos quando invadiram
orbe, ou seja, contra as leis do di-
reito das gentes e contra os princí-
era de menor a Península, reduzissem os seus
avós à escravatura com base nesse
pios da justiça, e disso esteja con- nem de distin- argumento de Aristóteles? Isto por-
victo e suficientemente informado, que os princípios que se aplicam no
parte para matar inocentes, logo ta natureza do continente europeu são os mesmos
será sempre culpado, tanto no foro poder dos prín- que se aplicam ao conjunto dos po-
externo como, sobretudo, no foro vos do orbe.
interno da consciência. cipes cristãos Quanto à ofensa a Deus pela
idolatria, cumpre apenas a Deus 73
IHU On-Line – Que princípios castigá-la e a nós só nos deu o di-
teológicos, filosóficos e jurídicos poligamia, a homossexualidade, a
reito de responder a ofensas per-
orientavam a relação entre po- sodomia ou a morte de inocentes
petradas contra nós próprios. Dizer
vos e culturas civilizacionais tão para serem sacrificados aos ídolos
o contrário seria não reconhecer a
distintas, como europeus, ameri- e outros pecados desta natureza
grandeza e onipotência de Deus.
canos e africanos? Como a Esco- são também uma ofensa ao gêne-
la Ibérica da Paz os colocou em ro humano que pode ser impedida No que se refere aos crimes con-
causa? pela guerra; a escravatura dos afri- tra a natureza comum do gênero
canos e o seu envio à América pode humano, apenas se reconhecia o
Pedro Calafate - Num enuncia- ser justificado com base no argu- direito de intervir contra a mor-
do rápido dos princípios de larga mento da salvação e do batismo; se te de seres humanos inocentes ou
vigência a que se opuseram os au- um povo impedir pela força o jus para serem comidos ou para serem
tores a que nos estamos a referir, e praedicandi, ou seja, o direito de sacrificados aos ídolos. Quanto aos
deixando para mais tarde a ques- evangelização universal concedido demais crimes, que também eram
tão do poder universal do papa, por Cristo aos seus Apóstolos, pode praticados na Europa, não constava
poderia enunciar: os povos menos o papa invocar o auxílio do braço que o rei de Espanha pudesse ata-
cultos e menos civilizados podem armado dos príncipes cristãos; em car a França em punição de crimes
ser dominados por outros povos ordem à eficácia da evangeliza- desse gênero.
mais cultos, à luz do princípio da ção, cumpre conquistar primeiro e
escravatura natural desenhado por Enviar escravos negros, sem tí-
evangelizar depois.
Aristóteles9 na política; se a guer- tulo justo de escravatura, para a
Com mais ou menos intensidade, América, com o argumento de que
9 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 todos estes princípios foram obje- se salvarão ao serem batizados,
a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. to de forte crítica. Nenhum destes
Suas reflexões filosóficas — por um lado, ori-
ginais; por outro, reformuladoras da tradição
autores, que eu saiba, concordou 10 José de Acosta (1539–1600): foi um
grega — acabaram por configurar um modo com a interpretação mais gravosa jesuíta, poeta, cosmógrafo e historiador es-
de pensar que se estenderia por séculos. Pres- panhol que foi para o Peru em 1571. Desem-
tou significativas contribuições para o pensa- penhou trabalhos missionários na América,
mento humano, destacando-se nos campos e história natural. É considerado, por muitos, regressando à Espanha em 1587. Escreveu
da ética, política, física, metafísica, lógica, o filósofo que mais influenciou o pensamento Historia Natural e Moral das Índias, em
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia ocidental. (Nota da IHU On-Line) 1590. (Nota da IHU On-Line)
significava praticar o mal para ob- Mas são as Relectiones de Fran- o sangue dos que não comungavam
ter o bem, contrariando os princí- cisco de Vitória, sobre a guerra, na sua Igreja e de que importava
pios evangélicos. o poder civil e os índios, proferi- fazer o que era justo, mas de ma-
das nos anos de trinta do século neira justa.
Quanto ao jus praedicandi, não
XVI também em Salamanca, que
cumpre conquistar primeiro para
dão a pauta desta consciência de IHU On-Line - Qual a relevân-
evangelizar depois, porque a fé
colapso ético no que se refere ao cia dos intelectuais jesuítas no
resulta de uma aceitação livre e
desrespeito pelas normas univer- período?
consciente de cada homem. E,
sais do direito das gentes. Vitória
como defendia Francisco Suárez, Pedro Calafate - Em 1555 o rei
foi secundado por Domingo de Soto
se o direito de evangelizar for de Portugal, João III, entregou
em Salamanca e outros se segui-
obstaculizado pela força, poderí- o Colégio das Artes de Coimbra à
ram, ao longo de várias gerações
amos removê-lo pela força apenas Companhia de Jesus, expulsando os
(Diego de Covarrubias,11 Melchor
se fosse parte da comunidade a mestres bordaleses que então nele
Cano,12 Juan de la Peña,13 Vasquez
erguer esse obstáculo, mas se fos- ensinavam. Tal fato marcou uma
de Menchaca,14 entre outros). Na
se a totalidade da comunidade, viragem decisiva da política cultu-
América destacaram-se os missio-
não. Outros autores foram mais ral da coroa, no contexto do que se
nários como Joseph de Acosta, Las
radicais, como Las Casas ou Antó- viria a designar como contrarrefor-
Casas, Vieira, ou ainda o professor
nio de São Domingos em Coimbra. ma. Poucos anos depois seria fun-
da Universidade do México Alonzo
Este último defendia que o direito dada, em 1559, a Universidade de
de Veracruz,15 a par de Juan Zapa-
de evangelização universal, não Évora, claramente marcada pela
ta y Sandoval,16 este último bispo
sendo um direito plenamente na- matriz jesuítica. Assim, os mestres
da Guatemala (1630). Em Portugal,
tural, não podia ser imposto, pois da Companhia de Jesus se estabe-
nas cátedras de Coimbra e Évora
devíamos reconhecer o direito aos leceram no coração de Coimbra e
destacaram-se Martín de Azpilcue-
povos americanos de não se con- Évora e marcaram decisivamente,
ta, Martín de Ledesma, Francis-
vencerem por argumentos não até à sua expulsão por Pombal, em
co Suárez, Luis de Molina, Fernão
estritamente naturais, os quais 1759, o saber academicamente ins-
Rebelo, Pedro Simões e António de
definiam a base comum de enten- titucionalizado em Portugal.
São Domingos.
dimento inicial entre povos tão
74 distintos. Na Espanha prevaleceu a ordem
IHU On-Line – Que tensiona-
de São Domingos e em Portugal os
mentos surgiram entre os autores
IHU On-Line – Quais eram os jesuítas. A todos unia a tese de que
da Escola Ibérica da Paz e a Igre-
principais nomes da Escola Ibéri- o Deus da paz e do perdão não en-
ja, sobretudo na restrição dos po-
ca da Paz? Como surgiram? Quais viaria os cristãos para derramarem
deres do Papa para com os povos
foram seus papéis? 11 Diego de Covarrubias y Leyva (1512- indígenas, por exemplo?
1577): jurista, político e eclesiástico espanhol.
Pedro Calafate - Penso que po- Representante da Escola de Salamanca em Pedro Calafate - Estes autores
deríamos remontar ao sermão do sua época de ouro. (Nota da IHU On-Line)
12 Frei Melchior Cano (1509-1560): teólo-
não eram defensores da teocracia,
4º Domingo do Advento, proferi-
go espanhol nascido em Tarancón, em Caste- ou seja, para eles o Papa não era o
do na igreja de Santo Domingo, la, entrou na Ordem dos Pregadores no con- detentor pleno das duas espadas.
na Ilha Espanhola (hoje República vento de Salamanca onde em 1546 sucedeu a
Francisco de Vitória na cátedra de teologia.
Possuía apenas poder espiritual so-
Dominicana e Haiti). Um sermão
(Nota da IHU On-Line) bre os batizados, poder temporal
sublime, onde o frade dominicano 13 Juan de la Peña (1513-1565): foi um direto sobre os estados papais e
se questionava sobre o direito que teólogo dominicano espanhol e professor da
Universidade de Salamanca. (Nota da IHU
poder indireto sobre as coisas tem-
legitimava a escravatura daqueles
On-Line) porais em ordem ao fim espiritual,
povos, dando claramente a en- 14 Fernando Vazquez de Menchaca desde que este fim se perspecti-
tender que o mesmo não existia. (1512-1569): foi um jurista espanhol e huma-
nista. (Nota da IHU On-Line) vasse direta e principalmente; não
Mais tarde, em 1535, o catedráti-
15 Alonso Gutierrez também conhecido possuía poder espiritual sobre os
co de Salamanca e teólogo do rei como Fray Alonso de la Vera Cruz (1507- não batizados; não possuía poder
em Trento, dirigindo-se aos seus 1584): foi a figura mais importante da filoso-
fia no México durante o século XVI. (Nota da temporal direto, nem sobre os cris-
alunos em Salamanca, fazia exa-
IHU On-Line) tãos nem sobre os não cristãos.
tamente a mesma pergunta: “Se 16 Juan Zapata y Sandoval: nascido na Ci-
me perguntarem com que direito dade do México, entrou para a Ordem de St. Neste sentido era constantemen-
mantemos sobre nosso domínio Augustine no College of San Pablo do México, te invocada a afirmação de São
onde recebeu a formação teológica e jurídica.
os territórios ultramarinos que Em 1602 foi para a Espanha, onde foi Reitor Paulo (I Cor 5) quando dizia não
recentemente temos descoberto, do Colégio de San Gabriel de Valladolid. Foi possuir autoridade sobre “os que
respondo: — Na verdade não sei”. consultor científico e humano para o Rei. estão de fora”. Então, também o
Eleito bispo de Chiapas, em 1612, ele foi pro-
Assim escreveu na sua Relecto de movido a arcebispo de Guatemala em 1622. Papa não podia jugar os que estão
Dominio (1535). (Nota da IHU On-Line) de fora, que eram, neste caso, os
povos estranhos à Cristandade, por romanos, bem como os seus su- vários momentos e circunstâncias
não possuir autoridade sobre eles. cessores romano-germânicos não defendeu, mas que em tantos ou-
foram senhores do mundo intei- tros também condenou. Partindo
Em relação à Bula de Alexan-
ro, que, aliás, na sua maior parte de uma fé única e universal de
dre VI17 (1493), o que o Papa po-
lhes era desconhecido. A pregação todos os povos através do conheci-
dia conceder era o monopólio dos
universal teria que fazer-se pacifi- mento de Cristo, os reis e príncipes
portugueses e espanhóis no envio
camente, o direito ao domínio de do mundo, que receberam dos po-
de pregadores àquelas terras, e
jurisdição e propriedade dos povos vos o direito da paz e da guerra,
como para custear tal missão era
estranhos à fé teria que ser respei- reunir-se-iam para se submeterem
necessário dinheiro, navios e pro-
tado na sua legitimidade natural, e a Deus, consumando-se o Reino de
teção dos pregadores, determina-
mesmo depois da conversão tal di- Cristo na terra.
va o Papa que, em virtude deste
reito permanecia, pois assim como
fim espiritual da evangelização e Vieira vai além dos temas mais
os Reis Magos vieram a Cristo como
salvação daqueles povos, nenhum característicos da Escola Ibérica
reis e reis partiram, assim deve-
outro príncipe cristão aportasse da Paz, pois o significado complexo
ria suceder aos demais povos que
àquelas terras, fosse para estabe- da consumação do Reino de Cristo
aceitaram Cristo: a fé não obriga
lecer relações comerciais, fosse na terra extrapola esse domínio da
em absoluto à vassalagem políti-
para predicar o Evangelho. Podia Escola, pelo menos nos termos em
ca, embora no caso de um príncipe
ainda o Papa estabelecer um im- que o expôs na Clavis Propheta-
cristão, tal se recomende.
perador naquelas terras na estri- rum, onde adquire uma dimensão
ta condição de defensor único da Talvez o texto mais contundente privilegiadamente espiritual.
Igreja naquilo que diz respeito aos de Vieira a este respeito seja o que
Em todo o caso, na História do
assuntos espirituais, tal como o fez proferiu em 1694, no colégio jesu-
Futuro e sobretudo na Defesa Pe-
na Europa relativamente aos prín- íta de São Paulo, o Voto sobre as
rante o Santo Ofício, textos da
cipes cristãos, sempre no pressu- Dúvidas dos Moradores de São Pau-
década de sessenta, entende que,
posto de que é legítimo o poder de lo, ao dizer que assim como o espa-
na sua dimensão política e tempo-
um príncipe cristão sobre os fiéis nhol ou o genovês, cativo em Argel,
ral, o império universal resultaria
ou infiéis que aceitem livremente permanecia vassalo do seu rei e da
de um pacto entre os reis, que
reconhecê-lo como rei. sua república, assim não deixava
de ser o índio posto que cativo,
concederiam a um imperador uni- 75
versal parte da soberania de que
IHU On-Line – Qual a importân- rematando no final uma afirmação
eram detentores, a fim de melhor
cia de Antônio Vieira na Escola extraordinária: “Em matéria de so-
se conservar a sempre custosa ir-
Ibérica da Paz? De que forma se berania e liberdade, vale tanto a
mandade entre os homens. E mes-
aproximava e se distanciava dos coroa de penas como a de ouro e
mo depois dessa década, em escri-
pressupostos teóricos e práticos tanto o arco como o cetro”.
tos da década de oitenta e mesmo
desta escola? Ou seja, o poder temporal e as noventa, continuará a defender o
Pedro Calafate - Para Vieira o soberanias de todos os povos e co- império político do mundo e uma
Papa também não era senhor do munidades do mundo radicavam na missão redentora para Portugal.
mundo no espiritual e no tempo- razão natural, comum a todos. Por-
Em todos os casos, o império, tal
ral. O seu poder possuía os mes- tanto, o império universal por que
como nos tempos medievais, era
mos limites que acima enunciei. se bateu seria o resultado de um
a expressão política da unidade
Também para ele os imperadores acordo e pacto universal entre os
entre os homens, a qual se proje-
reis e os príncipes dos povos pre-
17 São Francisco de Borja: Bisneto do ta, sublimando-se, numa unidade
viamente evangelizados.
Papa Alexandre VI e de Fernando II de Ara- ontologicamente superior, de na-
gão, era aristocrata espanhol. Foi governador Em todo o caso, permanecia tureza espiritual e religiosa. A sua
da Catalunha até que, em 1546, larga tudo
para ingressar na Companhia de Jesus. (Nota como fator de ruído a questão da expressão seria a paz, assente na
da IHU On-Line) escravatura dos negros, que em justiça.
LEIA MAIS...
—— O imaginário antijesuíta em Portugal – Origens, Evolução e Metamorfose. Entrevista com
José Eduardo Franco publicada na IHU On-Line 458, 10-11-2015, disponível em http://bit.
ly/1uEeBS2;
—— Marquês de Pombal e a Invenção do Brasil. Cadernos IHU ideias edição 220 de autoria de
José Eduardo Franco, disponível em http://bit.ly/1PQ7NwI.
PUBLICAÇÕES
Neurofuturos para
sociedades de controle
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamen-
te no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@
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SALA DE CINEMA
Sala de Leitura
Leia as dicas de leituras de professores da Unisinos.
“Há poucas coisas a que os seres humanos se dedicam mais do que a infelicidade”,
afirma Alain de Botton, inspirado no homem que escreveu um dos mais longos roman-
ces da história sobre como parar de desperdiçar a vida e começar a apreciá-la. Como
Proust pode mudar sua vida é um ensaio sobre a trajetória e a obra de Marcel Proust
para dialogar com o leitor a respeito de nossa existência. Dividido em nove partes
que iniciam com a palavra “como” — amar a vida hoje, ler para si mesmo, não se
apressar, sofrer com o sucesso, expressar suas emoções, ser um bom amigo, abrir os
olhos, ser feliz no amor e abandonar os livros — Botton usa a dor do doente, sensível
e problemático Proust para nos fazer refletir sobre a capacidade que temos ou não NOME DO LIVRO PODE SER EM ATÉ
para lidar com as infelicidades. Mas a grande contribuição de Botton não é fazer um DUAS LINHAS, EDITORA, ANO
livro leve, ainda que perspicaz e de análise cuidadosa, mas sim ser uma ponte para
Em busca do Tempo Perdido. Improvável ler Alain de Botton e não ter vontade de percorrer os sete apaixonantes
volumes de Proust - porque esse sim, vai mudar sua vida (se você deixar).
Retrovisor
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.
10 de junho - 19h45min
As Metrópoles e a Política da Multidão
Palestrante: Prof. Dr. Adriano Pilatti – Instituto
de Direito/PUC-Rio
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
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