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A minha pequena vida

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A minha pequena vida

Esta é a história da minha pequena vida.

É pequena porque eu sou pequenina. Mesmo que fosse


uma gata era pequenina e portanto também o é a minha
pequena vida.

Mas eu não devo ser bem uma gata. Detesto, odeio


mesmo, todos os outros gatos, portanto devo ser de
outra espécie.

E também é a história do meu mundo e do mundo dos


outros tal como eu a vejo.

Mas primeiro quero que me conheçam um pouco.

Vivo num bairrozinho pequenino e tenho uma casinha


que não é muito pequenina mas que é confortável para
morar.

Considero-me quase rica, pelo menos à minha medida.


Tenho um pequeno ginásio, uma mala de transporte,
cobertores, uma caixa de areia, pratos e um “pratochy”.

Não sabem o que é um “pratochy”? Isso sim, foi uma


grande invenção, é um prato que fica quente durante
horas depois de estar dentro de uma máquina estranha
que emite radiações. Penso que a máquina não tem
nada a ver com as armas de destruição maciça, mas é
perigoso para alguém tão pequenino como eu.

Também tenho o “grande amigo”, mas ele hiberna ao


contrário. Está vivo no Inverno e dorme no Verão.
Quando começa a ficar avermelhado é sinal de que está
vivo e bem de saúde. Como não fala comigo, não sei

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A minha pequena vida

como fazê-lo acordar. A minha família também não fala


com ele. Talvez ele não saiba falar, mas mexem nele
para o acordar. É mais ou menos como fazer festinhas.
Já quase que aprendi o truque, mas por enquanto não
tenho jeito para fazer o mesmo.

Finalmente tenho a minha família, são muito maiores que


eu, têm pouco pelo e apoiam-se nos quartos traseiros.
São eles que me dão a comida, o leite, fazem as
limpesas e dão-me uns comprimidos estranho de vez em
quando. A princípio era mesmo horrível mas agora já me
habituei sobretudo porque não consigo fugir e sempre é
melhor conformar-me.

Gosto de dormir, de receber festas, de petiscos, mas


estou sempre atento a tudo o que se passa, mesmo que
pensem que não posso fazer muito.

Sobretudo gosto de comer paté, daquele que vem dentro


de uma lata com um horrível rótulo com um gato
feiíssimo. De certa forma também é a minha unidade
monetária: uma lata custa um euro, umas vezes um
pouco mais, outras um pouco menos, mas eu estou
habituada a estas flutuações cambiais.

Não gosto de viajar, mas vejo televisão, acedo à Internet


quando a minha família está a dormir e sei tudo o que se
passa no Mundo, com os meus amigos e os meus
inimigos mesmo sem precisar de sair de casa.

Também sei que tenho uma missão a cumprir e que me


espera um futuro grandioso.

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A minha pequena vida

Palavra de Gatochy.

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A minha pequena vida

2003-01-31

A árvore de Natal foi desmontada. Não havia um grande


acordo na família mas desta foi de vez. Também já não
lhe acho a mesma piada. Dantes gostava de trepar e de
me esconder no meio dos ramos e até cheguei a
derrubá-la uma vez, há uns anos atrás, mas agora sou
mais crescida e responsável.

Pois é, já não brinco como dantes e muito menos em


frente à minha família. Não quero desiludí-los nem quero
que pensem que sou uma irresponsável ou tenho falta
de maturidade. Só quando não estão a ver para não
estragar a minha imagem de seriedade e discernimento
e para verem que estou pronta para aceitar novas
responsabilidades.

2003-02-08

Foi um dos dias mais horríveis do ano. Sempre que vão


à cave buscar aquela prisão a que chamam o porta-
gatos já sei que não vai ser agradável.

Porque é que não ligam aos meus protestos? Todos os


anos, pelo menos por três vezes sou sujeita a um
estranho ritual de tortura física e psicológica.

Como de costume levam-me a uma casa estranha onde


me maltratam. Uma criatura estranha vestida de branco
espeta-me uma agulha no lombo e sujeita-me às
maiores indignidades. Nem quero falar disso e não seria
apropriado para quem tem uma educação como a minha.

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A minha pequena vida

Lembro-me sempre de quando tentei fugir pela varanda


e não fui capaz de saltar. A partir de então a varanda
ficou sempre fechada. Espero que aqueles criminosos
morram de calor lá dentro!

2003-02-12

Hoje chegou uma encomenda. Não era para mim e a


minha família riu-se quando abriu a caixa. Era um
horrível boneco que parece o Satan americano, um tal
de Bush, e aquilo fala. Diz “I came from Texas” e outras
frases. Como o original, é um mentiroso e a presença
dele na minha própria casa desagrada-me.

Não sei se sabem, mas penso que sou muçulmana.


Encolho as minhas patas dianteiras e levanto a cauda
para o ar. Ouvi dizer que quem se comporta assim é
muçulmano e se vira sempre para Meca. Não sei
exactamente para que lado fica terra, mas não faz mal
porque é muito longe e não consigo lá chegar para ver
como é.

2003-02-16

Estava a comer erva quando olharam para mim. Parei


imediatmente porque podia estar a desagradar à minha
família. Já ouvi histórias horríveis acerca de pessoas que
consomem erva e que são castigadas. Outros até
roubam para conseguir alguma.

A mim faz-me bem à digestão, portanto deve ter a ver


com o preço da erva. A minha família deve-se sacrificar

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A minha pequena vida

a sério para que eu possa comer um pouco pelo que


prometo não voltar a exagerar na quantidade. É mais
uma das minhas resoluções para este ano, mas só vei
entrar em vigor no meu aniversário porque agora o meu
estomago não permite.

2003-02-19

O Bush continua a dizer que vai atacar o Iraque. Por


outro lado oiço dizer que os muculmanos estão todos
contra. Eu também estou contra porque devo ser
muçulmana e não gosto do cão do Bush. Não é para
insultar o sujeito, não que o não mereça, estou mesmo a
falar daquele pequeno quadrúpede feio que anda ao pé
dele. Deve-se chamar George!

2003-02-24

A minha família foi jantar fora e mais uma vez não fui
convidada. Nunca percebi porque é que não participo
nos jantares de família, mas acho que há qualquer coisa
de racista nisso. Será que é por eu ser pequenina e não
ter idade?

Felizmente quando voltaram também houve um petisco


para mim. Ainda hoje não sei porque comemoramos esta
data, mas enquanto participar na festa vou acreditando
que é uma data importante.

2003-02-26

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A minha pequena vida

Hoje fiz anos. Não são muitos mas já são 6 e como


sempre deram-me uma prenda. Hoje foi um jantar que
dizem que tem camarão. É uma delícia, mas a história
do camarão custa a acreditar. Talvez seja verdade
porque era mesmo pouca quantidade.

Se fizesse anos todos os dias ficava velha mais


depressa?

2003-03-05

Desta vez foi a minha pseudo-avó que fez anos.


Imensos. Tantos que nem consigo imaginar que fosse
possível e mais uma vez não fui convidada. Acho que ela
nunca gostou de mim, mas como a família não se
escolhe, limita-se a aceitar a minha existência. Fiquei a
dormir à espera da minha parte da festa. Mais vale tarde
que nunca!

Quando voltaram disseram que comem um tal de “pato”


que eu não conheço. É pena, porque acho que vem
acompanhado com uma coisa que chamam “lalanja” e
não sei porquê soa-me bem. Parece qualquer coisa de
oriental: “pato com lalanja”. Talvez seja por causa das
cadeiras e quando eu crescer mais um pouco também
possa ir...

2003-03-26

Fico sempre entusiasmada quando oiço o Ministro Al


Sahaf. Fala bem e sei que a verdade sai pela sua boca.
Há uns tempos ouvi dizer que a verdade sai pela boca

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A minha pequena vida

dos simples e basta olhar para a sua simplicidade para


perceber que não pode estar a mentir. Aliás, tem que ser
verdade porque ninguém inventava uma mentira tão
grande.

Não percebo é tanta má vontade contra ele. Sei que até


fazem filmes para o tentar desmentir, mas não me
enganam. Eu já vi na televisão como é que enganam as
pessoas com o que fazem em Hollywood.

Aliás, os próprios americanos já o querem contratar


como porta-voz, mas ele não quer para não ter que
mentir. Abençoado seja!

2003-04-05

Já não vejo o Sadam há algum tempo. Ainda não


consegui contactar com ele desde o suposto fim da
guerra. Sei que isto não vai ficar assim, mas começo a
enervar-me e se não dormisse 18 horas por dia já
andava uma pilha de nervos.

Talvez um dia tenha uma estátua dele, se conseguir


convencer a minha família a ficar com uma. Devem ser
quase de graça porque estão sempre a deitá-las fora e
podia pô-la num jardim grande que há ao pé de casa. Já
ouvi não sei quem chamá-lo Praça de Londres mas deve
ser mentira. Eu sei muito bem que Londres fica em
Inglaterra e que é longe daqui.

Se não puder ser quero uma pintura a óleo, sempre é


mais fácil de guardar e posso pendurá-la ao pé do meu
ginásio.

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A minha pequena vida

Sei todas estas coisas porque quando acabou a União


Soviética também as estátuas e os quadros foram quase
dados. Até tenho alguns cá em casa, mas como não sou
marxista-leninista não aprovo gastar dinheiro em nada
dessa coisas excepto os gorros. Aqueles que são feitos
de pele natural são óptimos para dormir e sempre é
menos um bicho malvado a andar por aí.

2003-05-03

Viram lá fora a minha maior inimiga. Depois do Bush, é


claro. Dizem que é parecida comigo e a minha família às
vezes parece que gosta dela e dá-lhe comida. É horrível
e até sinto arrepios só de pensar nisso.

Mas hoje era pior, trazia na boca um bicho pequenino


igual a ela! E ouvi dizer que até pode haver mais do que
um. Todos os dias a concorrência aumenta!

Bolas! Lembro-me sempre quando a minha pseudo-avó


sugeriu trocar-me por um gato siamês. Trocar-me a mim,
que nasci nesta família por um estranho só porque dizem
que tem mais classe.

Maldito bicho e toda a sua espécie!

2003-05-04

Hoje houve uma equipa que ganhou um tal de


campeonato e houve uma festa algures mas também
estes não me convidaram.

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A minha pequena vida

Este ano não foi a minha equipa, essa anda de preto e


branco como eu e tem uma estátua parecida comigo à
entrada da casa deles. Sempre gostei da homenagem
que eles me fazem, sobretudo quando ganharam aquela
coisa do campeonato, mas desta vez ouvi dizer que não
estiveram à altura e perderam.

Talvez uma equipa melhor possa vestir as minhas cores


e fazer uma estátua a sério, que a outra está um bocado
mal feita e é muito pequena.

2003-05-05

Detesto estranhos, sobretudo quando fazem barulho e


não me deixam dormir. Desta vez foi demais, eram
quatro e logo cedinho começaram a partir a casa mesmo
ao pé da minha casa de banho. E tudo isto para quê?
Substituiram uma janela que quase não uso para não
cair dentro da banheira ou lá como se chama aquele
lago artificial.

Refugiei-me no quarto e esperei que saissem. Nem


podia ir à casa de banho ou alimentar-me sem passar
por eles. Que aflição e que fome! Até parecia que estava
a ser perseguido por um daqueles bichos lá de fora. Uma
espécie de “esteja lá fora cá dentro”, como aquele slogan
publicitário que se calhar não era bem assim

Mas desta vez deixaram-me ficar a dormir na cama


grande em vez de me convidarem a sair. Sempre é mais
barato do que comprar-me um brinquedo novo e reforça
os laços familiares.

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A minha pequena vida

Também é disto que os meus pequenos sonhos são


feitos.

2003-05-06

A partir de hoje vou ser comentadora. Vi um tal Marcelo


Rebelo de Sousa que manda umas bocas acerca de
tudo e que até é pago por causa disso. Não admira, é o
homem mais elegante de Portugal, portanto é justo que
seja pago. Claro que nunca percebi porquê: não tem um
bigode comprido e um pelo brilhante como eu, mas
espero que ele explique as razões num programa de
televisão e que eu não esteja a dormir nessa altura.

Se eu percebesse melhor o que se passa no Mundo


podia ganhar uma tonelada de Whiskas com os meus
comentários. Escrevia um livro, dava autógrafos e podia
comer salmão todos os dias. E não havia de ser do
congelado que a minha pseudo-avó manda, era só peixe
fresco.

Ainda hoje estavam a falar de viagens pagas por uma


Universidade como se de um crime se tratasse. Então
eles não fazem o sacrifício de viajar para aprender mais?
E qual é o mal disso se eles estão lá para aprender? A
má vontade contra eles deixa-me triste e confusa. Para ir
a França devem ser preciso horas fechado na mala de
transporte. Claro que a deles é maior do que a minha,
mas estar fechado esse tempo todo longe da caixa de
areia deve ser um desespero.

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A minha pequena vida

Como não quero ser obrigada a viajar já sei que nunca


hei de ir para a Universidade Moderna. Deve haver outra
maneira de aprender sem ter que sair de casa!

2003-05-07

Há que tempos que não tinha correio, mas hoje, depois


da greve, foi um dia de sorte. Dois pacotes de comida,
cada um com seis refeições deliciosas que obviamente
vão ser racionadas e divididas pelas próximas semanas.
E também vinham cupões de desconto para as
próximas.

Não sei porque é que gosto tanto de comida de gato,


mas tenho que admitir que esses bichos destestáveis
apesar de feios sabem o que é bom.

Tanta correspondência ainda atrasada e por entregar,


até correio expresso para a minha família, e lembraram-
se de mim. Afinal ainda há quem saiba reconhecer as
verdadeiras prioridades! Não volto a dizer mal dos CTT:
eles cumprem.

Mas mesmo assim ainda vou tentar escrever, não sei


quando é que vou receber mais prendas e tenho de
pensar no futuro porque tenho ouvido coisas muito
desagradáveis acerca das condições de vida na terceira
idade. É qualquer coisa relacionada com as pensões ou
com as reformas que ainda não me explicaram como
deve ser.

Hoje ouvi falar de abonos de família. Como tenho 6 anos


devo ter direito a isso. O Primeiro Ministro falou em

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A minha pequena vida

agregados familiares com filhos menores e eu como


pertenço a esta família e sou muito mais nova só posso
ser filha. O Ministro, que infelizmente é do Benfica e
portanto deve simpatizar pouco comigo, trabalha aqui ao
pé e de certeza que me recebe e me vai compreender.

Vou arranjar coragem para atravessar as ruas e tentar


explicar-lhe as minhas carências: não como comida de
lata todos os dias e isso prejudica o meu
desenvolvimento físico e psicológico e dificulta a minha
integração na sociedade. Vocês nem sabem como é
difícil ser tão pequenina.

2003-05-08

Mais uma guerra com um gato lá fora. O Iraque foi uma


brincadeira comparado com a minha guerra de 6 anos
contra os gatos. Contra os grandes e os pequenos, os
pretos e os brancos, já durou mais do que a Grande
Guerra. Já entrei em tantos combates, já fui ferida mas
também já dei umas boas arranhadelas que me sinto
uma veterana.

Hoje, ainda por cima foram dar comida à minha inimiga


figadal, a que tem micro-bichos como ela. Deram-lhe
comida de lata, o que é para mim um insulto e uma
ofensa pessoal. É como tirar a comida da minha boca e
pô-la na dela. Mesmo que eu não goste daquela comida
até fazia o sacrifício de a comer só para não a dar
aquela desavergonhada. Talvez lhe faça mal porque vi
que um dos pacotes estava fora de prazo. É sempre
preciso ter esperança que se faça justiça.

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A minha pequena vida

Mas vamos ao que importa. Acho que a Fátima


Felgueiras fugiu mesmo para o Brasil. Com aquele
penteado não engana ninguém, é de certeza uma
criminosa que todas as segundas-feira ia ao cabeleireiro
e pagava como o dinheiro da Câmara. Pessoas sérias
como eu usam o pelo curto.

Nestas alturas é que me sinto mais perto de apreciar a


justiça Salomónica, eles que fiquem com a parte
brasileira dela e nós com a portuguesa. E que a nossa
parte seja a do lombo que há cá muita gente a passar
fome.

2003-05-09

Só se fala do curto alcance do longo braço da justiça


portuguesa. Os que fogem para sempre são sempre os
brasileiros porque o Brasil não os devolve. Por um lado
não faz mal, vão fazer patifarias para outro lado e não
temos que os alimentar enquanto estão fechados nas
jaulas. Mas por outro, acho injusto porque deviam ser
castigados.

A minha proposta é que todos os brasileiros, ao entrarem


em Portugal, abdiquem da sua anterior cidadania e
recebam uma cidadania portuguesa temporária. Como
querem igualdade de direitos com os portugueses, então
esta é a melhor solução. Não querem, não entram! Vão
logo recambiados para o país irmão.

Aposto que ninguém no Governo vê isto com tanta


clareza como eu. E estes conselhos são grátis, sem
precisar de acessores ou de um gabinete de apoio. É so

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A minha pequena vida

a minha cabecinha a trabalhar, e não venham com


histórias de que o meu cerebrozinho só tem um
hemisfério ou que a minha testa é baixa e fugidia. Sou
mesmo esperta!

2003-05-10

Começo a estar farta desta história da fuga para o Brasil


daquela Felgueiras. Agora dizem que se refugiou numa
favela. Quem é que troca uma calma e pacata prisão
portuguesa pela violência e falta de higiéne de uma
favela?

Aquilo deve ser mesmo do piorio, cheio de gatos vadios


e maus, a fugir no meio da imundice, sempre a lamber o
próprio pelo e a comer restos de comida seca longe da
família, sem sequer poder aquecer o “pratochy”. Ela que
passe vinte e cinco anos de favela em vez de passar
esse tempo na prisão e veja em que estado é que fica o
pelo. Provavelmente volta de lá pelada.

Esta notícia faz esquecer tudo o resto neste país. Não se


fala de mais nada e as pessoas até se esquecem de que
a economia não vai bem, que o PSD fez anos ou que o
Santana Lopes quer ser Presidente. Aquela doença
nunca mais lhe passa e se não tirar o Terminal
Rodoviário das imediações do meu Bairro, se já tiver
dezoito anos quando ele se candidatar, prometo que não
voto nele. Está mais preocupado com o Casino do que
com o meu futuro jardim. Só espero que não construa o
Casino no local do Terminal a pensar que resolve dois
problemas de uma só vez.

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A minha pequena vida

Nem lhe vou falar disso apesar da ideia ser brilhante.


Com o meu QI podia ganhar facilmente aquele novo
concurso da televisão que agora foi anunciado, mas era
injusto não dar hipóteses aos concorrentes, sobretudo
porque são muitissimo mais velhos do que eu e podia
ser humilhante para eles.

A sorte deles é eu ter uma alma verdadeiramente


caridosa.

2003-05-11

Domingo devia ser o meu dia de folga. Foi uma semana


muito agitada e fartei-me de trabalhar e de escrever. Mas
como o mundo não para e precisa de orientação e bons
conselhos decidi fazer mais um sacrifício. Há poucos
como eu, que o façam sem ser candidatos a nada e
sobretudo sem receber um euro ou uma lata de comida!
Não percebo como é que os comentadores e analistas,
pagos a peso de ouro, não estão todos gordissimos.
Devem ter dinheiro para comer lata todos os dias. Ou
têm latas “light” ou são obrigados a fazer exercício. Deve
ser a primeira opção, só sobre duas patas não deve ser
possível andar muito sem perder o equilibrio. Ainda por
cima sem cauda, coitados!

Aquela senhora, vocês sabem de quem falo, deve ter


fugido com milhares de latas. Se não fosse assim não
teria ido para o Brasil, onde há tantas dificuldades em
conseguir Whiskas. Acho que tinha um grande depósito
de latas na Suiça e fez uma transferência para o Brasil.
Pelo menos foi o que ouvi dizer.

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A minha pequena vida

2003-05-13

Foi o segundo dia em que houve atentados. Depois da


Tchetchénia foi a Arábia Saudita. Claro que são os
muçulmanos que são responsabilizados. É uma óbvia
injustiça, até porque já não consigo falar com o Bin há
imenso tempo e se fosse obra dele tinha sido informada.
A última coisa que quero é ter uns suicidas expontâneos
a dar cabo dos meus planos. Mas isto vai continuar, de
certeza, e sempre longe daqui porque aquele santo
homem não havia de querer que algo de mal me
acontecesse.

Também é o dia em que os infieis se reunem em Fátima


para comemorar aquela aparição. Não tenho dúvidas
que foram os americanos que inventaram tudo aquilo e
usaram efeitos especiais para convencer tanta gente.
Felizmente a verdadeira Fé não precisa daquilo.

2003-05-15

Os chineses decidiram começar a matar quem transmitir


a SARS intencionalmente. É um desperdício, primeiro
porque não vale a pena tratá-los de uma doença mortal,
julgá-los e matá-los a seguir. Depois porque as famílias
deles se vão revoltar quando lhes pedirem para pagar a
bala. Então os desgraçados não iam morrer de graça?

Se o presidente Mao, o Grande Timoneiro, estivesse vivo


de certeza que se lembrava disto. Agora aqueles
novatos pseudo capitalistas ainda não aprenderam nada
sobre economia global.

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A minha pequena vida

Agora sei que é da China que vem a “lalanja” que


comem com o pato. É uma especialidade parecida com
as nossas laranjas mas acho que tem um sabor mais
oriental. De pôr os olhos em bico para quem tem pupilas
horizontais.

2003-05-16

Mais um dia de violência em toda a parte. Começou


quando um gato feio, porco e mau veio à minha rua. Tive
que correr com ele porque não admito provocações e
destesto que me visitem sem serem convidados. Na
verdade, eu também não convido ninguém, por isso não
tenho dúvidas: cada visitante é um intruso.

Aconteceu o mesmo ao Francisco Assis quando foi a


Felgueiras. Não foi convidado, portanto era um intruso. E
eles fizeram como eu, correram com ele. Eu também não
admitia uma provocação dessas. O homem até podia ter
razão, não estou a dizer que tem, é só uma hipótese
académica, mas não tem sentido da oportunidade nem
das conveniências. A isto chama-se má educação. Não é
de famílias finas como eu.

Portanto é um espanto haver tanta gente com pena dele,


ele que era o invasor e o perturbador da ordem pública a
querer impor a sua presença naquela terra pacífica cheia
de gente simples. É como os americanos no Iraque, mas
estes é mais difícil de por a andar, o que demonstra que
até em termos tácticos o homem estava errado. Nem
nisso ele acertou, se queria invadir Felgueiras tinha de
levar mais gente com ele porque isto de vitórias morais

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A minha pequena vida

já acabou há muito tempo. Acho que desde o tempo do


Eusébio que ninguém fala disso.

Agora vamos esperar que ele volte em força. Talvez


peça ajuda ao Bush. Já que a guerra do Iraque acabou
sem glória e até o salvamento daquela rapariga parece
que foi encenado, uma guerra a sério em Felgueiras
vinha mesmo a calhar.

2003-05-17

Já sabia que esta telenovela de Felgueiras ia continuar.


É disto que a gente gosta, que faz vender os jornais e
aumenta as audiências televisivas. O país pára,
esquece-se a crise e os escândalos desde a Moderna
áquela coisa da pedófilia e só se fala nisto. Claro que
quando for a Final da Taça UEFA já só se vai falar disso
e Felgueiras, a Fátima e a terra, vão ser esquecidas pelo
menos durante alguns dias.

Para muitos é uma felicidade que o País passe sem


sobressaltos de um escândalo para outro, como se isso
fosse a ordem natural das coisas. Se calhar é mesmo
assim e eu é que estou enganada. Como um dia me
disseram que a normalidade é um conceito estatístico, o
que seria anormal devia ser a falta de escândalos ou
confusões. Portanto vivemos em clima de normalidade
democrática no meio de tudo isto. É óptimo saber de
política e de estatística ao mesmo tempo, poucos
governantes sabem ao menos duma destas ciências,
quanto mais das duas.

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A minha pequena vida

Ainda bem que as instituições funcionam, os tribunais


julgam, o Governo vai governando e o Presidente da
República, bem, esse limita-se a existir, mas é essa a
função dele. Se tivesse idade gostava de ser Presidente.
Acho que os presidentes comem muito bem e podem
escolher a ementa, não se limitam a comer o que lhes
dão e a esperar por quarta-feira para ter uma lata ao
jantar.

Pensando melhor, os tribunais julgam, os condenados é


que não cumprem as sentenças, limitam-se a fazer
negaças do outro lado do Atlântico. E falava aquele
ministro do “longo braço da jsutiça portuguesa”. Não
chegou para ir buscar um português a Espanha, quanto
mais conseguir trazer uma pseudo-brasileira do Brasil.

2003-05-18

Os “fedayins” de Felgueiras não desistem. Agora até já


fizeram um apelo à Intifada contra a ocupação
portuguesa do concelho. Desda vez vai ser a doer, as
pedradas dos partidários da Fátima contra os blindados
do Governo. Também podemos pedir uns conselhos ao
Sharon, que sabe lidar muito bem com estes problemas.

É quase como a revolta da Maria da Fonte, que segundo


consta não acabou muito bem para a protagonista.
Esperemos que a História se repita e que aquele
simpático Hermano Saraiva um dia venha a falar disto.
Estou mesmo a vê-lo em frente de uma campa rasa a
comentar as desventuras da dita ex-autarca.

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A minha pequena vida

2003-05-19

Não concordo com a insistência na demissão dos


autarcas de Felgueiras. Numa época de desemprego é
mau para as estatísticas e está-se mesmo a ver que não
era fácil conseguir outro emprego. Esta visão é mais
abrangente e demonstra que eles têm razão em ficar.
Afinal sempre há males que vêm por bem ou, como
dizem os Infieis, Deus escreve direito por linhas tortas.

Este provérbio é para mim um bocado absurdo porque


eu só sei escrever com o computador. Não sei porquê,
mas os meus polegares não ajudam a segurar uma
caneta e com o computador escreve-se sempre a direito.
Provavelmente Deus não tinha computador! Ou pior, não
sabia usá-lo. Deve ser isso, com aquelas manias da
simplicidade não deve ter aprendido. Pior para Ele! Vou
ficar por aqui porque não quero entrar em conflitos com
os Infieis. Não quero ser acusada de blasfémia por saber
coisas que Ele não sabe. A minha pseudo-avó se
ouvisse esfolava-me como um coelho! O nosso grande
dia ainda não chegou e entretanto tenho de ser
cuidadosa.

2003-05-20

Finalmente prenderam aquele embaixador pedófilo. Era


inevitável e uma imposição moral. Eu sei que moral e
justiça nem sempre coincidem, mas aqui estiveram de
acordo. Ainda bem que este não tem outra cidadania,
para além da portuguesa senão tinhamos mais um
escândalo a bater à porta.

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A minha pequena vida

Tal como previra tudo o resto perdeu importância face ao


jogo de amanhã. É uma pena não conhecer as regras,
portanto acho tudo um bocado absurdo. Salva-se a festa,
mas a gastronomia não está de acordo com o meu
paladar.

Mas hoje foi um grande dia. A minha familia instalou o


terceiro computador e já está operacional. Como somos
três, é inevitável que este seja para mim. Já nos estou a
ver todos, cada um diante do seu écran, sem termos de
lutar por um computador. Como sou a mais pequenina
fico sempre a perder. A harmonia familiar é muito
importante e este passo foi decisivo.

Alá é grande! Já estou online!

2003-05-21

Começo a ter medo disto da pedófilia. Basta uma


denúncia e uma conversa descuidada e fica-se logo
dentro de uma jaula. Ainda mais grave, as vítimas têm
doze anos ou mais, ou seja mais do dobro da minha
idade. Daqui a uma meia dúzia de anos também posso
estar em perigo. Claro que só se crescer um bocado,
porque sendo pequenina como eu devo passar
despercebida.

Mas eu não tenho dúvidas de que estas denúncias


contra os socialistas são obra da ex-autarca. É
obviamente uma vingança pessoal por parte daquela
criminosa, corrupta, furagida, impostora prevaricadora e
mais uma série de outras coisas. Deviam acusá-la
também a ela, ou por ser fêmea não pode ser pedófila?

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A minha pequena vida

2003-05-22

Isto começa a ficar negro. Todos os dias há gente


enjaulada. Quando vejo os meus primos no Jardim
Zoológico fico cheia de pena. Com as pessoas deve ser
o mesmo, o dia todo de um lado para o outro sem poder
sair, com uns nacos de carne e gente a ver e ouvir tudo.
As escutas são feitas assim, prende-se o suspeito na
jaula e ouve-se o que ele tem para dizer.

Agora em relação aquele deputado não estava nada à


espera. Um sujeito importante, que até já foi o ministro
responsável pela Casa Pia e um dos muitos que mandou
arquivar ou rever os inquéritos. Não foi por mal, era uma
questão de manter o diálogo, mesmo quando tudo
parecia perdido. E não se culpe o homem, era uma
política governamental: dialogar e adiar. Quando deixou
de ser possível, coerentemente, desistiram e foram-se
embora do Governo.

Agora com prisões todos os dias vão ter de construir


mais jaulas. Isto vai sair caro a menos que comecem a
cobrar bilhetes aos visitantes e a controlar o tempo de
cada visita. Talvez a Ministra da Justiça queira uma
acessora expedita como eu, capaz de rentabilizar todo o
sistema sem a necessidade de trabalhos forçados. Só
através de visitas guiadas. Até podia haver um
comboiozinho passar pelas jaulas e um guia turístico a
explicar as características dos residentes. Se fosse um
comentador famoso como o da TVI, então até podia
aumentar os preços. Penso que isto não viola direitos
nenhuns porque se faz no Jardim Zoológico e ninguém

24
A minha pequena vida

se queixa. Claro que se sugerisse à Ministra das


Finanças ela até me oferecia um emprego. Pedia pelo
menos mil latas por mês. Só esta sugestão vale mais do
que isso, portanto ficavamos todos a ganhar.

2003-05-23

Em vez do “pratochy” decidi optar pelo meu computador


como aquecimento. É uma espécie de dois em um, para
além da utilização comum, a única que os outros
conhecem, existe uma zona de aquecimento perto de
onde está ligado um cabo e que é muito confortável.
Desta forma, o que consigo poupar em electricidade para
aquecer o “pratochy” pode ser utilizado em latas. Penso
que estamos todos de acordo em relação a isto. É uma
evidência e não necessita de mais explicações. Trata-se
de uma gestão interna do orçamento e de mudar verbas
de uma rúbrica para outra. O Governo também faz isso e
ninguém se queixa.

Mais prova da minha inteligência e propensão para


Ministra das Finanças. Se ela soubesse poupar como eu
este país estava muito melhor. A partir do próximo
Inverno, que quiser aquecer-se nos serviços públicos
encosta-se ao computador, á fotocopiadora ou a outro
equipamento qualquer em vez de gastar em
aquecimento.

Aliás, eu que só tenho o meu próprio casaco de pelo


inamovível, tenho muito mais razões para ter frio do que
todos esses funcionários que têm dezenas de casacos e
de abafos. Para isso não lhes falta dinheiro, mas nunca
se esquecem de reivindicar mais. Eu só tenho aquilo

25
A minha pequena vida

com que nasci e não sou tão queixinhas. Estas ideias


miserebilistas dão cabo da economia do País.

2003-05-24

O dia não começou mal, mas ao fim da tarde tive visitas.


Ou melhor, houve estranhos que entraram cá em casa
sem que eu fosse avisada. Como se não bastasse foram
para o escritório e estavam ao pé do meu computador
novo e da minha janela favorita. Não podia aceder-lhes
sem passar por eles. Para mim a privacidade do lar é
muito importante, esta ligado a direitos fundamentais de
que não prescindo e não vou desistir sem luta.

Por isso acompanho sempre as questões da justiça em


Portugal, se precisar alguma vez de ir a um tribunal já sei
como são. Ainda não sei bem aonde ficam e tenho medo
das acessibilidades, mas não vou hesitar se precisar de
por a minha trouxinha no lombo e meter-me a caminho.
Se for muito longe sempre posso ir à Esquadra da
Polícia aqui no Bairro. Já vi um dos residentes a fazer
festa a um gato, portanto deve ser aliado deles e hostil
em relação a mim, mas pode ser que haja lá quem esteja
do meu lado.

2003-05-25

Finalmente voltaram a plantar erva. Como já referi, trata-


se de um luxo asiático que leva imensa gente à prisão e
cria problemas terríveis na sociedade. Infelizmente
preciso dela para digerir a restante comida. Há quem

26
A minha pequena vida

opte por fumá-la mas a mim isso não deve resultar. Se


calhar fumada sabe melhor...

Estou a mudar de ideia. Realmente o computador tem


imensas vantagens em relação ao “pratochy”. A
temperatura é constante, não arrefece passadas umas
horas e também serve para navegar na Internet e
escrever as minhas reflexões.

Às vezes pensam que durmo muito. Como diz o outro, é


uma calúnia, uma cabala e uma manobra de forças
inconfessáveis. Eu preciso é de muita concentração para
meditar e não consigo fazê-lo no meio da confusão e do
rebuliço. Isto de ter boas ideias gratuitamente na
verdade custa muito.

2003-05-26

Definitivamente esta erva não é instantânea. Hoje fui ver


os vasos e ainda não cresceu nada. Tenho a certeza de
que não são sementes escolhidas, devidamente
adubadas e protegidas contra as doenças e pragas.
Também não deve ser subsidiada, apesar de ser uma
forma de agricultura. Num país em que se subsidía tudo,
em que os agricultores são apoiados mesmo que não
produzam ou pagos para destruir o que produziram, eu
também devia ser incluida neste esquema tão bizarro.
Se calhar até me vão querer cobrar impostos sobre a
produção de erva.

Mas eu gosto mesmo de revolver a terra, os meus


bisavós viviam muito longe, eram agricultores e também
faziam o mesmo. De certeza que herdei algo que me

27
A minha pequena vida

leva a manter a tradição da família. Mas é só uma


actividade ocasional, porque a agricultura tem pouco
futuro neste país e eu quero ser uma personalidade
importante. Sempre quis ser politíca, mas agora isto está
mau, estão todos a ser presos ou interrogados e eu
nunca mais atinjo a maioridade. Antes disso não posso
ser eleita mesmo que o povo me aclame e queira votar
em mim. Há-de haver sempre impedimentos legais que
impeçam a verdadeira democracia.

Deviam mudar estas leis que vêm do anterior regime e


substituí-las por umas mais democráticas. Segundo um
advogado brasileiro ainda há heranças do salazarismo
no nosso quadro legal. Na altura não percebi do que
estava a falar, mas agora é evidente que é por minha
causa. E diziam mal do homem, coitado.

2003-05-27

Quando o Presidente da Câmara disse que ia devolver


Monsanto à população pensei que se tratava de um
convite ao lazer e a um passeio pela natureza.

Afinal as pessoas recebem um postal em casa, o tal


convite, e em vez de ir passear pelo campo vão a uma
estranha casa prestar depoimentos.

Mas mais uma vez é uma descriminação, porque só


pessoas importantes e políticos é que são convidados.
Distingo sempre entre os dois: pessoas importantes são
as que importam nas colunas sociais. Políticos são só o
que o próprio nome indica: apenas políticos, coitados.

28
A minha pequena vida

Seja como for, não me convidaram para ir à selva de


Monsanto. Também não queria porque está cheio de
bichos, que é aquilo a que chamam natureza, e pessoas
indesejáveis, que estão enjaulados ou em vias disso.
Portanto podem querer fazer-me mal e não sei se a lei
me protege devidamente contra escutas clandestinas e
outras patifarias de que tanto se fala.

Além disso falam de espectáculos populares em


Monsanto. Está-se mesmo a ver que é daquele circo a
que alguns chamam julgamentos, com televisões à volta
e artistas de qualidade duvidosa.

Eu sei que agora já têm um apresentador profissional


mas penso que mesmo assim a programação é fraca e
não corresponde às minhas expectativas. Pelo menos é
grátis. Se distribuissem qualquer coisa para comer, isto
até se compunha.

2003-05-28

Vou começar uma nova campanha reivindicativa. A partir


de agora quero comer à mesa com a minha família. Eles
comem juntos, sentados e a ver televisão, e eu fico ali,
sózinha na cozinha. Estas condições não se admitem. É
uma vergonha ter que comer ao lado da minha casa de
banho. Que indignidade! São coisas destas que
destroem a unidade familiar.

E ao deitar é a mesma coisa. Eles vão para o quarto à


noite e fecham a porta. E se eu estiver lá dentro, se tiver
chegado primeiro, convidam-me a sair. Aliás, basta
fecharem a porta comigo lá dentro e eu entro logo em

29
A minha pequena vida

pânico. Se eu tiver de ir à casa de banho ou tiver fome


durante a noite como é que saio? A porta devia estar
sempre aberta e a família toda junta. Assim até parece
que não gostam de mim!

2003-05-29

Já sei que vai haver umas vagazitas para juizes. Um


bom lugar para mim. Podia mandar prender todos estes
gatos horríveis e maus e ter segurança pessoal. Ainda
não percebi muito bem para que é que isso serve, mas
se tiver alguém em permanência que me trouxesse
comida e fizeesse umas festas no lombo não calhava
nada mal. E sendo eu juiza e a segurança um polícia,
sempre podia ir mandando prender as pessoas de que
não gostasse. Isto é, que achasse suspeitas de qualquer
coisa. Punha-as em prisão preventiva por perturbar o
curso da justiça, que seria o mesmo que perturbar o
curso da minha pequena vida.

Nós, muçulmanos, somos partidários de uma justiça


mais rápida. Um pequeno tribunal itinerante era o ideal
para mim. Ia passeando e administrando a justiça
corânica de passagem. Bastava-me um executor e um
relator. Muito mais barato, rápido e eficiente do que a
justiça ocidental. Além disso os recursos são com Alá,
que segundo consta também não cobra nada pela
segunda instância ou pelo Supremo e tem a vantagem
de não se enganar. Portanto daqui não há necessidade
de qualquer apelo e eu sinto-me muito mais tranquila
porque sei que se, por absurdo, por hipótese meramente
académica, me enganasse, seria corrigida. Isto dá-me

30
A minha pequena vida

confiança a sério e permitir-me-ia avançar sem qualquer


hesitação.

2003-05-30

E lá vai mais um. Quando acabar ests processo vai


haver muitas vagas quer na política quer no espectáculo.
Boa medida e excelente coordenação do nosso
Governo. A diminuição do desemprego à custa do
aumento de presos previamente empregados. Não me
tinha lembrado dessa, mas é de mestre. Envolve vários
ministérios, uma certa colaboração do meio judicial e um
jeitinho da Polícia. Se já não houver vagas nas prisões,
deixam-se fugir para o estrageiro como aconteceu com
aquela cabeleira de laca que fugiu para o Brasil. Talvez o
Herman tenha uma dupla nacionalidade alemã e também
escolha esta nova forma de emigração.

Não quero ser paranóica, mas isto está tudo muito mais
bem planeado do que alguma vez pensei. Deve ter dado
imenso trabalho a muita gente, que de outra forma
estaria desempregada, desde polícias a juizes, passando
pelas testemunhas. Porque isto de ser testemunha num
processo destes também pode ser uma profissão para
os próximos anos e exige uma preparação aturada e
uma dedicação completa. Alguns andam a treinar desde
miudos para isto!

E quando começar o julgamento ainda vai haver mais


empregos, contando com advogados, jurados e tantos
outros funcionários que são necessários.

31
A minha pequena vida

Portanto hoje, e pelo planeamento que esta operação


envolve, os meus parabéns vão para o Ministro Bagão
Félix, que conseguiu diminuir o desemprego à custa de
testemunhos de alunos da Casa Pia que também tutela.
Como futura contribuinte da Segurança Social, presto-lhe
a minha sincera homenagem.

2003-05-31

Logo de madrugada faltou a energia eléctrica.


Provavelmente o Presidente da Câmara não pagou a
conta e ficamos todos sem energia. Gastou tudo com o
Casino e depois dá nisto. E o pior é que sem
computadores a funcionar não tenho a minha fonte de
calor favorita. Devia ser indeminizada mas não quero
que um processo destes venha atrapalhar ainda mais os
tribunais. Ajustamos contas nas próximas eleições.

A minha família decidiu contribuir para o Banco


Alimentar. Parece que não sabem que a caridade
começa em casa e esqueceram-se completamente de
mim. Um dia destes e nem um petisco. Felizmente
amanhã é o Dia Mundial da Criança, e penso que com 6
aninhos estou englobada. Esperemos que não se
esqueçam de mim, porque dias destes é só um por ano.
É como os aniversários!

Mas este foi um dia tranquilo. Não houve prisões nem


novos escândalos, o PS de Felgueiras contínua fiel à
Fátima, o Procurador Geral da República não fez
declarações duvidosas e até os gatos de lá de fora
estiveram longe. Não acredito que isto contínue assim, é

32
A minha pequena vida

bom demais para ser verdade e este não é o País em


que vivemos.

2003-06-01

O Campeonato acabou hoje. Como de costume neste


país, apesar de só um ser Campeão, parece que há
muito mais vencedores do que vencidos. Basta olhar
para as comemorações para me aperceber disso e ainda
bem que assim é porque o povo tem andado triste e
deprimido. Claro que para os poucos que se sentem
realmente derrotados é muito pior, estão muito mais
isolados e parece que carregam todos os males do
Mundo.

Pelo menos sempre foi um dia em que se esqueceu um


pouco os escândalos, as injustiças, o desemprego e a
crise. No mês passado foi Fátima, hoje foi o futebol.
Fado, esse, temos todos os dias, normalmente com
maus intérpretes e tristes canções mas, na verdade, já
estamos tão habituados que até aplaudimos.

Tenho de pensar noutras coisas senão ainda fico


deprimida quando na verdade não tenho razões para
isso. Para além dos habituais incidentes com a gataria a
vida e de não ter recebido nenhum presente pelo Dia
Mundial da Criança até que não corre mal e a aquisição
do terceiro computador veio melhorar a qualidade de
vida. Vou considerar que foi esta a minha prenda
antecipada. O Prof. Marcelo pelo menos neste aspecto
tem toda a razão, se só pensarmos em tristezas tudo nos
vai correr mal.

33
A minha pequena vida

2003-06-02

Ser juiz afinal é perigoso! Tal como ser procurador do


Magistério Público. Não bastava andarem aqueles
malandros de volta do juiz da Casa Pia, ainda tinha que
haver um médico a querer dar uma tareia num
magistrado. Possivelmente o médico tinha falta de
trabalho, mas escolher quem o investigava por causa de
acusações de negligência não revela uma grande
esperteza. Mandava bater nele e a seguir deixava-o
morrer negligentemente esperanddo que a Ordem o
perdoasse. Afinal, talvez o plano não fosse mau! Da
maneira como as coisas são até podia safar-se apenas
com uma repreensão por parte da Ordem.

Ém plano brilhante, pedir para dar uma tareia ao sujeito


no dia em que fazia serviço de urgencia. “Lamento, fiz
tudo o que estava ao meu alcance mas não havia nada a
fazer. Aquele par de estalos que lhe deram e o entalão
na porta foi mortal.” ou “Não era humanamente possível
fazer mais. Aquela unha encravada provocou uma
infeção e faleceu em consequência de problemas pós-
operatórios”.

Vou ter que pensar noutra profissão, e a de comentador


vem sempre à baila. Não custa nada criticar os outros
depois das coisas lhes terem corrido mal. É seguro e,
segundo consta, bem pago desde que se tenha um
contratozito com uma estação de televisão. E eu até que
saio barata. Pelo menos não preciso de caracterização
nem de vestidos novos todas as semanas.

34
A minha pequena vida

2003-06-03

Amanhã os dirigentes do PS vão prestar declarações.


Até que enfim diz um deles, que chatice diz o outro.
Aquele partido está mesmo aos bocados. Nem posso
concluir se ir testemunhar é bom ou mau. Já percebi que
não é proveitoso porque a maioria das testemunhas não
é paga.

Felizmente há excepções, e essas até ganham bem,


mas os juizes são invejosos e não gostam. Então uma
pessoa é convocada mesmo sem querer e tem
obrigatoriamente de ir lá contar uma história. Se não
sabe nenhuma história original que valha a pena contar
ainda por cima tem que ter o trabalho de a inventar, e
não é pago para isso?

Mais uma reforma que é necessário fazer na Justiça. Os


testemunhos passam a ser pagos e os tribunais para os
rentabilizar ficam com o direito de publicar as melhores
histórias.

Assim todos ficam felizes e até pode haver uma


profissão de testemunha devidamente reconhecida e
com possibilidades de carreira, desde testemunha ocular
até testemunha crucial.

Isto representa menos desemprego, mais impostos e


maior facilidade em obter testemunhos. Beneficia o
Governo em várias áreas distintas,desde a Segurança
Social até às Finanças, passando pela Justiça e no fim
todos nós ficamos a ganhar.

Até eu, se me deixarem ser testemunha!

35
A minha pequena vida

2003-06-04

Esta imunidade é mesmo para lamentar. É como uma


espécie de jogo viciado em que só se perde quando nos
deixam. E quem decide são os nosso amigos e colegas.
Quando ouvi o homem dizer que entrou e saiu do
Tribunal como testemunha só me ocorreu: espera
amanhã pela visita do Juiz à Assembleia da República.

Eu, pelo menos, nunca tive imunidade. Se vier alguem


atrás de mim só a minha família é que me pode valer. E
a coleira com o número de telefone para as
emergências.

Agora vejo que realmente há muito mais gente implicada


do que pensava há uns dias atrás. Uns participaram
activamente, outros ajudavam e os restantes calavam.
Nem sei quais são os piores, se os que tomavam parte
activa, se aqueles que sabendo que era um crime não o
denunciaram, não o tentaram evitar ou demover os
demais e esqueceram as responsabilidades que tinham
como detentores de cargos públicos. Agora vão-se
encontrar todos e vamos a ver em que fica a sua antiga
cumplicidade solidária de tantos anos.

E é só disto que se fala, até parece que o País não tem


outros problemas. Sorte a do Governo que sem saber
porquê até se torna popular. Azar a da Oposição que
não pode aproveitar as dificuldades por que passamos.
E sobretudo pouca sorte a nossa, que não vemos os
problemas a serem resolvidos e vivemos deprimidos o
dia todo.

36
A minha pequena vida

Mas chega de falar de coisas tristes. Hoje tive lata ao


jantar, tenho erva orvalhada no quintal e uma tijela de
leite fresco. Apanhei um banho de sol no quintal, pude
descansar no quarto grande e dormir encostada ao meu
computador novo. E ainda há quem diga que a vida corre
mal neste país à beira mar plantado!

2003-06-05

Socialista, autarca e mulher. Uma combinação


especialmente perigosa aos olhos da Justiça portuguesa.
Nem é preciso procurar mais, estabelecem-se os
critérios e é sempre a eito. Aqui está uma boa teoria da
conspiração aos olhos de muitos dirigentes do PS. Ou
como dizia o outro “que mais irá me acontecer?”. Agora
é a frase que anda na boca do Secretariado.

Nem vale a pena comentar porque era inevitável.


Chegou a altura dos ex-autarcas começarem a ser
perseguidos. Bastava os sucessores serem de outro
partido e logo se descobrem todas as irregularidades nas
contas. Mas será que eles acreditavam que iam estar lá
para sempre? Ou que pelo menos seria sempre alguém
do Partido? Boa noção de democracia esta onde a
chamada alternância só é uma virtude para quem está
na oposição.

Felizmente vem aí o 10 de Junho e todas as


comemorações. Até me disseram que vão condecorar os
oficiais que arriscaram a vida como comentadores
televisivos, quase como repórteres de guerra, sujeitos a
apanhar com uma câmara de filmar na cabeça ou a

37
A minha pequena vida

tropeçar num cabo de iluminação e morrer


electrocutados. Se aquilo não é coragem é porque ainda
ninguém se apercebeu dos riscos envolvidos! E eles
mantiveram-se ali, com toda a calma e aprumo, sem
aparentar qualquer receio durante a nobre missão de
nos informar.

Se eu comentasse a guerra em vez da paz talvez hoje


fosse comendadora e pudesse ostentar orgulhosamente
uma Cruz de Guerra de 1ª Classe na minha nobre coleira
vermelha.

Esperemos pela próxima guerra, que não deve tardar


muito. Presumo que seja antes das próximas eleições
presidenciais americanas, o que me vai permitir ser
condecorada para o ano. Podem já reservar a minha
medalha!

2003-06-06

Que horror! Aqueles bichos pequenos estão vivos! Já


não os via há tanto tempo que pensei não voltar a vê-los
e eis, senão quando, estão ambos vivos e de saúde.
Como eu odeio gatos! E agora vou ter que aturar mais
dois que vão crescer ao Deus dará, sem uma educação
cuidada, uma família de moral sólida e ainda por cima
sem um mínimo de higiéne. Deviam ir para uma
instituição de caridade e, de preferência, para uma que
fosse muito longe daqui e tivesse regime de reclusão.

Agora que desabafei estou mais tranquila. Sei que o dia


está estragado, mas mesmo assim ainda vou tentar
analizar as notícias.

38
A minha pequena vida

Importante foi ver o nosso Primeiro Ministro com o Bush.


Sempre detestei aquele texano, mas em política temos
que saber engolir uns sapos de vez em quando. E este
era um sapo gigante, como aqueles que vivem nos
trópicos, mais parecia uma iguana ou um dragão de
Komodo .

Agora que a guerra acabou chegou a altura de dividir os


despojos e proceder ao saque de uma forma organizada.
Nós apoiamos os vencedores, estivemos do lado
politicamente correcto, e vamos ser recompensados.
“Elementar, meu caro Watson!”, como diria um célebre
detective. Como não podiamos evitar a guerra e menos
ainda alinhar pelos futuros derrotados, a opção era
inevitável. Pode custar alguns votos agora mas vai dar
dinheiro daqui a uns tempos, provavelmente na altura
das próximas eleições. Enfim, é uma troca justa, e se
formos objectivos nem morreu assim tanta gente!

Pois é, não está mal pensado, e parece que o Bush até


aprecia e tem em grande conta as opiniões honestas do
nosso Primeiro Ministro. Provavelmente até foi ele que
planeou tudo e acomselhou o outro, que veio de uma
aldeola do Texas e é um tipo simples, a invadir o Iraque.
Vou investigar esta pista que me parece promissora. E
depois dou umas dicas ao Juiz do caso da Casa Pia, o
tal que gosta de enjaular pessoas. Durão, tem cuidado
comigo!

2003-06-07

39
A minha pequena vida

Hoje é o início da época de férias. A próxima semana,


com dois feriados, uma ponte simples e uma dupla vai
ser a menos produtiva do ano, pelo menos até agora.
Para quem falava em aumentar a produtividade isto não
augura nada de bom.

A minha esperança é que o Rumsfeld e a Fátima


Felgueiras ainda consigam dar alguma animação a um
país que entrou de férias.

A antevisão da conferência de imprensa da Fátinha


deixa-me o pelo em pé. Já a estou a imaginar a falar do
seu fraco coração, esvaído de tanto amar o povo de
Felgueiras e sangrado pela injustiça que lhe fizeram. Um
misto de choro emocionado e de ameaças veladas numa
actuação que deve ser candidata ao Óscar. Há alguns
papeis que lhe assentam bem, mas pessoalmente
preferia vê-la no da cena final da Maria Antonieta. Só a
parte em que ela inclina a cabecinha cheia de laca, que
o resto fica à imaginação de cada um.

Do Rumsfeld pouco espero. Não lhe acho piada e


escolhe mal as companhias. Talvez os bloquistas façam
alguma manifestação e me possa divertir com algum
cartaz mais engraçado. Só espero que o homem não
venha cá no 10 de Junho para ser condecorado. Já não
bastava dar umas medalhas aos comentadores bélicos,
agora também ao patrocinador da guerra em pessoa!
Claro que se já houver um negócio feito para a
reconstrução do Iraque, aí o caso muda de figura.
Pagamos a medalha com os lucros, mas só a recebe
quando fizermos contas.

Isto de condecorar fiado já deu o que tinha a dar.

40
A minha pequena vida

2003-06-08

Esta do perdão de pena quase que parece feito à


medida: por políticos e para políticos. De suspeitas não
se livram porque como dizem os italianos “si non e vero,
é bene trovato”. Até podia parecer que são videntes, mas
como dotes sobrenaturais não abundam entre os nossos
políticos, a conclusão pode ser algo mais concreto. Ou
uma fugazinha de segredo de justiça.

Na verdade, penso que o perdão apenas foi feito para


compor as estatísticas e reduzir os custos do sistema
prisional. Como Sua Santidade tardava, escolheram o
25º aniversário da Revolução.

Também podia ter escolhido o meu aniversário, mas eu


dispensava este tipo de homenagem. Se fosse comigo
era mais um ano a cada um, e isto porque tenho bom
coração, caso contrário recorria à justiça islâmica. Isso
sim, é que era poupar. Se a actual Ministra das Finanças
se apercebesse disso amanhã já aparecia de “burka” e
anunciava uma redução do orçamento da Justiça em
90%..

Mas a justiça portuguesa vai mesmo mal, sobretudo


devido à lentidão e falta de credibilidade, e sempre que
penso que está melhor vêm estes fantasmas do passado
para voltar a lançá-la no descrédito.

Se eu precisasse de um advogado, onde é que eu ia


buscar dinheiro para lhe pagar? Tinha de pedir um
emprestado à Ordem e provavelmente só me davam um

41
A minha pequena vida

estagiário a quem eu teria de ensinar a profissão! De


graça, claro, porque um estagiário também não ganha
que chegue para pagar explicações particulares.

Mas não menos importante foi a mensagem do


Presidente Bush às comunidades portuguesas. O texano
até falou em Luís Vaz de Camões e alguém lhe disse
que era poeta. Que pena não lhe poder perguntar
quantos olhos operacionais tinha o artista! Pelo menos
ficou a intenção, mas começo a achar que estão a dar
muita graxa ao nosso País. Ou já lhes prestamos um
grande favor, e acho que a jantarada das Lajes não foi o
suficiente, ou ainda o vamos fazer, e isso assusta-me.
Afinal o que quer de nós o tio Sam? Isto quase que dava
para fazer uma telenovela, porque, para já até parece
uma linda história de amor.

2003-06-09

Aquilo é que era um automóvel mixuruca. Nada de


Jaguar, apenas um humilde Skoda Fabia para
transportar o Dr. Portas. É uma forma de dizer “era bom
mas acabou-se, deixem-me em paz”. Se tivesse ido de
Jaguar era muito mais divertido e tinha outro significado
político “é uma questão de status, mereço-o e tenho-o”.

Mas o que é facto é que foi e voltou, o que em linguagem


militar significa que a missão foi um sucesso.
Independentemente dos resultados não houve baixas
pelo percurso, o que por sí, já é mais uma vitória militar
para o Ministro da Defesa. Um verdadeiro sobrevivente.

42
A minha pequena vida

Claro que isto não vai ficar, por aqui. Na verdade ainda a
procissão vai no adro e como se costuma dizer, até ao
lavar dos cestos é vindima. Portanto, não esqueçam a
sabedoria popular e preparem-se para o segundo
“round” lá mais para Setembro. Tomem nota do que eu
digo, e já que estamos em maré de citações, lá vem uma
das minhas favoritas “eu nunca tenho dúvidas e
raramente me engano”. Ou será que era ao contrário?

2003-06-10

Péssimas notícas: em vez de dois são quatro os


horríveis e minúsculos bichos que nasceram no mês
passado. Quando tiver tempo ainda vou fazer um estudo
sobre a explosão demográfica e as suas consequências
nefastas. Não estamos a falar da envelhecida população
portuguesa, que essa bem precisa de se reproduzir, mas
de gatos, onde um já é um excesso de população.

Enfim, foi o 10 de Junho a que temos direito. Umas


larachas, umas medalhas e uma almoçarada. “Panem et
circenses” ou pão e circo segundo os dizeres cá da terra
e para aqueles que não sabem latim. Nem toda a gente
pode ser culta como eu. A fórmula está inventada há
dois mil anos e sempre funcionou. Como em equipa que
vence não se mexe, é seguir em frente.

Ao menos tivemos por cá o Rumsfeld. Este nome


lembra-me sempre um dos generais do Fuhrer, mas não
façamos confusões, este é um dos servidores do Bush.
Há quem diga que anda perto, mas eu ainda sei ver as
diferenças. E lá esteve ele, mais o nosso ministro Portas,
a dizerem piadas um ao outro e a combinarem a

43
A minha pequena vida

repartição dos despojos da guerra, vulgo o saque, do


Iraque.

Se formos objectivos, e como em política a moral é o que


é, até ficamos a ganhar: um comando regional da NATO,
talvez o secretário geral, parte na reconstrução do Iraque
e uns lugarzitos na Administração. Só aqui estamos a
falar de três bons empregos, mais uma série de outros
mais ou menos razoáveis. Mesmo que não dê muito
dinheiro sempre ajuda a compor as estatísticas e a
reduzir o desemprego. Ministro Bagão Félix, esteja
atento a esta redução!

E como eu gostava de um lugarzito na administração do


Iraque. Não tenho esperança porque não pertenço a um
partido político nem tenho grandes amizades entre os
governantes e estou certa de que não vai ser feito
honestamente por concurso público. Não acredito que
não tenha as habilitações necessárias e provas das
minhas capacidades, bem, é só ler as minhas sugestões
para ficarem convencidos de que eu sou a escolha ideal.

Mas se o desemprego baixar, toda a gente vai esquecer


a contestação que gerou o apoio de Portugal aos EUA e
vão aplaudir a clarividência dos nossos governantes.
Afinal o regime era criminoso, a guerra era justa e as
armas de destruição massiça vão aparecer mais cedo ou
mais tarde. Disso eu tenho a certeza, daqui a uns anos,
se existirem, os invólcuros começarão a ter fissuras e
vão libertar o conteúdo na atmosfera denunciando a sua
presença. Nem vale a pena gastar dinheiro a procurá-
las, é só esperar para ver!

44
A minha pequena vida

2003-06-11

Se não fosse a sério a entrevista da Fatinha seria o


momento cómico do ano. Falta-lhe classe para chegar
ao Al-Sahaf, o meu ministro da informação favorito, mas
aprendeu bem a lição. Negar tudo, filtrar as perguntas
antes da entrevista, fazer falsas acusações e acabar na
hora certa. E aquelas esforçadas lágrimas de crocodilo,
então foram mesmo a matar. A matar de riso, claro, que
aquilo já não é apenas descaramento, é a mais completa
falta de vergonha a que assistimos nos últimos anos.

Até fazia pena ver aquela pobre autista com a voz


embargada pela comoção, separada da família, dos
cúmplices, das contas bancárias e dos automóveis de
luxo, numa terra estranha de que só quer a
nacionalidade, negando ter fugido à justiça.

Mas o Al Sahaf faria muito melhor: Processo? Que


processo? A Dra Fátima Felgueiras continua a exercer o
cargo para que foi eleita, com o apoio incondicional do
Partido Socialista, longe de quaisquer suspeitas
infundadas e ilibada de qualquer suposta acusação.

É um misto de “reality-show” com comédia, a


performance em crescendo da actriz compensa o mau
argumento, mas a produção é demasiadamente fraca
para ser levada a sério. Ainda falta verdadeiras vítimas
para dar algum fôlego a esta tramóia.

Pois é, julga-se uma perseguida política porque deu


dinheiro ao partido. Esquece-se que o problema não é
para onde o dinheiro foi mas de onde ele veio e fica

45
A minha pequena vida

revoltada por quererem prendê-la em Custóias, entre


presos de delito comum, pobres, feios, porcos e maus.

Realmente, juntar a fina flor da sociedade e da política a


esses desqualificados, tão estúpidos que não
conseguiram fugir e tão desastrados que se deixaram
apanhar. Só num país anti-democrático e com leis
caducas herdadas do salazarismo como Portugal é que
se permite esta mistura de classes.

Mas neste ponto ela tem razão, o sistema judicial às


vezes não funciona e é injusto e a prova é ela própria.
Só se engana é nas razões, não funciona porque a
deixou fugir e é injusto para com aqueles que tiveram a
coragem de enfrentar a justiça em vez de se refugiar
atrás de uma outra nacinalidade.

Se o coração dela não aguenta, nós por cá temos bons


cirurgiões e resolvemos isso sem problemas, só não
queremos que ela morra antes de ter o prazer de a ver
enjaulada durante uns 20 anos. Nem que seja preciso
mântê-la em vida artificial ligada a um coração mecânico,
há-de passar a reforma dentro de uma jaula. E de
preferência com visitas guiadas, que nós ainda sabemos
rir de uma boa piada.

2003-06-12

Para fazer esquecer o folhetim Fátima Felgueiras, só


mesmo com um gesto solidário de um camarada. E o
Armando Vara ao responsabilizar o Presidente da
República pela Lei da Amnistia acertou mesmo na
mouche. Estes políticos experientes não brincam em

46
A minha pequena vida

serviço, só é pena que se tenha limitado a desviar as


atenções de um membro do PS para outro, sem
conseguir uns momentos de alívio para aquele infeliz
Secretário Geral..

Realmente o Prof. Marcelo tinha razão, aqueles que têm


azar vão tê-lo toda a vida. Até parece bruxedo, ou uma
maldição daquela furagida que se deve estar a
especializar em candomblé lá no sítio em que se exilou.

O PS devia obrigar os seus dirigentes a declarar se já


tinham ganho algum prémio no Totoloto ou na Lotaria, ou
ao menos numa rifa, e escolher o sortudo para
Secretário Geral. Claro que se não o declararam às
Finanças o azar contínua, em vez de uma promoção
ainda vão presos, mas em política é preciso correr
alguns riscos.

Eu sei que pode não parecer muito justo, mas isto de ter
sorte deve ser genético, não é com trabalho que se
chega lá e o pobre do Ferro Rodrigues deve ser
daqueles cujo pão cai sempre com a manteiga para
baixo. E não me venham falar de estatísticas ou da
altura da mesa e do movimento de rotação do pão: com
ele é uma questão de azar e não há explicação científica
que lhe valha.

2003-06-13

Quando há um fim de semana prolongado em Lisboa até


parece que o país para e nada de importante acontece.
Parece mesmo que Portugal é Lisboa e o resto é
paisagem.

47
A minha pequena vida

Porque à parte a onda de calor que me aqueceu durante


estes dias, pouco aconteceu. Claro que para mim este
calorzinho foi mesmo bem vindo, acho que pela primeira
vez não precisei de um aquecedor ou de me encostar à
fonte de alimentação de um computador. Pena que haja
quem se queixe dos incêndios e do mal que faz à saude
das pessoas. Hão de sobreviver, deixem-me é com este
calorzinho que me sabe tão bem.

Também soube que o PSD quer acabar com o cargo de


Ministro da República para as regiões autónomas.
Obviamente é uma vitória da Ministra das Finanças, que
se farta de poupar dinheiro, contra o pobre benfiquista da
Segurança Social, que fica com mais um par de
desempregados nas mãos. Felizmente o PS está contra,
mas não é para ajudar qualquer dos ministros, antes
pelo contrário, é só porque ainda tem uma remota
esperança de voltar ao poder e ter mais dois “jobs” para
o caso de na altura ainda ter “boys”. Daí que tenham
proposto um outro cargo, utilizando o velho princípio de
que é preciso que algo mude para que tudo fique na
mesma. Ou então “a evolução na continuidade” como
nos velhos tempos.

2003-06-14

Não há dúvida de que o País foi de férias. Se não fosse


o Presidente da República andar veementemente pelos
Açores, sem se irritar com coisa nenhuma, nem mesmo
com os insultos de um camarada, até era difícil encher
um noticiário. Mas gostei de ver o Maestro Sampaio a
dirigir a banda, num ensaio para corrigir os desafinanços

48
A minha pequena vida

do PS quando voltar ao continente. Nem sabe o que o


espera, aqueles socialistas não se limitam a desafinar,
tocam músicas completamente diferentes que às vezes
de tão mal tocadas soam ao mesmo.

Eu confesso que não percebo nada de música, mas


acho úteis os maestros: com um enxota-moscas na mão
até davam um certo jeito.

2003-06-15

Preciso urgentemente de limpar a minha imagem. Hoje


tive mais um pequeno acidente com o cortinado do
escritório. Voltei a prender uma unha, puxei e veio tudo
atrás, varão inclusivé. Nem consegui disfarçar, a minha
família chegou tão depressa que nem pude fugir. Que
humilhação!

É a segunda vez que isto me acontece, e se da primeira


só desconfiaram, agora tiveram a certeza de que fui
culpada das duas vezes que aquela coisa inútil veio
abaixo. Talvez com os atrasos na Justiça o processo
prescreva, porque eu não tenho possibilidades de pagar
uma indeminização e se me descontam nas latas só
volto a comer uma lá para o Natal.

Pelo menos não me acertou na cabeça ou lá ia eu para a


casa dos horrores ser humilhada por aquelas
torturadoras vestidas de branco.

Maldito sistema de saude deste país! Em vez de me


levarem a um Hospital decente e pagarem as taxas
moderadoras, fazem questão de me juntar a toda a

49
A minha pequena vida

espécie de bichos numa clínica sem condições


nenhumas e que de certeza é clandestina.

Vou denunciá-los às autoridades porque mais vale


prevenir do que remediar. Exijo ser tratado como a
minha pseudo-avó, que tinha um quarto particular com
televisão, refeições e todas as atenções possíveis por
parte do médico do Presidente da República. Assim até
que deve ser bom ser doente. É um luxo diferente de ser
paciente num hospital público.

2003-06-16

Vou ter que finalizar hoje a primeira parte da minha


história. Dentro de meia dúzia de dias a minha mãe faz
anos e quero-lhe oferecer uma prenda. Como não
consegui pôr de parte nenhuma lata e como não sei
desenhar, pelo menos vou-lhe oferecer estes capítulos.

Espero que me deixem ficar com os direitos de autor, ou


de autora, no meu caso. Até porque aquilo na Sociedade
Portuguesa de Autores não anda bem e o dinheiro
desaparece como se fosse em Felgueiras. Até podiam ir
para o Brasil e fazer lá uma nova sociedade, a futura
presidente já por lá anda e pode ir preparando a
conferência de imprensa de lançamento. Isto com uma
ajudinha da televisão de todos nós nem deve custar
nada, somos todos a pagar a quem já tanto nos roubou.

2003-06-17

50
A minha pequena vida

Foi dia de imprimir os primeiros exemplares desta minha


obra. È muito mais difícil e trabalhoso do que esperava.
Não só não havia papel no formato que queria, como a
impressora não imprime frente e verso. Assim não há
condições de trabalho.

Mas enfim, graças a muito esforço e dedicação lá


consegui os dois exemplares que queria. Eu sei que é
uma tiragem pequenina, mas eu também sou uma autora
pequenina e isto é uma edição de autor. Acho que assim
cada um vai valer muito mais. Se calhar esta ideia de
fazer edições quase exclusivas ainda pode vir a ter
sucesso. Claro que estes são para oferecer, portanto
não me vão pagar, mas se a ideia pegar ainda vou
enriquecer. E também posso ter sorte e ganhar um
prémio Nobel. Se dão aquele escritor que nem sabe o
que é a pontuação, escreve livros sobre temas que
ninguém entende, discorre ao longo de uma resma de
papel e não tira conclusões no fim, não vejo como é que
me podem ignorar.

Já que não consigo um contrato de comentadora vou


tentar escrever. Pelo menos não tenho que esperar que
me deêm uma oportunidade, ou talvez precise de uma
editora porque edições de dois exemplares pode não ser
suficiente.

Eu sei que há uma editora ligada à família, mas nunca


me esplicaram muito bem como é que foi essa história
de heranças e de propriedades, portanto vou ter que
procurar outra. Talvez seja melhor assim, posso escolher
e receber várias propostas, fazer exigências e reivindicar
melhores pagamentos em vez de me limitar a aceitar o
que a família me quisesse dar. Até porque vou publicar

51
A minha pequena vida

um “best seller” e vender muito mais do que o Harry


Potter.

Já me estou a imaginar a assinar autógrafos, que é


como quem diz a carimbar os livros com a minha patinha
embebida em tinta. Pensando melhor não vou sujar-me
de tinta, depois tenho que me lamber e aquilo sabe
mesmo mal. Além disso pode ser tóxica e deixar-me
doente. O que eu quero mesmo é ver fotografias minhas
nas livrarias e encher de orgulho a minha família. É só
mais um dos meus sonhos pequeninos.

2003-06-18

Agora que estou mais descansada depois deste


extenuante trabalho de impressão, posso voltar a olhar
para o mundo com calma.

Este é segundo País europeu em que mais se rouba nas


lojas. Também estivemos em segundo no consumo do
álcool e deixamo-nos ficar para trás, mas em mtéria de
roubos parece que vamos de vento em poupa. Muito
melhor do que aquela principiante da Winnona Rider,
apanhada logo à primeira tentativa conhecida. Aqui os
profissionais sabem do assunto e são bem o exemplo de
um conhecido espírito de “desenrascanço nacional”.

É como na GNR. Não têm viaturas mas a ideia de pedir


emprestadas umas ao Exército, outras aos Carabinieri
era boa, e o resto resolvia-se com algumas apreensões
na estrada. Assim nem saia caro ir para o Iraque e
sempre recebiamos mais uns elogios do Bush. Agora em
vez de poupar dizem que sempre querem comprar em

52
A minha pequena vida

vez de levar fiado. Então e se se estragam? Se não


forem nossas limitamo-nos a pedir desculpa, caso
contrário sai-nos do bolso. A Ministra das Finanças deve
andar distraida com isto.

Mais importante foi a decisão do Tribunal Constitucional


ao aceitar a imposição do voto secreto dentro dos
partidos. Foi o fim do sistema soviético e das tradições
revolucionárias, derrotadas pela burocracia burguesa e
totalitarista. Afinal quem é que está contra a liberdade? E
o que é que têm a ver com a organização interna dos
partidos que gostam de votar de braço no ar para que
cada um assuma o que faz? E quem não concordar vai-
se embora. Já nem o PCP consegue obrigar as pessoas
a ficar!

2003-06-19

Hoje foi o dia mais quente do ano. Ainda bem que o


tempo aqueceu, porque quiseram bloquear o meu
acesso à fonte de alimentação do computador. Dizem
que aquilo até ferve e pode-se avariar com a
temperatura. Não acredito muito nisso, eu estou à
mesma temperatura e não me avario por causa disso.
Claro que eu sou de qualidade superior, mas dizem-me
que já estou fora de garantia, portanto, a avariar-se um
de nós, ao menos que não seja eu. Além disso trata-se
do meu computador, posso utilizá-lo como e quando
quiser e eu sei como fazê-lo de mais de uma maneira.
Como aquecimento, por exemplo.

Parece que vou passar a comer outra marca de comida.


Custa metade do preço das antigas e portanto vou
começar a poupar cinquenta cêntimos por semana. Para

53
A minha pequena vida

alguns não é nada, mas para mim é muito dinheiro, são


vinte e seis euros por ano. Vou arranjar uma lata para
guardar as minhas economias e depois vou inverstir as
poupanças. Como já tenho casa, se calhar vou fazer
uma conta poupança-reforma. Quando tiver mais uns
anos quero ter uma vidinha descansada, como agora, e
sem preocupações com as reformas de miséria deste
país. Assim o Ministro Bagão Félix não vai ter que se
preocupar comigo e não vou tirar dinheiro das reformas
dos menos previdentes do que eu.

2003-06-20

Está quase a ser lançado o novo livro do Harry Potter.


Estou impressionada com todo o entusiasmo e a
expectativa criada à volta deste lançamento. Faz-me
pensar como será quando o meu livro chegar às livrarias.
Claro que quando for o meu primeiro livro não deve ser
uma ocasião tão importante, mas lá para o quinto
também quero ter um lançamento mundial, com todas as
televisões a mostrá-lo em directo.

Tenho é de ter muito cuidado em esconder aquilo que


escrevo. Alguém pode querer plagiar-me e ficar com
todas as minhas latas. Já pensei em usar uma
“password”, mas tenho medo que a minha memória me
traia e eu me esqueça. Nunca fui boa a lembrar-me das
coisas e se me esqueço perco todo o meu trabalho. Mas
neste momento ainda consigo passar desapercebida, só
depois de lançar a minha primeira obra é que as coisas
vão mudar e ninguém mais vai querer saber das
aventuras aburdas daquele miudo caixa de óculos. E não
pensem que isto é inveja, é uma análise objectiva da

54
A minha pequena vida

realidade feita por uma comentadora de renome, vulgo,


eu.

Hoje à noite foi a entrega das prendas e claro, o meu


livro foi o mais importante. Acho que receber uma edição
de autor e única deixa qualquer pessoa comovida. Mais
ainda se for escrito por alguém da família e sobretudo se
esse alguém for eu.

Só sei que se ela não gostar vou ficar mesmo triste. Nem
quero pensar nisso, que quase tenho vontade de chorar.

2003-06-21

Finalmente chegou o grande dia!

Feliz aniversário Fofinha e muitas lambidelas da Gatochy

Parece que lá foi dia do tal de pato com “lalanja”. E


voltaram-se a esquecer de mim. Não acredito que não
houvesse lugar lá no comedouro público, nem que fosse
pequenino, até porque de certeza que eu cabia em cima
da mesa.

55
A minha pequena vida

É tão difícil não ser aceite pelo resto da família! Logo eu,
que vou ser a mais célebre e rica de todos e tratam-me
assim. Quando começar a receber os direitos de autor e
for convidada por toda a gente importante, enfim, quando
fizer parte do “jet-set”, aí vão andar atrás de mim a
pedinchar uns convites. Felizmente sou generosa enão
me vou esquecer de quando fui raptada, que dizer
adoptada, e passei a fazer parte desta família.

2003-06-22

Lá passou mais um aniversário sem que fosse convidada


para a festa. Até parece que têm vergonha de mim, só
por ser apenas adoptada e não ter aquela coisa que
chamam laços de sangue. Isso nem eu queria porque
destesto sangue e menos ainda partilhá-lo com alguém.

No fim, e para me apaziguar, sempre me deram um


jantar especial. Uma delícia com um cheirinho irresistível
feito pelos melhores mestres de culinária. Só não
percebo porque é que há de vir dentro de uma lata e não
numa travessa! De certeza que quando vão comer fora a
comida deles não vem em latas.

E voltei a derrubar o cortinado. Que azar, depois de


tantos anos agora até parece que é todas as semanas. A
culpa é daqueles gatos lá fora, que me obrigam a correr
sem olhar por onde para manter a rua limpa de bichos.

Finalmente pude olhar com atenção para o último


volume do Harry Potter. É enorme, muito mais gordo do
que a minha história. Eu sei que sou pequenina, mas
mesmo assim não posso tolerar esta diferença, senão

56
A minha pequena vida

ninguém vai comprar a minha obra. Vou ter que me


esforçar a sério, mesmo que por causa disso tenha que
passar a dormir só dezasseis horas por dia. Que
sacrifício! Se dormir menos de dezoito horas fico
completamente exausta e custa-me trabalhar, mas já
percebi que a este ritmo não consigo acabar o meu livro
e publicá-lo ainda este ano. E se não estiver cá fora este
ano bem posso dizer adeus ao Prémio Nobel da
literatura de 2003.

2003-06-23

Acabei de ver a mensagem da Amazon. Também vamos


ter o novo livro do Harry Potter cá em casa e já vem a
caminho. Estou cheia de medo de que gostem mais dele
do que do meu pequeno livro. Até tremo só de pensar
nisso e não sei se aguentava o desgosto. Este livro é
tudo o que consegui oferecer e foi feito com tanto
carinho, muito mais do que algum escritor conhecido ou
desconhecido alguma vez poderia dar, por muito mérito
que tivesse.

Lá por ser pequenina não quer dizer que os meus


sentimentos também o sejam. O meu coraçãozinho é
como o das pessoas grandes, não se esqueçam que só
é pequenino em tamanho.

Nestes últimos dias tenho-me preocupado pouco com a


actualidade. Também não tem acontecido muita coisa
neste país, para além dos incêndios na mata, dos
afogamentos na praia e dos jogos de futebol, até parece
que foram todos de férias.

57
A minha pequena vida

Uma autêntica incúria, agora que o tempo está melhor é


que desistem de trabalhar. Depois quando chegar o
Inverno queixam-se de que está frio e chuva e não
querem fazer nada. Até são capazes de inventar umas
constipações e umas gripes para ajudar. Pobre Governo
deste povo ingrato.

Mas o que é um facto é que as pessoas têm memória


curta, desde a guerra do Iraque até ao escândalo da
pedofília, passando pelo caso Moderna, tudo é
esquecido quando se chega ao Verão, e toda a gente vai
de férias sem se preocupar com mais nada excepto o
estado do tempo.

Nunca gostei muito do Verão porque o meu grande


amigo está sempre adormecido e nem sequer tenho o
meu “pratochy” quente. Só me resta expor-me ao Sol,
como se fosse um gato, ou aquecer-me encostada a um
computador. Antes o computador, que não quero que me
confundam com um bicho!

Soube hoje que a minha família tem terras lá longe.


Chamam áquilo vários nomes, umas vezes é Norte,
outras é Vila Ruiva, mas acho que é sempre a mesma
coisa. Senão eramos milionários e como não me parece
que seja verdade devem estar sempre a referir-se ao
mesmo.

Parece-me imensa terra, são metros e metros, até me


cansava se tivesse que atravessá-la a correr. É uma
pena ser tão longe mas talvez a pudessemos trocar por
uma aqui no bairro. Isso é que era bom, passava a ter a
minha quinta e punha logo uma tabuleta “zona livre de

58
A minha pequena vida

gatos”. Era como uma que antes havia na Amadora e


dizia “zona livre de armas nucleares”.

Mas o importante de ter terra é que podemos dar-lhe o


nosso nome e ser sempre lembrados. Gostava que lhe
dessem o meu nome e ficasse qualquer coisa assim
como “Vila Gatochy” em vez de Vila Ruiva. Ninguém
sabe quem era a tal ruiva, mas de mim toda a gente vai
ouvir falar.

Quando for rica vou comprar mais terra. Vi uma vez num
anúncio que já não se faz mais e quando esta acabar os
preços vão subir e vai ser impossível ter dinheiro para a
comprar. Portanto, vou comprar o máximo possível
assim que publicar o meu livro. Começo a acreditar que
a riqueza se mede pela terra que se tem e que quem não
tem nada é o tal que não tem onde cair morto. E isso não
lhe vale de nada, porque morre na mesma e não pode
ser enterrado porque não foi previdente. Vai parar a uma
vala comum ou é assado no forno e não tem direito a um
daqules monumentos bonitos com anjinhos e um
jardinzinho privado.

2003-06-23

Agora que a época festivo-aniversariante terminou,


recomeçou o trabalho e vou voltar-me outra vez para a
política. Até já me chamaram um “animal político”, mas
isso de animal parece-me ofensivo. Até cheira a gato!

Depois de tanto tempo sem apanhar o Bin Laden, matar


o Sadam seria pelo menos uma compensação para o
Presidente Bush. Sempre é o homem mau que quis

59
A minha pequena vida

matar o papá do Presidente. E se não o apanharem, pelo


menos podiam chegar a uma espécie de acordo, o
Sadam passava por morto e passava o resto da vida
incógnito e o Bush podia vangloriar-se de que o tinha
morto. É um dois em um que pode satisfazer ambas as
partes e devolver algum prestígio às forças americanas.
Depois do pseudo salvamento daquela pobre soldado,
que para escapar à vergonha ficou amnésica, deve ser o
único caminho a seguir.

Claro que também podem pedir uma ajuda aos israelitas.


Pelo menos sempre se entreteem durante uns dias sem
matar compulsivamente palestinianos inocentes. Claro
que de vez em quando também acertam nas pessoas
“certas”, mas na verdade parece sempre que o único
palestiniano bom é o palestiniano morto. É quase uma
espécie de filme de cowboys e indíos no cenário errado
e com um guião pouco inspirado. Se em vez do Sharon
contratassem o Sérgio Leone, pelo menos sempre seria
um clássico.

Há tantos bons argumentistas e realizadores


desempregados ou mal aproveitados que não deve ser
difícil arranjar alguém. Ou então podiam contratar o
Spielberg e ele tratava de tudo. Um bom filme, realista,
cheio de heroísmo e uma espécie de Big Brother para
controlar a informação é quanto baste para reescrever a
História. Se não fossem aqueles malditos jornalistas, até
que não devia ser difícil convencer toda a gente da nova
realidade.
Mas o grande acontecimento aqui em casa foi a chegada
do último livro do Harry Potter. Ainda é maior do que eu
imaginava e é pesadíssimo, nem posso com ele.
Verdadeiramente esmagador, se me caísse em cima era

60
A minha pequena vida

uma vez uma Gatochynha. Como tenho umas 700


páginas de atraso em relação à JK Rowllings, vamos lá
fazer mais um esforço: quinze horas de sono. Desta vez
é tudo ou nada!

2003-06-24

Parece que a missão da GNR no Iraque sempre vai ser


adiada. Depois da opção do empréstimo ter passado
para a compra de blindados e de se chegar à conclusão
de que isso demora mais tempo, vai-se voltar à primeira
hipótese.

Devem pensar que há por aí um stand de veículos


blindados em cada esquina e é só entrar e escolher a
cor. De preferência uma amrelinho bonito e pintalgado
que vá bem no deserto. Mas enganaram-se, os stands
de blindados não são fáceis de encontrar, o preço é
difícil de regatear e ainda por cima nem sempre há da
cor que queremos. Imaginem só um blindado vermelho
no deserto, era uma vergonha nacional.

Eu gostava de ter um tanquezinho para passear. Nem


sequer estou a pedir uma coisa muito grande, só um que
seja à prova de gatos e de pessoas más. E com um
canhãozinho porque nunca se sabe o que pode vir a
acontecer. Mas tudo muito medesto e em conta, que não
gaste muita gasolina e tenha uma manutenção
económica. Uma espécie de tanque japonês, tipo Toyota
ou Mitsubishi.

Acho bem que os funcionários públicos sejam avaliados.


Eu quando me porto menos bem, segundo critérios

61
A minha pequena vida

externos, também não tenho lata ao jantar. Porque é que


com eles não acontece o mesmo? Façam o que fizerem
têm sempre a lata garantida.

Claro que se pode sempre dizer que ninguém se porta


mal porque quer, como quando eu derrubo o cortinado,
mas alguém vai ter que reparar os danos, aqui é a minha
família, no Estado deve ser o Primeiro Ministro, que já
deve estar farto de voltar a por no lugar o que os
distraídos fazem cair.

E isto de ser promovido só porque se é mais velho


também tem que acabar. Não quero ter que esperar
tanto tempo, até ser velha e inútil, só porque alguém
mais velho que eu não me deixa ser promovida. Eu sei
que tenho muitas qualidades, agora exijo que mas
deixem usar.

2003-06-25

Finalmente vi o Presidente da Rússia ser recebido pela


Rainha de Inglaterra. Se dúvidas houvesse agora
desapareceram, é certamente o novo Czar e veio
cumprimentar o resto da realeza.

Nunca deixa de me espantar ouvir o antigo hino


soviético, que nunca foi possível substituir, ser agora
também saudado pela Rainha. Aquele Alexandrov era
mesmo um génio, os Russos não conseguem aprender
outra coisa. Ou talvez não queiram, ou precisem de um
equilibrio entre o antigo regime e o novo czar.

62
A minha pequena vida

E o banquete parecia celebrar o regresso da Rússia à


realeza europeia, como uma homenagem a um poder
mais absoluto do que alguma vez os Romanov
sonharam e que sobrevive em plena democracia.

Certas coisa nunca mudam, outras apenas trocam de


nome, e o KGB ou o FSB continuam a ser o poder na
antiga terra dos sovietes.

Mas hoje voltei a estar sem Internet, o que mde dificulta


muito a vida. Já não bastou um processo de instalação
que demorou quase três meses, com visitas constantes
de técnicos, experiências umas atrás das outras, novas
cablagens, tudo e mais alguma coisa, só para concluir
que os modems que iam trazendo do Centro de
Reparações estavam todos avariados. Se não fosse pelo
incómodo que me causavam, até teria pena deles. E
aparece aquela miúda na televisão a dizer que entregam
o kit em 48 horas pronto a funcionar! Até podiam
contratar a Fátima Felgueiras para fazer aquele anúncio
só para dar um bocadinho mais de credibilidade. Ou
então o meu amigo, o Ministro da Informação Al Sahaf,
que obviamente iria saber como esplicar porque é que a
Netcabo nunca tem problemas e está sempre tudo a
funcionar às mil maravilhas.

2003-06-26

A notícia do dia é o reaparecimento do Ministro Al Sahaf,


em forma e de saúde, pronto para continuar a sua
carreira. Vou sugerir-lhe que ocupe o lugar de porta voz
da Casa Branca, em substituição daquele chato do
Fleischman que não tinha piada nenhuma e mal sabia

63
A minha pequena vida

falar. O ministro Al Sahaf é o que falta ao presidente


Bush para que a sua mensagem seja compreendida por
todos, muito especialmente pelo mundo islâmico onde
esta administração tem tido graves dificuldades de
comunicação.

Mas por cá o caso é mais grave: o Presidente da


Câmara de Lisboa decidiu processar os seus
antecessores por causa de umas obras que
aparentemente não foram licenciadas. O pior é que um
dos antecessores em causa é o actual Presidente da
República, que felizmente não vai ter que responder em
Tribunal, pelo menos para já. É que eu sou da família
dele. Mais ou menos, porque o irmão é casado com uma
familiar minha. Portanto, apesar de não sermos
parecidos somos primos por afinidade. Diz-se que é por
afinidade porque mesmo sendo um bocado diferentes
temos qualquer coisa em comum que nos torna afins.
Isto é um bocado difícil de explicar e eu própria não
percebo bem. Enfim, temos vários gostos comuns, desde
a política aos banquetes e portanto somos da mesma
família.

Por todas estas razões, espero que o processo não vá


para a frente, até porque se for eu própria processo o
actual Presidente da Câmara por causa do Terminal
Rodoviário ainda não ter sido transformado em jardim.

Infelizmente esta família não me parece muito unida.


Nunca fui convidada nem para as festas de aniversário
onde comem o “patochy com lalanja chinêsa”, nem para
o Palácio do meu primo Presidente, nem sequer me
telefonam ou mandam um presente de Natal ou de
aniversário.

64
A minha pequena vida

Como dizia o outro, a família não se escolhe, mas esta é


a família que tenho e não quero outra.

2003-06-27

Hoje voltei a ouvir falar dos escândalos nos exames de


condução. Primeiro deixem-me dizer que detesto
automóveis, são barulhentos, perigosos e feitos à
medida de pessoas muito maiores do que eu. Por causa
disto não sei conduzir. Não porque não tenha jeito, mas
porque são tão grandes que não consigo sequer virar o
volante.

Aqueles que são fisicamente mais dotados para a


condução do que eu só podem conduzir se receberem
uma carta. Num país de analfabetos em que as pessoas
pouco escrevem receber uma carta é quase um milagre,
portanto alguns optam por pagar a alguém e recebem
uma.

Há tempos ouvi dizer que estas cartas saiam em


sorteios, outras vezes que vinham na farinha, mas neste
momento estou convencida que vêm pelo correio. Ainda
não percebi porque é que uns têm carta e outros não. O
facto de a terem não quer dizer que saibam conduzir, às
vezes até parece querer dizer o contrário, basta olhar
pela janela e mesmo num bairro calmo como o meu se
podem ver toda a espécie de barbaridades.

Mas o que é facto é que havia gente que ia de todo o


País em preregrinação a uma terra chamada Tábua
onde se realizava uma espécie de milagre. Nunca

65
A minha pequena vida

ninguém explicou muito bem, mas quando voltavam às


respectivas terras sabiam conduzir. Mesmo os mais
desastrados tinham sido miraculados e de repente viam
a luz, que é como quem quer dizer, eram divinamente
inspirados. E ouviam cânticos de louvor: Eu guio Senhor,
eu guio!

Sei que o responsável pelas canonizações na


Cristandade é um Bispo português, que já promoveu
alguns a beatos e outros a santos. Se ele for a Tábua vai
encontar tantos milagres, absolutamente sem
explicações científicas, que vai ter muita gente para
canonizar. E tudo isto sem muito trabalho, já que houve
umas pessoas simpáticas que já fizeram uma lista com
os milagreiros e miraculados. É só começar por um e
acabar noutro e brevemente teremos o Santuário de
Tábua, parecido com o de Fátima mas com marcações
para as pessoas conduzirem os carros em terreno
sanificado.

Ainda vou enviar esta sugestão ao Papa, de certeza que


Sua Santidade ainda não conhece a verdadeira fonte
dos milagres em Portugal e continua a ir a Fátima por
engano. Como já está cansado e para lhe evitar esforços
inúteis, vou já informar a Santa Sé.

2003-06-28

Parece que os deputados conseguem sempre fugir às


multas quando faltam ao trabalho. Nada de estranho,
dado que isso acontece à maioria dos portugueses, que
conseguem sempre uma pontezita, e menos ainda se
virmos a produtividade daqueles representantes do povo.

66
A minha pequena vida

A bem dizer, tendo em conta as leis que aprovam, era


mesmo bom que alguns deles faltassem sempre. Entre
estar nas últimas filas a ler o jornal e ir dar um passeio
pelos jardins, não dúvido que a última opção seja a mais
saudável, relaxante e a que mais contibui para a saude
das ditas criaturas.

Sendo mais saudáveis, requerem menos cuidados de


saúde, logo saem mais baratos ao Estado. Claro que
também podemos contra argumentar que assim vivem
mais anos e sacrificamos mais dinheiro com as suas
chorudas reformas, mas vamos ser humanos e ficarmo-
nos pela primeira opção.

Alem disso são eles que fazem as leis e os seus próprios


regulamentos, portanto é lógico que não sejam
penalizados. Por cinquenta latas eu fazia um
regulamento novo, com uma verdadeira disciplina. Quem
faltasse à formatura de antes da sessão perdia logo o
vencimento, só tinha comida seca durante uma semana
e não recebia festinhas. Mudavam logo de atitude e com
os descontos nos ordenados pagavam-me as alterações
no regimento da assembleia.

Talvez até me dessem um lugar de deputada, por causa


daquela história das quotas femininas. Só queria era que
desta vez me pagassem em dinheiro.

2003-06-29

Prometia ser um dia calmo, com alguma chuva e uma


temperatura amena. Encostei-me ao meu computador
para meditar e devo ter adormecido, porque acordei com

67
A minha pequena vida

um pesadelo horrível. Nem quero falar nisso, mas incluia


gatos. Só por isso torna-se verdadeiramente assustador.

E as notícias também não são melhores. Basta um


pouco de chuva e este povo torna-se rapidamente
adepto do suicídio colectivo automobilistico. Só nesta
pacata cidade cerca de setenta acidentes e os noticiários
só falavam de mortos e feridos. Começo a desconfiar
dos milagres da Tábua e das cartas de condução que lá
se compram, trocam, dão-se ou se multiplicam.
Curiosamente só são indiciados por fraude, burla e
outros crimes menores quando comparados com os
ocasionados pelos acidentes.

Vamos lá a imaginar que um dos miraculados,


conduzindo velozmente e cheio de fé, provoca um
acidente mortal. Qual é a responsabilidade de quem
efectuou o milagre da multiplicação das cartas de
condução? Provavelmente deveria ser condenado por
homicídio por negligência grosseira. Ouvi este termo e
penso que tem a ver com má educação, mas também se
aplica neste caso. É preciso que cada um assuma as
suas responsabilidades e eu espero que o Ministério
Público ou a Prevenção Rodoviária Portuguesa ou
alguém de direito me escute e prenda estes criminosos.

Já pensei em exercer o meu direito de petição para


reclamar desta situação, mas infelizmente os deputados
são tão abscentistas que ainda não apreciaram nenhuma
das petições feitas. Talvez se estejam a guardar para a
minha!

2003-06-30

68
A minha pequena vida

Esta história do novo Estádio da Luz parece-me sempre


mal contada. Pensava eu que pertencia tudo aos
mesmos, a que uns chamam benfiquistas, outros
lampiões e alguns chamam umas palavras que eu não
percebo e portanto não vou escrever aqui.

Mas o que é facto é que quando se fala em pagar a


conta é sempre no guichet do lado. Quando o
constructor entrega a factura a um dos Benficas, o que
tem dinheiro, parece que devia tê-la entregue ao que
está falido. E pagamentos nem vê-los!

Não há dúvida de que é um grande truque, uns têm tudo


e não pagam, outros só recebem as contas e não têm
nada porque o que tinham deram aos que já eram ricos.
É tudo muito confuso para mim, mas como chamam a
isto gestão e altas finanças, acredito que deva ser assim
que se ganha dinheiro.

Já pensei em fazer duas empresas só minhas. Com uma


peço emprestado, passo o dinheiro para a outra através
de uma prestação de serviços e compro coisas para
mim. Aquela que pediu o dinheiro não tem nada, nem
sequer património, pelo que não pode pagar e o caso
fica resolvido ou pelo menos suspenso até prescrever
num tribunal qualquer, submersa em milhares de
processos atrasados.

Felizmente sou honesta e vou-me ficar pelas hipóteses


académicas, mas não falta por aí quem ponha estes
ensinamentos em prática.

69
A minha pequena vida

Mas nem tudo foram más notícias porque hoje ouvi dizer
que a Polícia apanhou dois condutores, um com dez e
outro com nove anos. Afinal sempre é possível conduzir
muito antes dos dezoito e como eu já tenho seis aninhos
e sou precoce talvez dentro de uns três tenha a minha
carta de condução e o meu carrinho para dar umas
voltas pelo bairro.

Só tenho que convencer a minha família a fazer uma


peregrinação à Tábua para ser miraculada e passar a
conduzir.Vou pedir um daqueles Guias do Automóvel e
começar já a comparar os preços. Se continuar a poupar
durante estes anos que ainda faltam já deve chegar para
um Porschezinho.

2003-07-01

A elevação de uma terriola qualquer a vilória é sempre


um grande acontecimento local, sobretudo quando
desconheço onde fica, quem lá vive ou até porque
existe.

Mas o facto é que de vez em quando existem promoções


e despromoções de algums povoados desconhecidos, e
os deputados esquecem-se sempre da terra de origem
de parte da minha família. Estamos a falar da antiga e
prestigiosa Vila Ruiva, do concelho de Fornos de
Algodres, distrito da Guarda, e que devia fazer jús ao
seu nome e ser promovida a Vila e sede de Concelho.

Sei que um dos sonhos da minha avó sempre foi ser


Presidente da Câmara, e se o puder ser na sua terra

70
A minha pequena vida

natal seria ouro sobre azul, como dizem os monárquicos


e aqueles que não são daltónicos.

E na verdade não falta muita coisa, temos uma Igreja


Matriz, várias capelas e uma Pousada do Inatel. Existem
a Junta de Freguesia, Centro de Dia, comércio, e
sobretudo muitos doutores, os suficientes para fazer
florescer a vida político-partidária.

Também consta que lá houve um milagre qualquer, uma


aparição como em Fátima que basta relembrar para
seguir nas pisadas daquela agora cidade. Em vez de
construir um novo santuário em Fátima, que já tem um,
podia ser construido em Vila Ruiva, que não tem e até
merece.

Um santuário é sempre um polo de desenvolvimento


local e é muito mais barato e garantido do que um polo
indústrial ou mesmo um aeroporto. Isto porque para
haver um santuário tem que haver santos, logo é preciso
pelo menos um milagre, e isso não se pode projectar
nem construir. Ou há ou tem que se passar à terriola
seguinte! E Vila Ruiva tem um milagre, portanto é a terra
divinamente escolhida para polo de desenvolvimento e
capital das Beiras.

Agora apenas é necessária uma campanha de


divulgação na televisão e nos jornais e recrutar uns
quantos miraculados. Se em Tábua o milagre é aprender
a conduzir sem nunca ter pegado no volante, em Vila
Ruiva pode ser ler sem nunca ter visto um livro. É por
isso que lhe chamam a aldeia dos doutores.

71
A minha pequena vida

2003-07-02

Será verdade que o Condestável S. Nuno Álvares


Pereira vai ser canonizado? Nunca me ocorreu que
massacrar espanhóis seria fonte de santidade, mas o
Papa acaba de o indicar. Dantes pensava-se que era
preciso ir até à Terra Santa chacinar uns quantos
muçulmanos, quando afinal bastava ir aqui ao lado para
ter um lugarzito entre os eleitos de Deus. Realmente, de
Espanha, nem bom vento nem bom casamento, mas um
odorzito a santidade não é impossível.

Assustador é o facto de a nossa Armada poder vir a


receber submarinos abatidos ao activo na Alemanha ou
em Espanha. Está demonstrado que o que sobe sempre
desce, maso o que desce nem sempre sobe, e isto de
submarinos antigos parece-me algo perigoso. Claro que
sempre é melhor do que se nos oferecessem o Kursk,
mas porque não alguns daqules submarinos que a
marinha Russa já não usa por falta de meios? Alguns
são muito mais recentes e com a quantidade de
emigrantes que vêm de lá não era difícil encontramos
algumas tripulações ou, pelo menos, um grupo de
instrutores.

Para mim era a solução ideal. Navios mais recentes,


integração de mão de obra especializada e pontes para
uma futura coperação militar. Basicamente é um três em
um que nos resolvia problemas militares, sociais e
políticos.

Quando é que me deixam governar este País?

72
A minha pequena vida

2003-07-03

Foi dia de debate do estado da Nação. Aliás, do mau


estado da Nação, num parlamento em que ninguém se
entende e que só pensa em ir de férias. Debates destes
a acabar a sessão parlamentar pecam apenas por ser
um pequeno castigo por tudo o que os deputados
fizeram ou deixaram de fazer. Um discurso de sete horas
do Coamandante Fidel é que eles precisavam para
aprender a sofrer e calar. Mas o nosso Primeiro Ministro
ainda tem falta de preparação física e não aguenta os
esforço, pelo que sugiro a técnica de estafetas. Quando
um Ministro está exausto e a abrandar o ritmo entrega o
discurso a outro e não é preciso parar antes da Oposição
desistir.

Hoje descobriram que temos polícias a mais. Na verdade


pouco se vêm quando precisamos deles, mas
aparentemente podiam ser menos 30%, ou seja quase
que em cada três um seria despedido. Claro que isso
nunca vai acontecer numa altura de grande desemprego,
aliás, eu faria o contrário.

Já que os polícias são mal pagos, incorporava os


desempregados sem cadastro como polícias. Iam
receber mais coisa menos coisa e pelo menos sempre
aumentávamos a segurança interna. Além disso, e mais
importante ainda, compõe as estatísticas. Por um lado
baixa o número de desempregados, que é sempre um
problema díficil de resolver pelo Governo, e por outro
lado o aumento do número de polícias é sempre bem
vindo pela maioria dos cidadãos.

73
A minha pequena vida

Claro que entre as opiniões favoráveis não incluo os


criminosos, para quem um polícia a mais é sempre uma
má notícia, e a extrema esquerda, que voltaria a falar na
perda de liberdades e num estado policial. Mas como
não são muitos, pouco influenciam nas eleições e
portanto vamos a isto.

Desempregados para a Polícia já!

2003-07-04

Vejo cada vez mais gente a partir de férias. Só os gatos


é que ficam e havendo menos pessoas até parece que
são mais. Se calhar ate são, podem ser gatos emigrados
de leste que já sabem miar em português. Aliás, a
maioria não mia, o que por um lado indicía lembranças
da ditadura comunista e o facto de ainda não o saberem
fazer na lingua cá da nossa terra.

Mas se os gatos são um dos meus maiores problemas,


provavelmente não o são para a maioria dos
portugueses. Claro que podemos fazer um paralelo com
os emigrantes de leste, mas o que é facto é que
precisamos mesmo deles, quer queiramos quer não.

A boa notícia é que a Polícia Judiciária vai começar a


investigar as câmaras municipais. Aí está onde a
Ministra das Finanças vai poder recuperar muito
dinheiro, mesmo que seja através de execuções judiciais
ou de penhoras.

Lembro-me sempre da Polícia Fiscal na Rússia. Quando


os vi em acção pensei que estavam a perseguit um líder

74
A minha pequena vida

da máfia ou um perigoso terrorista. Arrombaram a porta,


entraram e arrastarem um desgraçado cá para fora. Aí,
um grupo de polícias com máscaras e capacetes,
amados até aos dentes deram uma tareia no indivíduo e
atiraram-no para dentro de um carro que desapareceu
em alta velocidade. Pensava eu qual seria o crime
daquele perigosissimo indivíduo quando disseram que
não tinha pago os impostos!

Pois é, Senhora Ministra, basta uma meia dúzia de


exemplos destes e não vai haver mais evasão fiscal.
Nem é preciso investir na reforma da Administração
Fiscal e os contribuintes vão passar a fazer fila para
pagar os impostos no primeiro dia em vez do último.

E lembre-se que os gatos também não costumam pagar!

2003-07-05

As revelações das escutas telefónicas começam a ser


hilariantes e até podiam servir de argumento para um
filme. Se a verdade não fosse triste, era a melhor
comédia da vida real que há no mercado e um sério rival
do Big Brother.

Já pensei em negociar com a Endemol e a Judiciária o


novo modelo de Big Brother, o dos Presidiários
Famosos. Era uma forma de rentabilizar o sistema
prisional e judicial e de certeza muito mais rentável do
que inventar uns supostos famosinhos que ninguém
conhece e de que todos se esquecem assim que acaba
o programa.

75
A minha pequena vida

Com os meus Presidiários Famosos temos tudo, crime,


intriga mistério, dinheiro, corrupção, amor, ódio, enfim, o
que se queira. Está tudo gravado e à disposição do
Ministério Público. Se quiserem um agente para colocar
no mercado o candidato ao Óscar para o melhor
argumento original, contem comigo. Estou ao dispor em
troca de uma insignificante comissão de 5% das receitas
e não precisam de me entregar uma mala cheia de
notas, uma transferência bancária serve perfeitamente.

Na pior das hipóteses, isto vai acabar em formato de


telenovela, como aconteceu com a D. Branca, mas com
um formato muito mais realista, talvez até com a
intervenção das personagens genuínas. Reconheço que
a maioria já representa tão bem ou melhor do que um
actor de telenovela, após tantos anos de práticas
dúvidosas pelo menos aprenderam alguma coisa de útil
e que permita uma profissão de futuro. Quando não
pagaria uma TVI ou uma SIC ao João Vale e Azevedo ou
ao Bibi para interpretarem as suas próprias personagens
numa novela da vida real?

2003-07-06

Pensava eu que a principal causa de morte durante as


férias eram os acidentes de trânsito, se exluirmos os que
falecem por estar velhos ou fora de prazo.

Afinal, morrem afogados. Nem mais nem menos, vão até


aonde há muita água e atiram-se lá para dentro de forma
mais ou menos suicida à espera que alguém os vá
buscar. Se é um concurso, ainda não me explicaram as

76
A minha pequena vida

regras, caso contrário é uma autêntica loucura, pelo


menos para mim que detesto água.

Soube hoje que na chamada Costa da Caparica já


morreram mais pessoas este ano do que em toda a
época balnear do ano passado. Um escândalo, a menos
que seja intencional. E nem percebo porquê, a
combinação de água e areia é-me horrivelmente
desagradável. Da água nem vou falar, e a toda aquela
areia para sair do pelo são horas a lamber-me. É até me
doer a língua.

E chamam a isso ir de férias, a uma longa tortura dentro


daqueles carros apertados, a morrer de calor, para
ficarem torrados pelo Sol e acabarem doentes. Isto se
não pertecencerm ao cada vez mais numeroso grupo
dos condutores-aquático-suicídas.

E entretanto recebem a dobrar e não trabalham. Como é


que o Governo permite tamanha pouca-vergonha? Então
é no mês em que se baldam que passam a ganhar o
dobro? E ainda por cima, depois de tudo isto ainda se
matam? Obviamente algo está mal, e isso tem um nome:
férias.

Claro que sem férias também não havia necessidade de


pagar o subsídio, as empresas já podiam fazer o
pagamento especial por conta e, no fim, os
trabalhadores iriam agradecer por termos evitado que
morressem ingloriamente numa estrada secundária ou
numa qualquer praia não vigiada.

Numa altura de crise como esta será que só eu é que


tenho estas boas ideias?

77
A minha pequena vida

2003-07-07

É uma complicação quando a Polícia acerta um tiro em


alguém. Pior ainda quando esse alguém é um menor e
acaba por falecer. Mas na verdade, também ficamos
aborrecidos quando as balas falham e o criminoso foge.
Aliás, o sentimento de injustiça sente-se sobretudo
quando não se apanha o fugitivo, mesmo que a
alternativa signifique a morte deste.

Hoje foi um miudo que acaompanhava os pais numa


aventura de roubos de automóveis. No mínimo deviam
prever algo que sempre pode acontecer, e que quando
se é conhecido pela Polícia é tanto mais provável. Na
verdade, estes pais deviam ser acusados, no mínimo, de
homicídio por negligência.

É curioso que só se olhe para quem puxa o gatilho e se


esqueça constantemente de quem encenou, criou a
trama e colocou os actores no palco, à espera que a
acção de desenvolva em direcção a um final inevitável.

Mas não foi só esta a actuação da Polícia no dia de hoje.


Um jovem empresário de carácter empreendedor,
divulgador cultural foi preso após uma denúncia de uma
tal Associação Portuguesa de Empresas Fonográficas,
ou qualquer coisa parecida.

Parece que este dinâmico jovem vendia CD’s através da


Internet, tudo material de boa qualidade, desde o disco à
embalagem, passando pela capa. Aparentemente só
faltava um selinho insignificante em cada embalagem, o

78
A minha pequena vida

que só por sí não quer dizer que o produto seja mau.


Aliás, pela quantidade de clientes satisfeitos até parece
que não eram inferiores aos das lojas, só que custavam
menos de um quarto do preço. Claro que houve logo
quem por inveja pensasse em concorrência desleal,
provavelmente aqueles que nunca se lembraram do
mesmo ou que têm dinheiro para pagar a alguém
talentoso que lhes fabrique as contas no fim do mês.

Aparentemente o nosso jovem empresário devia


contribuir para equilibrar as finanças da Sociedade
Portuguesa de Autores, mas talvez por estar em
oposição à actual direcção, não pagou um chavo. Pior
ainda, também não pagou à Ministra das Finanças, e aí
o caso torna-se grave, logo vai ser preso por três anos
para aprender a não ser mais empreendedor e dinâmico
do que os outros.

Espantoso é que seja preciso uma denúncia, quando


basta ir à Internet e anúncios de venda de material pirata
são às dezenas. Basta à Polícia responder ao anúncio e
prender o denominado falsário. Será assim tão difícil
acabar com a iniciativa individual em Portugal?

2003-07-08

Hoje foi um dia difícil. Com a falta de erva, que se recusa


a crescer no quintal, não tive outra escolha senão ir á
procura de outra fonte de abastecimento. É nestas
alturas que percebo os dramas por que certas pessoas
passam quando não têm erva, Coitados, devem ter
tantas dificuldades digestivas como eu.

79
A minha pequena vida

Mal atravessei a rua, encontrei aquela gata horrível e má


de quem a minha família aparentemente gosta. Aquela
que tem uns monstrinhos parecidos com ela. Atacamo-
nos imediatamente e rebolamos por baixo de um
automóvel estacionado agarradas uma à outra. De
repente vi um carro em andamento e imediatamente
elaborei um plano. Atravessei a rua a correr à frente
dele, quase à tangente, mas a minha perseguidora parou
a tempo. Ainda não foi desta que me livrei daquele
maldito bicho! Mas não perde pela demora. Eu sei muito
bem que ela quer o meu lugar junto da minha família e
isso eu nunca hei de permitir.

Mas chega de assuntos que só me interessam a mim.


Não quero que ninguém pense que sou egoista e vivo
apenas no meu pequeno mundo.

Os taxistas decidiram manifestar-se contra o facto de o


Governo efectuar uma cobrança sem olhar aos seus
reais lucros ou prejuizos. Por princípio acho que têm
razão, isto de cobrar o mesmo a todos
independentemente dos resultados parece-me
particularmente injusto.

Por outro lado, será possível que mais de 90% não tenha
lucro e não mude de profissão? Realmente não faz
sentido, a menos que o espírito de sacrifício toque as
raias da loucura. Se as suas micro empresas só dão
prejuizo como é que eles se alimentam e às respectivas
famílias? Qualquer coisa não bate certo aqui, mas
parece-me que no meio disto tudo há muitas contas mal
feitas e uma mais que certa fugazita ao fisco. E como o
Governo não consegue saber realmente quem deve
pagar, aí paga o justo pelo pecador. Será que neste país

80
A minha pequena vida

não é possível que mais de 10% das empresas tenha um


lucrozito? Eu quando for uma pequena ou pequenina
empresária espero ter lucros, senão continuo a dormir as
minhas dezasseis horas por dia em vez de lutar pela
minha independencia financeira.

2003-07-09

Enquanto espero pela grande manifestação dos taxistas,


que certamente não vão bloquear nenhuma rua do meu
pequeno bairro, ouvi as explicações da Ministra das
Finanças. Fiquei mesmo contente porque disse hoje o
mesmo que eu escrevi ontem. Portanto, as minhas ideias
para além de originais são aquelas que o Governo vem a
adoptar. Claro que isto sognifica que já estou pronta para
um daqueles lugarzitos bem pagos no Conselho de
Ministros.

Se houvesse quotas para as mulheres e para os jovens


no nosso Governo de certeza que eu era a primeira
escolha. Ministra aos seis anos de idade! Até parece um
dos meus pequenos sonhos e pode estar tão perto de
ser realidade.

2003-07-10

Hoje temos uma boa oportunidade para resolver o


problema da extradição da Fátima Felgueiras. Trocamo-
la pelo Lula que está de visita a Portugal. Nada mais
simples e mais prático, eles devolvem-nos a nossa
autarca e nós o Presidente deles. Até se pode dizer que
ficam a ganhar porque um Presidente sempre vale mais

81
A minha pequena vida

do que uma autarca. É como com os cromos, os mais


raros valem mais para trocar.

Ninguém precisa de saber de nada deste plano, nem que


nós capturamos ou retivemos o Presidente deles, é só
fazer um acordo de conveniência e os brasileiros metem-
na discretamente num avião com destino a Lisboa
alegando que ela o fizera voluntariamente.
Só temos que tirar de lá a nossa Ministra da Justiça
antes de dar início ao negócio. Não queremos no meio
disto tudo ficar sem uma Ministra só para recuperar
aquela prevaricadora de Felgueiras.

E finalmente o Ministério Público decidiu processar


gestores públicos que prejudicaram o Estado. Isto devia
ser um direito de todos nós. Se eles gerem mal o nosso
dinheiro, ficamos todos a perder, individual e
colectivamente, portanto não só o Estado mas também
cada um de nós como lesados devia processá-los e
pedir uma indeminização.

E isto é só o começo. Depois destes supostamente


incompetentes ligados à área da Saúde deviamos ir
atrás de todos eles e fartavamo-nos de recuperar
dinheiro pago a quem não soube cumprir as suas
funções. É espantoso como alguns sabem gerir tão bem
as suas contas bancárias e tão mal o dinheiro de todos
nós.

Sou a favor da responsabilização cível e criminal de


quem utilizae mal os dinheiros públicos. E quem aceitou
um cargo para o qual não estava preparado e para o
qual foi nomeado por razões de favores políticos, deve
ser responsabilizado por isso caso a gestão seja

82
A minha pequena vida

considerada ruinosa. É como quem bebe e a seguir


provoca um acidente rodoviário. Sabia que não estava
em condições de o fazer e mesmo assim decidiu-se a ir
para a estrada. Aqui é a mesma situação, não sabia do
ofício mas não se coibiu de aceitar o chorudo ordenado.
Ministra Ferreira Leite, aqui tem o seu novo Pagamento
Especial por Conta em versão justa e benvinda por todo
o povo português. Cada mau gestor público a devolver
os ordenados que ganhou sem saber do ofício. E prisão
com eles todos, o exemplo deve vir de cima!

2003-07-11

Já percebi que vão deixar fugir o Lula em vez de o trocar


pela prevaricadora de Felgueiras. Já não bastava tudo o
que levou quando aqui estava ainda por cima continua a
receber por uma função que não exerce.

Deviam era congelar todos os bens, os ordenados e tudo


aquilo que tivesse sido comprado com o produto das
trafulhices, mesmo o que não esteja em nome dela.

Mas não vou falar mais desta criatura para que se


reduza à dimensão da sua insignificancia moral.

Finalmente os americanos admitem que inventaram a


história do regate da soldado Lynch. Mais vale tarde do
que nunca, sobretudo porque se quisessem fazer algo a
sério deviam ter contratado o Spilberg. Um realizador
com aquele talento rapidamente passava o filme do
salvamento do soldado Ryan da Segunda Guerra
Mundial para as areias do Iraque. E tudo seri feito com

83
A minha pequena vida

profissionalismo, realismo, um enredo credível e actores


à altura.

O erro destes realizadores amadores é que uma história


inventada como esta tem que ser feita unicamente por
actores profissionais, num local imaginário e onde não
seja possível recolher informações em contrário. Se
tivessem rodado esta aventura num falso hospital no
deserto da Califórnia ou do Nevada, com americanos
disfarçados de árabes,destruindo os cenários após a
conclusão do filme, evocavam segredos militares para
não revelar mais do que queriam dar a conhecer e
ninguém os ia apanhar em flagrante.

A isto eu chamo um grande falta de profissionalismo,


tanto na guerra como na paz. Se ao menos tivessem
contratado o Ministro Al-Sahaf as coisas de certeza que
teriam corrido melhor.

Custa-me tanto ver tamanho talento desperdiçado!

2003-07-12

Ver o Bush em África lembra-me o George of the Jungle.


São ambas duas caricaturas, uma do Presidente dos
Estados Unidos, outro do Tarzan. E nem sequer é o
artigo genuino, nem sequer foi quem teve mais votos nas
eleições. Mas o que lá vai, lá vai, um dia talvez
descubram o que é o sufrágio universal e directo. Ou
talvez achem isso anti-democrático.

84
A minha pequena vida

Mas enfim, no meio da selva até parece que o homem se


sente à vontade. Pelo menos está mais ambientado do
que em reuniões de gabinete e sempre pode
confraternizar com os bichos sentindo-se mediamente
inteligente. Mas cuidado, porque também aqui convem
não exagerar e debater assuntos demasidado eruditos.
Alguns bichos são mesmo espertos e até parecia mal
compará-los com o George.

Está tão feliz que até manteve a confiança no Director da


CIA, que em termos de previsões não acerta numa. Ou
tavez seja o director que convém, com tanta dificuldade
em obter informações credíveis é sempre mais prudente
pensar que o inimigo está em toda a parte. Com base
nisto hoje vai-se ao Iraque, amanhã ao Irão, e continua-
se por outro país qualquer, sempre a utilizar o infalível e
metódico processo da exclusão de partes.

Por outro lado, como existe o velho princípio de não


mudar de cavalo a meio do rio, talvez não mudem de
Bush a meio de uma guerra. Portanto esperemos que
qualquer coisa desagradável aconteça na cena
internacional uns meses antes das próximas
presidenciais americanas.

2003-07-13

Sempre que alguém fica doente aqui em casa é um


momento de pânico para todos. Ainda me lembro bem
de quando é preciso ir a um hospital e esperar horas a
fio numa maca, em sofrimento, sem festinhas e longe
dos miminhos a que estou tão habituada. Por mim, não

85
A minha pequena vida

devia haver hospitais e as pessoas eram tratadas em


casa, ao pé da família, com conforto e carinho.

Com toda esta confusão nem assisti à enrevista com o


Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, quase não vi as notícias
e nem me aproximei do computador.

Mas como o mundo não para sempre vi algumas novas


interessantes. A que mais me despertou a atenção foi a
estranha história dos bilhetinhos enviados pelo Carlos
Cruz ao Bibi. Há quem fale em desepero, outros em
pressão e até já se fala na falta de inteligência de um
homem simples e influenciável. Mas neste país ainda há
regras, e se é necessário utilizar mensagens
clandestinas para contactar outro presidiário há uma
certa ilicitude. Caso contrário podia contactá-lo às claras,
directamente e sem medo de ser apanhado. Pode ser
desespero, mas também se costuma dizer que quem
não deve não teme.

2003-07-14

Fico particularment chocada quando um deputado utiliza


subterfúgios para fugir à justiça e infelizmente o dito Cruz
Silva tem vindo a utilizar este estranho privilégio de
forma pouco ética.

Objectivamente a imunidade apenas devia ser utilizável


quando em situações relacionadas com o desempenho
parlamentar. Não sem o que está na lei, mas caso
permita ir mais longe é factor de descrédito da classe
política. É lamentável que alguém possa fazer uma lei

86
A minha pequena vida

que o coloca acima dos outros cidadãos perante a lei


deste país.

Esperemos que esta vergonha seja ultrapassado de


forma definitiva e que a própria lei seja alterada, para
que caso um deputado seja notificado tenha mesmo que
comparecer perante a justiça. E isto sem que haja
necessidade de pareceres ou autorizações dos seus
pares. Se vierem atrás de mim, ninguém vai votar se eu
tenho ou não de responder, ou vou por minha livre
vontade ou dentro do porta-gatos. Sinceramente desejo
que o dito seja enclausurado num porta-gatos, de não
muito grandes dimensões e enviado para Coimbra por
transportadora à atenção do excelentissimo Ministério
Público.

Bastava que um destes deputados fosse enviado a


tribunal desta maneira e todos se voluntariavam para
comparecer. Até começavam a ter uma lista de espera
para ir a Tribunal só para escaparem ao porta-gatos. E a
comissão de ética teria o dito meio de transporte sempre
presente nas reuniões, não houvesse algum deputado
com a habitual memória curta.

2003-07-15

Estava à espera de saber qual a decisão do Supremo


tribunal de Justiça relativamente ao pedido de “habeass
corpus” feito pela defesa do Carlos Cruz.

Tenho uma certa curiosidade em saber se houve


realmente uma tamanha falta de informações prestada
pelo Ministério Público que torne a defesa impossível ou

87
A minha pequena vida

se estamos diantes de um desses lamentáveis


incidentes processuais onde a forma tenta confundir a
razão e a realidade dos factos.

Estes processos longos, com multiplos recursos e


sujeitos aos mais diversos incidentes de percurso, sejam
ocasionados por fugas de informações, especulações,
pressões, e tudo o mais que se possa inventar, não
favorecem ninguém. Nem o Ministério Público sai
favorecido, nem a Defesa pode perseguir os seus
objectivos.

Ainda me lembro de quando viu uma reportagem sobre a


justiça Islãmica no Irão. Tribunais móveis, compostos por
três ou quatro pessoas, incluindo um juiz que
normalmente era um Ayatolah, um executor, para não
lhe chamar um carrasco e um ou dois auxiliares.

Chegavam a uma aldeia, eram-lhes apresentados os


suspeitos e a pena era aplicada de seguida, quase sem
custos e sem grandes recursos. Aliás, o recurso, caso
houvesse, seria uma cirurgia de reimplantação, coisa
que não deve ser frequente no Irão.

Para crimes comos os de pedofília imagino que não me


devo enganar muito se pensar em qualquer sentença
entre o apedrejamento por uma multidão em fúria ou
uma amputação mais intíma e delicada.

Mas enfim, não estamos no Irão e a justiça Islâmica não


se aplica aqui, por sorte de alguns e provavelmente para
azar de muitos. Caso a Ministra das Finanças faça um
estudo sério não tenho dúvidas que adoptaria
entusiasticamente este método rápido e, sobretudo,

88
A minha pequena vida

extremamente económico. Já pensou em quanto é que


poderia poupar Sra Ministra?

2003-07-16

Não posso dizer que não estivesse à espera da decisão


do Supremo relativamente aquele estranho pedido de
“habeas corpus” do Carlos Cruz. Era mais do que
inevitável e os argumentos da Defesa tão especulativos
que dificimente teria outro fim. Agora só tem que pagar a
conta deste estranho recurso e passar à instância
seguinte.

Claro que tudo isto pede importancia quando comparado


com as declarações do Bastonário da Ordem dos
Advogados, que provavelmente será chamado o
Carcereiro-Mor dada a sua ânsia de prender todos
aqueles que violarem o segredo de Justiça.
Provavelmente não ficariam muitos nem magistrados,
funcionários judiciais ou advogados em liberdade. Os
julgamentos deriam muito mais divertidos, já que todos
os intervenientes estariam presos, tudo se passaria
dentro da cadeia, a prisão preventiva seria uma norma e
até os jurados podiam ser escolhidos entre os
presidiários.

Obviamente que depois das declarações prestadas pela


juiza Conceição Oliveira esta seria a primeira a ser
enjaulada. Que descalabro! Nunca tinha visto nada
parecido e a cada pergunta do jornalista enterrava-se
mais. Fiquei assustada ao ver quem pode decidir acerca
do nosso futuro caso sejamos acusados. Desde os
“lobbys” à teoria da conspiração, passando pela simpatia

89
A minha pequena vida

e beleza dos candidatos aos olhos dos inspectores,


apareceu um pouco de tudo. Parecia que ela falava um
concurso estilo “Big Brother” em vez de um processo
sério de nomeação de magistrados judiciais.

Estou convencida que o Conselho Superior de


Magistratura sabe muito bem quais os juizes que iram
ser colocados no Tribunal de Instrução Criminal de
Lisboa. De certeza que já têm o acordo e a confirmação
dos escolhidos, mas decidiram que só iriam revelar os
nomes na altura da tomada de posse. Assim evitam
cerca de dois meses de pressões sobre os desgraçados
que desta forma podem pelo menos ter umas últimas
férias descansados.

Agora para a dita juiza, só espero que não seja nomeada


para nenhum cargo excepto o de comentadora judicial
com resisdência fixa num dos estabelecimentos
prisionais do Estado.

2003-07-17

Cada vez desconfio mais do Estado. Eles não querem


saber da opinião de cidadãos honestos e esclarecidos
como eu preferindo recorrer a um grupo de
incompetentes para os aconselhar.

Pode ser que isto custe a entender mas eu vou explicar.

Está em discussão um projecto-lei perigosissimo para


mim e que envolve porte e posse de armas de fogo. Para
eles, que são grandes e fortes, a arma de fogo é
qualquer coisa que lhes pode fazer algum mal. Mas eu

90
A minha pequena vida

sou mais pequenina e frágil. Qualquer armazita mesmo


quase de brincar pode ser letal para mim. Claro que eu
quero proteger os meus direitos e ter uma segurança
igual à da gente grande e para isso o limite imposto tem
de comtemplar a minha segurança.

Quis ter uma vozinha activa, enviar as minhas sugestões


e participar na discussão de um projecto-lei que tem a
ver com a minha segurança pessoal. Basicamente,
queria defender os meus direitos como qualquer
cidadão, mesmo que ainda seja menor de idade e de
tamanho. E o que é facto é que não me deixaram fazê-
lo. Disseram que não há discussão pública e que vai
directamente para o Parlamento onde pode ser aprovado
por outras pessoas grandes.

Chamam a isto “democracia participativa”. Dizem que os


cidadãos não se interessam pela política, mas quando
querem participar recusam-se a ouvi-los.

Vou ter que recorrer a outros meios. Quando conhecer o


conteúdo da lei exponho na Internet os defeitos, faço
uma lei melhor e deixo-os ser humilhados pela
população. É o que merecem estes políticos egoistas
que querem o poder só para eles!

2003-07-18

Cada vez há mais gente presa após escutas telefónicas.


Desde deputados a polícias, passando pelos mais
vulgares criminosos, até parece que a Judiciária
descobriu uma nova forma de investigar. É uma espécie
de “investigue lá fora cá dentro”. Não é preciso correr de

91
A minha pequena vida

um sítio para o outro ou montar elaboradas operações


de vigilância que tendencialmente correm mal. Agora
basta pedir a uma operadora, ligar o equipamento e ter a
paciência necessária para que a vítima, que é como
quem diz, o suspeito escolha uma frase particularmente
infeliz para exprimir uma ideia duvidosa.

É mais ou menos assim, um agente ouve alguém dizer


“por que é que esse tipo não desaparece” e logo conclui
que existe um incitamento a um crime de homicídio.
Todas as frases dão de uma forma ou de outra origem a
uma interpretação distorcida profissionalmente e quando,
cruzada com mais duas ou três em circunstâncias
semelhantes, até se pode provar uma conspiração ou a
existência de uma associação criminosa.

Por causa disto, e porque sou pequenina e tenho medo


das prisões, decidi não ter um telemóvelzinho.Porque
agora já existem alguns com uma meia dúzia de
centimetros, o que ainda é um sacrifício para mim ams já
torna o seu transporte possível.

A magistratura portuguesa é realmente a grande inimiga


das operadores de telemóveis, qualquer dia é tal o
pânico entre os utilizadores que ainda levam as
operadoras à falência. E depois disso vão processar os
juizes e perdem porque são eles que decidem. E este é
o país em que vivemos e que não escuta os meus
conselhos.

2003-07-19

92
A minha pequena vida

Finalmente tiv um dia tranquilo. Os gatos vadios não me


incomodaram, pude dormir um bocado na cama grande
e as notícias nem sequer foram assustadoras.

É o país na sua normalidade, apesar de o juiz que ia


presidir ao julgamento do Bibi aparentemente também
estar ligado à pedofília e ter sido substituido. Esperemos
que encontrem alguém sem esse tipo de passado, mas
se for difícil não me importo de ser eu a condenar o
culpado, que é como quem diz, o réu. É assim, zangam-
se as comadres e logo tudo começa a aparecer na rua,
todos os envolvidos, os cúmplices e, sobretudo, os que
permitiram que a situação se prolongasse.

Sobretudo não perdoo aos políticos que adiaram,


arquivaram, menosprezaram e arquivaram tantos
inquéritos que foram elaborados sobre o triste caso da
Casa Pia. Já não estou apenas a falar de
responsabilidade política, essa será apreciada pelos
eleitores, mas de falta de prestação de auxílio.

Quem conhecendo um crime continuado não o


denunciar, permitindo assim a sua continuação, não é
melhor do que aquele que abandona uma vítima
atropelada à beira da estrada. E se para estes existem
penas de prisão, o que fazer com os outros? Perdoá-los
porque são políticos e beneficiam de um regime de
quase impunidade que apenas lhes permite prestar
declarações quando os seus pares, que tantas vezes
são cúmplices assim o permitem?

Eu ainda sou pequenina mas vejo isto com muita clareza


e faço votos de que alguém maior do que eu também

93
A minha pequena vida

pense assim. Talvez o Presidente da República, que


mesmo sem o saber é meu primo afastado.

2003-07-20

Parece que desapareceram milhares de passaportes


porugueses de embaixadas e serviços consulares. Pelo
menos é o que diz o FBI, embora neste caso não
estejamos em face de uma fonte segura. Quem se
enganou tantas vezees nos últimos tempos bem pode
estar a confundir os passaportes com as vinhetas.

Mesmo assim é grave que haja um desaparecimento de


tantos documentos passíveis de ser utilizados por
terroristas e só agora o Governo diga que vai investigar.
Será que nunca soube que alguma coisa desapareceu
do interior de representações diplomáticas?

Eu nem sequer tenho bilhete de identidade, quanto mais


passaporte. Só me deram um cartão de vacinas, onde
estão registadas todas as humilhações e torturas por que
já passei. Não sei o que é preciso mais fazer para
receber um passaporte, mas a avaliar pelo interesse que
muita gente tem em obtê-lo deve ser preciso fazer muita
coisa. Pelo que percebo deve ser uma espécie de
documento mágico e quem tem vai aonde quer e como
quer. Deve ser uma espécie de passe social mas mais
alargado, que se pode usar no estrangeiro onde não há
nem Metro nem Carris.

Acho que se tivesse um passaporte me tornava em


alguém mais importante, deve até ser um direito de
cidadania a que eu ainda não tive acesso. Mas também

94
A minha pequena vida

é muito caro, já ouvi falar de valores exorbitantes para


ter aquele documento, até mais de mil euros, o que é
uma fortuna para mim. Ainda se desse para ter
descontos em algumas lojas em vez de servir só para
viajar, ainda valia a pena o investimento, mas assim vou
ter que adiar mais este pequeno sonho. Logo eu que já
tinha ums fotografias adequadas e queria viajar até um
clima tropical onde não precisasse de um computador
para me aquecer.

2003-07-21

Neste país tudo gira em torno da pedofília e das escutas


telefónicas. Até parece que não existe mais nada de
importante e que todos os problemas e a crise já ficaram
para trás. É a telenovela à portuguesa, com heróis
nacionais, a ganhar a guerra das audiências.

E o pânico entre os políticos contínua, as escutas


telefónicas são a principal razão do desemprego e das
reformas antecipadas e quantas vezes compulsivas
nesta classe profissional.

Ainda estou a ver o Secretário Geral do PS a exibir o seu


telemóvel e garantir que não mudara o número, mas o
que é facto é que não o anunciou na telvisão. Assim não
posso falar com ele e dar-lhe alguns conselhos que
muito o podiam beneficiar. Pior para ele, porque quanto
a mim escuso de pagar as chamadas. Isto de dar
conselhos e pagar os telefonemas não é grande ideia.
Talvez ainda instale uma linha de valor acrescentado
para dar conselhos a políticos desesperados. A Super
Tele Linha Política de Gatochy. Até o nome soa bem,

95
A minha pequena vida

mas agora tenho de conseguir um investimentozinho


porque sem o marketing apropriado arrisco-me a que o
negócio não ande para a frente.

É espantoso como ninguém se lembrou disto até agora,


um serviço de consultadoria telefónica para quando os
políticos, ou mesmo os orgãos de soberania, não sabem
o que fazer. Uma espécie de governo e oposição
sombra, uma coligação improvável e desconhecida
capaz de governar este país como deve ser. E por trás
disto tudo apenas um nome: Gatochy.

2003-07-22

Hoje foi um dia de vitória para o Bush. Não conseguiu


apanhar nem o Bin Laden, nem o Mullah Omar, nem o
próprio Sadam Hussein, mas consta que os filhos deste
foram mortos pelo Exército Americano. Não que seja
uma grande vitória, e o facto de não terem capturado
nenhum dos verdadeiros protagonistas ainda desvaloriza
mais este prémio de consolação.

No entanto, depois de tantos fracassos, uns verdadeiros


e outros inventados, do descrédito do salvamento da
soldado Lynch, que seria a única missão vitoriosa das
forças especiais americanas, qualquer coisa ajuda a
levantar o moral a soldados que se arriscam a
permanecer no Iraque durante mais uns meses sem
saber se voltam vivos para casa.

Como consequências destas mortes, prevejo um


aumento da resistência de antigos partidários do regime,
sobretudo após a demonstração de que o objectivo é o

96
A minha pequena vida

de matar e não de capturar os antigos líderes iraquianos.


Vai ser mais um período díficil, e infelizmente o nosso
contigente da GNR já está quase a caminho.

A maior parte dos portugueses já esqueceu o


alinhamento do governo pelas posições americanas, na
prática, já quase esqueceu que houve guerra no Iraque,
mas caso haja alguma vítima entre os militares da
Guarda, tudo vai mudar rapidamente e muitos pesadelos
de um passado recente voltarão à memória de muitos.
Seja Vietnam ou Guerra Colonial, há sempre quem não
esqueça a História e os resultados de uma intervenção
impensada ou de uma guerra que se eterniza. Eu ainda
sou muito pequenina para me lembrar destas coisas mas
já aprendi que a História tem tendência a repetir-se
quando as pessoas se recusam a aprender as lições que
ela nos dá.

2003-07-23

Continuo com um dia de atraso no meu diário. Não é por


falta de vontade, mas nesta altura do ano nada
acontece. Só as escutas telefónicas, que se prestam a
todo o tipo de especulações, é que ainda fazem vibrar o
imaginário nacional. É uma concorrência directa às
telenovelas, com a vantagem de não ser necessário
contratar actores. Basta alguns encenadores, para criar
situações mais ou menos caricatas, e alguns
realizadores para escolher os melhores planos e fazer
uma montagem mais emotiva.

Às vezes interrogo-me se existe realmente um enredo


por trás de tudo isto ou estamos a ver um sucessão de

97
A minha pequena vida

curtas metragens onde apenas os actores mantêm uma


certa forma de continuidade. Aliás, muitas vezes nem se
percebe como é que se salta de um episódio para outro.
Provavelmente nem os próprios intervenientes sabem,
apenas lêm algo no jornal e vão atrás da notícia.

É um jogo curioso, em que os jornais publicam algo que


só se torna real à posteriori, depois da reacção
normalmente intempestiva do visado. Parece uma
daquelas produções televisivas em que o protagonista é
conduzido a partir do estúdio, independentemente da
sua vontade.

Enfim, enquanto não aprenderem a falar a minha


linguagem, bem me podem escutar à vontade. O
“gatochês” não é uma lingua muito comum e não
acredito que a Judiciária tenha algum tradutor. Boa ideia
era se o Secretário Geral do PS aprendesse “gatochês”,
bem podiam gravar as suas quase duas mil conversas
telefónicas que as transcrições seriam no mínimo
hilariantes. Miau!

2003-07-24

Sinto sempre uma certa angústia e uma enirme revolta


quando a minha família tem que ir ao Centro de Saúde.
Começa pela longa espera pela marcação de uma
consulta e acaba numa tarde à espera de serem
atendidos.

Tudo se passa no meio do mais completo caos e


irresponsbilidade e enquanto se espera assistem-se às

98
A minha pequena vida

situações mais confrangedoras e lamentáveis que um


serviço público pode protagonizar.

Uma rapariga esperou durante imenso tempo para


protestar pelo facto de ter recebido uma carta a avisá-la
de uma operação marcada para a véspera. Não foi
enviada por correio azul, para poupar uns cêntimos, e
assim a operação não se realizou. Vãos ser precisos
mais testes, novas consultas, mobilizar outra vez a
equipa, marcar a sala, ou seja repetir o processo. Isto
sem contar com o facto de a pessoa em causa ter que
voltar a perder tempo e passar duas vezes pela mesma
experiência. Isto foi o preço de poupar uns trinta
cêntimos e agora esperemos para ver que
consequências vai ter para o responsável.
Provavelmente nenhumas, talvez uma pequena
admoestação em família, e brevementeo mesmo irá
suceder com outra pessoa.

Assim se vê para onde vai o dinheiro que o Estado


entrega ao Serviço Nacional de Saúde, onde o
deperdício, o material novo abandonado, as instalações
degradadas e os funcionários desmotivados se vão
arrastando em direcção ao caos.

Afinal, isto de ir à médica dos gatos até que não é mau.


Os cuidados são melhores espero menos tempo e sou
tratada com mais atenção. Só é pena que uma consulta
minha seja mais cara do que as da minha família!
2003-07-25

De vez em quando eu preciso de parar para pensar e


releio o que escrvi durante o ano. Só me ocorre pensar
que este país, que este mundo está doente e me deixa

99
A minha pequena vida

triste e deprimida. O número de alegrias que ocorreram


durante o ano é insignificante quando comparada com as
tragédias e desgraças que se repetem diariamente.

Passamos de uma guerra no Iraque, agora quase


esquecida, para a prisão de alguns famosos, que vamos
esquecendo aos poucos, para a cobrança imoral do
Pagamento Especial por Conta. E tudo isto com um
cheiro a corrupção e pedofília que se entranha em tudo,
como se fizesse parte das coisas. Parece que por muito
que se lave e esfregue é algo que nunca mais sai.

Agora só se fala das escutas telefónicas. Como diria o


outro, é um “fait divers” que apenas serve para esquecer
o essencial. As escutas são um meio, não o fim e
parece-me que muitas vezes há quem se esqueça deste
pormenor. E afinal, quem não deve, não teme.

O outro problema, inerente à nossa mentalidade, é o de


que o importante é descobrir os culpados, não é socorrer
as vítimas nem resolver o problema.

Lembra-me de uma história que se passou há uns anos


quando o sistema informático de uma fábrica se avariou,
impedindo a entrada e saida de produtos. A gerência,
constituida por portugueses, só queria saber de quem
era a culpa, enquanto o responsável pela informática um
brasileiro, queria primeiro resolver o problema e por tudo
a funcionar antes de ir à procura do inevitável e
desejável culpado. O que é facto é que o custo da
paragem devido às investigações era muito mais elevado
do que aquela que se deveu à avaria, mas aqueles a
quem tal mais penalizava aparentemente não se
apercebiam disto.

100
A minha pequena vida

De certa forma este exemplo espelha o funcionamento


do País, parado à procura de culpados, incapaz de
resolver os problemas e alheio ao sofrimento das
vítimas. Será assim tão difícil aprender a dar prioridade
ao que é realmente importante?

2003-07-26

A demissão de chefes militares com o prestígio do


General Silva Viegas, apenas alguns meses após a
saida do General Alvarenga Sousa Santos é
preocupante para um pequeno gatochynho como eu.
Apesar da segurança que representa para mim o facto
de o Almirante Mendes Cabeçadas, que não sabe, mas
é meu tio, ser o Chefe de Estado Maior General das
Forças Armadas, a instabilidade no meio militar é
sempre uma mau indicador e reflete-se de certa forma
na vida do país, sobretudo numa altura em que o serviço
militar obrigatório se mantem por falta de verbas.

Eu sempre achei que toda a gente substancialmente


maior do que eu deve passar umas semanas ou uns
meses nas Forças Armadas. Não propriamente a cumprir
um serviço militar, mas como uma espécie de ritual de
passagem para a idade adulta. A maior parte das
civilizações tinha uma cerimónia ou uma prova de
transição, uma altura em que é necessário ultrapassar
algum tipo de obstáculo que de certa forma certifique
que uma determinada pessoa atingiu um nível de
responsabilidade que lhe permita integrar-se em pleno
na sociedade. Este ritual ainda vigora em muitas partes

101
A minha pequena vida

do mundo e no Ocidente acabou de certa forma por ser


entregue à instituição militar.

Não pretendo que as pessoas sejam obrigadas a


dispender longos meses, a atrasar a sua vida escolar ou
profissional, nem a integrar-se numa instituição que lhes
pode dizer muito pouco. Apenas acho que é uma
experiencia positiva, socialmente importante e capaz de
ser um factor de unificação e de solidariedade entre
pessoas provenientes de várias classes sociais, com
diferentes formas de encarar a vida, e que de outra
forma dificilmente alguma vez contactariam e
conviveriam com alguma proximidade.

Vamos acabar com este serviço militar obrigatório, mas


incluir uma experiencia de seis a oito semanas a quantos
finalizarem o ensino secundário e que assinale a sua
passagem para a idade adulta, para a sua integração na
sociedade e no mundo laboral.

2003-07-27

Hoje vi um par de reportagens assustadoras sobre os


condutores portugueses. Não que me tenha espantado,
mesmo no meu pequeno bairro vejo as maiores
barbaridades, desde transitarem em sentido contrário até
às altas velocidades em ruas estreitíssimas onde me
podem atropelar quando dou os meus pequenos
passeios.

Mas o que me espanta é a consideração que têm pelas


suas capacidades de condutor. Graças a Alá, este país
não se pode queixar da falta de imaginação dos

102
A minha pequena vida

condutores, todos vivem num mundo virtual em que a


estrada é uma pista e o velho calhambeque parece um
bólide.

Ainda me lembro de um que fazia ziguezagues depois de


arrancar para aquecer os pneus e abria a porta em vez
do vidro para não perturbar a aerodinâmica. E tudo isto
acontecia em plena Avenida da Liberdade, em hora de
ponta, e ao volante de um velho automóvel que mal se
arrastava pelas subidas.

Eu adoro ouvir as desculpas, a capacidade inventiva


inesgotável e os argumentos surrealistas, capazes de
envergonhar o melhor dos advogados e o mais audaz
dos políticos. A condução é uma excelente escola de
autojustificação, qualquer advogado ou político só tem a
ganharem passar por ela, em escutar os argumentos e a
implacável lógica dos nossos ases do volante. Pena é
que não sobrevivam o suficiente para se tornarem
verdadeiros profissionais, mas pelo menos também não
recebem reforma, o que para alguns ministros não deixa
de ser positivo. No meio disto tudo, ainda quem ganha
mais são os fabricantes de automóveis, que correm a
instalar-se em Portugal crendo numa rápida rotação de
veículos como se de artigos descartáveis se tratasse.

Eu ainda não tenho idade, sou muito pequenina para ter


carta e além disso tenho muito medo de andar no meio
de todos aqueles condutores maus. Também não gosto
de carros, só de estar à sombra debaixo deles no Verão
e aproveitar o calor do motor no Inverno, mas se
pudesse ter um, queira Alá que fosse um tanque.

103
A minha pequena vida

2003-07-28

Mais uma vez o meu quase primo Presidente da


República deu uma jantar, ou um fausto banquete à
minha escala e não me convidou. Pior do que perder a
jantarada, sobretudo porque desconheço a ementa, não
lhe pude dar a minha opinião acerca dos problemas da
justiça em Portugal.

Aposto que nenhum dos convivas lembrou a excelencia


e a rapidez da justiça islâmica, sobre a qual tantas vezes
já dissertei e enalteci as qualidade de isenção, rapidez,
transparência, custo e respeito pelas vítimas.

Em vez de me escutarem e se abrirem a novas


perspectivas, todos os convivas por pensarem de forma
de forma idêntica, nada têm a transmitir uns aos outros
de inovador, pelo que mais uma vez vamos assistir à
evolução na continuidade. Ou seja, no fim ganharam um
jantar sem grande esforço ou mérito, enquanto eu que
tanto me esforço para resolver os problemas nacionais
fiquei de fora. Só espero que não tenha sido salmão!

E afinal os temas são sempre os mesmos. Actualmente


é a violação do segredo de justiça, prática tão diária que
ainda custa a crer que se trate realmente de um crime.
Mas o que é facto é que falamos do crime mais impune
que se pratica em Portugal, muito à frente da fuga aos
impostos e das infrações rodoviárias.

Dizia o Bastonário da Ordem dos Advogados, prendam-


se todos, constituam-se todos arguidos e no fim batam-
se palmas. A ideia não é má, mas precisa de alguns
melhoramentos.

104
A minha pequena vida

Primeiro faz-se como na escola, ficam todos trancados


até ao culpado confessar, o que inevitavelmente
acontece. Nem é preciso que sejam constituidos
arguidos porque tem tendência a ser rápido e a pressão
do grupo é sempre mais eficaz do que a do juiz. Até
porque os métodos podem ser outros...

Depois, porquê prendê-los quando a verdadeira justiça


tem um processo mais rápido e económico de lidar com
aqueles que usam a lingua para cometer os seus crimes.
Não vou adiantar mais porque já todos me perceberam e
não quero parecer politicamente incorrecta num país de
brandos costumes.

Aqui está uma solução basicamente a custo zero, sem


processos complicados e francamente desencorajadora
da prática do crime. Pelo menos evita reincidencias!

2003-07-29

Para uma pequena gatochynha que descende de uma


família do campo os incêndios tocam sempre fundo.
Tantos dias já passaram e esta tragédia não parece ter
fim. Imagino sempre o que seria se fosse nas terras da
minha família e colocá-se em risco pessoas conhecidas.

Normalmente diz-se sempre mal do Governo, dos


Bombeiros e de todos aqueles que são responsáveis por
combater os incêndios. Atribuem-se as culpas a
madeireiros e pirómanos e esquece-se tudo o que há de
incúria e negligência por trás de todas estas desgraças.

105
A minha pequena vida

Mais do que combater as chamas, é preciso prevení-las


e isso envolve em grande parte os proprietários que não
limpam os terrenos permitindo um rápido avanço dos
incêndios, e permitem que a vegetação tape os
caminhos florestais bloqueando os carros dos
bombeiros. Quando os incêndios começam nestes
terrenos, por muito pequenos que sejam já são
praticamente incontroláveis e todos se esquecem de
punir a incúria e a negligência que ameaça a vida dos
que a arriscam para salvar o que pertence a outros.

Custa-me dizê-lo e até pode parecer cruel, mas aqueles


que pela sua incúria, desleixo, negligência e eu sei lá
que mais, facilitarem os incendios devem ser punidos
com severidade. Infelizmente há quem não aprenda de
outra forma e se limite a chorar depois das tragédias
acontecerem. A negligência neste país é quase
ignorada, e se calhar é a maior causa de acidentes e
tragédias que existe. É o bom e velho deixa andar aliado
aos brandos costumes da Justiça. Coitado, já perdeu
tudo e ainda vamos condená-lo? Sim, vamos, se ele
perdeu porque assim o permitiu e não se importou com
as consequências para terceiros.

Espero que na discussão dos problemas da Justiça não


se lembrem só das escutas telefónicas e da pedofília, os
bombeiros merecem que lhes facilitem o trabalho e a lei
pode dar-lhes uma grande ajuda na prevenção dos
fogos.

2003-07-30

106
A minha pequena vida

Tal como o infeliz do Dr. Ferro Rodrigues, também eu


estou a precisar de umas fériazinhas longe de tudo e de
todos, com excepção da minha família, como é lógico.
Hoje foi mais um dia para esquecer completamente, tudo
correu mal desde o início e por culpa de uma maldito e
horrível gato preto que decidiu aparcer na minha rua. O
desplante do bicho! No meu passeio, a olhar para mim
fixamente, sem qualquer respeito e consideração, a
ponto de ser verdadeiramente intolerável. E como quem
não sente não é filho de boa gente, fui-me a ele e correu
mal. Aquela fera desgraçada era muito maior e mais
forte do que eu e tive que correr para casa, como o bicho
atrás. E quando nos atiramos um ao outro, lá veio abaixo
o cortinado. Bolas! Mais uma vez e logo no que prometia
ser um dia com jantar de lata.

Acabei por ficar de castigo, com uma horrível refeição de


comida seca e a olhar para uma deliciosa lata fechada e
inacessível. Tudo por culpa daquele gato preto. Não sou
racista, mas os gatos pretos dão-me mesmo azar.

Mas pelo menos ainda tive direito a um momento


humurístico, quando li a transcrição da conversa entre o
ainda Secretário Geral do PS e o Dr. António Costa.
Quando comecei a contar o número de “pás” veio-me à
memória o mítico Vasco Lourenço, até hoje o recordista
incontestável e campião mundial de “pás”. Agora o título
está em perigo, existe um novo candidato capaz de
introduzir pelo menos um “pá” em cada frase.

Mas tirando os “pás” o diálogo parecia uma conspiração,


daquelas que surgem nos filmes de série B, onde nada
se percebe excepto a evidência de que são os maus da
fita. Absolutamente lamentável para quem não tem nada

107
A minha pequena vida

a esconder, a menos que tenham tanta dificuldade de


expressão que seja esse o seu maior crime. E se assim
for, Alá nos proteja de que possam governar este País.

No fim, a minha solidariedade vai para o Dr. Paulo


Pedroso, que culpado ou não, não merecia ter amigos
destes.

Aliás, com amigos destes, quem precisa de inimigos?

108
A minha pequena vida

2003-07-31

Hoje não me queixo. Tive uma lata deliciosa ao jantar e


quase me equeci de não ter sido convidada para o jantar
dos generais. Também é verdade que nunca fui militar,
muito menos general e ainda menos chefe de estado
maior do Exército, mas o restaurante pareceu-me muito
agradável e é sempre bom variar.

Enfim, depois do jantar da Justiça, foi o dos generais, em


mais um repasto neste país de gastrónomos.
Indiscutivelmente é a hora mais importante em termos de
decisões políticas e quem não é convidado não se limita
a passar fome, não conta.

Foi inovador ver um chefe militar demitir-se por não er


confiança política no Ministro da Defesa. Estava
habituada ao contrário, mas foi uma surpresa agradável,
ver que desta vez houve alguém que não quis esperar
pela inevitável demissão. Realmente há algo de errado
nas relações entre o Ministério e as Forças Armadas, e
se bem que durante muito tempo desse o benifício da
dúvida ao actual ministro, parece-me que algo tem que
ser mudado. Felizmente que neste país há muitos
generais e a demissão de uma meia dúzia não cria
demasiados problemas ao Exército.

No meio disto tudo só fiquei preocupada com o aspecto


pseudo conspirativo do banquete. Ainda me ocorreu as
imagens da preparação de um golpe militar, e as
declarações continham qualquer coisa de insidioso, de
um misto de aviso e quase de ameaça.

109
A minha pequena vida

Espero que o Dr Portas tire as devidas elações, porque


ser ministro de umas Forças Armadas que não o
querem, na verdade, não representa nada de bom e
pode-se tornar um empecilho para todos.

110
A minha pequena vida

2003-08-01

Afinal os portugueses sempre concordam com a escutas


ao líder da Oposição mesmo quando estas podem
parecer injustificadas ou uma intromissão na vida interna
de um partido político.

Correspondente a uma certa desconfiança nos polítcos,


e penso que não se trata de uma individualização, e por
outro lado numa crescente preocupação com certo tipo
de criminalidade. Aliás, as penas severas aceites pela
maioria da população para certo tipo de crimes é
indicativa da gravidade com que estes são encarados.

Entre a salvaguarda das liberdades individuais e o


combate à criminalidade parece claro que a maioria dos
inquiridos prefere sacrificar um pouco a primeira em
favos da segunda. Grave no meio disto é a dificuldade
em estabelecer o justo equilibrio e a possibilidade se
criar um clima de euforia persecutória que evolua para
uma inquisitória caça às bruxas.

No entanto, no meio da catástrofe dos incêndios, todas


estas questões parecem secudárias, não obstante o
facto de envolverem princípios básicos da vivência
democrática.

Fico sempre chocada, com vontade de chorar quando


vejo casas e haveres a serem consumidos pelas chamas
perante o horror e desespero dos sues proprietários,
tantos dos quais, de repente, ficam sem nada. Não
consigo imaginar a minha pequena vida longe desta
casinha, do meu “grande amigo”, do “pratochy” e de
tantas coisas ás quais me habituei de tal forma que já

111
A minha pequena vida

não concebo viver sem elas. Claro que acima de tudo


preciso da minha família, se há algo de que não
prescindo é das suas festinhas, dos miminhos e de todo
o carinho que me dão. Acabo sempre por relativizar tudo,
porque a verdadeira tragédia, aquela que eu nunca
poderia suportar e a que de certeza não sobreviveria,
seria a de não estar com eles.

2003-08-02

Há quanto tempo não ouvia falar de uma “vendetta”


política, mas parece que a luta entre o clã Soares e a
família Portas se transformou numa autêntica guerra.

Compreendo que depois fa derrota do herdeiro em


Lisboa e da inglória demissão da matriarca da Cruz
Vermelha, o desejo de uma vingança ou pelo menos de
um ajuste de contas seja grande. Aliás, deste a derrota
do patriarca na eleição do Presidente do Parlamento
Europeu que esta família não conhece o sabor da vitória.

Portanto, ataque-se o maior culpado, o Ministro e


Vereador Portas, talvez o mais vulnerável dos
adversários e aquele que parece suscitar os maiores
ódios de militares e cívis. E em vez de pedir uma
demissão pura e simples pede-se a extirpação de
alguém que já aparece rotulado de tumor mesmo antes
de uma biópsia. Que crueldade, remover cirurgicamente
um pobre membro do Governo, que já deve sofrer tanto
devido ao ódio que gera em tanta gente.

Mas o que é facto é que não me parece possível retirar a


pessoa em questão do Governo sem que tal gere uma

112
A minha pequena vida

crise política e eventuais eleições antecipadas. Fora do


Governo, a natureza conspirativa da dita criatura levará
rapidamente a crises sucessivas, a uma dissolução da
coligação e à queda do Governo.

Político experiente, com anos de sabedoria, o patriarca


da família Soares pede a extirpação e não a demissão
ou o afastamento. Presumo que de forma velada esteja a
sugerir a saída do dito Ministro sem que este sobreviva
politicamente fora do Governo, mesmo que tal possa
significar algo de muito desagradável.

Mas o que é facto é que uma “vendetta” para o ser


realmente tem destas coisas. É sempre muito,
muitissímo desagradável para alguém.
2003-08-03

Há dias em que penso que para além de


responsabilidade política, que é rapidamente esquecida
e muitas vezes mais do que compensada com um cargo
de director geral ou administrador de uma grande
empresa pública, os governantes deviam também
responder criminalmente por decisões que se venham a
revelar catastróficas, com avultadas perdas materias e,
inclusivé, com perda de vidas humanas.

Soube que desde 1996, por decisão do governo de


então, e nem sequer me interessa saber quem a tomou,
que os equipamentos destinados a ser montados nos C-
130 da Força Aérea apodrecem na Base Aére do
Montijo, dado que este tipo de aeronave foi considerada
inadequada para o combate aos incêndios florestais.
Claro que é inadequada só neste País, porque o auxilio
que nos mandaram foi em parte constituido pelos

113
A minha pequena vida

mesmissímos C-130 com equipamentos semelhantes


aos nossos.

Tudo isto cheira a negociata. Porque razão deixou a


Força Aérea de poder prestar o seu contributo, sendo
substituida por aviões particulares e prescindindo do seu
equipamento, agora inutilizado?

Para além do mais já não há tripulações qualificadas,


pelo que reparar ou adquirir novos equipamentos seria
inútil sem proceder aum novo programa de treino, o que
independentemente dos custos envolvidos, é sempre
moroso e apenas estaria concluido dentro de bastante
tempo, muito mais do que o disponível para intervir nesta
autêntica catástrofe nacional.

Quem tomou estas decisões que agora se revelam


desastrosas para o nosso País devia ser
responsabilizado. Não apenas perdendo eleições, mas
respondendo perante a justiça, tal como o fazem outros
profissionais quando das suas más escolhas resultam
perdas irreparáveis. Se isto acontece, por exemplo com
médicos ou engenheiros, porque razão os governantes
escapam sempre impunes?

2003-08-04

É nestas situações difíceis que melhor se aprecia e se


avalia o grau de responsabilidade e a aptidão dos
dirigentes e governantes. Aqueles que cedem facilmente
à tentação da crítica fácil, às exigências de demissão
imediata, e a toda uma série de protestos que apenas
podem perturbar ou dificultar a resolução dos problemas.

114
A minha pequena vida

Outros fazem pior e demonstram uma irresponsabilidade


sem limites, como o lançamento de foguetes no Montijo
e o consequente incêndio florestal. É espantoso que a
Presidente da Câmara, a menos que desconheça a
situação actual e ignore os inúmeros incêndios, possa
achar normal o lançamento de foguetes apenas porque
tinha uma autorização recebida há uma dezena de dias,
antes do início da vaga de calor e de incendios.

Mais ridículo ainda, argumentar que apenas havia um


conhecimento verbal das indicações do Ministro do
Ambiente e que a GNR ainda não recebera uma ordem
escrita. Ou seja, refugia-se em formalidades e atrasos
burocráticos para justificar uma atitute que vai da
insensatez até ao crime.

Claro que com um bom advogado até pode sair ilibada


de um justo processo judicial, num país onde a palavra
pouco conta, a ausência de uma ordem escrita parece
permitir qualquer acto criminoso, mesmo que não passe
de uma imperdoável negligência apenas para não
desiludir a população que esperava pelo espectáculo nas
festas locais.

Ou seja, para não desiludir a população, vulgo os


eleitores, esta demagoga optou por correr o risco
provocar um incendio, cujas consequências nunca
podem ser previstas. E assim andam muitos dos nossos
políticos, seguindo o seu faro eleitoral e esquecendo o
bem das população e os compromissos que assumem
quando são eleitos.

2003-08-05

115
A minha pequena vida

Já estou tão perto de chegar às 100 páginas do meu


diário. Não é só o meu diário, ou a minha pequena
história, é também uma relato de muito do que se
passou nestes últimos meses. Se no aniversário da
minha maezinha adoptiva só tinha quarenta páginas,
quando chegar o Natal dos cristãos vou ter muito mais
para oferecer. Talvez já tenha umas duzentas páginas,
quem sabe até mais, e de certeza que me vou ver
mesmo aflita para imprimir o meu livrinho. Se calhar
espero pelo fim do ano e edito “A minha pequena vida
em 2003”.

Agora que já desabafei sinto-me melhor. Também eu fico


deprimida com tantos incêndios, tanto desleixo, incúria,
irresponsabilidade, enfim, com tudo aquilo que permitiu
que esta situação chegasse aonde chegou.

Só espero que quando tudo acalmar, quando a poeira ou


as cinzas assentarem, se analize calma e friamente o
que se passou. Sobretudo que se tomem as decisões
necessárias para evitar que isto se possa repetir e que
as novas florestas estejam ordenadas, organizadas e
limpas de modo a não serem consumidas pelas chamas
com a mesma facilidade.

E finalmente, quero que se faça justiça. Ainda me lembro


de quando a Igreja excomungava automaticamente os
incendiários. Pode não parecer muito, mas serve como
medida de comparação e de avaliação da gravidade
deste crime, de certeza o mais impune em Portugal. Não
percebo de Teologia, mas para mim um excomungado
vai sempre parar ao Inferno. Basicamente, e se tudo
corresponder à descrição, vai passar pelos mesmos

116
A minha pequena vida

tormentos que as suas acções provocaram aos outros.


Mas, enquanto a justiça divina não chega,é preciso que
sejam os homens a encontrar soluções e um novo
enquadramento jurídico, com penas equivalentes às de
tentativa de homícidio, ou de homícidio caso haja perda
de vidas humanas, sirvam de castigo a estes criminosos.

Mesmo que pareça exagerado, o facto é que quem lança


fogo a uma floresta tem que saber que está a pôr em
risco vidas humanas, a destruir bens e a afectar
inumeras pessoas, conhecidas ou desconhecidas. O
facto de alegar que não tinha intenção de matar é, para
mim, irrelevante, tal como o é quando alguém entra
numa autoestrada em sentido contrário usa este
argumento como desculpa.

Penso que o Código do Processo Penal vai ser revisto


em breve e que seria uma boa ocasião para que os
nossos juristas se lembrem de tantos crimes que ficam
sem castigo, de tantas vítimas que vão sentir sempre
que à sua própria desgraça acresce a revolta da
injustiça, e finalmente da necessidade de proteger este
pobre País que só daqui a algumas décadas vai voltar a
ter uma área florestal comparável a que tinha na semana
passada.

2003-08-06

Mais um dia de intensa luta contra os gatos criminosos


que tentam expulsar-me do meu próprio bairro. Desta
vez foi grave, o bicho era enorme, feio e mau e quase
me matou. Pelo menos feriu-me ese não fosse a minha
família ter aparecido nem sei o que seria de mim. O meu

117
A minha pequena vida

coraçãozinho saltava-me furiosamente dentro do peito e


quase pensei que desta não escapava.

E a Polícia não apareceu, fui agredida, perseguida e


mesmo com uma esquadra no bairro não me vieram
ajudar. Eu sou pequenina mas tenho direitos, quero que
me protejam como a qualquer cidadão, e com apenas
seis aninhos preciso mesmo de ajuda.

Vou acreditar que andem todos à procura de incendiários


e não me tenham acudido por causa disso. Até porque
nestes últimos dias têm prendido imensa gente acusada
de lançar fogo às florestas.

Só espero que esta ânsia de prender não se converta


numa caça às bruxas, onde as denúncias por razões
pessoais, de falta de popularidade, de vingança, por
inveja, ou outras razões não comecem a atirar com
inocentes para a cadeia.

O que é facto é que de repente o sucesso da Polícia na


difícil caça a estes criminosos aumentou de tal forma que
levante alguns receios. Talvez o “incentivo ao exercício
da cidadania” preconizado por um Governador Cívil
tenha servido de estímulo numa altura em que o
desemprego a a queda do poder de compra pode levar
alguns indivíduos menos escrupulosos a vender a
própria família em troca de 2.500 euros de recompensas.

Ainda vou lembrar à Ministra das Finanças para não se


esquecer de taxar a recompensa. São 2.500 euros
menos os impostos, porque o Estado não está em
condições de desperdiçar nada e sobretudo porque não
se trata de um prémio e o porque o exercício da

118
A minha pequena vida

cidadania também pressupõe o pagamento responsável


dos impostos. Enfim, desta forma sempre se recupera
parte dos 2.500 euros, o que só é justo porque estamos
a falar de cidadãos cumpridores e que de forma alguma
desejam defraudar o Estado.

2003-08-07

Continuo preocupada com os incêndios. Esta tragédia


parece não ter fim e quando estão dominados numa
zona logo aparecem noutra. Na verdade o que controla
os incêndios é o facto de já não haver nada para arder
porque os bombeiros apenas conseguem, quando tal é
possível, evitar que o fogo consuma as casas.

Claro que no meio disto há sempre gente pouco


escrupulosa a tentar ganhar dinheiro com a desgraça
alheia, aproveitando o desespero de quem já perdeu
quase tudo para obter um lucro fácil.

Devia haver uma lei que proibisse a venda de produtos


abaixo do valor de mercado e permitisse a resolução de
contratos feitos em circunctâncias tão difíceis e
controversas quanto estas. Tal como acontece noutros
sectores de actividade, um prazo para reflexão devia ser
obrigatoriamente contemplado quando possa existir uma
situação de imponderabilidade pela necessidade
imperiosa de obter algum sustento e pelo despero que
impede uma atitude mais reflectida.

E quanto a quem propuser este tipo de negócio também


devia haver algum tipo de sanção. Se o fogo pode
aproveitar a alguém é lógico que venham aparecer

119
A minha pequena vida

outros incêndios. Caso não dê lucro, muitos poderão ser


evitados.

Seja como for, isto só resulta se houver mão pesada e


severidade para com aqueles que tentarem tirar partido
da desgraça alheia. Espero que o novo Código do
Processo Penal também contemple esta espécie de
criminosos e os agracie com uma longa permanência
num estabelecimento apropriado onde poderão
empregar o seu tempo a limpar florestas e plantar novas
árvores.

2003-08-08

Agora que os incêndios começam a acalmar o País volta


às discussões habituais deste Verão, as quais
basicamente centram-se à volta do caso da pedofilia na
Casa Pia.

Desta vez foi a divulgação de documentos internos,


considerados confidenciais, pela comunicação social que
veio abalar este longo e penoso processo.

Para além da necessidade de descobrir quem obteve


ilegalmente a informação e puní-lo, um culpado já é
visivel e esse é o orgão que divulgou informações que só
podiam ter sido obtidas de forma ilícita.

Pessoalmente começava por prender o director ou o


responsável pelo orgão que divulgou a notícia. Não
tenho dúvidas quanto à responsabilidade deste e era por
aí que começava. Certamente que este iria revelar a sua
fonte, porque isto do segredo profissional dos jornalistas

120
A minha pequena vida

e o não quererem revelar as fontes tem que ter limites. E


por em causa uma investigação e os direitos das vítimas
é algo que na minha opinião está muito para além do
aceitável.

Enfim, é mais um problema que a nova legislação tem


que resolver rapidamente. O comum cidadão que revele
dados de uma investigação ou a comprometa é
rapidamente acusado enquanto um jornalista se arroga
de previlégios como se de um deputado não eleito se
tratasse. Afinal. o chamado poder da imprensa, que
devia ser inerente a um estado democrático, é a forma
mais anti-democrática de poder que ainda vamos
tolerando. Por quanto tempo?

2003-08-09

Este é um estranho país onde a irresponsabilidade e o


incumprimento não é tratado de forma adequada,
premiando os faltosos e ignorando quem é prejudicado.

Estavamos para ir de férias a semana passada, assim


que umas obras que consistem na instalação de umas
grades ficassem concluidas. No orçamento estava
estipulado um prazo de quinze dias, que já foi
ultrapassado, e fizemos o planeamento com base nisso.

Embora eu não queira ir para a longinqua vilória de S.


João do Estoril, onde só estive por um bocadinho
quando era muito pequenina e me senti assustada e
confusa, sei que a minha família tem isso planeado.
Ainda por cima para ir para a praia, que basicamente é
areia e água, ou seja, duas coisas de que eu não gosto.

121
A minha pequena vida

A areia suja-me e obriga-me a passar horas a limpar-me


e da água nem quero falar. Também não percebo a
história das grades, porque deixam entrar os gatos, mas
parece-me que se destina, a outro fim. Não interessa, o
que é facto é que estava tudo combinado e estamos à
espera que cumpram o prometido.
Pelo menos prometeram-me que no Estoril também vou
ter o meu computador. Aparentemente vão levá-lo e até
devo ter um acessozito à Internet. Mais lento do que
aqui, mas pelo menos não vou ficar afastada do mundo e
sempre posso continuar a pôr por escrito as minhas
ideias.

Só espero é que não me obriguem a ir à praia, porque se


tiver um sítio tranquilo e sem gatos ou outros bichos,
onde possa descansar sossegadamente, talvez até que
umas feriazitas me façam bem.

2003-08-10

A minha família quer-me levar a um psicólogo! Foi o


resultado da minha quarta luta com outros gatos em
cinco dias. Ainda por cima fui arranhada duas vezes e
tive que ser salva três. Que humilhação! E ainda por
cima não me apoiam nesta campanha desigual por um
bairro livre de gatos.

O que é facto é que já me estou a ver diante do Dr.


Daniel Sampaio, que de certo modo é meu tio por
afinidade, a responder a uma série de perguntas
estranhas sobre a minha infância. Ao menos posso estar
deitada num divã e estou mesmo a ver o que vai
acontecer a seguir. De certeza que adormeço, o que só

122
A minha pequena vida

demonstra a minha paz de espírito e a nobreza das


minhas intenções.

Mas até lá parece-me que me vai ser aplicada uma


medida de coação, que deve constar numa prisão
domiciliária, já que não tenho dinheiro para pagar uma
caução e não existem propriamente prisões que me
aceitem. E os gatos vão poder passar pela minha rua
impunemente, sem que eu possa fazer algo para os
impedir. Isso é que vai ser uma verdadeira tortura!

Sinto-me como muitos acusados, não compreendo


aquilo de que me acusam, não me permitem uma defesa
e nem sequer tenho um advogado que defenda os meus
direitos. Tal como tantos presos preventivos, só me resta
aguardar que decidam o meu futuro num qualquer
julgamento sem data marcada, com poucas hipóteses de
recurso e sem esperança em qualquer forma de justiça.

Mas a partir de agora tenho que me preocupar menos


comigo e mais com este País que às vezes até parece
que me esquece depois de tudo o que já fiz por ele.

2003-08-11

Enfim, em vez de prisão preventiva há recolher


obrigatório. Do mal o menos, ainda posso sair durante o
dia mas quando chega a noite fico retida em casa.
Espero que não dure muito porque eu gosto mesmo é de
sair à noite, pela fresquinha, com pouca luz e longe da
torreira do Sol de Agosto.

123
A minha pequena vida

Mas como já me sinto mais aliviada e mais livre, posso


voltar a pensar no que é realmente importante.

Já soube que o Governo vai estar presente no


Parlamento na próxima quinta-feira para debater a
situação resultante dos incêndios. Espero que por essa
altura a situação esteja perfeitamente controlada, caso
contrário este debate será apenas uma forma de
distração em relação aos verdadeiros problemas. E por
outro lado parece-me prematuro, ainda existe muita
emoção, os dados ainda não estão apurados e
dificilmente todos os incêndios estarão extintos.

Desta forma, o Governo pode-se sempre refugiar na


transitoriedade da situação e na necessidade de
continuar o trabalho, deixando à Oposição o ónus de ter
vindo perturbar as operações apenas para obter algum
tipo de dividendos políticos.

Também dificilmente chegarão a um acordo em relação


aos números, o Governo terá contabilizado menos área
ardida alegando razões operacionais, a Oposição
apresentará valores superiores obtidos através da NASA
ou de outros organismos internacionais, dos quais a
Maioria irá discordar por não terem sido obtidos no
terreno.

Finalmente vai-se chegar à questão do desinvestimento


e da falta de prevenção, onde na verdade todos são
culpados, desde os que desactivaram os C-130 até aos
que fizeram alterações organizativas em Abril, no início
da época dos fogos, quando para o melhor ou pior seria
vantajoso deixar em funcionamento a estructura anterior

124
A minha pequena vida

até ao Outono, quando uma alteração produzisse o


mínimo de impacto.

Basicamente, e concluindo, prevejo um debate estéril e


só espero que não seja nomeada uma comissão
parlamentar de inquérito, onde como de costume a
maioria ganha sempre, descredibilizando qualquer tipo
de análise objectiva e ridicularizando o trabalho sério e
honesto de alguns deputados.

Só espero que nomeiem uma comissão independente,


esqueçam o famoso livro branco do Ministério da
Administração Interna, e deixem aos especialistas a
tarefa de avaliar quais as razões pelas quais esta
tragédia foi permitida.

2003-08-12

No domingo passado pude apreciar a influência do Prof.


Marcelo Rebelo de Sousa na governação do País. Após
um comentário à acção do Ministério da Administração
Interna, recebeu um vultuoso dossier enviado pelo titular
da pasta para justificar as suas acções recentes no
combate e prevenção de incêndios florestais.

Qualquer outro cidadão que fizesse uma crítica seria


quase certamente ignorado, a menos que esta fosse
considerada ofensiva ou difamatória e nesse caso seria
processado. Mas tratando-se do mais influente
comentador político em Portugal, aquele cujas
intervenções são esperadas pelos governantes de
demais políticos num misto de ansiedade e de pavor, o
próprio ministro imediatamente envia uma justificação,

125
A minha pequena vida

como se fosse diante do Professor e não perante o povo


português que se devesse explicar.

Confesso que nem queria acreditar no que via. Acho que


nunca vira um ministro a justificar-se de tal forma apenas
pelo receio de uma nota baixa, que chegará
inevitavelmente num futuro mais ou menos longinquo.

Imaginei-me logo a fazer os meus próprios comentários


e a receber dossiers cheios de pedidos de desculpas,
que ocuparam tempo de funcionários que melhor
empregariam o seu tempo em algo útil como o
planeamento e a prevenção de incêndios. Mas não.
Primeiro justificaram-se diante do Professor e depois
logo se pensa naquele probre e massacrado povo
português.

Mas o que eu sei é que quando for grande quero ser


comentadora e dar notas a estes políticos todos. E
cuidado comigo, que depois do que se passou nas
últimas semanas não há dossiers que lhes valham nem
desculpas que os ilibem. Estes já estão definitivamente
reprovados e para além de qualquer recurso.

2003-08-13

Cada dia espero ansiosamente que aconteça algo se


agradável, de ver notícias que não sejam só desgraças e
crimes à mistura, e sempre que olho para a televisão ou
para o meu pequeno computador apenas encontro
razões para me sentir triste.

126
A minha pequena vida

Eu sei que vivo como que numa redoma, onde nada de


mal realmente acontece com excepção da luta contra os
gatos. Mas mesmo isso é secundário, uma esfoladela
um dia, uma arranhadela noutra, mas sempre tudo
passageiro. Quando estive doente e tive que ser operada
tive todos os cuidados médicos de que necessitei, todos
os medicamentos, festinhas, boa alimentação, enfim
tudo o que podia precisar. Na verdade, não posso dizer
que a minha vida seja díficil, estou sempre protegida
pela minha família e nunca me falta nada de essencial.
Aliás, neste pequeno bairro tudo está sempre calmo e
tranquilo.

Realmente, é uma diferença enorme quando falamos do


mundo lá fora, aquele em que acontecem todas as
tragédias que eu comento dia após dia e vou escrevendo
no meu pequeno diário que hoje atinje as 100 páginas. É
uma data histórica, quando comecei a minha primeira
página nunca imaginei que chegasse tão longe. Agora já
me sinto uma escritora. Ainda não sou reconhecida mas
de certeza que a minha hora de glória vai chegar em
breve.

Finda esta introdução comemorativa, vou voltar aquilo de


que realmente gosto; comentar o mundo tal como os
meus pequenos olhinhos o vêm.

2003-08-14

Dia de apagão nos Estados Unidos! Nada de que nos


possamos admirar dado que com a vaga de calor era de
esperar uma sobrecarga, mas por outro lado vem

127
A minha pequena vida

demonstrar as fragilidades na nação mais poderosa do


mundo.

Se em Portugal um corte de corrente em larga escala e


por um par de horas pode fazer tremer um governo e cair
a administração da empresa fornecedora de energia, em
vários estados americanos é uma situação tão rotineira
que aparece como uma inevitabilidade do uso de
corrente eléctrica.

Daí, que a normalidade seja um conceito estatístico. Se


na grande maioria dos dias houver cortes de corrente,
então o normal é que tal aconteça diariamente. As
empresas e os particulares começam a adaptar a sua
vida em função destas falhas, as empresas fornecedoras
já não se sentem pressionadas pelos seus clientes
devido aos maus serviços que prestam, e o próprio
governo, na sua ânsia liberal de deixar funcionar o
mercado, escolhe ficar à margem de uma situação
particularmente lesiva para a economia.

De certa forma é o liberalismo levado até ao extremo do


abscentismo e da total falta de regulação de um sector,
como se tal fosse socialmente justo e economicamente
benéfico.

Deve ser o grande Satã americano que está por detrás


disto. Nem para eles próprios são bons e quando têm um
Presidente que já foi capaz de levar à falência as suas
próprias empresas, ninguém se pode admirar se, com
algum esforço pessoal e a cumplicidade de alguns fieis
servidores, conseguir fazer o mesmo ao país.

128
A minha pequena vida

A sorte da criatura é mesmo o facto de esta ser uma


situação tão habitual que já ninguém responsabiliza seja
quem for quanto tal acontece. Até parece que é uma
espécie de intervenção divina, provavelmente um castigo
de Alá, que deixa sem energia eléctrica tantos milhões
de lares americanos. Afinal ainda há alguma justiça
neste Mundo.

2003-08-15

Espantoso país em que o mais célebre ex-presidente do


Benfica pode sair em liberdade condicional praticamente
ainda como preso preventivo. Desta forma, de recurso
em recurso, é possível a um criminoso abastado passar
a quase totalidade ou mesmo todo o período de reclusão
como preso preventivo, gozando de um estatuto de
previlégio relativamente aos presos efectivamente
condenados.

Claro que isto só é possível como os bons advogados


que muito dinheiro, neste caso aparentemente obtido
ilegalmente pode proporcionar. É quase inevitável dizer
que neste caso o crime compensa, porque das falcatruas
sempre sobrou o suficuente para garantir um tranquilo
cumprimento da pena em regime de excepção. Claro
que se fosse eu a decidir a partir do momento em que
fosse condenado em primeira instância acabavam-se os
privilegios e ia partilhar uma cela com outros
condenados com trânsito em julgado.

Por outro lado isto vem-nos dar cabo das estatísticas. Se


a pessoa em causa cumpre a pena sempre como
preventivo, sendo libertado condicionalmente antes de

129
A minha pequena vida

uma decisão definitiva, só vem aumentar a percentagem


de presos preventivos em Portugal, mesmo que já tenha
sido julgado e condenado em primeira instância.

Para efeitos estatísticos só devia contar como preso


preventivo aquele que ainda não foi sentenciado, sendo
que aquele que espera um dos inúmeros recursos
possíveis deve contar como um preso já condenado.
Caso alterassem a forma como estas estatísticas são
feitas, tal iria melhorar em muito a forma como os dados
são apresentados, diminuindo significativamente o
número de presos preventivos e compondo um pouco a
imagem da justiça portuguesa.

Também podia discorrer sobre o número de recursos


permitidos pela legislação actual, mas como estive a
mencionar um caso concreto vou deixar isso para outra
altura. Não quero que o João Vale e Azevedo me venha
dizer que se trata de algo pessoal aliado ao facto de eu
ão ser benfiquista.

2003-08-15

Desta vez foi demais! Aquele maldito gato feriu-me a


sério na cara, até me arranhou ao pé de um dos meus
olhinhos e cortou-me a minha coleirinha em veludo
vermelho em dois sítios. Nem sei como é que sobrevivi
para continuar a minha história!

Nestas alturas até tenho dúvidas de fé. Mas porque


razão Alá criou os gatos? Que propósito têm estas
malvadas criaturas? Na Idade Média é que sabiam como

130
A minha pequena vida

lidar com estes bichos demoniacos que tentam acabar


com a minha existência!

Realmente esta semana foi demais. Pior do que os


bombeiros com os fogos sou eu com os gatos. Em sete
dias foram cinco zaragatas e fui ferida três vezes, a
última das quais foi a mais grave. Não há Polícia, nem
Tribunais, nem sequer a misericórdia de Alá para me
proteger deste flagelo.

Mas enfim, o importante é que finalmente os incêndios


parecem controlados, talvez por uma maior eficácia no
combate ao fogo, talvez por causa da evolução
climatérica ou apenas por já pouco haver por queimar.
Ainda não é a altura de descobrir os responsáveis
políticos por esta tragédia. Primeiro vamos pensar em
ajudar quem precisa e depois, com calma e a
objectividade que só o distânciamento permite, vamos
ver quem não tomou as medidas que se impunham.

Nestas alturas penso sempre na situação das empresas


que dispensam os seus funcionários que para além de
simples trabalhadores são também bombeiros
voluntários. Algumas destas empresas permitem uma
maior disponibilidade do que outras ou dão maiores
facilidades, mas o que é facto é que todas prescindem
de parte da sua força produtiva para contribuir para o
bem geral. E que compensação têm elas? Não me
parece que o Estado suporte os custos, nem sequer que
estes sejam dedutíveis nos impostos, o que se traduz
por uma penalização efectiva da generosidade de quem
aceita perder lucros para ajudar o seu país quando este
mais necessita.

131
A minha pequena vida

Eu sei que a situação económica é difícil e não permite


disponibilizar grandes verbas para compensar as
empresas que dispensam do trabalho aqueles que são
bombeiros, mas não posso aceitar que estas sejam
penalizadas em termos competitivos em relação às que
optam por não dispensar pessoal.

Já que não deve ser possível fazer mais, pelo menos em


termos de impostos e de algum tipo de facilidades ou
benificios em concursos públicos devia haver não só
uma compensação como um reconhecimento público
pela sua contribuição para o bem comum. E não venham
dizer que tal não é possível, porque se um dia deixa de
haver bombeiros voluntários este País arde de uma
ponta à outra sem que ninguém seja capaz de o impedir.
Nem mesmo a miseriórdia de Alá!

2003-08-16

Para os que gostam é um dia grande, aquele em que o


futebol volta a mobilizar a habitual multidão de adeptos
mais ou menos desiludidos. Pelo menos nesta altura
ainda todos têm esperança numa boa classificação, na
participação em provas internacionais ou pelo menos em
não descer de divisão.

Ainda vamos longe da época em que todos os adeptos


se tornam em matemáticos exímios, capazes de
demonstrar através de teorias fantásticas aquilo que a
realidade teima em desmentir. E dizem que os
portugueses não são bons a matemática! Pelo menos os
muitos milhões de adeptos são indiscutivelmente
especialistas em probabilidades e estatísticas, tal como

132
A minha pequena vida

todos aqueles jornalistas que nos bombardeiam com


cálculos e informações mais ou menos inúteis.

Claro que o futebol português tem particularidades e


regras próprias e uma delas é a de que tem que haver
sempre qualquer tipo de controvérsia ou agitação que
neste caso é sinónimo de normalidade.

Desta vez foi um clube que viu a sua participação


suspensa devido a um protesto de outra equipa. Enfim,
nada de estranho se não considerarmos que só após o
início do campeonato é que vai haver uma decisão. Mas
como isto está de acordo com a típica urgencia dos
processos em Portugal, apenas nos podemos
congratular por a decisão ser tomada e efectiva em
menos de três ou quatro anos. Nada mau, se
considerarmos o que acontece fora do âmbito do futebol.

Agora, para além das telenovelas, surge o segundo


programa favorito, aquele que antevê, visiona e analisa
os vários campeonatos, recorrendo a númerosos
especialistas na matéria, autênticos doutores da bola,
formados em redondinhas e fintas, capazes de ver algo
de interessante em jogos onde impera a sonolência
geral. Reconheço os seus méritos porque discursar tanto
acerca de coisa nenhuma exige um grau de
especialização díficil de atingir e apenas reservado aos
mais brilhantes cérebros nacionais.

É realmente uma pena que não se apliquem em áreas


onde as suas capacidades intelectuais fossem mais
úteis. Quem tem soluções para tudo podia, por exemplo,
elaborar o novo plano de combate a incêndios florestais
de que o País tanto necessita.

133
A minha pequena vida

2003-08-18

Vi num estudo que os políticos e governantes


portugueses afinal não são tão mal pagos como se
pensava. Comparando com o Primeiro Ministro de
Espanha, o nosso ganha mais sem ajudas de custos do
que aquele pobre Aznar com todas as mordomias
incluidas. Pobre José Maria que depois de tantos anos e
de uma longa série de vitórias eleitorais não vai ter
dinheiro para uma reforma descansada.

Sempre achei que para termos bons políticos e bons


governantes temos que lhes pagar de acordo com aquilo
que realmente valem. Não faz sentido que um bom
gestor, por exemplo, seja penalizado por decidir ser
governante em vez de continuar no sector privado.

Mas também não admito que um mau ministro saia do


Governo para ganhar uma fortuna como administrador
de uma empresa pública mais ou menos deficitária.
O problema é que todos os ministros ou políticos tendem
a ganhar o mesmo, independentemente das suas
capacidade, quando tal não acontece noutras áreas.
Proponho que quando alguém vá para a política tenha
um ordenado mínimo, que lhe permita viver com
dignidade, mas nunca inferior ao que ganhava noutro
sector de actividade.

Imaginemos que o se convida para um cargo público


alguém que trabalha numa empresa em que é
subvalorizado. O seu vencimento seria aquele
considerado como base para as suas novas funções.

134
A minha pequena vida

Mas se quisessem contratar alguém altamente


qualificado, deveria receber aquilo que lhe era pago
antes de aceitar um novo posto na administração pública
ou no Governo.

O importante é que por um lado o Estado possa


contratar quem melhor lhe convier sem com isso
penalizar ninguém, e por outro permitir uma opção livre
sem constrangimentos financeiros por parte de quem é
convidado a assumir um cargo público.

Não é bem a questão de “a trabalho igual, salário igual”,


porque muitas vezes falamos de capacidades
completamente diferentes. Aliás basta olhar para o
Governo e vemos que certos ministros têm um
desempenho francamente melhor do que outros. Porque
razão hão de receber o mesmo se o resultado do seu
trabalho é completamente dispar?

Não quero ser injusta com ninguém, mas deve haver


reconhecimento e incentivos que estimulem e premeiem
quem optar pela carreira no Estado e cumpra
eficazmente as suas funções e que diferenciem estes
daqueles que, independentemente do seu esforço, não
são talhados para esta missão.

Espero que quando for ministra estes critérios já estejam


em vigor para poder receber montes de latas e ter uma
reforma tranquila numa linda casinha com um jardim com
muita erva fresquinha.

2003-08-18

135
A minha pequena vida

Recebi um par de coleiras novas em substituição


daquela que se partiu durante o último incidente com um
daqueles gatos horríveis que andam pelas vizinhanças.
Na verdade, quando se trata de um incidente grave, é
sempre o mesmo patife que está envolvido e o pior é que
é um autêntico monstro que deve pesar mais do que o
dobro de mim. Se não fosse pelas arranhadelas até
podia dizer que tinha ficado a ganhar.

Isto vem-me lembrar que é preciso ser previdente e


contar com despesas inesperadas, no meu caso foi o
equivalente a umas nove latas, mas parece que o nosso
Governo tem um buraco equivalente a muitos milhões, a
muito mais do que eu poderia comer durante toda a
minha pequena vida.

Ora para compensar a falta de latas o Governo pretende


vender património, ou seja prescindir de propriedades
não para investir mas para despesas correntes sem
nenhum retorno. E não se trata de despesas de primeira
necessidade, objectivo é manter o défice dentro dos
valores acordados com a União Europeia.

Sempre fui contra a venda de património quando este


não se destina a favorecer novos investimentos. Pode
parecer uma solução aceitável, mas a verdade é que no
fim ficamos mais pobres e sempre temos menos bens
que sirvam de garantias futuras.

Mesmo quando se trata de algo aparentemente inútil,


como algumas daquelas pequenas parcelas de terra
improdutivas que a minha família tem lá muito longe, sou
sempre contra a possibilidade de venda. Até porque terra
é aquilo que não se pode produzir, o planeta não

136
A minha pequena vida

aumenta de superfície e vai chegar um dia em que com


o excesso de população quem não tiver comprado com
antecedência não vai ter onde viver.

Penso sempre que se o Estado precisa de dinheiro deve


em vez de vender alugar por alguns anos edifícios de
que não precise ou fazre associações com empresas
especializadas em gestão do património. Durante este
período de crise, aluga-se, emagrece-se, mas não se
prescinde de algo que pode vir a ser importante no
futuro. Hoje, em período de necessidade, vendem por
pouco o que amanhã, quando houver alguma
abundância, vão comprar por muito mais. E assim
andam as finanças públicas neste pobre País.

2003-08-19

Hoje foi um dia horrivel! Senti o atentado contra o edifício


das Nações Unidas no Iraque como algo de pessoal,
sobretudo devido à morte do antigo enviado a Timor. No
mesmo dia um atentado em Israel foi mais mortífero,
morreram crianças, mas não o senti da mesma forma.
Leva-me a pensar se já me estou a habituar a esta
violência e me tornei de certa forma insensível ao
sofrimento dos outros. Provavelmente o facto de ver
semanalmente diversos atentados em várias partes do
Mundo, numa espécie de repetição ou ritual trágico, leva
a um certo alheamento, como se de uma inevitabilidade
ou de um processo cíclico se tratasse.

Mas quando no meio das vítimas se encontra alguém


conhecido, mesmo que não pessoalmente, surgem
muitos outros sentimentos, e nesta situação passa a

137
A minha pequena vida

haver uma noção de perda pessoal. Se calhar com a


insensibilidade também vem o egoísmo, só reconheço a
perda quando esta está directamente relacionada com o
meu pequeno mundo e as minhas memórias, que na
verdade só abrangem uma meia dúzia de anos.

O facto é que fiquei triste e deprimida com a notícia.


Também fiquei revoltada, com os autores ou
responsáveis pelo atentado, obviamente, mas também
pela facilidade com que este foi realizado. A falta de
segurança num alvo provável era mais do que evidente e
depois do atentado contra a embaixada da Jordânia
tornava-se fácil de prever que outros alvos significativos
e relativamente indefesos se iriam seguir. O próprio
Presidente do Conselho de Representantes do povo
Iraquiano disse que tinha informado as forças de
ocupação da possibilidade, ou mais concretamente, da
probabilidade de um ataque com um camião suicída
contra as instalações das Nações Unidas. Curiosamente
nada foi feito, como se um atentado fosse benéfico para
justificar novamente a luta contra o terrorismo. Às vezes
um atentado como estes pode ser sobretudo do
interesse de quem pretende justificar a continuação de
uma ocupação, a necessidade de uma nova guerra ou
simplesmente ilibar-se de erros passados.

Infelizmente é o sangue dos inocentes que serve como


desculpa para prosseguir esta louca aventura, recheada
de mentiras e protagonizada por autistas e
incompetentes, cuja debilidade mental me abstenho de
comentar em respeito aos princípios islâmicos de
caridade e tolerancia para com os que foram menos
favorecidos por Alá.

138
A minha pequena vida

2003-08-20

Ainda estou a pensar no atentado de ontem e, partidária


da justiça islâmica como sou, só me ocorre um castigo
para aqueles que Alá já deserdou. E para garantir os
efeitos desejados, para que fiquem sempre longe do
Paraíso e sejam objecto de repúdio, enterrava-os
embrulhados em pele de porco como garantia de que
serão tratados com repulsa para todo o sempre.
Felizmente nós, muçulmanos, sabemos como resolver
estes problemas.

Claro que também não me deixou indiferente o facto de


mais de quinhentos médicos terem sido acusados de
corrupção. Eu às vezes tenho que ir ao médico, por
muito que me custe, e choca-me profundamente a
possibilidade de alguns dos comprimidos que me enfiam
pela goela apenas servirem para enriquecer algum
corrupto passivo.

Sempre pensei como seria ser um corrupto passivo, mas


imagino alguém a quem se pode por dinheiro dentro do
bolso sem que colabore ou ofereça resistência. Desta
forma não se pode dizer que colaborou e até pode
desmentir que se apercebeu de que algo de estranho se
estava a passar. Não digo de fora do normal porque
aparentemente isto acontecia periodicamente com estes
agora arguidos e como já mencionei anteriormente, de
tanto se repetir passou a ser normal. É o que diz a
ciência estatística que eu tão bem domino!

Mas se acusá-los é fácil, condená-los vai ser muito mais


difícil, porque isto de provar um crime de corrupção não

139
A minha pequena vida

é fácil Que o digam os árbitros de futebol, que passam


férias nos locais mais exóticos mesmo que apenas
recebam o salário mínimo. E os médicos normalmente
têm bons advogados, se foram previdentes puseram de
parte parte do dinheiro das farmaceuticas num pequeno
fundo de apoio jurídico para situação infelizes como esta.
Depois é ir de recurso em recurso, de adiamento em
adiamento até à prescrição final. Nessa altura poderão
lamentar que o processo tenha prescrito sem que o seu
nome seja ilibado, mas o que é facto é que pouco tempo
depois tudo será esquecido e poderão voltar a estar de
olhos bem fechados e algibeira bem aberta, como
pedintes de luxo diante de uma qualquer multinacional
farmacêutica.

E no fim, gasto o dinheiro dos contribuintes para nada,


apenas me resta voltar a sonhar com um qualquer
Ayatolah que julgue e execute a sentença ns mesma
sessão e sem recursos que não sejam para o próprio
Alá, que na sua infinita misericórdia obviamente acolherá
no Paraíso aqueles que foram vítimas de um irreparável
erro judicial.

2003-08-21

Nestes últimos dias a Internet tem andado mesmo lenta,


o que prejudica imenso o meu trabalho. Como não gosto
de televisão e não consigo comprar jornais porque são
tão pesados que não me é possível trazê-los para casa,
só me resta mesmo a Internet para me manter em
contacto com o mundo.

140
A minha pequena vida

Dizem que toda esta lentidão é por causa de uns vírus


ou vermes que andam por aí e infectam os
computadores e geram tráfego na rede de
comunicações. Nunca acreditei muito nesta história das
infecções e dos virus porque sei muito bem que quando
preciso me dão um antibiótico e no dia fico boa. Claro
que o meu organismo é muito mais perfeito e tem uma
capacidade de recuperação muito superior à das
pessoas minha família que podem ficar dias deitadas e
com dores.

Mas o que é facto é que, qualquer que seja a desculpa,


isto tem andado muito entupido e como esta Internet é
paga tenho direito a um mínimo de qualidade. Se não
chega para todos acabem com os borlistas que navegam
de graça no meio de mensagens publicitárias e de
programas piratas.

Seja como for isto é um estranho país, onde mesmo


pagando não se consegue um bom serviço, portanto
sendo gratuito é pior ainda porque não se pode pedir
responsabilidades a ninguém. É como a empresa a
quem encomendamos as grades para as traseiras da
casa. Disseram que em duas semanas estava tudo
pronto, começaram o trabalho imediatamente, mas
passadas cinco semanas ainda está por terminar e vão
adiando indefinidamente, com respostas evasivas,
promessas que não cumprem e desculpas que já não
enganam ninguém.

Ainda vou escrever uma carta à DECO a contar a


história e a pedir-lhes para atribuir a essa empresa
malvada uma “bola preta”. Assim ninguém mais vai ser
enganado por eles. Até parece que é gerida por uma

141
A minha pequena vida

família de gatos pretos e azarentos. Com eles corre


sempre tudo mal, parece uma estranha coincidência mas
para quem conhece os gatos como eu sabe logo de
quem é a culpa.

2003-08-22

Nestes dias parece que Deus não é brasileiro. Depois da


morte trágica de Sérgio Vieira de Melo, a explosão do
foguete brasileiro na sua plataforma de lançamento
provocou uma vintena de mortos. Com a destruição do
foguete, da plataforma e a perda de um conjunto
significativo de técnicos especializados, todo o programa
espacial sofre um duro golpe que irá atrasar por um
período indefinido uma nova tentativa de lançamento.

Se nos lembrarmos que é o terceiro lançamento falhado,


embora o primeiro que acabe numa tragédia, só posso
concluir que algo não está bem neste programa espacial.
Poderá ser demasiada ambição, falta de tecnologia,
insuficientes investimentos ou qualquer outra razão
desconhecida, mas o facto é que falhas sucessivas em
foguetões desta dimensão, com cerca de trinta metros
de altura, é difícil de entender. A minha primeira ideia é
de que quiseram saltar passos ou patamares e
lançaram-se prematuramente numa aventura arriscada
em busca de um grande sucesso mesmo sabendo que
estavam a arriscar um imenso falhanço.

Lembra-me certos programas ou empreendimentos


megalómanos em que muitos paises se envolvem, sem
uma antevisão dos custos reais e muitas vezes sem
calcular os exactos benefícios em caso de sucesso.

142
A minha pequena vida

Muitas vezes, para além do prestígio internacional, o


retorno económico é bem pequeno e insuficiente para
justificar as custos. Por outro lado, a partir do momento
em que se decide avançar, poucos são os que têm a
coragem de reavaliar o projecto e de saber renunciar se
este se apresenta como francamente desvantajoso ou se
o investimento necessário ao sucesso não pode ser
assegurado.

Como de costume, ninguém quer assumir a


responsabilidade de interromper ou acabar com um
projecto considerado de interesse nacional mesmo
quando desta decisão resultem acidentes, gastos e
finalmente um fracasso inglório, sempre adiado até à
tecnologia estar de tal forma disponível que qualquer
país de terceiro mundo já se pode permitir atingir
objectivos semelhantes.

O que se passou com o projecto espacial brasileiro é de


certa forma um exemplo de novo riquismo e da ansia de
certos paises ou regimes se porem em bicos de pés
requerendo um estatuto de potência tecnológica ao qual
de momento não podem de forma nenhuma alcançar.
2003-08-23

Hoje foi dia de “rentree”. Esta curiosa expressão política


que define o regresso de umas férias que este ano não
existiram para muitos, demasiado ocupados a combater
os incêndios, mas que para o PS já dura há cerca de um
ano e meio.

Deste modo, é um autêntico regresso, mas será que


acabou a travessia do deserto? Aparentemente, e depois
de ouvir o discurso deste azarado Secretário Geral,

143
A minha pequena vida

parece-me que não. A sorte ainda não voltou a sorrir aos


habitantes do largo do Rato.

Aliando um mau timming ao alvo errado, caso se


tratasse de uma operação militar apenas haveria danos
colaterais. E de certa forma foi o que aconteceu, para
gáudio do Primeiro Ministro que juntou o útil ao
agradável.

Não só foi relativamente poupado como viu o actual


Ministro da Defesa tornar-se o alvo preferencial. Se por
um lado é sempre bom quando o inimigo atira sobre o
colega do lado em vez de nos escolher a nós, melhor
ainda se a vítima é um aliado algo incómodo, ou aquilo
que podemos considerar um casamento de conveniência
para dividir as despesas da casa.

Um desgaste anormal do actual lider do PP pode


obviamente provocar uma transição de votos para o
PSD, o qual caso obtenha uma maioria absoluta pode
desembaraçar-se rapidamente desta aliança imposta
pelos resultados eleitorais, dando assim, e de forma
quase inédita, alguma razão ao Dr. Ferro Rodrigues que
considera esta aliança como sendo “contra-natura”.
Admitamos que foi um de entre tantos favores que o líder
do PS prestou ao Primeiro Ministro e que o podem
empurrar, quase sem saber como, em direcção a uma
maioria parlamentar nas próximas eleições.

Afinal, com inimigos destes, quem precisa de ter amigos


como o Dr. Portas?

2003-08-24

144
A minha pequena vida

O assassínio de um padre americano condenado por


pedofilia numa prisão de alta segurança, para além de
suspeita, não deixa de ser um claro aviso a muitos
arguidos deste país.

Em qualquer parte do mundo há crimes que não são


perdoados e para os quais as penas aplicadas pelos
tribunais parecem francamente insuficientes. Se a isto
adicionarmos uma certa vulnerabilidade,o facto de
muitos condenados sentirem que nada têm a perder e,
muitas vezes, uma certa cumplicidade por parte do
próprio sistem prisional, podemos ter em perspectiva
uma forma de justiça popular que quase assume um
cariz institucional.

Não obstante estar numa prisão de alta segurança, com


medidas especiais de proteção, nada nem ninguém
impediu que o padre pedófilo fosse assassinado por
estrangulamento após ter sido amarrado e amordaçado.
O assassino ainda teve tempo para saltar várias vezes
de cima da cama para o peito do padre que jazia no
chão, provocando danos internos tais que este viria a
falecer passadas algumas horas.

Se numa prisão tão sofisticada é possível que tal


aconteça, e isto verificou-se pouco tempo depois da
condenação, numa prisão portuguesa, com um nível de
segurança e isolamento francamente inferior, o que
podemos esperar se algum dos pedófilos actualmente
presos venha a ser condenado?

Realmente, e com as actuais condições prisionais, nem


vale a pena determinar a sentença, basta decidir se são

145
A minha pequena vida

culpados ou não e caso o sejam a própria comunidade


prisional provavelmente aplicará uma justiça rápida e
definitiva, com relativamente poucas despesas para o
estado e que deixará uma sensação de justiça a
numerosas vítimas. Esta é mais uma das consequências
da publicidade gerada à volta deste processo, onde para
muitos a sentença já há muito foi proferida e apenas se
aguarda pelo momento da sua execução.

2003-08-25

Como era de prever o processo cíclico ou rotativo com


que são aliciadas as audiências provocou o retorno ao
processo da pedofília. Os incêndios já deram o que
tinham, pelo menos para já, e um novo-velho caso com
mais drama pode resultar num aumento de audiências.

E como não há grandes evoluções durante as férias


judicias, vão-se buscar situações periféricas, como a
venda da moradia que o Carlos Cruz tinha no Algarve.
Embora alegadamente relacionada com o processo,
dado aparentemente destinar-se a custear despesas
processoias e encargos legais, tem pouca ou nenhuma
relevância para o desenrolar do processo, a menos que,
como alguem maldoso possa dizer, se destine a liquidar
bens que em caso de condenação pudessem ser
penhorados para uma eventual indeminização às
vítimas.

Independentemente das razões, tratou-se da mais


badalada transação imobiliária de que me recordo num
passado recente, com honras de primeira página num

146
A minha pequena vida

diário como se fosse o que de mais relevante aconteceu


hoje em Portugal.

Mais interessante, embora inconsequente, foi o pedido


de libertação do Embaixador Jorge Ritto com base em
subterfúgios legais. Se bem que a lei seja para cumprir,
quer do ponto de vista formal, quer de uma perspectiva
processual, não se pode permitir que a forma subverta o
espírito, e que por razões irrelevantes em termos
materias se possa impedir a Justiça de funcionar.

Cai-me sempre mal quando um advogado,


independentemente da razão que possa ter, tente utilizar
pequenas falhas que possam existir no Código do
Processo Penal para com isso obter uma vantagem que
em termos de Direito dificilmente poderá justificar. Aliás,
considero que tal pode ser contra producente para o
próprio cliente e levar a uma certa animosidade por parte
dos Juizes. Não estou a dizer que se vinguem quando tal
acontece, mas como a Lei é flexivel na aplicação das
penas,sempre podemos esperar que um anito ou dois de
férias a expensas do Estado possam vir a premiar quem
opte por semelhantes estratégias de defesa.

Como eu sou probrezinha e não posso pagar a um


advogado, se alguma vez fosse processada por atacar
um gato mau, teria que esperar que me fosse nomeado
um defensor oficioso, inexperiente e negligente, que me
deixaria condenar sem apelo nem agravo após declarar
ao tribunal apenas pretender que se fizesse justiça. E
claro que eu seria condenada à pena máxima por
maltratar um animal, que felizmente neste país não deve
ser mais do que uma pequena advertência dita em tom
de censura por um qualquer juiz de primeira instância.

147
A minha pequena vida

2003-08-26

Quando li nos jornais e vi na televisão que o Governo


propôs penas de prisão para patrões ou empresários que
provoquem falências fraudulentas ou procedam ao
encerramento selvagem de empresas pensei que
tinhamos voltado aos longínquos tempos do comunismo.
Afinal a luta de classes ainda existe e o ministro Bagão
Félix é obviamente um comunista infiltrado no CDS-PP.
Só falta mesmo vê-lo discursar na festa do Avante.

Para os patrões tratou-se de uma má notícia que muitos


interpretaram como uma autêntica declaração de guerra.
O risco de serem presos e a necessidade de dar
garantias do cumprimento das suas obrigações para com
os trabalhadores deve fazer pensar muita gente antes de
fechar uma empresa sem dizer nada a ninguém.

Mas por outro lado também pode ter consequências


preversas como a decisão de encerrar antes de a lei
entrar em vigor, a possibilidade de só admitir
trabalhadores com contratos a prazo ou em condições
precárias com um vínculo laboral mais do que duvidoso.

Mas mesmo correndo alguns riscos é uma medida que


só peca por tardia e pela benevolência de algumas
penas. Apenas dois anos de prisão para quem feche
ilegalmente uma empresa num total desrespeito pelos
trabalhadores é manifestamente insuficiente. Por uma
lado, com esta pena máxima não há prisão preventiva,
por outro é quase certo de que em caso de condenação
a pena será suspensa e o criminoso poderá continuar a

148
A minha pequena vida

lucrar com as suas falcatruas constituindo uma nova


empresa.

Portanto, para além do agravamento da pena de prisão,


algumas penas acessórias seriam benvindas, como a
impossibilidade de constituir novas empresas, a
proibição de ocupar cargos a nível de direcção ou de
gestão e inclusivé algumas limitações a nível bancário
para evitar que desempenhe clandestinamente
actividades que lhe estão vedadas.

2003-08-27

Aquilo que aconteceu hoje aqui em casa demonstra a


incompetencia e o desleixo com que se trabalha em
muitos sectores. Desde ontem que não há gás e os
técnicos da companhia verificaram que o problema se
deve a uma fuga. Como a zona em que a rotura se
verificou coincide com aquela em que houve obras em
casa é óbvio que deve haver uma ligação entre ambas.

Convencer quem fez as obras de que poderiam ter


provocado uma rotura foi quase impossível, mas
finalmente aperceberam-se da evidência pois bastava
soprar para dentro da canalização para que o ar saisse
pelos buracos dos parafusos. Enfim, era mais do que
evidente que quando furaram a parede também
atravessaram o tubo do gás de uma lado ao outro.

Para além da sorte em não ter havido uma, dado que tal
foi efectuado com um berbequim eléctrico, houve uma
conjugação de factores que impediram uma tragédia,
desde o facto de uma válvula ter cortado o fornecimento

149
A minha pequena vida

de gás até ao piloto do esquentador estar ligado e ter


consumido o gás que se encontrava nos canos.

No entanto, após a sorte inicial, que apenas se deveu a


questões circunstanciais, tudo correu mal. A empresa
responsável contactou um técnico que se predispôs a
efectuar a reparação no dia seguinte mas considerou o
orçamento elevado. Não se importou minimamente que
ficassemos privados de gás durante mais tempo e
suportassemos os custos e inconvenientes para poupar
algum dinheiro na resolução de um problema que era da
sua inteira responsabilidade. Desta forma, decidiram que
iam recorrer a alguém que fizesse um melhor preço
independentemente das consequencias para as vítimas
do seu mau desempenho. Ou seja para poupar uma
insignificancia permitem que outros sejam prejudicados
numa quantia muito maior.

Basicamente é o espelho deste País, onde para se


poupar meia dúzia de euros se prejudicam outros em
largas quantias. Como basicamente os tribunais não
funcionam, a maioria destas situações fica
completamente impune, permitindo que os culpados
continuem a sua actividade que é mais negligente do
que criminosa. No fim, a incompetencia acaba por se
confundir com o azar, a culpa morre solteira e as vítimas
pagam a factura.

2003-08-28

Hoje hove mais um acidente com uma criança a matar


um irmaão mais novo com uma arma de fogo. Quando
tragédias como esta acontecem, imediatamente penso

150
A minha pequena vida

na irresponsabilidade de quem possui uma arma


carregada e facilmente acessível, pronta a ser usada por
quem a encontre.

Infelizmente existe uma enorme tendência, quase


magnética, que atrai crianças e as faz mexer em tudo o
que é perigoso. Apesar de também eu ser dotada de
uma curiosidade proverbial, já aprendi que não posso
mexer em tudo aquilo a que tenho acesso e quais os
riscos que corro ao fazê-lo.

Sabendo que Portugal é um país de caçadores, onde o


número de armas de caça é extremamente elevado, e
que os inúmeros acidentes que acontecem nos mais
diversos ramos de actividade não permite incluir este
povo entre os mais seguros do mundo, espanta-me que
não haja legislação mais severa e rigorosa que evite
estes acidentes. Alguns são obviamente inevitáveis,
derivam da própria natureza ou da essência que
caracteriza os acidentes e que inclui um enorme grau de
imprevisibilidade, mas outros devem-se ao facto de não
haver algumas obrigatoriedades.

Em vários países europeus, onde a propensão para a


ocorrência de acidentes é bem menor, só é permitida a
posse de uma arma de fogo a quem a puder guardar
devidamente dentro de um cofre apropriado e
devidamente certificado. Pode parecer um exagero, mas
talvez prevenisse este tipo de acidentes e dificultasse o
desaparecimento das armas. Se notarmos que inúmeros
crimes são cometidos com armas roubadas, a existência
de cofres dificultaria o roubo e reduziria
significativamente o número de armas ilegais em
circulação. E quem não pudesse ter cofre não tinha arma

151
A minha pequena vida

em casa. Eventualmente os armeiros ou associações de


caçadores poderiam ter cofres colectivos onde as armas
seriam depositadas em troca de uma pequena quantia.
Se tal acontecesse o número de acidentes diminuiria e
armas de caça deixariam de ser usadas como sendo de
autodefesa, com todos os riscos que isso acarreta e que
são fáceis de avaliar pelos resultados trágicos que
resultam dos inúmeros acidentes reportados às
autoridades.

Assim quem pretendesse ter uma arma de defeas teria


que adquirí-la e licenciá-la através dos mecanismos
legais e desixaria de tentar utilizar para o efeito armas
que, pela sua concepção, podem ser mais perigosas do
que úteis para este efeito.

2003-08-29

Confesso que foi com um certo alívio que recebi a notícia


da alteração do testemunho directo para a prestação
através de um sistema vídeo. Como se já não bastasse
tudo o que sofreram no passado, agora as testemunhas
do processo da Casa Pia ainda tinham que estar
prsencialmente diante dos seus agressores.

A decisão pareceu-me sensata e razoável tendo em


conta as circunstâncias excepcionais deste caso, e
apenas peca por tardia, dado que deveria ter sido
assumida imediatamente pelo juiz de instrução. Desta
forma, quase parece uma emboscada em relação aos
arguidos e pode levantar graves dificuldades aos
respectivos advogados, obrigados a alterar alguns

152
A minha pequena vida

planos a apenas três dias do começo desta fase do


processo.

No entanto, a simpatia vai para o lado das vítimas e a


extrema publicidade deste processo só vem levantar
sucessivas situações a lamentar.

O desaparecimento de documentos confidenciais e a sua


publicação num jornal dirigido pela filha de um dos
advogados de defesa apresenta contornos pelo menos
duvidosos, mas que considero tratar-se de um autêntico
crime. Para todos os efeitos está-se a utilizar
informações obtidas por psicólogos, sujeitos a segredo
profissional, e que só em casos excepcionais poderiam
ser revelados, para diminuir a credibilidade de algumas
testemunhas.

Se por um lado tal pode consubstanciar um crime,


particularmente conveniente à defesa, demonstra a
completa falta de princípios de certos envolvidos, que se
traduz num autêntico “vale tudo”. Portanto, se da parte
do Ministério Público ou do próprio juiz de instrução
houver algumas pequenas embuscadas, ninguém se
pode queixar, é o nível a que se desceu neste processo
e, infelizmente, algo que sucede com lamentável
frequência no meio judicial.

Quando de parte a parte se decide utilizar todo e


qualquer meio, independentemente das consequências,
num processo que já traumatizou dezenas de crianças,
não é apenas um grupo de intervenientes que deve ser
posto em causa, é toda uma forma de fazer justiça que
tem que ser repensada.

153
A minha pequena vida

2003-08-30

Finalmente um pouco de moralidade no sistema judicial!


Após apreciar um pedido de “habeas corpus”
manifestamente improcedente, tocando as raias do
rídiculo, onde com recurso a um subterfúgio legal se
pretendia libertar um embaixador conhecido como
pedófilo, o Supremo Tribinal de Justiça multou o
advogado que intentou esta estranha manobra.

Sempre achei que o recurso a truques ou a abertas


legais, mesmo que a coberto de uma falha na
legislação~e portanto admissíveis, não devem ser
utilizados para subverter o espírito da lei e prejudicar a
aplicação da justiça.

Lamentavelmente, alguns advogados continuam


desesperadamente a tentar obter vantagens através de
manobras de diversão. De certa forma é atirar o barro à
parede a ver se pega, mesmo sabendo que 99% das
hipóteses é de cair. Criam ilusões junto dos seus
clientes, os quais por estarem desesperados acreditam
em tais futilidades, e fazem perder tempo aos tribunais
supriores, obrigados a empenhar recursos na resolução
de apelos infundados.

A aplicação desta multa é pois da maior justiça e


contribui para moralizar o sistema, tentando evitar que se
continue na estratégia do “vale tudo”, indpendentemente
das sua consequências para os próprios arguidos, os
quais, em última instância, são os verdadeiros
prejudicados. Não tenho dúvidas que são estes quem
paga a multa e quem é referenciado como o autor moral

154
A minha pequena vida

da artimanha. Não se vão lembrar do nome do advogado


mas do de quem o emprega e que de uma forma ou de
outra vai aparecer como cúmplice.

Pessoalmente, se um meu advogado se comportasse


dessa forma, despedia-o e apresentava queixa na
Ordem, não seria graças a artifícios que quereria ser
absolvida. Mas claro que eu posso dizer isto à vontade
porque ninguém me pode acusar de nada. E mesmo
quando ando à luta com os gatos vadios que infestam o
meu território é por uma questão de legítima defesa e
sempre dentro dos limites impostos pela lei.

2003-08-31

Confesso que detesto automóveis. Bem, não é


inteiramente verdade porque gosto de espreitar por baixo
deles, de entrar no compartimento do motor, de os
cheirar, mas nada de andar de automóvel. Sobretudo
porque tenho que ir dentro do porta-gatos, o que para
além do desconforto é uma humilhação. É como se me
confundissem com um daqueles malditos bichos.

Pior ainda, este é um país de automobilistas suicidas, o


que para além de inconveniente põe em risco a vida dos
outros utentes da estrada. Se querem acabar com as
suas irresponsáveis vidas, por favor façam-no longe,
sem perturbar quem apenas quer circular em paz e
sossego.

Neste mês, as baixas nas estradas portuguesas foram


muito superiores às da guerra no Iraque. Até custa a
acreditar mas é verdade, nós nem precisamos de uma

155
A minha pequena vida

guerra para ter um autêntico campo de batalha. E já


estamos de tal maneira habituados a estas estatísticas
que pouco ligamos aos números, apenas ficamos mais
ou menos chocados com algumas imagens de acidentes
mais aparatosos.

De tal maneira nos habtuamos que as próprias


campanha passam despercebidas, tal como os
conselhos da Prevenção Rodoviária ou da Brigada de
Trânsito. Todos os conselhos são rapidamente
esquecidos, como se de uma amnésia colectiva se
tratasse, ou se um bloqueio generalizado impedisse os
condutores de mudar o seu comportamento. Ou
conduzem mal ou nem conseguem por o motor a
funcionar.

Para além do mais o crime rodoviário ainda é encarado


com uma excessiva benevolência pelos juizes, os quais,
coitados, também são condutores e portanto devem ter
um comportamento rodoviário semelhante aos demais. O
facto de serem juizes não é, só por sí, um factor
diferenciador em termos rodoviários,

Já me ocorreu que a atribuição da carta de condução


devia obedecer a critérios semelhantes aos de uma
licença de uso e porte de arma. Justificar a necessidade,
cadastro limpo, testes psicotécnicos e um período de
aprendizagem com um exame final, bem como a
obrigação de conduzir durante um certo número de
quilómetros por ano para manter a carta e a
possibilidade de revogação ou cassação imediata em
caso de infração grave.

156
A minha pequena vida

Conduzir não é um direito, é um privilégio que é


concedido a quem prova merecê-lo e a maioria dos
criminosos encartados que circulam pelas nossas
estradas obviamente fá-lo de forma abusiva,
independentemente de tal lhes ser legalmente
reconhecido. Eu sou de uma idoneidade universalmente
reconhecida e nunca fizeram um automóvelzinho à
minha medida, nem nunca emitiram uma carta em nome
de Gatochy, portanto quem são eles para poder
conduzir?

2003-09-01

Previa que houvesse algum tipo de incidente na abertura


das inquirições mas não que pedissem a substituição do
juiz. Lembrei-me logo de uma juiza, infelizmente
reformada, que defendia numa entrevista televisiva a
castração dos pedófilos aliada a penas de prisão que
roçavam os anos de vida de Matusalem. Podia ser ela a
substituir o juiz Rui Teixeira, o que abreviaria o processo
e dispensaria da maioria das demoras e inconvenientes
que se preveem.

Admito que o actual juiz possa ter decidido várias vezes


de acordo com o Ministério Público, mas também é
verdade que os arguidos não inspiram particular
simpatia. Trata-se de um crime que normalmente só gera
revolta e o desejo de uma pena não prevista no actual
Código do Processo Penal e que certamente seria
contestada pela Aministia Internacional.

Felizmente estão na sua maioria em prisão preventiva,


portanto quanto mais incidentes processuais mais

157
A minha pequena vida

demora até virem cá para fora caso estejam inocentes. E


por outro lado não me parece que outro juiz decidisse de
outra forma. O problema é que este mudou de ideias e
com isso pareceu estar a ser parcial, mas o que é facto é
que alterou a decisão no sentido de a corrigir. Não me
parece aceitável que as testemunhas fossem obrigadas
a estar na presença física dos seus agressores, muito
menos sendo menores e tendo em conta o tipo de crime
praticado e o ascendente que os perpetadores têm sobre
as suas vítimas.

Assim evitam-se pressões, novos traumas e situações


de tal constrangimento que dificilmente poderiam permitir
um testemunho sério e livre a partir do qual se pudesse
efectivamente apurar a verdade.

Se algo me desgosta profundamente é o aproveitamento


de aberturas legais para atrasar o processo e beneficiar
arguidos que nalguns casos quase dispensavam
julgamento, de tão culpados que são. Se cá vigorasse a
justiça islâmica seria tão fácil resolver este problema!

2003-09-02

Numa altura em que decorre em Lisboa um seminário


sobre a luta anti terrorista, assitimos a um aumento de
segurança das principais testemunhas do processo da
Casa Pia, sobretudo após o adiamento do início das
inquirições. É óbvio que a haver uma acção contra as
testemunhas, esta seria sempre antes de prestarem
declarações, dado que estas são válidas em tribunal e a
partir desse momento o pior que poderia acontecer era o
desaparecimento destas. Se tal acontecesse nunca

158
A minha pequena vida

haveria a hipótese de estes se desmentirem ou


contradizerem, pelo que passariam a gozar de uma certa
segurança.

Na verdade ninguém sabe neste momento quantos


serão os envolvidos, nem os verdadeiros contornos e
alcance deste processo. Sabemos que já fez termer
muita gente, entre os quais muitos que se julgavam
intocáveis, e certamente ainda irá proporcionar imensas
surpresas. Este é um novelo que começando a puxar por
uma ponta dificilmente se irá parar a menos que o
fantasma das prescrições venha impedir a aplicação da
justiça.

De certa forma aparenta ser essa a estratégia da defesa,


procurando utilzar recursos processoais que adiem tanto
quanto possível o julgamento. Se notarmos que muitos
dos crimes já ocorreram há diversos anos, não é difícil
imaginar quais os objectivos. Como se costuma dizer em
linguagem desportiva, tenta-se ganhar na secretaria o
que se perdeu no campo.

Por esta razão sou completamente contra a lei das


prescrições a menos que não haja uma acusação formal.
Caso esta exista, independentemente de ser possível
levar a julgamento ou não os arguidos, estes serão
sempre obrigados a ir a julgamento e cumprir a sentença
a que vierem a ser condenados.

Relativamente aos crimes continuados penso o mesmo.


Caso seja uma prática habitual, o facto de os primeiros
factos estarem hipoteticamente prescritos, não deveria
ser aplicado. Isto permite entender o processo não como
relativo a vários crimes, mas como a um único que se

159
A minha pequena vida

prolonga por mais ou menos tempo e cuja eventual


prescrição como um todo tem como referência a data da
última prática.

Desta forma não são esquecidos crimes praticados há


diversos anos e que vão prescrevendo sucessivamente,
sendo o castigo aplicado apenas relativamente aqueles
que ainda não prescreveram.

Infelizmente a retroactividade das leis neste país só é


possível em termos fiscais, quando o Estado precisa de
cobrar mais impostos, mas espero qu numa próxima
revisão do Código do Processo Penal este princípio seja
aplicado e que crimes antigos quando continuados não
sejam esquecidos na altura de prestar contas perante a
justiça.

2003-09-03

Hoje foi o dia do nosso Ministro da Saúde. Excelente


discurso no Parlamento, indiscutivelmente o melhor dos
últimos meses, pelo menos desde que o meu amigo Al-
Sahaf deixou as lides políticas após ter perdido,
injustamente, o cargo de Ministro da Informação.

Mas hoje, o nosso Ministro da Saúde prestou-lhe uma


genuina e sentida homenagem. Mortos devido ao calor?
Pensavamos nós que eram mil e trezentos, diziam-nos
os estudos e confirmavam-nos os jornais e afinal
estavam todos errados.

Apenas quatro mortos, segundo os cálculos de Sua


Excelencia, que rapidamente dos mil e trezentos baixou

160
A minha pequena vida

para menos de metade, depois excluiu os que morreram


em casa, os que tinham doenças, apelou para a décima
revisão dos critérios da Organização Mundial de Saúde,
sejam eles quais forem, e de corte em corte chegou ao
lamentável número quatro. E digo lamentável porque
continuam a ser vítimas, mas de tão reduzido é um
número que aparece como uma inevitabilidade
estatística, não como uma tragédia nacional.

E é sempre bom admitir humildemente que alguém


morreu. Por um lado escapa-se às verdades absolutas,
porque o negar completamente parece soar a mentira,
por outro tem-se uma pequena margem de manobra
para o caso de haver alguma malfadada investigação
jornalística. Caso apareça um ou outro caso, continuam
dentro dos números oficiais. Finalmente, todos sabemos
que existe sempre uma pequena margem de erro, e
mesmo esses quatro podem ser zero caso ninguém
venha reivindicar nenhum dos falecimentos.

Politicamente correcto, propagandisticamente


excepcional, o nosso Ministro da Saúde poderá
facilmente vir a ter um lugarzinho como porta voz do
Governo ou, quem sabe, aspirar a voos mais altos e ter o
seu próprio site em
www.todosadoramosoministrodasaude.pt.

2003-09-04

Este ano a rentree política variou entre o morno e o


insignificante, com alguns laivos de ridículo que
benevolamente podemos classificar como hunurístico.
Entre o ataque do Secretário Geral do PS ao líder do PP,

161
A minha pequena vida

esquecendo-se de quem devia ser o verdadeiro alvo, ao


adiamento mais ou menos forçado do arranque do PP,
passando pela festa inaugural de auto glorificação do
PSD, houve de tudo um pouco, e de muito pouco nos
recordamos.

Apenas falta a festa do PCP, que, gostemos ou não,


pertence a outro campeonato e que, independentemente
de ser mais ou menos relevante em termos políticos, é
ainda o maior acontecimento cultural que ocorre com
regularidade em Portugal. Apesar de a queda do bloco
de Leste ter originado um menor número de
participações internacionais, é ainda uma referência
única no nosso espectro político.

E como não temos o espectáculo da política, temos o da


justiça, ou da falta dela, quase sempre ligada ao
escândalo da pedófilia. Enquanto se espera pela decisão
da Relação relativamente à continuação ou não do Juiz e
o quase inevitável recurso para o Supremo de uma
decisão que se afigura como previsível, pouco podemos
esperar em termos noticiosos com excepção das
habituais especulações relativas ao aparecimento de
novos arguidos.

Agora até se especula que serão treze, talvez por


referência ao azar da situação, entre os quais alguns
serão acusados de crimes ligados à pedofília, mas
outros estarão indiciados por violação do segredo de
justiça.

Há muito que esperava pelo momento em que estes


últimos fossem acusados. Não se pode encarar de
ânimo leve e com a impunidade habitual a confrangedora

162
A minha pequena vida

situação de ver quase diariamente inúmeras violações


do segredo de justiça, muitas vezes protagonizadas por
magistrados, jornalistas ou advogados, de quem se
espera uma conduta responsável e respeitadora. Afinal,
são estes os principais protagonistas de um crime que
quase sempre fica impune. Felizmente vamos fazer a
vontade ao Bastonário da Ordem dos Advogados e
oferecer-lhe um lugar na primeira fila, onde poderá
aplaudir entusiástica e euforicamente todos aqueles que
forem sendo presos.

Eu não sei bater palmas, mas agradecia o envio de um


bilhetezinho para tão caricato espectáculo. Penso que
desde os autos de fé que não houve tanta alegria na
aplicação da justiça.

2003-09-05

E pronto. Não é preciso ser um génio e muito menos um


vidente para adivinhar a decisão do Tribunal de Relação
relativamente à manutenção do juiz Rui Teixiera.

Embora possa dar origem a todo o tipo de teorias


conspirativas, algo que se aproxima da mais terrível
cabala por parte da magistratura, o que é facto é que o
tribunal considerou que não havia fundamento na
pretenção dos advogados de defesa e praticamente nem
apreciou os argumentos destes. Lembra um pouco a
resposta do próprio juiz de instrução, que apenas referiu
que não havia fundamento. Claro que isto agora vai para
o Supremo, com a alregação de que a decisão foi
demasiado rápida e que o Juiz que devia ter analizado o
requerimento era o que estaria nomeado na próxima

163
A minha pequena vida

semana. No mínimo é caricato, como se achassem que


com outro árbitro podiam ganhar o jogo ou como se um
adiamento pudesse ser útil para a defesa. Normalmente
todos se queixam da lentidão da justiça, e quando tal
não acontece até parece que as regras foram
subvertidas. Lembra-me sempre aqueles miudos que
querem prolongar o jogo até ganharem, de preferencia
com a ajuda de um árbitro da casa.

Com um bocado de sorte estes advogados vão ser


multados por terem apresentado uma reclamação
manifestamente infundada, o que só contribui para o
atraso da justiça e penaliza inclusivé os seus clientes, os
quais, felizmente, já estão presos. Se isto continua
assim, o único a sair ilibado ainda acaba por ser o Bibi,
os restantes caso não sejam condenados pelo crime de
pedofilía sê-lo-ão por obstrução à justiça, falsas
declarações, violação do segredo de justiça ou qualquer
outro crime mais ou menos residual que os mantenha
ocupados e longe de crianças e jovens.

2003-09-06

Apesar da crise, dos incêndios, das mortes durante a


vaga de calor e de todas as recentes desgraças, o
Governo e o PSD alcançaram o PS nas sondagens, algo
que não acontecia há muitos meses.

Se com tudo o que se tem passado é possível ao PSD


ultrapassar o maior partido da oposição, a conclusão é
inevitável: não há oposição em Portugal.

164
A minha pequena vida

É difícil classificar ou quantificar o descrédito em que o


actual PS caiu e tal não se deve apenas à falta de
carisma do líder ou a efeitos laterais do escândalo da
Casa Pia ou da infeliz atitude da antiga presdente da.
Câmara de Felgueiras. Mais do que tudo é uma inépcia e
um torpor generalizado que corroi um partido
desanimado, sem garra, que apenas espera que o dia
seguinte não revele mais nenhuma notícia que obrigue a
qualquer tipo de reacção.

Basicamente, não há oposição credível em Portugal. O


PCP ainda não fez as pazes consigo mesmo após a
saída ou a expulsão dos renovadores, o Bloco de
Esquerda ainda não alcançou o nível de credibilidade
necessário e os restantes partidos são tão insignificantes
que os podemos classificar de inexistentes.

Por outro lado, os portugueses seguem com muito mais


interesse o processo judicial ligado à Casa Pia do que a
situação real do país. Nem é preciso o Governo lançar
uma cortina de fumo para esconder o que corre mal,
ninguém olha nessa direcção e todos ignoram o aumento
do défice, o deslize constante das despesas que
crescem sem controle ou o eventual envio de forças para
o Iraque.

A bem dizer, este é o único Governo que podemos ter


após a desistência mais ou menos forçada da oposição,
vítima mais de sí própria do que das circunstâncias
infelizes que a rodeiam, e do facto de alguns líderes não
se aperceberem de que já estão politicamente mortos.

165
A minha pequena vida

Um dia deste vou contar a história do carrasco chinês,


talvez percebam que pelo facto de ainda estarem de pé
não quer dizer que ainda estejam vivos.

2003-09-07

Ainda há pouco caiu uma passagem aérea pedonal


sobre o IC 19. Porque é que as pontes têm esta
tendência para cair e são tão pesadas?

A primeira ideia que me ocorre é a mais simples. As


pontes caem por causa da atracção gravitacional da
Terra. Claro que isto não serve de desculpa a ninguém e
portanto é preciso analizar esta situação com maior
profundidade.

As pontes sobre estradas caem por causa de uma série


de pequenos impactos que embora aparentemente não
as danifiquem provocam desalinhamentos e
desequilibrios, podendo inclusivé danificar a estrutura
dos pilares de suporte. Esta foi de engenheiro!

Grave é que ainda hoje houve trabalhos de reparação na


ponte que caiu e obviamente a tentação é culpar o
empreiteiro ou o encarregado da obra e esquecer que
estas obras obrigam a um corte no trâsnsito e são
sempre feitas o mais depressa possível, debaixo de uma
enorme pressão das autoridades rodoviárias ansiosas
por restabelecer uma circulação normal.

Por outro lado, não sabemos quais os danos que a ponte


já sofrera, nem tal foi provavelmente analisado, e uma
simples mexida para efectuar um realinhamento ou uma

166
A minha pequena vida

reelevação, por muito cuidadosa que fosse, pode originar


uma queda.

É importante que a culpa não morra solteira e que se


apurem responsabilidades, sobretudo porque houve
feridos e danos materiais, mas por outro lado deve-se
fugir à explicação simplista de culpar quem foi o último a
mexer. É sempre muito mais fácil atribuir a
responsabilidade a quem fez a reparação, tiveram um
contacto directo com a ponte, eventualmente não
efectuaram os testes necessários ou descuraram algum
pormenor. Mas tiveram tempo para isso, ou aqueles que
agora vêm pedir um inquérito urgente foram os mesmos
que pressionaram para que a circulação fosse
restabelecida com urgência?

Depois de um dia em que tive três incidentes com os


malditos gatos vádios que querem ocupar o meu
bairrozinho, observar um destes acidentes ajuda-me a
relativizar os meus problemazinhos. Na verdade não
fiquei magoada, nem me cairam em cima cinquenta
toneladas de betão, que me transformariam num
pequeno par de luvas.

2003-09-08

Para além do buraco financeiro há muito conhecido, a


RTP aparenta ser também um antro de pedófilos. Aliás,
pelas descrições a principal produção cinematográfica da
RTP parece ser constituida por filmes pornográficos
realizados de forma mais ou menos clandestina e
protagonizada por alunos da Casa Pia.

167
A minha pequena vida

Há muito que era da opinião que semelhante empresa


devia fechar, mesmo antes de saber as últimas e
trágicas novidade, mas agora ainda estou mais convicta
das minhas ideias.

O uso de equipamentos pagos por todos nós não só em


proveito próprio de alguns funcionários, mas também
para fins criminosos é francamente imoral e devia ser um
crime público. Eu sei que não pago impostos, até porque
também não tenho idade para isso, mas qualquer
cidadão que pagou qualquer tipo de impostos ou
contribuições para o Estado nos anos oitenta devia ter o
direito de processar a RTP, os seus responsáveis e cada
um dos funcionários envolvidos.

Não acredito que numa empresa dirigida com seriedade


fosse possível ocorrer semelhante situação. Infelizmente
na RTP o descontrole e o saque generalizado, para além
da delapidação dos seus bens, permitiu uma série de
crimes. A falta de controle tem responsáveis, tal como o
têm os vários serviços e departamentos, e a incúria,
laxismo e incompetência generalizada leva a uma
relação de cumplicidade com os criminosos que disso se
aproveitam.

Quando os directores reclamam o seu desconhecimento,


apenas o podiam justificar pela sua imensa
incompetencia o não exercício das suas funções,
assumindo que nem deviam ter direito ao pagamento por
pelo exercício de funções que realmente descuram. Ou
podem assumir as suas responsabilidades, a sua
cumplicidade funcional e sentar-se no banco dos réus,
ao lado do grupo de pedófilos cuja actividade permitiram
durante décadas.

168
A minha pequena vida

2003-09-09

Prevejo que as ramificações do processo de pedofília na


RTP irão ocupar várias semanas de noticiário. Aliás,
neste momento só espero que uma nova vaga de
prisões venha diminuir o quadro de funcionários da dita
instituição. Aposto que nunca se tinham lembrado desta.
Em vez de negociar rescisões de contrato, pura e
simplesmente saem porque vão presos. Sempre ajuda a
equilibrar as finanças e como mesmo para aqueles que
já sairam ainda é possível um processo judicial ou
disciplinar, talvez se recupere pelo menos parte das
chorudas indeminizações recentemente atribuidas.

Afinal, sempre posso dar mais um conselho à minha


amiga Ministra das Finanças. Investigue o passado dos
funcionários do Estado ou de empresas públicas antes
de negociar uma saída ou uma reforma antecipada.
Quem sabe se não vai encontrar algumas revelações
surpreendentes que evitem pagamentos futuros.

Eu sei que julgar e condenar pessoas também custa


dinheiro, mas lembre-se que as custas processuais
revertem a favor do Estado e que os advogados
supostamente também pagam impostos. Garanto-lhe
que no fim ainda fica a ganhar uma fortuna.

Como faço tantos favores ao dar conselhos gratuitos à


Ministra das Finanças penso que já a posso chamar
amiga. Espero que ele nunca me persiga por eu não
pagar impostos. Claro que ela me pode exigir talvez um
décimo das minhas latas, mas penso que com o meu
nível de rendimentos isso seria inconstitucional. E aliás,
o que é que ela iria fazer com aquelas poucas lata que

169
A minha pequena vida

lhe caberiam? Penso que nenhum banco aceita


depósitos em latas, também não me parece que os
contribuintes achassem muita graça em receber um
reembolso do IRS em latas em vez de euros, portanto o
melhor que ela tem a fazer é deixá-las comigo. Como se
dizia dantes “as latas a quem as come”.

2003-09-10

Custa-me a admitir, mas desta vez fui batida. Nem


queria acreditar que após um inquérito oficial a
responsabilidade da queda de uma ponte fosse atribuida
a uma borboleta. Embora tenham reconhecido que
existiam outros factores a contribuir, no fim foi por causa
daquela imprevisível borboleta que até pode estar no
Japão que tudo aconteceu.

Esperemos que alguém vá até ao outro lado do Mundo


atrás dessa borboleta criminosa, a extradite e seja
condenada pelo crime que praticou.

Já não nos bastava aquela mítica cegonha, capaz de


lançar na escuridão meio País, qual dragão alado
cuspindo fogo sobre as linhas de alta tensão da EDP,
agora temos que enfrentar o perigo das borboletas
japonesas, obviamente dotadas de alta tecnologia e
capazes de destruir pontes do outro lado do Mundo. Isto
nem os americanos conseguem, nem com toda a
tecnologia conhecida é alguém é capaz de fazer, pelo
que se trata indiscutivelmente de um projecto altamente
secreto aliado a um sinistro plano de domínio mundial.
Esperemos que no próximo filme do 007 se encontre
uma explicação.

170
A minha pequena vida

Seria mais fácil culpar Sir Isaac Newton e a teoria da


gravidade. Se a ponte está lá em cima e a Terra cá em
baixo, a atração gravitacional fá-la cair, tal como se fosse
uma maçã a soltar-se do ramo de uma árvore.

O importante nas conclusões do relatório é o facto de


não haver culpas, responsabilidades ou sequer
previsibilidade, pelo que não existe ninguém a perseguir
com excepção daquela maldita borboleta, a qual até
pode ser ininputável.

Assim, as pontes portuguesas vão continuar a cair,


vítimas da atração gravitacional e das borboletas
japonesas sem que nada possamos fazer para o evitar
ou prevenir, independentemente da qualidade da obra e
do rigor técnico dos inspectores. Ao menos têm sentido
de humor!
2003-09-11

A demissão do presidente do Instituto das Estradas de


Portugal era uma inevitabilidade depois de
responsabilizar a borboleta por algo que não soube ou
não quis explicar. Sempre podia ter responsabilizado
algo ou alguém mais próximo ou mais plausível, mas
escolheu a pior hipótese e a de mais graves
consequências.

Claro que isto também deriva do facto de não ser bem


visto o humor na política portuguesa, sobretudo quando
envolve vítimas. Provavelmente já se esqueceu do infeliz
comentário, a título de graçola, do ex ministro Carlos
Borrego a propósito da reciclagem do alumínio que
envenenou mortalmente vários habitantes do Alentejo. O

171
A minha pequena vida

comentário de que se iriam desenterrar os corpos para


reaproveitar o alumínio foi a sua morte política e o facto
de nunca ter sido reciclado prova até que ponto a sua
pretensa piada foi mal recebida.

Por outro lado a o recurso à borboleta, é exemplificativo


da irresponsabilidade de certos dirigentes que exercem
altos cargos e da forma leviana com que encaram
situações trágicas, apenas suavizadas por não ter havido
vítimas mortais.

Mas tudo isto não passa de um insigificante “fait-divers”,


como diria um nosso político, num dia em que a
lembrança dos ataques ao World Trade Center, uma
nova vaga de calor o reínicio dos incêndios florestais até
fizeram esquecer o processo da Casa Pia. Apenas uma
pequena menção, quase em nota de roda-pé, ao facto
de amanhã o Tribunal da Relação decidir ou não a
continuidade do actual Juiz lembrou a notícia favorita dos
portugueses.

É normal que o tempo seco e ventoso ajude a propagar


incêndios, mas é necessário algo mais para que estes
comecem. Não vamos falar de combustão expontânea,
não é tão frequente quantos os inúmeros incêndios que
ocorrem neste País, pelo que temos que olhar para outra
possibilidade.
Quando o coordenador da Polícia Judiciária de Coimbra,
normalmente tão discreto e comedido, mencionou as
penas leves aplicadas aos incendiários, pareceu-me ver
um misto de frustração e de desespero diante de
reincidentes libertados a meio da pena e que
imediatamente voltam a praticar o mesmo crime.

172
A minha pequena vida

Já várias vezes abordei este assunto, mas agora sinto-


me mais apoiada, é mesmo necessário alterar a lei,
independentemente do facto de a maioria dos deputados
ser em princípio contra o agravamento das penas. Não
há possibilidade de combater este flagelo senão com
penas mais pesadas e investigando quem lucra com os
incêndios. Se ainda houvesse a Santa Inquisição era
menos um problema, eles que lidassem com estes
excomungados.

2003-09-12

Talvez este seja o país das inevitabilidades. O Juiz Rui


Teixeira continua à frente do processo da Casa Pia e
com o aumento da temperatura voltaram os incêndios.
Infelizmente foi em força e em certos casos até me
parecem mais difíceis de controlar do que aqueles que
surgiram há cerca de um mês.

No meio disto tudo, para descontrair um pouco, uma


autêntica história do vigário, a do dinheiro mágico ou da
autoduplicação das notas. Quase nem queria acreditar
quando li que dois empresários entregaram meio milhão
de euros a um grupo de desconhecidos que lhes
prometia duplicar as notas. E quase funcionava,
entregaram uma e num papel em branco surgiu outra,
que supostamente seria a duplicação da primeira.
Parece que nem repararam que os números de série
eram diferentes. Coitados, e como é que esse milagre da
ciência poderia acontecer?

Os dois burlados lá entregaram uma fortuna que


obviamente desapareceu, provavelmente sem se

173
A minha pequena vida

apreceberem do seu próprio crime, duplicar dinheiro


continua a ser proibido e para todos os efeitos
corresponde a um crime de emissão de moeda falsa. Ou
seja, mesmo que tecnicamente sejam idênticas às
originais e que no limite até pudessem ser consideradas
verdadeiras, a sua emissão sem autorização do Banco
de Portugal é crime.

Portanto, para além de lesados em meio milhão de


euros, os dois génios empresariais vão ser acusados de
cumplicidade na emissão de moeda falsa e
provavelmente terão dificuldades em pagar a um
advogado que os livre de uns anitos na prisão. Como
devem estar falidos talvez seja a melhor opção, pelo
menos o Estado sempre vai ser generoso e não so deixa
morrer à fome.

Se esta magia fosse possível, e não vou entrar em


questões de legalidade, não pensam que a nossa
Ministra das Finanças já teria resolvido todos os
problemas das contas do Estado? Ou pensam que são
mais espertos do que ela?

2003-09-13

Se para a maioria dos portugueses o fim de semana é


para descançar e um alívio em relação ao resto da
semana, para políticos e envolvidos em escândalos
passa-se exactamente o contrário. O fim de semana
quase parece a época das execuções. Começa no
sábado de manhã com a leitura do Expresso e a
revelação das últimas descobertas jornalísticas e termina
no domingo à noite com a análise do Prof. Marcelo

174
A minha pequena vida

Rebelo de Sousa. Sorte a deles por não terem uma


crítica minha todos os dias porque já teriam sucumbido a
um esgotamento.

No entanto, neste fim de semana, os incêndios vieram


fazer esquecer quase tudo o resto. Até eu senti no meu
bairrozinho o cheiro a queimado e as cinzas a cair,
arrastadas pelo vento desde o concelho de Loures ou de
Mafra. Nunca tinha sentido nada de semelhante nem em
toda a minha pequena vida tinha visto o Sol escurecido
pelo fumo. Sei que foram muitos os lisboetas que
telefonaram para os bombeiros, assustados com o fumo
e o cheiro, pelo que nem imagino o pavor daqueles que
tinham o fogo ao pé de casa.

Em Mafra é especialmente complicado, havendo


munições militares abandonadas e tendo em conta o
habitual desleixo com que estas são procuradas e
recolhidas. Se uma granada de morteiro explodir ao pé
de uma viatura de bombeiros pode provocar mais uma
tragédia, daquelas a que este País infelizmente se está a
habituar. Afinal a limpeza das matas não é apenas um
problema dos proprietários, é também de quem as utiliza
e muito especialmente de quem pode deixar algum tipo
de lixo ou resíduo altamente explosivo.

2003-09-14

Se alguma qualidade se pode apontar ao ex-presidente


Kumba Iala, esta é a de ter unido o povo guineense.
Todos se uniram contra ele, é certo, mas não deixa de
ter sido motivo de união.

175
A minha pequena vida

Após ter demonstrado tanta falta de intuição política, ao


enviar setecentos dos seus militares mais fieis em
missão de paz na Libéria, tanto quanto demonstrou falta
de espírito democrático, com um parlamento dissolvido à
meses, uma constituição por homologar e substituições
sucessivas de políticos e militares, este pretenso e
aclamado em tempos salvador da pátria está agora a um
passo do exílio.

Sem o carisma de outros ditadores, com falta de


prestígio nas Forças Armadas e constituindo um
verdadeiro empecilho para o seu próprio partido político,
o impopular homem do “barrete encarnado” terminou a
sua infeliz passagem pelo dirigismo político. Talvez com
este barrete ainda possa almejar a um lugarzito no
toureio apeado!

Num dia em que os incêndios continuam a ser notícia,


onde algumas referências ao processo da Casa Pia e o
futebol concentram as atenções, poucos serão aqueles
que irão discorrer sobre o conturbado período que se
vive na longinqua Guiné Bissau, onde a paz e a
estabilidade continuam por alcançar.

De todos os incêndios o que mais me impressiona é o da


Tapada de Mafra, não só por pertencer ao estado, mas
também por estar murada e supostamente mais
protegida do que outros terrenos rurais ou agrícolas,
dado que as entradas são, pelo menos teoricamente,
controladas. Também a proximidade da Escola Prática
de Infantaria devia garantir uma segurança adicional, o
que manifestamente não acontece. Afinal, com tantos
militares mesmo ao lado, será que é possível que se
trate de fogo posto? Ou esta é apenas uma desculpa

176
A minha pequena vida

para o facto de a Tapada estar tão mal cuidada quanto


os terrenos particulares cujos proprietários são hoje em
dia tão criticados?

Por outro lado o Governo tem uma díficil escolha para


fazer. Caso assuma que se trata de fogo posto está a
renunciar aos mecanismos comunitários de ajuda, caso
contrário em troca das compensações aceita a
responsabilidade política por não saber cuidar
devidamente do que é seu. Quanto valerá em termos
económicos esta forma de ilibação, em que se prescinde
da ajuda em troca de uma desresponsabilização? Será
que os números que vão sendo conhecidos e
anunciados internamente coincidem com os enviados
para Bruxelas?

Brevemente vai acabar a época dos incêndios e no


prazo de poucas semanas haverá um resultado final.
Vamos então a ver o que pesou mais, se as
necessidades económicas ou os imperativos políticos.

2003-09-15

Hoje foi o grande dia de regresso às aulas. Tantas


criancinhas, embora menos do que há alguns anos, a
caminho do seu primeiro dia de aulas. Só eu, porque
apesar de ter seis aninhos ainda sou pequenina é que
não fui. Mas como já sei ler e escrever e até sei fazer
algumas contas, como calcular quantas latas é que
tenho, talvez possa adiar mais um anito a minha entrada
no sistema escolar.

177
A minha pequena vida

Talvez me dessem uma dessas mochilas coloridas e uns


caderninhos para eu levar para a escola. E também
queria um telemóvel, porque se todos os outros miudos
têm um não quero fazer figura de pobre e não ter
ninguém que brinque comigo. Agora quem não tem
telemóvel até parece que não é gente. É como dantes
com quem não tinha televisão a cores; era tratado quase
como um pedinte.

Nota-se que hoje a cidade ficou diferente, foi


definitivamente o regresso das férias e o início de um
novo ano. Começou a falta de estacionamentos, as filas
de trânsito, o buzinar constante e o regresso dos
aceleras nervosos ao meu bairozinho. Enfim, foram os
meses de paz que acabaram até ao próximo Verão.

Também as pessoas já voltaram, as casas já estão outra


vez habitadas, e alguns descobrem que foram
assaltados durante as férias. Nada que me espante, num
bairro que no Verão fica quase deserto, apenas com
alguns habitantes na sua maioria idosos, e onde
moradias abandonadas servem de abrigo a toda a
espécie de vagabundos e toxicodependentes. É por
causa disso que agora estamos a por grades também
nas traseiras da nossa casinha, porque este bairro
dantes tão seguro e sossegado agora está a mudar para
pior e não é a pequena esquadra da Polícia, com uma
meia dúzia de agentes que ainda por cima são amigos
dos gatos que o pode impedir.

2003-09-16

178
A minha pequena vida

Estava hoje a ver as notícias e ouvi um engenheiro dizer


que o Instituto de Estradas de Portugal já estava
informado relativamente ao estado da ponte que caiu e
da inevitabilidade desse desfecho. Aparentemente o que
estava em causa eram alguns milhares de euros a mais
que seria necessário dispender numa reparação séria e
credível em vez de umas obras de fachada que apenas
vieram precipitar o que já passara de uma mera previsão
a uma mais do que certeza.

Não sei de que quantia se falava, mas num país em que


há dinheiro para estádios e homenagens, aqueles
poucos milhares de euros bem podiam ser gastos em
prevenção. Sobretudo tratando-se de algo que se sabia
ir acontecer num futuro que embora imprevisível seria
sempre a muito curto prazo.

De certa forma traduz a forma de pensar e de agir mais


comum em Portugal. Em vez de prevenir gasta-se várias
vezes mais a remediar o que se pode. Infelizmente nem
tudo tem remédio, independentemente daquilo que se
pudesse pagar, e são muitos os que ficam com a vida
arruinada por causa desta negligência tantas vezes
grosseiramente criminosa ao ponto de se tornar
homicida.

Se este país pudesse, andaria à procura de uma


seguradora que evitasse ter que se preocupar com a
prevenção. Talvez ficasse em melhores mãos do que a
tentar governar-se sozinho e a imaginar sempre o
melhor, sem nunca se prevaver contra a realidade.
Enfim, parece que planeamos para um conto de fadas e
quando acordamos lembramo-nos de que nos
esquecemos do despertador.

179
A minha pequena vida

2003-09-17

Consta que o deputado Paulo Pedroso escreveu uma


carta solicitando o seu afastamento de cargos directivos
do PS. Dizem, ou especulam, que tal se deve ao
afastamento dos dirigentes socialistas, os quais, após
uma primeira fase em que imperou a solidariedade e os
desmentidos, optaram por um conveniente afastamento.

Não sei se a pessoa em causa é ou não culpada.


Pessoalmente até preferia que não fosse, pois não
obstante não o conhecer pessoalmente sempre tive dele
uma impressão favorável, mas espanta-me que os seus
amigos, aqueles que juraram amizade e lealdade
eternas, entre acusações e tentativas de descrédito da
magistratura, hoje o abandonem exactamente como se
encontrava há sete meses, na altura em que foi preso.

Como se costuma dizer, com amigos destes, não são


precisos inimigos, e infelizmente a vida política continua
a correr sob a égide do vale tudo, sobretudo em partidos
desorientados e de fraca ou nenhuma liderança política.

Na verdade, a única boa notícia que o Secretário Geral


do PS teve nestes últimos meses foi o regresso do seu
cão. O infeliz canídeo, de nome Gastão, teve a sorte ou
o azar de ser encontrado e devolvido aos seus legítimos
donos, após uma tentativa de evasão aparentemente
sem sucesso. Pois é, nem aquele cão quer continuar na
família socialista, quanto mais quem tiver alguma
autonomia e liberdade de acção.

180
A minha pequena vida

Também muitos se espantaram por este regresso ser


uma notícia de primeira página, mas atenção, estamos a
falar da única vitória socialista dos últimos meses, talvez
uma das poucas ocasiões em que o actual Secretário
Geral tem razões para festejar. Aquilo que o jornal que
transformou o Gastão em notícia de primeira página
estava apenas a anúnciar o que de mais relevante
aconteceu ao Partido Socialista desde que o antigo
Secretário Geral fugiu, esse sim, com muito mais
sucesso do que o infeliz canídeo.

Coragem Gastão. Vai tentando que talvez um dia possas


ter amigos que se lembrem de ti quando precisas.

2003-09-18

Hoje foi divulgada a carta do deputado Paulo Pedroso.


Nada de anormal excepto manifestar ao PS uma
solidariedade que não tem recebido. Pode ser apenas
uma manobra política, não sei se é culpado ou inocente,
mas em termos de comportamento tem sido sempre ele
a marcar pontos em detrimento do Partido e dos seu
dirigentes.

No entanto esta notícia perdeu impacto com a


divulgação de imagens de um assaltante a ser capturado
pelo motorista da viatura de transporte de valores que
assaltara com a ajuda de alguns transeuntes. Apesar de
armado e de ter ferido dois dos captores, estes deram
provas de uma coragem e de um civismo que às vezes
parece esquecido. Pelo menos faz-nos sair desta típica
depressão em que nos julgamos inferiores aos outros
povos.

181
A minha pequena vida

É óbvio que quando os assaltantes são capturados pelas


vítimas, segue-se um tratamente menos recomendável,
com alguma agressividade que embora justificada pode
ser excessiva. Como a maioria dos portugueses não tem
grande fé na Justiça, resta aplicá-la enquanto é possível,
vulgo até chegar a Polícia. Desta vez nem a chegada da
Polícia terminou com as agressões ao assaltante detido,
tendo alguns agentes colaborado de forma algo
entusiástica no amaciamento do azarado ou
incompetente ladrão.

Podemos pensar que também a Polícia se excedeu, o


que não deixa de ser verdade, mas será que eles ainda
acreditam nos tribunais? Quando mesmo aqueles que
predem em flagrante no dia seguinte são libertados
torna-se quase inevitável que pensem que ao menos do
correctivo não escapam. De certa forma é a impunidade
que gera este tipo de atitudes e a ânsia de fazer justiça
quando esta parece falhar a um nível mais instucional.

De certa forma, é por causa disto que eu persigo os


gatos. Ninguém castiga aqueles malvados bichos, nem
Polícia, nem Tribunais quetem saber deles, pelo que
viveriam na mais completa impunidade se não fosse eu a
impor moralidade, bons costumes a as mais elementares
regras de higiéne entre a bicharada.

2003-09-19

Só me falta acertar no Totoloto! Também não sei se


acertava porque não jogo, não por razões morais, o
Padre Melícias até lhe chamou o “jogo da solidariedade”,

182
A minha pequena vida

mas porque o meu pequeno orçamentozinho não me


permite estes luxos.

Quando ontem vi na televisão a prisão de um assaltante


e as agressões de que foi vítima por parte de polícias e
transeuntes, logo me ocorreu que iria ser notícia. Logo
no dia seguinte já se perguntava à Polícia o porquê
daquelas agressões e o que iriam fazer aos agentes
envolvidos.

A resposta foi algo surpreendente, ainda estavam a


tentar identificar os agentes porque as imagens eram
deficientes. Para além de ser mais do que visível, como
se não constasse do relatório quem participou na
operação ou quem se deslocava num automóvel cuja
matrícula era mais do que visível. Pessoalmente teria
sido mais objectiva: o malandro estava mesmo a pedí-las
e antes que algum juiz o deixe sair em liberdade vamos
lembrar-lhe duas ou três verdades, como, por exemplo,
que não se deve roubar, nem dar tiros nas pessoas, nem
resistir à prisão.

Enfim, dou um conselho aqueles agentes algo ingénuos.


Não lhes batem em público, contenham-se e guardem
esses momentos de livre exercício criativo para o interior
das esquadras. Gozem os momentos de antecipação e
partilhem-nos com os amigos.

Mas não foi só esta notícia que mereceu destaque.


Finalmente começam a ser apreendidas cartas de
condução com base em testes psicotécnicos ou
psicológicos. Pena é que seja necessário praticar
algumas infrações graves para que se seja submetido a
estes testes. Se fosse minha responsabilidade, era antes

183
A minha pequena vida

de começar a tirar a carta que estes testes seriam feitos,


evitando preventivamente que criminosos fossem
enviados para a estrada com autorização para matar e
poupando aos inaptos o dispêndio de uma elevada
quantia na obtenção de uma carta que brevemente lhes
seria apreendida.
Saber conduzir é muito mais do que aperfeiçoar um certo
conjunto de técnicas, é um exercício de responsabilidade
para o qual nem todos estão qualificados,
independentemente dos seus dotes automobilisticos.
Também não é um direito, é um previlégio que só deve
ser concedido de forma criteriosa a quem o mereça,
podendo ser retirado imediatamente quando as
condições que levaram à sua atribuição deixam de se
verificar, com a mesma naturalidade que levou a sua
concessão.

2003-09-20

Vai passar a haver obrigatoriedade de seguro para os


possuidores de animais considerados perigosos, para
além de uma idade mínima e de um registo criminal
limpo. Até aqui tudo bem, é uma medida inteligente, mas
falha num ponto essencial. A definição de animais
perigosos inclui certas espécies selvagens e canídeos de
grande porte. Tudo bichos que nunca vi e dos quais não
tenho qualquer queixa. Ao contrário dos gatos, os quais
passeiam impunemente, sem dono e sem seguro, com
um passado de crueis e violentas agressões contra
transeuntes, entre os quais infelizmente, eu me incluo.
Peço ao Governo deste país que não esqueça que os
gatos têm que ter seguro obrigatório e, caso não tenham
dono, um registo criminal limpo, sem o que não devem

184
A minha pequena vida

poder circular à vontade fazendo as suas habituais


patifarias.

A propósito de seguros também li que existem largos


milhares de veículos que não cumprem esta norma
obrigatória para a circulação. Aparentemente são cada
vez mais os que se encontram nesta situação, e o
estudo até fazia o perfil do prevaricador. Trata-se de um
indivíduo do sexo masculino, com cerca de trinta e um
anos de idade, desempregado ou a trabalhar na
construção cívil, preferencialmente com alguns
antecedentes criminais. Portanto, quem estiver incluido
neste perfil devia ter a carta suspensa até apresentar
provas de ter seguro, e quem não o fizer no prazo
exigido fica sem carta. Medidas simples e rápidas e que
podiam ser requeridas como que por amostragem,
alegando ser para efeitos estatísticos. Também a
fiscalização da inspecção obrigatória devia incluir um
sistema aleatório, em que os proprietários deviam ser
obrigados a apresentar prova na esquadra do bairro,
com os documentos do veículo, seguro e folha de
inspecção em ordem. Quem tivesse infrações então já
não escapava, bem como quem tivesse multas por
pagar. Através deste processo prático e discreto, de
custo reduzido resolviam-se muitos dos actuais
problemas com que nos deparamos em termos de
circulação rodoviária.

2003-09-21

Hoje o meu único tio fez anos. É uma data importante e


conveniente porque mesmo não havendo festa ou se
não me convidarem há sempre um petisco para me

185
A minha pequena vida

lembrar os laços familiares. É uma pena a minha família


ser tão pequena, com tão poucos aniversários, porque
assim só tenho uma meia dúzia de petiscos por ano e
mais um por conta do Natal dos Cristãos. Paciência, o
importante é que não adoptem mais ninguém, que isto
de partilhas não é comigo e ainda ontem eles fizeram
festas ao meu inimigo figadal, aquele horrível gato preto
que me quer matar para ficar com tudo o que é meu,
família inclusivé.

Para além disso foi um dia tranquilo, nem sequer houve


grandes novidades e o ano político e judicial embora já
tenha começado ainda não aqueceu.

Estive a ver uma repostagem de um veículo que entrou


numa autoestrada em sentido contrário, acabando por
provocar três mortos. Pode-se ter enganado, a
sinalização podia ser deficiente, mas o que é facto é que
quando isto acontece é quase impossível evitar que
acabe num acidente grave.

Ocorreu-me que as autoestradas deviam ter na área das


entradas um sistema de aviso que informasse se um
automóvel ia em sentido contrário, semelhante ao usado
para medir a velocidade. Se o resultado fosse negativo,
era óbvio que havia alguém em contra-mão. Surge então
a segunda questão, a de resolver este problema. Uma
hipótese seria a ligação a um sistema de semáforos que
avisasse os condutores do perigo e os fizesse parar, a
outra seria um sistema de rede semelhante ao que existe
nos porta-aviões e que travasse o infrator antes de colidir
com outro automóvel. Admito que isto seja mais
dispendioso do que difícil, pelo que num país em que se
poupa o máximo em prevenção deve ser difícil de

186
A minha pequena vida

implementar. É uma pena que fazer qualquer coisa custe


sempre algum dinheiro e que a vida humana valha tão
pouco que não consegue justificar um pouco de
prevenção. Pelo menos não me venha dizer que é um
problema de resolução impossível, sejam honestos e
limitem-se a dizer, ou a cantar, “não pagamos”.

2003-09-22

Cada vez há mais ameaças a envolvidos no processo da


Casa Pia. Deve ser por causa destes problemas de
segurança que os arguidos são mantidos presos. Ao
menos assim devem estar seguros e não é preciso
continuar a dispender os recursos do Corpo de
Segurança Pessoal da PSP que já mal chegam para
governantes e juizes. Nunca este Corpo deve ter tido
tanto trabalho, tanto que já não chega para me proteger
dos gatos apesar das ameaças e atentados constantes.

Mas pergunto-me a mim própria se todos eles estarão


realmente em perigo ou se as ameaças são apenas uma
forma de influenciar as testemunhas ou de fazer
aparecer notícias onde elas não existem. Qual a
credibilidade de uma ameaça de morte via telemóvel
onde o autor é identificado e confessa a autoria? Para
quê proteger o ameaçado em vez de prender o
inconsciente que fez a ameaça? Neste país ainda
existem algumas leis e ameaçar uma pessoa de morte,
por muito inconsequente que pareça essa ameaça,
deveria ter consequencias graves e imediatas para quem
tome essa atitude.

187
A minha pequena vida

Por outro lado, as tentativas de adiar o julgamento


aliadas a este clima de ameaças às testemunhas acaba
sobretudo por prejudicar os arguidos, que acabam
sempre por aparecer, se não como autores, pelo menos
como os beneficiários desta estratégia mais ou menos
concertada que obviamente visa subverter a aplicação
da justiça.

Enfim, advogados conscientes deveriam ter mais


cuidado com os efeitos colateráis ou secundários de uma
estratégia que parece ser a de tentar ganhar na
secretaria o que não é possível no campo através da
verdade desportiva.

2003-09-23

Isto de ser arrependido aparentemente é um bom


negócio. Primeiro fazem-se uns crimes,
preferencialmente lucrativos, depois tem-se o azar de ser
preso, mas denunciando alguns cúmplices e
colaborando com as autoridades para que estas
descubram até que ponto somos criminosos podemos vir
a ganhar uma nova vida no estrangeiro, a coberto de
uma nova identidade.

É muito melhor e mais realista do que tentar ganhar um


prémio num concurso televisivo. Em vez de jogar com
probabilidades baixas, temos apenas que conseguir um
advogado esperto e obviamente ter muita vontade de
falar.

Já viram o que era se um dos gatos que me persegue


furiosamente só por denunciar os cúmplices tivesse

188
A minha pequena vida

direito a ser adoptado pela Polícia e pudesse comer lata


todos os dias enquanto se espreguiça num qualquer
lugar paradisíaco?

Uma coisa é colaborar com a Justiça, outra é permitir


que a troco de informações um criminoso possa escapar
impune. Admito que possa haver uma redução da pena,
mas permitir que escape ao castigo é uma completa
imoralidade e uma subversão da justiça,
independentemente de uma arrependimento mais ou
menos sincero da utilidade das informações que possa
fornecer.
Aliás, nós temos várias Polícias para investigar, e apesar
de a nossa lei ser algo restritiva no respeitante aos
métodos e meios de interrogatório, também podemos
fazer como os Americanos fazem em Guantanamo,
enviando os nossos presos e candidatos a um
interrogatório mais rigoroso para uma base no
estrangeiro. Sugiro que aluguemos uma em Marrocos,
que fica perto e onde existe uma ampla liberdade
metodológica a nível da persuação e do diálogo com os
detidos. Até podiamos contratar especialistas
estrangeiros, não só em Marrocos ou em países árabes,
mas também entre os emigrantes de Leste, que, para
além de falarem português, certamente adquiriram
conhecimentos particularmente úteis antes da queda do
regime Soviético.

E não nos podemos esquecer que o verdadeiro


arrependimento é desprendido e desinteressado, um
estado de alma alheio aos constrangimentos materiais.
Se utilizarem este princípio, então sim, sou favorável ao
estatuto de arrependido, o qual cumprirá integralmente a
sua pena com o espírito muito mais aliviado pelo perdão

189
A minha pequena vida

divino, feliz por expiar os seus pecados e glorificando o


nome da justiça.

2003-09-24

É um bocado incompreensível para mim a importância


que se deu à possibilidade de poder efectuar várias
operações no Multibanco sem tirar o cartão. Não só não
tenho cartão, como também não tenho uma conta
bancária, o que aparentemente é necessário para ter um
daqueles cartões mágicos que dão dinheiro às pessoas
grandes.

Por outro lado, não consigo chegar ao teclado, mais uma


vez aquele conhecido problema das acessibilidades
veda-me o acesso a algo que se pretendia que fosse um
direito.

Finalmente, uso uma unidade monetária alternativa, a


lata, e nunca vi nenhuma máquina que utilizasse,
cambiasse ou de alguma forma trocasse esta forma de
valor.
Portanto, sinto-me um bocado excluida, tal como todos
aqueles portugueses para os quais iria ser lançado uma
espécie de cartão multibanco social, associado a uma
conta especial para quem tinha pouco dinheiro. Na
verdade os bancos não se interessaram, quem tinha
direito a esta conta sentiu-se descriminado e só faltava
terem algures na periferia o balcão dos pobres, com
instalações de gosto duvidoso e um horário reduzido e
apropriado ao pouco dinheiro que por aí circularia. Enfim.
uma boa ideia em teoria que na prática não vingou.

190
A minha pequena vida

Tal como não vingou a célebre ideia de oferecer os


telemóveis aos pastores, subitamente promovidos a
guardas florestais sem vencimentto, e que rapidamente
os esqueceram ou converteram para uso próprio ou, na
maioria dos casos, o deram aos elementos mais jovens
da família. Num país onde quem não tem um telemóvel
não é gente, não seria de esperar outro desfecho.

De certa forma, é isso que determina a importancia das


pessoas. Uma conta bancária com muitos cartões
associados, um telemóvel com uma série de
características inúteis, um automóvel caro cujos
inúmeros butões e alavancas têm funções tão
desconhecidas como absurdas, uma casa de férias num
local tão poluído e congestionado quando faz bom tempo
que nunca se lá vai, enfim, todo um conjunto de atributos
e pertenças mais ou menos inúteis e de gosto duvidoso.

Claro que como eu não tenho nada disso, por muitas


qualidades e talentos que tenha sinto-me sempre
excluida desta sociedade onde quem não aparece nas
revistas de sociedade, tendencialmente limita-se a não
existir.

Gostava tanto de ter um cartãozinho multibanco


personalizado com o meu nome em relevo e a minha
fotografia a cores sobre um fundo dourado...

O nome de “Gatochy Prestige” soa-me tão bem!

2003-09-25

Foi dia da primeira vitória da defesa no caso da Casa


Pia. O Tribunal Constitucional deu razão quando

191
A minha pequena vida

contestaram a o facto de o Juiz não ter mencionado


intervenientes, datas, locais e demais detalhes quando
interrogou os arguidos.

Parca vitória, se analizarmos que se trata mais da forma


do que do resultado, mas uma pequena compensação
moral para quem dizia que perdia sempre. Desta forma
tiveram a sua vitoriazinha, pequenina, inconsequente,
mas que serve para justificar os honorários.

No essencial tudo ficou na mesma, e o Tribunal


Constitucional rejeitou o pedido de “habeas corpus” de
Carlos Cruz. A compensação para as três vitoriazinhas
processuais foi uma derrota naquilo que seria realmente
importante, ou seja no pedido de libertação do arguido,
embora a decisão tenha sido baseada em questões
técnicas.

Claro que o importante é saber quais as consequências


da decisão para o processo, e estas parecem-me que no
limite não serão mais do que obrigar a informar os
arguidos e respectivos advogados de vários detalhes e
informações incuidas no processo e, eventualmente,
repetir os interrogatórios.

Dado que tal não irá afectar as convicções do Juiz e


porque aparentemente a Relação concorda com a prisão
preventiva, tudo isto acabará por se resumir a mais um
incidente processual, com os consquentes adiamentos
em termos da algumas decisões, mas que por não ter
carácter suspensivo poderá ser facilmente ultrapassado.
Como este pedido se vem adicionar ao incidente de
substituição de juiz, quase parece mais um jogo ou uma
estratégia dilatória do que um serviço prestado à Justiça.

192
A minha pequena vida

Portanto temos duas hipóteses. Uma é a de que


voltamos ao tempo das vitórias morais. Perdemos o jogo
mas mereciamos ganhar. Jogamos melhor do que o
adversário, mas tivemos azar ou o árbitro estava contra
nós. Enfim, aqui o árbitro é o Juiz e a Federação é o
Tribunal Constitucional, mas tudo continua a ser um
estranho jogo onde muitas vezes impera o desejo de
protagonismo dos participantes e se esquece qual o
objectivo do jogo.

A outra é a de dizer que o sistema funciona e que todos


podemos confiar na Justiça e nos meios de controle
existentes. Talvez, mas só para quem tem as
possibilidades económicas necessárias, os restantes,
com defensores oficiosos, não chegam à Relação,
quanto mais ao Tribunal Constitucional.

2003-09-26

Ainda bem que a Ministra das Finanças tem imaginação.


Vender aos bancos as dívidas de impostos e segurança
social para receber uma parte adiantado é quase como
tirar um coelho da cartola. Alguns especialistas chamam
a isto titularização, eu chamo-lhe “cobranças difíceis”.

Com isto o Estado recebe adiantado, mas paga


comissões, juros e ainda por cima arrisca-se a que os
incobráveis se tornem em prejuizos e entrem como tal
nas contas das entidades bancárias. Com isto pode-se
receber algo a curto prazo mas as consequências num
período mais alargado podem ser incertas.

193
A minha pequena vida

Há uns anos havia uma empresa chamada Cobrax que


se especializava em cobrança de dívidas difíceis. Os
métodos nem sempre estavam de acordo com a lei, os
critérios eram duvidosos e os participantes eram
extorcionistas profissionais dotados de um currículo ou
cadastro particularmente invejável e que só por sí
garantia um trabalho de qualidade.

Ficando com margens que variaviam entre os 30 e os


50%, a Cobrax era o último recurso de muitos
empresários e indivíduos desesperados com a
ineficiencia da máquina judicial e que acabaram por se
ver envolvidos numa actividade ilegal, tornando-se em
cumplices mais ou menos involuntários.

Muitas das vezes não havia necessidade de violência, a


simples menção à Cobrax, uma primeira visita de
carácter explicativo, resolvia o problema a contento de
todos mais ou menos dentro da legalidade, embora
pairasse sempre no ar a possibilidade ou a ameaça da
utilização de outros meios.

Com base na experiencia e na tabela de preços da


Cobrax, talvez seja possível imagonar que os Estado vai
prescindir de pelo menos metade do total em dívida, mas
é possível que no fim seja muito superior dado qe a
Cobrax era mais livre de utilizar métodos eficientes e
directos, a estrutura era menos pesada e o grau de
operacionalidade era particularmente elevado. Se
compararmos com o Estado ou com os Bancos, a
eficiência deve ser francamente melhor, pelo que é de
supor que onde a Cobrax tinha 70% de recuperação de
dívidas os novos protagonostas não passem dos 50% e
com custos operacionais muito mais elevados.

194
A minha pequena vida

Sugiro pois que a Ministra das Finanças recupere o


espírito Cobrax e envie uma carta do Fisco com um dos
antigos e temidos anúncios da empresa e, caso tal não
seja suficiente, solicite ajuda ao Governo Russo e às
unidades especiais que cobram os impostos. A violência
da operação, semelhante à captura de um grupo de
terroristas Chechenos, serve de exemplo a todos os não
pagadores e está a ajudar a por em ordem uma máquina
fiscal que há poucos anos era quase inexistente.

2003-09-27

Eu também gostava de passear de helicóptero! Dantes


era gratuito, pelo menos para os amigos dos bombeiros
de Aveiro, mas para mim custa cerca de setecentos
contos por hora. Bem, como só peso um quilo e meio
talvez me deem uma borla, mas não é a mesma coisa do
que fazer viagens turísticas gratuitas, o chamado circuito
do rio Douro.

É uma pena que tudo o que é bom acabe e que os


generosos autores da proeza sejam demitidos ou
investigados. Já não se pode oferecer um passeiozinho
aos amigos sem que o país inteiro, roído de inveja, logo
comece a protestar.

Claro que todos dizem que os voos não prejudicaram a


actividade operacional do aparelho e não custou nada
aos contribuintes e ao próprio Estado. Infelizmente tal
não é verdade, mesmo que inicialmente seja a empresa
proprietária do helicóptero a suportar os custos. Num
País em que os lucros são severamente taxados, a

195
A minha pequena vida

quase cinquenta por cento, se a empresa em causa vir


os seus lucros diminuidos isso irá afectar directamente
as suas contribuições para o erário público. Desta forma,
o prejuizo divide-se de forma quase igual entre a
empresa, ou mais concretamente os seus titulares, e os
contribuintes. Indirectamente, este é um crime contra
todos nós e não há forma de contornar esta problema a
menos que a empresa em questão estivesse a planear
fugir aos impostos e tivesse exito no seu propósito.

Infelizmente ainda a procissão vai no adro, e não tenho


muitas dúvidas de que as ramificações se estendem
desde os bombeiros até à Câmara Municipal, passando
pela Protecção Civil e envolvendo amigos, familiares e
conhecidos dos intervenintes, alguns dos quais deviam
ter idade para assumir as suas responsabilidades sem
evocar frases fora do contexto como desculpa para algo
que de tão óbvio quase dispensa um julgamento. Nem
vale a pena chamar-lhes réus, pode-se começar já por
considerá-los culpados e inverter o ónus da prova, numa
autêntica revolução nos nossos meios judiciários. Até
soa bem: culpado até prova em contrário. Saía muito
mais barato ao Estado e sempre permitia recuperar um
pouco dos prejuizos causados por estes pobres
inconscientes.

2003-09-28

Dantes o período de início das aulas era sempre um


motivo de notícias diárias, mas actualmente, não fosse a
invenção de uma classificação para as escolas e
ninguém falava do assunto.

196
A minha pequena vida

Claro que para mim é importante saber onde são as


melhores escolas e um alívio saber que a melhor escola
secundária pública em Lisboa é o Liceu Filipa de
Lencastre. Nem preciso de atravessar uma rua para lá
entrar, portanto já sei aonde quero fazer os meus
estudos secundários. A minha família também por lá
andou, portanto vou-me sentir em casa. De algumas
janelas do Liceu até consigo ver a minha casinha,
portantoe estou mesmo em casa.

Ainda pensei num colégio particular, que é sempre caro,


mas acredito que não vale a pena. Muitas das melhores
notas dos colégios particulares têm a ver com outros
factores, como o facto de serem frequentados de forma
quase exclusiva por alunos provenientes de meios mais
favorecidos, o que vem a beneficiar a média final. Numa
escola pública, por muito boa que seja, existirão sempre
alguns alunos oriundos de meios pouco favorecidos, sem
acesso aos actuais recursos tecnológicos, sem uma
família onde as conversas permitam uma melhor
educação e um esclarecimento de dúvidas. Se em vez
de uma média, tal como foi feito, se realizasse uma
operação estatística diferente, tal como uma mediana
que excluisse as notas francamente acima ou abaixo da
média, ou seja situações de uma forma ou de outra
excepcionais, eliminando os valores que constituam um
evidente desvio, os resultados poderiam ser bastante
diferentes e contribuir para um maior nivelamento. Em
termos estatísticos alguns resultados anormais
facilmente resultam numa distorção do estudo e podem
levar a uma análise errada ou pelo menos pouco realista
e a resultados ou conclusões pouco precisos.

197
A minha pequena vida

Tenho a certeza de que se efectuassem estas alterações


ao estudo, a minha futura escola estaria em primeiro
lugar e eu seria uma pequena gatochinha orgulhosa
quando a frequentasse.
2003-09-29

Já várias vezes ouvi falar da moda dos “blogs”, esses


diários que se publicam na Internet com críticas,
comentários, ideias pessoais e o que mais passar pela
cabeça de quem escreve. Para mim nem é difícil, sou
esperta e ladina, rápida a escrever e ideias originais é
coisa que não me falta.

Mas sinto que o Mundo ainda não está preparado para


acolher as minhas ideias. Pelo menos as mais
revolucionárias e muitos foram or profetas que acabaram
mal. Sendo eu pequenina e frágil e pouco protegida pela
lei é melhor continuar a ser discreta enquanto espero
pelo reconhecimento público.

Mudando de assunto, se hoje houve algo que me chocou


foi a suspenção de duas enfermeiras que deixaram um
doente a seu cargo sufocar até à morte sem qualquer
assistência, após horas de dores e sobretudo de uma
horrível tortura enquanto esperava por um destino que
parecia cada vez mais inevitável.

Um ou dois anos de suspensão não é nada para quem


demonstrou uma tão grande falta de qualidades morais e
a mais completa inépcia para o exercício de uma
profissão que exige tantas responsabilidades. Se existe
uma medida de expulsão, esta estará reservada para
quê? Será necessário deixar morrer quantas pessoas até
que seja aplicada ou é tal a falta de enfermeiros que até

198
A minha pequena vida

estas são de reaproveitar? As ordens sempre foram


particularmente corporativas e a maioria não entende
que medidas disciplinares que aparentem ser injustas
diminuem a sus própria credibilidade e a da classe
profissional que é suposto defenderem.

Para além desta sanção profissional torna-se necessária


uma medida penal pelo crime praticado. Se abandonar
um ferido na berma da estrada sem lhe prestar socorro,
pode ser motivo de prisão para o cidadão, quanto mais
não será para quem tem efectivamente essa obrigação.
Imaginemos que chegava uma ambulância e o
socorrista, após uma avaliação rápida e descuidada
considerava que não havia motivo para socorrer a vítima
e apenas o fazia numa segunda viagem, após um novo
pedido de socorro, o qual infelizmente chegava
demasiado tarde. É do senso comum que o castigo a
aplicar seria exemplar e poucos perdoariam se assim
não fosse, portanto como proceder com estas
enfermeiras que apenas podem justificar a sua acção
apenas pela mudança de cenário?

Mais uma tragédia que não podemos esquecer e vamos


ter que acompanhar atentamente. Se não aprendermos
com estes casos e os usarmos como exemplo foi apenas
uma morte em vão.

2003-09-30

Hoje é o último dia de Setembro e a hora ainda não


mudou. Não que me faça muita diferença, porque eu
durmo dezasseis horas por dia e não faço grandes
distinções entre o dia e a noite em termos de sono

199
A minha pequena vida

porque qualquer hora é boa para dormir, mas preocupa-


me o número de pessoas que vêm nisto uma situação
complicada, sobretudo por terem de ir para o trabalho
em plena noite ou acordarem filhos pequenos quando
ainda deviam estar a dormir.

Tem sido utilizado o argumento de que é para


harmonizar a nossa hora de Inverno com a da Europa
Central, facilitando negócios e contactos comerciais, mas
desfazando-a ainda mais do fuso horário dos Estados
Unidos. Para além dos óbvios incómodos para muitos,
uma hora de diferença em relação aos nossos parceiros
europeus é de certa forma compensada por uma hora a
mais para contactos com empresas americanas.

Mesmo os empresários, que deveriam ser os grandes


beneficiados com a medida, se têm oposto. Se por um
lado as vantagens não me parecem decisivas, por outro
podem levantar problemas e inconvenientes aos
funcionários das empresas, levando a uma queda de
rendimento dos mesmos.
Enfim, uma ideia que já foi explorada há uns anos atrás,
curiosamente também por um governo do PSD que
esteve por cá antes de eu nascer, e que foi abandonada
por um governo PS em busca de alguma popularidade
adicional. É curioso que após o rigor algo desumano
venha um facilitismo demagógico, mas o nosso próprio
fuso horário parece ser mais uma questão de afirmação
política do que uma opção económica que venha
melhorar a produtividade do país e em última instância
melhorar a vida dos portugueses no futuro.

2003-10-01

200
A minha pequena vida

Uma chuvada valente e logo me surge a frase “Portugal


não sabe nadar, yohoo”, como naquela canção rap. São
inundações, acidentes de trânsito, estradas bloqueadas,
aluimentos de terras e tudo o mais que se pode
imaginar.

Esta situação repete-se todos os anos e parece que de


cada vez é uma surpresa, algo de tão completamente
imprevisível que nem vale a pena considerar nas
estatísticas. É tão díficil de prever como o fim do mundo,
pelo que o melhor é gastar os recursos que podiam ser
utilizados na prevenção noutras áreas.

É o equivalente de Inverno aos incêndios de Verão, uma


inevitabilidade que só é surpreendente para os nossos
políticos ou governantes que utilzam os argumentos
mais abursdos para justificar a falta de prevenção.
Desde a antecipação da época das chuvas ao
aquecimento global, é o vale tudo da irresponsabilização
crónica que afecta este país habituado a uma certa
improvisação e ao esquecimento fácil.

Muitas das vítimas obviamente também são cúmplices,


desde os que conduzem mais depressa do que o
imposto pelas condições atmosféricas aos que deixam
entupidas as sargetas, passando pelos que constroem
nas linhas de água e se surpreendem com as
consequências, outras estão completamente inocentes,
porque confiaram nos serviços e entidades responsáveis
e acreditaram que estas tomariam as medidas
necessárias para evitar situações complicadas.

201
A minha pequena vida

Mas o que é indesmentível é que neste país a culpa


morre solteira, às vezes a responsabilidade passa para
as seguradoras que tudo fazem para se esquivar, mas
em termos políticos poucas vezes se tenta apurar quem
devia ter tomado medidas preventivas e não o fez.

Mesmo sendo a favor da estabilidade governamental,


acho que este Inverno inundado que se segue a um
Verão quente vai fazer algumas vítimas entre a nossa
classe dirigente. E desta vez não se vai ficar por um
director geral que faça afirmações mais ou menos
infelizes, algumas cabeças ministeriais vão rolar no
cadafalso da política.

2003-10-02

Consta que os advogados de defesa dos arguidos


implicados no escândalo da Casa Pia já apresentaram
um total de quarenta recursos. Parece impossível mas é
verdade, quatro dezenas de protestos de vária ordem
dos quais apenas três tiveram sucesso.

Se isto fosse um desporto podiamos estar a falar de uma


cabazada, mas neste caso a situação é completamente
diferente. A defesa apenas tem que ganhar no fim, pode
ir perdendo durante o jogo todo e apenas marcar no
final. Por outro lado, também pode ir adiando até que
termine o tempo sem que a Procuradoria consiga
marcar. Caso os recursos impeçam o despacho de
pronúncia no prazo máximo previsto, os arguidos têm
que ser libertados que a acusação seja formulada.

202
A minha pequena vida

Provavelmente é esta a estratégia da defesa nesta altura


em que se aproxima o prazo limite para have uma
acusação, forçando à libertação dos arguidos
independentemente das provas recolhidas pelo
Ministério Público. Não é a estratégia mais agradável,
parece que é mais importante ganhar na secretaria do
que no campo, embora seja indiscutível que foram
cometidos diversos erros processuais que tendem a
prejudicar os arguidos. Como já não estamos na época
da Inquisição estão inocentes até prova em contrário, o
que é sempre um problema quando os advogados de
defesa são bons profissionais.

Felizmente tenho o Manual dos Inquisidores, onde existe


um genuino código de processo penal que resolveria
todos estes pequenos problemas processuais,
permitindo aos juizes uma liberdade que facilmente
permite encontrar alguns culpados.

2003-10-03

Não tinha dúvidas de que a entrada na Faculdade de


Medicina da filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros,
sem obedecer aos critérios legais e com a intervenção
pessoal do Ministro responsável ia acabar mal. Era mais
do que óbvio que alguém tinha que ser sacrificado e
infelizmente tal sorte calhou ao Ministro Pedro Lynce,
distinto académico que merecia melhor destino.

Tal como se costuma dizer, à mulher de César não basta


ser honesta, é preciso parecê-lo, e o mesmo acontece
com os políticos. Sem por em causa a honorabilidade do

203
A minha pequena vida

ex-Ministro da Cultura ou as suas boas intenções,


espanta-me uma tal ingenuidade política.

Não é preciso fazer um grande esforço intelectual para


saber que esta história viria a público, sobretudo porque
estamos a falar de pessoas conhecidas, de um curso
onde é dificil entrar e de um País onde as invejas e os
recalcamentos rapidamente levam à denúncia destas
situações.

Mas afinal do que é que estavam à espera? Que


ninguém, desde alunos não colocados até jornalistas,
passando por funcionários, telefonasse a um jornal ou
televisão para alertar para uma situação menos
transparente?

Já estava a imaginar um despedimento trágico, com o


ex-Ministro à espera do automóvel oficial que não
aparecia ou que arrancava no último momento antes de
ele entrar. Via-o a chegar confuso ao Ministério e a
segurança barrar-lhe a entrada ou a perceber que tinham
mudado a chave do gabinete. Passou-me um pouco de
tudo pela cabeça, sempre com a certeza de que o
Ministro em questão ia sair do Governo e assumir as
suas responsabilidades nesta infeliz situação.

Mais dúvidas tenho que um fragilizado Ministro dos


Negócios Estrangeiros o faça por vontade própria.
Talvez com algum estímulo por parte do Primeiro
Ministro se decida a ser coerente como foi o seu colega
de Governo.

Finalmente penso em quem originou tudo isto, que se vê


numa infeliz situação e provavelmente vai estudar para o

204
A minha pequena vida

estrangeiro. Tenho pena dela porque vai ser a mais


prejudicada e a que tem menos culpa. Se a familia fosse
previdente tinha-a deixado estudar em Espanha este
último ano e beneficiaria da excepção cuja evocação
levou a todo este escandalo. Em vez disso, para
frequentar um ano em Portugal, provavelmente vai-se
formar num país estrangeiro. Exactamente o contrário do
que fazem outros diplomatas na mesma situação do
Ministro dos Negócios Estrangeiros, o qual mesmo não
estando directamente envolvido, não escapa incólume
em termos políticos e demonstra uma desastrosa falte de
planeamento me termos familiares. Pobre Diana, que
merecia melhor sorte e um pai mais atento.

2003-10-04

Tanta droga a chegar à costa alentejana, diante dos


olhares ávidos e gulosos dos verdadeiros apreciadores,
mantidos à distancia por um feroz destacamento de
guardas. Nem quero imaginar o que eles pensam da
mais do que inevitável destruição de tantos quilos
daquela estranha erva, que tanto custa a comprar e pela
qual estão dispostos a fazer todo e qualquer sacrifício.
Pelo menos agora já sei que há vários tipos de erva e
que a minha é diferente. Penso que seja uma versão
específica, apropriada para alguém pequenino como eu.
Disseram-me que a erva que agora foi apreendida de
certeza que me fazia mal, tal como faz a toda a gente,
mas provavelmente aqueles apreciadores não gostam da
que eu como.

Mas o caso do dia foi o assalto a um banco realizado por


jovens universitários aparentemente a cumprir uma

205
A minha pequena vida

praxe académica. Fiquei espantada com isto. Mas afinal


que curso é que estas criaturas acéfalas pretendem
seguir? Eventualmente o Curso Superior de Técnicas de
Ladroagem, com uma pós-graduação no
Estabelecimento Prisional de Lisboa. Enfim, uns cinco ou
seis anos de vida dedicados a uma genuina
especialização que os prepare para enfrentar o futuro
num mercado aberto e cada vez mais competitivo.

Tiveram a sorte de a nossa Polícia ser calma e


ponderada e não ter decidido resolver o problema a tiro,
o que após verificar que estavam diversos funcionários e
clientes supostamente em perigo podia justificadamente
ter sucedido. Noutros países o desfecho seria
provavelmente trágico não só para os participantes na
praxe como também para os restantes envolvidos, muito
especialmente para os polícias que tivessem alvejado
aqueles dispensáveis génios universitários.

Para todos os efeitos, espero que pelo menos sejam


acusados de assalto com tomada de reféns e associação
criminosa, o que lhes deve valer uns bons anos de
repouso, os suficientes para fazerem o curso a que se
propõe a expensas do Estado e longe de aventuras
perigosas. No fim até ficam a ganhar, em vez de terem
de se sustentar, o Estado através dos Serviços
Prisionais vai-se encarregar disso e os parcos
rendimentos que vão auferir permite-lhes solicitar um
subsídio para pagar as propinas. Enfim, estes pequenos
criminosos sem o saberem planearam bem o seu futuro
universitário, conseguindo transferir para o Estado a
totalidade dos seus encargos. Se era este o plano, então
parabéns, a nossa juventude é muito mais inteligente do
que muitos querem acreditar.

206
A minha pequena vida

2003-10-05

Mal empregado feriado a calhar a um domingo. Hoje


comemora-se a implantação da República, uma estranha
revolução feita, segundo dizem, quase à revelia do povo
e onde participou um dos meus familiares, o almirante
Mendes Cabeçadas. Infelizmente não cheguei a
conhecê-lo porque ainda sou muito novinha e ele já
faleceu há alguns anos, mas talvez ainda venha a ser
apresentada ao actual almirante que tem o mesmo
nome. Sempre é útil conhecer quem manda nas forças
armadas, pelo menos para evitar ir parar à Marinha.
Detesto água e mesmo dentro de um navio devia entrar
em pânico.

Mas passemos a algo de mais importante, que a minha


ida para a Armada não pode acontecer nos próximos
doze anos. Para espanto de muitos, o Juiz Rui Teixeira
recusou ouvir Carlos Cruz por altura da revisão da prisão
preventiva alegando que não havia novas provas
relativamente ao seu caso individual. Por princípio
parece-me aceitável, mas o que está verdadeiramente
por detrás é não o facto de haver novas informações,
mas de o arguido aceder às que existem e não lhe foram
reveladas.

O segredo de justiça é absolutamente essencial nesta


fase, determinante para o sucesso da investigação e o
equilibrio entre o que pode ser revelado sem por em
causa o trabalho dos investigadores e o direito que o
arguido tem a uma defesa é por vezes difícil de alcançar.
Neste caso, com uma longa prisão preventiva por um
lado, e com a possibilidade de arguidos com uma

207
A minha pequena vida

conhecida influencia na sociedade e na política,


apoiados por uma boa equipa de advogados do outro
lado, ainda é mais difícil. No entanto existem normas e
acima de tudo deve-se jogar claro e segundo as regras.
Dizer a um arguido que cometeu um crime durante os
últimos anos, balizando-o apenas pelo facto de não estar
prescrito, algures na zona centro ou sul do País, e que e
se repetiu algumas vezes, sem precisar o suficiente para
que este faça uma pequena ideia e comece a organizar,
se possível, a sua defesa, é algo exagerado.

Vamos a ver se alguns direitos são respeitados, mas se


em contrapartida a defesa não utiliza meios algo
dúvidosos, como o célebre “blog” do “Mais Mentiroso” ou
documentos desaparecidos da Casa Pia aos quais não
tem qualquer direito e cuja admissibilidade em
julgamento é no mínimo duvidosa.

2003-10-06

Noutro país estariamos a apostar se o julgamento do


Carlos Silvino sempre começa amanhã ou não. Caso o
protaganista continue a colaborar com as investigações
sempre é agraciado com um adiamento e talvez tenha a
possibilidade de ser julgado em conjunto com os
restantes arguidos. Caso contrário, e se for o primeiro,
vai ser ele a sustentar o primeiro embate e a ficar com a
maior parte das culpas e a pena mais pesada.

Seja como for, nunca há soluções ideais, ou se permite


que ele continue e falar e a colaborar e parece injusto
não ser acusado, ou se prossegue com o julgamento e

208
A minha pequena vida

na falta dos testemunhos e informações que só ele


conhece muitos podem escapar impunes.

Eu adiava o julgamento, quer ele falasse ou não, e caso


ficasse calado fazia “bluf” e dava a entender que estava
a colaborar. Tem várias vantagens, desde o facto de
criar uma enorme pressão para o próprio, que sente o
perigo de estar a colaborar sem as vantagens de o fazer,
até à intimidação de outros arguidos e potenciais
envolvidos, os quais poderão imaginar que estão a ser
investigados e incriminados.

Não há dúvida de que, colaborando ou não, o “Bibi” pode


ser muito útil desde que correctamente utilizado. Num
país em que as fugas de informação são norma, um
telefonema para um jornal ou televisão, um rumor que
circula e é toda uma enorme agitação que se cria,
levando às reacções mais precipitadas e incriminadoras.

É preciso jogar com as armas disponíveis numa país


onde quase tudo é permitido a todos menos aos
investigadores, sob pena de as provas não serem
válidas em tribunal. Agora pode-se sempre dizer “o Bibi
disse” enquanto se olha nos olhos do suspeito e se
exclama “eu sei tudo”

2003-10-07

Se os nossos políticos vissem a velha série “Sim, Senhor


Ministro” ou “Yes, Minister” certamente iriam aprender
muito sobre as manobras de bastidores e acerca de
quem realmente manda nos gabinetes. Quando
confrontados com funcionários de carreira, gabinetes de

209
A minha pequena vida

consultores e acessores e demais adjuntos e adidos, os


ministros na verdade pouco podem fazer excepto confiar.
E claro que nem sempre estão a confiar nas pessoas
certas, mesmo que se trate de conhecimentos de longa
data ou até de amigos de infância.

Exemplo de que não se pode confiar é o do ex-ministro


Pedro Lynce, que cada vez mais parece ter sido traido
pelo seu antigo chefe de gabinete a quem o Ministro dos
Negócios Estrangeiros oferecera um lugar idêntico, como
se de uma transferencia de clube se tratasse. Tudo ruiu
no dia em que se soube do escândalo da admissão da
filha do Ministro, impossibilitando a efectivação da
admissão, o que para muitos pode parecer o fim de uma
negociata em que uma das partes não cumpriu o
acordado.

Mas o Comandante bem se esforçou. Pediu por duas


vezes que a lei fosse alterada, escondeu o parecer do
gabinete jurídico do próprio Ministro e tratou
directamente com o Director Geral do Ensino Superior
sem dar conhecimento ao seu superior. Basicamente,
violou o dever de lealdade, facto particulamente grave no
caso de um funcionário superior e de um militar, tentou
manipular informações e obter favores sem prestar as
necessárias informações a quem, em caso de haver
responsabilidade política ou ilegalidade, iria arcar com as
consequências. Dito e feito, não só não foi para os
Negócios Estrangeiros como fez cair o Ministro que lhe
dera o seu actual cargo.

Em termos teóricos e sem qualquer ofensa pessoal, é o


que eu chamo um estúpido. É uma pessoa que
consegue prejudicar outros, neste caso várias pessoas e

210
A minha pequena vida

o próprio Governo, sem obter um benefício para sí


próprio. Aliás, consegui também prejudicar-se ele
mesmo, dado que perdeu o seu lugar de chefe de
gabinete, o que demonstra que é duplamente estúpido.

Parabéns Comandante! Poucos conseguiram um tão


grande desaire em tão curto espaço de tempo e sem
benefícios para ninguém Nem sequer se pode dizer que
beneficiou a oposição, incapaz de tirar partido de todo
este descalabro e que prejudica todos os políticos e o
próprio sistema democrático em que vivemos.
Esperemos pois pela próxima intervenção do Presidente
da República, transformado numa espécie de bombeiro
do regime, e pela tentativa de apagar mais esta triste
recordação. Que isto pelo menos sirva de lição prática
de que não é possível enganar toda a gente o tempo
todo.

2003-10-08

Quando vi a fotografia da Dra Teresa Patricio Gouveia


no início do noticiário os poucos mililitros de sangue que
correm nas minhas veiazinhas até gelaram. Só depois
ouvi que fora nomeada Ministra dos Negócios
Estrangeiros e que a notícia não tinha a ver com alguma
situação mais desagradável e irreversível.

Confesso que me apanhou de surpresa, pois estava à


espera que fosse nomeado um diplomata de carreira,
mas acredito que tenha sido uma boa solução. Como já
ouvi dizer, escolhe-se alguém que é consensualmente
bem visto, honesto e de uma reputação inatacável,
capaz de fazer esquecer tão depressa quanto possível

211
A minha pequena vida

um ex-ministro que saiu deixando um rasto de dúvida e


levantando questões de falta de seriedade ou de
aproveitamento do cargo em benefício próprio.

Se tivermos em conta que por detrás de um ministro


existe uma numerosa equipa que lhe dá o suporte e
assegura a continuidade necessária, e que o actual
Primeiro-Ministro tem experiência prévia nos Negócios
Estrangeiros e pode dar apoio e uma orientação, a
escolha de alguém com menos experiência pode ser
compensada pelas qualidades humanas da pessoa em
causa.

Ao contrário de nós, pobres Portugueses, outros há que


se preocupam menos com a reputação e as qualidades
dos políticos e são capazes de eleger alguém com base
na fama e nalguns desempenhos mais ou menos
duvidosos. Estou a falar do ex-austríaco Arnold
Shwarzneger, recém eleito governador da Califórnia. O
único argumento a seu favor é o de que as coisas já não
podem piorar. Com o Estado na bancarrota, com perda
de empregos, de receitas, impossibilidade de pagar a
funcionários, com uma economia à beira do caos, não foi
difícil identificar o antigo governador como o grande
responsável pela situação calamitosa do Estado e
derrotá-lo com alguma facilidade.

Agora vamos assistir ao desempenho do Exterminador


num novo papel, para o qual não tem qualquer tipo de
qualificações ou de experiência, à frente de um Estado à
beira do caos, sem poder utilizar a táctica habitual de
resolver todos os problemas a tiro, no meio de uma
infinidade de ilusões e de efeitos especiais. É esperar

212
A minha pequena vida

para ver, mas parece-me que estamos a começar a


assistir ao “Exterminador 4 – Sem rei nem roque”.

2003-10-09

A libertação do Paulo Pedroso caiu como uma bomba


nos meios políticos e judiciários deste país. Embora a
decisão do Tribunal da relação não fosse surpreendente
dada a evidente falta de provas e os pressupostos mais
ou menos duvidosos que levaram a uma prisão
preventiva difícil de justificar, uma decisão que vem
classificar de ilegal uma prisão preventiva que dura há
mais de quatro meses e para a qual um recurso tinha
sido invalidado por questões técnicas e processuais põe
em causa certos métodos da justiça em Portugal.

Por um lado torna-se evidente que quem não tem


recursos, quer económicos quer outros, para levar a sua
situação até instâncias superiores dificilmente terá as
mesmas oportunidades de defesa que as deste arguido.
Infelizmente a igualdade do cidadão perante a lei cai por
terra por razões meramente processuais. Quem não tem
possibilidades para recorrer sucessivamente de decisões
que em muitos casos são evidentemente injustas,
desiste da corrida antes de poder chegar à meta,
perdendo não por falta de razão mas por falta de meios.

Por outro lado, o segredo de justiça, embora necessário,


continua e negar aos arguidos a possibilidade de se
defenderem antes de formulada a acusação, sendo que
em muitos casos o simples facto de saberem de que
estão acusados permitiria apresentar provas capazes de
o ilibar mesmo antes de chegar a julgamento. Este

213
A minha pequena vida

parece ser mais uma situação em que tal aconteceu e


apenas por desconhecimento não foi possível
demonstrar a impossibilidade da prática do crime de que
era acusado. Basicamente, gasta-se dinheiro do
Ministério Público, prejudica-se gravemente e às vezes
irreparavelmente o arguido, e tudo isto em nome de um
conjunto de normas processuais aplicadas de forma
inflexível e prejudicial em relação aos objectivos finais de
apuramento da verdade.

Não basta dizer que é o sistema a funcionar. Após


meses de prisão preventiva, a parca consolação de
saber que o sistema funcionou não é reparadora de um
trauma que irá perdurar para sempre.

2003-10-10

Ainda bem que o Governador de Bragança decidiu


oferecer prémios ou incentivos pelo “exercício da
cidadania” que se traduzam na prisão de incendiários.
Afinal sempre abriu as portas a uma velha profissão
agora renovada, a de caçador de prémios, já que a
expressão caçador de cabeças pode parecer algo
agressiva.

Num momento em que o desemprego cresce, sabendo


que as forças de segurança não conseguem perseguir e
capturar todos os incendiários, quando a própria
Associação Nacional de Bombeiros preconiza o uso de
machados na resolução deste problema nacional, a
iniciativa deste Governador vem ao encontro das
expectativas de numerosos sectores da vida nacional.

214
A minha pequena vida

E afinal, o que são 2.500 euros por cada incendiário


capturado quando comparados com os custos dos
incêndios provocados pelos mesmos ou se fizermos
contas aos custos de uma operação policial para obter
resultados algo improváveis? Temos aqui um prémio em
função dos resultados apresentados, com baixo custo
para o erário público e que vai entreter todos os nossos
candidatos a polícias e a detectives durantes uns
tempos.

O principal inconveniente é se a moda pega e


começamos a ter metade dos protugueses atrás da outra
metade. Imaginemos que a EMEL tinha a mesma ideia e
premiava as denúncias de automóveis indevidamente
estacionados. Metade da população de Lisboa saia à rua
para ganhar umas moedas, o que se por um lado seria
uma enorme economia de custos de operação da EMEL,
que poderia dispensar os seus fiscais, por outro iria
provocar uma situação de permanente conflito nas zonas
em que esta nova actividade fosse exercida por uma
turba pouco criteriosa, dificilmente objectiva e de
autoridade duvidosa, apenas ansiando pelo pagamento
dos prémios.

Num estado democrático o uso destes recursos, como o


arregimentar de pseudo polícias auxiliares pode
rapidamente levar aos maiores abusos e a um rápido
descalabro da ordem pública agravando problemas e
tensões e permitindo toda a espécie de ajustes e acertos
de contas pessoais através do recurso a meios pseudo-
legais.
2003-10-11

215
A minha pequena vida

Queiramos ou não a visita do Paulo Pedroso ao


Parlamento acabou por se tornar num dos casos mais
polémicos da semana. Uma benção para um Governo
ansioso por fazer esquecer o lamentável episódio dos
favores e das demissões que subitamente viu o facto
político mais importante da semana ser obscurecido por
uma intempestiva e irreflectiva visita.

Mais uma vez se vem demonstrar a falta de facto político


do actual líder do Partido Socialista, que em vez de
capitalizar os desaires governativos, decidiu-se por uma
infeliz manobra mediática com a qual apenas conseguiu
salvar o Governo enquanto atraia sobre sí uma chuva de
críticas por parte dos mais diversos sectores políticos.
Nada que nos espante ou que fuja à normal actuação do
PS, aparentemente ansioso por fazer mais um favor à
Maioria do que em líderar a Oposição.

Para além da óbvia falta de oportunidade polítca que o


próprio Paulo Pedroso implicitamente reconheceu, o
empolamento do significado jurídico também veio
aumentar a confusão no meio político e partidário, onde
há quem veja nesta libertação uma quase absolvição,
uma redenção de todas as culpas e o fim de uma
completa injustiça, confrontando-se com quem apenas
vê uma mera alteração da medida de coação de um
ainda arguido.

Mais grave ainda, trimestralmente esta medida pode ser


revista e nada impede que o Juiz Rui Teixiera volte a
decidir-se pela prisão preventiva, originando uma
lamentável situação de entra e sai que seria muito mais
desgastante politicamente do que permanecer preso.

216
A minha pequena vida

Lamentável mesmo é a agora evidente pressão política


sobre os meios judiciais, e se antes esta era duvidosa e
reduzida a alguns telefonemas, agora, e após o
lamentável episódio da invasão do Parlamento e da
aclamação pública de um ainda arguido por parte da
classe política, torna quase só por sí justificavel a
adopção da medida de coação mais gravosa agora
revogada.
2003-10-12

No fim de semana os acontecimentos desportivos tomam


sempre alguma primazia e mesmo eu que não
compreendo bem nenhum desporto com excepção da
corrida, com ou sem obstáculos, me sinto algo atraida
por alguns eventos.

Ontem vi a selecção portuguesa vencer um grupo de


pobres albaneses que já antes do jogo eram
considerados quase como os bombos da festa. Uma
equipa fraca, com dificuldades em atacar, segundo
palavras do próprio selecionador nacional, que
aparentemente precisa de escolher a dedo os
adversários que possam ser vencidos. No fim, depois de
vários golos sofridos e diversas dificuldades, Portugal
acabou por vencer, sem glória e no meio de um concerto
de assobios, uma selecção onde a totalidade dos
ordenados não chega para pagar a uma só das nossas
vedetas.

Talvez seja mesmo esse o problema da nossa selecção,


um enorme número de vedetas cuja importancia a nível
nacional e internacional permite jogar sem fazer grandes
esforços. E quando desafiados e surpreendidos por um
adversário disposto a lutar e correr durante todo o jogo

217
A minha pequena vida

as coisas começam a correr mal, inependentemente das


justificações que se inventem e dos inúmeros elogios de
um treinador cujos resultados começam a não justificar o
chorudo ordenado.

Para uma selecção que é anfitriã de um campeonato


europeu de futebol não se pode dizer que o período de
preparação esteja a ser brilhante e só o facto de Portugal
ser o país organizador permite a uma selecção com
estes resultados a possibilidade de participar.

Como exemplo de esforço, perseverança e um desejo de


vencer quase doentio, tenho que mencionar o primeiro
hexacampião mundial de Fórmula 1. Nunca fui uma
grande adepta do Michael Schumacher, mas tenho de
lhe prestar homenagem no dia de hoje. Se alguém
demonstra o que é vontade de vencer a qualquer custo é
ele e, independentemente de algumas atitudes ou
acções menos felizes, os nossos jogadores deviam olhar
para ele e para o que é uma atitude verdadeiramente
competitiva e a alma de um campeão.

2003-10-13

Já não bastava os danos quase suicidários infligidos pelo


Secretário Geral, agora o PS ainda tem que sobreviver a
um histério disparartar constante da sua Secretária para
as Relações Internacionais, apostada em fazer esquecer
o excelente trabalho realizado como embaixadora de
Portugal na Indonésia.

Para além de disparar em todas as direcções, a Dra Ana


Gomes vai buscar um artigo do Le Monde que menciona

218
A minha pequena vida

a existencia de pedófilos no Governo para exigir um


inquérito por parte da Procuradoria Geral da República.
Como se um artigo, pelo simples facto de estar assinado,
pudesse justificar um inquérito. Quando muito, poderá
servir de base a um processo por difamação, dado que
quer em Portugal quer em França é a quem acusa que
cabe o ónus da prova. Não é ao Governo que cabe
provar que não existem nele quaisquer pedófilos, que
segundo consta seriam dois ministros.

Também os comentários feitos em relação ao Dr José


Lamego, um colega de partido a quem o PS muito mais
deve, e por este caminho muito mais deverá, do que à
Dra Ana Gomes, são ofensivos e lamentáveis. A simples
sugestão de que seria pago por interesses comerciais ou
pelo governo americano e não pelo Estado português
corresponde a uma acusação de trabalho mercenário,
apenas com o lucro em vista e contrário aos interesses
nacionais e do próprio povo iraquiano.

Admitamos que existe falta de legitimidade à


administração provisória do Iraque, podemos mesmo ir
mais longe e dizer que serve sobretudo os interesses da
coligação, mas tal não invalida que não possa vir a
desempenhar um papel importante na transição para um
Iraque livre e que qualquer colaboração feita nesse
sentido e com este espírito deve ser contrariada.

A falta de objectividade e a mesquinhez com que se


ataca quer adversários políticos quer companheiros de
partido são um péssimo contributo para os interesses do
PS e para o esforço que alguns militantes, mesmo que a
título individual e sem a concordância da direcção do
Partido, tentam fazer, correndo os riscos inerentes a uma

219
A minha pequena vida

permanência num país em guerra animados pelo desejo


de contribuir para um futuro melhor para o povo
iraquiano.

2003-10-14

Hoje a minha mamã adoptiva foi dar sangue. Ou melhor


tentou dar sangue porque não a deixaram alegando um
valor baixo de uma coisa a que chamaram de
hemoglobina. Nem fazia ideia que tal coisa existia, para
mim sangue é um liquido vermelho, mais ou menos
uniforme, e que só aparece quando um gato me arranha.

Acho que é importante dar sangue, que muita gente


precisa dele quando se mata nas estradas ou nos
acidentes de caça, mas aquele sangue é diferente do
meu e se eu tiver um acidente não me serve para nada.
Seja como for, para os humanos bípedes é importante e
num país em que a irresponsabilidade é permitida e as
pessoas se podem matar impunemente está sempre em
falta.

Agora até os loucos a quem dantes se cassava a carta


de condução a podem conservar se aceitarem passar
dois dias a falar com um psicólogo que tentará identificar
as razões pelas quais uns são loucos, outros
inconscientes a a maioria reles criminosos.

Mas agora mesmo os criminosos podem voltar a


conduzir após catorze horas de conversa fiada,
normalmente inconsequente dado que a larga maioria
são reincidentes. Parece quase um misto de absolvição

220
A minha pequena vida

e de perdão social, ilibando-os das maiores enormidades


que se podem cometer atrás de um volante.

Sempre fui partidária de que o exame psicológico devia


ser obrigatório para tirar a carta de condução, para a
própria inscrição na escola antes da frequencia de
qualquer lição, e uma nova avaliação devia ser feita
antes do exame, eventualmente com o próprio candidato
a conduzir.

Após uma infração que justifique perder a carta, o


prevaricador deve cumprir o castigo, ou seja passar o
tempo determinado por lei sem conduzir, após o que
para voltar a ter o privilégio de conduzir, que não
podemos confundir com um direito, devia ser novamente
avaliado e só no caso de ser novamente considerado
apto poderia voltar a ter carta.

Infelizmente o maior problema em termos de condução


não é a falta de capacidade técnica, é a
irresponsabilidade e a falta de civismo, que não é
normalmente determinada pelas escolas de condução,
mas que deveria ser o primeiro factor para autorizar
alguém a conduzir.

Tal como as coisas estão, nem todo o sangue do Mundo


pode evitar uma tragédia.

2003-10-15

Após a libertação do deputado Paulo Pedroso chegou a


vez do Tribunal da Relação pronunciar-se sobre o Dr.

221
A minha pequena vida

Rui Marçal e decidir-se pela ilegalidade do interrogatório


que levou à sua prisão preventiva.

Deve espantar qualquer pessoa o facto de ser possível


manter alguém preso durante meses sem que o
interrogatório que serviu de base não tenha sido
efactuado segundo as regras constitucionais, que
apenas após numerosos recursos se conclua algo que
devia ser óbvio num estado de Direito, ou seja que quem
é preso tenha que ser informado das razões concretas
que levam a uma decisão tão gravosas quanto é a
privação da liberdade, e que uma formulação genérica,
sem precisar datas, locais ou intervenientes, por não
permitir uma defesa eficaz não deve sequer ser
contemplada por um juiz.

É óbvio que as testemunhas têm que ser protegidas e


que do interrogatório não podem constar dados que as
ponham em perigo ou numa situação de exposição que
possa vir a influenciar o seu testemunho, mas por outro
lado o direito à defesa não pode ser questionado.

Lamentável mesmo é o adiamento das inquirições para


memória futura, as quais permitiriam que as
testemunhas, após cumprir o seu papel, pudessem
seguir o seu caminho longe de influencias e de ameaças,
sem serem pressionadas no sentido de alterar as suas
declarações. Infelizmente vários advogados optaram por
inviabilizar esta opção, pelo menos temporariamente,
pelo que cada vez mais a Justiça surge como um
estranho jogo de bastidores, onde se tenta utilzar cada
norma para obter uma vantagem mesmo que a isso não
corresponda uma efectiva aplicação da justiça.

222
A minha pequena vida

Também não me posso esquecer de que poucos são


aqueles que podem ir obstruindo a Justiça, utilizando
para tal todos os recursos e inclusivé as artimanhas de
que uma dispendiosa equipa de advogados experientes
é capaz para levar a uma situação quase impensável
como a de impossibilitar a pronúncia dentro dos prazos
legalmente estabelecidos. Se ninguém pode por em
questão que cada arguido deve ter direito à melhor
defesa possível, também não podemos deixar que essa
defesa impossibilite a acusação de perseguir criminosos,
beneficiados pelas possibilidades de que só os ricos
podem podem usufruir e negando o princípio básico de
que a justiça é, constitucionalmente, igual para todos. E
se alguém, sem possibilidades económicas, exigir do
Estado advogados da mesma categoria, pareceres
jurídicos elaborados pelos mesmos distintos
especialistas e um acompanhamento semelhante aos de
vários arguidos deste processo, alegando o direito que
tem à igualdade perante a Justiça? Pagará o Estado
para que um preceito constitucional seja efectivo ou
deixará que um advogado oficioso defenda na medida do
possível quem não tem possibilidades de pagar os
mesmos serviços a que apenas uma muito pequena
parte da população pode almejar?

Espero que um dia destes o Tribunal Cosntitucional


também se pronuncie sobre esta questão e permita que
os cidadãos sejam efectivamente iguais perante a lei.

2003-10-16

Todos os jornais falam dos tais três minutos de


liberdade, enquanto o Dr. Hugo Marçal viu o seu

223
A minha pequena vida

interrogatório e consequente prisão ser considerado


ilegal pelo Tribunal da Relação e a ordem de detenção
para interrogatório para que o processo se repita. Não se
pode dizer que tenha sido muito tempo de liberdade,
sobretudo porque não chegou sequer a dar uma voltinha
como homem livre, mas a Justiça tem alguns caminhos
verdadeiramente insondáveis.

Mesmo assim foi melhor do que deixá-lo ir e depois


perseguí-lo de armas em punho para o levar ao Tribunal
de Instrução Criminal. Em certos paises provavelmente
era tratado como um evadido e a recaptura podia acabar
numa tragédia. Aqui, com os nossos brandos costumes
apenas lhe devem ter dado os parabéns por deixar de
ser preso e passar a ser apenas detido. Como se fizesse
muita diferença a quem acabou por voltar a dormir na
mesma cela no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

Mas enfim, tudo está bem quando acaba em bem e o


referido arguido voltou à mesma situação prática com
uma pequena diferença em termos teóricos. Sempre é
uma espécie de promoção até que o Juiz volte a
confirmar a situação anterior.

Portanto temos um homem livre por três minutos que


deixou de ser preso para ser apenas detido por algumas
horas. Tanta variedade e tão pouca diferença se nemo
deixaram atravessar a rua para ir tomar um café em paz.
Agora só nos resta esperar pela próxima reapreciação, o
que provavelmente vai acontecer dentro de três meses,
enquanto os advogados continuam a enviar uma
infindável quantidade de recursos e o Juiz, impedido de
qualquer acto que não seja urgente, os vai adiando até
chegar a altura de serem pronunciados.

224
A minha pequena vida

2003-10-17

Basta mais um seperlativo e um preso preventivo pode


ficar detido à espera de acusação durante mais três
meses. Ao classificar o processo como de “excepcional
complexidade”, o Tribunal da Relação permite ao
Ministério Público dispor de mais três meses até ter que
formular a acusação ou libertar os arguidos.

Esperemos que não inventem mais superlativos, porque


a três meses cada a situação pode prolongar-se
indefinidamente. Mas por outro lado, o facto de os
advogados dos arguidos recorrerem a todos os
expedientes legais para dificultar e adiar a acusação
acaba por justificar uma medida que em última análise
vem prejudicar os próprios arguidos. Caso tivessem
optado por colocar menos entraves seria mais difícil de
justificar um alargamento extraordinário do prazo de
prisão preventiva.

Entetanto o recém libertado e preso Hugo Marçal


continua a ser interrogado. Diz a jurisprudência que
enquanto decorrer o interrogatório, mesmo
ultrapassando as quarenta e oito horas previstas na lei, a
detenção pode ser prolongada, pelo que até posso
antever o Juiz Rui Teixeira a interrogar esta pobre vítima
diariamente só para não se ver na contingência de o
libertar. Basicamente para além de preso é torturado até
confessar qualquer coizinha.

Não há dúvida de que a exaustão é um grande meio


para obter respostas de um arguido particularmente

225
A minha pequena vida

resistente ou evasivo. Desde a antiguidade que o


prolongamento dos interrogatórios, eventualmente com o
recurso a alguns métodos auxiliares, é utilizado para
obter uma verdade que satisfaça a acusação.

Tenho na minha pequena casinha o célebre “Manual do


Inquisidor”, livro que muito prezo como verdadeiro
tratado de direito para os agentes mais convictos, cuja fé
inabalável nos seus ideais lhes permite levar sempre
avante as suas ideias. Nunca consegui obter uma
segunda cópia, mas se o conseguisse, certamente que o
ofereceria com prazer ao juiz deste caso que nele
encontraria novos métodos, práticos e expeditos, para
alcançar toda a verdade e terminar com este longo
suplício em que vivem tantos arguidos que ainda hoje
não sabemos se vão ou não ser efectivamente
acusados.

2003-10-18

Com a libertação do Dr. Hugo Marçal o resultado já vai


em 5-2. Apesar de ainda ir à frente, o Ministério Público
tem vindo a perder pontos para a Defesa, que desde os
antigos 7-0 de há poucos dias já recuperou para a menor
desvantagem de sempre.

Nada que possa espantar muito, mas em contrapartida


algo de muito grave, quando após cinco meses de prisão
preventiva se verifica que os fundamentos não são assim
tão incriminatórios e que com um conjunto de
informações suplementares podem ser efectivamente
rebatidos pela Defesa. Como diria o Presidente da

226
A minha pequena vida

República, é preciso fazer jogo limpo e saber viver num


regime democrático.

Pena que aquilo que muitos chamam de ser o sistema a


funcionar esteja a afectar gravemente as testemunhas,
sobretudo as mais novas, cada vez mais intimidadas
pelas recentes libertações, independentemente da sua
razoabilidade, e com menos confiança na Justiça.

Embora seja um equilibrio muito difícil, o adiamento


sucessivo e os atrasos que se verificaram podem vir a
descredibilizar este processo quase tanto como as
irreflectidas chamadas telefónicas dos líderes socialistas
no dia da prisão do deputado Paulo Pedroso. Se a isto
não se pode chamar uma clara intromissão do meio
político na vida judicial e a uma forma de pressão
inaceitável sobre a Justiça, então só uma proposta
irrecusável de D. Corleone, sem dúvida apresentada de
forma mais discreta e educada, pode ser considerada
como algo ligeiramente à margem da lei.

Tenho de reconhecer que quer os Procuradores, que o


próprio Juiz não foram sempre exemplares, nem
cumpriram permanentemente as regras a que estão
obrigados, mas objectivamente ninguém joga limpo
neste processo. Desde as notícias falsas, à violação do
segredo de justiça, passando pelas inúmeras
especulações jornalísticas, quase tudo tem sido um
franco exemplo de como não deve ser um processo
judicial, com inúmeras falhas quer a nível processual,
quer no encaminhamento a nível da investigação.

Se alguém escrevesse um Código do Processo Penal à


medida deste estranho processo facilmente conseguiria

227
A minha pequena vida

vendê-lo a algumas das ditaduras que ainda resistem no


mundo de hoje ou, caso estas não o adquirissem, podia
transformá-lo numa peça neorealista onde o absurdo e a
ficção se confundem num longo e penoso arrastar de
situações de comicidade duvidosa.

2003-10-19

Se não fosse trágico e ilegal, a violação do segredo de


justiça e a consequente publicação de transcrições de
conversas seria divertido e quase um jogo para a família.

Podiamos fazer adivinhas acerca de quem seria o “Dr.


Lopes” ou o “homem da Pedro Álvares Cabral” entre
tantos outros códigos ineventados pela direcção do PS.
Quem acertasse todos recebia como prémio um
emprego na Polícia Judiciária ou no Ministério Público
onde podria continuar a colocar os seus talentos ao
serviço dos interesses nacionais.

Infelizmente e analizando bem as coisas, isto pode ser


divertido mas não deixa de ser criminoso. As fugas de
informação têm objectivos concretos, quer no sentido de
prejudicar a investigação, quer no de denegrir a imagem
de alguns políticos, muito embora o prestigío da nossa
classe política já dispense este artifício.

Lamentavel mesmo e péssima para a imagem foi a


reacção do PS às transcrições das conversas entre
dirigentes no dia em que o deputado Paulo Pedroso foi
preso. Para além de ser óbvia a tentativa de intreferir no
curso do inquérito e por muito que se possa alegar
estarem fora do contexto, certas frases são só por sí

228
A minha pequena vida

evidentes. Como diriam alguns, são auto explicativas e


não necessitam de mais para serem absolutamente
claras.

O desprezo com que os dirigentes do PS tratam o


próprio segredo de justiça, aliás com uma linguagem
pouco apropriada para ouvidos mais sensíveis como os
meus, permite pensar que o segredo de justiça também
não deve ser relevante ou mantido quando a eles
aplicado. Desta forma, o facto de conversas entre eles
aparecerem publicadas traduz-se numa concordancia
com as suas próprias posições de desvalorizar ou
ignorar o segredo de justiça a ponto de tal não lhes ser
aplicável. Como se diz neste País, pela boca morre o
peixe, ou quem não quer ser lobo não lhe veste a pele,
pelo que é agora indefensável para o PS a defesa do
segredo de justiça quando estão os seus interesses em
jogo.

2003-10-20

Finalmente começam a falar da sucessão. Ainda sem


ninguém avançar, pois isto de querer ser o sucessor
pode parecer uma falta de solidariedade para com o
actual líder, mas os primeiros nomes começam a surgir.
Neste momento ainda sem confirmação dos próprios,
ainda sem informações precisas, mas os nomes
começam a ser lançados para ver se alguém os agarra.

Agora quem é que nesta situação quer agarrar num PS


que vive provavelmente a sua maior crise? Temos
sempre dois extremos, sendo um o dos voluntariosos
suicidas, capazes de tudo fazer por amor ao partido, e o

229
A minha pequena vida

outro o dos autoconvencidos loucos de poder, que


independentemente da sua capacidade para liderar
consideram a liderança um fim em sí e o destino para
que foram talhados.

Infelizmente temo que seja deste último grupo que vai


sair o próximo líder do PS, que alguém sem perfil,
carisma e talvez mesmo sem grandes qualidades morais
e intelectuais, se ofereça como se de um salvador se
tratasse e seja aceite como tal por um partido descrente
e à beira do desespero.

Não vou escrever nomes, embora sejam muitos os que


me passam pela cabeça, mas temo que de algum
almoço ou jantar de homenagem a algum militante mais
ou menos histórico surja a possibildade ou o alvitre de
uma candidatura a secretário geral.

Seria o que em termos populares se chama saltar da


frigideira para cair no fogo. Temo mesmo que poucos
meses depois, após o habitual estado de graça reforçado
pelo alívio de ver partir um secretário geral que levou o
partido a esta lamentável situação, o PS se aperceba de
que está numa situação muito mais complicada do que
actualmente, sem recuperar o antigo prestígio e
deixando a pequenas formações políticas a liderança
efectiva da oposição ao Governo.

Aliás, só faltava o PSD vir manifestar a sua solidariedade


com o actual secretário geral do PS, num esforço por
prolongar este penoso calvário e com isso facilitar ainda
mais uma próxima vitória eleitoral. Esperemos que não
se chegue a tanto, mas no actual estado da política em

230
A minha pequena vida

Portugal, admito que não me iria espantar muito se tal


acontecesse.

2003-10-21

Finalmente o Presidente da República decidiu intervir no


caso da divulgação das escutas telefónicas, nas quais
aparece mencionado para não dizer envolvido,
enquando a Procuradoria se decide por um inquérito e o
PS por um processo judicial.

Parece confuso que um partido cujo próprio líder tem tão


pouca e insultuosa consideração pelo segredo de justiça
venha agora instaurar um processo, provavelmente
contra incertos, sem saber que o tiro lhe pode sair pela
culatra.

É do conhecimento público que dirigentes socialistas


tiveram acesso ao inquérito, incluindo a transcrições das
escutas, e que no fervor de uma luta interna para afastar
um secretário geral que prejudica o próprio partido, pode
ser alguém de dentro a divulgar a informação que hoje é
propagandeada como um atentado contra a democracia
e uma tentativa de assassinato político. Se a primeira
peca por excessiva, a segunda é obviamente impossível;
na verdade já está politicamente morto, apenas não se
apercebeu do seu próprio óbito amplamente divulgado
em toda a comunicação social.

Relativamente ao inquérito da Procuradoria, pouco vai


adiantar excepto manifestar a sua discordância formal
relativamente ao sucedido e instar ao cumprimento de
algumas regras básicas de direito.

231
A minha pequena vida

Resta-nos, pois, o Presidente da República, aquele a


que muitos chamam o último garante da legalidade
democrática, para por a casa em ordem e devolver um
pouco de credibilidade às instituições.

2003-10-22

Após um discurso presidencial louvado por todos, a


guerra segue dentro de momentos, agora com a batalha
entre o bastonário da Ordem dos Advogados e o
Procurador Geral da República devido a uma visita feita
ao primeiro pelo Dr. António Costa e à divulgação que
alguns consideram cirurgica de novas escutas
telefónicas.

Neste momento já não me parece que a cirurgia seja por


parte das fontes da informação mas dos seus
divulgadores, que através de uma manipulação
inteligente conseguem manter o povo português colado
aos aparelhos de televisão aguardando pela próxima
inconfidência. Quem é responsável pela fuga de
informação normalmente liberta-a de uma só vez, a
menos de que esteja certo de não ser apanhado,
enquanto quem a divulga tem uma muito maior
autonomia e pode seguir critérios muito mais comerciais,
capazes de prender o público e aumentar as audiências.

Apesar de todos aplaudirem as palavras do Presidente,


talvez com excepção dos orgãos de comunicação social,
parece que poucos as vão seguir e que inclusivé troca
de correspondência particular vai ser seguida, os
protagonostas serão perseguidos, novas divulgações,
mesmo de dados antigos serão reveladas, e no fim

232
A minha pequena vida

haverá sempre alguém que irá prestar uma ou outra


declaração capaz de inflamar um adversário político e
em consequência arrastar para os olhos do público mais
um lamentável episódio.

Qualquer dia ainda alguém se vai lembrar do célebre


Exame Prévio e limitar a divulgação de notícias cuja
aquisição pode ser considerada como ilegítima, evitando
que os tão badalados segredos de justiça sejam pelo
menos divulgados. E sem poderem ser divulgados,
perdem a carga política que hoje têm e cedo deixariam
de existir. Uma vez que não tenham impacto na opinião
pública, o seu objectivo extingue-se e muito
provavelmente a própria fuga de informações deixaria de
existir. A informação só é útil caso possa ser divulgada
junto daqueles a quem se destina e quando essa
possibilidade deixa de existir o risco de divulgar
informações obtidas de forma mais ou menos ilegítima já
não faz sentido.

Agora duvido que entre os nossos orgão de


comunicação social é possível algum tipo de acordo que
evite a propagação deste proveitoso crime.
2003-10-23

Gostava tanto de poder aproveitar de outra forma as


minhas qualidades de vidente! Já acertei nos primeiros
dirigentes do PS a moverem-se rumo à liderança, agora
só falta prever o resultado da reunião de hoje e se
acertar vou investir o dinheiro de uma lata a jogar ao
Totoloto. Palavra de Gatochy!

Então, deixa-me imaginar o que se vai passar na dita


reunião, onde pela primeira vez os defensores do

233
A minha pequena vida

Congresso e da substituição do actual líder vão ter a sua


primeira oportunidade de falar. Na verdade, tudo vai
depender mais uma vez do actual Secretário Geral, que
numa demonstração de amor ao Partido e de desapego
ao poder, é muito bem capaz de agarrar numa
intervenção de contestação à actual linha para avançar
para uma solução que ponha tudo em pratos limpos.
Portanto, entre esta semana e a próxima, acredito que
se tome a decisão de avançar para um Congresso
Extraordinário.

Esta é a minha previsão, dado que o clima interno não


permite uma actividade política normal, a liderança em
termos políticos não existe, e a incapacidade de descolar
de uma situação que arrasta o partido para um autêntico
pântano já destruiu a confiança dos militantes na actual
Direcção.

Mas não foi só esta a notícia do dia. A teoria da carta


semi-aberta do Bastonário da Ordem dos Advogados é
surpreendente. Se por um lado é de estranhar que uma
carta que lhe é dirigida pelo Procurador Geral da
República seja do conhecimento público, também me
espanta esta reacção algo intempestiva. Este é o País
em que tudo se sabe, onde as cartas são postais,
desprovidas de envelpes fechados, e onde o segredo é
apenas e somente uma figura retórica usada para atrair
a atenção pública para os assuntos mais insignificantes.
Seja como for, depois dos comentários feitos à actuação
do Procurador, era inevitável uma resposta que muito
provavelmente apenas peca por discreta face à
publicidade dada à afronta.

234
A minha pequena vida

Entretanto, e enquanto espero pelas novidades, vou dar


uma voltinha para ir buscar um boletim do Totoloto. Se
acertar nas previsões que fiz, vou tentar a sorte.

2003-10-24

Ainda não foi desta. Talvez para a semana preencha o


meu boletim de Totoloto se for convocado um Congresso
Estraordinário. Continua o adiamento do inevitável,
provavelmente devido à inercia e cumplicidade de uma
estrutura dirigente que, em última análise, depende do
Secretário Geral. Dado que a queda deste implica a
saida de um grande número de dirigentes de cargos a
que estão particularmente apegados, é normal que a
este nível haja um esforço para um prolongar de uma
situação absolutamente insustentável.

Na verdade parece um rei zombie acolitado por uma


legião de carpideiras onde o choro é atribuido às
afrontas de que o rei é vítima e cujos ollhos marejados
de lágrimas não permitem ver que o rei está morto. É um
misto de filme de terror americano e de neorealismo
europeu, que se está a tornar no maior exito de
audiências de sempre em Portugal. No entanto, falta um
elemento essencial, a surpresa quanto ao final, pois por
muitas reviravoltas que o enredo ainda dê, ninguém tem
dúvidas quanto às últimas imagens.

Esperemos que não se sucedam os desagravos


públicos, as manifestações de solidariedade vazias de
sentido, os encorajamentos inúteis e, no fim, os pêsames
algo tardios, quando a morte é anunciada semanas após
ter efectivamente ocorrido.

235
A minha pequena vida

E agora que solução posso eu, uma pequena


gatochynha esperar? Vou continuar a ouvir falar da
famosa urdidura, congeminada pelos mais hediondos
conspiradores cujas identidades só agora começam a
ser reveladas, como a do terrível Moita Flores, conhecido
pelos longos anos de relacionamento íntimo com
criminosos da pior espécie?
Estranhas revelação nos esperam, fruto da mais
delirante imaginação de um espírito perturbado, toldado
pelas emoções de que se vangloria como sendo o seu
melhor capital político, e que poderá estar à beira de um
esgotamento nervoso. Há quem viva num universo
paralelo, que esporadicamente se cruza com a realidade
de cuja interacção resultam acontecimentos espantosos,
cientifica e politicamente inexplicáveis, destinados a
serem colocados junto dos grandes mistérios da
Humanidade.

2003-10-25

Eu sei que muitos detestam este pequeno conto, mas


sendo um misto de fábula e de alegoria, não posso
deixar de lembrar a história do carrasco chinês.

Na China antiga, há muitos anos, viveu um carrasco


conhecido pelo seu perfecionismo. O honrado executor
ambicionava por decapitar o condenado com um golpe
da sua longa e afiada espada que fosse tão perfeito e
tão rápido que a cabeça permaneceria sobre os ombros,
imóvel mas separada do corpo.

236
A minha pequena vida

Durante anos, ao longo de quase toda a sua vida, tentou


atingir o que considerava ser a perfeição no seu trabalho
sem nunca o conseguir pois a cabeça sempre caia.

Um dia, já idoso, diante de um condenado, vibrou o


golpe e aparentemente nada aconteceu. O condenado
olhava para ele fixamente, esperando um golpe que
tardava, e perguntou:

- Nobre carrasco, sei que vou morrer. Porque prolongais


este cruel momento e não me executais prontamente?

O carrasco respondeu fazendo uma vénia,


respeitosamente e em voz baixa:
- Nobre senhor, vós já estais morto, apenas não o
sabeis. Dignai-vos inclinar a vossa cabeça e ela rolará.

O condenado inclinou a cabeça que imediatamente caiu,


rolando pelo patíbulo em madeira, e caiu de seguida.
Morrera sem dar por isso e ninguém, excepto o carrasco,
disso se apercebera.

Para muitos, esta é uma história cruel e desumana, para


mim, é uma fábula que deve lembrar a muitos polítcos da
nossa praça aquilo que se recusam a acreditar, há muito
que morreram politicamente mas enquanto imóveis,
aparentam ainda estar vivos. Apenas quando se
moverem será evidente que há muito estão mortos.

2003-10-26

O ataque de hoje ao Hotel Raschid, em Bagdade, onde


está hospedado o Secretário da Defesa Adjunto dos

237
A minha pequena vida

Estados Unidos, é muito mais do que um simples ataque


terrorista, vem provar que nem os mais altos dirigentes,
nos locais mais seguros e protegidos por todos os meios
disponíveis estão a salvo de um atentado.

Hoje os foguetes falharam o alvo, muito embora tenham


feito algumas vítimas, mas nada garante que numa
próxima tentativa o resultado seja o mesmo. De certa
forma vem provar o que todos já perceberam: não há
possibilidades de garantir a segurança e estabilidade no
Iraque, excepto, como dizem alguns comandantes
americanos, com um soldado em cada esquina.

Para uma mente mais esclarecida era óbvio que a


verdadeira Guerra do Iraque iria começar com a
ocupação, e não no momento da invasão, sendo a
estratégia mais adequada a de não permitir grandes
baixas entre os elementos mais fieis e mais bem
treinados. Em vez de os desperdiçar numa luta inútil
contra uma esmagadora superioridade militar, foram
poupados para desencadear acções de guerrilha e
sabotagem, onde a sua capacidade militar se torna uma
ameaça real contra a qual a enorme superioridade militar
americana é tão inútil quanto inofensiva.

Mais de uma centena de mortos após o fim oficial da


guerra, torna-se indispensável repensar e reanalizar os
erros que levaram a esta situação de impasse, com um
constante adiar da reconstrução e um número cada vez
maior de vítimas, numa ocupação militar que tenderá a
eternizar-se e cujos custos económicos e consequências
políticas ainda estão em muito por avaliar.

238
A minha pequena vida

Com as eleições presidenciais americanas a um ano de


distância, a mesma guerra que construiu uma sólida
base de apoio para o actual Presidente, ameaça agora
destruí-la, numa conjuntura desfavorável em termos
económicos onde o peso de uma operação militar sem
um fim previsível pode arrastar para o fracasso todo o
esforço de recuperação.

No fim, e no mais trágico dos desfechos possíveis,


podemos imaginar um novo Vietnam, como as forças
americanas a sairem sem glória após anos de sacrifícios,
de pesadas baixas e enormes custos, entregando o
poder a um governo fantasma que em breve seria
aniquilado pelos antigos senhores do Iraque. Há quem
diga que a História tem uma estranha tendencia a
repetir-se e poucos são os que aprendem com o
passado, mesmo quando este nos é tão próximo que
ainda afectou directamente muitos dos envolvidos nas
operações militares no Iraque.

2003-10-27

Hoje é dia de mais um aniversário na minha pequena


família. O meu pseudo-papá faz quarenta anos, o que
para mim é imenso, um número quase incalculável em
termos de idade. Já sei que não me vão convidar para
deglutir o “patochy” nem a “lalanja”, mas pelo menos vou
ter a minha tradicional lata festiva para participar na
parte gastronómica das comemorações. De resto, o meu
presente é sempre umas lambidelas ternurentas
enquanto recebo umas festinhas no toutiço. Pode não
parecer muito mas é assim que eu sei manifestar os
meus sentimentozinhos.

239
A minha pequena vida

Infelizmente, em vez de comemorar efusivamente a data


festiva, o mundo continua a ser palco de guerras e
atentados, sendo talvez o dia mais violento e mortífero
em Bagdad desde o anunciado fim da guerra. De certa
forma vem demonstrar que para uma guerra terminar
não basta que uma das partes venha comunicar o seu
fim, é preciso que todos concordem e neste caso é mais
do que evidente que tal não sucede. Após o atentado de
ontem, e provavelmente encorajados com o resultado, o
dia de hoje foi uma espécie de atentado contínuo, quase
de manhã à noite, com dezenas de mortos e centenas
de feridos, numa demonstração da fragilidade da
situação actual e da impossibilidade real de as forças
americanas manterem a segurança e imporem uma certa
ordem.

Sem a preparação dos Israelitas e sem ousarem seguir o


exemplo da brutal repressão dos Russos na Chechenya,
os militares que ocupam o Iraque são alvos fáceis, não
conseguem obter resultados no terreno e sofrem baixas
diárias sem que a isso corresponda nenhum ganho real
em termos militares. Basicamente a impreparação como
força policial ou de ocupação, as baixas constantes e o
prolongar de uma guerra que aparece sem fim à vista,
com o consequente prolongar das comissões no Iraque,
leva a uma desmotivação dos militares, ansiosos por
voltar para as suas famílias e para a segurança dos seus
lares.

A isto soma-se a situação trágica dos reservistas, cuja


perda de rendimentos económicos por um período
prolongado está a levar várias famílias a situações de
desespero. Para muitos a diferença de vencimento entre

240
A minha pequena vida

o seu ordenado como cívis e o que recebem como


militares é de tal forma elevado que se verificam
autênticas situações de ruptura em termos económicos,
o que leva a uma completa desmotivação e mesmo a um
sentimento de revolta contra uma Pátria que tanto exige
dando tão pouco em troca.

2003-10-28

Num dia em que decia começar o julgamento do Carlos


Silvino, adiado e sem data marcada para recomeçar logo
após o início, o destaque contínua na situação no Iraque.
Não posso, no entanto, de referir que tantos adiamentos
descredibiliza a Justiça e levanta sérias dúvidas aos
intervenientes no processo, nomeadamente às vítimas
que cada vez mais desesperam de alguma vez verem os
arguidos no banco dos réus. Esperemos que não seja
mais um processo à espera de uma conveniente
prescrição.

Aliás, quando, para além do advogado, surge um


pseudo-psiquiátra sem ser reconhecido como tal pela
Ordem dos Médicos a lançar dúvidas sobre o estado
mental do arguido, tudo se conjuga para uma estratégia
dilatória devidamente planeada e que, infelizmente, tem
resultado até agora.

Por outro lado, a defesa sai descredibilizada pois o


adiamento sucessivo, para além de levantar suspeitas
quanto às verdadeiras intenções desta, tem ainda o
efeito preverso de levantar suspeitas sobre os sistema
judicial e sobre um eventual excesso de garantias de

241
A minha pequena vida

defesa que este oferece em óbvio detrimento dos direitos


das vítimas.

Uma situação como esta, aliada à extrema visibilidade


derivada de uma extensa cobertura mediática, facilmente
leva o cidadão comum a crer na necessidade de diminuir
os meios de defesa, colocando-se de forma mais ou
menos objectiva ao lado das vítimas e condenando os
arguidos mesmo antes de iniciado o julgamento.
Questões delicadas e igualmente prejudiciais para o
processo, como a das escutas telefónicas, o segredo de
justiça, o acesso a provas por parte da defesa, acabam
por se perder completamente, abafadas pelo autêntico
escândalo dos adiamentos sucessivos que parecem
premiar uma aparente fuga à justiça. O desfecho mais
lógico nesta conjuntura será a diminuição dos meios de
defesa dos arguidos para evitar adiamentos ou outros
expedientes que possam ser encarados como
artimanhas, com consequências nefastas em futuros
processos judiciais, onde eventuais inocentes poderão
ser privados de formas de defesa até hoje consideradas
como legítimas. Enfim, é uma forma de matar a galinha
dos ovos de ouro.

2003-10-29

Sempre achei que devia ser muçulmana, pelo menos


adopto as mesmas posições destes quando estão em
oração, mas o Ramadão tem graves inconvenientes para
mim. Sobretudo o jejum entre o nascer e o por do Sol é
de uma violência extrema, mas já comecei a aprender a
contornar a situação: durmo durante o dia e já não sinto
o efeito do jejum. Como os dias estão mais curtos e o

242
A minha pequena vida

Sol se põe mais cedo, são só umas dez horitas de sono


durante as quais nem sinto fome.

Mas noutro pontos do Mundo, há quem não durma tanto


quanto eu e desde o início do Ramadão que a situação
se complicou tendo-se vindo a agravar muito para além
do esperado. Com vários atentados diários, em várias
zonas do país, esta nova etapa vai por severamente à
prova as forças da coligação, esgotadas e desmotivadas
por meses de enorme pressão psicológica.

Eu sei que é grave a situação que se vive no Iraque e


não me parece que alguém seja capaz de inventar uma
solução. Sem estabilidade não há progresso económico,
e sem este não param os atentados. É uma espécie de
pescadinha de rabo na boca em que os estrategas que
planearam esta invasão deviam ter refletido antes de a
iniciarem, não quando já estão no terreno e as opções
tácticas são limitadas a alguns movimentos de tropas
que mais não fazem do que acudir algo tardiamente às
situações de emergência que ocorrem diariamente.
Infelizmente não é fácil recomeçar de novo, retirando as
tropas e voltando a iniciar todo o processo. Seria a
solução mais fácil para muitos e talvez a única a resultar,
tal como os Russos fizeram depois da desatrosa primeira
guerra na Chechénia, mas exige tempo e muita coragem
política, algo que não existe a um ano das eleições
presidenciais nos Estados Unidos.

Resta-nos pois esperar que o prcesso de desgaste seja


mais penalizador para os partidários do antigo regime do
que para as forças ocupantes, o que a acontecer seria
muito provavelmente inédito em toda a história militar.

243
A minha pequena vida

2003-10-30

Enquanto escuto as declarações dos candidatos à


presidência do Benfica afirmarem a sua honestidade, só
consigo imaginá-los diante das câmaras da televisão a
declarar “sou honesto com “O” grande”. Nem os políticos
profissionais caem no ridículo de tantas promessas. Eles
garantem novos jogadores, títulos de campião em três
anos consecutivos, glórias futuras e toda uma infinidade
de passes se mágica dignos do maior ilusionista do
mundo.

Mas como o Benfica escolheu como símbolo um pássaro


qualquer e não um gatochy, não é a minha equipa e não
me vou preocupar com o seu triste destino.

Hoje foi um daqueles dias em que as notícias não


passam de uma confirmação das expectativas. O Carlos
Cruz vai continuar preso, o advogado do Carlos Silvino
vai ser processado por litigância de má fé e por
difamação, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
insurge-se contra o excesso de garantias dos arguidos e
eu,, que acertei em todos estes acontecimentos, vou
finalmente entregar o meu boletim de Totoloto e esperar
por um golpe de sorte.

Vai ser uma emocionante aventura para chegar aquilo


que alguns chamam a Praça de Londres. Não é longe e
conheço bem o caminho, mas agora há umas obras, que
actualmente são um buraco enorme, segue-se uma zona
permanentemente inundada, que quase tenho de
atravessar a nado, e finalmente imensos automóveis
largados a velocidades incriveis e pessoas que não

244
A minha pequena vida

olham para onde vão nem o que pisam. E para além de


ir tenho que voltar, o que duplica o perigo. Ninguém
pensa em gatochynhos pequeninos como eu, nem nos
perigos que corremos para andar uma centena de
metros. Se mesmo para as pessoas grandes é díficil,
então para mim é quase impossível. Deve ser a isto que
chamam problemas de acessibilidades, mas mesmo
quando pensam em alguém nunca é em mim. Só porque
ainda não tenho direito a voto, não deixo de ter os meus
direitos, e aqui não aceito direitozinhos, quero ser tratada
como gente grande e exijo que os políticos cumpram as
suas promessas eleitorais.

E a propósito, como é que está a mudança da estação


de camionagem do Arco do Cego para o Parque das
Nações? Ainda estou à espera do meu novo jardim.

2003-10-31

Não se pode dizer que concordo com tudo o que a Juiza


Mª José Morgado escreveu no seu recente livro, nem
sequer com todos os métodos que advoga para resolver
os problemas de corrupção neste País e muito
especialmente na Administração Pública, mas reconheço
que é uma mulher de armas e que teve a coragem de
tocar num assunto que incomoda quase toda a nossa
classe dirigente.

A indiscutível promiscuidade entre detentores de cargos


públicos e agentes económicos, desde empresários a
negociantes, passando por dirigentes desportivos, a
associação e acumulação de cargos, a forma como é
possível desempenhar em simultâneo funções

245
A minha pequena vida

incompatíveis sem que tal mereça reparo, as


imaginativas justificações com que o absurdo é
legalizado e a enorme elasticidade moral são
infelizmente nucleares na nossa administração e nos
mais elevados níveis de direcção.

Acusar os partidos políticos peca por defeito e por um


excessivo simplismo, os partidos são constituidos por
seres humanos que importam do exterior, do
desempenho das suas funções políticas e profissionais,
os vícios que espalham dentro da própria estrutura
partidária. A falta de controle eficaz e os numerosos
anos no poder levam a uma habituação, a um laxismo e
um facilitismo inerente aos próprios hábitos dos
portugueses, onde a tolerância para com certos crimes
permite a sua quase completa impunidade.

Para quem paga impostos, muitas vezes tão pesados


quanto injustamente distribuidos, a simples possibilidade
de enganar um Estado, a quem não são reconhecidas
virtudes morais, aparece como justa forma de
compensação por uma actuação indigna da pessoa de
bem que este deveria ser. Uma vez posta a funcionar a
engrenagem, com todas as rodas dentadas em
movimento e com a inércia reconhecida das grandes
máquinas, é quase impossível de travar. Mesmo que
uma peça deixe de trabalhar, o arrastamento das outras
e a inércia do sistema impede que esta se imobilize.
Infelizmente, e como não é possível travar todas as
peças simultâneamente, esta máquina só para se for
desmontada ou pura e simplesmente desmantelada.

Este livro é uma primeira pedrada no charco, um


pequeno contributo para encravar uma máquina

246
A minha pequena vida

devoradora e corrupta, mas não pode só por sí ser uma


solução para este cancro, esta só virá quando as
atitudes mudarem e para que tal aconteça o Estado tem
que mudar em primeiro lugar e voltar a transmitir
confiança ao cidadão comum.

2003-11-01

Chegamos a Novembro, ao dia das Bruxas e ao mês que


antecede o Natal. Brevemente vou ter a minha enorme
árvore de Natal montada, com imensas luzinhas e
montes de ramos para eu subir e descer. É quase um
segundo ginásio e este é fabuloso, tem uns dois metros
de altura e é enorme.

Também podia falar das prendas e dos petiscos mas


isso ainda vai demorar um bocado, quase dois meses,
portanto vou deixar este assunto para depois. Talvez
seja desta que eu sou apresentada à minha pseudo avó
e ela também tenha uma prendazinha para mim. Se
calhar também devia ter uma prenda para ela, mas não
sei se o meu orçamentozinho me permite e não lhe
posso oferecer uma lata. É injusto, mas até às prendas
pagam impostos!

Soube hoje que desapareceram cerca de duzentos e


cinquenta mil euros de uma agência bancária, tendo sido
atribuido o problema a um erro grave no sistema
informático, desculpa muito utilizada nos últimos tempos
para esconder burlas ou fraudes.

Trata-se de algo simples, na opinião de alguns espertos


iluminados. Ou avariando o computador ou destruindo os

247
A minha pequena vida

dados tentam que se perca o rasto a uma determinada


quantia. Normalmente esquecem-se de que os
computadores não se enganam, que os números
redondos são suspeitos e que com mais ou menos
trabalho se pode analizar um disco onde faltam dados.

Quando um disco se avaria, caso seja um problema


físico, pode-se verificar se foi um problema interno ou se
há danos externos. Caso seja a segunda hipótese,
provavelmente trata-se de uma sabotagem. No caso da
primeira, será mais difícil de averiguar mas também é
possível tirar conclusões.

Se for apenas um problema lógico, a informação pode


ser reconstruida a menos que tenha sido reescrita por
um programa feito especificamente para fazer
desaparecer dados, o que também indicia um crime.

Felizmente a maioria dos criminosos informáticos não


tem a experiência e as capacidades para cometer um
genuíno crime, onde as provas são destruidas para
sempre, não passando de uns amadores com uma
imaginação algo delirante alimentada por sonhos de
riqueza. Até eu, que sou uma pequena gatochynha,
saberia por onde começar a investigar, quanto mais os
especialistas da Polícia Judiciária, treinados e equipados
para combater este tipo de crimes. Enfim, mais um
esperto à portuguesa, com mais olhos que barriga.
2003-11-02

Hoje estive a comparar o número de mortes entre os


condutores portugueses e as forças americanas no
Iraque. O balanço é assustador, mesmo quando exitem
atentados ou situações invulgares, os mortos entre os

248
A minha pequena vida

nossos automobilistas bate os de qualquer conflito


militar.

Desde a recente vaga de condutores a circular em


sentido contrário nas autoestradas até aos sucessivos
records na taxa de alcoolémia, passando por todos os
que competem na área da acrobacia automóvel, todos
querem contribuir para que este país possa figurar no
Guiness por razões pouco dignificantes.

Espantoso é que enquanto os defensores dos direitos


dos peões ou as autoridades culpam os automobilistas,
estes culpam a estrada ou a falta de sinalização.
Indiscutível é que quando as condições atmosféricas se
agravam, o número de acidentes dispara em flecha, o
que de certa forma vem confirmar a falta de pericia e
cuidado por parte dos nossos condutores.

Por muito que se tentem justificar, os automobilistas são


responsáveis pela larguissima maioria dos acidentes,
quanto mais não seja por não adequarem a sua
condução às condições da via, por muito deficientes que
sejam, às condições atmosféricas, que podendo
desaconselhar a condução raramente são tidas em
devida conta, e pelas suas próprias capacidades,
sobrevalorizadas e elevadas a um nível quase de
campeonato mundial de pilotos.

Quando se pergunta a um condutor português a sua


opinião sobre a sua condução a resposta é
inevitavelmente a mesma, um às do volante, arriscando
a vida entre verdadeiros criminosos, negligentes, ineptos
ou, no mínimo, azelhas e nabos. No entanto, estes
mesmo que assim respondem, têm os seguros

249
A minha pequena vida

agravados ou nem os têm em dia, vangloriam-se de


todas as “proezas” que já praticaram, revoltam-se contra
a injustiça selectiva com que são perseguidos pelas
autoridades e sofrem de uma profunda amnésia
relativamente ao seu extenso cadastro rodoviário.

Se fosse eu a legislar, todos os selos de seguro emitidos


a partir do próximo ano iriam incluir o bónus ou o
agravamento deste. Todos os condutores teriam exibir,
como mais ou menos orgulho, qual a sua verdadeira
capacidade e responsabilidade na estrada e, se isso não
resultasse, teriam de usar umas orelhas de burro ou um
sistema especial de avisador de perigo na estrada, para
que os restantes automobilistas tomassem as atitudes
defensivas necessárias.

2003-11-03

Dei hoje uma voltinha pelo mue bairozinho e deparei-me


com uma estranha revista, misto de actualidade e de
inconfidências ou fofocas como alguns lhe chamam,
onde a capa era ocupada por uma fotografia dos
deputados Paulo Pedroso e a respectiva namorada. O
objectivo era mais do que óbvio, a demonstração de que
o arguido não era homossexual e que as acusações
seriam infundadas.

Para além do ridículo desse pretenso meio de prova, que


não pode senão descredibilizar os dois políticos
envolvidos, o seu aparecimento numa revista é no
mínimo de uma inconsciência absoluta, podendo, no
limite, ser considerado como mais uma forma de
influenciar o normal curso do processo.

250
A minha pequena vida

Numa altura em que a descrição e um certo afastamento


foi aconselhado por todos, esta súbita aparição numa
revista vem chamar para a ribalta uma lamentável
situação que o próprio, os seus familiares e amigos, e o
próprio PS deveriam querer manter longe dos olhares do
público.

Às vezes interrogo-me se no PS haverá uma réstia de


bom senso, noções básicas de descrição ou sequer um
conselheiro de imagem ou alguém que tente evitar que
os seus dirigentes tomem sempre a pior opção possível,
como se de uma bússula que aponta sempre o Sul se
tratasse.

Não li o artigo em questão, onde a namorada do citado


deputado garante a sua virilidade. Por uma questão de
bom gosto e porque sou uma pequena gatochynha
sensível, não quero entar nos meandros da vida sexual
do dito deputado, nem ouvir a narrativa feita pelos
protagonistas acerca das suas proezas conjugais.

Acho que ainda sou muito novinha para saber destas


coisas, mas não tenho dúvidas de que em Tribunal a
validade deste artigo não deve passar de um atestado de
mau gosto, que talvez algum advogado mais expedito
possa tentar arrastar para uma estranha forma de
insanidade mental.

2003-11-04

Depois do Síndroma de Helsínquia, mundialmente


conhecido, em que a empatia entre sequestradores e

251
A minha pequena vida

respectivas vítimas leva a uma forma de cumplicidade


resultante de uma eventual identificação dos raptados
com os seus captores, temos o menos conhecido mas
muito mais português Síndroma de S. Bento.

Hoje, quando assistia ao que deveria ser o acalorado


debate do Orçamento de Estado de 2004, assisti
espantada a deputados da oposição aplaudirem o
Primeiro Ministro. Não seria por equívoco, dado estarem
cientes de que não trilham o caminho do poder, pelo que
apenas podia ser por identificação com o seu discurso.

De certa forma compreendo que quando se perdem


sucessivamente todos os debates se queira mudar de
clube. Se aconteceu a adeptos de clubes desportivos,
conhecidos pela sua tradicional imutabilidade, por que
não poderá suceder a alguns deputados ansiosos por
vitória e querendo fugir ao desemprego parlamentar?
2003-11-05

Estes dias têm sido mesmo complicados para mim. A


minha família decidiu pintar a casa de banho sem me
consultar previamente e já quase não reconheço a minha
própria casinha. São jornais espalhados, cheiros
estranhos, obstáculos no caminho, é uma infinidade de
coisas que não foram feitas à minha medida e que
incomodam muito particularmente uma gatochynha
pequenina. Lembra-me o velho problema das
acessibilidades quando uma parte da população é
esquecida. Como nós somos três, um terço da
população residente foi ignorado neste matéria e nem
sequer teve direito a ser escutada. Enfim, é a ditadura da
maioria que também coincide com os grandes contra os
pequeninos.

252
A minha pequena vida

Mas ni meio desta longa tragédia de dois dias de


desconforto, ainda consegui ver televisão e apreciar a
manifestação dos estudantes contra as novas propinas.

Trata-se de uma luta antiga, cíclica e anualmente


repetida, tendo por um lado um conjunto de estudantes
vestidos com roupas caras, deslocando-se em bons
automóveis e alegando a impossibilidade de pagar o
equivalente a uns setenta euros por mês. Gostava de ver
o orçamento e a conta bancária destes estudantes para
aferir da justeza das suas reivindicações bem como o
seu aproveitamento escolar, já que também lutam contra
as terríveis prescrições.

Ainda há bem pouco tempo desconhecia o que eram


prescrições nas universidades públicas. Depois aprendi
que cada estudante apenas tem um certo número de
anos para concluir o curso, normalmente o tempo deste
mais metade com arredondamento para o número
superior. Enfim, um curso de quatro anos tem que ser
feito em seis e um de cinco em oito, com excepções para
casos particulares. Pode parecer cruel, mas o Estado
paga a esmagadora maioria das despesas e um curso
superior é um investimento pesado que tem de ser
rentabilizado. É o dinheiro de todos que está envolvido e
não é justo que alguém, sem justificação, o gaste sem
proveito e ocupe a vaga de que outro poderia obter um
justo proveito.
Por outro lado, com as cadeiras feitas, pode concluir os
estudos no ensino particular, dado que estas não
prescrevem individualmente, pagando mais, mas
deixando de ser injustamente subsídiado com o dinheiro
de todos.

253
A minha pequena vida

Realmente, gostava de ver uma estatística com os dados


económicos e sociais da nossa população universitária,
o seu aproveitamento geral e as condições de ensino
que existem em Portugal. Penso que todos iamos ter
algumas surpresas, mas sobretudo que por vergonha,
muitas das manifestações acabavam.

2003-11-06

E já cheguei às duzentas páginas! Nem acredito que


aquilo que começou por ser uma prenda de anos atingiu
um tal volume. Vou-me ver aflita para imprimir,
encadernar e se quisesse publicar e tornar-me numa
autêntica gatochynha escritora provavelmente entraria
em pânico. Só de pensar que teria de ser sócia da
estranha Sociedade Portuguesa de Autores, que consta
ser um viveiro de escândalos e corrupção, é quase
inimaginável.

Mas enfim, finalmente soube-se aquilo de que muitos


suspeitavam. O Fundo de Defesa Militar do Ultramar,
que continuou activo após a independência das colónias
ou províncias ultramarinas conforme a designação
preferida, movimentando de forma clandestina
verdadeiras fortunas utilizadas em tempos anteriores de
diversas formas, que iam desde operações mais ou
menos clandestinas até à melhoria das condições de
vida das populações.

Deste enorme e fabuloso “saco azul”,


incomparavelmente maior do que o de Felgueiras,
desapareceram valores incalculáveis, sem registos ou

254
A minha pequena vida

justificações plausíveis, pelo que suspeito que durante o


conturbado período revolucionário foram parar às mãos
erradas, ou seja a quem não tinha nenhum direito a
receber qualquer quantia.
Infelizmente esta é uma característica dos “sacos azuis”,
o seu próprio objectivo implica uma certa clandestinidade
e um controle díficil, mas o facto de este continuar a
existir e ser movimentado após a razão da sua existência
se ter há muito extinto levantou suspeitas.

Já há muito que suspeitava que o desaparecimento


trágico do Ministro Amaro da Costa, que investigava o
Fundo após dar ordens para a sua extinção, terá sido o
verdadeiro alvo do acidente de Camarate, onde entre
outros também faleceu o então Primeiro Ministro Sá
Carneiro. O teor das revelações vem reforçar a minha
convicção relativamente aos verdadeiros objectivos e ao
alvo a abater, levantando sérias suspeitas em relação a
diversas entidades militares encolvidas.

Talvez a suspeita ou a possibilidade do envolvimento de


militares de alta patente, ligados indirectamente a forças
de ordem, tenha durante anos bloqueado a investigação,
lançado falsas pistas e formentado os sucessivos
arquivamentos. A ligação de muitos destes com as
campanhas em África, com infomadores e mercenários
que se movimentavam neste cenário, torna plausível a
teoria do atentado e permite visar cada vez mais alto.

Espero que não esteja a cair na tentação de imaginar


mais uma cabala ou um conluio, nem a imaginar uma
irreslista teoria da conspiração, mas o levantar do
secretismo que rodeiam as possíveis causas de um
acidente, agora que o Governo considerou não haver

255
A minha pequena vida

mais lugar a segredos militares que protejam as relações


entre este Fundo e as Forças Armadas, certamente vão
trazer novas provas e a possibilidade de estudar um
cenário muito mais completo.

Mesmo que os crimes já tenham prescrito, abafados pela


cumplicidade de altas entidades, todos merecemos
saber quem está realmente por trás de tudo o que
aconteceu há mais de uma vintena de anos. A
descoberta da verdade faz parte do próprio processo de
pacificação da sociedade portuguesa e é um direito de
que todos, e muito especialmente as famílias das
vítimas, não podemos prescindir.
2003-11-07

Isto de ser famosinho em Portugal tem que se lhe diga,


sobretudo quando se declara na televisão que se
transportam jóias dos Estado Unidos para Portugal.

Desta vez os serviços alfandegários decidiram verificar a


veracidade das declarações algo irreflectidas do mais do
que clandestino importador e não obstante o estranho
personagem seguir pelo corredor verde destinado a
quem nada tem a declarar foi sujeito a uma revista. Para
espanto dos fiscais, o conhecido “marchant” esquecera-
se de declarar jóias no valor de dois milhões de euros,
confirmados pela presença de um avaliador.

Dirão alguns, como por exemplo os advogados da


bizarra criatura, tratar-se de um pequeno lapso dado que
as jóias lhe pertencem, dirão outros que se trata de
contrabando agravado e que é uma actividade
continuada, o que aliás é confirmado pelo próprio de
forma expontânea em declarações públicas.

256
A minha pequena vida

Imediatamente, os amigos da pretensa vítima acorreram


em defesa desta, utilizando a mais do que famosa
cabala, justificação para todos os males que vitimam
figuras mais ou menos conhecidas, alegando denúncias
feitas por delatores ivejosos. Esquecem-se que foi o
próprio a delatar a sua actividade clandestina, e que um
negociante não pode ignorar tratar-se de um crime não
declarar valores desta monta e ligados à sua actividade
profissional.

É uma pena ter sido posto em liberdade, mas espero que


o contrabando tenha sido apreendido e que com um tal
prejuizo aprenda pelo menos duas lições. A primeira é a
de que enganar o Estado, ou seja todos nós, no valor de
meio milhão de euros é obviamente um crime e tanto
mais grave quando parece ser sistemático. A segunda é
estar calado, porque pela boca morre o peixe e as
declarações, ou devo chamar-lhes confissões que
prestou num programa televisivo são uma autêntica
admissão de culpa que quase devia dispensar um
dispendioso processo judicial.
2003-11-08

Ultimamemente a electricidade tem faltado com muito


mais frequência do que há uns meses atrás. Não sei se
é da chuva, das obras na Praça de Londres, da falta de
manutenção da rede ou por qualquer outra razão que
desconheço, mas trata-se de uma situação que começa
a ser intolerável. Sempre que isso acontece tenho de
desligar o meu computador e esperar pacientemente que
a energia volte. E nem descontam estas interrupções da
factura da EDP!

257
A minha pequena vida

Esta semana estive a ouvir mais uma vez o advogado do


Bibi a queixar-se de uma perseguição por parte da
Ordem dos Advogados, cujo terrível Bastonário passa
por ser um bombista capaz de se intrometer em
processos alheios, favorecedor de amigos e, em última
instância, pessoa pouco recomendável para o cargo.

Não me espanta que lhe tenham instaurado um processo


disciplinar, sobretudo se tivermos em atenção o
corporativismo desta classe profissional e uma actuação
pelo menos discutível por parte daquele que se arrisca a
ser o advogado mais conhecido do País. Pelo menos
enquanto puder exercer, porque continuando por este
caminho, de queixa em queixa e de processo em
processo, arrisca-se a passar rapidamente de advogado
a cliente necessitando de contratar um defensor.

Independentemente da sua vontade de defender o seu


cliente a todo o custo e das suas convicções, o lançar
mão de tudo e mais alguma coisa, sem olhar a meios
para atingir os fins, acaba por pôr em causa o seu brio
profissional e a sua própria integridade pessoal e, no fim,
cria um ambiente que pode tornar-se desfavorável ao
cliente que tanto quer defender.

Quando se começam a misturar os meios com os fins, a


perder a dimensão moral e a utilizar meios que se
criticam quando utilizados por outro, o desfecho torna-se
lamentavelmente previsível e prejudicial quer para o
próprio, para o seu cliente e para o apuramento da
verdade.
Se a junção dos processos pode parecer em sí própria
positiva, os métodos que têm levado a adiar
sucessivamente o início do julgamento podem vir a ser

258
A minha pequena vida

utilizados por todos os arguidos e desta forma a


distância temporal entre ambos vai-se manter, fruto de
um adiamento idêntico resultante de recursos e
expedientes semelhantes.

No fim, para além do inevitável julgamento, apenas resta


a triste imagem de uma fuga à justiça no meio do mais
completo desrespeito pelas vítimas que continuam à
espera de uma justa reparação.

2003-11-09

O fim da suposta chantagem da Al Qaeda ou de outros


movimentos terroristas sobre o Governo saudita parece
ter chegado ao fim. Após declarações, denúncias e
várias suspeitas de que os terroristas recebiam uma
compensação para não atacar a Arábia Saudita, alguns
deles constantes de um relatório mantido parcialmente
em segredo pelo governo americano, a situação mudou
e os atentados começaram, sem que as autoridades
consigam detê-los.

Não encontro outra explicação para o facto de uma país


como a Arábia Saudita, numa região propensa a
atentados, ter escapado incólume, no meio de fortes
suspeitas de pagamentos a associações terroristas, com
cidadãos nacionais envolvidos em ataques terroristas,
até ser pressionada a cortar definitivamente quaisquer
ligações a grupos fundamentalistas islâmicos.

Com o maior controle sobre transferências bancárias,


pagamentos ao estrangeiro e uma maior atenção a
grupos com ligações suspeitas, tornou-se quase

259
A minha pequena vida

impossível escapar a uma examinação que levasse a


conclusões sobre eventuais ligações, mesmo que devido
a chantagem, com a Al Qaeda. O resultado de uma
eventual mas mais do que provável quebra nos
pagamentos que garantia uma relativa segurança
traduziu-se imediatamente em diversos ataques, na sua
maioria contra alvos civis, que podem demonstrar uma
agressão algo indiscriminada contra o povo saudita.

Agora que o terrorismo já atacou no seu território, caberá


ao governo saudita abandonar a sua posição dúbia,
cumplice e colaborante e aceitar que a negociação ou
qualquer forma de cedência em relação a organizações
terroristas resulta, mais cedo ou mais tarde, numa
completa dependência ou numa cruel e violenta ruptura.

2003-11-10

Pensava que só acontecia em Portugal, mas agora até o


herdeiro do trono de Inglaterra é acusado de práticas
homossexuais e de cumplicidade no encobrimento de
uma tentativa de violação entre funcionários da casa
real.

Por cá sempre é pior, sem as restrições legais que da


imprensa inglesa na divulgação de informações relativas
à realeza, até o próprio Ferro Rodrigues é mencionado
como directamente envolvido em escândalos sexuais por
quatro testemunhas.

Estranhamente estas não só não dão a cara como


também não apresentaram queixa, mas divulgaram a
informação logo após a manifestação de confiança do

260
A minha pequena vida

Conselho Nacional do PS no actual Secretário Geral.


Obviamente a teoria da cabala, do concluio ou da
conspiração, ganha força com o timming escolhido para
a divulgação de acusações que não são mais do que
rumores particularmente graves e prejudiciais para a
imagem do visado.

Agora, sem cair nos desmentidos confusos e incoerentes


divulgados pela Casa Real Inglesa, tem o Secretário
geral do PS de escolher entre uma certa indiferença,
minimizando aquilo que neste momento não são mais do
que calúnias, ou um novo envolvimento, deixando-se
mais uma vez arrastar para o atoleiro e para a inacção
política em defesa da sua honra e dignidade pessoal.

Manobra política ou não, este tipo de informações vem


mais uma vez toldar os movimentos de um político que já
perdeu a iniciativa e que com a insistência em manter-se
no actual cargo está a arrastar para um pântano não só
o partido político que dirige mas todo o sistema político e
partidário português.

Será que ele ainda se lembra do piedoso carrasco


chinês que matava rapidamente e sem dor?

2003-11-11

Soube hoje que um polícia morrera numa colisão quando


tentar travar um automóvel em fuga. Fico sempre triste
quando isto acontece, com uma sensação de injustiça
que me revolta, e penso em tudo aquilo que podia ter
sido feito e não foi para, pelo menos, minimizar o risco.

261
A minha pequena vida

Desta vez a culpa foi atribuida ao facto de não ser


autorizado pela Direcção Geral da Administração Interna
o uso das chamadas lagartas. Nunca tinha ouvido falar
deste modelo de lagarta, só conhecia as que rastejam
algures pelos jardins, mas ouvi dizer que são segmentos
metálicos com espigões destinados a furar os pneus dos
veículos em fuga.

E foram proibidos porque podiam por em risco a


segurança dos fugitivos, sobretudo quando se deslocam
em veículos de duas rodas, esquecendo-se que em
contrapartida os riscos daqueles cuja missão é detê-los
aumentaria de forma proporcional. Ou seja, para poupar
eventuais criminosos sacrificam-se os agentes policias.

Por muito que tente imaginar a razão que presidiu a esta


decisão, mesmo que alguma justificação possa existir, a
opção tomada não deixa de me chocar, de me parecer
uma perigosa perversão de princípios e de deveres que
o Estado deve ter para com os seus agentes. Parece-me
uma inequívoca quebra de solidariedade para com
aqueles que arriscam a vida pela segurança dos demais.
Não estamos sequer a falar de um gravíssimo problema
económico que impeça a aquisição de equipamentos.
Estes existem, estão disponíveis, e não são utilizados
devido a uma decisão política que se sobrepôs a
princípios operacionais elementares.

Foi preciso sacrificar uma vida para que o Director


Nacional, mesmo contrariando o disposto, ordenasse a
utilização das famosas lagartas em caso de perseguição.
Infelizmente as decisões vêm tarde, a reboque dos
tristes acontecimentos verificados, e dúvido que os

262
A minha pequena vida

responsáveis por tão desastrosa decisão alguma vez


venham a assumir a culpa pela perda de uma vida.

2003-11-12

Hoje, dia de partida do contingente da GNR para o


Iraque, fomos abalados pelo ataque contra as forças
italianas no mesmo local onde brevemente estará o
nosso contingente.Foi um alterar dramático e radical da
situação em Nassyria, onde uma tensão relativamente
inócua deu lugar a um clima de violência e de terror.

Para muitos, a alteração das condições objectivas no


terreno, justificam um reequacionar da situação e uma
reavaliação da decisão de enviar as forças da Guarda.

Embora tentador e politicamente compensador, alterar


uma decisão com base no recente ataque
corresponderia a uma completa descredibilização a nível
internacional e á ideia de que a GNR apenas estaria
presente se não houvesse riscos. Por muito que custe a
todos, nem os militares do próprio contingente, feridos na
sua honra e brio profissional, aceitariam uma tal solução
como legítima, nem o Governo poderia aceitar uma tal
posição de fraqueza que minaria a nossa credibilidade
perante a comunidade intenacional.
Todos estamos conscientes de que algo pode correr mal,
mas não quero sequer imaginar nu, eventual
aproveitamento político em virtude de uma situação de
tragédia que envolva a perda de vidas humanas.

Com o actual descrédito na vida política portuguesa e a


necessidade de vários políticos desviarem a atenção que

263
A minha pequena vida

actualmente cai sobre eles, é muito possível que


brevemente a chamada Operação Babilónia atraia as
atenções que hoje se concentram nos sucessivos casos
de pedofilía, na inércia da Oposição ou na actual crise
económica.

A paralisia que tolda o PS permitiu que contra a vontade


de muitos a partida da GNR se efectuasse sem grandes
problemas, mesmo após a alteração da situação em
Nassyria. O Secretário Geral apenas fez um
insignificante apelo a uma reavaliação, certo de que
forças portuguesas num cenário de guerra serão mais
interessantes para a opinião pública do que a sua falta
de protagonismo político e os escândalos para onde
deixou arrastar o partido que lidera.

Não quero acreditar que se trate de uma atitude


consciênte, mas o facto de estar em risco a vida de mais
de uma centena de militares portugueses pode parecer
um alívio para o actual líder do PS, capaz de lhe dar um
pouco da paz que há tantos meses ambiciona.

2003-11-13

Hoje o dia correu-me bem! Consegui convencer a minha


família de que o anorak que estava inutilmente
pendurado atrás da porta seria de melhor uso se fosse
meu. É que, apesar de eu ter mais pelo que eles, sem
roupa tenho frio. Isto de ser geneticamente favorecido
tem limites, e o meu pelo não chega para uma protecção
completa do frio. Com este anorak destinado às
temperaturas da Rússia, com pelo por dentro e gola de
pele sinto-me muito melhor. Só é uma pena ser tão

264
A minha pequena vida

grande que não possa levá-lo para a rua. Enfim, talvez


venha a ter um feito à minha medida e com um padrão
que me agrade, que isto de camuflado não condiz nada
com o meu pelo.

Mas enfim, chega de mim, por muito importante que


seja, e vou pensar um pouco nos outros.

A notícia do dia, e presumo que dos próximos, vai ser a


chegada da GNR ao Iraque, os aquartelamentos, a
preparação e as primeiras missões. Por alguns dias ou
semanas vai ser uma espécie de telenovela, onde cento
e vinte guardas vão ser acompanhados por outros tantos
jornalistas, até à rotina e aos elevados custos de
reportagem atirarem a história para segundo plano, o
que aliás só seria bom sinal por significar que nada de
anormal se passava.

2003-11-14

Estou a entrar em pânico! A minha família fala quase


diariamente de um horrível gato, reputado de
particularmente adorável e, pior do que isso, adoptável.
Esta última palavra deixa-me verdadeiramente aflita,
pode significar um intruso dentro da minha própria casa,
a querer usurpar do que me pertence e a intrometer-se
entre mim e a minha família.

Eu sei que não há muitas famílias de adopção em


relação ao número de gatos abandonados, mas porquê é
que logo a minha se haveria de candidatar a receber um
gato preto? Que azar! Nem sequer é uma questão de

265
A minha pequena vida

preconceito racial, não pensem nisso, é tão somente por


ser um gato.

E aind há quem confunda um gatochy, nobre e bela


criatura de elevado intelecto e alma pura, com os gatos,
cuja história e malefícios está amplamente relatada nos
manuais do Santo Ofício. Até parece uma blasfémia para
uma muçulmana como eu elogiar aquela instituição
pagã, mas em espírito ecuménico eu repito, eles tinham
razão em relação aos gatos.
Mas para além da minha pequena vida, muito mais se
passa neste mundo. Pode não ser tão interessante como
a vida de um gatochy, mas é disto que são feitas as
notícias.

Esperava eu que pouco se ouvisse falar da GNR no


Iraque, como sinal de que tudo corria como planeado, e
logo no primeiro dia o envio dos nossos militares é
ofuscado pela emboscade em que cairam alguns
jornalistas portugueses.

Infelizmente as más notícias correm depressa, e o


ferimento de uma repórter e o rapto de outro vieram
rapidamente encher os noticiários, fazendo esquecer o
contingente da Guarda, o escândalo da Casa Pia, o
infeliz Ferro Rodrigues e tantas outras telenovelas que
habitualmente enchem os programas informativos.

Mas por muito que seja o brio profissional e a coragem


dos jornalistas enviados para o Iraque, não posso deixar
de imediatamente pensar na imprudência de atravessar
o deserto sem escolta transportados em jipes, cuja
cotação e raridade no mercado negro os converte em

266
A minha pequena vida

verdadeiros tesouros ambulantes, e sem medir as


consequências inclusivé em termos laborais.

Infelizmente conseguiram tornar-se eles próprios na


notícia, o que no caso de jornalistas tipicamente
acontece pelas piores razões, e neste caso demonstra
uma certa falta de maturidade e de experiência. Nestas
alturas lembro-me do Artur Albarran em Kabul ou da
Cândida Pinto em Angola, em situações francamente
mais perigosas, correndo os riscos necessários, mas
com a prudência que a situação exigia, desempenhando
uma tarefa difícil com um indiscutível sucesso.

Agora arriscamo-nos a ter um destacamento da GNR


que em vez de desempenhar a missão original, poderá
vir a ter que empregar os seus recursos no salvamento e
protecção de um grupo de jornalistas, esquecendo as
missões de patrulhamento e de manutenção da ordem
pública e as razões que presidiram ao seu envio para o
Iraque.
2003-11-15

Enquanto proseguem as negociações para recuperar o


jornalista raptado, não posso deixar de pensar que um
pedido de resgate de cinquenta mil dólares revela bem o
estado da economia iraquiana e o valor real do dinheiro
naquele país.

Cerca de quarenta e cinco mil euros é, em termos


europeus ou ocidentais, um valor de resgate
francamente ridículo, e o primeiro instinto seria o de
pagar e resolver o problema rapidamente. Aliás, as
operações militares de resgate, para além de falíveis,

267
A minha pequena vida

podem custar infinitamente mais do que o valor pedido


pela libertação do refém.

No entanto temos que aplicar o inevitável princípio de


não ceder a este tipo de chantagens, agravado pelo
facto de ser no Iraque onde um tal exemplo poderia levar
rapidamente a uma vaga de raptos julgados
compensadores por uma população particularmente
carenciada e sem perspectivas de uma melhoria rápida
da situação. Lamentavelmente, a que parecia ser a
solução mais fácil acarreta tantos custos no futuro que
não deve sequer ser considerada.

No meio de tudo está o infeliz refém, que para além de


ser refém de um grupo de criminosos, também o é de
uma conjuntura política e militar particularmente
desfavorável. E no meio desta situação apenas uma
operação de resgate bem sucedida pode constituir um
desfecho positivo para esta crise. Qualquer outro
desfecho seria uma derrota para as forças inglesas que
controlam a zona, para Portugal que tem a obrigação de
proteger os seus cidadãos, e para a administração do
Iraque que se poderá ver confrontada com um novo tipo
de crimes.

Provavelmente as forças de ocupação vão tentar


transformar este caso num exemplo, demonstrando que
o crime não compensa e que têm capacidade de
efectuar salvamento de reféns em situações mais
complexas do que a da soldado Lynch, mesmo que para
isso seja necessário arriscar a vida de um jornalista
português.
2003-11-16

268
A minha pequena vida

Estava eu diante da televisão, pensando ver um


noticiário, quando o Secretário Geral do PS pediu uma
maioria absoluta nas eleições legislativas de 2006. Afinal
ainda era a sério ou já tinha começado o Contra
Informação?

Para quem atrai o azar como se tivesse mau olhado,


arrastando o partido para uma catastrófica ligação com
um escândalo de pedofilia, o pedido é, no mínimo, uma
piada de mau gosto. Para quem ainda o possa levar a
sério talvez seja um último grito de desespero em busca
da credibilidade perdida.

Inevitavelmente ligado a derrotas e escândalos,


prisioneiro daquilo a que chama paixão, mas que pode
não passar de inépcia política, a carreira do actual líder
socialista parece um longo Calvário fora de época, rumo
a uma fatídica imolação, sem possibilidades de uma
ressurreição gloriosa que permita um retorno em tempos
futuros ou, ao menos, uma imagem de referência para
alguns fieis seguidores.

O pedido de uma maioria absoluta, que apenas pode ser


explicado como uma fuga para a frente, mais parece
uma cavalgada em direcção ao abismo, não sendo mais
do que uma antecipação de um destino há muito
traçado.

Pelo menos poderia prestar um último, e desta vez útil,


serviço ao PS, aceitando como razoável aquilo que
tantos já entenderam, mas cuja lealdade para com o
Partido impede de exigir.

269
A minha pequena vida

Já que uma demissão pura e simples pode parecer


inadequada, criando um vazio de poder, ao menos a
marcação de um congresso antecipado e abrindo todas
as possibilidades a uma disputa da liderança, poderia
oferecer uma solução elegante que permitisse uma saida
discreta, sem uma derrota evidente perante os desaires
de uma liderança que não será lembrada com saudade
pelos militantes do Partido.
2003-11-17

Já sei o que quero no próximo Natal dos cristãos! Vi à


venda, por uma quantia módica e dentro do meu
orçamentozinho, um cobertorzinho eléctrico. Sempre foi
o meu sonho de calor, uma espécie de independência
térmica em relação à minha família, e, objectivamente,
uma necessidade básica para quem é tão friorento como
eu. Eu devia ter nascido sob o Sol escaldante das
Arábias, junto com os meus irmãos muçulmanos, e
nunca aqui, onde faz tanto frio durante o Inverno. Talvez
consiga publicar a minha história, ser comentadora num
telejornal, ou ter a minha própria colunazinha numa
jornal e possa ter uma pequena vida mais folgada.

Mas tenho outros assuntos para tratar, como a terrível e


selectiva epidemia que atacou os estudantes
vimaranenses em vésperas de realizarem a prova global
para acesso ao ensino superior.

Foi há três anos que um vírus até então desconhecido,


com inteligência e vontade própria decidiu atacar. Ao
contrário dos demais, esta pequena criatura sabia
escolher os alvos e decidiu-se pelos futuros jovens
universitários do concelho, certo de que iria causar o
máximo de prejuizos a tão inocentes e ingénuas

270
A minha pequena vida

criaturas em véspera de prestarem as suas provas de


admissão.

Valeu aos estudantes o empenho decisivo dos médicos,


que não obstante a estranheza da epidemia, logo a
confirmaram e atestaram, garantindo a sua existência e
a impossibilidade de os infelizes estudantes, ainda que
contrariados, prestarem tão iníquas provas.

Maldosamente desconfiado, o Ministério Público


considerou não haver virus com tal inteligencia, duvidou
dos estudantes enfermos e dos seus cuidadosos
médicos, e levou o caso a tribunal, alegando que tudo
não passava de uma maquiavélica conspiração, de uma
cabala como hoje se chama, para evitar que as
voluntariosas criaturas fossem justamente avaliadas em
condições de igualdade com os seus pares dos restantes
concelhos portugueses.
Começou hoje o julgamento, com centenas de arguidos,
testemunhas, uma legião de advogados e um enredo
digno dos melhores filmes de ficção científica, a fabulosa
história do vírus criterioso.

2003-11-18

Confesso que nunca andei de táxi. Não sei se é bom ou


mau, nem como são os motoristas. Lembro-me de uma
vez quase ser atropelada por um a seguir a um pequeno
incidente com uma malfadada gata. Mas acabou tudo em
bem e não tenho rancor contra os taxistas.

Em contrapartida detesto quem é desonesto e tenta


enganar as outras pessoas, pelo que fiquei

271
A minha pequena vida

agradavelmente surpreendida quando três taxistas


desonestos, que cobravam o triplo da tabela, foram
detidos. Eu sei que é por causa do Euro e do turismo
que há mais fiscalização, e não por causa de tantos
portugueses que são enganados. Por outro lado quem
está no Aeroporto, diante de estrangeiros que se supõe
abastados e pouco conhecedores dos preços praticados,
tem uma oportunidade única de obter um rendimento
extra com um pequeno crime económico, embora
poucos o considerem como tal, chamado especulação.

Pois neste país existe a boa e a má especulação. Se for


um taxista a enganar um turista, estamos a falar da
especulação má dos pobres. Em contrapartida se for um
respeitável investidor ou uma poderosa instituição
financeira que manipula o mercado bolsista e em vez de
enganar um turista em alguns euros, prejudica centenas
ou milhares de outros investidores em quantias muito
superiores, então é a especulação boa dos ricos. Aquela
que permite a alguém ganhar muito dinheiro à custa do
prejuizo de muitos.

Eu nunca percebi muito bem o que é especular, mas se


é um crime, então devia sê-lo para todos, não apenas
para os que o fazem de forma ingénua ao volante de um
táxi, mas sobretudo para os que são capazes de levar
uma empresa à falência só para obter o que os
economistas chamam uma “mais valia”, mas que para
uma gatochinha pequenina é apenas uma forma de
saque. Nesta altura lembro-me de um programa antigo
em que alguém dizia “então e o pirata sou eu?”.

2003-11-19

272
A minha pequena vida

Quisemos massacrar os franceses e não nos


contentamos com uma vitória no relvado, foi preciso
proceder a festejos selvagens e à destruição do
balneário, como se a nossa jovem equipa fosse oriunda
de um país de bárbaros.

Obviamente a vitória perdeu o primeiro plano e deu lugar


às lamentáveis imagens de destruição e a um chorrilho
de declarações que, nalguns casos foram quase tão
criminosas como o acto em sí. Talvez o mais infeliz
tenha sido o treinador, numa patética tentativa de
desculpabilização, com menções à juventude, ao stress
e a todo o tipo de factores que podiam levar um conjunto
de jovens integros a cometer semelhantes excessos.

Foi uma triste imagem de quem não sabe ganhar, mas


sobretudo de quem tinha a obrigação de dirigir e educar.
A confusão entre uma pretensa solidariedade e a
cumplicidade no crime, optando pelo silêncio no meio de
desculpas esfarrapadas, sem a coragem de chamar as
coisas pelos nomes e de censurar um conjunto de
atitudes e de actos inaceitáveis, demonstra uma falta de
espírito de liderança que nem mesmo uma indiscutível
capacidade técnica pode desculpar. Não é este o
exemplo que se pretende e certamente que quem pactua
com semelhante situação não tem o perfíl para ser
treinador.

Afinal, não estamos a falar de crianças, nem de uma


legião de boas vontades, mas de adultos responsáveis,
profissionais, auferindo vencimentos com que a
esmagadora maioria dos portugueses só pode sonhar, e

273
A minha pequena vida

que irresponsavelmente mancham o nome do país que


representam.
Seria bom que alguma entidade oficial,
preferencialmente a nível do Governo, dirigisse algumas
palavras de censura e de repúdio pelo sucedido. Não
apenas para que se reinstale um clima de disciplina e de
seriedade, mas também para que representantes do país
no exterior adoptem atitudes mais dignas da
responsabilidade que têm. E caso não saibam como
proceder ou não estejam dispostos a aceitar comportar-
se com a dignidade necessário, temos outros jogadores
que, mesmo com menos talento desportivo, não nos
deixariam envergonhados pelo seu comportamento.

2003-11-20

Enquanto o satânico Bush se pavoneia pelo Reino


Unido, entre um coro de protestos e sem que o pseudo-
lacaio tenha utilizado a sua posição para resolver este
problema mundial, os atentados sucedem-se na Turquia
e no Iraque.

A infiltração de um jornalista entre o pessoal do palácio


real, após resposta a um anúncio na Internet e sem que
lhe tenham sido verificadas as referências, demonstra o
quão fácil é prepretar um atentado contra os alvos
supostamente mais bem protegidos em todo o mundo.
Mais uma vez foi apenas um “serviço público”, destinado
a alertar para a falta de segurança, tal como quando
outro jornalista introduziu uma réplica de uma arma
automática num avião em Heatrow, ou como outro viajou
clandestinamente nos porões de carga.

274
A minha pequena vida

No entanto, outros alvos, bem menos protegidos,


selecionados entre a infinidade de interesses americanos
e ingleses no estrangeiro, oferecem bem mais garantias
de sucesso. Hoje mais uma vez ficou demonstrado que
há sempre alvos fáceis disponíveis em países onde o
esforço de segurança será sempre insuficiente, quer por
razões geográficas, culturais, religiosas ou outras. Os
atentados de hoje na Turquia,contra o consulado
britânico, pouco tempo depois daqueles que atingiram
duas sinagogas, lançam um alerta para os perigos que
podem advir da integração deste país numa comunidade
de fronteiras abertas. Para além do ataque directo contra
interesses ingleses, são também um aviso em relação à
influência ocidental num país muçulmano, laico e
tolerante, onde o progresso económico tem vindo a
abafar o fundamentalismo religioso.

Os atentados na Turquia não só podem levantar


restrições em relação à adesão deste país à
Comunidade Europeia e à circulação de pessoas, criam
entraves ao turismo e tendem a isolar este país,
prejudicando o seu desenvolvimento e lançam-no nas
mão do extremismo e da intolerância.

Penso que o principal objectivo destes ataques é evita


que a Turquia se integre cada vez mais na Europa
ocidental e que o progresso limite a acção de grupos
terroristas cujo apoio popular depende maioritariamente
de situações de carência e desigualdade económica.

2003-11-21

275
A minha pequena vida

Nem sei se devo começar pela greve ou pela aprovação


do orçamento. A greve sempre é mais colorida, presta-se
a mais comentários, mas desta vez o impacto pareceu-
me menor do que o habitual. Claro que eu nunca fiz
nenhuma greve, apesar de ter muitas e justas
reivindicações, como mais tempo com o aquecedor
ligado, mais latas por semana, festinhas todas as horas
e mais uma infinidade de exigencias de melhores
condições para a minha pequena vida ser mais feliz.,

Infelizmente estas greves afectam sempre os mais


desfavorecidos. Não são os alunos dos colégios
particulares, os doentes da medicina privada ou os
habitantes de condomínios de luxo que sofrem com a
falta de aulas, de consultas médicas ou da recolha do
lixo.

Para além de tudo a greve foi socialmente injusta, e a


prová-lo, independentemente da adesão, estão os mais
de oitenta porcento dos portugueses que estão contra.
Sem por em causa o direito à greve, que em vários
sectores é mais do que justificada, o peso acaba sempre
por cair sobre os mais indefesos, criando um sentimento
de revolta que é impossível de evitar. No fim, o Governo
pouco sofre, limita-se a descontar um dia do vencimento
dos grevistas, e a população em geral vê adiada durante
um dia algumas actividades essenciais. Como estas
greves são tipicamente em véspera de fim de semana,
outras elações se podem tirar, nenhuma delas
particularmente elogiosa para com os grevistas.

Em contrapartida o debate do Orçamento foi


particularmente morno e com pouca piada. Com
excepção da comparação do PS ao automobilista que

276
A minha pequena vida

atropela e foge e depois protesta contra os


atropelamentos, da autoria da Ministra das Finanças,
pouco mais houve a salientar.

Pessoalmente teria utilizado as finanças do PS como


exemplo da típica gestão socialista. Os militantes não
pagam quotas, o partido está falido mas continua a
gastar o que não tem, as dívidas acumulam-se e não há
um fim à vista devido a uma ausência de medidas para
contrariar esta situação.

O estado das finanças do PS são uma pequena amostra


do que nos poderia acontecer se continuassem a
governar este país quase falido, pelo que estranho que
ainda não tenha sido usado como argumento político
pelos partidos do Governo.

Se fosse eu a governar, o PS não podia candidatar-se


enquanto não aprendesse a endireitar as suas próprias
finanças, porque essa de “casa de ferreiro espeto de
pau” não augura nada de bom.

2003-11-22

Este país vive de notícias mais ou menos escandalosas


e oescândalo do momento é a praxe na Escola Superior
de Polícia. Nada do que se passou é em sí mais grave
ou traumatizante do que a tristemente conhecida praxe
universitária, considerada normal pela maior parte dos
seus instigadores e uma humilhação por quantos a
sofrem em silêncio, incapazes de a evitar.

277
A minha pequena vida

No entanto, a Escola onde se formam os futuros oficiais


de polícia tem a obrigação de seguir outros padrões,
quer a nível moral e cívico, quer pura e simplesmente a
nível legal, já que a praxe, mesmo quando aceite de
forma aparentemente voluntária, implica normalmente
uma coação por parte de quem a organiza, sendo que no
limite poderão estar envolvidas diversas práticas
criminosas. Quando praticadas por futuros oficiais de
polícia, caso configurem crimes, estas deverão ser
impeditivas do exercício das funções para que se
preparam, pelo que a sua permanência no curso que
frequentam se torna injustificada.

Não tenho dúvidas que não se trata de uma prática


recente, normal em todas as instituições de ensino
superior ligadas aos vários ramos militares e que se
alargou às forças policiais. Admito que desta vez tenha
ido mais longe do que é costume, ou que os caloiros
tenham sido menos tolerantes, e que esta denúncia se
vai de certa forma tornar a ponta do iceberg. As
investigações vão certamente descobrir muitas outras
praxes e podem despoletar inquéritos semelhantes em
instituições como a Academia Militar e outras, onde
actos semelhantes ou ainda mais degradantes são
várias vezes relatados.

Penso agora nas consequências, quando se concluir que


os envolvidos não são apenas dois ou três, mas dezenas
ou centenas, dos quais muitos já exercem funcões como
oficiais de polícia ou das forças armadas. Será que
temos à vista mais um caso a abafar ou uma amnistia
em perspectiva?

278
A minha pequena vida

2003-11-23

Com o anúncio de que Carlos Cruz teria pago a um


advogado para defender, ou melhor, para calar o Bibi, o
escândalo da Casa Pia acaba por ter uma triste
evolução. Para além de ser indiciador de culpa, há uma
clara tentativa de subverter o normal decurso do
inquérito, como a nomeação de um advogado que
eventualmente sacrificaria o seu cliente para favorecer o
seu empregador.

Se tal situação se confirmar, para além de vir aumentar a


suspeita sobre Carlos Cruz, configura um crime, quer por
parte deste, que por parte do advogado que aceitou uma
missão que não correspondia à defesa intrasigente do
Bibi, mas sim daquele que era o seu verdadeiro cliente,
ou seja quem lhe pagava uma defesa.

De certa forma espanta-me que se possa sequer pensar


em recorrer a semelhantes artifícios, os quais são
normalmente descobertos com alguma facilidade e
agravam decisivamente a situação de quem pratica
semelhantes actos. Neste momento, independentemente
das acusações de pedofília, o citado apresentador
televisivo já é culpado de um crime sério, que só por sí
mais do que justifica não só a situação de prisão
preventiva como também uma de prisão efectiva.

Assim, o cerco contínua a apertar-se, e embora tudo


aconteça com uma certa lentidão aparente, é indiscutível
que a pressão a que os envolvidos são sujeitos os faz
cometer cada vez mais erros e inconfidências. De certa
forma basta esperar para ver até que ponto se
incriminam os arguidos, independentemente das

279
A minha pequena vida

investigações em curso e do próprio processo judicial


que parece não avançar. Provavelmente trata-se de uma
nova táctica de investigação, que aliás tem a vantagem
de sair barata aos contribuintes portugueses, e que,
embora particularmente lenta, se revela
surpreendentemente eficaz.

Afinal a prisão preventiva prolongada tem as suas


virtudes e assume-se, só por sí, como verdadeiro
instrumento de investigação. Talvez não seja o que está
previsto no Código do Processo Penal, mas tem
virtualidades que escaparam ao próprio legislador, como
o stress, a pressão psicológica e a tensão que levam os
arguidos a uma quase confissão, senão por palavras,
pelo menos pelos actos que praticam. Vamos, portanto,
esperar para ver, com calma e tranquilidade, sem
pressas, até que os próprios arguidos concluam a
investigação em curso.
2003-11-24

Fiquei algo surpreendida quando soube que o Carlos


Cruz fora convocado para exames médico-legais. Não
tanto pela convocatória, mas pelo facto de ser tanto
tempo após ter sido preso. Também me espantou o facto
de não ter sido adiantado quais os exames a realizar o
que, mesmo com tudo o que possa estar sob segredo de
justiça, é algo que me parece tirânico.

Embora não sendo obrigado a fornecer provas


incriminatórias, a recusa é sempre uma forma de
obstrução à justiça, dado que enquanto a primeira deve
ser considerada como a recusa de uma atitude activa em
termos de incriminação, a segunda é uma acto passivo,
sem iniciativa por parte do arguido.

280
A minha pequena vida

A minha cabecinha começou logo a imaginar todos os


testes possíveis, num misto de teríveis torturas
medievais ou da Inquisição, com requintes de próprios
de uma autópsia protagonizada pelo Professor Pinto da
Costa. Provavelmente apenas vão reconhecer alguns
sinais particulares ou verificar se a criatura em questão
tem algum problema psicológico grave como uma dupla
personalidade e deixam-no sair inteiro e sem grandes
danos, mas os simples facto de ter sido convocado vai
permitir especular durante toda a semana e, muito
provavelmente, levar à interposição de mais alguns
recursos.

Depois de umas semanas se acalmia, como o aproximar


do prazo em que os arguidos têm que ser acusados ou
soltos, era de prever novos episódios nesta longa
novela. Aliás, estou certo que, depois da D. Branca,
alguém vai aproveitar este longo e chocante processo
para realizar uma produção televisiva, o que talvez nem
saia caro se recorrer aos protagonistas da vida real.

Pensando bem, até podia ser eu a escrever uma versão


televisisva deste caso, juntava alguns personagens,
utilizava imagens de arquivo, alterava as falas e num
instante tinha uma telenovela realista e barata!
2003-11-25

Hoje vi um autocarro mergulhado num buraco. Parecia


uma cratera daquelas que vemos nas televisões, quando
fazem reportagens sobre o Iraque, mas esta era em
plena Lisboa, numa terriola chamada Alcântara onde eu
nunca fui. Pensando bem, ainda bem que nunca por lá
passei, porque aquilo parece perigoso, e se um enorme

281
A minha pequena vida

autocarro fica meio desaparecido, nem quero imaginar o


que podia acontecer a uma pequena gatochynha.

Dizem os especialistas que esta situação, que não é


inédita, vai suceder ainda com mais frequencia no futuro.
Aparentemente a culpa é das obras subterrâneas que
desviam ou bloqueiam os lençois de água que passam
sob a cidade, provocando desde inundações até
desmoronamentos.

Eu nem sabia que debaixo de mim havia tanta água.


Ainda por cima não gosto de água em excesso, só uns
golinhos diários e nem pensar em mergulhar, que aquilo
parece-me uma sujeira e tinha de me lamber da cabeça
à cauda. Que trabalheira que era!

Mas com tanta água subterrânea, já que não pode


passar por baixo das construções, nem contornar o cada
vez maior número de estruturas subterrâneas, devia
correr por cima da superfície, em canais bonitos e
arranjados como aparecem nos postais de Veneza. Acho
que saia muito mais barato fazer canais, de preferencia
com peixes saborosos, e pequenas pontezinhas para
atravessar, do que tentar escoar tanta água sabe-se lá
por onde.

E não nos podemos esquecer do turismo. Por qualquer


razão estranha, os turistas gostam de água e de canais,
senão nem iam a Veneza, e assim Lisboa podia ser uma
espécie de Veneza do Atlântico. Até o investimento em
gôndolas saia barato comparado com outros meios de
transporte, e já estou a ver uma fila de passageiros à
espera da gôndola da carreira 15, com um ex-motorista

282
A minha pequena vida

da carris ao remo enquanto canta um fado típico de


Lisboa.
2003-11-26

O julgamento daquele educador azarado que matou as


duas raparigas em Inglaterra está a tornar-se em algo de
inacreditável. A descrição do crime feita pelo próprio,
para além de surrealista, é um insulto às familias, à
sociedade e ao tribunal.

Portanto, as duas vítimas foram a casa do réu, por


qualquer razão desconhecida e uma delas fere-se
expontaneamente. Que inconveniente, mas ainda há
solução. Vão até à casa de banho para aplicar um penso
e eis senão quando a azarada se torna em desastrada e
cai para dentro da banheira cheia de água destinada ao
banho do proprietário da casa. Não contente em bater
com a cabeça e desmaiar, ainda por cima afoga-se sem
hesitar enquanto a amiga grita de forma tão histérica que
tem que ser abafada até se calar. Enquanto uma é
definitivamente calada, a outra continua dentro da
banheira e desgraçadamente esquece-se de continuar a
respirar.

Enfim, quando o infeliz proprietário readquire o controle


da situação já as duas estão mortas. Estranha
coincidencia e infeliz acidente que será difícil de explicar
a investigadores perversos e desconfiados. Perante
tanta má vontade, revoltando-se contra semelhante
pouca sorte, nada mais resta do que esconder os corpos
e evitar perguntas cuja resposta honensta só levantaria
suspeitas.

283
A minha pequena vida

Não fosse a falta de confiança da polícia e tudo seria


esclarecido, mas como tal não é possível, só existe uma
forma de limitar os danos. Assim, os cádaveres
desaparecem, as pistas são na medida do possível
apagadas e a vida contínua pelo menos para alguns.

Infelizmente a estranha e doentia persistência da polícia


dá maus resultados e, não só os corpos aparecem, como
também uma série de provas que ligam o azarado
proprietário ao caso. Circunstancialmente tudo começa a
correr mal, as peças encaixam de forma
comprometedora e a polícia não acredita na palavra de
honra de quem tenta justificar tudo como sendo um
tremendo azar.

O resto já se sabe: prisão, julgamento e um jurí que


aparentemente não acredita na palavra da única
testemunha sobrevivente de tão incrivel infortúnio. Agora
só falta a injustiça de uma condenação a prisão perpétua
para por em causa todo o sistema judicial ao serviço de
Sua Majestade!

Por Alá, não sejam tão desconfiados e deixem-no sair.


Entreguem-no ao povo que anseia por recebê-lo e
espera ansiosamente por que seja feita justiça a este
pobre rapaz.

2003-11-27

Finalmente o caso Moderna parece chegar ao fim. Tanto


tempo para se concluir que o gestor tinha sobretudo
gerido os próprios interesses em vez dos da instituição
para a qual trabalhava.

284
A minha pequena vida

Quase dois anos de julgamento para finalmente se


concluir o óbvio faz-me duvidar da justiça portuguesa.
Porquê tantos custos e tanta demora quando o desfecho
era mais do que evidente?

E no fim será que o Estado vai ser reembolsado pelos


prejuizos e pelo custo astronómico do processo judicial,
independentemente de haver ou não recursos?

Em certos casos a presunção de inocencia é mais uma


princípio ou um argumento retórico do que uma
realidade, sobretudo diante de provas tão esmagadoras
como as existentes neste processo. Devia, portanto,
haver uma metodologia simplificada quando o arguido é
evidentemente culpado e não vai deixar de ser
condenado, dando obviamente garantias de defesa caso
o impensável, ou um autêntico milagre possa vir a
suceder.

Claro que neste momento todos pensam na justiça


islâmica, rápida, barata, algo dolorosa e muito
dissuasora, mas difícil de enquadrar na nossa civilização
ocidental, que alguns chamam “de raiz judaico cristã”.

Também não estou a pensar na justiça na Idade Média


em que testes de flutuação determinavam se alguém era
uma feiticeira ou um bruxo. Se o infeliz não se afogasse,
era culpado e condenado a ser queimado vivo, se fosse
ao fundo estaria tão inocente quanto morto, o que não
era de grande proveito para o principal interessado.

O ideal seria uma espécie de julgamento preliminar,


simplificado, o qual determinaria a quem caberia o ónus

285
A minha pequena vida

da prova. Escutem senhoras ministras das Finanças e da


Justiça que isto deve interessar-lhes! Estou a apresentar
uma solução fabulosa do ponto de vista jurídico-
económico que pode revolucionar o nosso País e colocá-
lo na vanguarda da Europa, acabando com a falta de
dinheiro para a Justiça e libertando importantes verbas
para combater o défice.

E que tal um lugarzinho como acessora?

2003-11-28

Hoje foi o dia do Carlos Cruz ser inspecionado. Quase


como na tropa, diante de um jurí, visto dos pés à cabeça
à procura de qualquer defeito, perdão, característica que
determine a sua inaptidão ou não para os fins a que se
destina.

Sendo gente importante, fez-se acompanhar de médico


privado, sendo o procedimento do exame verificado
presencialmente por um procurador e controlado por um
advogado para que tudo seja feito de acordo com a lei.
Bolas, até parece impossível que para examinar alguém
sejam precisas tantas pessoas para além dos
examinadores. Se falamos no constrangimento
resultante deste exame, provavelmente deve-se mais a
uma plateia superlotada do que ao evento propriamente
dito. Penso que só faltava terem deixado entrar a
comunicação social e alguém a vender bilhetes à
entrada. Certamente era o programa com mais audiência
nos telejornais.

286
A minha pequena vida

E na verdade por que não num país em que não há


segredos e onde tudo parece ter um preço? Por que não
rentabilizar a justiça, que custa tanto dinheiro aos
contribuintes através de uma mediatização oficial, com
preços acordados com a comunicação social?

Já que não é possível manter o segredo de justiça, por


razões que todos desconhecem, podemos oficializar a
fuga através de acordos, com as devidas contrapartidas
para os intervenientes, para gáudio da populaça e
alegria do contribuinte.

Desta forma até podiamos fazer programas baratos para


a “2”, o pseudo novo canal que vai substituir a RTP-2, e
obter lucros logo desde o início, competindo
directamente com todo o dispendioso telelixo dos
restantes canais. Uma óptima sugestão para o Ministro
Morais Sarmento, que ultimamente tem andado algo
desaparecido devido a umas merecidas mas inoportunas
férias e necessitado de algumas ideias fantásticas que
lhe facultem um regresso glorioso.

2003-11-29

Mais um dia trágico no Iraque, com mais de uma dezena


de mortos entre militares americanos e agentes secretos
espanhóis, provando que esta gigantesca operação
caminha velozmente para um monumental fiasco, fruto
de uma análise ligeira, de uma avaliação negligente, de
uma nítida falta de preparação para o cenário que se
seguiria a uma vitória militar tão rápida quanto traiçoeira.

287
A minha pequena vida

Hoje começamos a ver onde estão os elementos das


divisões de elite que se dissolveram no deserto sem
deixar rasto. Muitos foram os que se congratularam com
o desaparecimento destas unidades, acreditando de
forma ingénua numa desistência prematura por parte dos
mais fieis e aguerridos militares iraquianos. Neste
momento, estes começam a vir à superfície,
imobilizando uma poderosa máquina militar com o terror
dos atentados e forçando a uma alteração táctica que
brevemente levará à adopção de uma nova estratégia
para a enfrentar uma situação que se degrada
diariamente.

Exceptuando as missões, normalmente com parcos


resultados, para encontrar elementos terroristas ou da
resistência iraquiana, os militares das forças de
ocupação estão confinados aos próprios
aquartelamentos, convertidos em autênticas fortalezas, e
a inócuos passeios em tanques ou veículos fortemente
blindados, a partir dos quais não é possível aceder aos
locais onde se escondem os seus adversários.

Nem mesmo os helicópteros oferecem alguma


segurança, desde os inúmeros mísseis ou lança
foguetes até ao fogo se armas ligeiras, já tudo serviu
para abater o que deveria ser um dos principais trunfos
na luta contra o terrorismo e que hoje não passam para
muitos de autênticos caixões voadores.

Infelizmente, tal como referi anteriormente, apenas vejo


duas estratégias possíveis, ambas com elevados custos
a nível humano e político, que permitam sair deste
atoleiro.

288
A minha pequena vida

Uma será a de entregar o poder aos dirigentes


iraquianos, retirar progressivamente as forças militares e
esperar que tudo corra pelo melhor. De certa forma foi o
que se passou no fim do conflito do Vietnam com os
resultados sobejamente conhecidos por todos.

A outra é seguir o exemplo dos Russos na Tchétchénia,


retirar, esperar o tempo necessário para que os
movimentos clandestinos se transformem em forças
regulares e esmagá-los com uma operação massiça,
rápida e sem contemplações para com quem possa de
alguma forma apoiar ou vir a dar apoio a um movimento
de oposição, mesmo que isto signifique o recurso a
meios extremamente crueis, com elevados custos para a
população cívil e a destruição da maioria da economia
local.

Infelizmente, tendo em conta a actual situação e o facto


de a evolução diária ser francamente negativa, uma nova
estratégia terá que ser adoptada e, independentemente
dos custos, quanto mais cedo melhor será para todos os
envolvidos neste drama.

2003-11-30

Estive a ler uma sondagem relativa à actuação da


Câmara Municipal de Lisboa e encomendada pela
própria autarquia. Os resultados estão, como era de
esperar, de acordo com as pretensões do cliente. Melhor
assim, caso contrário talvez a encomenda não fosse
paga, mas levanta problemas relativos à objectividade
dos resultados e à própria forma com que as peguntas
são colocadas.

289
A minha pequena vida

Imaginemos a questão do túnel das Amoreiras, com os


seus custos e o derrube de àrvores.

A Câmara poderá perguntar se concordamos com a


construção de infraestruturas que permitam uma maior
fluidez do tráfego, maior facilidade de circulação e um
mais fácil acesso ao centro da cidade.

A Oposição perguntaria se é justíficavel gastar milhões


de euros para atrair mais automóveis a uma cidade
congestionada, onde o estacionamento é impossível, à
custa de problemas ambientais gravíssimos que passam
pelo aumento da poluição e o derrube de àrvores.

Dependendo da forma como foi colcada a questão,


assim as respostas obtidas, e tal também se pode aplicar
ao Parque Mayer, à segurança nas ruas, aos problemas
de estacionamento e a qualquer dos problemas que hoje
preocupam os lisboetas. Quando é o mesmo a
encomendar a sondagem sobre a sua actuação surge-
nos a habitual situação pré-eleitoral, onde os dados de
cada partido são sempre de um optimismo contagiante
para os seus militantes e simpatizantes, normalmente
sugeitos a uma forte desilusão no momento da contagem
de votos. Nessa altura queixam-se da ineficácia da
empresa a quem foi encomendada a sondagem,
esquecendo que normalmente um fornecedor está
condicionado pelos interesses do cliente.

Se tivesse dinheiro encomendava uma sondagenzinha


sobre mim própria, salientando logo que não pagava
caso os resultados não estivessem de acordo com o
esperado, que neste caso coincide com os meus

290
A minha pequena vida

interesses pessoais. E podia perguntar a opinião das


pessoas acerca das minhas capacidades governativas,
das minhas ideias políticas, da legitimidade do meu
ambicionado direito de voto aos seis anos de idade, do
estabelecimento de quotas de deputados para gatochys,
enfim, acerca de tudo aquilo a que indiscutivelmente
tenho direito inalienáveis que me são continuamente
negados.

Enfim, vou inscrever no meu orçamentozinho de 2004


uma alínea para acções de consulta e de marketing. Se
calhar uma sondagenzinha com uns doze inquiridos
telefonicamene até que não custa muito dinheiro e pode
ser um bom argumento para as minhas ambições
políticas.

2003-12-01

Estive ontem a assistir a breves momentos de um


estranho programa de televisão, onde os concorrentes
tentam acertar em algumas perguntas do código da
estrada enquanto alguns pseudo-famosinhos se
vangloriam das multas ou contra-ordenações com que
foram obsquidados pelas autoridades e de quantas
vezes o seu estatuto lhes permitiu escapar a uma justa
sanção.

No dia em que quase uma centena de veículos se viram


envolvidos num choque em cadeia na auto-estrada do
Norte, as afirmações daqueles pobres de espírito, que
numa autêntica confissão pública e expontânea se
gabam de infrações que vão desde a mais ligeira até
autênticos crimes rodoviários, espelham bem o estado

291
A minha pequena vida

do país e a irresponsabilidade que grassa nas nossas


estradas.

Não culpo apenas os famosinhos, todos sabemos que


para além de serem mais ou menos conhecidos ou
reconhecidos pelo público amante de escândalos e
figurarem em publicações de gosto mais do que
duvidoso, pouco mais contribuem para este país.
Responsabilizo também os agentes da autoridade que,
diante de uma figura pública, mesmo que sem qualquer
especial valor para a sociedade, deixam de cumprir a
sua missão e oferecem um tratamento especial.

Este é, como muitos afirmam, o país das cunhas. Tal


como afirmou ontem o ex-revolucionário Pacheco
Pereira, é uma autêntica instituição nacional, um modo
de vida que de tão normal se torna sociavelmente
aceitável, e não esqueçamos nunca que a normalidade é
um conceito estatístico, mas o alarde público de
beneficiar de tais favorecimentos é, no mínimo,
chocante. De certa forma vem consubstanciar o estatuto
de famosinho, ou seja de quem o é apenas pelo mérito
de ser uma figura pública, cujas aparentes vantagens
não incluem apenas os convites para eventos sociais
mas também uma espécie de estatuto próprio diante da
lei.

Tenho poucas esperanças que o Ministério Público


mande extrair certidões a partir do infeliz programa e
proceda à investigação dos factos publicamente
confessados, terminando num processo judicial que não
só agradaria ao cidadão comum, farto de imerecidos
regimes de excepção, como também poderia alimentar

292
A minha pequena vida

mais uma nova e rentável série televisiva, a “telenovela


dos famosinhos condenados”.

2003-12-02

O Natal aproxima-se velozmente e como vivo num país


cristão vou aproveitar os hábitos locais para receber
algumas prendas. A minha lista é quase infinita e vai
desde um cobertorzinho eléctrico, passando por uma
caixa de latas até a um irradiador com infra-vermelhos,
que se ligue automaticamente quando eu me coloco à
sua frente.

A minha prenda vai ser a do costume, umas páginas da


minha pequena vida, que por altura do Natal dos cristãos
deve andar pelas duzentas e cinquenta. Provavelmente
no fim do ano vou dar como concluido o meu primeiro
volume e tentar encontrar um editor. Talvez o Expresso
seja uma boa opção, porque tem uma boa base de
imagens e eu gostava que o meu livro fosse uma edição
de luxo ilustrada e forrada a cabedal. Não que eu goste
do cabedal, mas ouvi dizer que os livros com uma
encadernação de luxo vendem mais, ficam mais bonitos
nas estantes e sempre são uns bichos maus a menos a
andar por aí. Pensando bem, são só vantagens em usar
cabedal e se puder também quero o meu nome gravado
a ouro, o mais brilhante possível, porque ao contrário de
mim, os meus futuros leitores vêm mal no escuro.

Mas enfim, enquanto o Natal não chega, tenho que


justificar as latas que me dão e falar de assuntos mais ou
menos sérios. Sérios mesmo é difícil neste país a
brincar, mas alguns chamam a atenção dos leitores.

293
A minha pequena vida

Hoje vinha noticiado que diversos nomes de


testemunhas do processo da Casa Pia se encontram
visíveis num site de apoio ao Carlos Cruz, onde um
jornalista tenta descredibilizar quem pode favorecer a
acusação.

O princípio é simples, quem cometeu crimes não é de


confiança e o seu testemunho não merece qualquer
espécie de credibilidade. Ou seja, quem comete um
crime ou uma infração, seja ela qual for, torna-se
imediatamente um mentiroso e o melhor será que não se
queixe mesmo que seja vítima de algo muito pior do que
o que praticou.

Interessante princípio de Direito, que poderia inviabilizar


a maioria dos julgamentos, mas que pode ser uma faca
de dois gumes. Imaginemos que um dos arguidos tenha
tido algum problema com a Justiça, ou com o Fisco, ou
tenha algumas infrações rodoviárias que tenha tentado
encobrir. Neste caso, também lhe faltaria credibilidade e
como tal nada poderia alegar em sua defesa. Mais, com
tais antecedentes provavelmente nem deveria necessitar
de julgamento, passaria-se imediatamente à fase de
execução da pena, com os agravantes devido a tão
obscuro passado.

A bem de todos, vamos aplicar os mesmos critérios,


dispensando desde já as testemunhas com cadastro e
condenando através de um processo administrativo
rápido todos os arguidos contra os quais haja sido no
passado instaurado qualquer processo, mesmo que a
nível de uma simples contra-ordenação, em que tenham
sido declarados culpados.

294
A minha pequena vida

2003-12-03

Hoje o Euro bateu um máximo histórico. Foi exactamente


assim que a notícia foi dada e eu fiquei muito contente.
Apesar de minha unidade monetária ser a lata, tudo o
que tenho está avaliado em Euros, o que deve significar
que estou mais rica do que o ano passado e muito mais
rica do que à dois anos.

Brilhante esta invenção da valorização do Euro. Muito


mais rentável do que depósitos bancários, compra de
acções ou qualquer investimento mais ou menos
especulativo. Compram-se euros, espera-se um par de
anos e sem fazer nada com eles, sem os tirar do seu
pequeno esconderijo, passam a valer mais 40% em
relação ao dólar americano. Gostava imenso de saber
como é que isto acontece. Deve ser por decreto ou
qualquer lei especial. A nossa Ministra das Finanças
devia fazer algo de semelhante para ultrapassar o défice.
Um decreto a determinar uma valorização do património
em 40% resolvia-nos os problemas e tornava Portugal
num exemplo a seguir.

Já não é do meu tempo, porque ainda sou muito


novinha, mas o famoso Cavaco Silva também valorizou o
antigo Escudo. Como vinha da província e era mais
modesto, só o valorizou em 1%,, mas era uma novidade
e toda a gente ficou fascinada com a invenção. Lembro-
me de ter ouvido que bastou assinar uns papeis e de
repente toda a gente ficou mais rica.

295
A minha pequena vida

É espantoso como as boas ideias e as invenções mais


simples e práticas se esquecem depressa! Agora com o
Euro podiamos fazer a mesma coisa e em vez de dar
aumentos, passavamos a dar valorizações. Aliás não sei
porque é que as pessoas se queixam de não ser
aumentadas já que recebem o vencimento numa moeda
que se valorizou tanto face ao dólar. Basta comprarem
através da Internet productos cotados em dólares e
tiveram o maior aumento de que há história.

Não percebo como é que uma Ministra das Finanças tão


inteligente e trabalhadora não se lembra disto. Deve ser
por andar mesmo obsecada com o défice que esquece
as boas ideias. Arranjava uma espécie de central de
compras que comprasse em dólares e vendesse em
euros e os protugueses viam o seu dinheiro valorizado
em cerca de 16%, já descontando a inflação e sem
aumentos nominais.

Por Alá! Porque é que eu ainda não estou no Governo?

Provavelmente é por ser uma gatochynha pequenina e


muçulmana que sou descriminada neste país de pagãos.

2003-12-04

E pronto! Passados alguns meses o Supremo Tribunal


de Justiça vem confirmar todas as decisões das outras
instâncias e confirma o juiz Rui Teixeira no processo da
Casa Pia.

Embora falte um recurso no Tribunal Constitucional


relativamente à antecipação da distribuição do recurso

296
A minha pequena vida

de incidente de juiz, que alguns consideram ter efeitos


suspensivos, penso que tudo vai voltar à mesma e que
passados cerca de três meses se poderá recomeçar

O facto de tudo ter ficado na mesma pode por um lado


fazer crer numa manobra para adiar o julgamento, mas
dado que os requerentes não tiveram que pagar custas,
o Supremo legítima a pretensão em termos formais. Ou
seja, o artifício é legal, mesmo que se destine
unicamente a obter uma vantagem através de métodos
discutíveis.

Entretanto, o infeliz advogado de Carlos Silvino, menos


famoso e com menor influencia entre os seus pares é
sugeito a um inquérito por parte da Ordem por ter feito
algo de semelhante. Estranhos critérios estes, onde a
contestação ao Bastonário, mais do que a prática
profissional, podem tornar um advogado em alvo de um
procedimento disciplinar.

Mas o importante é que de recurso em recurso, num país


onde os atrasos na Justiça são conhecidos, e as
prescrições uma norma, muitos julgamentos são
inviabilizados, num completo desrespeito pelas vítimas e
premiando os arguidos que dispõe de advogados
competentes, algo que infelizmente está ao alcance de
poucos.

Pessoalmente, e sempre que observo estas situações,


penso que devia haver um sistema que limitasse ou
controlasse esta situação. Ou o período de prescrição
era automaticamente interrompido ente recursos da
defesa, ou o efeito suspensivo era limitado, ou os
recursos em certas situações seriam limitados, mas esta

297
A minha pequena vida

autêntica novela de vai acima, vai abaixo, volta aqui e vai


embora seria terminada.

Já várias vezes pensei que o nosso sistema judicial


apenas pensa nos culpados, nunca nas vítimas. O triunfo
não é quando as vítimas, quando possível, são
ressarcidas, mas quando os culpados são condenados.
Caso apenas se possa atingir um destes objectivos, a
condenação tem sempre prioridade, independentemente
das injustiças que tal possa causar. Os noticiários nunca
se lembram de perguntar, quando acaba um processo, o
que sucedeu aqueles cuja vida foi alterada em
consequência do crime, limitam-se a noticiar, muitas
vezes dias a fio, o que se passou com os culpados,
promovendo-os a autênticos protagonistas e integrando-
os na triste galeria dos famosinhos da nossa praça.
2003-12-05

Foi apresentada a campanha de Natal da PSP. Ao


contrário de muitos, estes não querem vender nada,
apenas pretendem que o espírito natalício também caia
sobre as várias espécies de larápios, carteiristas, ladrões
e similares e que os mencionados tão indesejáveis
espécimes não estraguem o Natal dos verdadeiros
cristãos.

Chamam a isto um “roubo sazonal”, uma espécie de


crime natalício feito por duendes maus numa altura em
que a maioria dos portugueses saltita alegre e
descontraidamente de loja em loja, de um centro
comercial para outro, traduzindo em compras a sua
percepção do Natal

298
A minha pequena vida

E enquanto para uns o Natal consiste num gasto


compulsivo e algo irresponsável, de que irão lembrar-se
com amargura nos meses seguintes, para outros
representa uma oportunidade de se abastecerem à custa
do que os primeiros iriam gastar de forma supérfula.
Basicamente, este é um princípio básico de
redistribuição da riqueza, prescindindo uns do que têm a
mais para que outros possuam o necessário.

O problema é que, quando esta redistribuição mais ou


menos equitativa não é voluntária e aceite por ambas as
partes pode transformar-se numa actividade criminosa. E
é aqui que entra a Polícia, como entidade reguladora
para que os ricos não empobreçam demasiado e os
pobres não se tornem em novos ricos. Caso tal
acontecesse, a situação invertia-se e os agora pobres
tentariam por sua vez o enriquecimento à custa dos
novos ricos.

Parece complicado mas não é, e tudo graças à nossa


Polícia e à campanha “Natal em Segurança”, que
garante a continuidade estatutária quer dos ricos quer
dos pobres, evitando convulsões sociais numa época em
que a paz e tranquilidade deve predominar.

Enfim, como eu não quero que um gato mau venha


apoderar-se da minha posição económico-social, peço a
todos que apoiem a nossa Polícia nesta dura luta contra
os comportamentos anti-sociais que tentam minar o
espírito natalício.

2003-12-06

299
A minha pequena vida

Recentemente começou a falar-se de pedofilia nos


Açores, quase como se fosse uma novidade. Tal como
não seria se estivessemos a falar da Madeira ou de uma
qualquer região onde coexiste um certo isolamento e
zonas de extrema pobreza.

Se os nossos investigadores observassem atentamente


certas pistas e indícios de raiz sócio-económica, talvez
fosse mais fácil saber onde investigar certo tipo de
crimes e quais as populações mais vulneráveis, mesmo
não havendo uma denúncia como ponto de partida.

Numa pequena ilha, onde existem comunidades


fechadas, empobrecidas, sem grandes possibilidades de
movimentação, a denúncia de um crime que cria um
evidente estigma social é difícil, quase impossível. Com
isto vem uma certa resignação e uma cumplicidade
social, reforçada pelos laços de parentesco, amizade ou
vizinhança, e uma evidente necessidade da
compensação económica dada às vítimas.

Todos sabem, mas ninguém faz perguntas, comentários


ou acusações. A necessidade económica acaba por falar
mais alto e a continuidade leva a uma certa habituação,
a ponto de encarar a pedofilia com alguma normalidade,
algo de inevitável e mesmo, no limite, uma necessidade
que apenas diz respeito aos directamente envolvidos.

Agora que as investigações começaram, de forma mais


discreta após a aprendizagem das lições resultantes do
inquérito realizado no âmbito do Processo da Casa Pia,
a surpresa apenas poderá ser a identidade dos
envolvidos, nunca a existência do crime, a sua extensão

300
A minha pequena vida

e o longo período de tempo em que se tem vindo a


praticar.

2003-12-07

Periodicamente volta-se a falar da infeliz Brigada de


Trânsito da GNR e normalmente por razões pouco
dignificantes. Ou é por causa da alegada corrupção de
alguns elementos, ou porque os comandantes se
demitem, ou porque existem conflitos internos, mas
nunca porque cumpriram melhor a sua missão.

A reintegração de mais de uma centena de elementos


transferidos para outras unidades e as consequências
desta decisão de um secretário de estado, que se põe
em bicos de pés antecipando uma eventual decisão
judicial, tem vindo a demonstrar que muito há para ser
feito não só no sentido de recuperar o prestígio e a
operacionalidade desta Brigada, mas também para evitar
a falta de habilidade política que grassa em vários
ministérios.

Se bem que possa vir a haver uma decisão judicial, um


facto fica em aberto. O período de permanência na BT é
suposto ser limitado para evitar situações indesejáveis
como o favorecimento ou a corrupção que podem surgir
quando existe uma permanência demasiado longa. E foi
este um dos argumentos para afastar muitos dos
guardas, aos quais não são imputados quaisquer factos
criminosos mas que, a bem de uma maior transparência,
foram transferidos. Outros há que são suspeitos ou
indiciados por crimes e que foram afastados, mas que
aparentemente também insistem na reintegração.

301
A minha pequena vida

Admito que a decisão estava errada do ponto de vista


jurídico, mas inevitavelmente destinava-se a sanear a BT
e permitir a novos elementos devolver-lhe a credibilidade
que hoje falta. Por outro lado, o que fazer com uma
centena de elementos a readmitir que não merecem a
confiança do comando? Provavelmente vão ser
colocados em funções de menor importancia, longe da
sua real missão e apenas nominativamente dependentes
da BT, destinando-se a funções meramente logísticas ou
administrativas sob um apertado controle por parte da
hierarquia.

Desta forma não vai haver reintegração funcional mas


apenas administrativa, tal como o era o Tribunal que
decidiu pelo regresso, indo pesar na orgânica da BT sem
vantagens quer para esta unidade quer para os próprios
guardas, os quais no fim vão estar em situação muito
mais delicada do que prestando serviço numa unidade
territorial. Portanto temos mais uma daquelas situações
em que uma decisão, ainda que formalmente legítima, só
vem contribuir para o aumento de problemas nesta força
e um custo adicional para o erário público, obrigado a
suportar um inútil aumento de efectivos sem que a isso
corresponda uma maior operacionalidade da BT.

2003-12-08

Todos querem passar o Natal em casa. Eu também, mas


como não sou nem arguida nem condenada, posso e
ninguém me pode impedir. Os que estão a contas com a
justiça, obviamente também querem, e os que até não se
importavam de dar uma escapadinha até ao Brasil ainda
mais o desejam. Deve ser isso que pediram ao Pai Natal,

302
A minha pequena vida

uma viagem até ao Brasil com escala em Espanha. Até


me lembra alguém de Felgueiras que vai passar o Natal
em terras brasileiras, longe do longo braço da justiça
portuguesa.

Outro, mais modestos, apenas pedem que lhes levem


uma lima dentro do bolo rei, ou uma gazua ou qualquer
outro utensílio que alimente os sonhos de evasão. Esses
são os que não têm posses para contratar advogados
que interponham recursos uns atrás dos outros,
confundindo a defesa do cliente com obstrução à justiça.
Sobre esses advogados já se pronunciou o Supremo
Tribunal de Justiça, utilizando uma linguagem que traduz
bem o pensamento generalizado deste povo.

Em relação aos detidos do processo da Casa Pia,


poucas são as esperanças de passar o Natal com a
família, e o adiamento sucessivo do julgamento, com o
inevitável atraso na sentença terá como inconveniente a
permanência prolongada em prisão preventiva,
eventualmente, de recurso em recurso até impossibilitar
a saida em liberdade provisória após cumprir metade da
pena.

Se eu trabalhasse para o Ministério Público ainda


interpunha mais um recurso ou dois após a condenação,
só para os deixar ainda mais tempo em prisão preventiva
até que não houvesse mais recursos. E utilizava todos
os artifícios a que eles recorreram para adiar ainda mais
o trânsito em julgado, desde os tradicionais
impedimentos de juiz até novas perícias ou o que mais
me lembrasse, mas garanto que iam cumprir a totalidade
da pena como preventivos e sem possibilidade de
liberdade condicional. E não pensem que isto é injusto,

303
A minha pequena vida

se consideram que podem usar todos os recursos


previstos na lei, lembrem-se de que o Ministério Público
pode fazer o mesmo e prolongar a situação até que
alguém morra de desespero.

E esta, hem?

2003-12-09

Será possível que o Secretário Geral do PS tenha


aprendido alguma lição após meses de tratamento
catastrófico do seu próprio envolvimento no escândalo
da Casa Pia? Que um pouco de bom senso e descrição
tenham tenham surgido no seu espírito, abandonando
teorias conspirativas e resignando-se à normal e lenta
evolução do processo judicial onde, com ou sem razão,
se viu envolvido?

Pela primeira vez foi omitida pela Direcção Nacional do


PS a absurda questão da cabala, embora a nível
regional haja ainda quem fale da ignomínia de um
ataque pessoal contra aquele que na prática é o braço
direito do presidente do governo açoriano.

Diga-se em abono da verdade que os socialistas


açorianos demonstraram muito maior perspicácia e
inteligência política do que a estrutura nacional,
surpreendendo pela rapidez das decisões e pela
imediata separação entre questões políticas e partidárias
e a esfera pessoal dos seus dirigentes. Podem ter
aprendido com os erros anteriores, mas, se alguém há a
louvar, é certamente o Presidente do Governo Regional

304
A minha pequena vida

que demonstrou que mesmo quando os visados estão


perto, continuam longe do partido e da política.

Em termos políticos há males que vêm por bem e se é


provável que o PS perca as próximas eleições regionais
nos Açores, pode ainda capitalizar o desemprenho do
actual líder regional, poupando-o a uma eventual derrota
e trazendo-o para Lisboa, como primeiro passo para o
desempenho de um cargo a nível nacional.

Será que finalmente posso sugerir alguém que suceda


ao azarado e inepto dirigente máximo do PS,
substituindo-o por alguém que para além de possuir
experiência governativa, tem um bom senso político raro
no seu partido?

Depois de todas as sugestões, avanços e recuos, de


tantos dirigentes que optam por se afastar da
responsabilidade de dirigir um partido que atravessa uma
das maiores crises da sua história, temos provavelmente
uma solução inesperada, sem a necessidade de procurar
um líder entre os antepassados gloriosos, arrancando-os
da sua reforma dourada e arrastando-os para uma era a
que não pertencem.

2003-12-10

Já não sei se é só azar ou se já revela alguma falta de


tacto político, mas o Ministro da Administração Interna
não consegue recrutar um novo comandante para a
Brigada de Trânsito da GNR.

305
A minha pequena vida

Após recusas sucessivas, conseguiu convencer um


general que devido a investigações por parte da Polícia
Judiciária Militar, não irá tomar posse do cargo para que
foi indigitado. Será que o Ministro e todo o seu gabinete
e acessores desconheciam um facto que, não sendo
publicitado, também não é secreto?
Ou será que acharam irrelevante que o futuro
comandante estivesse sob investigação, quando a
nomeação é para um cargo onde para além de ser
obrigatório ser honesto também é necessário estar
acima de qualquer suspeita?

Depois de mais um desaire, fruto de uma natural e


contínua falta de habilidade, cabe ao ministro que tutela
a GNR descobrir ou inventar um novo comandante, o
que parece não ser particularmente fácil devido a uma
certa falta de imaginação.

Mas eu, mesmo sendo uma pequena gatochynha, posso


ajudar e não peço nada em troca, embora agradeça o
perdão de algumas multas caso venham a aparecer no
meu modesto domicílio.

Saberá o citado Ministro, após uma douta reunião de


Conselho, que a taxa de desemprego tem vindo a subir
neste país? Talvez desconheça que, não podendo
recorrer ao Expresso devido a questões orçamentais, o
jornal Ocasião permite publicar anúncios de emprego
absolutamente grátis. Não estour a brincar, é grátis e
sem compromisso, nem sequer tem que gastar um par
de euros, dificilmente justificáveis em altura de crise,
para comprar o jornal.

306
A minha pequena vida

Tudo o que tem a fazer é encarregar alguem do gabinete


ou um acessor de redigir o anúncio, respeitando o limite
de caractéres, e lembrando-se desta vez de incluir o
perfil completo do candidato desejado. Lembrem-se de
que não deve ser cadastrado, nem arguido em nenhum
processo, alguma experiência é útil mas não essencial,
deve estar disponível para começar a trabalhar
imediatamente e preferencialmente deve ser de
nacionalidade portuguesa e trabalhar voluntariamente.

Enfim, aqui fica mais um conselho grátis a bem da


Nação. E lembre-se, senhor ministro, ainda há coisas
grátis neste mundo, anúncios e recurso ao voluntariado.

2003-12-11

Será que vai mesmo haver uma taxa para circular de


automóvel nas chamadas zonas históricas de Lisboa?

Já sei que a Baixa, Chiado e outros bairros já foram


considerados históricos pela Câmara, mas e o meu
bairrozinho, onde eu escrevo as minhas histórias e onde
preciso de atravessar as ruas sem correr o risco de ser
atropelada por um louco furioso ou um aprendiz inepto?

Realmente não sei quais são os critérios, mas aqui


também temos muitos prédios antigos, um ambiente
típico de aldeia, enfim, um microcosmo dentro de uma
cidade, completamente diferente do ambiente que o
rodeia.

Se houvesse possibilidades de candidatura, eu propunha


o meu bairro para ser incluido entre os já mencionados,

307
A minha pequena vida

sobretudo se pudesse ficar com parte das tarifas a


cobrar aos incautos passeantes. Fazer turismo numa
zona tão chique como esta não pode ser para todos,
apenas para os que possam pagar por tal privilégio,
como o de partilhar a mesma rua comigo ou, honra
suprema, de se cruzarem comigo, sempre à distância,
claro.

Já que temos os parquímetros, por que não uma espécie


de andímetro ou qualquer coisa semelhante para quem
não tem cartão de residente? Numa altura em que há
sempre falta de dinheiro, a nível nacional e local, uma
nova fonte de rendimento deve ser sempre bemvinda.

Não pensem que quero transformar este bairrozinho num


condomínio privado, porque isso fica mais para o ano
que vem, apenas pretendo evitar que um bairro calmo,
com poucos habitantes, continue a ser um gigantesco
parqueamento automóvel, sem regras, onde para evitar
os parquímetros se estaciona preferencialmente nas
esquinas, nas faixas de rodagem e em cima dos
passeios, perante a completa indiferença da Polícia, não
obstante haver uma esquadra dentro do Bairro. Dado
que não vejo outra solução contra tais transgressões,
uma proibição absoluta talvez venha a ser a única
possível e quando as autoridades, devido à sua
incapacidade ou falta de recursos também o
reconhecerem, passarei a viver no condomínio privado
do Arco do Cego, o que no futuro vai ter o famoso jardim
prometido pelo Presidente da Cãmara, onde hoje se
aloja uma imensidade de camionetas sujas e
malcheirosas.

308
A minha pequena vida

Mas esperem, quando o meu bairro for um condomínio


privado, vamos alterar o nome, que isto de Arco do Cego
tem pouca classe. Podemos chamar-lhe o Condomínio
dos Jardins de Londres, ou incluir uma alusão à rainha
de Inglaterra, porque não basta viver no meio do luxo,
quero que o nome reflita o novo estatuto e faça os
forasteiros sentir a inveja de não morar aqui.

2003-12-12

Como a excepção tende a confirmar a regra, os sempre


derrotados advogados do Carlos Cruz conseguiram a
sua primeira vitória com a decisão do Tribunal da
Relação em mandar ouvir novamente o seu cliente.

Na verdade pode não ser propriamente uma vitória, dado


que nada obriga o Juiz a ouví-lo com atenção, ponderar
o que possa ter escutado e, menos ainda, alterar a
decisão que tomou na altura da prisão preventiva.

Mas vale pelo passeio, o que já não é mau, e pelo golpe


publicitário que volta a trazer para a primeira página um
arguido já algo esquecido pela opinião pública, mais
interessada em escândalos mais recentes como o da
pedofília nos Açores. Para quem sempre quis contar com
a opinião pública como aliada e força de pressão, o
esquecimento é em sí uma significativa derrota
estratégica e qualquer meio para o combater é
justificável, seja o recurso a uma nova audição ou a
pretensão de uma absurda indeminização a ser exigida
ao Estado Português através de um Tribunal Europeu,
muito antes de esgotar os recursos a nível dos tribunais

309
A minha pequena vida

nacionais, o que só por sí vai provavelmente inviabilizar


o pedido..
Portanto, e segundo os últimos rumores, lá para a
antevéspera de Natal, lá vai o dito arguido alimentar
mais umas páginas de jornais e uns largos minutos de
emissão televisiva, com repórteres à espera durante
horas para obter uns segundos de imagens de um carro
prisional a entrar, umas poucas declarações de
advogados para quem o simples facto de o cliente ser
ouvido já é uma vitória, independentemente de passar o
Natal na prisão, e finalmente um conjunto de
comentadores mais ou menos eruditos a tecer
considerações irrelevantes perante um desfecho que se
prevê inevitável.

Felizmente nesse dia já estarei em pleno Natal, a


preparar a entrega dos presentes e o jantar de
Consoada da família que, pela primeira vez , vai ser na
minha casinha.

2003-12-13

Hoje foi dia de mais um buraco em Campolide, muito


perto do local onde um autocarro quase foi engolido há
poucos dias para acrescentar à longa lista já existente de
crateras não vulcânicas da cidade de Lisboa. Quase
podia parecer uma anedota, mas este novo
desabamento sobre o mesmo curso de água deve ser
entendido como um sério alerta em relação a uma longa
extensão onde uma situação semelhante pode vir a
acontecer.

310
A minha pequena vida

Sendo menos “glamoroso” do que o Túnel das


Amoreiras, é provável que vá sendo deixado para trás,
tal como muitas outras obras importantes em termos de
segurança mas que ficam longe das vistas dos
potenciais eleitores alfacinhas.

Mas bastante mais espantoso é a pretensão do


advogado do tristemente célebre Bibi de solicitar a
libertação do seu cliente. Invocando desde uma
colaboração com a Justiça que vai permitir todo o tipo de
revelações, de importância quase bíblica, até incidentes
processuais, tudo vale mais uma vez para alcançar
objectivos que a maioria dos portugueses não considera
como os mais nobres.
Para além de uma clara e revoltante injustiça como a de
perdoar crimes da maior gravidade em troca de uma
colaboração demasiado tardia para as inúmeras vítimas,
não posso deixar de imaginar o destino do Bibi caso
fosse colocado em liberdade. Conhecido por todos,
odiado por muitos, não deixo de pensar que seria
acossado por jornalistas, público e antigas vítimas,
muitas das quais dificilmente se conformariam com a
libertação de quem tanto os fez sofrer.

Mesmo no estrangeiro, sob outra identidade, não é fácil


estar a salvo num Mundo onde as distâncias são cada
vez mais encurtadas pelas novas tecnologias e pela
rapidez dos transportes.

Se existe algum local onde possa ser assegurada


alguma protecção a este arguido, é certamente na
prisão, a qual, por feliz coincidência, é também o lugar a
que justamente pertence.

311
A minha pequena vida

2003-12-14

Hoje é inevitável falar da captura de Sadam Hussein.


Após o fracasso em localizar Bin Laden e o Mullah
Omar, é uma consolação para o infeliz portador do perú
de plástico, que pode cantar vitória pela primeira vez.

Localizado perto da sua cidade natal, quase


irreconhecível devido à longa barba, mas identificado
através de ADN e filmado para que todos saibam da
notícia, resta saber quais as consequencias práticas
desta captura.

Será que vão diminuir os ataques contra as forças da


coligação ou esta captura vai ter sobretudo resultados
políticos, permitindo ao presidente que veio do Texas
exibir pelo menos um troféu de guerra em ano de
eleições?

Só os próximos dias dirão se vai ou não haver uma


diminuição da actividade miltar, mas pelas condições em
que estava escondido o antigo presidente iraquiano, não
me parece sequer plausível que estivesse directamente
ligado ao comando das operações. Posso admitir que a
sua captura representa um golpe psicológico naqueles
que ainda lutam pelo seu retorno ao poder e que se
sintam desencorajados na ausência do líder, mas para
uma estrutura de guerrilha descentralizada, com
comandos autónomos, o efeito prático será diminuto.

Por outro lado, o desespero pode levar a acções mais


violentas, as quais podem incluir tomadas de reféns que
possam ser usados como moeda de troca ou outro tipo

312
A minha pequena vida

de chantagem com armas de destruição em massa que


nunca foram encontradas.

Basicamente, o resultado principal vai-se reflectir nas


sondagens e na popularidade do actual presidente, será
um pesadelo para os candidatos democratas que
perdem um dos seus argumentos de peso e
provavelmente vai aumentar ainda mais a tensão que se
vive no Iraque.

Temos ainda, o paraíso dos futurologistas político


militares, capazes de imaginar qualquer cenário
independentemente da sua razoabilidade, e dos
jornalistas, que precisam de uma alternativa mais ou
menos fácil e unificadora que substitua durante uns dias
os habituais escândalos a nível nacional. Estes serão,
provavelmente, os grandes beneficiados desta captura
para a qual nada contribuiram e sobre a qual opinarão
profusa e ridiculamente.

2003-12-15

Há poucos anos a nossa Polícia tinha umas pistolas tão


velhas que tinham que disparar para provar que ainda
funcionavam. Eram tão imprecisas que muitas vezes
apontavam às pernas e acertavam na cabeça.

Hoje, as pistolas são novinhas em folha. São tão giras


que até dá gosto dispará-las e tão precisas que mesmo
os tiros para o ar acertam no alvo.
Portanto, aquilo que para uns é um problema e para
outros um resultado que põe a PSP em primeiro lugar no

313
A minha pequena vida

Campeonato Europeu da Polícia que mais dispara,


contínua nas páginas dos jornais.

E o que é facto é que a PSP tem feito progressos. Este


ano já morreram seis indivíduos, atingidos pelas balas da
Polícia, enquanto o ano passado apenas foram cinco e
no anterior não passou de três. É um aumento para o
dobro em apenas dois anos que aparentemente deixa
preocupado o Inspector Geral da Administração Interna.

Simpático indivíduo, conhecido sobretudo pelo gosto


inexcedível com que escolhe as suas gravatas, o
Inspector preocupa-se permanentemente com o
progresso nas estatísticas da PSP, a ponto de querer
que os agentes usem sprays e bastões eléctricos em vez
das pistolas em que o Estado investiu tanto dinheiro.

Talvez seja a Ministra das Finanças a salvar a PSP.


Logo agora que as pistolas já estão pagas e vão
começar a ser amortizadas em termos operacionais já
querem armas novas? Ainda por cima armas caras e que
nem matam? Nem pensar numa tal
possibilidade,sobretudo se tivermos em conta que as
antigas pistolas foram muito mais baratas e serviram
durante décadas, enquanto estas acabaram de ser
compradas.

Além disso qual é a piada de praticar tiro ao alvo com um


spray? Eu sei que sempre se podem usar moscas como
alvo e que a Sociedade Protectora dos Animais nem se
vai queixar, mas será dignificante para um agente policial
andar a contar moscas durante o treino e com um spray
à cintura em serviço?

314
A minha pequena vida

Proponho que se mantenham as pistolas até sairem de


prazo, o que deve acontecer daqui a uns cinquenta anos,
e que nessa altura se invista em novas tecnologias,
como os atordoadores laser que aparecem em todos os
filmes de ficção científica.

E até lá, boa pontaria e não se esqueçam de praticar


sempre que puderem.
2003-12-16

Realmente brilhante a piada do Carlos Cruz sobre beijar


o Menino Jesus no Natal e as possíveis suspeitas de
pedofilia que esse cerimonial dos cristãos poderia
levantar.

Prima pelo extremo mau gosto, pela mais completa


irresponsabilidade e demonstra que tem os advogados
que merece. Com este arguido e uma equipa legal que
tão bem o aconselha e proteje, pouco há a fazer por
parte do Ministério Público excepto deixá-lo falar. Para o
Huiz Rui Teixeira, esta foi uma prenda de Natal tão
inesperada quanto o foi para o Presidente Bush a
captura de Sadam. Nem nos seus sonhos mais loucos
se atreveria a imaginar que um arguido atentasse contra
a própria credibilidade de forma tão cruel e decisiva.

E ainda se queixa pelo facto de a Ministra da Justiça o


ter proibído de prestar declarações públicas. Parece que
anda não conseguiu perceber que ela só pretendia um
processo sério e evitar que as declarações do arguido o
condenassem ainda antes do julgamento. Já nem se
pode falar de mais um tiro no pé, este foi directo à
cabeça e vai ser recordado por muitos e bons anos, de
certeza mais do que o autor vai passar preso, sob

315
A minha pequena vida

acusações de pedofília, blasfémia e mau gosto


agravado.

Do almoço de desagravo pouco há a dizer. Lembra


cerimónias de outras eras, em que um grupo de fieis
incondicionais e mais ou menos acéfalos iam em
romaria, com uma corda no pescoço, pedir perdão por
erros alheios. Neste mundo de novas tecnologias, onde
as comunicações estão tão facilitadas, mesmo à
distância é possível uma manifestação tão ridícula e
anacrónica como esta.

Talvez a Ministra da Justiça proiba também os


telefonemas, que na verdade só prejudicam este
arguido, indispoem a opinião pública contra ele e limitam
a sua credibilidade. Neste momento só a solitária até ao
julgamento pode ainda vir a permitir algum tipo de
simpatia pelo mais inábil dos comunicadores
portugueses. Isto nem o Ferro Rodrigues bate!
2003-12-17

Depois da libertação de Paulo Pedroso e de Hugo


Marçal, chegou a vez de sair Jorge Ritto. Parece
impossível, mas o mais conhecido dos pedófilos acaba
de ter ordem para sair em liberdade devido a um erro no
interrogatório que, aparentemente, não lhe permitiu uma
defesa justa.

E com isto de 6-0 já vamos em 3-3, sendo que um dos


presos, por se dizer que colabora com o Ministério
Público, pode nem ser contabilizado. Mas
independentemente das contas, a conclusão é de que há
sempre erros, ou do Juiz ou do Ministério Público e que

316
A minha pequena vida

basta uma única falha para um preso, pedófilo


internacionalmente reconhecido, sair da prisão.

Conclui-se que na verdade a Justiça não é igual para


todos. Aqueles que podem pagar a advogados que
recorram a todas as instâncias possíveis, utilizem todos
os recursos existentes, têm uma muito maior
probabilidade de com isso provocar um erro judicial de
que mais tarde possam retirar alguma vantagem.

Sempre me pareceu pouco ou nada ético que alguém


que é fortemente indiciado, sobre quem existem mais do
que suspeitas, possa ser libertado em virtude não de
factos, mas de situações menos claras que ao mais
comum dos portugueses se torna inexplicável e
revoltante, aumentando o manifesto descrédito em que
vive o nosso sistema judicial.

Finalmente temos que pensar nas vítimas, que não


podem deixar de se interrogar, sentindo uma imensa
injustiça e a falta de protecção que deviam ter. Numa
situação de grande fragilidade emocional, após anos de
experiência traumática, é absolutamente indesculpável
que o Estado Português permita uma tal situação, onde
de forma alguma se possa dizer que é a Justiça a
funcionar.

É nestas alturas que sinto a imensa força da justiça


corânica, da sua simplicidade e rapidez, da sua
objectividade e do seu poder que falta a uma
supostamente mais civilizada civilização ocidental.
2003-12-18

317
A minha pequena vida

Em tempo de Natal todos esperam receber prendas.


Para uns, como eu, é preciso aguardar até ao dia 25 por
uma surpresa. Para outros, os presentes são
antecipados e a sua entrega é publicamente anunciada.

Claro que para os políticos uma prenda só vale a pena


ser dada for dado destaque ao evento, com
agradecimentos públicos e comunicação social à
mistura. No fundo, nada de muito cristão, mais parece
um golpe publicitário do que uma oferta desinteressada.

Desta vez, foi o Ministro da Administração Interna que


anunciou a oferta de uma trintena de viaturas e umas
cinquenta motoretas às forças de segurança. Ainda não
deu nada, mas já começa a colher os louros pelo
esperado acto futuro. E amanhã, rodeado de jornalistas,
vai começar a distribuir as chaves aos felizardos que vão
passar a andar de carro ou moto nova.

Lembra-me de quando, ainda recentemente porque eu


não me lembro bem de coisas antigas, foram oferecidos
uns automóveis à PSP que logo após a cerimónia
recolheram às garagens. Nunca mais soube destas
prendas e infelizmente nem tomei nota das matrículas
para me certificar que não estão a ser oferecidas
sucessivamente sempre que chega a altura do Natal..

Se por um lado a ideia pode parecer brilhante, oferecer


várias vezes o mesmo presente sai barato, por outro
lado obriga a roubá-lo outras tantas vezes, o que
convenhamos, lembra sempre o velho ditado popular
que diz “quem dá e volta a tirar ao inferno vai parar”.

318
A minha pequena vida

Ainda por cima estamos a falar de tirar à própria Polícia,


o que deve ser mais difícil e sujeito a um agravamento
da pena.Só espero que uma das matrículas coincida
com uma do ano passado e talvez seja desta que o
Ministro vai preso, o que no caso concreto, embora
escandaloso, não deixava de ser vantajoso para o
próprio Governo.
2003-12-19

Li hoje declarações surpreendentes do Ministro da


Administração Interna que já menciona uma suposta
conspiração contra o Governo, algo semelhante à cabala
que quase vitimou o líder do PS, mas com a gravidade
de ser dirigida contra um orgão de estado.

Sendo o responsável pela segurança interna, este


atentado contra a soberania nacional já devia estar a ser
investigado, utilizando todos os recursos disponíveis,
sem olhar a meios para eliminar esta afronta perpretada
por um bando de conspiradores da pior estirpe.

Cabe ao Ministro em causa defender-se a sí, ao Governo


e ao País, em vez de se queixar de uma qualquer
perseguição contra quem deverá ter ao seu dispor todos
os recursos para a evitar.

Mas podemos ter um problema em mãos, caso o


Ministro não tenha os meios, a vontade ou a capacidade
de eliminar tão perigoso ataque contra a legalidade
democrática. Será que as nossas forças de segurança,
como de costume, não se apercebem de cabalas? Falta-
lhes o discernimento para se apeceberem dos perigos de
tal urdidura? Ou serão os seus comandantes que não

319
A minha pequena vida

estão preocupados com este ataque dirigido contra as


mais altas instâncias da governação?

Se pensar que este é o célebre Ministro odiado pela


Polícia, críticado pelos Bombeiros, incompreendido pela
GNR, cuja equipa, com especial destaque para o
Secretário de Estado tem a visão de uma toupeira e a
delicadeza de um elefante, podemos esta diante de uma
situação algo diferente da imaginada.

Provavelmente o maior interessado nesta tentativa de


eliminação política é o próprio chefe do Governo, que de
forma inconfessável procura livrar o país dos perigos
inerentes ao facto de ter escolhido para Ministro da
Administração Interna o actual títular, aproveitando para
fazer a sí próprio o favor de eliminar um factor
permanente de preocupação e de desgaste para o
Governo.

A bem da Pátria, vamos ajudar o Dr. Durão Barroso a


atingir tão nobres e patrióticos objectivos e contribuamos
todos para esta urdidura cabalística que visa afastar o
membro do Governo que procura rivalizar com o que o
Dr. Ferro Rodrigues tem de pior. Vamos apoiar a reforma
antecipada do Ministro Figueiredo Lopes para que este
tenha um descanso longe das preocupação da vida
política, muitas das quais irão desaparecer como que por
milagre após esta inadiável decisão.

2003-12-20

Estamos a chegar ao Natal e estes últimos dias vão ser


de uma enorme agitação. Temos alguns políticos a

320
A minha pequena vida

tentar uma última operação de charme para salvar um


ano desastroso, mesmo que isso implique uma visita
surpresa ao Iraque seguindo os passos do dono do perú
de plástico ou os arguidos do costume a exigir um novo
interrogatório que os liberte e permita passar o Natal fora
da sua actual residencia.

Nem quero imaginar alguém tão popular entre a GNR


como o Ministro Figueiredo Lopes a chegar, vestido de
Pai Natal, com um perú insuflável, pequenino para caber
na bagagem, umas cartas de familiares e os habituais
comentários que já não conseguem alegrar as tropas.
Será que ele não percebe que estar no Iraque durante o
Natal já é mau que chegue mesmo sem visitantes
indesejados? Nem toda a preparação que tiveram os
torna aptos a enfrentar este novo desafio.

Cá temos o pobre Juiz Rui Teixeira a fazer horas


extraordinárias que dúvido que alguma vez sejam pagas,
enquanto atura advogados que cobram por hora o que o
que um magistrado aufere num dia inteiro. E tudo isto
apenas porque alguns arguidos insistem na necessidade
vital de passar o Natal em casa, sugestão reforçada por
alguns advogados que apelam para um mínimo de
humanidade. Enfim, estranhos critérios estes, onde um
simples recurso por parte do Ministério Público que adie
o interrogatório é uma injustiça, contrastando com a
legitimidade de todos os incidentes e recursos
apresentados pela Defesa. Espero que o Procurador
demonstre o quão desagradável é ser sujeito a recursos
sucessivos e dê um ar da sua graça com dois ou três
recursos ou pedidos de esclarecimento que atirem o
interrogatório para as calendas gregas. Se utilizar os

321
A minha pequena vida

expedientes tipicos da defesa, talvez lá para Março o tão


falado interrogatório possa ser repetido.

Não quero parecer injusta, mas era bom que, por uma
vez, arguidos e respectivos advogados percebessem
que nem sempre é conveniente e útil recorrer a tudo o
que está à mão para adiar o desenrolar de um processo
judicial.

Portanto, senhores Cruz e Ritto, apreciem o perú de


plástico que os serviços prisionais têm o prazer de
oferecer, acompanhados com o cartão de Natal enviado
pela Ministra da Justiça, cuja perspicácia política a
impediu de ver que esta não é a missiva que os
presidiários esperavam dela.

2003-12-21

Eu ainda sou muito pequenina para ter um telemóvel.


Nem sei se as operadoras aceitam clientes com seis
anitos, mas em contrapartida tenho um “walkie-talkie”
que faz mais ou menos o mesmo na zona onde moro.

Mas hoje vi que já há autênticas burlas ou contos do


vigário, como lhe chamam os cristãos, que envolvem
telemóveis. Basicamente é o truque do costume, o
anúncio de um prémio inesperado e para o receber basta
enviar um SMS para um determinado número.

Trata-se da mesma história de sempre adaptada a novas


tecnologias e com alguns melhoramentos no cenário,
mas o princípio é sempre o mesmo, uma forma fácil,
prática e milagrosa de ganhar algum dinheiro.

322
A minha pequena vida

Há não muito tempo era a troca de escudos por euros,


as férias milagrosas,o sorteio em que o vencedor nem
sabia que tinha participado, tudo aparentemente grátis,
fruto da infinita generosidade empresarial de uma
entidade desconhecida.

Normalmente só se deconfiava pela morada algo


estranha, os telefones anónimos, o facto de não
enviarem documentação escrita, de insistirem
desmedidamente num contacto pessoal, enfim de
seguirem métodos que normalmente não se aplicam nas
relações comerciais.

Mas agora, com as novas tecnologias, com os


telemóveis e os computadores ligados à Internet, tudo
mudou. Desde mensagens falsas a solicitar estranhas
confirmações de dados, que vão desde números de
cartões de crédito até dados pessoais que permitam a
outros utilizar a uma identidade roubada, até aos
contactos feitos a partir de telemóveis anónimos,
comprados num qulaquer supermercado e sem contrato
definido, tudo facilita um novo tipo de criminalidade para
a qual as nossas polícias não estão preparadas.

Por outro lado, temos as cláusulas francamente abusivas


de operadores de telemóveis, bancos, empresas de
cartões de crédito, etc, que em vez de protegerem os
respectivos clientes se limitam a cobrar de forma mais ou
menos coerciva ou intimidatória despesas feitas por
outros.

2003-12-22

323
A minha pequena vida

Todo o país discute a convocatória feita aos arguidos do


processo da Casa Pia para serem escutados pelo
Procurador. Em vez de serem ouvidos pelo Juiz, coube
ao Ministério Público tomar a iniciativa e reunir toda a
gente, como se fossem uma grande família feliz em
vésperas de Natal

E enquanto alguns esperam que esta seja uma espécie


de celebração da despedida da prisão, mais barata se
for uma festa para todos, outros acreditam que se trata
exactamente do contrário, de lançar as comadres umas
contra as outras e escutar as verdades resultantes de
eventuais acusações mútuas.

Enfim, decidiu o Ministério Público oferecer à


comunicação social uma prenda de Natal, um dia interiro
à porta do DIAP, com câmaras, repórteres aos montes,
advogados a entrar e sair e toda a confusão habitual
destes dias para no fim pouco ou nada informar antes de
ser disponibilizado o comunicado do Procurador.

Realmente até me faz impressão ver aqueles pobres


jornalistas durante horas em frente à Penitenciária para
filmar durante dois segundos um automóvel que foge,
salientando que é a reportagem possível, ou
perseguindo seja quem for, sem olhar a riscos, para
filmar de longe o que dizem ser uma carrinha prisional
que esconde os mais mediáticos arguidos deste país.

São dezenas de pessoas que esperam para no fim nada


dizerem, terem os seus escassos segundos de glória em
frases ocas que apenas confirmam o óbvio, aquilo que
nem é preciso investigar porque está amplamente
divulgado pelos próprios intervenientes no processo.

324
A minha pequena vida

Num processo que é sobretudo mediático, que vive mais


de notícias e de especulações do que de factos, o papel
dos jornalistas mudou rapidamente de um meritório
trabalho de investigação, para uma telenovela digna dos
piores pasquins, deixando bem marcada a diferença
entre o pequeno número de profissionais sérios e
competentes que despoletaram o caso e os que o vão
alimentando com notícias especulativas e insignificantes,
numa absurda tentativa de fazer futurologia, com uma
credibilidade inferior à dos astrólogos e tarólogos da
nossa praça.

Vai a minha sugestão, contratem alguem na Feira do


Oculto, deixem-no escrever as notícias e vão ver que
todos ganhamos com isso. Lucram certos orgãos de
comunicação social, porque sai mais barato um
astrólogo do que uma dúzia de jornalistas, e ganha o
público, porque sem que haja uma variação da
credibilidade, pelo menos vai poder divertir-se e apostar
nas previsões. Eu até lançava um novo concurso a
susbtituir o defundo Totobola para subsidiar o nosso
sistema judicial, o Totoprisa, em que todas as semanas
se apostava quem fica e quem sai da prisão.

2003-12-23

Quando a taluda sai ao Ministério das Finanças em ano


de crise orçamental nem se deve pensar duas vezes,
abre-se logo um inquérito para averiguar se não estamos
diante de mais uma forma encapotada de obter receitas.

325
A minha pequena vida

E o que se passará com o Totoloto, que nunca saiu a


ninguém que eu conheço? Provavelmente também saiu
à Ministra, que não obstante tanta sorte não chegou
sequer a dar uma dezena de euros de aumento a quem
recebe o salário mínimo.

Nem em altura de Natal a lotaria sai aos mais


necessitados, nem o aumento é algo que se veja. Parece
que os portugueses estão mal com Deus e os homens
nesta época em que a solidariedade devia ser a regra.

Mas apesar de tudo, eu cá vou preparando o meu


Natalzinho. Ainda não sei que prendas me vão dar, mas
o jantar de amanhã vai ser um peixe que me é
desconhecido dentro de natas. Um tal de bacalhau,
segundo consta, é o protagonista da festança,
substituindo-se ao pato natalício devorado em ambiente
oriental.

Enfim, pela primeira vez a celebração vai ser cá em


casa, com tudo o que isso implica. Já sei que não posso
saltar para cima da mesa do Jantar, mas em
contrapartida não fico horas sózinha enquanto a minha
família degusta uma refeição chinesa para a qual nunca
sou convidada. Deve ser por prudência, porque segundo
dizem os chineses têm gostos alimentares estranhos e
eu sou mesmo muito tenrinha. Nem quero imaginar o
que seria se me passassem a mão pelo lombo e se
apercebessem da qualidade desta carninha.

Portanto, e para que eu não fique à míngua, vamos


celebrar aqui, com um banquete para o qual faço
questão de ser convidada de honra.

326
A minha pequena vida

2003-12-24

Aconteceu o que mais temia. Os intrusos pululavam na


minha casinha e até lhes deram de comer. E foram
ficando, e ficando e eu sózinha escondida dos
desconhecidos, longe do calor e da minha família.

Depois um foi-se embora, mas a minha pseudo avó


continuou, pronta para me aterrorizar e eu lá continuei
escondidinha. Foi um alívio quando a minha família a
levou a casa e eu pude finalmente apreciar com toda a
tranquilidade o meu petisco natalício em faz e sossego.
Acho que nunca tinha tido um Natal tão agitado e nem
sequer tinham um lugar para mim à mesa, e tudo porque
a minha seudo avó não gosta de gatos e insiste em
confundir-me com um desses malditos bichos!

Mas agora estou mais calma, com a minha família, com


calor e a barriga cheiinha de boa paparoca. Finalmente
chegou o meu Natalzinho.

A notícia do dia foi, certamente, a libertação de uns


pobres escravos que estavam perdidos e presos numa
aldeola. Até parece mentira que em pleno século XXI,
num país da Comunidade Europeia, alguém possa ser
obrigado a trabalhar de graça, sem poder sair ou
contactar a família e sendo agredido caso faça algo que
não agrade aos seus patrões, ou no caso concreto, aos
seus donos.

Durou seis meses, mas era inevitável que um deles,


mais cedo ou mais conseguisse contactar alguém. Daí

327
A minha pequena vida

até aparecer a Polícia foi um instante e os três escravos


foram libertados.

Mas também me surpreende o facto de ainda haver


quem tente escravizar alguém. Não deve ser difícil de
prever que quando este sair do seu contrôle vai falar
com as autoridades, e que tal é uma questão de tempo,
pelo que imagino que os supostos amos devam ter uma
solução para tal inconveniente. Como a situação tem que
ter um fim e a libertação dos escravos tem um preço
grave, suponho que tivessem em mente um destino
particularmente funesto para o fim da actividade dos
escravos.

Espero que para além da acusação de sequestro, óbvia


e inevitável, possa também haver uma de escravatura e
outra que preveja o destino último que iria ser dado aos
infelizes que se deixaram apanhar por tão hediondas
criaturas.

Devo admitir que às vezes gostava de ter um escravo.


Dava jeito para me levar a passear, afugentar os gatos,
dar-me a paparoca e tudo o mais que eu preciso,mas
apesar de tudo o que digo, tenho um bom coraçãozinho
e era incapaz de sacrificar alguém desta forma. Só se
fosse aquele maldito gato cinzento, mas é melhor não
me por com ideias.

2003-12-25

O dia de Natal costuma ser particularmente calmo, com


poucas notícias se exceptuarmos os habituais acidentes
de trânsito e o estranho ritual chinês do pato natalício,

328
A minha pequena vida

para que por qualquer razão estranha, nunca sou


convidada.

Também é nesta altura que o Presidente da República


indulta alguns presos, reduzindo-lhes as penas ou
anulando sanções acessórias, como a expulsão do país
para o caso de estrangeiros.

Ainda foram muitos os que beneficiaram destes indultos,


a começar pela Ministra da Justiça, que levou mais de
seiscentos processos e tentou durante meia dúzia de
horas convencer o Presidente a diminuir os custos do
sistema prisional e os problemas de sobrelotação das
prisões. No entanto, o inflexível Presidente apenas
aceitou reduzir penas a uma trintena de condenados,
pouco mais de um em cada vinte e só para não ser
acusado de tratar os presos de forma cruel e desumana.

A pobre Ministra da Justiça lá ficou com os restantes


quinhentos e setenta presos à espera do ano que vem,
tendo que alimentar e cuidar daquela multidão. E vai ter
que enfrentar a Ministra das Finanças e dizer-lhe que
não contou com a colaboração presidencial na redução
de custos, enfrentanto a ira obcessiva da sua colega de
governo.

E no meio disto, apenas se fala da libertação próxima da


célebre parteira que praticava abortos clandestinos,
usando para tal medicamentos retirados ilegalmente de
um hospital público onde, segundo a sentença, também
angariava as clientes a quem fazia abortar. Tudo isto foi
provado em tribunal e basicamente tratava-se de um
negócio próspero, dado que os recursos eram subtraidos

329
A minha pequena vida

ao erário público e a sua posição no hospital permitia um


contacto previlegiado com eventuais clientes.

Agora vêm transformá-la em boa samaritana, que só


furtava do hospital para ajudar mulheres desesperadas,
as quais misteriosamente tomavam a iniciativa de a
contactar sempre que necessitavam de abortar. Tudo
isto devido ao seu bom coração, à sua imensa
humanidade e à pena que sentia perante tantos dramas.
Claro que também temos que pensar naquela pequena,
insignificante compensação que alimentava a sua amada
conta bancária, mas pode-se sempre argumentar que
errada é a lei e que os actos apenas tentavam suprir
uma falta legislativa.

Basicamente transforma-se uma série de crimes, que


vão desde a apropriação de bens, ao aliciamento de
mulheres em dificuldades propondo-lhe abortar, numa
heroica cruzada contra uma lei que, podendo estar
errada, não deixa de ser obrigação cumprir, sobretudo
quando se aceita um cargo num serviço oficial de saúde.
Se era contra as regras, então não devia ter aceite um
emprego que violava os seus princípios e a sua
consciência, tirando partido de forma subreptícia das
oportunidades que esta posição lhe oferecia através de
uma atitude de duplicidade inaceitável.

E agora, que vai ser solta em breve, já tem novos planos


na área da saúde, o que apenas augura o pior, ou seja a
continuação da sua actividade anterior, um novo
julgamento e a espera por outro indulto presidencial.

2003-12-26

330
A minha pequena vida

E lá tivemos mais um episódiozinho do processo da


Casa Pia. Para fechar o ano em beleza o Ministério
Público optou por fazer mais uns interrogatórios e
mostrar que neste país mesmo em época natalícia ainda
há quem trabalhe.

Falta-lhes o rigor e a convicção de um Torquemada, não


são animados pela mesma fé inabalável na culpa dos
acusados e pouca ajuda devem pedir a Deus, mas nem
mesmo o Natal os impede de perseguir os que já
consideram as suas vítimas.

Hoje foi dia de Paulo Pedroso e Hugo Marçal, os dois ex-


presos que agora estão cá por fora, o que sempre
representa umas refeições a menos a ser pagas pelos
contribuintes. E nem sequer penso que haja grande
perigo de fuga do deputado em questão, o PS
certamente que ia em peso atrás dele só para evitar
mais uma felgueirice. Pois é, se a autarca de Felgueiras
está esquecida por muitos, uma nova fuga iria
transformar o PS no partido dos foragidos e nem quero
imaginar como o iria o Secretário Geral justificar tantos
azares.

Mas a um mês de ser formulada a acusação, com todas


as fugas de informações deste processo, quem não está
preso ou não sente que vai ser condenado ou já teria
fugido. Portanto, nem vale a pena mandar prender
alguém nesta altura do campeonato, é uma questão de
esperar pelo fim do jogo enquanto se vão fazendo
apostas no resultado.
Já pensei em organizar uma dessas jogatanas
clandestinas e nem percebo como é que o Ministério da

331
A minha pequena vida

Justiça ainda não lançou nada semelhante, com apostas


múltiplas, programas de televisão do tipo “Quem quer ser
milionário”, fascículos semanais com os novos
desenvolvimentos, uma colecção de cromos
autocolantes, concursos e notícias via SMS, enfim todos
os produtos que podem lançar um programa alternativo
ao Big Brother, com a vantagem de ser muito mais
pedagógico e barato. Nem é preciso pagar aos
intervenientes, basta emitir um mandato de captura e já
temos os figurantes necessários!

É nestas alturas que gostava de ser Ministra, ou talvez


até o lugarzinho do Durão Barroso, porque isto de ser
Presidente só foi bom no tempo do Dr. Mário Soares,
agora parece que o infeliz titular tem que trabalhar a
sério e nem se diverte tanto como os membros do
Governo. É uma pena não haver candidaturas para o
cargo de Ministro, porque com as minhas ideias
invejáveis, o meu currículo e o facto de aceitar um
salário muito mais baixo do que os outros, certamente
deixavam-me em primeiro lugar na lista de colocados
mesmo sem a necessidade de uma cunhazita de algum
familiar influente.

2003-12-27

A primeira notícia que me saltou à vista foi a falência da


Parmalat, essa enorme produtora de productos láteos
italiana. Para além se ser daquelas marcas que todos
conhecemos, os productos são-me familiares, tinham um
leitinho muito agradável de que ainda me vou lembrar
com saudades.

332
A minha pequena vida

Mas se eu posso obter leite de outra marca e igualmente


delicioso, os milhares de trabalhadores da Parmalat não
vão ter uma solução tão fácil para os seus problemas,
sobretudo depois de um tribunal declarar a falência da
empresa e de o principal responsável estar
desaparecido.

É sempre algo chocante ver uma empresa a fechar


devido a problemas económicos quando os seus
gestores auferiam ordenados milionários e fogem às
suas responsabilidades, muitas vezes após uma gestão
fraudulenta e irresponsável onde os interesses pessoais
se subrepuseram aos da empresa e dos trabalhadores
que contratualmente eram obrigados a defender.

E cá diz o povo, que os pequenos criminosos, aqueles


que para obter alguns euros de que necessitam para se
alimentar, acabam mais cedo ou mais tarde por serem
presos, enquanto os que utilizam cargos de
responsbilidade e de confiança para enriquecerem de
uma forma supostamente legal contratam bons
advogados, pagos com o fruto das suas ilegalidades, e
dificilmente são apanhados. Estes alegam problemas de
gestão, conjunturas difíceis, estratégias que não
resultaram e todas as justificações possíveis, capazes de
manter uma aparência de boa fé mesmo quando tudo
parece indicar o contrário.

Já lá vão os tempos em que os proprietários ou gestores


eram um pouco como os capitães que se afundavam
com os navios. Agora limitam-se a lamentar a má sorte e
a mudar para outra empresa, preferencialmente antes de
serem associados ao descalabro de gestão que as sua
decisões provocaram.

333
A minha pequena vida

Claro que como dantes havia servos que estavam


indissociavelmente ligados à terra que trabalhava, que
durante a regime soviético os passes dos trabalhadores
estvam nas mão do estado e não podiam mudar sem
autorização, também os gestores só deviam ter
possibilidade de sair após o fim do processo de falência
e os seus bens pessoais seriam penhor do seu empenho
na solução dos problemas a que a sua gestão
conduziram. Parece um exagero, mas quando
comparamos com os ordenados auferidos, quase sem
uma responsabilidade real, estamos diante de medidas
que evitam atitudes de gstão algo temerárias só
possíveis quando não existem consequências para os
próprios, onde uma vitória permite um imediato
enriquecimento e uma derrota apenas um prejuizo para a
empresa e os seus funcionários. Basicamente, proponho
a responsabilização efectiva de quem exerce cargos de
gestão, e quem sinta que não está à altura de assumir
esta responsabilidade, então também não está pronto
para enfrentar um desafio tão complexo e exigente como
o de assumir um cargo de cujo desempenho dependem
inúmeros trabalhadores, sem poder decisório e que em
caso de encerramento da empresa, certamente não
tiveram possibilidades de obter poupanças suficientes
para enfrentar um longo período à espera de um novo
emprego.

2003-12-28

Sinceramente não gosto de ver juizes a conceder


entrevistas. Acho bem que respondam a perguntas
ocasionais, mas longas páginas de jornal cheias de

334
A minha pequena vida

respostas parece-me um exagero pouco de acordo com


a discrição que se espera de um juiz.

Infelizmente foi o que vi hoje numa primeira página de


jornal diário, naturalmente comentado em todos os
noticiários televisivos, agravado pelo facto de ser
protagonizada por um juiz envolvido no mais mediático
processo em curso.

Algumas das respostas dão que pensar, embora a


maioria sejam aquilo que realmente todos sabemos e
não fujam de um certo lugar comum, como o inegável
facto de a justiça ser diferente para pobres e para ricos
devido a uma completa disparidade de meios. Mas não
só devido a questões económicas, também devido à
exposição do caso é possível a um arguido obter uma
melhor defesa com o patrocínio de advogados ansiosos
pela exposição de um caso mediático que os mantenha
meses a fio na primeira página dos jornais.

E no caso das vantagens pessoais da mediatização


acabamos por encontrar todos os intervenientes no
processo, desde juizes a magistrados, passando por
advogados e até aos próprios réus, que mesmo
condenados sempre podem vender os direitos da sua
história e rentabilizar de forma algo ainda mais perversa
os crimes praticados, num total desrespeito e
esquecimento pelo sofrimento das vítimas, cujo suplício
não termina na altura da sentença.
Este é o efeito perverso de uma justiça que se quer
pública mas discreta, onde a informação não deve ser
abafada pelo espectáculo mediático que em nome de
maiores tiragens especula, distorce e inventa,

335
A minha pequena vida

alimentando-se a sí próprio e afastando a realidade dos


factos.

Mesmo para uma pequena gatochynha curiosa e ladina


como eu, os limites do bom senso e da
proporcionalidade já foram há muito ultrapassados e, se
como muitos dizem, não há justiça na espera, ela
certamente também não existe na exposição excessiva e
permanente do crime.

2003-12-29

Hoje é imposível fugir ao processo da Casa Pia.


Subitamente, um mês antes do prazo limite, o Ministério
Público decidiu avançar com a acusação dos principais
implicados e pedir a prisão preventiva dos arguidos que
foram libertados durante o decorrer do processo.

Ainda não sabemos se o Juiz vai ou não atender ao


pedido de uma nova prisão preventiva, mas é uma
possibilidade aterradora após o espectáculo de mau
gosto que foi a festa de libertação que decorreu na
Assembleia da República. Foi chocante ver tantas
pessoas com responsabilidades políticas confundir o
desagravamento de uma medida de coação com o que
parecia ser o fim da acusação, numa demonstração de
completa inépcia política a que se seguiu um chorrilho
das mais esfarrapadas e hilariantes justificações.

Será que já posso imaginar uma nova manifestação


quando o deputado em causa suspender o mandato ou
desta vez a descrição vai imperar e o PS vai tentar
descolar desta actuação infeliz? Nunca me posso

336
A minha pequena vida

esquecer de que o líder é o mesmo, aquele que todos


reconhecem como o homem sem jeito, aquele que é
capaz de arrancar uma derrota impossível das garras da
vitória, deixando-se arrastar para o pântano da confusão
das declarações irrefletidas e do caos da incoerencia
verbal.
Espero que ainda hoje o Secretário Geral do PS faça
uma declaração coerente e lúcida, demonstrando ter
aprendido algo como os seus camaradas açorianos. Não
estou a pedir-lhe que tenha ideias ou que invente alguma
coisa nova, tão somente que leia as declarações do líder
do PS dos Açores e, eventualmente com a ajuda
benevolente de algum camarada mais versado nestas
andanças, as repita com o cuidado de fazer as
substituições necessárias.

Se calhar é pedir muito, mas acho que isto até o mais


desastrado dos políticos era capaz de fazer. Só faço
uma sugestãozinha final: não responda a perguntas que
não estejam combinadas, correm sempre mal e acabam
por desdizer o discurso que vinha tão bem planeado.

2003-12-30

Afinal conheciam-se todos! Pelo menos é o que a


acusação quer provar quando liga os vários implicados
no processo da Casa Pia entre sí. Só me espanta que,
com este convívio prolongado, sempre ligado às
mesmas actividades, não seja também formulada uma
acusação de associação criminosa.

Nesta altura em que o pouco que ainda estaria em


segredo de justiça salta furiosamente para as páginas

337
A minha pequena vida

dos jornais, começa a poder ver-se as bases da


acusação, com todas os indícios recolhidos, mas
também se tornam públicas eventuais falhas ou erros
que esta tenha cometido ao longo destes meses.

O primeiro destes poderá ser a data em que o Herman


José terá praticado o único crime de que é acusado.
Pode ser uma simples falha a nível de datas, mas chega
para fazer cair por terra a acusação. Se for verdade que
naquela data estava no Brasil, trata-se de um erro
clamoroso que pode ter consequências a nível da
credibilidade da investigação e projectar a sua sombra
sobre as provas recolhidas nos processos contra outros
arguidos.
Seja como for, é importante que se tenha passado à fase
seguinte. Para mim, que sou pequenina e só tenho seis
anos, períodos tão longos não fazem qualquer sentido.
Sinto-me confusa quando mencionam crimes que
ocorreram durante dezenas de anos, processos que
podem demorar três ou qautro anos até serem
concluidos e penas que podem chegar às dezenas de
anos. Para mim é tudo tão demorado que acaba por se
tornar tão estranho que e quase intemporal.

Nem quero imaginar, após um ano em que quase não se


falou de outra coisa, que possa demorar ainda outro até
começar o julgamento e que este se arraste por mais um
ano. Depois, como de costume, virão os recursos para
todos os tribunais nacionais e internacionais, os apelos,
as repetições e as inevitáveis prescrições. Podem ser
anos a fio sem uma sentença definitiva, sem um caso
encerrado e com uma imensidão de documentos que
vão apodrecendo esquecidos ou perdidos num qualquer
tribunal português.

338
A minha pequena vida

Desta vez não vou falar da justiça islâmica, que aqui


parece ter poucos adeptos, mas até os cristãos,
habitualmente pouco eficientes, tinham alguns tribunais
que eram rápidos a resolver estes problemas, sobretudo
se a eles fosse acrescentada uma dimensão religiosa. E
como passar do conceito do crime de pedofília ao de
pecado mortal não deve ser particularmente difícil,
demos as boas vindas ao Tribunal do Santo Ofício como
o único que pode rapidamente resolver um tão complexo
processo em terras de Santa Maria.

2003-12-31

Este ano está a chegar ao fim. Amanhã já será 2004 e


começarei um novo volume da minha obra.

Quase nem consigo acreditar que ao longo deste ano


escrevi em mais de duzentas e cinquenta páginas as
minhas reflexões, as minhas ideias e a minha visão
deste pequeno mundo que me rodeia.
Foi certamente o ano mais trabalhoso da minha pequena
vida, o único em que realmente tive uma ocupação
permanente, mas não vou ficar por aqui, a minha
resolução para o ano que vai começar é escrever um
novo volume, que será ainda maior do que este e,
espero, ainda mais interessante.

2004 vai começar com o debate acerca do processo da


Casa Pia, com a defesa dos arguidos a tentar contrariar
ou, pelo menos, descredibilzar a acusação, com o
balanço de um ano de crise alimentado por uma
depressão generalizada, com tantos problemas e

339
A minha pequena vida

questões internacionais que as intervenções militares e


as discussões políticas e diplomáticas não conseguiram
resolver, enfim com tantos temas em aberto à espera
dos meus sábios conselhos.

Ainda vou fazer o meu balanço deste ano que passou.


Provavelmente e injustamente não será publicado no
Expresso nem mencionado na Televisão, mas não é isso
que o diminui ou me deixa desanimada. Quando muito
poderia deixar desanimados aqueles que perderem a
oportunidade de ver este país e o mundo através de dois
olhinhos verdes, pequeninos e brilhantes, de pupilas
verticais que estão sempre atentos a tudo quanto se
passa, ajudados por duas pequenas orelhinhas
triangulares e direccionais, que escutam o que mais
ninguém consegue ouvir.

A todos um feliz ano de 2004! Muitas lambidelas da

Gatochy

31 de Dezembro de 2003

340

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