Sunteți pe pagina 1din 139

Copyright© 1946,1950,1972, 1977 byHenryMiller

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,


guardada pelo sistema “retrieval” ou transmitida de qualquer
modo ou por qualquer meio, seja eletrônico,
mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia
autorização por escrito'da Editora.

Foto da capa: Edgar W. D. Holcomb

Ilustração: “Ilha de Hydra” Kathleen Mackintosh

Tradução:
Aydano Arruda

Todos os direitos reservados pela


Editora ÁGORA Ltda.

n Caixa Postal 62.564


01000 -São Paulo -SP
SUMÁRIO

Dobrando os Oitenta.................................................................... 7

Reflexões Sobre a Morte de Mishima ................................... 21

Primeiras Impressões da Grécia ............................................. 45

Às Águas Reabrilhantadas .... ................................................. 71

Reflexões Sobre o Caso Maurizius......................................... 97

Mamãe, China e o Outro Mundo........................................ 129

5
DOBRANDO OS OITENTA
Viagem a uma Terra Antiga

Introdução a

O Anjo é Minha Marca d'Água

por

HENRY MILLER

1972
Dobrando os Oitenta

Se, aos oitenta, você não está aleijado ou inválido, se tem saúde,
se ainda gosta de uma boa caminhada e uma boa refeição (com todos
os acompanhamentos), se é capaz de dormir sem tomar antes um
comprimido, se pássaros e flores, montanhas e mar ainda o inspiram,
você é um indivíduo muito afortunado e deve cair de joelhos de
manhã e à noite, para agradecer ao bom Deus seu poder de salvar
e guardar. Se você é jovem em anos, mas já cansado em espírito, já
a caminho de tornar-se um autômato, talvez lhe faça bem dizer a seu
patrão — naturalmente, sem que ele ouça — “Foda-se, Jack! Você
não é meu dono!” Se você é capaz de entusiasmar-se com um sedutor
traseiro ou um adorável par de tetas, se é capaz de voltar a amar
vezes e vezes, se é capaz de perdoar seus pais pelo crime de tê-lo
trazido ao mundo, se se contenta em não ir a lugar algum, simples­
mente em aceitar cada dia como ele vem, se é capaz de perdoar,
assim como de ser perdoado, se é capaz de não ficar aborrecido,
irritado, amargurado e cínico, velho, você quase conseguiu vencer.
São as pequenas coisas que importam, não a fama, o sucesscí
a riqueza. No topo há muito pouco espaço, ao passo que no fundo
há muitos como você, não há ajuntamento e ninguém para instigá-lo.
Não pense sequer por um momento que a vida de um gênio é feliz.
Longe disso. Seja grato por ser um joão-ninguém.
Se você teve uma carreira bem sucedida, como eu presumivel­
mente tive, os últimos anos podem não ser o período mais feliz de
sua vida. (A menos que você tenha aprendido a engolir sua própria
merda.) Sucesso, do ponto de vista mundano, é como praça para um
escritor que ainda tem alguma coisa a dizer. Agora, quando devia
estar gozando um pouco de lazer, ele se vê mais ocupado do que
nunca. Agora ele é vítima de seus fãs e seus simpatizantes, de todos
aqueles que desejam explorar seu nome. Agora é uma luta de espécie
diferente que precisa travar. O problema agora é como conservar-se
livre, como fazer apenas aquilo que deseja fazer.
Apesar do conhecimento do mundo que vem de larga experiência,
apesar da aquisição de uma filosofia cotidiana viável, não se pode
deixar de perceber que os tolos tornaram-se ainda mais tolos e os

8
chatos ainda mais chatos. Um a um, a morte chama seus amigos
e as grandes figuras que você reverenciava. Quanto mais velho você
fica, mais depressa eles morrem. Finalmente você fica sozinho. Obser­
va seus filhos, ou os filhos de seus filhos, cometendo os mesmos
absurdos erros, muitas vezes erros cruciantes, que você cometeu na
idade deles. E não há nada que possa dizer ou fazer para impedir
isso. Na verdade, é observando os jovens que você finalmente com­
preende a espécie de idiota que era antigamente — e que talvez
ainda seja.
Uma coisa parece-me agora cada vez mais evidente: o caráter
básico da pessoa não muda com o passar dos anos. Com raras
exceções, a pessoa não se desenvolve ou evolui, o carvalho continua
sendo um carvalho, o porco um porco, e o burro um burro. Longe
de melhorá-los, o sucesso geralmente acentua suas falhas e defeitos.
Os caras brilhantes na escola muitas vezes não se tornam tão brilhan­
tes depois que saem para o mundo. Se você não gostava de certos
rapazes de sua classe ou os desprezava, gostará ainda menos deles
quando se tomarem financistas, estadistas ou generais de cinco estre­
las. A vida obriga-nos a aprender algumas lições, mas não necessa­
riamente a crescer. De improviso, só posso pensar em uma dúzia mais
ou menos de indivíduos que aprenderam a lição da vida. A grande
maioria não reconhecería os nomes deles se eu os citasse.
Quanto ao mundo em geral, não só não parece melhor do que
quando eu era menino de oito anos, mas parece mil vezes pior. Um
famoso escritor certa vez resumiu isso assim: “O passado me parece
horrível, o presente monótono e desolado, e o futuro absolutamente
apavorante.” * Felizmente, não partilho desse desanimador ponto de
vista. Em primeiro lugar, não me preocupo com o futuro. Quanto
ao passado, bom ou mau, aproveitei-o ao máximo. O futuro que me
resta foi feito por meu passado. O futuro do mundo é algo para
filósofos e visionários pensarem. Tudo quanto realmente temos é o
presente, mas muito poucos de nós chegam a vivê-lo. Não sou pessi­
mista nem otimista. Para mim o mundo não é isto nem aquilo, mas
todas as coisas ao mesmo tempo, e para cada um de acordo com
sua visão.
Aos oitenta, creio ser uma pessoa muito mais alegre do que era
aos vinte ou trinta. Decididamente, eu não desejaria ser de novo
adolescente. A mocidade pode ser gloriosa, mas é também dolorosa
para se suportar. Além disso, o que se chama mocidade não é moci­
dade, em minha opinião. É antes algo como velhice prematura.
Fui amaldiçoado ou abençoado com uma adolescência prolonga­
da. Cheguei a uma maturidade aparente quando já havia passado

* Joris Kral Huysmans, autor de Against the Grain.

9
dos trinta anos. Foi só depois dos quarenta que comecei realmente a
sentir-me jovem. Mas então eu estava preparado para isso. (Picasso
certa vez disse: “A gente começa a ficar jovem aos sessenta anos de
idade e então é tarde demais'') Àquela altura, eu havia perdido
muitas ilusões, mas felizmente não meu entusiasmo, nem a alegria de
viver, nem minha insaciável curiosidade. Talvez tenha sido essa
curiosidade — por qualquer coisa e por tudo — que fez de mim
o escritor que eu sou. Ela nunca me abandonou. Mesmo o pior chato
pode despertar meu interesse, se estou com disposição para ouvir.
Com esse atributo anda outro que eu prezo acima de tudo e
que é o senso de maravilhamettto. Por mais restrito que possa tor­
nar-se meu mundo, eu não sou capaz de imaginá-lo deixando-me
desprovido de maravilhamento. Em certo sentido, suponho que po­
dería dar a isso o nome de minha religião. Eu não pergunto como
nasceu esta criação em que nadamos, mas apenas quero gozá-la e
apreciá-la. Por mais que possa vituperar contra a condição de vida
em que nr» encontramos, deixei de acreditar que sou capaz de reme­
diá-la. Talvez seja capaz de alterar um pouco minha situação, mas
não a dos outros. Nem vejo alguém, no passado ou no presente, por
maior que seja, que tenha sido capaz de alterar verdadeiramente la
condition humaine.
O que a maioria das pessoas teme quando pensa na velhice é a
incapacidade de fazer novos amigos. Se alguém já teve a capacidade
de fazer amigos, nunca a perde, por mais velho que fique. Depois do
amor, a amizade, em minha opinião, é a coisa mais valiosa que a
vida pode oferecer. Eu nunca tive dificuldade em fazer amigos. De
fato, ôs vezes tem sido um estorvo essa capacidade de fazer amigos.
Diz um adágio que se pode julgar um homem pela companhia que
tem. Pergunto a mim mesmo com freqüência se isso é verdade. Em
toda minha vida, tive amizade com indivíduos pertencentes a mundos
muito diferentes. Tive, e ainda tenho, amigos que são joões-ninguém
e devo confessar que eles estão entre meus melhores amigos. Tive
amizade com criminosos e com os desprezados ricos. Meus amigos é
que me conservaram vivo, que me deram a coragem de continuar e
que também muitas vezes me enfadaram a ponto de chorar. A única
coisa em que insisti com todos os meus amigos, independentemente
de classe ou posição na vida, é ser capaz de falar a verdade. Se não
posso ser aberto e franco com um amigo ou ele comigo, eu o abandono.
A capacidade de ser amigo de uma mulher, particularmente a
mulher que a gente ama, é para mim a maior realização. Amor e
amizade raramente andam juntos. £ muito mais fácil ser amigo de
um homem que de uma mulher, especialmente se a última é atraente.
Em toda minha vida, só conhecí alguns casais que eram amigos tanto
quanto amantes.

10
A coisa mais confortadora na questão de ficar velho airosamente
talvez seja a crescente capacidade de não levar as coisas muito a
sério. Uma das grandes diferenças entre um verdadeiro sábio e um
pregador é a jovialidade. Quando o sábio ri, é uma risada de barriga,
quando o pregador ri, o que raramente acontece, é do outro lado do
rosto. O homem verdadeiramente sábio — mesmo o santo! — não
se preocupa com moral. Ele está acima e além de tais considerações.
Ele é um espírito livre.
Com o avançar da idade, meus ideais, que geralmente nego
possuir, alteraram-se definidamente. Meu ideal é ser livre de ideais,
livre de princípios, livre de ismos e de ideologias. Quero ajustar-me
ao oceano da vida como um peixe se ajusta ao mar. Quando jovem,
preocupava-me muito com o estado do mundo; hoje, embora ainda
clame e esbraveje, contento-me simplesmente em deplorar o estado
de coisas. Talvez pareça presunção falar assim, mas na realidade o
que quero dizer é que me tornei mais humilde, mais cônscio de
minhas limitações e daquelas de meus semelhantes. Não tento mais
converter pessoas à minha visão das coisas, nem curá-las. Nem me
sinto superior porque parece faltar a elas inteligência. Pode-se com­
bater o mal, mas contra a estupidez somos impotentes. Acredito que
a condição ideal para a humanidade seria viver em estado de paz, em
amor fraternal, mas devo confessar que não conheço meio de criar
tal condição. Aceitei o fato. duro como é, de que seres humanos são
propensos a comportar-se de uma maneira que faria animais envergo­
nharem-se. A coisa irônica, a coisa trágica é que muitas vezes nos
comportamos de maneira ignóbil pelo que consideramos os motivos
mais elevados. O animal não pede desculpas por matar sua presa;
o animal humano, por outro lado, é capaz de invocar a bênção de
Deus quando massacra seus semelhantes. Ele esquece que Deus não
está do seu lado, mas a seu lado.
Embora eu ainda seja um grande leitor, passei a evitar os livros
cuia vez mais. Enquanto antigamente eu procurava livros para ins­
trução ou orientação, hoje leio principalmente por divertimento. Não
sou mais capaz de levar livros, ou autores, tão a sério quanto outrora.
Especialmente livre» de “pensadores”. Agora acho essa leitura horrí­
vel. Se enfrento uma das obras chamadas sérias, é mais para procurar
corroboração do que esclarecimento. A arte pode ser terapêutica, como
disse Nietzsche, mas só índiretamente. Todos nós precisamos de estí­
mulo e inspiração, mas eles podem ser obtidos de muitas maneiras
diferentes e, freqüentemente, de maneiras que escandalizariam os
moralistas. Seja qual for o caminho que tomemos, é como andar na
corda bamba.
Tenho muito poucos amigos ou conhecidos de minha idade ou
perto dela. Embora geralmente não me sinta à vontade na companhia

11
de pessoas idosas, tenho o maior respeito e admiração por dois velhos
que parecem permanecer eternamente moços e criativos. Refiro-me
a Pablo Casais e Pablo Picasso, ambos agora ccm mais de noventa
anos. Esses juvenis nonagenários envergonham os jovens. Verdadeira­
mente decrépitos, cadáveres vivos, por assim dizer, são os homens e
mulheres de meia-idade, de classe média, que estão entalados em sua
confortável rotina e imaginam que o síatus quo durará para sempre
ou então estão tão assustados pela idéia de que ele não durará, que
se retiraram para seu abrigo mental contra bombas a fim de adiar
seu fim.
Nunca pertenci a qualquer organização, religiosa, política ou
outra. Também nunca votei em minha vida. Fui um anarquista filo­
sófico desde a adolescência. Sou um exilado voluntário que em
qualquer lugar se sente em casa, exceto em casa. Quando menino,
eu tinha numerosos ídolos e hoje, aos oitenta anos, ainda tenho meus
ídolos. A capacidade de reverenciar outros, mas não necessariamente
seguir suas pegadas, parece-me muito importante. Ter um mestre é
ainda mais importante. A questão é como e onde encontrá-lo. Geral­
mente, ele está bem no nosso meio, mas deixamos de reconhecê-ld*.
Por outro lado, descobri que, com muita freqüência, a gente pode
aprender mais com uma criança do que com um professor conceituado.
Penso que o professor (com P maiusculo) classifica-se junto com
o sábio e o vidente. É nosso infortúnio não sermos capazes de criar
tais animais. O que se chama educação é para mim completo absurdo
e pernicioso ao crescimento. Apesar de todos as sublevações políticas
por que passamos, os métodos educacionais autorizados em todo o
mundo civilizado permanecem, pelo menos em meu entender, arcai­
cos e embrutecedores. Ajudam a perpetuar os males que nos estropiam.
William Blake disse; “Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos
da instrução.” Nada de valor aprendí na escola. Mesmo hoje, não
creio que fosse capaz de passar num exame de escola primária de
qualquer matéria. Aprendi mais com idiotas e joões-ninguém do que
com professores disto e daquilo. Professor é a vida, não a Comissão
de Educação. Por mais estranho que pareça, sinto-me inclinado a
concordar com aquele miserável espécime nazista que disse: “Quando
ouço a palavra Kultur, levo a mão a meu revólver.”
Nunca me interessei por esportes organizados. Pouco me importa
quem supere quaisquer recordes. Os heróis de basebol, futebol, bas­
quete são virtualmente desconhecidos para mim. Tenho aversão por
jogos competitivos. Penso que se deve jogar, não para vencer, mas
para gozar o jogo, seja qual for. Prefiro fazer exercício por meio de
jogos e não de ginástica. Prefiro ação individual a trabalho de equipe.
Nadar, andar de bicicleta, fazer uma caminhada pelas matas ou
jogar uma partida de pingue-pongue satisfaz toda a minha necessidade

12
de exercício. Eu não acredito em exercícios de barra ou halterofi-
lismo. Não acredito na vantagem de criar músculos, a menos que seja
para serem usados em algum propósito vital. Penso que as artes de
autodefesa deviam ser ensinadas desde tenra idade e só para aquele
propósito. (E, se guerra vai ser a ordem do dia das próximas gerações,
deveriamos deixar de mandar nossas crianças à Escola Dominical e
ensiná-las a tomarem-se assassine» peritos.)
Não acredito em alimentes e dietas para saúde. Provavelmente
tenho comido todas as coisas erradas a vida inteira — e vicejado
com elas. Eu como pelo prazer de comer. Tudo quanto faço, faço
antes de mais nada pelo prazer que me dá. Não acredito em check-ups
regulares. Se há em mim alguma coisa errada, prefiro não saber,
porque se soubesse só me causaria preocupação e agravaria meu
estado. A natureza muitas vezes remedeia nossos males melhor do
que pode fazer o médico. Não acredito que haja alguma receita para
vida longa. Além disso, quem deseja viver até cem anos? Qual é
a vantagem disso? Uma vida curta e alegre é muito melhor que uma
vida longa mantida por medo, cautela e vigilância médica constante.
Com todo o progresso que a medicina fez através dos anos, ainda
somos um panteão de doenças incuráveis. Os germes e micróbios
intervém, cortam-nos em pedaços e limpam-nos de nosso último cen­
tavo. E a gente acha que isso é progresso.
O que está desgraçadamente faltando em nosso mundo de hoje
é grandeza, beleza, amor, compaixão — e liberdade. Foram-se os
dias de grandes indivíduos, grandes líderes, grandes pensadores. Em
seu lugar, estamos criando uma ninhada de monstros, assassinos,
terroristas: violência, crueldade, hipocrisia parecem ser inatasi Men­
cionando os nomes de figuras ilustres do passado, nomes como Péri-
cles, Sócrates, Dante, Abelardo, Leonardo da Vinci, Shakespeare,
William Blake e mesmo o louco Luís da Bavária, esquece-se que
mesmo nos tempos mais gloriosos houve incrível pobreza, tirania,
crimes indizíveis, os horrores da guerra, malevolência e traição. Sem­
pre bem e mal, feiura e beleza, o nobre e o ignóbil, esperança e
desespero. Parece impossível não coexistirem esses extremos opostos
no que se chama mundo civilizado.
Se não podemos melhorar as condições em que vivemos, podemos
pelo menos oferecer uma saída imediata e indolor. Existe a fuga
por meio da eutanásia. Por que não é ela oferecida aos milhões
desesperançados e miseráveis para os quais não existe probabilidade
de gozar sequer uma vida de cachorro? Nós não pedimos para nascer;
por que nos deve ser recusado o privilégio de procurar nossa saída
quando as coisas se tomam insuportáveis? Devemos esperar que a
bomba atômica acabe com todos nós juntos?

13
Não gosto de terminar com uma nota azeda. Como meus leitores
bem sabem, meu lema sempre foi: “Sempre alegre e vivo.” Talvez
por isso é que nunca me canso de citar Rabelais: “Para todos os
vossos mates, eu vos dou riso” Quando olho para trás em minha
vida, que foi cheia de momentos trágicos, vejo-a mais como uma
comédia do que como uma tragédia. Uma daquelas comédias nas
quais, enquanto se arrebenta de rir, você sente seu coração partir.
Que melhor comédia podería haver? O homem que se leva a sério
está condenado.
A tragédia que a maioria dos seres humanos está vivendo é outra
coisa. Nela não vejo elemento cômico de alívio. Quando me refiro
à saída indolor para os milhões de sofredores não estou falando
cinicamente ou como alguém que não vê esperança para a humani­
dade. Nada há de errado na vida propriamente dita. Ela é o oceano
em que nadamos e nos adaptamos cm vamos ao fundo. Mas está em
nosso poder, como seres humanos, não poluir as águas da vida, não
destruir o espírito que nos anima.
A coisa mais difícil para um indivíduo criativo é abster-se do
esforço para tornar o mundo como ele gosta que seja e aceitar seu
semelhante pelo que ele é, seja bom, mau ou indiferente. A gente
faz o melhor qtífc pode, mas esse melhor nunca é suficientemente bom.

Finis

Viagem a uma Terra Antiga

Viajando pelo sul da França no ano passado, tive certo dia opor­
tunidade de visitar St. Rèmy. No espaço de poucas horas, tive duas
surpresas maravilhosas: primeiro, a descoberta da casa em que nasceu
Nostradamus; segundo, um vislumbre dos restos de uma colônia
grega, Glanum, à beira da cidade. Dirigindo-me para as ruínas, dei
com um poste indicador no qual estava escrito: Les Antiques. Uma
flecha indicava a direção do local. Chegando ao lugar, veio-me ime­
diatamente à lembrança o trabalho de Bob Nash. Na verdade, a
estrada que levava até lá era um pouco menos firme, um pouco
menos reforçada, que os finos monotrilhos empregados por Nash, mas
a flecha e os vestígios de uma cidade que existiu outrora eram deci­
didamente Bob Nash.

14
Uma das fascinações em ruínas é que elas sempre sugerem ou
revelam a disposição original, a intenção, em outras palavras. Ho
meio de completa dilapidação, a gente tem certeza de encontrar
peças isoladas de perfeição: um arco, um pilar, uma cúpula, um bloco
de pavimentação. Com o trabalho de restauração, não apenas são
dissipados o encanto e o mistério, mas o efeito, um simulacro, é o
de rigor mortis. Nada mais parece como foi outrora. Tempo é o
apaixonado mestre de decomposição. Criação e destruição são gêmeos,
como foram outrora amor e justiça.
Por que falar em ruínas e destruição? Porque há nelas uma
fascinação. Porque, se a gente é sensível e nostálgica, elas fazem
poemas.
O cintilante Empire State Building, descendente de uma inter­
minável linhagem de monstros aperfeiçoados, precisa esperar os
poetas da morte. Como a Esfinge, com o nariz faltando, precisa
aguardar as mutilações do tempo antes que possa conquistar os
olhos de um poeta.
Viajando para aquela terra antiga, que é o tema desses mil e
um sonhos “ideolineares”, fica-se impressionado pela vasta quantidade
de material que Nash pôs fora. Sua linha, sismograficamente sensível,
muitas vezes deixa em sua esteira um resíduo ectoplásmico, assim
como alguns penedos estriados com a forma de bolas de gude. É
uma linha que se aproxima das abstrações lapidares do matemático.
Um tremor geofísico empregna-a — evidência do misterioso e impre­
visível élan vital, que mesmo rochedos, em formação, registram.
Trata-se de uma linha que, embora delicada e tênue, é bem capaz de
suportar um trilobita como se fosse uma leve casca de ovo. A gente
encontra-a ocasionalmente em Picasso, na curva de um ombro ou
na rápida queda de um quadril. A gente encontra-a novamente em
um pedaço de cordão esgarçado que uma criança deixou ao lado de
um pião abandonado. Não é uma linha, realmente, mas uma intenção.
Demonstra os ilimitáveis impulsos do coração, seja em relação à figura
humana, à casa de Atreu ou às mutáveis posições das constelações.
Meu primeiro contato com a descoberta de Nash — não é pos­
sível chamá-las miniaturas porque elas desafiam descrição dimensional
— deixou-me com um sentimento de mistificação. Que estava o
homem tentando dizer? E por que, por exemplo, ele não as reduziu
ao tamanho de selos postais? Depois que vi cerca de uma centena,
percebi que seu tamanho era perfeito, ainda quando se desviava
alguns milímetros neste ou naquele sentido.
Vivendo cada dia com uma nova coleção, elas finalmente inva­
diram meus sonhos. Eu estava iniciando uma viagem, geralmente para
casa, e havia esses cartões de visita caídos em toda a minha volta

15
no deserto quente e árido. Um simples olhar para um deles e minha
orientação estava imediatamente fixada. Eles eram como fios partidos
que alguma Ariadne distraída deixara cair. Muitas vezes, o obstáculo
insuperável em meu caminho nada mais era do que a pena de um
pássaro mítico, uma pena que se inclinava em perigoso ângulo e
parecia indiferente aos impiedosos ventos que alteram a face do
deserto. Às vezes, eu precisava subir sobre um templo afundado,
como faria uma formiga sobre um nabo enorme e apodrecido. Ocasio­
nalmente, penhascos gigantescos erguiam-se diante de mim como
mastins congelados e, no sonho, meu coração martelava antes que
eu tivesse sequer erguido um pé. Intermináveis eram os desvios, os
culs-de-sac. Então — típica pergunta irrelevante — que havia de tão
estranho, afinal de contas, naquelas bolas-penedos à direita e à
esquerda da linha de marcha? Nada. Elas existiam no lodaçal pri­
mitivo assim como nos ínvios caminhos de meteoritos agonizantes,
elas podiam ser encontradas em qualquer molécula, na fibra dos
nervos, em uma teia de aranha. Ainda mais, eram encontradas dentro
da mente. Como o eram os botes amnésicos que navegavam sem
água, que se erguiam e se desfaziam como dunas de areia — ou a
espuma saindo da boca de um epiléptico. E luas, sempre em forma de
crescente, sempre fora do lugar, como se estivessem licenciadas de
outros céus, de outras eternidades de tempo. A linha, trêmula e
sempre sensível a perturbações internas, ergue-se e afunda-se ao longo
de febris horizontes, perfurados por mastreação e cordame de navios
invisíveis. Em suma, tudo era familiar e reconhecível, embora parte
da história tivesse se desintegrado. O próprio terreno, fragmentado e
estiolado como estava, era aquele de que a gente se lembrava. Antigo
a ponto de desaparecer, era apesar disso exasperantemente acessível.
Tinha afinidades com outras terras conhecidas, mas só como mapas
e cartazes se relacionam com viagem e geografia. Um mundo pré-
-Mercator, composto de fugas cambrianas e minuetos jurássicos.
A linha do poeta, e Nash é definidamente um poeta linear,
sempre tem o estigma de prefiguração. Como alguém que percorreu
todas as estradas e rodovias, Nash dispensou todos os estorvos, até
mesmos os abracadabras de ídeação. A própria idéia foi amolada até
tornar-se como um fio de navalha. Suas mensagens pictográficas,
dadas em código ideolinear, parecem vir da face oculta da lua. Ele
avaliou completamente a insânia de aventuras terrenas, sonhos ter­
renos. (Entre um homem e um piolho, que existe capaz de provocar
excitação?). Não só tamanho se tomou ridículo e sem sentido, mas
fatos e cifras também, e esforço ainda mais. Isso porque, a menos
que se tenha vislumbrado a face oculta das coisas, todo encontro
causa ilusão e desilusão. Assim, a linha, como você notará, começa
nenhures e termina nenhures. Não é uma linha vacilante, tentativa,
mas uma linha premonitória. (Por que viajar até mais longe?). Como

16
a linha histórica, ela serpenteia. Pode dar-se ao luxo de serpentear.
O que ela encontra sem procurar são ruínas... as ruínas de pensa­
mento, as ruínas de amor, as ruínas de sonho. Mas de muito longe,
como a voz misteriosa de uma fonte à noite, vem o chamado de
uma terra antiga, a terra de criação pura, onde o rouxinol não dá
importância à tristeza humana, ao esforço humano.

Introdução a

O Anjo é Minha Marca d’Água

Pessoas perguntam freqüentemente: “Se tivesse que viver de


novo toda a sua vida, Você faria isto ou aquilo?” Querendo dizer:
Você repetiría os mesmos erros? Quanto a les amours, não posso
responder, mas quanto a les aquarelles, ouil Uma das coisas impor­
tantes que aptendi fazendo aquarelas foi não me preocupar, não me
importar muito. Penso que foi Picasso quem disse: “Nem todo quadro
precisa ser uma obra-prima.” Precisamente. Pintar é o que importa.
Pintar todo dia. Não produzir obras-primas. Mesmo o Criador, ao
fazer este mundo, precisou aprender essa lição. Certamente, quando
criou o Homem, ele deve ter percebido que ia ter uma prolongada
dor de cabeça.
E o Homem, que também gosta de brincar de Criador, descobre,
quando atinge a realização, ou um estado de graça, se quiserem, que
existe algo mais do que o mero ato de criar. Percebe que não é
necessário pintar ou descrever em palavras o que vê à sua volta.
Aprende a deixar as coisas como estão. Descobre que simplesmente
olhando o mundo frente a frente tudo aquilo com que entra em con­
tato tem um pouco de obra-prima. Por que melhorar isso? Por que
preocupar-se com isso? Deleite-se com o que vê, isso basta. O homem
capaz de fazê-lo é o artista consumado. Seu mérito criativo reside
na capacidade de distinguir e reconhecer aquilo que foi criado e
que escapará para sempre de sua limitada compreensão.
Quanto ao resto de nós, que precisamos assinar nossos nomes
em tudo quanto fazemos, somos simplesmente aprendizes. Aprendizes
de feiticeiro. Embora tenhamos a pretensão de estar ensinando outros
a ver, ouvir, saborear e apalpar, o que estamos realmente fazendo
é alimentar o ego. Somos incapazes de permanecer anônimos, como

17
aqueles homens que construíram as catedrais. Queremos ver nossos
nomes escritos com luzes de néon. E nunca recusamos dinheiro em
troca de nossos esforços. Mesmo quando nada mais temos a dizer,
continuamos escrevendo, pintando, cantando, dançando, sempre pro­
curando publicidade.
E aqui venho eu com minhas aquarelas belamente reproduzidas
em um bonito álbum — e meu nome em grandes letras. Mais um
pecador. .Mais um ego. Devo confessar que me dá grande prazer. Não
terei a hipocrisia de dizer: “Espero que dê prazer também a vocês.”
O fato de ver finalmente meus sonhos realizados, depois de uns
vinte anos, é a única coisa que importa. Francamente, eu esperava
que talvez cinqüenta ou cem de minhas aquarelas fossem reunidas
em um volume, em lugar de doze apenas, mas, como dizem, “é
melhor meio pão do que nada”.
A melhor parte disso tudo é que não sou obrigado a esperar
até morrer. Posso vê-las agora ici-bas, com os olhos de um pecador,
de um libertino, de um devasso, e não com os olhos de um anjo ou
um fantasma. Isso é uma grande coisa. Vendo-as entre as capas de
um livro, como peças de museu, eu posso lançar-lhes um olhar
póstumo, por assim dizer, e talvez aprender algo de verdadeira
humildade.
A única coisa de que estou certo, agora que meu sonho se
realizou, é que apreciarei tudo quanto eu fizer daqui por diante
mais do que nunca antes. Não tenho o desejo de tornar-me um pintor
magistral. Para dizer a verdade, quanto mais velho eu fico, menos
ambicioso me torno. Desejo simplesmente continuar pintando, pintar
cada vez mais, senão cada vez melhor, embora ao fazê-lo possa
estar cometendo um pecado contra o Espírito Santo. Um dos para­
doxos da vida é que, quanto mais nos aproximamos do túmulo,
mais tempo temos para desperdiçar. Nada tem a grave importância
que tinha outrora. Agora posso inclinar-me fortemente para a direita
ou para a esquerda sem perigo de tombar. Posso também desviar-me
do curso, se o desejar, porque meu destino não é mais fixo. Como
aqueles dois deliciosos vagabundos dizem vezes e vezes em Esperando
Godot:
— On y va?
— Oui.
E nenhum deles sai do lugar.
Percebo, naturalmente, que essas reflexões e observações va-
bagundas dificilmente se enquadram na tradição teutônica. Não são
também americanas, se eu sei do que estou falando. Mas você não
se sente bem lendo estas bobagens? Suponha-se que seja tudo ama-

18
lucado, o que eu digo — que diferença faz? Pelo menos sabe-se
onde eu piso. E você, meu caro leitor, você «tá pisando em terreno
firme? Prove-o!
Há muito tempo — il y a des siècles, il me semble — quando
me divertia escrevendo Black Spring, eu já me regozijava com o fato
de o mundo à minha volta estar-se despedaçando. Realmente, desde
o tempo em que tive idade para pensar por mim mesmo, eu estava
convencido disso. E, depois, um dia, topei com Oswald Spengler.
Ele confirmou minhas convicções. (E como me diverti lendo-o, isto é,
lendo a respeito do “declínio do Ocidente”. Fez-me mais bem, fran­
camente, do que ler o Bhagavad Gita. Animou-me.) Não tive também
o atrevimento de dizer, como Rimbaud: “Moi, je suis intact!" Pouco
me importava estar intato ou caindo aos pedaços. Eu assistia a um
espetáculo: o desmoronar de nossa civilização. Hoje a dissolução de
nossa Kultur prossegue ainda mais rapidamente, graças à nossa aper­
feiçoada técnica e eficiência. Não é preciso mais levar a mão ao
revólver — existem, para escolher, todas as espécies de adoráveis e
instantâneos brinquedos destrutivos. Hoje todo mundo está escrevendo
a respeito do fim próximo, até mesmo nossos escolares. Alguns deles
parecem mesmo encontrar grande prazer nisso. Mas ninguém mais é
feliz, você notou?
O que eu gostaria de recomendar para os poucos anos, meses ou
semanas que nos restam é passar o tempo agradavelmente. Fazer
aquarelas é uma maneira. Experimente, se nunca o fez. Não é preciso
assinar seu nome nelas; nada será preservado, seja qual for o nome
que esteja assinado. Produza-as uma após outra e não se preocupe
com obras-primas. Nero tocava violino enquanto Roma ardia. Fazer
aquarelas é muito mais divertido. Você não causará mal a ninguém
fazendo isso, não estará se exibindo como um espetáculo e não estará
colaborando com o inimigo. (Não existe mesmo inimigo, a menos
que seja o próprio homem.) Quando se retirar à noite, você dormirá
com sono mais pesado. Talvez descubra também que seu apetite
melhorou. É até mesmo possível que se veja pecando com mais gosto
— deleitando-se com isso, quero dizer.
O que estou tentando dizer à minha maneira improvisada é que,
venha tempo bom ou mau, aqueles que fazem menos barulho con­
tribuem mais para salvar o mundo — quanto dele vale a pena salvar,
você já pensou nisso? — do que aqueles que nos dão ordens na fútil
crença em que têm a resposta para todos os nossos males. Quando
volta sua mente para uma coisa simples e inocente como pintar uma
aquarela, você perde um pouco da angústia que resulta de ser membro
de um mundo enlouquecido. Quer pinte flores, estrelas, cavalos ou
anjos, você adquire respeito e admiração por todos os elementos que
entram na constituição de nosso universo. Você não pensa em flores

19
como amigas e em estrelas como inimigas, em cavalos como comu­
nistas e em anjos como fascistas. Você os aceita pelo que são e louva
a Deus por eles serem o que são. Você deixa de pensar em melhorar
o mundo — o.u mesmo a si próprio. Você aprende a ver não aquilo
que quer ver, mas aquilo que existe. E aquilo que existe é geralmente
mil vezes melhor do que aquilo que podería ser ou deveria ser. Se
deixarmos de mexer no mundo, talvez venhamos a descobrir que
ele é um lugar muito melhor do que pensamos que seja. Áfinal de
contas, é o único lugar. E, seja ele nosso por mais algumas semanas
ou por mais alguns milhões de anos, nunca chegaremos a conhecê-lo,
só a desfrutá-lo, apreciá-lo, amá-lo pelo que é. No fim como no prin­
cípio, a palavra é: mistério. Esse mistério existe ou viceja em todas
as menores partículas do universo. Nada tem a ver com tamanho ou
distância, com grandeza ou lonjura. Tudo depende de como você
vê o mundo.
Com toda obra de arte que é produzida surge a mesma eterna
questão: “Existe naquilo que vemos mais coisas do que nossos olhos
enxergam?” Naturalmente, a resposta é sim. No mais humilde obje­
to podemos encontrar qualquer coisa que procuremos, seja beleza,
verdade, realidade, divindade. O artista não cria essas qualidades,
encontra-as ou descobre-as, no processo de fazer. Quando percebe
a verdadeira natureza de seu papel, ele pode continuar pintando sem
perigo de pecar, porque sabe que pintar ou não pintar vale a mesma
coisa. Afinal de contas, a gente não canta porque espera apresentar-se
um dia em uma ópera; canta porque os pulmões estão cheios de
alegria. É maravilhoso ouvir uma grande interpretação, mas é ainda
mais maravilhoso encontrar na rua um vagabundo feliz que não pode
deixar dé cantar como não pode deixar de respirar. Ele não espera
também recompensa alguma por seus esforços. Esforços! A palavra
não tem sentido para ele. Ninguém pode ser pago para irradiar alegria.
Por isso, quer o mundo vá despedaçar-se ou não, quer você
esteja do lado dos anjos ou do próprio diabo, tome a vida pelo que
ela é, divirta-se, espalhe alegria e confusão.

20
Reflexões Sobre a Morte de Mishíma

HENRY MILLER

1972
Em certo sentido, não há desculpa para escrever este artigo para
o público japonês. Não sou uma autoridade no que se refere ao
Japão, nem nunca visitei o país, embora tenha estado a ponto de
fazê-lo em várias ocasiões. É verdade que tenho uma esposa japo­
nesa e recebi muitos visitantes japoneses aqui em minha casa. Vários
amigos de minha esposa viveram conosco por períodos prolongados.
É verdade também que, sempre que encontro um japonês, homem
ou mulher, encho-o com perguntas a respeito do Japão, seu povo, seus
costumes, seus problemas. Acrescente-se a tudo isso que sou um devo­
to dos filmes japoneses, classificando os bons acima daqueles de
qualquer outro país. Além disso, no momento estou mais interessado
no Japão e em seus modos de vida do que em qualquer outro país
do mundo, exceto a China. Posso ainda acrescentar, muito humil­
demente, que o Zen me interessa mais do que qualquer outra visão
da vida ou modo de vida.
Os amigos e visitantes japoneses com quem me encontro são de
todas as categorias de vida — escritores, atores, produtores cinema­
tográficos, engenheiros, arquitetos, pintores, cantores, artistas teatrais,
homens de negócios, editores, colecionadores de arte e assim por
diante. Diferem em suas opiniões e seu comportamento quase tanto
quanto qualquer segmento de europeus ou americanos. Ainda assim,
resta uma aura de mistério, de impenetrabilidade, cercando os japo­
neses, tanto como povo quanto como indivíduos. Compreendo-os e
simpatizo-me com eles até certo ponto — as mulheres mais do que
os homens — e depois me sinto perdido. Nunca sei ao certo quando
ocorrerá o inesperado, o imprevisível. Permitam que me apresse a
acrescentar que isso não me deixa constrangido. Intriga-me. Sempre
adorei o que me é estranho. Gosto de ser estimulado, chocado,
assombrado.
Assim, quando li sobre a dramática morte de Mishima, enchi-me
de sentimentos mistos. Pensei imediatamente em todas as contradições
da natureza dele e ao mesmo tempo pensei comigo mesmo: como
isso é japonês! Talvez tenha sido através dos filmes japoneses que
tómei conhecimento da mistura nos japoneses de crueldade e ternura,
de violência e serenidade, de beleza e feiura, que me deixou para

23
sempre surpreendido, chocado e encantado. É verdade, naturalmente,
que os japoneses não estão sozinhos nisso. Mas nos japoneses, em
meu entender pelo menos, essa ambigüidade existe mais nítida e
pungente. Em certo sentido, isso explica seu notável desempenho em
todas as artes, desde poesia até pintura e teatro. A abordagem estética
e emocional é sempre perfeitamente fundida. Uma coisa de horror
pode ser também uma coisa de beleza; o monstruoso e o estético não
se guerreiam, completam-se como acontece com duas cores primárias
habilmente justapostas. Uma mulher cujo coração está partido, refi­
ro-me a uma mulher japonesa, uma mulher em total desespero e
derrota, pode ainda mostrar um sorriso que somente um anjo de
bondade é capaz de apresentar. Igualmente, nos filmes a respeito dos
samurais da antigüidade são-nos mostrados personagens, geralmente
mestres, cujas vidas foram dedicadas à espada e que, no entanto,
são capazes de demonstrar a absoluta futilidade da violência.
Mocidade, beleza, morte — estes são os temas que informam os
escritos de Mishima. Suas obsessões, poderiamos dizer. Típicas,
poder-se-ia dizer, de poetas ocidentais ou, pelo menos, dos românticos.
A essa trindade ele se crucifica, tão certamente mártir quanto os
primeiros cristãos.
Ele era um fanáticol Essa é a primeira e a mais fácil das acusa­
ções que um ocidental encontra para erguer contra ele. Mas há
fanáticos e fanáticos. Na opinião do mundo, Hitler foi definidamente
um fanático. Mas o mesmo foi São Paulo. Muitas vezes eu pensei
em mim mesmo como tendo um traço de fanatismo: eu certamente
teria medo de assumir os poderes de ditador. Às vezes, imaginando
que possuía esse poder total, imaginando que era Deus, eu disse a
mim mesmo: “E que faria você para mudar o mundo de acordo
com Seu gosto?” Com isso fico paralisado. Percebo instantaneamente
que eu nada faria, que um trabalho de reparação, por mais prodigioso
que seja, não tem a menor relação com um ato de criação.
Não, eu não explico o suicídio de Mishima como resultado de
seu fanatismo. Se ele era de fato decidido, obcecado, se quiserem,
por que ou a que dedicava sua vida? À construção de um belo corpo,
à sua arte, à restauração do espírito dos samurais? A tudo isso, sim,
mas a seu país, ao Japão, antes de mais nada e acima de tudo. Ele
era um patriota no sentido estrito da palavra. Não amava seu país,
mas estava disposto a sacrificar tudo para salvá-lo.
Dizem que ele se preparou para sua sensacional morte com meses
de antecedência. Vivera, de fato, durante muitos anos, com a idéia
de morte, morte por suas próprias mãos. Dizem mais que desejava
morrer na flor da idade, enquanto era ainda belo, forte de corpo e
no apogeu de sua carreira. Não queria ter uma morte de cão, como

24
tantos de seus compatriotas. E por que não escolher o tempo e a
maneira de sua própria morte? Os gregos e romanos da antiguidade
não recorriam ao sucídio quando já haviam tido o suficiente dos pra­
zeres e tristezas da vida? (Contudo, como era diferente a maneira
romana de cortar os pulsos em um banho quente? Nada de dramá­
tico, nada de sensacional, no desempenho. Poder-se-ia dizer que eles
simplesmente facilitavam sua saída da vida.)
Felizmente para Mishima, ele foi capaz de misturar todas essas
noções sobre tirar a própria vida com a noção mais alta de com isso
servir a seu país. Sem dúvida, foi o artista nele existente que decidiu
como fazer o melhor uso da morte. Por mais horrível que sua morte
tenha sido para muitos de nós e igualmente para seus próprios com­
patriotas, não se pode negar que houve nela um toque de nobreza.
Não se pode dizer que foi obra de um louco ou mesmo de alguém
temporariamente desequilibrado. Chocante como foi, afetou-nos de
maneira diferente do suicídio de Hemingway, que o executou colo­
cando uma carabina na boca e fazendo explodir o cérebro.
É curioso refletir, uma vez que mencionei o nome de Hemingway,
que Mishima se expôs muito deliberadamente à cultura ocidental, ao
pensamento ocidental, mas morreu não apenas em estilo japonês tra­
dicional, mas para a preservação de tradições exclusivamente do
Japão. Não creio que sua preocupação fosse meramente restabelecer
a monarquia, nem mesmo recriar um exército japonês, mas antes
despertar o povo japonês para a beleza e eficácia de seu modo de
vida tradicional. Quem melhor do que ele, no Japão, poderia sentir
os perigos que ameaçavam seu país ao seguir nossas idéias ocidentais?
A esta altura, deve ser evidente a todo o mundo, fascista, comunista
ou democrata, que há veneno em nossas malcosidas noções de pro­
gresso, eficiência, segurança e outras. O preço de todos os aparentes
confortos e progressos oferecidos pelo mundo ocidental é excessiva­
mente alto. Q preço é a morte, morte não apenas em coisas pequenas,
mas em escala total. A morte do indivíduo, a morte do coletivo, a
morte do planeta inteiro — esta é a promessa oculta por trás das
lisonjeiras palavras dos expoentes de progresso.
Tradição, para nós americanos, é uma palavra de pouca impor­
tância. Nós não temos tradição, a menos que seja aquela do tempo
dos pioneiros. Não existem mais fronteiras, nosso mundo a cada
dia se torna menor. Só há agora lugar para espíritos pioneiros e com
isso não quero dizer astronautas. Os verdadeiros pioneiros são icono­
clastas. São eles que preservam a tradição, não aqueles que lutam
para manter tradição e, ao fazê-lo, nos sufocam. Tradição só pode
expressar-se através do espírito de coragem e desafio, não em obser-
vâncias exteriores e preservação de costumes, posso estar errado, mas
acredito ser nesse sentido que Mishima pretendia restabelecer os modos

25
de vida de seus antepassados. Ele queria restaurar a dignidade,
auto-respeito, verdadeira fraternidade, confiança própria, amor à na­
tureza e não eficiência, amor ao país e não chauvinismo, o impe­
rador como símbolo de liderança em oposição a um rebanho informe
e irracional, obediente a opiniões ideológicas mutáveis cujos valores
são estabelecidos por teóricos políticos.
Sei que falando assim pareço estar inocentando Mishima. (Tenho
conhecimento de todas as coisas de que ele é acusado.) Mas não é
minha intenção inocentar Mishima, nem condená-lo. Não sou seu
juiz. Falo assim porque sua morte, a maneira e o propósito dela,
levaram-me a questionar algumas das coisas que eu valorizo e esti­
mo, levaram-me, em suma, a reexaminar minha própria consciência.
Quando questiono as idéias de Mishima, seus motivos, seu modo de
vida ou qualquer outra coisa, questiono os meus próprios ao mesmo
tempo. Sinto que é tempo de o mundo em geral questionar os valores,
as crenças, as verdades que sustenta. Mais do que nunca na história
do homem, precisamos perguntar a nós mesmos — todos nós, santos,
pecadores, mendigos, legisladores, militares — para onde estamos
indo? Podemos aplicar os freios? Podemos dar meia-volta? Podemos
fazer um inventário de nós próprios? Ou é tarde demais?
Um de meus primeiros heróis foi o rebelde filipino Aguinaldo,
que resistiu às forças militares americanas durante anos após a ren­
dição da Espanha, Como Ho Chi Minh, ele foi um verdadeiro líder
de seu povo. Outro de meus heróis foi John Brown, famoso por
Harper’s Ferry, o qual alardeava que se tivesse uma centena de
homens iguais a ele seria capaz de derrotar o exército dos Estados
Unidos, e eu me sinto inclinado a pensar que seria capaz de fazê-lo.
Eu não chamaria Aguinaldo de fanático, mas John Brown certamente
o era. Seus ousados, temerários e fantásticos esforços para libertar
os escravos conseguiram maravilhas. Tanto Aguinaldo quanto John
Brown dedicaram-se a uma grande causa e, se seu triunfo não foi
óbvio, certamente foi moral ou espiritual. O pequeno exército privado
de Mishima já debandou, eu sei, mas o dramático gesto de Mishima,
seu desafio aos poderes dominantes, talvez ainda tenha resultados
de grande alcance. “O fim ainda não chegou.”
Em meu entender, Mishima era inteligente ou intelectual demais,
sensível demais, estético demais, narcisista demais, artista demais
para ter sido capaz de organizar outra coisa além de um exército
simulado ou simbólico. Não sou capaz de imaginá-lo retirando-se para
fortalezas da montanha a fim de travar uma guerrilha prolongada
contra as forças armadas de seu país. Sua preocupação, parece-me,
não era obter vitória imediata sobre as forças adversárias, mas des­
pertar seus compatriotas para os perigos que os ameaçavam. Mishima
era um individualista extraordinário, mas era também um homem de

26
raciocínio, de discernimento, com noção das limitações humanas.
Assim como conhecia o poder e a magia das palavras, conhecia o
poder dramático e simbólico do ato. Acreditava em si próprio, em
seus próprios poderes, mas não a ponto de tentar o impossível.
Para mim, o aspecto mais fraco de seu esforço no sentido de
restaurar o exército japonês foi não ver que o poder corrompe, não
perceber que o Japão, desprovido de poder militar, conseguiu fazer
o que poucos países, foram capazes de fazer, se é que algum o fez,
sem essa suposta proteção. O Japão prosperou através de sua derrota.
A Alemanha também. À primeira vista, parece estranho, quase incrí­
vel, mas é muito simples. Não apenas a derrota militar chamou o
povo japonês à razão, mas através de uma paz imposta o Japão foi
capaz de fazer o que seus vencedores não conseguiram. Nesse sen­
tido, falarei apenas dos Estados Unidos. Olhem para esta nação
presumivelmente todo-poderosa! Não apresenta ela um retrato de
doença, caos, loucura? Travando uma guerra sem sentido contra uma
pequena nação a milhares de milhas de distância — para quê? Para
preservar a independência de uma parte daquela nação, um povo
com o qual não temos laços reais ou parentesco? Para proteger nossos
“interesses” na Ásia? Para manter prestígio? Para conservar o mundo
seguro para a democracia? Enquanto isso, sejam quais forem nossos
motivos, nosso próprio país está caindo aos pedaços: cidades e estados
à beira da falência, dissensão generalizada, falta de fundos para fins
educacionais, milhões vivendo à beira da fome, racismo desenfreado,
álcool e drogas viciando as vidas de jovens e velhos, crimes sempre
aumentando, respeito pela lei e ordem diminuindo a cada dia, poluição
de nossos recursos naturais agora em nível assustador, nenhum líder
com que contar. .. Poder-se-ia continuar enumerando interminavel-
mente os males que nos castigam. No entanto, continuamos a ter a
pretensão de que nosso modo de vida é o melhor, de que esta nossa
democracia é um presente para o mundo e assim por diante. Que
estúpido, que absurdo, que arrogante!
Não, por mais que eu creia que os japoneses têm direito a possuir
seu próprio exército e marinha, suas armas nucleares, suas próprias
bombas, o arsenal completo de destruição, como qualquer outra
nação, minha fervorosa esperança é a de que eles não sucumbam a
essa tentação. Não permita Deus que os militares tomem conta, que
mais uma vez eles levem o povo japonês ao massacre. Se precisa
haver um exército, por que não um exército de emissários de paz, um
exército de homens e mulheres fortes e decididos, que recusem fazer
guerra, que não tenham medo de viver indefesos, abertos e vulnerá­
veis? Por que não um exército que acredite no poder da vida, não
da morte? Não poderemos ter outro tipo de herói senão aqueles
mártires obedientes que matam e morrem pelo país, pela honra, por

27
esta ou aquela ideologia ou por absolutamente nenhuma razão. O
Japão está em uma encruzilhada. Poderá continuar a crescer, a
dominar os mercados mundiais, a superar a produção de seus com­
petidores sem o apoio de uma força militar formidável? Poderá
conquistar o mundo pacificamente? Esta é minha pergunta. Isso não
foi feito até agora. Mas é possível fazê-la.
Em algum lugar, lendo a respeito de Mishima, dei com esta
frase: “Uma explosão pirotécnica: morte” Era contraste com isso,
temos outra espécie de explosão: Satori. Entre as duas existe a dife­
rença entre noite e dia, entre ignorância e conhecimento, entre dormir
e acordar. Apesar de tudo quanto disse a respeito da morte, apesar
de haver alimentado desde os dezoito anos de idade um desejo
romântico de extinção, Mishima também acreditava em ser completa­
mente vivo, desperto em todos os poros e células. Ser plenamente
consciente, despertar do sono profundo em que estamos enterrados,
esta era a meta dos gnósticos da Antigüidade — e também dos
mestres do Zen. “Faites mourir la mort.”
Parece ser aceito hoje em dia, mais do que nunca, que assassínio,
assassínio individual e em massa, está na ordem do dia. O horror da
guerra parece ter-se desvanecido; ela é aceita como inevitável. A
expressão “guerra fria” parece resumir isso. A gente se pergunta o
que pessoas com tal atitude esperam conseguir. Vitória? Que espécie
de vitória? Se assassínio está na ordem do dia, quem são os assassinos
mais excelentes — aqueles que matam menos (e vencem) ou aqueles .
que matam mais? Deve o inimigo ser aniquilado, ou derrotado e
humilhado, ou simplesmente posto hors de combatí E como devemos
considerar o líder que dá a ordem para apertar o botão que dispara
a bomba que não poupa velhos nem moços, aleijados ou insanos,
animais, plantações, a própria terra? É um herói, um salvador, um
monstro, um louco ou um idiota? Será necessário, agora que fizemos
tanto progresso tecnológico, matar o inocente bem como o culpado?
E, se o inimigo de hoje vai tornar-se o aliado de amanhã, que sentido
há em exterminá-lo? Ou, se ele é meramente derrotado, batido até
cair de joelhos, por que o vencedor o põe de pé novamente à custa
do próprio vencedor? Todos nós conhecemos a resposta para esse
enigma. Precisamos conservar outro povo vivo a fim de conservar
nosso próprio povo vivo. Negócios. Este é o emblema heráldico do
mundo moderno. Não há nisso a menor lógica. Ê uma forma de
insanidade, a insanidade de civilização.
Olhando os fatos de outro ângulo, o guerreiro não é uma coisa
do passado, tão inútil e ridícula quanto a ave dodo? Quando Mishima
diz, em Sun and Steel, que “a meta de minha vida é adquirir todos
os vários atributos do guerreiro”, queria ele dizer como “decoração”?
Sabemos que ele admirava o espírito dos samurais e o culto da

28
espada, mas de que adiantam espadas e toda a bravura da cavalaria
quando existe uma arma como a bomba? Não estamos mais na
idade em que Ricardo, Coração de Leão, por admiração a seu adver­
sário, convidou Saladino a tornar-se membro de sua Ordem. Além
disso, falando na espada e nas várias escolas da espada que existiam
nos dias dos samurais, que dizer da Escola Sem Espada? Mishima
nao sabia disso? Mesmo os samurais, treinados como eram para
matar, vivendo apenas para matar, por assim dizer, chegaram a
perceber que a melhor demonstração de sua perícia consistia em
viver de modo que nunca se vissem na necessidade de defender-se
pela espada. Essa atitude, em meu entender, é uma manifestação do
uso inteligente de força e perícia em contraste com o uso de vitória
através de morte. Quem deseja vitória, afinal de contas? Só espíritos
estúpidos, ardilosos, mesquinhos. O que todos nós realmente deseja­
mos é permanecer vivos o maior tempo possível com todos os nossos
sentidos e todos os nossos apetites para o gozo da vida. Nós não
fomos criados heróis, poetas, legisladores, militares, intelectuais, juizes;
nós criamos essas divisões de atividade através de nossa maneira
particular de encarar as coisas, através de nosso complicado modo
de vida. O homem primitivo, que sobreviveu milhares de vezes mais
do que nós, não tinha necessidade dessas diversificações. Nem delas
têm necessidade os homens mais sábios de nosso meio. Embora sejam
os Exemplares, eles nunca assumem a liderança de um povo. Não
procuraram mudar o mundo; mudam mundos, como São Francisco
mandava seus ardorosos discípulos fazer. Em outras palavras, mudam
sua perspectiva e, assim, aceitam o mundo, o que significa compre-
endê-lo, ter compaixão de seus semelhantes, tomar-se irmãos e não
rivais ou competidores, e certamente não juizes.
Pergunto a mim mesmo vezes e vezes: Mishima esperava real­
mente mudar o comportamento de seus compatriotas? Quero dizer,
cogitou ele seriamente algum dia de uma mudança fundamental, uma
emancipação genuína? Não estou agora questionando a sabedoria ou
futilidade de seu dramático apelo através do uso do punhal e da
espada. Dotado de alta inteligência, não percebeu ele a inutilidade
de tentar alterar a mente das massas? Até hoje ninguém ainda foi
capaz de conseguir isso, Nem Alexandre Magno, nem Napoleão, nem
Buda, nem Jesus, nem Sócrates, nem Marcião, nem qualquer outro
que eu conheça. A grande massa de humanidade modorra, modorrou
durante toda a história e, com toda probabilidade, ainda estará mo-
dorrando quando a bomba atômica cobrar seu tributo final, (Preci­
saremos esperar um fim tão dramático? Não nos estamos matando
rapidamente em milhares de maneiras diferentes e com pleno conheci­
mento do fim à vista?). Não, é possível mudar as massas de um lugar
para outro como tábuas de madeira, movê-las como peões, chicoteá-las
até ficarem frenéticas, ordenar-lhes que matem sem embaraço —

29
especialmente em nome da justiça — mas não é possível despertá-las,
mandar que vivam inteligentemente, pacificamente, belamente. Exis­
tem e sempre existirão “os vivos e os mortes”. E Jesus disse: “Que
os mortos enterrem os mortos.”
Sua absoluta seriedade, parece-me, obstruía o caminho de Mi-
shima. Sou tentado a dizer que essa absoluta seriedade é um traço
muito japonês. Só nos mestres do Zen encontro verdadeiro senso de
humor. Uma espécie de humor, devo acrescentar, também estranha
ao ocidental. Se a compreendéssemos, se a apreciássemos verdadei­
ramente, nosso mundo ruiria. O importante é que essa falta de humor
leva à rigidez.
Mesmo na questão do desenvolvimento de seu corpo, que ele
realizou de maneira soberba, Mishima era absolutamente sério e fez
disso um fim em si mesmo. Temos esses construtores de corpo, esses
atletas, também aqui nos Estados Unidos. Eles se exibem nas praias
como pavões. Treinam seus corpos para executar feitos extraordiná­
rios. Parecem às vezes capazes de mover montanhas. Mas movem
realmente montanhas? Para que serve essa estonteante musculatura,
essa força hercúlea, essa perfeição divina? É para olhar-se no espelho
com orgulho e satisfação? Não há algo de feminino, algo de ridículo
nesse culto do corpo? Quando menino, lembro-me de ter lido a
respeito de um bando de espartanos que resistiu no desfiladeiro das
Termópilas até morrer o último homem. Havia em meu livro de
história ilustrações dos espartanos antes da batalha, penteando e
trançando suas compridas cabeleiras. Pareciam belos e efeminados,
embora pudessem ser heróis. O livro falava do sentimento de frater­
nidade que existia entre homens. Eu não conhecia na época todas
as implicações daquela palavra, fraternidade. Essa espécie de fra­
ternidade pertencia, porém, a uma ordem diferente da homossexua­
lidade praticada pelo atleta moderno e sua classe. Era uma forma,
muito mais larga e profunda, de amor entre homem e homem; era
praticada abertamente e comunalmente, como freqüentemente acon­
tecia nos grupas religiosos de irmã e irmão que floresceram em data
muito posterior na Europa e mesmo na América. Com os samurais
da Antigüidade sem dúvida acontecia o mesmo. A sodomia que existe
em exércitos modernos, não há necessidade de dizer, é de outra
ordem. Não há nela sequer uma sugestão de “esplendor melancólico”.
Se existia algo de heróico nos samurais, nos espartanos e tam­
bém nos combatentes camicases, essa espécie de heroísmo foi assu­
mida hoje por homens de outros terrenos que não o militar. Ou
pelo menos me parece. O mundo está cada vez menos interessado
em homens que empreendem missões de morte, A conquista da
lua, por exemplo, foi uma missão que exigiu os cérebros e a coope­
ração de centenas de homens além daqueles que efetivamente fize-

30
ram o pouso. Foi um feito de engenharia e antes e acima de tudo —
um triunfo de tecnologia. Eu não subestimo o valor dos astronautas.
Mas deve-se notar, e isso foi dito vezes e vezes, que eles eram o que
nós chamamos indivíduos excessivamente “normais”. Não eram do
tipo heróico. Eles seguiram instruções, feito difícil por si só nesse
caso; não lhes foi pedido que morressem nas barricadas, nem que
carregassem como a Brigada Ligeira, nem que cometessem suicídio
voluntário como os pilotos camicases. Suas probabilidades de vencer
eram quase de cem por cento. E suas realizações, como só o tempo
dirá, talvez se mostrem mais importantes para a humanidade do que
os sacrifícios heróicos de todos os heróis e mártires que já morreram
por uma cama ou uma crença.
Voltando ao assunto do humor ou falta dele, como disse no
início, eu não li toda a obra de Mishima. Longe disso. Mas até agora
não percebí um traço de humor em qualquer coisa que ele tenha
escrito. Não posso, por alguma estranha razão, deixar de contrastar
Mishima com Charles Dickens, que Dostoiévski tanto admirava,
embora eles estivessem em pólos diferentes, Que surpresa foi para
mim topar há alguns anos com o livro de G. K. Chesterton sobre
Dickens e descobrir o grande papel que humor e patos desempe­
nharam no trabalho do último. Aqui está uma passagem do final do
primeiro capítulo desse livro:*

“O ardente poeta da Idade Média escreveu; ‘Abandonai toda


esperança, ó vós, que entrais sobre as portas do mundo inferior.’
Os poetas emancipados de hoje escreveram-no sobre as portas
deste mundo. Mas, se quisermos compreender a história que se
segue, deveremos apagar aquele escrito apocalíptico, ainda que
apenas por uma hora. Deveremos recriar a fé de nossos pais,
ainda que apenas como atmosfera artística. Então, se vós sois
pessimistas, ao ler esta história abandonai por algum tempo os
prazeres do pessimismo. Sonhai durante um momento de malu-
quice que o capim é verde. Desaprendei aquele saber que pen­
sais ser tão claro; negai aquele conhecimento mortal que pensais
conhecer. Entregai a própria flor de vossa cultura: abri mão da
própria jóia de vosso orgulho; abandonai a desesperança, ó vós,
que entrais aqui.”

Como é parecido com Zen, em muitos aspectos, este apelo de


Chesterton! Em algumas linhas, ele destrói as escoras que sustentam
nossa inadequada visão cultural do mundo. De volta à humanidade.
Humanidade comum. Jogue fora seus óculos, seus microscópios e

* Charles Dickens, por G. K. Chesterton, Methuen, Ltd. Londres.

31
telescópios, suas divergências nacionais e religiosas, seu desejo de
poder, suas ambições sem sentido. Caia de quatro e ensine o alfabeto
às formigas — se puder. Questione tudo, mas nunca seu senso de
humor. A vida não é um negócio mortalmente sério, é um drama
tragicômico. Você é o ator e a própria peça. Você é tudo quanto
existe; não existe nada mais, nem alguma coisa mais. Assim eu inter­
preto as palavras dele.
Se se pretende afetar ou comover o mundo, que maneira melhor
do que erguer o espelho para que possamos ver a nós mesmos como
realmente somos, para que possamos rir de nós mesmos e de nossos
problemas. Mais eficaz do que a espada do samurai ou o curto punhal
para seppuku é aquele humor swiftiano que nada impedia de dizer
o que se pretendia. O homem que conseguisse fazer Hitler rir poderia
ter salvo milhões de vidas. Falo sério. Os benfeitores, sejam santos
ou monstros, criam mais mal do que bem. Louis Armstrong é um rei,
ao passo que Billy Graham é apenas mais um pregador.
Sei que é difícil preservar senso de humor em um mundo que
produz bombas atômicas como hortaliças. Mas se tivéssemos senso
de humor mais forte talvez não precisássemos recorrer àquela dolo­
rosa experiência de autodefesa por extinção mútua. Quando, de acordo
com a lenda, Alexandre Magno ordenou a certo sábio indiano que
comparecesse à sua presença, quando o ameaçou de morte se
recusasse obedecer, o sábio soltou uma estrondosa gargalhada.
“Matar-me?”, exclamou ele. “Eu sou indestrutível.” Que excelente
senso de humor! Uma manifestação não tanto de coragem quanto
de certeza. E de serena e suprema confiança no poder de vida
sobre morte.
Terá sido sua absoluta seriedade que levou Mishima a sentir
que esgotara seus poderes aos quarenta e cinco anos, idade em
que muitos escritores estão apenas começando a firmar o passo? Que
infortúnio esgotar as próprias energias antes de ter realmente come­
çado! Sobre os Estados Unidos um famoso escritor francês (Duhamel)
escreveu certa vez: “Pourri avant d’être muri.” Em outras palavras,
uma fruta que apodrece antes de amadurecer. Pense, em contraste,
em Hokusai, em Ticiano, em Michelangelo, em Picasso e naquele apa­
rentemente indestrutível Pablo Casais.
Conheci numerosos escritores japoneses nos últimos anos e fiquei
desagradavelmente impressionado pela maneira como se escravizam
para ganhar a vida ou para manter uma reputação, Todo senso de
recreação que podiam ter tido outrora foi perdido, abandonado. Tenho
também a impressão de que todo o corpo de trabalhadores do Japão
trabalha como formigas, matando-se nessa corrida de ratos que se
chama ganhar a vida. Como os alemães, seus congêneres, eles pare­
cem viver só para trabalhar. E entre ser escravos do trabalho e

32
morrer como moscas no campo de batalha é apenas um passo, inevi­
tável. Se os trabalhadores do mundo um dia se unissem, eu me per­
gunto qual seria o resultado: Utopia ou suicídio em massa? O mundo
dos esportes, terreno em que os japoneses se distinguem, não é uma
expressão do instinto de brincar, mas, como o mundo industrial, um
mundo de competição, de bater recordes, de agradar as multidões, de
obter lucros. Os antigos sábios chineses que empinavam papagaios
para divertir-se não eram tolos, viviam mais tempo, riam mais alto e
mais freqüentemente. Podiam não ter músculo suficiente para matar
uma mosca, mas não acabavam aleijados ou idiotizados, nem se preo­
cupavam em ser lembrados por seus feitos depois de mortos.

PARTE II

O choque que levei ao saber do dramático e horrível fim de


Mishima foi reforçado pela lembrança de um estranho incidente que
me aconteceu em Paris há cerca de trinta e cinco anos. O incidente
a que me refiro veio-me à mente quando, sentado certo dia num
consultório médico, apanhei por acaso uma revista (Life, penso eu)
na qual havia fotos das cabeças decepadas de Mishima e de seu
camarada sobre o chão. Duas coisas feriram-me de imediato: primeiro,
as cabeças não estavam caídas de lado, mas permaneciam em pé;
segundo, uma das cabeças tinha impressionante semelhança com
minha própria cabeça, que eu vira uma vez caída no chão, mas em
pedaços. Real ou imaginária, a semelhança entre a cabeça de Mishima
e a minha era assustadora.
Eu sempre imaginara que, se uma cabeça fosse cortada pela
espada, saltaria e rolaria pelo chão — mas nunca cairia em pé. Anos
antes, eu lera um livro intitulado Three Geishas,* no qual havia
uma história, pretensamente verdadeira, chamada “Tsumakishi, a Bel­
dade sem Braços”. É uma história com a qual sem dúvida todo japonês
está familiarizado. Nessa história, o dono de escola de gueixas volta
do teatro certa noite completamente fora de si e, agarrando uma
enorme espada, passa a cortar as cabeças das Malkos adormecidas.
Tsumakishi, que está dormindo em baixo, é despertada pelo barulho
das cabeças cortadas saltando como bolas de boliche. Acorda aterro­
rizada e vê o mestre em pé a seu lado com uma espada cintilante.

* Three Geishas, por Kikou Yamata: John Day Co., N. Y., 1956.

33
Antes que possa fazer um movimento, ele corta seus dois braços e
desfigura seu rosto. Por um milagre, ela sobrevive e posteriormente
se torna uma das mais famosas gueixas de todos os tempos.
Quanto à semelhança entre as duas cabeças.. . Por volta de
1936, no estúdio de um amigo na Villa Seurat, em Paris, uma jovem
iugoslava, Radmila Djoukic, incumbiu-se de esculpir minha cabeça.
No dia em que terminou — a argila ainda estava úmida — um
jovem estudante chinês e eu discutíamos literatura inglesa. Ele men­
cionara o nome de Shakespeare uma ou duas vezes, o que me levou
a perguntar-lhe se já lera Hamlet. Repetiu o nome interrogativamente,
depois exclamou: “Oh, sim, agora me lembro... Você se refere ao
romance de Jack London.” Fiquei tão surpreendido que joguei os
dois braços para o ar e inadvertidamente derrubei do suporte a cabeça
ainda úmida. Para minha completa conternação, ela se fez em peda­
ços — e nem todos os cavalos do rei, nem todos os homens do rei,
puderam juntar novamente o pobre Humpty Dumpty. Felizmente,
porém, no dia anterior fora tirada uma fotografia da cabeça. Mais
tarde, essa foto da cabeça foi usada como ilustração de uma sobre-
capa de meu livro intitulado Sunday After the War. Essa cabeça, que
me parecia ter muita semelhança, sempre me perseguira. Imagine-se
minha surpresa e horror ao vê-la em pé no chão em companhia de
uma cabeça desconhecida.
Embora fugidia, a impressão nunca me deixou. Desde o momento
do reconhecimento até meu encontro com Mishima no outro mundo,
não foi mais que um passo. Foi nesse ponto que interrompí minha
narrativa para iniciar um diálogo com Mishima no limbo. Tendo
minha própria morte imaginária seguido de perto a de Mishima, foi
como se nossos corpos ainda estivessem quentes e vivos em todos
os aspectos. Acontece agora que, em meu sono, eu me vejo conti­
nuando esse diálogo com Mishima, no qual abordamos coisas que
poderiamos ter discutido se nos tivéssemos encontrado em carne e osso.
Sobre vários desses temas post-mortem o próprio Mishima falou
em suas Confessions of a Mask. “Pode haver”, pergunta ele, “amor
que não tenha a menor base em desejo sexual? Não é isso um absurdo
claro e óbvio?” Antes de dar resposta, desejo citar estas palavras do
mesmo livro: “Para mim, Sonoko (a moça que ele pensava estar
amando) aparecia como a representação de meu amor às coisas do
espírito, às coisas eternas.” Permitam-me dizer, entre parênteses, que
espero nunca esquecer essas palavras ao pensar em Mishima e seu
cruel destino.
Voltando à sua primeira pergunta: pode haver amor sem desejo
sexual? Permitam-me suplementá-la com outra que foi objeto de fre-
qüente discussão nesta casa: Pode uma pessoa continuar amando
alguém se não houver a menor resposta? Para mim, as duas pergun-

34
tas parecem encaixar-se. Apresentem a mesma solução aparentemente
impossível. Somente monstros ou seres sobre-humanos pareceríam
capazes de resolver tais enigmas. Por monstros quero dizer mais espe­
cificamente devotos religiosos que não apenas são capazes de viver
como deuses, por assim dizer, mas para os quais esses problemas só
fortalecem seu caráter, sua coragem, sua fé.
No reino do amor, todas as coisas são possíveis. Para o amante
devoto nada é impossível. Para ele ou ela, o importante é — amar.
Tais indivíduos não se apaixonam, simplesmente amam. Não pedem
para possuir, mas para serem possuídos, possuídos por amor. Quando,
como ãs vezes acontece, esse amor se toma universal, incluindo
homem, bicho, pedra e mesmo pragas, começa-se a pensar se amor
não pode ser algo que nós, mortais comuns, conhecemos muito mal.
O amor de Mishima à mocidade, beleza e morte parece igual­
mente incluir-se numa categoria especial. Não tem a menor relação
com a espécie de amor que acabo de descrever, mas, exagerado como
era em seu caso, é extremamente incomum. E é manchado por narci-
sismo. Ao abrir quase qualquer um de seus livros, sente-se imediata­
mente o padrão de sua vida e seu inevitável destino. Ele repete os
três temas, mocidade, beleza e morte, vezes e vezes, como um músico.
Dá-nos a impressão de ser um exilado aqui embaixo. Obcecado pelo
amor às coisas do espírito, às coisas eternas, como poderia ele deixar
de ser um exilado entre nós?
Quem poderia oferecer consolo ao exilado solitário? Só o grande
“Consolador”, interpretem-no como quiserem. Mas na vida de Mishima,
aparentemente não havia esse “Consolador”. Ele não era um homem
de fé, mas um homem de princípios. Era um estóico em uma idade
não de hedonismo, mas de puro materialismo. Sentia-se revoltado
pela maneira como seus compatriotas pareciam chafurdar-se em sua
liberdade recém-descoberta. Conte os ocidentais com quem emulavam,
sua visão da vida afundara-se ao nível das rãs. Perdida estava a visão
da vida apolínea e a dionosíaca. Dinheiro, comodidades, segurança
— essas coisas haviam-se tomado a meta. Poderia o câncer da vida
moderna ser extirpado? Obviamente Mishima pensava que poderia.
Mas terá pensado assim até o fim? Como pode o espírito das antigas
e salvadoras virtudes de nossos ancestrais ser enxertado na raça gasta
e degenerada do homem moderno? Sem dúvida, esse chamado homem
moderno ainda não tem realmente existência. O homem de hoje não
é senão uma sombra do homem moderno que virá. Ele não pode ir
para frente, nem para trás,- está atolado no lodaçal que sua visão
míope da vida criou. Não se sente à vontade consigo mesmo, nem
com o mundo que tenta dominar. Seu instinto social é atrofiado, ele
vive isolado, fragmentado, atomizado e desolado.
Acima de tudo, para o homem de hoje a vida parece não ter
sentido. Fala-se com freqüência que o primordial fenômeno ou estado

35
mental é o de maravilhamento. Este também está obviamente perdido.
Tentamos explicar o universo em termos de teorias científicas, mas
somos incapazes de explicar até mesmo os fenômenos mais simples.
Ignoramos que o sentido só surge quando descobrimos a falta de pro­
pósito da criação. Confundimos ordem e classificação com explicação.
Não podemos aceitar a noção de desordem ou caos, mas a necessidade
de tal aceitação é essencial. Igualmente a necessidade do absurdo
absoluto. Só o gênio parece compreender e apreciar a alegria de puro
absurdo. Absurdo é o antídoto à monotonia e vacuidade criadas por
nosso contínuo esforço em favor de ordem, nossa ordem, o antídoto
a nossos esforços compulsivos para descobrir sentido e propósito onde
não existem.
Muitas vezes perguntei a mim mesmo, ao encontrar os nomes
de personagens famosos na história européia mencionados por Mishi-
ma, quem eram seus heróis? (Lembro-me que quando criança ele
adorava Joana D’Arc, até descobrir que ela era mulher. Ele menciona
também Gilles de Rais, aquele esplendoroso e enigmático monstro
dos tempos da cavalaria, cujo comportamento nos intriga até hoje.)
Recentemente, deitado na cama certa noite, comecei a desfilar os
nomes de homens cujos feitos, pensamento ou exemplo parecem ter
tido tal influência sobre nossa vida cultural. Quando os escrevia,
comecei a arrumá-los aos pares a fim de propor a questão (a todo
o mundo): Se tivesse de escolher, qual dos dois você escolhería?
Mesmo que não fosse mais que um jogo de respostas, parecem-me
que podería proporcionar algumas revelações interessantes. Em todo
caso, era Mishima quem eu tinha em mente quando arranjei os pares.
Qual ele escolhería, se fosse obrigado a dar resposta?

Lao-Tsé ou São Francisco de Assis


Leonardo da Vinci ou Pico delia Mirandola
Sócrates ou Montaigne
Hitler ou Tamerlão
Alexandre Magno ou Napoleão
Lenine ou Thomas Jefferson
Voltaire ou Emerson
Joana D’Arc ou Mary Baker Eddy
Keats ou Bashô
Rimbaud ou Walt Whitman
Sigmund Freud ou Paracelso
Montezuma ou Cortez
Péricles ou Carlos Magno
Karl Marx ou Gurdjieff
Hokusai ou Rembrandt
Ricardo, Coração de Leão, ou Saladino
Chuang-tsu ou Rabelais.

36
Infelizmente, por ignorância, deixei de fora os nomes de muitos
japoneses famosos pelos quais Mishima podería ter substituído alguns
dos mencionados acima.
Há tantas coisas que eu desejaria discutir com Mishima em
nosso encontro em Devachan. Antes de tudo, eu teria pedido desculpa
pela minha rudeza quando o encontrei em carne e osso, na Alemanha,
num tempo em que ainda era uma figura quase desconhecida. (Eu
esquecera completamente que o havia encontrado até que os jornais
alemães e japoneses revelaram o incidente.) Eu teria pedido cham­
panha e cigarros — champanha de sonho e cigarros de sonho, sem
dúvida — mas nenhum de nós teria percebido a diferença. Eu
ter-me-ia esforçado para deixá-lo à vontade, romper sua guarda, fazer
com que ele risse, se possível. Fazer com que ele risse calorosamente.
Só conseguir isso, em meu entender, teria feito com que nosso encontro
valesse a pena. (Mas como iria eu fazê-lo rir? Esse pensamento ator­
mentava-me.) Sim, eu teria travado com ele uma conversação fantás­
tica — a respeito de anjos budistas e outros, a respeito das belezas
de linguagem, a respeito dos absurdos da metafísica, a respeito de
Zen na literatura européia, a respeito de amor no mundo ocidental
e amor no mundo oriental, a respeito da fisiologia do amor, isto é,
amor entre os insetos, amor entre germes e bacilos, amor entre átomos
e moléculas, amor celestial, amor pervertido, amor satânico, amor
infrutífero, amor dos nascituros, amor eterno e assim por diante
ad infinitum. Eu lhe teria explicado que agora, enquanto esperava
renascer, teria tempo de ler todos cs seus livros e talvez discuti-los
com ele, se a isso estivesse disposto. Nós sondaríamos tudo, exceto
seus problemas pessoais. Teríamos tempo para dicutir Freud, Hegel,
Marx, Blavatsky, Ouspensky, Proust, Rimbaud, Nietzsche, quem quer
que fosse, como quer que fosse. Poderiamos até mesmo enfocar o
mistério do universo, do ponto de vista de Haeckel e do nosso. Con­
vocaríamos huris e fadas, deusas e super-homens, habitantes do
espaço e corpos astrais, heróis e monstros. “Eu prometí levar-vos
aos fins do mundo” — disse Alexandre Magno a seus soldados can­
sados de guerra. Isso é o que eu desejava oferecer a ele. Uma viagem,
uma viagem de verdade. Uma viagem iniciada por idéias, não por
drogas. Uma viagem de braços dados através da Via Láctea, com
anjos dos nossos dois lados como escolta. Uma viagem através da
realidade, não de princípios e idéias.
Que grande idéia! Nada em nossas mãos, a não ser tempo ou
eternidade. Adiando o renascimento até quando nos conviesse, até
termos decidido o tempo e o lugar da próxima encarnação. Escolhendo
meticulosamente nossos pais e também nossas novas identidades.
Novamente escolha. Quem gostaria ele de ser na encarnação seguinte
— um líder de homens ou um simples pescador? Um herói ou um
joão-ninguém? Quanto a mim, eu já decidira antes de minha morte.

37
Preferiría ser um joão-ninguém, qualquer um. Homem ou mulher, não
faria diferença. Uma vida dos sentidos, não do intelecto. Um homem
comum, não um homem famoso. Alguém por quem você passaria
na multidão sem notar.
Mas somos nós os árbitros de nosso destino? Como eu gostaria
de conhecer a escolha de Mishima! Eu seria discreto demais para
pressioná-lo nesse ponto. Assim como nunca sonharia em pergun­
tar-lhe como era seu casamento ou se já esperava encontrar felicidade
no amor, fosse com um homem, uma mulher, um chimpanzé ou um
coqueiro. Mais do que tudo, eu gostaria de saber se ele ainda pensava
ser importante mudar o mundo — este mundo, o outro mundo ou
o mundo entre mundos. Isso e outra pergunta: que sabor tivera a
morte? Era verdadeiramente a culminação de tudo ou ainda deixava
alguma coisa à imaginação?
Em Pavilion of the Golden Temple, meu querido Mishima, você
usou, para descrever um aspecto da beleza dele, uma frase que eu
nunca esquecerei. Você falou em “adumbração do nada”. Como era
em japonês eu nunca saberei, mas em inglês havia magia naquilo.
E, em outro lugar, penso que foi em Sun and Steel, você disse que
estava começando a planejar uma união de arte e vida. Gostaria de
saber quão seriamente, quão profundamente você meditou naquela
idéia. Gostaria de saber se você nunca sentiu a contradição implícita ,
naquele nobre pensamento. Você estava sempre empalando-se nos
chifres de uma contradição, não estava? Toda a sua vida foi um
dilema, cuja única solução era morte. Você fez seu próprio nó górdio
e resolveu o problema cortando-o com a espada. Talvez tenha sido
naquele mesmo livro que você disse que sua mente estava sempre
perseguida por tédio. Isso, para mim, é um dos mais estranhos enigmas
que encontrei em seu trabalho. Você, entre todos os homens, confes­
sando tédio. Inconcebível. Então nada havia que pudesse verdadeira­
mente satisfazê-lo? Você está satisfeito agora, agora que realizou, ou
deixou de realizar, seu propósito. Você se encontrou face a face com
o Absoluto? Você acredita que pode haver “um herói do iluminismo”?
Ou encara iluminismo como um mito inventado por algum monje
maluco?
Sim, meu querido Mishima, há milhares de perguntas que eu
gostaria de fazer-lhe, não por pensar que você tenha as respostas
agora — quando é tarde demais — mas porque o funcionamento de
sua mente me intriga. Você trabalhou tanto, tão arduamente, durante
toda a sua vida — e com que fim? Não pode dar-nos outro livro,
do além, sobre a futilidade do trabalho? Seus compatriotas precisam
dele; estão trabalhando como abelhas e formigas. Mas estão eles
gozando os frutos de seu trabalho, como o Criador pretendeu que
fizessem? Olham eles para seu trabalho e acham que é bom? Você

38
desejava implantar neles as virtudes de seus antepassados» preten­
dendo, suponho, emprestar assim qualidade tanto quanto substância
às vidas deles. Mas, quanto a isso, como eram as vidas de seus
antepassados ou dos meus? Você algum dia estudou as vidas privadas
des milhões de joões-ninguém que fazem o trabalho do mundo? Você
pensa que um homem tem vida mais plena, mais rica, porque é nobre
e virtuoso? Quem vai ser juiz nessas questões? Sócrates tinha uma
resposta, Jesus outra. E antes deles houve Gautama, o Buda. Tinha
ele a resposta? Ou sua resposta era silêncio?
Estou certo de que silêncio é a única coisa que você chegou
finalmente a apreciar. Você tentou tão arduamente dizer tudo e
depois fazer tudo. Você foi prodigioso em seus feitos protéicos. A
única coisa que omitiu em sua turbulenta carreira foi ser palhaço.
Você escreveu sobre anjos, mas esqueceu o congênere deles, o palhaço.
Eles são da mesma raça, só que um é celestial e o outro terreno.
Daqui a cem mil anos, quando tivermos conquistado o espaço —
signifique isso o que significar — estaremos provavelmente nos
comunicando com os anjos. Isto é, aqueles entre nós que não derem
mais tanta ênfase ao corpo físico, aqueles que aprenderem a usar seu
corpo astral. Em outras palavras, os homens que descobriram que
tudo é Mente, que aquilo que pensamos é aquilo que somos, e que
aquilo que temos é aquilo que verdadeiramente desejamos. Mesmo
naquele dia distante talvez ainda existam dois mundos — o inferno
que o mundo sempre foi e o mundo de espíritos livres que sabem
que o mundo é feito por eles mesmos. Em sua oração Sobre Dignidade
Humana, Pico delia Mirandola falou:

“No meio do mundo, disse o Criador a Adão, eu te coloquei,


para que pudesses olhar em volta muito mais facilmente e ver
tudo quanto nele existe. Eu te criei como um ser mm celestial
nem terreno, nem mortal nem imortal apenas, pare que fosses
teu próprio e livre modelador e superador; para que não pudesses
denegar em animal e, através de ti próprio, renascer para a exis­
tência divina... Só tu tens poder de desenvolver-te e crescer
de acordo com a livre vontade. Em uma palavra, tens dentro de
ti as sementes de vida universal.”

Nossos ancestrais fizeram muitas experiências, diante das quais


a sua deve parecer mesmo para você uma experiência insignificante.
Mesmo nos tempos mais antigos tivemos homens que estavam cinco
ou dez mil anos à frente de seu tempo. E, se pudéssemos recuar o
suficiente, sem dúvida descobririamos que mulheres também gover­
naram outrora o mundo, sonharam outrora em pôr fim à tristeza e
miséria terrenas. (Ironicamente, só o homem primitivo conseguiu
adaptar-se a seu ambiente e continuar seu modo de vida mais antigo

39
cora relativa facilidade.) No obscuro nevoeiro do passado, nomes e
atos foram esquecidos por nós, que pensamos serem novos e esmaga­
dores os problemas com que hoje se defronta o mundo. O tempo faz
desaparecer todas as coisas, as boas e as más igualmente. A vida con­
tinua como uma corrente sem fim, amontoando cada vez mais detritos
que nós fatuamente chamamos história. Que é a história senão uma
ficção que nos embala para adormecer ou aguça nossos temores?
Somos nós partes da história ou a história é parte de nós? Dentro
de cinco mil ou dez mil anos, o Japão talvez não exista mais. Talvez
morra de inanição ou se afunde em um glorioso choque de armas.
Quem sabe como será seu fim? Nada podemos prever, nem nossa
condenação, nem nossa salvação.
O pequeno exército que você criou, seu corpo de elite, por assim
dizer, provavelmente nem sequer será lembrado daqui a cem anos.
Seu nome talvez continue vivendo, não como mais um pretenso sal­
vador de seu país, mas como um artista, um tecedor de palavras.
Você talvez seja lembrado como um amante de beleza, cujas palavras
provocaram uma suave ondulação de excitação. Palavras e atos vivem
vidas separadas. Palavras podem tocar o espírito, mas só espírito
responde a espírito. Quanto a atos, eles são como pó. As ruínas de
esplendores antigos cercam-nos de todos os lados; elas não nos ins­
piram a esforços mais nobres, mais grandiosos.
Sou culpado como você, meu querido Mishima, de tentar fazer
do mundo um lugar melhor para se viver. Ou pelo menos, comecei
com essa esperança. De alguma maneira peculiar, a prática de escrever
ensinou-me a futilidade de tal trabalho. Mesmo antes de haver lido
as palavras de sabedoria de São Francisco, eu tomara a decisão de
olhar o mundo com olhos diferentes, de aceitá-lo como ele é e con-
tentar-ine em fazer meu próprio mundo. Essa reviravolta não me
cegou para os males que existem, não me tornou indiferente ao sofri­
mento e à miséria que homens experimentam. Nem me tornou menos
crítico das leis, das instituições, dos códigos de comportamento sob
os quais continuamos a viver. Ê realmente difícil para mim imaginar
um mundo mais absurdo, mais irreal, do que aquele no qual agora
vivemos. Parece, como diziam cs gnósticos da Antigüidade, mais
semelhante a um “erro cósmico”, mais semelhante ao trabalho de
um falso Criador. Para que o mundo se tornasse um lugar suportável
haveria necessidade do que Nietzsche chamou “uma transvalorização
de valores”. Falando com moderação, é um mundo insano, no qual,
infelizmente, os insanos estão fora do asilo e não dentro. Em suma,
assim parece quando queremos ter as coisas à nossa maneira. O Japão
não é mais louco, nem mais são, do que o resto do mundo. Tem
seus zumbis, como o Haiti; tem seus senhores da guerra como a
Alemanha, tem seus impiedosos magnatas industriais como os Estados

40
Unidos. Tem também seus homens de gênio, nem maiores, nem
menores que aqueles de outros países. Seus problemas não são exclu­
sivos, nem é exclusiva a solução para eles. O Japão era seu mundo,
seu condicionador, exatamente como os Estados Unidos são o meu.
Talvez eu me iluda, mas sinto que encontrei meu próprio mani­
cômio privado. Eu também posso ser louco, mas de maneira diferente
de meus compatriotas. Não me aborrece mais observar meus conci­
dadãos marcharem para sua própria destruição, se é o que eles querem
fazer. Esse é o funeral deles, não o meu. Com os' obstáculos que
eles puseram em meu caminho, eu aprendi a viver, mas esses obstá­
culos estão se tomando cada vez menos assustadores, cada vez menos
inibidores, com o passar do tempo. A gente aprende a disputar o
jogo — não observando as regras, mas contornando-as. Não há escola
onde se possa aprender essa arte, a menos que seja a própria vida.
Só um conhecimento aparente pode ser adquirido. No final, nós todos
acabamos fodidos, cada um de nós e todos nós, inclusive aqueles que
lutaram por seu país e aqueles que não o fizeram.
No fim, cemitérios precisam ceder lugar a fazendas e habitações
dos vivos. Se pelo menos os mortos pudessem falar — não a respeito
do outro mundo, mas daquele de onde partiram! Se pelo menos
fôssemos capazes de aprender com a experiência de outros! Mas não
aprendemos desse jeito, se é que realmente aprendemos alguma coisa
durante nossa curta estada aqui embaixo. Tudo quanto podemos
esperar aprender é como viver, mas para isso não há professores.
Cada um tem que descobrir por si próprio ou, como dizem alguns,
descobrir o Caminho e fundir-se com ele, A ironia de tudo é que os
erros que cometemos são exatamente tão importantes ou talvez mais
importantes do que as descobertas certas. Tentativa e erro, tentativa
e erro — até desistir de tentar, o que é simplesmente outra maneira
de dizer desistir de bater a cabeça contra uma parede de pedra.
A partir do momento em que o soldado entra em batalha, seu
único sonho obcessivo é de paz. Talvez os generais e almirantes
sonhem com vitória, mas não os homens que travam a luta. A julgar
pelo que li de você, meu querido Mishima, esse assunto de paz não
parece ter ocupado grande espaço em seu trabalho. Pensei nisso
quando li a respeito de seu pequeno bando de soldados bem vestidos.
(Perdoe o tom de gracejo.) Sempre que vejo um exército bem treinado
marchando para a guerra, penso em como aqueles belos uniformes,
aquelas botas lustrosas e botões polidos parecerão depois do primeiro
encontro com o inimigo. Penso em como aqueles milhões de brilhantes
uniformes estão destinados a tornarem-se nada mais que esfarrapadas
e sujas mortalhas cobrindo corpos mortos e mutilados. Estranha, a
importância dada ao uniforme. Como se o corpo estivesse alugado
pelo tempo de duração do uniforme. Quando formou seu pequeno

41
exército, eu gostaria de saber se alguma vez você pensou no possível
fim daqueles uniformes cujo pagamento lhe custou tanto tempo e
esforço.
Talvez essa consideração possa parecer disparatada em vista de
seu elevado propósito, mas certamente o homem de ação cujo papel
você pretendia representar deve ter percebido que há coisas como
lama, sangue, merda e pragas que entram no jogo de fazer guerra.
Na verdade, para falar apenas na primeira e última das coisas men­
cionadas, elas desempenham importante papel em toda guerra. Mas
talvez o esteta e o dândi que havia em você lhe proibissem tais
considerações.
Hoje todo o mundo “civilizado” nada mais é do que um acam­
pamento armado no qual as vítimas gritam silenciosamente: “Paz,
Paz, dêem-nos Paz!” E você, meu querido Mishima, parece ter sido
estranhamente despreocupado. Tinha você como certo que uma vez
feito seu desdobramento tudo correría facilmente? Ou estava sim­
plesmente esquecido das consequências de rearmamento? Seria sufi­
ciente confessar o malogro e expiá-lo por honroso seppuku? Não
posso acreditar que você fosse tão imune, tão solipsista. Este é, natu­
ralmente, um assunto que eu gostaria muito de discutir com você
no limbo. Tudo quanto nos resta agora é conjectura. Alguns encon­
trarão satisfação em chamá-lo de tolo, outros em chamá-lo de fanático
e ainda outros em marcá-lo como herói.
Fosse você o que fosse, sua ausência é uma perda para o mundo.
É o que somos inclinados a dizer quando um homem de gênio nos
deixa. Na realidade, não há ninguém, nada, que possa encaixar-se
naquele lugar comum de “grande perda para o mundo”. Pense nos
milhões e milhões massacrados só em guerra, para não falar em
terremotos, maremotos, pestes e assim por diante. Quando o tributo
da morte é finalmente calculado, proclama-se solenemente a perda de
alguns indivíduos distintos. Os generais perdidos em combate geral­
mente recebem indevida atenção. Mas não são eles que constituem a
grande perda pare a sociedade. Eles são os supostos heróis cujo
dever é arriscar-se à morte no campo de batalha. Não, o que lamen­
tamos é a perda de artistas e pensadores. Generais e almirantes podem
ser feitos em qualquer tempo, em qualquer lugar, mas não indivíduos
criativos. Geralmente, é tarde demais quando as palavras e atos dos
criativos recebem atenção; nós compensamos acrescentando seus
nomes aos dos mortos ilustres já embalsamados nos panteões do
mundo.
Mas que dizer dos incontáveis milhões que morreram, foram
mutilados ou tiverem seu espírito destruído? Não havería entre eles
alguns destinados a ser ainda maiores do que aqueles já entronizados?

42
Não havería ali muito possivelmente alguns pensadores e inventores,
alguns homens de visão mais que ordinária, os quais, se tivessem
vivido, poderíam ter transformado nosso mundo? Pense nas tremendas
mudanças feitas por homens como Edison, Marconi, Einstein, para
mencionar apenas três. Certamente, nem todos os homens desconhe­
cidos, nem todos os homens esquecidos, que morreram em combate,
eram parvos e idiotas. O mundo sente a falta deles, chora a perda
deles? O mundo não tem tempo para tais especulações. Avante!
Avantel grita ele. Para frentel ainda que para frente às vezes signi­
fique para trás. Para frentel ainda que isso signifique destruição
universal. A vida, dizem, exige-o. Mas seja a vida ou a morte que
nos empurre, o mundo consegue de alguma maneira sobreviver. Talvez
não meu mundo ou seu mundo, mas “o mundo”. A gente às vezes
se pergunta o que realmente significa a estranha palavra “mundo”.
Agora que você não pertence mais a ele, repouse em paz.

45
Pequenos pensamentos a caminho — sobre a Grécia, sobre os gregos e sobre
outras coisas:
Para sua majestade tão sensível, o Rei George Seferis de Esmírna!
Seu servo obediente,
Henry Miiler
Novembro — 1939
“E boa viagem para todo mundo!”

44
Primeiras Impressões da Grécia

HENRY MILLER

1973
I

Tlha de Hydra — 11-5-39

O berço da imaculada conceição. Uma ilha construída por uma


raça de artistas. Tudo miraculosamente tirado do nada. Cada casa
relacionada com a outra, como que por um arquiteto invisível. Tudo
branco como neve e apesar disso colorido. A cidade inteira é como
uma criação de sonho; um sonho nascido de um rochedo. A cada
passo do caminho, o quadro muda. A ilha inteira é como um rochedo
construído sobre um palco giratório. Até mesmo o clima gira. Estamos
indo para trás, para o solstício de verão. O inverno virá com rosas,
Iniciado em Hydra, na casa de Ghilca. Cercado por Madame Hadji- melões, uvas. O solo é como sangue seco, um vermelho que se toma
-Kyríaco, Katsimbalis, Aspasia, Seferiades e as criadas de quarto. pompeiano quando sobe pelas paredes. As ilhas flutuam sobre tiras
Atmosfera madura, fecundante — para conversação, sonho, trabalho, de luz, presas embaixo apenas por minúsculos santuários brancos
lazer, indolência, amizade e tudo. Em toda parte o espírito ancestral. que são também visões de sonho. A cidade, que cresceu organica­
O uísque excelente, especialmente favorável para discussões sobre mente do rochedo em formação artística, parece nascer de novo todo
Blavaksky e o Tibete. dia. É como a Holanda ou a Dinamarca, só que é grega.

46 47
"Na fortaleza onde Ghike vive, a discussão parece sempre girar
em torno de Bizâncio. Bizâncio é o elo cultural. Mas o pêndulo oscila
para trás e para frente — da Grécia de Micenas à de Péricles, do
tempo minóico à revolução, de Hermes Trismegisto a Péricles Yana-
poulos ou Palamas ou Sekelianos. As refeições são gargantuescas —
só o hors d’oeuvres basta. Depois as sobremesas — melão, figos,
laranjas verdes, uvas, nozes, massas turcas, que não são realmente
turcas, mas gregas — bizantinas — e a retzina que dissolve tudo em
poeira dourada e areja os pulmões por uma espécie de goma-laca de
terebentina refinada que se evapora e cria bem-estar, alegria, conver­
sação. Cada anedota descobre mais um fenômeno grego — o fenô­
meno humano — que rivaliza com as maravilhas naturais daqui era
variedade e excentricidade. (A história do banqueiro que escrevia
maus versos. O imbecil que tinha um diário pornográfico de 33
volumes. A ninfomaníaca que dançava nua e seduzia os convidados.
Etc. etc. Lendas, fábulas, abundância de mitos.)
A estrada para o mar, entre cemitério de pedras cinzentas, urzes
cinzentas, rochedos verde-alfazema, terra vermelha, com branco em
toda parte e azul, e paredes gotejando ocre. Os rostos espantosos
das crianças, todas tão diferentes. Algumas como africanas, algumas
como figurinhas em vasos (?), algumas como retratos em esquife. A
moça que tem o nome, que foi batizada com o nome, de Deméter!
A casa do almirante. A destruição da Armada Turca. Tudo é lendário,
fabuloso, incrível, miraculoso — mas verdadeiro. Tudo começa e
acaba aqui.
***

Até Spetsai com Katsimbalis, em uma das inúmeras balsas velhas


que os gregos compram como sucata e nas quais continuam a navegar
durante mais vinte ou trinta anos, insuflando vida nos barcos com
sua coragem, tenacidade e perícia. Em Hermione, no Peloponeso,
descemos do barco distraídos. Só quando chegamos diante do monu­
mento de guerra é que Katsimbalis percebe de repente o erro. Uma
corrida maluca em um Ford aos pedaços até o mar. Minha primeira
visão de Árgolis, de uma terra que me excita imedíatamente. Talvez
esta seja a parte mais velha da Grécia. Parece ser. Tem uma qualidade
primitiva, uma quietude que é encantadora — e curativa. Árgolis
está perto de mim, o solo mais íntimo que já vi em todas as minhas
andanças. Rodar por essa paisagem no Ford desmantelado é incon­
gruente. Toda invenção parece infantil agora, mais do que nunca.
A Grécia sobreviverá a toda idéia de “Progresso”. Assimila, destrói,
recria tudo que agora parece essencial à vida. Aqui é onde os botões
voltam para o molde de botões, onde tudo é “refundido”, no sentido
místico.

48
No porto, uma violenta tempestade. Finalmente o céu clareia
e, com mar agitado, partimos para Spetsai em um barco a motor.
Assim que saímos para o mar, outro garboso barquinho aparece.
Corremos lado a lado, com as minúsculas embarcações corcoveando
como potros. Para mim é uma viagem homérica. O barco tomou-se
um animal mitológico. Com firme vento soprando, rochedos dos dois
lados, enormes vagas ameaçando engolir-nos se entrarmos no en-
tresseio das ondas, o homem ao leme ainda assim deixa-o para baixar
o toldo sobre nossas cabeças. Um ato de pura temeridade a fim de
ganhar tempo, de economizar um pouco de combustível. Nós o obser­
vamos sem respirar, não ousando dizer uma palavra. Um ato grego
— a ousadia que sempre acompanha a esperteza. Isto é que distingue
os heróicos gregos dos vikings. Ambos invencíveis, é verdade, teme­
rários, os maiores navegadores do mundo. Mas com o grego eu me
sinto absolutamente seguro. Sua ousadia é sempre baseada em certeza.
Ele tem gênio quando empreende uma tarefa perigosa. E que dura
escola de treinamento o Mediterrâneo oferece! Quem se forma nessa
escola é um marinheiro mestre, capaz de navegar em qualquer mar.
Spetsai parece pálida em comparação com Hydra. Parece anô­
mala, mole, heterogênea. Tem seu próprio encanto, porém. Abando­
nados lá durante quatro dias, exploramos a ilha a pé. A atmosfera
tem ainda mais fragrância do passado do que Hydra. É um pouco
triste. Especialmente desolada no porto velho, onde barcos ainda
estão sendo construídos, costurados e calafetados. Quatro veleiros
alinhados no meio da baía, ancorados — como cenas de pinturas
francesas. Mas há algo peculiarmente soturno, algo quase antigre-
go na atmosfera. Os quatro barcos aninhados no oco do monte
grudam em minha memória. É como o crepúsculo de feitos esquecidos.
As coisas estão morrendo silenciosamente, escondidas dos olhares
públicos.
Na casa de Bubulina, lugar onde ela foi baleada, Katsimbalis
conta os feitos dela. Aqui vive o Sr. Tsatsos, professor na Universi­
dade de Atenas, agora exilado e dormindo nesta lúbubre casa assom­
brada por fantasmas. Embaixo há um pequeno santuário e, quando
vamos ao banheiro, somos impregnados por fumaça de incenso. O
enorme quarto onde Bubulina morreu está agora cheio de camas e
estrados de mola. Embaixo do soalho o som de ratos correndo
loucamente.
Tsatsos eü invejo. Congratulo-me com ele por estar exilado. Corro
os olhos por seus livros. Goethe, Sheridan, Dante, Aristóteles, D. H.
Lawrence, Homero etc. Sobre su2 cama, um enorme mosquiteiro.
Ele se lembrará desse lugar mais tarde. Pensará como foi feliz em
ter passado esses meses de solidão aqui. Eu me congratulo com ele
agora — desejo-lhe bem.

49
Há também John Stefanakos, um grego de Buffalo, N. Y. Quinze
anos nos Estados Unidos tomaram-no mais americano do que jamais
eu serei. Mesmo seu sotaque é mais americano que o meu. John
tomou-se um porco — um porco gordo com molho escorrendo dos
lábios. Não faz outra coisa senão emprestar dinheiro a juros para
seus compatriotas. Tem uma casa que é como um asilo de loucos
refinado. Sua esposa é deficiente mental, mas agradável. Ela é também
hábil com a agulha, o que John aprecia. Mas o coração de John está
em Buffalo, na pista de corridas de lá. Trouxe consigo roupas sufi­
cientes para usar o resto de sua vida. Nada viu da Grécia, exceto
Spetsai, onde nasceu. Pensa que a Grécia precisa de mais máquinas,
mais dinheiro. É o espécime perfeito do homem perdido, do homem
que os Estados Unidos receberam em seu seio, castraram e engorda­
ram como um eunuco. Ele sabe fumar charutos caros, beber uísque,
falar pelo canto da boca etc. Foi esvaziado de tudo quanto é neces­
sário para fazer um ser humano. É igual a uma lata jogada fora,
como se vê nas praias de todos os países do mundo, na esteira do
progresso moderno. Ele e Bubulina são dois animais totalmente
diferentes. Viva Bubulina!
Algum dia um anglo-saxão empreendedor escreverá um estudo
comparativo de Bubulina e Joana D’Arc. Naturalmente, omitirá o
negócio de foder. É necessário dizer aqui uma palavra entre parên­
teses. Toda heroína, toda santa era dotada de tremendo ardor sexual.
Bubulina conquistou a fama fodendo. Morreu grávida. (Para mais
detalhes, dirigir-se a George Katsimbalis, Amaroussion.) Eu passo
adiante. Passo para o branco e quieto convento de freiras no monte
que domina os dois braços do mar. Aqui uma paz e quietude que
impregnam tudo. Nas encostas terraceadas algumas freiras velhas tra­
balhando com picareta e pá. Os pássaros cantando em suas gaiolas
penduradas na videira que abriga as pequenas celas brancas das
freiras. Ocorre-me de novo fortemente que é necessária alta inteli­
gência para escolher uma vida como essas freiras velhas escolheram.
Tudo quanto abandonaram voluntariamente para vir aqui elas recupe­
ram em quantidade mil vezes maior. A crença, a moralidade, a ética
nada são — é a forma de vida que dá paz, caráter e sabedoria.
Spetsai marca um importante passo na viagem mais longa que
estou fazendo. Minhas longas caminhadas à beira do mar cora Tsatsos
trouxeram profundas corroborações das respostas que eu já havia
dado a certos problemas interiores. Embora antípodas um do outro,
nós nos compreendemos perfeitamente, apesar também do problema
de língua. Vitalmente importante em Tsatsos era sua pureza. Eu senti
que havia encontrado um homem de belo espírito, que ele era um
elo com aqueles outros homens passados e futuros que é meu destino
encontrar. Alguns dão coragem, outros confirmação. Foi pena meu

50
amigo “Alf” não estar aqui para ouvir falar em Goethe. Encontrar
um grego falando aquela língua, falando “religiosidade”, foi uma
grande surpresa. Acredito que Tsatsos também estava surpreendido,
à sua moda. (Contudo, a maior surpresa foi John de Spetsai ouvindo
“Mister George”, como ele curiosamente chamava Katsimbalis. Para
ele, aquilo tudo era grego, como dizemos nos Estados Unidos.) Raça,
língua, meio, profissão, métier, educação — que significam essas
coisas quando o espírito é alterado? Elos estranhos, dissociações
estranhas. Só existem homens, só indivíduos, em toda parte. O resto
é tagarelice tola e sem sentido entre grandes convulsões de tempo e
matéria. O Anargyros, por exemplo — um erro colossal, uma ilusão
da parte de um homem que não tinha ilusões. Ensinar aos gregos
“trabalho de equipe”, como o ingênuo professor inglês disse — pura
fatuidade. Fútil ao enésimo grau. Quando os gregos adotarem a amês,
deixarão de ser gregos. Mas só o inglês, com sua insensibilidade nata
para o que é de outro, diferente, podería acreditar em tal tolice. Anar­
gyros continua a milionária tradição americana de fazer o que quer
durante a vida e tentar desfazer seu trabalho na outra vida, por meio
de doações. Todas as doações públicas são más, na Grécia como em
qualquer outro lugar. O espírito de Anargyros está em seus cigarros
Helmar, Murad e Turkish Trophies, que eu vou fumar de novo
quando for bastante rico para me dar a esse luxo. (O primeiro cigarro
que fumei foi da variedade de Anargyros. Os Estados Unidos perde­
ram agora seu gosto por eles. A todos os gregos, eu digo: “Fume
um Murad!”).
Outra velha banheira balançante, um barco do canal Inglês,
leva-nos a Nauplia. Vamos parar em Leonidion no caminho. O soí
está se pondo. Katsimbalis está falando. Conversa maravilhosa, uma
história depois da outra, uma melhor do que a outra, um jorro inces­
sante enquanto chega a escuridão. Estou curioso por ver o lugar
ancestral. Já formei uma imagem dele em minha mente. Chegamos
mais perto da terra. Ê precisamente como ele a descreveu. Uma
espécie de desfiladeiro dantesco no osso verde escuro da cordilheira
de montanhas. Os contrafortes abrem-se vagarosamente para cima,
como pesadas cortinas puxadas para os lados por mãos gigantescas
sobre polias silenciosas. A aldeia, como um punhado de ração de
galinhas, aninha-se na baía. Uma forte luz elétrica brilha em terra.
Uma brisa gelada e úmida sopra sobre nós. Um barco carregado de
cadeiras está sendo remado para fora. Parecem incongruentes. Há
pessoas sentadas em cadeiras aqui neste gelado vapor de pântano?
Onde estão as águias, os abutres, os condores? Onde estão os índios?
Não sei por que, espero ver índios saindo de seus ensombrados
wígwams. O lugar é um horror monumental, um símbolo vivo de
terror e presságio. Voltamos a entrar. Cochilamos um pouco. Acor­
damos. Estamos em Paris — na Rue du Faubourg Montmartre. Kat-

51
simbalis não sabe ainda o que essa rua significa para mim, como eu
também a percorri noite após noite. Deixo-o falar. Estou estupefato
com o rico e infindável fluxo. Que histórias quentes! Quão amplas,
quão humanas, quão escuras, temas, amorosas, generosas. Ele não é
um raconteur. É um órgão vivo, uma voz emitindo notas pesadas e
sonoras que reverberam na imensa solidão de uma Grécia ensurde­
cida. Ele está dando a mim, um estranho, grandes presentes, grandes
buquês lingüísticos cravejados com carne humana. Sinto como se
pudesse bifurcar de repente e não contar minha própria história, mas
a dele. Tenho medo de ouvir muito bem — a responsabilidade é
grande demais. . . Quando chegamos ao porto, dois prisioneiros estão
algemados um ao outro. Vejo Katsimbalis e eu também algemados,
mas não pela lei. Sinto que estamos algemados para a eternidade.
Percorremos a estrada juntos. Eu saúdo meu irmão de crime.
Uma breve caminhada pela cidade antes de nos recolhermos para
passar a noite. Nauplia tem um pouco de aparência francesa. É uma
cidade distinta, um lugar ordeiro. A pequena praça em frente do
museu, onde os habitantes ensandecidos caminham para cima e para
baixo, exala uma atmosfera. A fortaleza paira em cima. O silêncio
pesa opressivamente. É silêncio mortal. As ruas levam para fora,
para um espaço geométrico aberto. A estátua do herói ergue-se nua,
tremendo de frio, gelada, pálida, abandonada na vasta noite. A
estátua é uma insanidade. De manhã, eu verei a planície de Argos,
com a fumaça subindo delicadamente das wigwams imaginárias.
Diante de nós, uma terra como William Penn viu quando saudou os
Delawares. Os índios estão me perseguindo desde que avistei o
Peloponeso. É um enigma. Deixo-o como tal...
Acordar de madrugada, tremer de frio. Descer a pé até o cair
e olhar o nevoeiro que se ergue da planície baixa oposta. Estou vol­
tado para Argos. Levo um choque. Só agora me lembro do que Argos
significa — os mitos e as lendas. De repente, vejo por que me parecia
tão familiar. É uma reprodução da chapa fotográfica em meu livro
de História na escola. De manhã cedo, o nevoeiro é ainda mais nor­
te-americano. Onde estão o búfalo, as canoas, as wigwams'? Sento-me
no salão esperando Katsimbalis. Leio todas as cartas que os clientes
escreveram para o ativo gerente do Grande Bretagne. Foram todas
escritas por débeis mentais. Eu gostaria de escrever uma boa carta a
respeito do Cavalo de Tróia, mas o hotel vai ser logo derrubado...
Um passeio na automotriz, 12 drax (!!) até Micenas. Estamos
andando pela estrada que sai da estação numa manhã de domingo
— não são ainda 8 horas. Um menino chora amarguradamente porque
seu camarada levou todo o seu dinheiro. É grotesco ouvir esse choro
de manhã tão cedo. Ele é como um animal perdido. Quando damos
a volta na última curva, noto um túmulo verde, redondo e liso — a

52
mais perfeita extensão de verde que já vi. Sinto-me certo de que
os mortos estão dormindo embaixo daquele enorme travesseiro de
terra. Alguns passos mais adiante, passamos pela primeira tumba
.— a de Agamenão. Agora avisto Mi cenas, as ruínas, o lugar de hor­
rores. Como Tirinto é também bem escolhido. Tirinto, Argos, Micenas
— três lugares estratégicos e sagrados. Jamais alguma coisa destruirá
a validade desses lugares. Civilizações podem chegar e partir, mas
esses lugares permanecerão intatos. Estão eternamente arraigados na
paisagem, no tempo, da história, na evolução da raça humana.
Um artigo muito importante: almoço al fresco no Belle Hélène!
A melhor refeição que tomei na Grécia até agora. E um gordo livro
sobre Arqueologia pela escola britânica como hors d‘oeuvre. Ador­
meço embaixo da árvore. Um grupo de homens no campo mede a
terra — uma disputa sobre propriedade. Não sei por que essa cena
parece-me muito apropriada. Comove-me. De repente, a terra tor­
nou-se novamente importante — mesmo uma jarda quadrada dela.
Longe de preocupações megalopolitanas. Nada de discussões abstratas,
nada de cálculos abstratos, nada de propriedades abstratas. Terra,
terra, medida por uma fita métrica. Muito impressionante. Ainda mais
impressionante é pensar que o indivíduo que a possui lavra o solo
indiferente às relíquias mortas que lá estão espalhadas, O eterno
camponês, vivendo o eterno presente. O homem sem história, o
homem do fundo que sustenta o fluxo cultural...
Em Epidauro. Talvez o lugar da terra mais perfeito que eu já
vi. O dia está superlativamente claro, o céu azul ainda mais elétrico
do que habitualmente, os montes cortando o céu com um -fio de
navalha. Este foi um dos grandes centros terapêuticos do mundo
antigo! Mesmo que não restasse uma única pedra para testemunhar
sua glória, seria possível reproduzi-lo imaginativamente. Penso em
meus amigos psicanalistas — Otto Rank, Dr. René Allendy, Dr. E.
Graham Howe. Penso em Jung, Freud, Stekel e outros. Eles estão
trabalhando apenas com os destroços da humanidade, com cascos e
restos, com torsos e com cabeças decepadas.
No tempo de Esculápio o homem ainda era um ser integral.
Podia ser alcançado através do espírito. Corpo e espírito eram uma
coisa só. Metafísica era a chave, o abridor de lata da alma. Hoje
nem mesmo o maior analista é capaz de devolver aos homens o que
eles perderam. Todo ano deveria reunir-se em Epidauro um congresso
de médicos. Primeiro deveríam ser curados os médicos! E este é o
lugar para a cura. Eu lhes daria primeiro um mês de completo
silêncio, de total reláxação. Ordenar-lhes-ia que parassem de pensar,
que parassem de falar. Parassem de teorizar. Eu deixaria o sol, a
luz, o calor, a quietude causarem sua devastação. Deixaria que eles
se tomassem ligeiramente tresloucados pela misteriosa solidão. Orde­

53
nar-lhes-ia que ouvissem os pássaros, o tilintar das campainhas das
cabras ou o farfalhar das folhas. Faria com que se sentassem no enorme
teatro e meditassem — não em doença e sua prevenção, mas em
saúde, que é prerrogativa de todo homem. Proibiría charutos, os fortes
charutos pretos da escola freudiana, e acima de tudo livros. Recomen­
daria o cultivo de um estado de suprema e bem-aventurada ignorân­
cia. Daria a cada um deles uma fileira de contas, grátis. E uvas
quentes do sol. Depois faria um pastor vir e tirar algumas selvagens
notas anatolianas de uma flauta quebrada...
Visita a Dafne. A igreja interessa-me muito menos que a pais-
sagem, a luz e o rochedo cinzento-alfazema. Começo a andar ao longo
da Via-Sacra em direção ao mar. Como no outro dia, quando cami­
nhei sem saber até Byron, estou embriagado pelas condições atmos­
féricas. Hoje, domingo, eu vi o milagroso fenômeno de luz habitando
árvores. A luz corre literalmente através da folhagem, criando um
vaporoso véu verde, um halo resinado, a aura da própria árvore. A
alma da árvore apresenta-se revelada. As árvores estão banhadas em
santidade, na pureza de sua própria essência. A separação entre corpo
e alma é agudamente distinta. £ enloquecedor. Ainda mais por causa
da austeridade do solo, do tom cinzento-rosa das encostas, ligeira­
mente tibetano. Não há mais folhas, só há pinceladas verdes embria­
gadas ondulando sob o vento. A artemísia é prateada e agarra-se à
terra tenazmente, como que guardando profundos segredos reptilianos.
Começo a subir uma encosta para ter uma vista melhor da paisagem,
mas estou muito atemorizado pela beleza nua. Paro no meio da
encosta olhando em volta sem compreender. Ê como uma das malucas
cenas mágicas que Shakespeare de vez em quando, em seu grande
desespero, evocava. Aqui o homem junta-se ao mundo reptiliano.
Aqui ele ousa não caminhar ereto, exceto como um deus. Este é o
castigo aplicado através das idades, o grande segredo da influência
da Grécia, de sua abnegação ou abdicação temporária. O homem
aprendeu primeiro aqui a andar como um deus. Andará novamente
um dia — como um deus. Quando tiver esquecido o que agora sabe.
(Hoje, meu primeiro dia em uma máquina voadora, ocorreu-me o
pensamento — como é completamente rídiculo, como é degradante,
estar sentado numa cadeira no ar, impulsionado por um motor e
absolutamente passivo, absolutamente inútil. Voar é a forma mais
baixa de viajar. Poder-se-ia igualmente ser um monte de bosta.)

***

Em Heraklion — morto de frio. As bananeiras estão do outro


lado da ilha. O inverno está aqui, mas não há fogueiras. Esperamos
que o sol se erga. Penso no gato morto caído de cabeça na funda
ravina além das muralhas da cidade. Hoje de manhã, as moscas

54
banquetéavam-se em sua carcassa. Esta noite, as moscas estão prova­
velmente mortas. Heraklion também está morta. É como Imperial
City, na Califórnia, onde eu me tornei definidamente esquizofrênico.
Sinto que estou nos Açores, em Madeira, embora a arquitetura seja
à la Dickens de The Old Curiosity Shop. Paro e ouço, um fonógrafo
sobre uma cadeira no meio da rua diante de um restaurante. Soa
turco. As pessoas olham para mim porque estou ouvindo o fonó­
grafo. Todas têm fisionomia de Cyrano de Bergerac. As padarias são
inteiramente pompeianas — e o mesmo acontece com o cepo do
açougueiro. Um toque adicional é o eventual vermelho-sangue do
açougueiro, como uma vela veneziana. Nos encantadores pátios há
belos rostos — moças surpreendentemente bonitas, abandonadas aqui
para sempre. Os homens andam de um lado para outro como piratas
em férias. Os alfaiates sentam-se em seu banco sem sapatos. Botas
por toda parte, do melhor couro de cabrito. As vermelhas são parti­
cularmente fascinantes. A comida é abominável. Se não fosse por
Bill X . . . , dono do Café Central, eu morreria de tédio. Ele me regala
com histórias de Montreal, onde tinha um florescente restaurante até
quando a crise o depenou. Bill come cedo, contrariamente à lei
grega. Diz que fala sério em tudo quanto diz — não como seus
compatriotas. Estes não têm noção de negócios, diz ele. Só gostam
de pregar peças uns aos outros. Quando transformou o café, pensa­
ram que estivesse louco. Ele tem boa água para beber, que traz de
outra aldeia. É um homem branco.
De repente, vendo seu retrato pela décima milésima vez, percebo
que Metaxas é a imagem morta de Otto Rank, o psicanalista vienense.
Deviam pôr um charuto em sua boca para completar a semelhança.
Bom ver Laurel e Hardy anunciados no cinema. E Arizona Shoe
Polish. O mundo está progredindo. Os minóicos precisavam passar
sem esses luxos. Pobres diabos, o que me lembra terrivelmente Nova
York, o gueto, os cortiços, são os eternos quiosques cobertos por
cordões de sapatos, cigarros, doces, quinquilharias. Os mesmos rostos
miseráveis espiando-me das pequenas cabanas onde esses pobres
diabos passam suas vidas em solitário confinamento. Vejo-os olhando
para meu capote, meu chapéu, meus sapatos. Todo americano deve
ser milionário. No entanto, se compararmos notas, se compararmos
contas bancárias, propriedade, bens, possessões, eu sou mais pobre
que qualquer deles. O que vemos nesses rostos miseráveis espiando
dos quiosques é desespero. Nesse sentido todos os americanos sio
milionários. Todo americano tem esperança. Não vai passar sua vida
sentado em um quiosque. Pode picotar bilhetes no metrô, mas não
vende cordões de sapatos etc. Isto é reservado aos “imigrantes”.
E, quando chego a Festo, no topo do mundo, no lugar da terra
que está mais próximo do céu, lá se encontra Kyrios Alexandros,

55
curvando-se e fazendo mesuras, a 100 jardas de distância. “Deus vos
mandou!”, diz ele, como cumprimento.
Eu sou o primeiro visitante, o primeiro turista, em vários meses.
Alexandros chora,, beija minha mão, chama-me Senhor Professor.
Bon! D’accord. Que há para comer? Felizmente eu trouxe algumas
provisões. Enquanto Alexandros raspa o barro de meus sapatos, per­
guntando sobre a despensa. Ai de mim, está vazia. M a s . . . ele tem
o vinho preto que Bill X... de Montreal recomendou-me que expe­
rimentasse. Muito bem. Antes de olhar as ruínas decido comer.
Convido Alexandros para partilhar da refeição comigo. Ele parece
positivamente assustado pela sugestão. Não é coisa que se faça, Soit.
Começo a bebericar o vinho. As azeitonas são horríveis... sem gosto,
a menos que seja o gosto de barro. Alexandros fala. Torce as mãos e
pede a Deus que ponha um freio em Hitler para que possa haver
novamente turistas. Estou pensando em milhares de coisas ao mesmo
tempo — nas mulheres que andavam pelo palácio no inverno, em
Arizona, no Novo México, no Vale da Lua na Califórnia, em Shangri-
-la, porque nesta terra isto é o mais perto que jamais chegaremos do
Shangri-la do cinema. O lugar é tão maravilhoso, meu bem-estar é
tão completo, que de repente me sinto culpado, culpado como um
criminoso, por gozar isso tudo sozinho. Do lado que se volta para
Monte Ida, as cores de outono da terra são arrebatadoras. Pela primeira
vez em minha vida vejo uma sinfonia de umbras. E na direção do
mar aquela terra vermelha, a argila primordial de que o homem foi
feito à imagem de Deus. O homem caiu desgraçadamente de seu
estado de graça, mas a Natureza permanece eternamente santa. As
encostas marrons são como a pele de animais aquáticos. Elas foram
lavadas através de idades de tempo com depósitos aluviais. Foram
queimadas, cozidas, vesicadas e depois inundadas por torrentes. Em
toda parte a carícia, tudo amolecido, abrandado, adoçado. É o lugar
de terra mais macia que conheço. É feminino de ponta a ponta.
Tenho certeza de que o lugar foi escolhido pelas rainhas dinásticas
de Minos. Foi a linhagem feminina da grande dinastia que deu à
paisagem seu caráter, seu encanto, sua sutileza — e sua inesgotável
variedade.
Em Knossos, tentei entrar pelos fundos. Em meu entusiasmo,
passei além da entrada oficial. Ao fazer uma curva na estrada, avistei
a grande coluna vermelha, a coluna restaurada. Foi exatamente no
momento certo, pois precisamente quando chegava à curva eu dizia
comigo mesmo — deve ser aqui, este é o lugar para ela! Sinto agora
que sou capaz de partir para qualquer dos lugares sagrados da terra
sem guia ou bússola. Cada lugar tem sua divindade que lhe acena
quando você se aproxima. Em todos esses lugares, a« terra é geral­
mente quieta — uma passividade dinâmica, vital como os fluidos
elétricos do cosmos.

56
Não é apenas inconcebível, mas absolutamente impossível, que
esses lugares sagrados acompanhem um dia o progresso moderno.
Nenhuma máquina poderia sobreviver nessa atmosfera. Aqui o espí­
rito do lugar governa tiranicamente, senhor supremo do passado,
presente e futuro, O que o espírito humano realizou nesses poucos
núcleos de caos perdura imperecivelmente. A vida redemoinha em
torno desses rochedos eternos, desses silenciosos ancoradouros na
terra. E muitas vezes, examinando as relíquias nos museus, tive a
idéia de que, saqueando as relíquias de seus túmulos, o homem está
simplesmente ajudando a preservação da santidade, É bom que todas
as manifestações materiais sejam removidas. Os museus perecerão um
dia e com eles todo vestígio das realizações passadas do homem.
Mas no “lugar” o espírito paira etemamente, e o homem, queira ou
não, será arrastado de volte para esses centros vezes e vezes a fim
de redescobrir sua herança.
Em Knossos particularmente, porque está tão solidamente entrin­
cheirada, sente-se o maravilhoso valor terapêutico do ritmo de vida
lento. Sente-se que tudo foi feito vagarosamente. As próprias feições
da raça — que raça! — revelam esse ritmo lento e digno. O grande
trono de Minos por si só fala volumes. Ninguém sentava naquele
banco como hoje se ocupa uma cadeira. Baixava-se todo o corpo
majestoso para estabelecer um contato mágico com a terra, A cadeira
estava bem afundada nas entranhas da terra. Era uma sede de justiça,
tudo cuidadosamente pesado, cuidadosamente deliberado. Na lenda,
pensa-se em Minos como um monstro exigindo tributo. Quando se
desce ao lugar, sente-se que ele foi um grande legislador. Dispensava
justiça e sabedoria. Representava arte, paz, indústria, alegria, bem-
-estar. Alegria! Essa é a qualidade que Knossos infunde mesmo com
suas tristes ruínas. E nas fisionomias dos cretenses mesmo hoje existe
uma luz que eu não havia visto, ainda, em lugar nenhum da Grécia.
O olhar é pleno e brilhante, sem temor e sem malícia. Não existe a
menor mesquinhez de alma no cretense. Ele olha para a gente por
baixo de seu turbante preto como os pagãos da Antigüidade devem
ter olhado. Os sofrimentos e privações de séculos não embaraçam
esse olhar brilhante e honesto. Afora os berberes e os árabes, ou
certas tribos da índia, os cretenses têm a mais bela expressão humana
que já vi. Há não apenas raça e caráter na fisionomia, mas dignidade,
qualidade agora quase extinta no semblante humano.
A bordo do bom navio Frinton, o barco que me levou de Atenas
a Corfu em julho último — minha primeira excursão. É como ver
um velho amigo. A mesma tripulação, as mesmas águas, o mesmo
maitre d’hotel. Estou esperando há três horas pelo arroz cozido que
pedi quando cheguei a bordo — só para descobrir que não há arroz.
Muito grego. Nunca dizer Não! Contrariando as ordens do farma­
cêutico, peço um jantar completo. Com diarréia ou sem diarréia, eu

57
vou comer. Em cima, no salão, estão tocando música swing — discos
de Atenas. Minha cabeça está cheia de Nijinsky, Ballet Russe, Monte
Cario, Viena, Budapeste, Londres. Quase esquecido onde estamos.
Creta parece algo no passado distante. Lembro-me, enquanto apanho
meus sapatos engraxados em frente da Fonte Morosini, como foram
bons os últimos olhares em volta. No último minuto, o olho trabalha
febrilmente, devorando tudo como um homem esfomeado. A pergunta
é sempre esta: voltar-se-á algum dia?
Exatamente quando estou para partir, surge um pedido urgente
de Monsieur le Préfet para visitá-lo em seu escritório. Parece que o
Préfet — Kyrios Stavros Tsoussis — esteve procurando por mim
desde minha chegada. Desejava colocar seu carro aerodinâmico à
minha disposição, desejava que eu comparecesse a um banquete em
minha homenagem, desejava fazer-me saber como está contente por
ver um estrangeiro de um país livre.
Stavros Tsoussis é um indivíduo extraordinário, uma figura saída
da Renascença. O que está fazendo em Cândia é coisa que não en­
tendo. Ele tem todas as qualidades de um ditador inteligente e capaz,
um homem de ação, ativo, decidido, alerta, eficiente, quase americano
em seu dinamismo. É a primeira vez em minha vida que a polícia
me procura para prestar-me homenagem. Digo-lhe isso. Falamos a
respeito de Festo, a respeito da qualidade “pacífica” da época minóica.
Despeço-me sentindo que estive na presença de um homem que será
conhecido um dia, um homem de poder. É a maior surpresa que tive
desde que cheguei à Grécia. Do lado de fora de seu escritório, ronda
uma garotinha esfarrapada, descalça. Não parece atemorizada pela
presença da polícia. Em nenhuma cidade do mundo vi uma cena
como esta. Faz-me lembrar a Académie Pédagogique em Cândia. Não
encontrando Alexion, pedi permissão para inspecionar a escola.
Visito um aposento depois do outro, inclusive a cozinha e a estação
agrícola no quintal. Como poderei descrevê-la? Humana. Intensa-
mente cálida e humana, como se professor e aluno fossem amigos
ou parentes. Na classe de música cantam para mim — quarenta ou
cinqiienta fortes vpzes de baixo — música de igreja bizantina. Depois,
leitura visual do livro de música, o livro de música mais estranho
que já vi. Tudo feito entusiasticamente, com gosto. Mostram-me o
aparelhamento científico — de física e química. Lamentam a falta de
equipamento, falam sobre o prédio novo. Que vá para o diabo o
prédio novo! Conservem o espírito velho, digo eu! A Grécia não
precisa de prédios novos, de equipamento novo. A Grécia está. se
saindo maravilhosamente bem apenas com as coisas mais necessárias.
Por que competir com os países ricos? Por que entrar em uma corrida
com desvantagens esmagadoras? Caminho pelas ruas tortas, olhando
os grandes pátios. Tio parecido com Madeira. Estou certo disso,
embora nunca tenha estado em Madeira. Paro em uma loja para

58
comprar alguns cartões postais. Alguns deles estão manchados por
longa exibição na loja. O homem deixa-me com sua esposa enquanto
corre até sua casa com os cartões para limpá-los (sícl). Sua esposa é
francesa. Da Normandia. Fala-me sobre a França. Sente falta da
verdura da Normandia, das vacas, das ricas terras de pastagem. Tem
uma cara azeda, olhos mortos, aquela ociosa maneira francesa de
reduzir tudo a lógica e realismo. Começo a contraditá-la. Eu estava
extasiado com as montanhas nuas, a poeira, os rochedos, o sol resplan­
decente. Ela me olha como se eu estivesse louco. Sim, minha cara
senhora, eu gosto da Grécia precisamente porque é a Grécia e não
a França. O que gosto na Grécia, é de grecismo. Loucura, isso?
Guarde seu jardim francês, seu muro em volta da casa, suas modestas
negativas, seus modos subjuntivos, sua lógica, seus sous. O que a
Grécia tem de bom é ser ilógica, paradoxal, uma contradição de um
extremo ao outro. Mas a Grécia nunca é “pálida”, nunca é “melan­
cólica". Mesmo os olhos artificiais na loja do farmacêutico são
interessantes. Olhos monstruosos, para homens ciclópicos...
Uma noitinha na casa de Kyrios Elliadi. No decorrer da refeição,
chega o presidente da associação dos alfaiates de Cândia. “Não se
levantem”, diz Elliadi, “é apenas meu alfaiate.” Poucos minutos
depois, outro visitante, outro presidente de outra associação. “De
onde vem o senhor, cavalheiro?”, pergunta-me ele. Segue-se uma
conversa inteiramente surrealista, na qual discutimos a arte do alfaiate,
a guerra, a expulsão da Ásia Menor, as estátuas ao longo de Riverside
Drive, N.Y., o problema judaico, o custo de vida para uma família
de quatro pessoas, as cotações da bolsa de Wall Street e assim
por diante.
Elliadi, devo explicar, é o vice-cônsul britânico em Cândia, antigo
refugiado de Esmirna. Na noite de minha chegada, quando eu estava
sentado sozinho no restaurante, ele se aproximou de mim e perguntou
se eu era o Sr. Miller. Queria que eu soubesse que seus serviços
estavam inteiramente à minha disposição — e, acrescentou, especial­
mente porque você é americano! Depois relatou o que eu agora já
ouvira muitas vezes, a história do auxílio desinteressado dos ameri­
canos em seguida à expulsão dos gregos da Ásia Menor. Ali estava
um homem que havia jurado nunca esquecer a bondade dos ameri­
canos. Fiquei comovido, naturalmente, Tenho dito muitas coisas contra
meus compatriotas em diferentes épocas, mas o fato de serem eles
bondosos, de darem sem outro motivo além de simpatia humana é
coisa fora de discussão. Às vezes, viajando pela Grécia, ouvindo as
histórias de gregos que trabalharam nas minas do Arizona, Montana
e Alasca, de homens dos campos madeireiros, das fazendas, das
usinas siderúrgicas, das fábricas de automóveis, de homens que tiveram
bancas de frutas, restaurantes ou soda water fountains, de floristas
de Washington Heights ou Cathedral Parkway, às vezes ouvindo

59
seu fervoroso elogio aos Estados Unidos, começo a perguntar-me se
não estou errado a respeito de meu próprio país. Outra idéia ocor­
re-me com freqüência, em momentos de solidão, quando as barreiras
de raça e língua isolam-me daqueles que me cercam — a idéia de que,
de maneira vastamente reduzida, estou tendo o privilégio de experi­
mentar as emoções dos inumeráveis imigrantes que vieram aos Estados
Unidos construir um lar, de conhecer um pálido reflexo de suas
lutas, sua necessidade de companheirismo, de um pequeno toque de
simpatia humana. Tento pensar como poderia ser minha vida se fosse
obrigado a permanecer em um país estrangeiro, a ganhar minha vida
lá, a aprender a língua, a adaptar-me a seus modos. Os poucos ameri­
canos que mudaram de nacionalidade fizeram-no em circunstâncias
inteiramente diferentes daquelas do imigrante que nós recebemos.
Para um americano é um luxo, um capricho grotesco a que ele en­
contra prazer em entregar-se. Nunca é um ato de necessidade, de
desespero ou de desesperança. Uma vez americano, sempre americano.
Lafcadio Hearn tornou-se um verdadeiro japonês, mas ele era nascido
de pais grego e irlandês, era um poeta, um sonhador, um visionário.
Todavia, para o Sr. Elliadi, vice-cônSul vindo de Esmirna — meus
cumprimentos! E obrigado a você pelo livro que tão bondosamente
me deu. Eu sou um americano que nunca esquecerá a Grécia ou o
povo grego. Tenho um ponto mole em meu coração para eles. Espe­
cialmente para o grego que me interessa mais do que os outros, a
criatura miserável, abandonada, sem sapatos, vestida como vagabundo,
vivendo graças ao sol, aos ares nutritivos, à vitalidade das raízes da
raça. Tremo ao pensar no que se tomaria essa vasta horda anônima
de mendigos se o clima mudasse um dia. Eles morreríam como moscas.
Em lugar nenhum vi até agora tanta indigência, nem tanta fortaleza
viril. O francês é uma pessoa que se queixa continuamente, embora
seja o homem mais rico do mundo. O grego castigado pela pobreza
não se queixa. Nem dança uma jiga para obter a gorjeta que lhe é
devida quando presta um serviço. A França é o país no qual talvez
seja verdade que o senso de justiça foi desenvolvido no mais alto grau.
Todavia, como acentuou há muito tempo Shakespeare e, muito tempo
antes de Shakespeare, Cristo, Buda e Lao-Tsé, a caridade vem antes
da justiça. E eu sinto que, apesar das horríveis iniqüidades existentes
na Grécia, caridade, generosidade, bondade, simpatia, espontaneidade
são virtudes que os gregos em geral possuem em alto grau. A caridade
americana é de outra ordem — é inconsciente — é o gesto de um
homem cujos bolsos estão cheios e que não pode preocupar-se em
medir justiça ou contar sous. Mas a caridade francesa é nula, inexis­
tente. Caridade não se enquadra no sistema de lógica. É uma coisa
“gratuite”, como os assassínios pseudodostoievskianos de André Gide
em seus romances cerebrais. Agora, Sr. Elliadi, eu não posso dizer
que seu livro me emocione. Embora seja incapaz de acreditar em seu
gênio poético, eu o saúdo pelo gesto amistoso que me fez em Cândia

60
no dia em que cheguei, Estou fazendo um registro imperecível disso.
Será para o museu dedicado às obras humanas e em um scripí etema-
mente legível. E mil agradecimentos pelo arroz cozido que você
preparou a fim de curar minha disenteria. Espero que chegue logo
o dia em que a cidade de Cândia tenha um restaurante digno de seu
renome arqueológico. Votos de felicidade a meu amigo alfaiate, Presi­
dente da Associação dos Alfaiates de Cândia. Eu lhe disse que meus
avós foram alfaiates, mas não mencionei que meu pai também foi
alfaiate e que eu mesmo comecei como alfaiate.

Algumas horas em C a n e a . . .
A cidade velha (Canea) é muito interessante. Um verdadeiro
labirinto. Uma imagem de Veneza em farrapos. Mas o que mais me
agradou foi um encontro ocasional com um anão na rua. Um anão
de Goya. Parece que havia três monstros em exibição pública em
Cândia, mas eu os perdi. Contentei-me em ouvir a música — a
flauta oriental. Era uma noite adorável e o lugar bem escolhido. Dos
rochedos no alto as velhas bruxas desceram para ver o que estava
acontecendo. Havia muita poeira — e lama. O odor de castanhas
assadas e o relinchar de pequenos cavalos gregos. Mais adiante, como
descobri, havia uma cena espetacular — um grande fosso cercando
as muralhas. E lá, ouvindo o rádio com seus loucos alto-falantes,
caí em devaneio sobre o mundo desconhecido da Ásia. Senti como
se já estivesse na terra dos hititas. Aquele vasto espaço, mais vazio
que o próprio vácuo, deu-me um sentimento nostálgico pela Ásia
pré-histórica. O disco com escrito minóico estava diante de meus
olhos. Vi as tabuletas babilônias que me haviam sido mostradas uma
vez no Museu Britânico. Pensei em outro estilo de escrever, o mais
primitivo que já vi — a escrita maia. E depois outro maravilhoso —
os hieróglifos egípcios em que certo dia eu meditei durante uma hora
ou mais no Louvre, quando estava à procura do Zodíaco de Denderah
embutido no teto do Louvre.
Aqui uma longa interrupção, graças ao Sr. Machrianos, um
engenheiro que conhece todas as cidades da Grécia. Ele fala bem o
inglês. Por que não? Passou sua mocidade em Pittsburgh, no Camegie
Institute. É um técnico, um integrante do vasto exército que está
trabalhando para recuperar o solo grego. Conhece tudo sobre água,
malária, esgotos, florestas, esterco, onde há bons hotéis, bons restau­
rantes. Fala-me novamente sobre os gregos malucos que voltam dos
Estados Unidos com dinheiro, que abrem hotéis modernos no sertão
e mantêm as coisas andando na estrita moda americana, ainda que
não haja um único hóspede à vista. Dos lábios desse homem obtenho
uma visão geral do que o governo está tentando fazer — um trabalho
verdadeiramente hercúleo. Sua conversa confirma minhas próprias
convicções a respeito da Grécia. Dentro de vinte anos, a Grécia será

61
irreconhecível. Está se adaptando aos tempos quase com alacridade
japonesa. Ilhéus sio sempre adaptáveis. É o habitante das montanhas
que permanece conservador. Como estará a Grécia quando a guerra
terminar? Os políticos já prevêm o appauvrissement dos países ricos.
A Grécia é pobre. A Grécia está no fundo da escada. Penso nova­
mente nos japoneses. Não vejo razão para que os gregos não os
emulem. Se um dia houver vinte ou trinta milhões de gregos no
mundo, algo de fantástico acontecerá. Sua curiosidade é ilimitada, sua
energia infinita. Talvez haja uma nova guerra peloponésia, com a
Grécia elevando-se à ascendência, assumindo a hegemonia dos Bálcãs.
Em qualquer caso, o movimento está avançando. Nada, a não ser um
terremoto, deterá a investida impetuosa.
Estou esquecendo Canea, a cidade veneziana. Outro povo marí­
timo. Um povo poderoso. Canea é muito mais interessante que Corfu.
Que morfético labirinto de ruas, que portas e desvãos! Na parte nova
da cidade, o bairro grego, sente-se a vivacidade do caráter grego.
As casas espalham-se em direção ao mar e à montanha. Há espaço
intermediário. A luz filtra-se. As crianças brincam ao sol. Uma
mulher gorda está no alto de uma escada podando uma árvore. Muito
grego. Podia ser uma cidade pioneira nos Estados Unidos, exceto
pela arquitetura. É a arquitetura de nômades que acabam de fixar-se
na terra. Não é arquitetura — é um simples refúgio, abrigo, o corpo
pondo um teto sobre a alma. No interior, em direção a Festo, a
construção é ainda mais primitiva. Estamos entre os calmucos, os
siberianos. Toda coisa legada pela tradição foi esquecida. Como os
índios de Pueblo, no México, os gregos enterraram-se nos rochedos.
O instinto de troglodita prevalece. Estamos na terra de furacões,
tufões, chuvaradas, tempestades de areia, ondas de calor, geleiras,
avalanchas, pragas, fantasmas, demônios e tudo o mais. O homem
entrincheira-se.
Estou lendo a vida de Nifnsky, o homem cuja vida foi uma
grande obra de arte. Ele está em pé no convés do transatlântico,
arrebatado pela primeira visão dos arranha-céus. Começa a saltar no
ar como um canguru. Quer subir e descer nos elevadores o dia inteiro.
Gosta dos banheiros americanos, dos trens expressos correndo no ar
através da cidade. Vê que aqui existe oportunidade para todos. Ele é
incensado. Roda com o carro em marcha-a-ré encosta abaixo para
testar os freios. Está embriagado. Um ano mais tarde confessa: “Os
Estados Unidos não são um país onde criar. A gente precisa de paz
e tranquilidade.” Cinco anos depois está no manicômio. Paz e tranqüi-
lidade para sempre. Está em repouso. Deixou a terra. Como no
Spectre de la Rose, deu um grande salto pela janela e para o espaço.
Está agora pairando lá — no espaço — vítima dos tempos. Conhe­
cerão os gregos o diário que Nijinsky deixou? Que dirão dele? É
importante saber a respeito de Nijinsky. Ele tentou fazer o que Mila-

62
repa, o grande poeta e sábio tibetano, fez. Mas não foi suficientemente
forte. Era artista demais. Não havia nele maldade suficiente...
A obcessão final de Nijinsky foi o círculo. Curioso para um
homem cuja forma particular de insanidade é descrita como “esquizo­
frenia”. Toda a luta de Nijinsky na vida foi para tornar-se um indi­
víduo completo. Por natureza ele era duplo. A transformação de um
homossexual em um homem casado e feliz foi por si só um grande
triunfo. Nijinsky queria mais do que isso. Queria uma união com
Deus. Finalmente identificou-se com Deus e foi declarado insano.
Até o fim, ele foi bondoso, tolerante, generoso. Esforçou-se por ir
além da esfera da arte. Foi talvez o supremo artista de nosso tempo
— le dieu de la danse, como era chamado. Seu erro consistiu, não
em procurar Deus, mas em abandonar a arte. Arte é o todo do qual
não podemos escapar. Arte faz o círculo, porque abrange tudo, inclu­
sive Deus. Nijinsky estava confuso. Esqueceu suas próprias e verda­
deiras palavras: “não existem pessoas más, apenas estúpidas”. Ele
pensou que religião estavá além da arte, mas não está. Arte inclui
religião. Arte é o homem, a caminho de sua ordenação. Não existe
além, existe aquilo, o inominado, que é eterno. Unidade não é conse­
guida vencendo dualidade, mas abrangendo-a. Só em espírito somos
ser uno. Na vida somos miríades. Insanidade é parte da vida. Ê uma
das manifestações de unidade. Insanidade é um dos numerosos ca­
minhos para a salvação. A tragédia é simplesmente que os insanos não
têm noção de sua felicidade. Eles são felizes. Em Os Possessos,
Kirilov mata-se porque descobriu o segredo da felicidade. Descobrir
Deus antes do tempo é uma forma de insanidade. Os gregos cometem
suicídio quando atingem a plenitude. O próprio Deus comete suicídio
vezes e vezes, a fim de realizar-se de novo.
Registro essas reflexões ao terminar a história da vida de Nijinsky.
Ê uma vida que me comove até o âmago. Dizem que ele devaneia
constantemente, mas que não perdeu a memória. “Ele sabe que é
Nijinsky.” Acho essas palavras singularmente expressivas — real­
mente surpreendentes. Estamos vivendo em um período que ameaça
constantemente aniquilar não apenas nossa personalidade, mas nossa
própria identidade. A extrema prevalência de esquizofrenia (agora
reconhecidamente a doença que causa o maior número de vítimas —
nos Estados Unidos, pelo menos) não é senão o reflexo dos tempos.
Não faremos um novo mundo enquanto não fizermos um novo homem.
Para a vasta maioria, a idéia é aterrorizadora. Significa morte em sua
forma mais potente — morte para a atual ordem de homens...
Elêusis. Meu amigo Ghika mostra-me as ruínas no escuro, acen­
dendo fósforos para apontar-me os misteriosos símbolos gravados nas
pedras. Encontrar a Grécia escura às seis da tarde é um daqueles
fenômenos nos quais, apesar de toda evidência, é difícil acreditar.
“Na Grécia nunca há noite”, disse um francês, “apenas ausência de

63
“Silêncio! Este é meu casamento com Deus!”
Nijinsky
“Agora vou dançar a guerra com você, com seu sofrimento, sua destruição,
sua morte. A guerra que você não impediu e pela qual portanto você é
responsável.”
Nijinsky
“Nós não ficamos loucos — nós nascemos loucos.”
(Prof. Bleuler)
“Deixem-no sonhar seus sonhos!”
(Professores Freud, Jung, Kreplin, Bleuler,
ef alia)
“O Sr. Nijinsky é o sujeito mais econômico de toda St. Moritz.”
(A enfermeira)
“Eu quero falar com alguém que me entenda...”
Nijinsky
Agora ele fala com Deus. Enfim houve alguém que o compreendeu.”

64
‘dia.” Isso pode ser verdade a respeito da Grécia em abstrato, mas
não é verdade em lugares como Micenas ou Elêusis. Pelo contrário,
exiáte em Elêusis uma escuridão muito mais profunda do que aquela
que a noite traz consigo. Elêusis está envolta em uma mortalha, como
se, estando ainda no útero, sua mãe ficasse de luto. O próprio local,
parece-me, foi escolhido por uma escuridão. Chegamos a ele em um
veloz e silencioso Packard. Nunca houve um céu mais cheio de cor
do que este. A luz extinguia-se em um esplendor de bandeiras flame­
jantes. E depois repentinamente escuridão, aniquilação total da luz.
Uma morte, a ser seguida por uma ressurreição. Depois dos mais
extraordinários verdes do ocaso, o céu inteiro como um minguado
lago de musgo, repentinamente o único tom discemível no ferrugento
marrom dos degraus gastos, um marrom de monje encanecido, uma
misteriosa patina cerosa que excita a retina. As ruínas afundam-se
para trás, não na noite, mas no tempo, no escorregadio poço do
passado, de onde todo dia a luz esforça-se inutilmente por salvá-las.
Mesmo o arqueólogo — infatigável besta de carga como é, toupeira,
minhoca, asno, pedante, escravo — mesmo esse monstro parece
admitir aqui sua derrota. O mistério recusa ceder à pá e à retorta
química. Homens precisarão desenvolver outros meios, outros órgãos
de apreensão e discernimento. Elêusis é grandiosa em sua obscuridade.
Uma suave grandeza, uma cálida e inspiradora intimidade, uma ime­
diação humana, humana demais. Ê a própria antítese do mistério
hindu ou tibetano. Foi reduzindo-se a suas proporções humanas
naturais que o homem criou aqui a atitude grega em relação ao
mistério. Aqui percebe-se que o templo do espírito é uma habitação
feita pelo homem.
E essa foi exatamente minha primeira impressão de Atenas
quando a ela cheguei pela primeira vez em julho último. A primeira
coisa que me impressionou foram as pequenas igrejas de feitio bizan­
tino. Especialmente uma que está afundada no chão, que é exatamente
do tamanho certo para o culto humano. Mesmo os novos edifícios
públicos na Rua da Universidade atraíram-me pela mesma razão.
Igualmente, as gemas da Acrópole — os pequenos, templos. Ao passo
que o Partenon deixa-me frio.
É estúpido dizê-lo, mas eu prefiro o Tesêion. Gosto de sua forma
quadrada. Sinto-mè à vontade lá. O Partenon deixa-nos de fora, talvez
mais por sua perfeição do que por seu tamanho. Gosto mais dele à
grande distância — visto de Éden, por exemplo — aquele primeiro
vislumbre que se tem quando se faz a curva na estrada. A essa
distância é uma jóia. O edifício què mais me excita é, naturalmente,
a tumba de Agamenão. Aqui há um elemento que falta no Partenon
— mistério. Para mim essa tumba classifica-se como a mais terrível,
a mais impressionante construção da mão do homem. Quando entrei
por aquele portal muito esotérico, senti que estava na presença de
espíritos mágicos. Outros heróis saídos do passado podem estar mortos.

65
Agamenão — para mim — ainda está vivo. Se ficar lá silencioso e
reverente, você ouvirá sua voz. Ele não era um semideus, como nos
contam os livros — era um Deus, plenamente desenvolvido, e continua
vivendo, mesmo na morte, como um espírito mais poderoso do que
todos os conquistadores da terra combinados. O corpo nunca deveria
ter sido removido. Seja como for, apenas o corpo físico é que foi
removido. Se ficar em certo lugar da tumba e proferir seu nome
baixinho, ele lhe responderá. (Katsimbalis é testemunha do fato.) O
corpo imortal de Agamenão ainda está lá, na cripta que até hoje
cheira à morte. Esta cripta está ainda impregnada pelo odor de seu
corpo. Nada pode eliminá-lo. O que estou tentando dizer, e repito
vezes sem conta, é que entre essa idade de ouro e a idade de Péricles
há um vazio incalculável. No espaço de doze séculos, mais ou menos,
o corpo da magia foi destruído. Os africanos estão mais perto, em
espírito, da época de Agamenão do que os membros civilizados da
sociedade. No africano, a alma é exteriorizada — ainda não encontrou
seu lugar de repouso, sua morada, no templo humano. Agamenão,
sinto eu, incorporou sua própria alma. Esse gesto de abraço foi o
supremo elo entre homem e o cosmos. Centralizou definitivamente o
ser humano, deu-lhe postura cósmica, proporções cósmicas. Depois
daquele tempo, o centro foi mudado. Estamos funcionando ao longo
de um eixo que só é polarizado obliquamente. Nada ilustra mais
vividamente o contraste entre então e agora do que a atual guerra.
É a diferença entre guerra de corpo e guerra abstrata. No choque
do abraço mortal de antigamente havia um casamento com a morte,
que era frutífero. As mortes de hoje são meramente estatísticas.
Atesta-o em toda parte o túmulo do Soldado Desconhecido. Nossos
heróis são anônimos. Não há ninguém cuja memória possamos reve­
renciar, nenhum espírito a quem saudar. Ficamos de cabeça curvada
diante dos restos dispersos de um corpo, corpo de um homem cuja
identidade foi perdida. “Nós, que estamos perdendo rapidamente
nossa identidade, te saudamos, ó anônimo!” Estamos lutando no ar,
como grandes aves de carniça. Destruímos populações inteiras aper­
tando um botão. O inimigo está em toda parte, animado e inanimado.
Estamos combatendo nossas próprias sombras — uma operação de
guerrilha contra fantasmas. Assim é a civilização. Assim é a Idade
do Aço, extemamente tio concreta, internamente absolutamente
abstrata. As mais poderosas construções são estilhaçadas como bolhas.
Um sopro pode derrubar uma fortaleza. A mão de uma criança pode
arrasar séculos de esforço. Idiotice. Pura idiotice.
***

“Cosmos”. Katsimbalis pergunta o que quero dizer com cosmos!


Quero dizer o mundo, naturalmente, como faz qualquer grego quando
pronuncia a palavra. Só com uma diferença — que quando origina-
riamente o grego disse cosmos isso significa “p mundo” — não um

66
mundo ou mundo. Hoje “mundo” significa qualquer coisa e tudo.
Não existe mais mundo. Só existem mundos — sempre no plural.
O mundo — “cosmos” — desapareceu. Para fazer de novo um mundo,
o cosmos, precisaríamos ter homens novos com olhos novos. O homem
precisa ser redotado de uma alma. Este mundo, nosso mundo, de hoje,
não pertence ao homem, nem mesmo ao bicho, mas à máquina. Aíors,
abaixo o mundo! Viva o Cosmos.
*#*
Betty Ryan é uma jovem mulher americana que me seduziu
com suas fiéis e arrebatadoras descrições da Grécia. Passei horas,
até mesmo dias inteiros, ouvindo-a. O milagre é que tudo quanto
ela me contou era verdade. Em todo lugar aonde vou na Grécia
descubro as marcas que ela deixou viajando de um extremo a outro
do país, nunca atraindo a mais ligeira atenção. Estou familiarizado
com as obras daqueles que escreveram a respeito das maravilhas da
Grécia, mas em comparação com as palavras dessa jovem mulher
desconhecida as palavras deles parecem pálidas. Sinto-me obrigado a
render-lhe minha homenagem aqui e agora, homenagem a uma visão
pura e precisa. Que Deus a abençoe pelo privilégio que ela me con­
cedeu de ouvir sua voz doce e enlevada. Estou deitado na cama entre
as ruínas de Atenas. De repente, em meu estado febril, surge em
minha mente a pré-imagem muito distinta de Atenas que formei em
resultado de ouvir Betty Ryan. De repente, não estou mais na Atenas
que conheço, mas na Atenas que criei na Villa Seurat, em Paris.
Esta Atenas é mais aberta, oferecendo uma visão de mar e montanhas
ao mesmo tempo. Ê uma Atenas das quatro da tarde, sem bondes,
sem caminhões, sem barulhos estridentes. Há edifícios modernos, mas
eles estão no plano de fundo. Esta Atenas, de maneira bastante
estranha, eu vi numerosas vezes em minha viàgem de ida e volta a
Corfu. Em Zante, eu a vi no abstrato. Zante é para mim um lugar
de sonho. Todo porto grego tem essa insistente plástica de sonho
branco. Todo minúsculo porto dá a ilusão de um novo mundo em
gestação, de um núcleo que se espalhará como uma teia. Zante,
porém, obceca-me. Talvez por causa do cais deserto com a única
palmeira. Talvez porque a vislumbrei pela primeira vez atrás de uma
vigia exatamente no momento em que escrevia a seu respeito e não
sabendo que era Zante. Talvez porque eu a descobri em um sonho
que se fundiu com a realidade. Eu desejava chegar à fronteira de um
novo mundo, um mundo muito pequeno que atendesse a todas as
exigências. Zante parece esse mundo. Para mim é o limiar da Grécia.
E aqui eu instalaria, como primeira rainha da dinastia, a deslumbrante
Niki Rhally. Todas as ilhas gregas deveríam ser governadas por uma
rainha. Elas pertencem essencialmente às mulheres na Grécia. Não
sei por que, quanto mais vejo a Grécia, mais acredito que as mulheres
sempre foram predominantes, sempre foram o poder invisível. Muitas

67
vezes o homem parece um mero apêndice, Quando se vagueia pelo
campo, é a figura feminina que domina a paisagem. A mulher é
ativa e resistente. Carrega sempre uma carga dupla.
Sou completamente a favor das mulheres gregas! Pela sua total
emancipação. O dote deve ser abolido. £ preciso deixar de negociar
com a virgindade! Ê uma desgraça para a Grécia. Toda mulher grega
vale o sal que come. Esperar que ela forneça um dote, além de seus
valores — de mula de carga, cavalo de tiro, carregadora de água,
abridora de valas, trabalhadora diarista, ama de leite, paridora de
filhos, consoladora, concubina, cozinheira, empregada para todo ser­
viço — é um pouco demais. A mulher grega deveria tornar-se a
abelha celeste da colméia. Os zangões pemilongos da pseudo-aristo-
cracia que ficam sentados comendo doces, vestidos de pele em meados
de setembro, deveriam ser destronados. A mulher grega que eu respeito
e a quem prestaria homenagem é aquela que caminha descalça na
lama com um pacote nas costas e uma dor no útero. Esta é a mulher
que eu treinaria para caminhar ereta. Eu passei por aldeias onde
quase toda a população masculina estava sentada diante das portas,
modorrando sob o sol. Isso não é prova de ascendência ou superio­
ridade masculina — é sinal de degeneração. E esses são os impres­
táveis que esperam que suas mulheres lhes cheguem puras ou, pelo
menos, tecnicamente puras, isto é, virgens. Que morram de sífilis
todos eles! Em todas as minhas viagens, nunca vi mulheres tão belas
quanto na Grécia. Nem vi jamais mulheres tão miseravelmente tra­
tadas. Embora possa parecer loucura dizê-lo, tenho a impressão de
que este é o motivo pelo qual o gato grego é um espécime tão
miserável. O gato parece ter encarnado a silenciosa fome, miséria
e desalento das mulheres. Não é propriamente um gato — é uma
espécie de animal necrófago furtivo. O mais inferior de todos eles
é a variedade corfiota, com um focinho nojento e repulsivo como
aquele que distingue o comedor de carniça. Não há também na
Grécia cão de que se possa vangloriar muito. O cão grego é sub­
misso demais, dissimulado, comido de sarna ou então perverso e voraz.
Mau sinal! Mas em ambos os casos o homem é o responsável. ..
A única criatura que eu nunca esperava encontrar na Grécia
e que parece ser especialmente favorecida é o peru. O peru aparece
em toda parte e é tratado como animal de estimação. Ar.imal de
estimação a ser comido um dia. O que é também muito grego, Pois
na Grécia o drama da voracidade é supremo. O tema de incesto é
uma expressão delicada da necessidade de devorar o que é mais
próximo e querido, Há entre os gregos uma espécie de ingratidão
que o estrangeiro percebe logo. Poder-se-ia dizer que é a flor do
mal da anarquia. Em última análise, o grego permanece sozinho. Em
última análise, ele devora sua própria progênie. Está no sangue. Às
vezes penso que o grego é mais antigo do que qualquer das raças

68
conhecidas do mundo. Acho-o às vezes curiosamente semelhante ao
aborígene australiano. A maneira como ri, por exemplo, quando é
surpreendido enganando. Ele faz tudo descaradamente. Uma parte
dele — a parte social — absolutamente não se desenvolveu. Ê por
isso talvez que os cafés são tão lamentavelmente estéreis e lúgubres.
É por isso que ele se apaixona por aparelhos americanos embora
não entenda a razão de ser deles. Em relação a coisas mecânicas
ele se comporta como um chinês. É capaz de adaptar-se a qualquer
instrumento ou invenção, mas o espírito daquilo está além de seu
entendimento. Se fosse possível americanizar o país da noite para
o dia, ele se tornaria um enorme monte de sucata em poucos anos.
O homem minóico não era grego. Era um invasor que provavelmente
dispersou ou escravizou a raça autóctone. Ele era o sobrevivente de
uma raça antiga e desconhecida. Não evoluiu em solo cretense. Já
estava formado, desenvolvido e produzindo sementes quando lá de­
sembarcou. Esta é minha crença. Eu não sou um erudito e é muito
provável que esteja errado, mas ainda assim esta é minha opinião.
De onde veio o grego é um mistério para mim. Eu não levo em
conta as teorias dos sábios etnológicos. Digo que o grego é também
muito antigo — mas culturalmente jovem. A qualidade primitiva
nele existente pesa mais que a cultural. Basta ver aqueles Picassos
pré-clássicos no Museu Etnológico de Atenas para compreender a
distinção. As estátuas daquela ilha, sem nome ou origem, falam
mais eloqüentemente que as ruínas da Acrópole. As melhores coisas
da Grécia estão ainda escondidas na terra. Tenho certeza disso. Na
idade futura, quando o homem começar a exumar as maravilhas
ocultas por baixo dos mares, descobriremos talvez as verdadeiras
origens da Grécia...
Tudo isso é muito pouco ortodoxo e talvez muito americano.
Mas é também um testemunho de minha reverência pelo verdadeiro
espírito grego. Não posso aceitar as datas e as explicações dos eru­
ditos, Prefiro fazer minha própria história da Grécia, uma história
que corresponderá às maravilhas incompreensíveis que testemunhei
com meus próprios olhos. Quando for a Delfos, consultarei meus
próprios oráculos. Porei minha orelha no chão, como um bom índio
americano, e escutarei. Farei lá uma oração pela Grécia que virá,
que vejo em toda parte desabrochando e que promete uma esplên­
dida colheita. Farei um hino à luz, à luz de Ática, Farei um pedido
extra de graça e perdão para as mulheres de Esmirna, para sua prole
até a 42.® geração. Pedirei que Agamenão seja restaurado em poder
e glória, e que Festo seja reabitada por uma nova raça de rainhas.
Pedirei que as montanhas sejam conservadas nuas e a dieta magra.
Não pedirei que vocês sejam cumulados de riquezas, mas que o
espírito que anima os lugares sagrados seja conservado vivo, A Grécia
pertence, não aos legisladores, mas aos deuses. Que os deuses ca­
minhem novamente pela terra, digo eu!

69
Adenda:

E agora, meu querido Seferiades, como conseguirei fazê-lo


compreender qulo profundamente agradecido estou pela generosa
hospitalidade com que você me cumulou? Serei algum dia capaz de
mostrar-lhe os Estados Unidos, a Golden Gate, o Grand Canyon, a
floresta petrificada do Arizona, os matadouros de Chicago, os arra­
nha-céus, as famosas beldades de Ziegfeld, os parques em que durmo,
os botequins, os ferry-boats etc. etc.? Quem sabe? Quase espero
que não. Prefiro voltar aqui, rapidamente, e visitar com você,
Katsimbalis, Ghika, Antonio e Tsatsos todos os lugares que não
tivemos tempo de ver. Eu gostaria de encontrar uma ilha desconhecida
no Egeu e instalá-lo como imperador, um imperador bizantino.
Gostaria de vê-lo florescer lá à suave maneira de Esmirna, vê-lo
dançar entre seus poemas megalíticos, seus ritmos micenianos. Gos­
taria de encontrá-lo na velhice, um poeta saturado com seus próprios
vinhos, exalando a fragrante resina de seu próprio verso.
Seu para a Ressurreição!

Henry Miller

70
As Águas Reabrilhantadas
O assunto da aquarela em algumas de
suas fases mais líquidas

por HENRY MILLER

De Henry para Emil


em momentos de inspiração ou
perplexidade, com gratidão por
ter-me posto no Caminho certo.

Iniciado na cama neste


22 de fevereiro de 1939 — aniversário
do nascimento de George Washington.
(The Battle of the Wilderness)

1973
sl* -
Prefácio

Este pequeno volume, originariamente escrito à mão em um


boneco de livro, destinava-se exclusivamente a meu amigo Emil
Schnellock, Foi um prazer escrever vários pequenos livros dessa
maneira, para meus amigos íntimos, durante os últimos anos de
minha estada em Paris. O último, dedicado ao poeta George Seferis,
da Grécia, eu escrevi na ilha de Hydra. Por serem escritos à pena, e
não à máquina, todos eles têm uma qualidade direta e íntima. Foram
feitos em minhas horas de folga, geralmente no curso de poucas
semanas.
Este me é particularmente caro porque trata da “mania da
aquarela”. Depois de uns vinte anos de luta com o meio, estou para
fazer uma exposição em Paris. É uma estranha coincidência, muito
agradável para mim, ser essa exposição realizada em Paris, onde,
depois de vinte anos de luta com outro meio, consegui finalmente
publicar meu primeiro livro (Trópico de Câncer):
É certo que fiz várias exposições nos Estados Unidos. Nenhuma
delas, porém, exceto uma em Hollywood, patrocinada por Clara
Grossman, significou muito para mim. (Desconfio que também não
significou muito para o público.)
Devo imediatamente acrescentar que de pintores americanos eu
recebí muito encorajamento. Dois homens particularmente devo
mencionar a esse respeito: Abraham Rattner e Bezalel Schatz. Du­
rante um ou dois meses, enquanto vivia em Nova York, tive o privi­
légio de trabalhar ao lado de Rattner em seu estúdio. Foi uma
experiência inesquecível. Falei sobre isso com certa extensão em .
Remember to Remember, onde tentei apresentar um minucioso re­
trato desse grande artista americano. Quanto a “Lilik” Schatz e o
que ele fez, não só por mim, mas por todos os seus amigos íntimos,
direi apenas isto: ele é filho e herdeiro espiritual de Max Jacob.
Mas, voltando a este pequeno documento... Minha razão pri­
mária para permitir que ele se tome público agora é pagar uma
dívida de gratidão a meu velho amigo e consolador, Emil Schnellock.
Foi ele quem me inspirou a continuar após eu ter começado. (Era
necessário muito encorajamento porque na escola eu fui sempre
considerado um caso perdido, isto é, na classe de arte.) Durante

73
meus dez anos em Paris, mantivemos firme e volumosa correspon­
dência. Quando de meu regresso aos Estados Unidos, em 1940, visitei
meu amigo Emil na Virgínia. Um dia, ele mostrou um enorme baú
cheio de cartas, manuscritos, notas, fotos, planos, projetos e docu­
mentos de toda espécie, que eu lhe mandara através dos anos. Era
uma espantosa coleção, que testemunhava mais eloqüentemente nossa
amizade do que tudo quanto eu pudesse dizer aqui.
No outro dia, recebi uma carta de Joan Miro e, no dia seguinte,
uma de Marc Chagall. Li-as em voz alta para minha esposa, Quando
a olhei, ela tinha lágrimas nos olhos. “Como escrevem com simpli­
cidade e beleza!”, observou ela. “E são homens tão grandes!” Sim,
essa é a maneira do europeu, do homem de gênio, Ele vai ímediata-
mente à essência da coisa. Um cartão postal de um desses sujeitos
diz mais e significa mais do que um longo ensaio de um de nossos
mandarins.
Alguns dias atrás, apanhei um pequeno livro que me mandou
André Breton (La Lampe dans l'Horloge) e encontrei a citação de
um trecho de uma carta que lhe escreví há um ano mais ou menos.
Não era uma carta extraordinária e certamente não era literária. Mas
Breton considerou-a suficientemente importante para dedicar-lhe
atenção. Isso quase nunca me acontece com escritores americanos.
De fato, quase nunca recebo notícias de um escritor americano
preeminente.
Por que falo sobre isso? Para acentuar outro aspecto flagrante
da situação em que se encontram os artistas americanos. Nenhuma
comunhão. Nenhuma verdadeira intercomunicação. Nenhum interesse
pelas coisas vitais e sutis que significam tudo para um escritor, pintor
ou músico. Vivemos em um vácuo atravessado pelos mais compli­
cados e elaborados meios de comunicação. Cada um ocupa um planeta
próprio. Mas as mensagens nunca passam!
No mesmo sentido... Meu amigo Schatz, da Palestina, deu-me
um pequeno livro no outro dia. “Leia-o”, disse, “penso que você
vai entusiasmar-se com ele.” Assim que ele partiu, dei uma olhada
no livro. É de Antonin Artaud, o poeta francês morto há pouco tempo.
O livro foi escrito em 1947, após Artaud ter saído do asilo onde
passara nove anos.
Eu estava tão cansado que não tinha o menor desejo de começar
o livro, embora pequeno, antes de ir para cama, Mas virei algumas
páginas ao acaso e fiquei preso. Segurando o livro sob a lâmpada
agonizante, li como louco. Mal podia acreditar em meus olhos. Com
seu último alento, poder-se-ia dizer, Artaud escreve a respeito de
outro louco, Van Gogh. Linguagem incrível, A linguagem que só
um homem de gênio pode invocar para prestar homenagem a outro
homem de gênio. Não apenas exaltado, mas louco. (Louco como

74
De Nerval, como Swift, como Nijinsky.) Loucura corretiva. Tingida
com o vitríolo do escárnio, ódio, desprezo e desdém pelos “sãos”,
pelos espíritos burgueses, pelos estetas, pelos patronos e patro­
cinadores da arte. Igualmente por toda a raça de charlatões
psiquiátricos em cujas mãos homens como Van Gogh e Artaud caem
inevitavelmente.
Eu podería continuar isso indefinidamente. É assim que diva­
gamos quando nos encontramos, meu amigo Emil e eu. Estou
pensado no período entre as primeiras duas guerras mundiais. Então
eu não sabia francês, infelizmente! Só lia aqueles autores, aqueles
livros, que nossos editores relutantemente selecionavam para serem
lidos por nós em tradução. Em 1940, quando nos encontramos de
novo, eu era como um homem que tivesse passado pelas fogueiras
da redenção. Durante dez anos mergulhei em espantosas experiências
— físicas, morais, espirituais, Muitas delas eu confidenciei a Emil
em minhas cartas. Algumas retive deliberadamente até o dia em que
nos encontrássemos de novo. “Meu amigo”, costumava dizer comigo
mesmo, “espere até eu voltar aí. As coisas que tenho a contar vão
deixá-lo louco.” Hoje, quase dez anos depois, ainda estou falando
a ele sobre aqueles dias maravilhosos que vi vi em Paris.
Albert Cossery vive no 18.° arrondissement. Acaba de ter seu
terceiro livro publicado — Le Fainéants dans la Vallée Fertile. James
Laughlin, de New Directions, diz que provavelmente vai lançá-lo
em tradução. Espero que o faça. Só um punhado de americanos
parece ter lido o primeiro livro — Men God Forgot. Em seu segundo
livro (The House of Certain Deaíh), que New Directions lançará
em breve, Cossery tirou seu tema de uma rachadura na parede. É
uma rachadura simbólica, bien entendu, a espécie de rachadura que
dividiu o ovo do mundo em dois nos tempos mitológicos. Cossery
é desesperadamente pobre e, portanto, não muito alegre, mas está
se tomando cada dia mais rico. Um quarto livro está agora germi­
nando, mas ele não o começará a menos que lhe seja assegurado
pelo menos um milhão de francos adiantado. Ele é egípcio, devia
eu acrescentar. Talvez o mais estranho egípcio que o mundo viu
durante séculos.
Antes de extraviar-me ainda mais, devo dizer uma palavra a
respeito de Utrillo. Algumas pessoas sem dúvida interpretarão mal
minhas palavras de aplauso à observação do vendedor de carne de
porco. Eu não desejaria que pensassem que considero o trabalho de
Utrillo “sórdido”. Não, senhor! Utrillo é uma das figuras da pintura
contemporânea quase igual a Cristo. E é por isso que mencionei o
resplandecente retrato dele por Francis Carco. Pelo que sei esse livro
de Carco nunca foi traduzido para o inglês. Por quê? Não existem
nos Estados Unidos milhares de pessoas que admiram o trabalho de

75
Utrillo? Sua vida não é lendária? O próprio Carco, diga-se de pas­
sagem, é um homem a quem deve ser dada atenção.
Acabo de regressar de minha habitual caminhada matutina pela
floresta. Toda vez que entro nessa floresta, três nomes vêm aos
meus lábios: Hamsun, Débussy e Derain. (Por estranho que pareça,
nunca penso em Thoreau.) Em Knut Hamsun penso por causa de
Pan, Victoria e A Wanderer Plays on Muted Strings. Em Débussy,
por causa de Pelléas et Mélisande. Em Derain, por causa de certas
paisagens nas quais a terra é toda dourada. A entrada da floresta
é como um cenário no qual tivessem colaborado esses três europeus.
Música dourada, murmúrios misteriosos (“como um milhão de nadas”,
como diz Hamsun), devaneios nostálgicos. Tudo contido no oco de
uma pequena valeira coberta de troncos apodrecidos de sequóías
mortas.
Quando penetro um pouco mais, quando me vejo seguindo as
margens de um pequeno córrego, começo inevitavelmente a comuni­
car-me com Jean Giono. De vez em quando recebo uma carta deste
Jean le bleu, geralmente seguida de um novo livro seu. Todo livro
que Giono escreve é um hino e uma invocação. O tema subjacente
é o mesmo: Que Ma Joie Demeurel
Abro a janela de meu pequeno estúdio para urinar. As papoulas
estão em plena florescência. O que me lembra Van Gogh e o pe­
queno livro de Antonin Artaud: Van Gogh, le Suicidé de la Societé.
(K. Editeur, 2, rue des Beaux-Arts, Paris.)

Cito algumas passagens ao acaso:

“Qui ne sent pas la bombe cuite et le vertige comprime n’est


pap digne d’être vivant. C’est le dictame que le pauvre Van Gogh
en coupe de flamme se fit un devoir de manifester.”

“En face d’une humanité de singes lâches et de chiens mouillés,


la peinture de Van Gogh aura été celle d’un temps oü il n’eut pas
d’âme, pas d’esprit, pas de conscience, pas de pensée, rien que des
éléments premiers tour à tour enchainés et déchainés.”

“C’est ainsi que Van Gogh est mort suicidé, parce que c’est le
concert de la conscience entière qui n’a pu plus le supporter.”

“Et il avait raison Van Gogh, on peut vivre pour 1’infinie, ne


se satisfaire que d’infinie, il y a assez d’infinie sur la terre e dans
les sphères pour rassasier mille grands génies, et si Van Gogh n’a
pas pu combler son désir d’en irradier sa vie entière, c’est que la
société le lui a interdit. Carrément et consciemment interdit. Il y a
eu un jour les éxécuteurs de Van Gogh, comme il y a eu ceux de

76
Gérard de Nerval, de Baudelaire, d’Edgar Poe, et de Lautréamont.
Ceux quí un jour lui on dit: Et maintenant, assez, Van Gogh, à la
tombe, nous en avons assez de ton génie, quant à 1’infime, c’est
pour nous rinfinie.”

Em seguida falaremos da coloração de um homem morto —


isto é, seu rosto, seu corpo ou qualquer parte nua que possa ser
visível em um painel ou uma parede.,. Você não deve usar tintas
rosadas, porque pessoas mortas não têm cor. . . Como eu lhe mostrei
de que modo pintar várias espécies de barbas em paredes, da mesma
maneira pinte em painéis, e assim pinte os ossos de cristãos ou cria­
turas racionais com essa mesma cor de carne.

E aqui termina este desgracioso prefácio ao pequeno livro sobre


as fases mais líquidas da aquarela, escrito expressamente para meu
velho e leal amigo Emil, em reverência a Deus e à Virgem Maria,
a São Francisco e João Batista, e geralmente a todos os santos,
grandes, pequenos ou medíocres, e em reverência a Cimabue, a
Uccello, a Piero delia Francesca, a Hieronymus Bosch, a Breughel, o
Velho, a Van Gogh, Utrillo, Picabia, Rouault e Rattner, para prazer,
edificação e libertação de todos quantos se dedicarem a esse meio
como amadores.
Henry “Cennini” Miller
31 de março de 1949 Big Sur, Califórnia.

VAMOS AGORA POLIR OURO, POIS CHEGOU O TEMPO


DE FAZERMOS ISSO.

77
As Águas Reabrilhantadas

Neste quarto onde me deito estou cercado de pinturas — os


selvagens cavalos Jônios de Nancy, o estudo etnológico de Reichel
sobre wigwams, que é uma obra-prima em seu gênero, seu abstrato
rosa-cruzista sobre vidro, a tapeçaria “refugada” que eu salvei do
cesto de papéis usados, a moça de chapéu vermelho que é o desenho
de capa do livro infantil que eu dei a você — e várias de minhas
próprias tentativas recentes. Uma delas, na qual usei um pouco de
branco chinês, é um espantoso progresso em relação a meus outros
“auto-retratos”. Digo auto-retratos porque, como Anais argutamente
observou um dia, é sempre o mesmo rosto, seja um sábio chinês,
um negro africano, uma vítima de guerra ou um louco. Este tem
no rosto a verdadeira cor de carne, do que estou bastante orgulhoso.
Para mim, adquirir a mais ligeira técnica é sempre um processo
longo, mas alegre. Minhas aquarelas são sempre viagens de aventura
e, “bem-sucedidas” ou mal-sucedidas, dão-me real satisfação. Posso
nadar em sua presença tão agradecidamente, como se fossem Pícassos
ou Rembrandts. Nunca fico totalmente decepcionado com elas, por
pior que seja a tentativa.
Mas tudo isso é preliminar à idéia que eu tinha em mente
quando comecei. Foi uma repentina lembrança da noite em que parei
com Joe 0’Reagan diante da vitrina de uma loja de departamentos
— em Livingstone Street, Brooklyn, creio eu — e absorví com todos
os meus sentidos os Turners que lá estavam pendurados. Natural­
mente, eu havia começado antes, se bem me lembro. Havia começado
com uma caixa de tintas para crianças, um pincel muito ruim e
um pedaço de papel de embrulho do açougue. Fiz uma cópia do
auto-retrato de George Grosz, como Número Um. Disso eu me lembro
vividamente por causa do prazer que senti ao descobrir que era
realmente capaz de fazer alguma coisa ligeiramente parecida com o
original. (Mais tarde, tive um choque semelhante, quando fiz retratos
de minha mãe e minha irmã com modelos vivos — em preto e
branco. Elas pensaram na ocasião que eu estava um pouco maluco
por encarar tão seriamente tal questão, especialmente porque eu
não tinha emprego, nem dinheiro.)

78
Tudo, porém, data de seu estúdio na 50th Street, onde eu tive
o impulso original, observando-o trabalhar e ouvindo suas explicações
muito sábias sobre as razões disto e daquilo. Lembro-me de outro
período, quando eu estava instalado com June em Remsen Street,
lendo Renaissance de Walter Pater e fazendo-lhe perguntas não apenas
sobre Botticelli, mas sobre os primitivos italianos. Posso quase ouvi-lo
de novo quando você discursava eloqüentemente a respeito de Cima-
bue e Giotto. E depois, um dia, foi Uccello!
Bem, em minha recente visita a Londres vi um Uccello na
Galeria Nacional. Você provavelmente sabe ao qual eu me refiro—
uma cena de batalha, com um maravilhoso plano de fundo ascen­
dente. Estudei-o durante muito tempo, sentindo finalmente que não
era tão misterioso quanto antes. (Tudo aquilo de que gosto profun­
damente permanece sempre um mistério para mim! Isso se aplica
à escrita, tanto quanto à música ou pintura. Por exemplo, em
literatura, por mais que eu conheça e reconheça livros de “técnica”
como Mysteries de Hamsun, Eternal Husband de Dostoiévski e Diary
de Nijinsky, eles serão sempre um MISTÉRIO. E, se você não achar
vaidade minha dizer isso, de vez em quando, relendo trechos de
minha própria obra, sinto a mesma coisa. Faz sentir-me importante
— atemorizado e dominado ao mesmo tempo.)
Mas, voltando àquele Uccello na Galeria Nacional — foi só
nessa vez que eu percebi repentinamente como é moderno o quadro.
Como Uccello é moderno! Cézanne é um menino intelectual em
comparação. E Van Gogh! Porque Van Gogh é apenas um neuras-
tênico torturado! Uccello ensinou-me muita coisa. E como, eu me
pergunto, puderam seus seguidores ter deixado de aprender? Como
pudemos ter lacunas tão terríveis na verdadeira tradição de pintura?
Foi eloqüente no feito, não em mera concepção e técnica. Foi direto
da visão para a tela. Não retratou meramente uma cena de batalha.
Que monstruosidades de erudição e mau gosto existem entre ele e
Picasso, digamos. Uccello revelou grandeza e simplicidade de alma.
Retratou o estado de sua alma, a alma de Uccello, no momento.
A tela é cheia de alma, cheia de sentimentos nobres. Com esse senti­
mento de alma pode-se pintar, dançar, cantar ou construir pirâmides.
Sentimento, sentimento. Van Gogh afirma isso de modo maladif.
Mas Uccello é sentimento sadio, forte, emoção contida, um universo
equilibrado — o equilíbrio estabelecido de dentro, de sua relação
com Deus, e não do conhecimento da Regra de Ouro.
Eu notei, para falar em coisas pequenas, a grande diferença em
resultados, quando sentado calmamente e serenamente para pintar
uma aquarela, em comparação com aqueles ímpetos febris interme­
diários, quando a idéia de “fazer alguma coisa” parece suprema.
A coisa notável a observar, em trabalho infantil (como você
verá no livro que eu mandei) é que a criança dá a impressão de ter

79
feito aquilo com todo o seu ser. Ela se entrega completamente ao que
está fazendo. Ao passo que mesmo o maior artista precisa travar
uma luta constante contra distração. Ele tem consciência não apenas
das futuras opiniões dos críticos, do preço que alcançará (ou não
alcançará!), do valor de suas bisnagas, da precisão de sua escolha
de cor ou linha, mas também da temperatura do aposento, das man­
chas do chão, do banho que esqueceu de tomar e assim por diante.
Para alguém como eu, que não é obrigado a pintar aquarelas
para viver, como é maravilhoso aquele sentimento, que acontece às
vezes, quando, chegando à casa por volta da meia-noite, com o
lugar extremamente silencioso, a luz dando exatamente o clarão certo
sobre minha mesa de trabalho, meus sentidos agudamente vivos,
mas não tão aguçados a ponto de impulsionar-me a escrever mais
(uma espécie de assentamento das cinzas, com o calor do fogo quase
morrendo), eu me sento diante do pequeno bloco de papel, decidido
a fazer só mais uma aquarela em paz e harmonia. Pintar dessa ma­
neira é como comunicar-se consigo mesmo — e com todo o mundo
também. As cores falam-me. Eu as agrado, eu imploro a elas. E,
com a disposição certa, farei esforços infinitos, por alguma razão
desconhecida, para misturar um pequeno borrão de tinta que encherá
um oitavo de polegada no papel.
Mas um dos momentos de que mais gosto, depois de ter feito
o que imagino ser o meu máximo, é a percepção de que não vai
dar certo. Decido transformar o quadro sereno e estático à minha
frente em uma coisa viva, descuidada, livre e fácil. Pincelo ousada-
mente com qualquer coisa que me venha à mão — lápis, creiom,
pincel, carvão, tinta — qualquer coisa que destrua o estudado efeito
obtido e ofereça novo campo para experiência. Eu costumava pensar
que os impressionantes resultados conseguidos dessa maneira eram
devido a acidente, mas não tenho mais essa idéia. Não apenas sei
hoje que esse é o método empregado por alguns pintores muito fa­
mosos (Rouault vem-me imediatamente à mente), mas reconheço
que é muitas vezes o mesmo método que emprego para escrever.
Eu não começo a trabalhar em minha tela, ao escrever, como o
meticuloso Fraenkel faz com seus esboços, mas continuo desbravando
novo terreno até atingir o nível de expressão exato, deixando lá
todas as tentativas e sondagens, elevando-as, porém, era uma espécie
de circunavegação espiral, até fazer um sólido infracorpo ou suporte,
conforme o caso. E este, observo eu, é precisamente o ritual de vida
praticado pelo homem que evolui. Ele não volta, figurativamente,
para corrigir seus erros e defeitos; ele os transpõe e os converte em
virtudes. Faz asas de suas mortalhas larvares.
Aquele último “auto-retrato” na parede, que tem a aparência
de um alquimista medieval, contém uma descoberta ligada a “orelhas”,
que me agrada muito. Orelhas são um bicho-papão para mim —

80
assim como dedos e pescoços. Eu esgotei todo meu conhecimento
de orelhas — e elas ainda continuavam parecendo couves-flores ou
couves-rábanos. Gradualmente, trabalhando em direção ao rosto de
fora para dentro, com transparência cada vez mais, com mais e mais
magia, eliminei por fim totalmente as orelhas. E depois, por um
golpe de gênio (sic!), abri algumas cicatrizes nas faces, dando assim
a mim mesmo o aspecto inconscientemente desejado de alguém que
tivesse sofrido muitas provações, que talvez tivesse sacrificado suas
orelhas por um propósito mais elevado, mas que nem por isso deixava
de estar ali “inteiro”, avec ou scms oreilles. O emprego judicioso de
um pouco de branco chinês intensifica o mistério e dá luminosidade
ao olhar intenso do visionário que talvez em sonho tenha visto a
pedra filosofal.
Se um dia esse esforço particular for exibido na vitrina do
Gotham Book Mart, para onde vou mandá-lo em breve, dar-me-á
intenso prazer você parar e examiná-lo. Ainda maior prazer, podería
eu acrescentar, se você entrasse e perguntasse quem o executou. E o
mais extremo prazer, nem preciso dizer, se depois de perguntar o
preço dessa obra-prima, você dissesse: “Embrulhe-a, por favor. Eu
fico com ela.” Para ter certeza de que você a reconhecerá (!), escre­
verei nas costas dela “A Pedra Filosofal, em memória de meu amigo
Emil Schnellock, que me iniciou nos mistérios do branco chinês”.
Você encontrará a pedra exatamente na base do pescoço. É um
pequeno borrão de pintura por baixo, que eu deixei intato. À sua
disposição, Emil, por 1,98 dólar.
E agora, quando estou cheio de calafrios e febre, porei a pena
de lado e sonharei com os Uccellos de que costumávamos falar —
eu, então no auge da ignorância, e você, paciente e instrutivo.
Uma idéia adicional enquanto almoço à minha mesa de trabalho
e olho minha aquarela através do reflexo no espelho. Pela primeira
vez em minha experiência, vejo de repente que os raios brancos
azulados que fiz correr pelo peito do homem são realmente riscas
vaporosas de luminosidade e não apenas trilhas de cor azul misturada
com um pouco de branco. Quando estou no metrô, esperando um
trem, estudo instintivamente os cartazes — e isso tem a ver com
truques de sombra, lampejos de material, diferenciação de textura
através de linha, cor ou forma. Jamais consigo alguma coisa porque
simplesmente não sou capaz de guardar a lembrança da técnica que
estudei e da eficácia do que percebo. Vejo apenas o que o artista
pretendeu que eu percebesse — isto é, uma ruga na calça, não uma
fina linha preta com uma orla paralela de branco. Em meu trabalho,
só vejo as “causas” — nunca os efeitos. Só às vezes, quando um
visitante chega e começa a dizer-me o que vê na pintura, eu também
começo a ver essas coisas. Vejo apenas meus esforços e malogros —
nunca o resultado desejado. Lembro-me de uma vez em que Reichel

81
chegou e criticou uma aquarela que eu vinha de terminar e da qual
estava incomumente orgulhoso porque pensava ter obtido sucesso
maior que o habitual. Era um retrato de memória do Pare Montsouris
— o lago com os cisnes etc. Reichel disse: “Não gosto muito de
pinturas infantis.” Dando a entender que eu havia tentado pintar
como uma criança. Fiquei lisonjeado, assim como estarrecido. Mas
eu' absolutamente não estava tentando imitar uma criança. Estava
fazendo o máximo que podia. O fato de ele ter feito uma distinção
entre esse quadro e outros que eu lhe mostrara, deixou-me perplexo.
Onde estava seu senso crítico? Não seria ele capaz de ver que todos
aqueles quadros eram fundamentalmente “infantis”? Outra vez,
olhando um apressado e extravagante retrato de Fred que eu havia
terminado, ele disse: “Que cruel concepção de amigo!” Mas eu não
tivera o mais ligeiro sentimento de crueldade ao pintá-lo. Se dera
a Fred uma expressão idiota fora porque o pincel me falhara. Eu
estava olhando atentamente para ele, enquanto pintava, e o resultado
foi o que aparentemente horrorizou Reichel. Atribuia-me ele um
poder e controle que eu nunca possuira.
Agora, escrevendo, se alguém fizesse aquela observação sobre
uma descrição, eu a teria aceito silenciosamente como crítica justa,
ainda que, como às vezes acontece, eu não tivesse a menor malícia
na superfície de meu cérebro. Mas escrevendo — entende? — eu sei
que sou responsável. Conheço todos os truques — onde usar um
ponto e vírgula em lugar de um travessão, quando dar uma rápida
estocada e como tornar-me loquaz ou mesmo perifrástico — até
mesmo quando gaguejarl Mas sei também que, além de certo ponto,
não sou mais responsável. Em certo ponto o homem que existe em
mim sobrepõe-se ao artista. O artista mente, pode mentir e mentirá
para obter efeito. Mas não o homem! No reino da aquarela eu não
sou nenhuma dessas duas criaturas. Sou simplesmente o cego instru­
mento do acaso. Trabalho de acordo com o “Princípio -de Menor
Ação”. Aquilo que não sei vale mais do que aquilo que sei. Eu não
deveria realmente assinar meu nome nessas coisas — sou uma criatura
anônima, um neófito, uma pessoa que balbucia e gagueja na forma
e na cor. Está-me acompanhando?
A maior alegria e o maior triunfo, em arte, vem no momento
em que, percebendo ao máximo seu domínio sobre o meio, você o
sacrifica deliberadamente na esperança de descobrir uma verdade
vital oculta dentro de si. Vem como uma recompensa por paciência
— essa liberdade de mestria que nasce da mais árdua disciplina.
Depois, seja o que for que faça ou diga, você está absolutamente
certo e ninguém ousa criticá-lo. Sinto isso com muita freqüência ao
olhar um trabalho de Picasso. Sente-se que a grande liberdade e es­
pontaneidade por ele reveladas nascem por causa do impacto, da
pressão, do apoio de todo o ser que, por um período interminável,

82
foi subserviente à disciplina do espírito. O mais descuidado gesto é
tão seguro, tão verdadeiro, tão válido, quanto as pinceladas mais
cuidadosamente planejadas. Isto eu sei, e ninguém será capaz de
convencer-me do contrário. Picasso aqui está apenas demonstrando
uma sabedoria da vida que o sábio pratica em outro plano mais alto.
Esta manhã, após acordar às cinco horas, com o quarto quase
escuro, fiquei desperto meditando silenciosamente no ensaio que
escrevería depois de levantar-me e, ao mesmo tempo, como que
executando um dueto, observei a gradual mudança de cores em
minhas pinturas ao lado da cama, à medida que aumentava vagarosa­
mente a luz. Tive então a estranha sensação de imaginar o que
poderia acontecer àquelas cores se a luminosidade continuasse a
aumentar até além da plena luz do dia. E indo da idéia sobre a
desconhecida escala de cores até as próprias formas e depois até sua
significação — que mundo de conjetura eu explorei! Naquele mo­
mento fui capaz, por assim dizer, de colocar-me num futuro que
talvez um dia possa ser realizado. Vi não apenas o que um dia eu
poderia ser capaz de fazer, mas também vi isto: que a previsão do
acontecimento era um augúrio do próprio feito. De repente, percebí
como havia sido a luta para expressar-me por escrito. Vi novamente
o período em que eu tinha as mais intensas e exaltadas visões de
palavras escritas e faladas, mas de fato só era capaz de murmurar
entrecortadamente. Hoje vejo que meu firme desejo foi a única coisa
responsável por todo progresso ou domínio que consegui. A realidade
está sempre lá e é precedida por visão. Se a gente continua olhando
firmemente a visão cristaliza-se em fato ou feito. Não há como fugir
disso. Não importa que caminho você segue — todo caminho leva-o
finalmente à meta. “Todas as estradas levam ao Céu”, é o provérbio
chinês. Se aceitar isso inteiramente, chegar-se-á lá muito mais de­
pressa. A gente deveria preocupar-se com o grau de “sucesso” obtido
por cada esforço, mas apenas concentrar-se em manter a visão,
conservando-a pura e firme. O resto é trabalho de destreza manual
no escuro, um genuíno processo automático, não menos sonambúlico
por ser acompanhado de penas e dores.
Desde as llh30m desta noite, estou empolgado pela descoberta
do ocre amarelo! Cor maravilhosa! Ponho-a no céu e obtenho aurora,
ponho-a na grama e obtenho uma luz dourada. Desde o crepúsculo,
venho correndo entre duas quarelas — o mesmo tema, tratamento
diferente. Em cada uma delas há uma árvore (sempre a mesma
árvore, igual à que eu pintei em frente de St. Augustins), uma
superfície de água — riacho, lago, rio?? — e montes, verdes como
as colinas da Irlanda. Usei verde de escambroeiro esperando obter
um dourado fraco, mas obtive verde irlandês. Um pouco de azul
prussiano perto do cume dos montes e eles passam a cintilar com
todos os minérios metálicos lá depositados e guardados pelos sete

83
anões. Tentando lançar o reflexo dos montes na água, eu mexí na
água tantas vezes que lá existe toda espécie de azul e verde. Antes
de ir ao cinema, para ver a amado Raimu (a única figura humana
no cinema), dou um banho no quadro menor. Efeito espantoso —
e lamento agôra tê-lo banhado de novo. Tudo tomou um colorido
sobrenatural, como ao amanhecer. Onde as cores desapareceram
completamente, ficou não apenas papel branco, mas um espaço var­
rido pelo vento, no qual as cores desaparecidas ainda falavam
fracamente. Podia-se ver que a mão do homem passara por ali —
como o sopro de Deus movendo a superfície das águas. As árvores
haviam sido feridas por frias lufadas de vento. Era maravilhoso, mas
como um parvo eu pensei comigo mesmo que todo mundo podería
ver que aquilo fora lavado — e não feito por destreza de mão. E
finalmente obtive um barco — forma correta e movimento correto
da proa e popa quando ele se vira com o sol e a correnteza. No
pequeno quadro consigo transmitir a ilusão de duas mulheres sem
pôr (pela primeira vez em minha vida) cabelos, olhos e nariz. Você
pode imaginar certo suas feições desta vez. Você sabe que elas
têm feições! Um triunfo de primeira ordem! Mas, melhor que tudo
é o chão — cravejado de ocre amarelo que brilha de maneira celes­
tial, sugerindo não tanto “terra” quanto a terra — a terra de algum
tempo fabuloso antes de ser inventada a máquina. (Nas lendas
heróicas gregas, quando se pensa nas batalhas e nos populares entre
os semideuses, evocam-se uma terra e um solo muito diferentes
daqueles que se encontram, por exemplo, em um Utrillo ou um
Cézanne. A terra era então mais dourada, disso não há dúvida,
Quando um homem caía ferido à terra, caía em parentesco com ela.
Não havia crateras de obuses e capim comido por gás onde se
afundar. O homem morria sob sol forte, numa orgia de ocre amarelo,
verde-capim, amarelo-cromo e marrom-amarelado. Ou então sob lua
cheia, realmente argent e realmente inchada em proporções assusta­
doras. Ele via os troncos das árvores negros como carvão e manchados
de prata. Via na espessa folhagem ao alto um borrão vemal no qual
ainda havia traços de castanho-avermelhado e laranja.) Às vezes,
lendo um livro, a gente vê novamente todas essas cores. Às vezes,
eu vejo isso no cinema, saltando para fora do filme branco e preto.
Hoje à noite, quando Raimu estava enfurecido, com as costas vol­
tadas para uma porta-janela dando para a Riviera, eu vi os mais
maravilhosos verdes e amarelos, folhagem manchada e árvores den-
teadas revestidas de cortiça. E vi a poltrona e o sofá com o papel de
parede Matisse, as figuras humanas movendo-se em outra dimensão
a partir do cenário e, embora violentas e trágicas em seus gestos,
não ainda tão convincentes quanto a poltrona, a porta-janela meio
aberta, os montes serrilhados e granulados, as folhas de palmeira
como peixe-espada, as oliveiras enfezadas, a serena e ondulada baía.

84
E agora eu lhe digo uma coisa inda mais engraçada. Quando já
havia pintado dois terços de meus quadros, voltei ao estúdio para
dar uma olhada no quadro de criança que eu recortara daquele livro.
E vi num relance que “ela” sabia mais a respeito de pintura do que
eu jamais chegarei a saber. Mesmo quando fez a sombra do comprido
pescoço de um cisne na direção errada, isso não perturbou o ar
geral de veracidade. O que ela registrou com seu pincel era verdade
absoluta em relação à sua visão. Eu muitas vezes esqueço de colocar
a sombra — até quando vou à galeria de arte e noto por acaso que
a maioria das coisas lança sombra. A criança tem consciência muito
aguçada da aura que envolve homens e coisas. Crianças crescidas
como eu, que são muitas vezes apenas adolescentes desmiolados, es­
quecem tudo a respeito da aura, da mesma maneira que os cientistas
esquecem a respeito dos anões que habitam os metais, como diz
Fred. Quando escrevo, tenho consciência de todas essas coisas, mas
quando tomo o pincel fico tão dominado pela idéia de fazer alguma
coisa que perco de vista toda a realidade. Minhas criações, se posso
chamá-las assim, mudam, flutuam ou arfam em um vácuo dos sentidos.
, Hoje à noite cheguei mais perto dessa realidade do que nunca.
E o consegui com o pincel pequeno, que geralmente deixo de usar
por impaciência. Pensei muito em cada detalhe — na impressão da
água, na aparência dos montes e em como e onde a proa de um
barco se curva. E quando o vento varre a terra, lembrei-me como
ele empurra a folhagem da árvore, quase como se pensasse que ia
arrancá-la. Penso que transmiti um pouco de tudo isso em minhas
duas prolixas tentativas. (Ainda assim, quando as penduro ao lado
do trabalho da criança, elas não chegam a ser tão boas, tão honestas,
tão verdadeiras. A criança não deu banhos em seu quadro — disso
tenho certeza. E, quando fez um caminho no gramado, ele se tornou
um caminho. Os meus são branqueados no chão.)
Mas ainda assim, louvo a Deus por seu poder de salvação e
conservação. Cheguei mais perto do que nunca e posso ir para a
cama com consciência limpa.
Mas não se esqueça de ver Raimu em Noix de Coco, drôle de
titre! Quand il se met à pleurer, cest magnifique! C’est um homme,
quoi!!!
Antes de cair no sono ontem à noite, ordenei à minha mente
subconsciente que se lembrasse, ao despertar, do último pensamento
em minha cabeça — e deu certo. Eu ia falar-lhe sobre minhas im­
pressões ao ver no Paris-Soir a minúscula reprodução de uma pintura
de uma artista (talvez Suzanne Valadon). Olhando a cabeça que ela
fez, fui tomado por um pensamento que sempre me volta quando
observo cabeças. Era uma cabeça como só os pintores nos dão. Não
é possível encontrar seu correspondente em literatura ou mesmo em
escultura. Era — ou é, por causa de um fenômeno eterno na pintura

85
— um rosto ditado pela lógica do pincel. De alto a baixo, o rosto
é escorçado e, como é natural, correspondentemente alargado de lado
a lado. A gente vê isso muito tipicamente, devo dizer, nas figuras
de Braque. As cabeças são decididamente modeladas pela tinta para
ajustar-se às exigências do resto da tela. A cabeça flutua de maneira
escultural, criando uma espécie de graça e beleza diferentes daquelas
com que estamos familiarizados na vida. Hã geralmente nas feições
uma qualidade de rudeza de pedra esmagada. Quando vi essa cabeça
na rubrique, A Travers les Galéries, senti uma grande alegria —
parte pelo reconhecimento de um princípio, parte pela descoberta
de um elemento que está geralmente ausente em meus retratos.
Imagino que, se alguém tentasse esse semblante em aquarela, teria
de fazê-lo sobre papel úmido. Pretendo, para começar, tentar isso
com creiom pulverizado, usando os dedos pela qualidade explosiva
da estrutura óssea, da órbita e das convolações frontais. É em algum
lugar ao redor do maxilar que eu sinto o mais vivo prazer — é
difícil descrevê-lo, mas é como se o maxilar estivesse assentado bem
no fundo de um monte de carne que se alarga. É a voracidade carnal
da boca, não sua facilidade verbal ou sua “capacidade para beijo”,
que me prende. Reichel certa vez pintou uma em óleo, de um tipo
germânico medieval, em verde oiiva-escuro com carne trigueira car­
regada de terra, que me persegue. Deu ao rosto tanta extensão a
ponto de torná-lo quase batraquio. É, porém, um rosto “para todos
os tempos”, como você disse uma vez a respeito dos cavalos de
Shakespeare. E há nessas cabeças outra coisa — que eu deveria
chamar cabeça “pós-medieval”. Quando postas contra uma paisagem
ou fragmento de paisagem (efeito terrivelmente intensificador, penso
eu sempre — como que para dizer Homem dominando a Natureza)
— o rosto reflete intuitivamente as curvas e ritmos da Natureza.
A cabeça rígida e solitária dos tempos modernos é assustadora por
causa da falta de relação. É o símbolo de um cérebro funcionando
no vácuo. Só isso é razão suficiente para justificar sua continua
admiração por aquele pintor francês cujo nome esqueço — aquele
que finalmente pintou com o coto de um braço! (Renoir). Todàs as
suas mulheres têm a qualidade de que falo. Quando chegamos a
Picasso, às mulheres de Picasso, temos as flores da idade da máquina,
embora elas sejam classificadas como pertencentes a seu período
“clássico”. Suas maciças madonas são abutres do grande vácuo. Agora
ele está dando a elas perfis com um olho duplo. Não conheço as
razões plásticas ou estéticas dessas estranhas aparições, mas julgo
perceber uma razão metafísica — e esta é que suas mulheres, nossas
mulheres, não têm corpo “etéreo”, por assim dizer. Sendo inteira­
mente físicas, elas se tornam sínteses anatômicas, conglomerações
imateriais de elétrons, não tendo dimensões reais. Talhadas pelo
machado, como foram, elas apesar disso são impalpáveis e insubs-
taneiais. Os planos que Cézanne descobriu esvanescem-se em abstra-

86
ções einsteinianas de carne. Não têm frente, nem costas, e natural­
mente não têm lados. Dali parece sempre ver através do sistema de
encanamento. Picasso, sendo mais escorpiônico, procura um substrato
mais sólido, mas, por mais que gire o eixo, suas figuras são compostas
em um único plano — e isso é papelão. Acostumamo-nos tanto a
essa veracidade de papelão que nada vemos de antinatural nela.
Mas, quando recuamos alguns passos e olhamos com os olhos de
um Renoir, podemos discernir uma tremenda diferença.
Isso é tudo quanto tenho a dizer, no momento, a respeito do
rosto “alargado”. Agora vou dar um passeio pelo Pare Montsouris
a fim de estudar o lago, os cisnes e o gramado...

Caminho ao longo do Boulevard St, Michel esta noite, estudando


as reproduções nas vitrinas. Estudando órbitas de olhos, e lábios
principalmente. Dou com um grupo de mulheres de Renoir. Desco­
bri de novo inteiramente a boca sorridente e curvada para cima,
que aumenta a redondeza de todos os seus rostos de mulher. Uma
boca quase igual a uma vagina, se colocada à moda chinesa. Decidi­
damente bocas de Renoirl Daí para os rostos antigos — de todas as
escolas e idades. Examino a modelagem empregada por vários dos
modernos. O auto-retrato de Cézanne — aquela cabeça ligeiramente
calva com uma madeixa de cabelos caspentos caindo sobre seu
engordurado capote preto — um retrato pavoroso, de qualquer ponto
de vista. Absolutamente não há sentido em fazer auto-retratos com
tal roupa e com personagem tão desinteressante. Contudo, as órbitas
dos olhos interessaram-me. Uma técnica tão simples — mas na qual
falho constantemente. Só que desta vez eu vi um pouco mais, vi que
ele havia levado os planos giratórios de luz e sombra até dentro
do próprio globo ocular ou, pelo menos, dentro da órbita. Indo
para casa no metrô, fiquei tão interessado naquele pedaço de carne
acima do globo ocular, em sua espaçosidade e voluptuosidade, que
passei minha estação... Há vários outros pontos no rosto humano
que são sensual e misteriosamente fascinantes — a depressão en-
baixo do nariz, a parte inferior do próprio nariz, o lóbulo da orelha,
por exemplo. Se começa a concentrar-se nessas coisas, você se perde
em introspecção. O pedaço de carne sobre o olho em uma mulher
pode ser encantador. Que grande lugar o olho ocupa! Só recente­
mente percebi isso: vou aumentar a proeminência da órbita a partir
de agora. Notei também, em meus exames microscópicos, que quanto
menos a orelha é remendada, melhor. Tão grande parte da cor de
vida do rosto fica apagada nas reentrâncias da orelha que, se você
não usar suas cores com parcimônia, a orelha se toma monstruosa.
O verdadeiro matiz de sangue, um matiz vazante, por assim dizer,
parece concentrar-se no lóbulo. Certo?

87
Dedução banal, mas antes tarde do que nunca. Contudo, refle­
tindo sobre as infinitas variedades de retratação do rosto, perguntei
a mim mesmo se você já pensou em fazer uma palestra sobre as
várias feições da fisionomia, comparando a visão ou técnica de um
homem com a de outro. As bocas de Da Vinci, em comparação com
as de Rubens, Renoir, Cézanne, Picasso etc. Os olhos de Botticelli,
em comparação com os de.Cimabue, Giotto ou Van Gogh. Muita
coisa talvez pudesse ser dita nesse sentido — quero dizer, pela disse­
cação e concentração em itens isolados do rosto, mais do que na
“expressão”, que é uma qualidade da alma e fundamentalmente não
analisável. Sei perfeitamente, em relação a escritores, como cada
um lida com o artifício de gesto, conversação, devaneio, exclamação
e assim por diante. A gagueira de Herr Peeperkorn, por exemplo —
que trabalho monumental! Gagueira elevada a sua suprema signifi­
cação. Como se Thomas Mann, esculturando a figura humana, tivesse
concentrado toda a sua atenção nesse único detalhe e, assim, nos
tivesse dado o segredo do caráter do homem.
Sim, eu gostaria de ouvir você falar sobre o rosto! Gostaria de
saber se antes de mim outros homens preocuparam-se com glóbulos
oculares ou lóbulos de orelhas. Sem dúvida se preocuparam. Balzac
diz em algum lugar, penso que foi a George Sand, como escreveu
tantos e tantos livros maus, este para aprender francês, aquele para
aprender a arte de descrição, aquele outro para aprender o jeito de
conversação etc. Sem dúvida, anatomistas como Rembrandt, Rafael
e Rubens devem ter muitas vezes também separado em partes a
figura humana e durante períodos sem fim visto só esta ou aquela
que os deixou perplexos e intrigados. Quando você começa a con­
centrar-se dessa maneira, é espantoso o que descobre. Pois, como
você bem sabe, a gente pode olhar coisas durante toda a vida e
não vê-las realmente. Este “ver” é, em certo sentido, um “não ver”,
se você me entende. É mâis uma busca de algo, na qual, estando
vendado, você desenvolve os sentidos do tato, do olfato, da audição
— e assim vê pela primeira vez. Um dia, por estranho que pareça,
você vê de repente o que faz um carro. Você vê o carro no carro
— e não a imagem-chavão que foi ensinado a reconhecer como
“carro” e aceitou pelo resto de sua vida como expediente para poupar
tempo. O desenvolvimento dessa faculdade, para um artista em qual­
quer reino, é que faz parar o relógio e permite a ele viver plenamente
e livremente. Ele sai de ritmo com a multidão e, ao fazê-lo, “cria
tempo” para ver o que o cerca. Se estivesse movendo-se (vivendo?)
como os outros, permanecería surdo e cego junto com eles. É a
parada voluntária que realmente o põe em movimento celestial e
lhe permite ver, sentir, ouvir, pensar. Que me diz?
Quando estava ocupado escrevendo Capricorn, deixei de per­
ceber todas essas coisas de que lhe falo agora. É só agora, quando

88
estão envolvidas apenas minhas faculdades puramente críticas (para
meu estudo sobre Balzac), que os elementos sensuais de meu ser
vêm à vida. Agora, enquanto medito sobre as fases da vida de Balzac,
vejo com extraordinário prazer todos os insignificantes itens que
entram na feitura da cor e movimento de vida. Parado diante da
vitrina no começo desta noite, fiquei absorto na forma dos lábios de
um homem — o homem ao meu lado — que ele de repente
percebeu meu olhar e olhou-me carrancudo, o que me acordou. Mas,
olhando aqueles lábios, eu certamente não pensei por um momento
sequer no dono deles. Para mim, eram apenas lábios, item número
946572 no catálogo do museu de lábios de Henry Miller. Eles per­
tencem mais à vitrina do que a Monsieur Tel et Tel. E mais a Giotto,!
Botticelli, Da Vinci, do que à vitrina. Finalmente, seguindo ainda
mais a tendência, cheguei a imaginar efetivamente a formação de
lábios no útero — toda a genética de lábios. E, se lutasse mais um
pouco, talvez eu tivesse visto a mão do Criador quando se moveu
sobre a carne incoada e decretou que fosse lábios!
Isso me faz lembrar que onde eu erro tantas vezes nas aquarelas
é em não usar o pincel “pequeno”, como observei antes. Eu deveria
adquirir paciência para construir a carne pouco a pouco, andando
às apalpadelas, à medida que penso ou sinto o significado de cada
item na fisionomia. Na pintura a óleo, esse negócio de item por
item, polegada a polegada, parece muito mais evidente. Às vezes
eu vejo todo o trabalho como uma bela obra de mosaico, o que
ela é, naturalmente. Chumbo e vidro, penso muitas vezes comigo
mesmo. Nada diferente da janela de vidro colorido de uma catedral.
Em Rouault isso é pronunciado. Mas nele o mosaico é tão grandioso
e arquitetônico que esse trabalho de formiga para modelagem é
perdido de vista. Vejo-o derramando o vidro fundido sobre o chumbo
que se esfria vagarosamente. Ele não espera para obter uma pequena
lâmina ou glóbulo, mas esvazia o balde sobre o rosto, o corpo ou a
estrada. É capaz de fazer isso porque, ao contrário de seus confrères,
realmente sabe tudo a respeito de vidro colorido. Sente-se à vontade
com seus matizes fundidos, seus chumbos escuros e sua estrutura
de ferro. (Eu fiz várias cabeças que mais tarde pessoas me disseram
lembrar-lhes Rouault. Não é de admirar! Lembro-me das disposições
de ânimo em que fiz esses trabalhos. Lembro-me das explosões de
selvagem liberdade.)
Em meu Álbum de Recortes, onde ocasionalmente vomito esses
ataques epilépticos, tenho um que considero especialmente notável.
Foi irreconhecível durante algum tempo, até eu apanhar o machado
(o “machado" sendo os creions) e brandi-lo com todos os meus
músculos e vontade. O resultado é uma aterrorizadora insanidade,
quando visto de fora. Em sua essência, porém, é uma descrição
muito terna. Viola todos os cânones, menos um — sinceridade. É

89
tão sério e sincero que, se você o estudar pacientemente, ele o fará
chorar. Porque uma linha, também, se seguida para trás até o impulso
original, pode revelar todas as emoções do coração. Mesmo quando
o efeito é “cruel”, a batida e o ritmo da linha revelam a verdade do
momento em que ela nasceu. (Fico sempre espantado quando pes­
soas fazem julgamento ético sobre um trabalho. Lembro-me de um
francês que me disse, quando lhe dei de presente uma de minhas
melhores obras: “Belo trabalho, sim, realmente, mas não é um pouco
aterrorizador?” Aquela pergunta despertou-me de repente para o
aspecto externo do quadro, sua significação óbvia. Eu havia esque­
cido tudo a respeito do tema. Estava pensando apenas em como ele
fora “bem-sucedido”.)

Em Neuilly, no outro dia, fui atraído por uma minúscula


aquarela na vitrina de uma livraria. Um homem de macacão, com
chapéu de feltro e óculos, usando botas enormes, está parado diante
da aquarela murmurando e resmungando para si mesmo. Eu gosto
de ouvir solilóquios, especialmente solilóquíos críticos. Aproximei-me
dele e observei-o atentamente. Estava dizendo que não era má, a
aquarelle, mas muito de amador, mal-acabada. A pressa com que
fora feita é que parecia irritá-lo. Ainda olhando para o quadro e sem
dirigir a pergunta diretamente a mim, ele indaga, como que ainda
falando consigo mesmo (ainda refletindo sobre o quadro), se a
árvore não está muito vaga. (O quadro, devo dizer, era uma pequena
cena do Sena — uma chata, uma ponte, uma árvore, uma corda —
muito simples e feito com muita perícia.) Eu disse em voz alta, sem
olhar para ele, mas fitando firmemente o quadro: “A árvore está
perfeita. O homem disse o que tinha a dizer. É uma árvore e isso
basta.” Com o que se iniciou uma animada discussão sobre aquarelles.
O homem era um negociante de porcos e um colecionador amador
de aquarelles. Só comprava o que lhe agradava. Mas aparentemente
exigia algo mais do que um esboço de cinco minutos. Queria que
uma árvore tivesse folhas ete. Eu repeti que a árvore era muito
obviamente uma árvore, com folhas ou sem folhas. E depois acres­
centei que eu também era pintor (sic!) e que aquarelas eram minha
especialidade. Isso provocou renovado interesse de sua parte. Pe­
diu-me desculpa por ser excessivamente crítico e perguntou o que
se poderia esperar de um homem que é obrigado a passar o dia
inteiro com porcos. Eu lhe disse que estava encantado em ouvir
isso e que dava à sua opinião mais valor que à dos críticos. Isso
deu começo às coisas. De repente, como que por magia, estávamos
falando animadamente, como velhos amigos, a respeito de Cézanne,
Rouault, Braque, Utrillo, Dostoiévski, Hamsun, Francis Carco, Blaise
Cendrars etc. Espantosas as coisas de que falamos. Finalmente, ele
me contou como, uns vinte anos antes, estava um dia em Montmartre

90
e, numa loja de arte, vira algumas pinturas de um homem chamado
Utrillo. Esse homem, então desconhecido por ele, levara as pinturas
para serem emolduradas, mas, não tendo dinheiro para pagar as
molduras, fora obrigado a deixá-las com o comerciante de arte. Ele
confessou que não ficara muito impressionado com as pinturas, mas
um amigo que ocasionalmente estava em sua companhia comprou
os Utrillos e ele comprou alguns outros quadros “que lhe agradaram”.
O amigo, naturalmente, mais tarde vendeu os Utrillos por uma boa
importância. Perguntei-lhe se depois havia mudado de opinião a
respeito de Utrillo, ao que respondeu com muita sinceridade e humil­
dade: “Não! Em seus quadros há algo de sórdido, de que eu não
gosto. Eu sei que agora ele é famoso, mas isso não me importa.”
Gostei imensamente de sua resposta e disse-lhe isso. Depois, sem
transição, lancei-me num elogio do livro de Carco sobre Utrillo. Falei
a respeito de Utrillo como se o conhecesse intimamente. Falei tão
convincentemente, mesmo em meu francês ruim, que arranquei lágri­
mas dos olhos do comerciante! Mas o que me pegou foi isto — a
palavra soufrance mexeu em alguma coisa nele. Ele não conseguia
esquecê-la. Soufrance explicava tudo. “Ecoutez, monsieur”, disse ele,
“moi, je ne suis qu’un ignorant, un sacré marchand de cochons, mais
}’ai vécu... j’ai mes experiences de la vie... fai souffert la vie
d’un artiste, surtout la vie d’un peintre, nest qu’un Calvaire. Ce que
vous dites, monsieur, me touche profondêment. Je m’excuse d’avoir
faii la critique d’une oeuvre qui est probablement au-dessus de ma
compréhension. Moi, je ne suis qu’un amateur. J’aime les aquarelles.
Je les garde chez moi pour le simple plaisir de les contempler. Cest
curieux, mais cest la vérité. Si vous avez du temps, monsieur, je
vous invite à m’accompagner pour que je poisse vous montrer ma
pettite collection...” Fui com ele e vi sua coleção. Tomei uns dois
conhaques com ele e choramos juntos, o negociante de porcos e eu,
por causa da crucificação do artista. Um dia maravilhoso! Tudo por
causa de um Monsieur Asselin, peintre, que je ne comais pas. Vive
Monsieur Asselin! Vive Vaquarelle! Vive les marchands de cochons!
Par um beau jour, Vaquarelle, même celle d’un inconnu, peut ouvrir
les portes du Paradis. Vive la Seine, et la chaland, qui passe sous
les ponts! Vive Varbre, sans ou avec feuilles! Vive le soleil! Vive
Asselin!
O oposto disso é uma experiência com uma gorda funcionária
dos Correios. Estando ela curiosa por um rolo de aquarelas que eu
enviava para minha exposição em Washington e sendo tempo de
Natal, impulsivamente ofereci-me para pintar uma aquarela para ela
enquanto estivesse em Londres. Senti pena dela, sentada atrás das
grades o dia inteiro, colando selos em cartas de outras pessoas. Eh
bien, dei-lhe uma quando voltei de Londres. Ela estava ausente na­
quele dia, por isso deixei-a com o chef du bureau. Alguns dias depois,
cheguei e cumprimentei-a. Ela mal me cumprimentou. Esperei até

91
ter selado minhas coisas, esperei enquanto ela fazia o troco, esperei,
esperei... e nem uma palavra dela a respeito da aquarelle. Final­
mente, pensei comigo mesmo — talvez o chef tenha esquecido de
entregar-lhe. “Recebeu a aquarela que deixei aqui no outro dia?’’,
perguntei quando me preparava para sair. Ela me olhou friamente,
baixou os olhos e disse em tom irritado: “Vaquarelle! Oui, oui, on
me Va donrtée. Ouil” Et cétait tout\ Virei nos calcanhares e fui em­
bora. Dei a volta ao quarteirão três vezes, debatendo me voltava e
lhe perguntava que diabo quisera dizer com aquela insolência ou
se lhe pedia que me devolvesse minha aquarela! Eu estava furioso.
Finalmente, encerrei o caso em minha mente, chamando-a “vieux
cott, um salope, un chou, une branleuse, une grosse legume, une
abrutie..
A aquarelle era um pouco misteriosa, admito. Não se poderia
dizer se eram dois pássaros lutando no escuro ou uma cachoeira sob
a luz do sol. Para mim estava muito evidente: era “claro e escuro”,
a confluência de todas as justaposições de cor. O carrefour do cre­
púsculo ou — apenas “um peido vidrado e úmido”, se quiserem.
Mas como explicar tais sutilezas a uma ignorante? E em mau francês!
Desisti. Passei o resto do dia conjugando verbos franceses, formando
gêneros, escolhendo substantivos elegantes, cínicos, sinistros. Meu
coração de aquarelista estava ferido até o âmago. Era uma derrota
régia. Mieux vaut un marchand de cochons! Si je ne suis pas un
Asselin, je suis tout de même un Henry Mitler. J’ai du coeur, quoi!
Je suis un sensible. Cest une sacrée vie, cette vie sacreé cfun
peintre....

Domingo, 12 de março de 1939


2 horas da madrugada

Emil, preciso registrar isso antes de ir para a cama ou nunca


o farei. Uma noite, com meu amigo, “o Azteca”, como o chamo.
Aqui no estúdio. Ao jantar, ele começa falando, como sempre faz,
a respeito do período imediatamente após a guerra. Vépoque bohème.
Não sou capaz de contar-lhe isso de modo ordenado. Basta indicar
os pontos principais. É uma boa nota para encerrar este pequeno
livro, porque é extremamente humana e talvez nem um pouco triste.
Como lhe disse antes, esse meu amigo estava intimamente ligado
aos poetas e pintores do período. Ele próprio era pintor, ruim, acho
eu. Saiu da guerra em estado de transe, tão chocado por tudo quanto
experimentara que não podia readquirir a alegria da mocidade.
Incluía entre seus amigos figuras como Blaise Cendrars, Max Jacob,
Kisling, Leger, André Salmon. Era um copain de Modigliani, Apoili-
naire, Vlaminck, Picasso, Derain, Braque, Juan Gris, Diego Rivera
e outros.

92
O que iniciou a conversa dessa noite foi uma observação que
ele fez a respeito de Picasso e da origem do cubismo. Praticamente
me deu o dia e hora de seu nascimento. A repentina transição do
período azul para o africano. A curiosa coincidência entre a floraison
intelectual de Picasso e os tratamentos que estava recebendo por
causa de uma doença misteriosa. Formou-se em meu cérebro um
vivido retrato de Picasso sentado na velha Rotonde com os outros
— nem jovial, nem taciturno, mas um pouco desinteressado. Bebe­
mos só Vittel.
Prossigo rapidamente, porque só posso dar-lhe os pontos prin­
cipais ... Vlaminck é então um ciclista, um homem do campo, “um
homem terno’’, sempre falando entusiasticamente sobre pinturas.
Derain já é gordo, extremamente lido, bebedor terrível, encantador
e tudo o mais. Apollinaire é o metteur-en-scène. Max Jacob, sempre
bufão e espirituoso, é também o judeu de bom coração, que pega
o trabalho de Picasso e, atrelado a uma carrocinha, percorre Paris
tentando vender telas de Picasso.
Há reuniões na rue Ravignan, onde Picasso então trabalhava
e dormia — pouco acima da Place des Abbesses, em Montmartre.
Você provavelmente se lembra do lugar. Juan Gris está lá — bonito,
intelectual, quase sec. Também Diego Rivera, que logo vai fazer as
mais maravilhosas imitações das pinturas cubistas de Picasso. Ele
tem uma barba árabe, um ar de Toledo. (Um pouco mais tarde, na
praia de Arcachon, ele dará leite — quando é lua cheia.)
Depois Bougival... os banquetes ao ar livre à margem do Sena,
as discussões sobre escultura negra, os primtivos, mitologia e assim
por diante. Detrain talvez o mais sensível de todos. Braque aplican­
do-se às teorias à moda intelectual. Vlaminck batendo no peito e
berrando como um boi. Tudo está dentro do saco. É preciso apenas
um toque de gênio para explodir o paiol de pólvora. E naturalmente
Picasso o faz!
Para mim era tudo como uma descrição do mundo em processo
de nascimento. (Tudo não acontece em lampejos, em momentos de
inspiração?).
Soutine também entra no quadro. O alegre companheiro de
Modigliani que, até seu terceiro ou quarto aperitivo, é brilhante e
divertido — depois disso um louco, un exalté. (Soutine está agora
vivendo embaixo de mim, com seu novo modelo de cabelos verme­
lhos, um Soutine em todos os aspectos. Parece agora domesticado,
como se tentasse recuperar-se da vida selvagem de outros dias. Hesita
em cumprimentar-nos na rua, pelo temor de que nos aproximemos
muito dele. Quando abre a boca, é para dizer como está quente ou
como está frio — e para perguntar se o rádio do vizinho não inco­
moda a gente tanto quanto a ele.)

93
Seja como for, o período em questão é ainda de verdadeira ca­
maradagem, de reuniões, de festas e de bebida. Quando está frio
demais para trabalhar, desenterram-se algumas garrafas de vin rouge,
tranca-se a porta e vai-se para a cama com o modelo. Durante meses
depois da guerra, meu amigo continuou a usar o uniforme, que era
pequeno demais para ele — não tinha dinheiro para comprar roupas
civis. De vez em quando havia um duelo sensacional, por uma ninha­
ria, seguido por um animado banquete e um estouro no preço das
pinturas (para aqueles envolvidos). Alguns ficavam ricos da noite
para o dia e, naturalmente, esqueciam depressa seus camaradas
menos afortunados. Max Jacob procura retiro num mosteiro, onde
continuará a pintar e escrever. Isso me faz lembrar uma linha que
encontrei recentemente, no livro de Chesterton sobre São Francisco
de Assis: “Era de fato toda sua (de São Francisco) a função de
dizer aos homens para começar de novo e, nesse sentido, dizer-lhes
para esquecer.”
Todos eles, de Cendrars para baixo, tiveram um batismo terrível
na guerra. Cendrars, o eterno aventureiro, precisou aprender a fazer
tudo de novo —• com a mão esquerda. Seu mundo inteiro está des­
truído. Seus melhores amigos estão mortos, suas ambições mortas no
nascedouro. Todavia, quando ouço tudo isso, percebo que na maioria
deles a catástrofe serviu para aumentar suas qualidades humanas.
Eles parecem “ternos” em comparação com a geração de hoje. Agora
estão dispersos, cada um deles famoso à sua maneira, cada um deles
trabalhando sozinho, indiferente talvez ao destino dos outros.
Em seu longo monólogo desta noite, meu amigo trouxe à vida
para mim todos eles — e a época e o clima. Falando de Paris, a
Paris em mudança que ele conheceu, falando dos “cinzentos” que
fazem Paris, ele diz: “E preciso uma longa educação para apreciar
as nuanças de cinzento... c’et toute une histoire”. Como é verda­
deiro! De Paris a Istambul, Marrocos, Toledo, e sempre os “valores”
de cada clima, cada cena. Depois de volta a Paris, àquele sombrio
colorido que a princípio parece sórdido — até a gente começar a
reconhecer aqui e ali, pouco a pouco, as nuanças de cinzento. Dos
“cinzentos” ele passa para o elogio da poesia de Léon Paul-Fargue.
“O mestre dos cinzentos”, é como o chama. “O mágico das nuanças.”
Sei o que ele quer dizer. Sei que mágico Paul-Fargue é. Lê-lo faz
com que minha língua fique presa.
Do mágico para o “mago” — Balzac. A doutrina esotérica. A
religião dos magos. No bolso de seu colete, meu amigo sempre car­
rega o pequeno fetiche contendo aqueles preciosos presentes que os
Três Magos do Oriente levaram certa vez. Queima um minúsculo
pedaço de mirra para mim, a fim de dar-me uma idéia do que quer
dizer “odor de santidade”. Junto com isso, um discurso sobre a
doutrina de Unidade, como foi revelada por Claude Saint-Martin,

94
le philosophe inconnu. En passant, um perfil de Jolas olhando para
a nascente do Reno, indeciso se 6 um marechal-de-campo ou uma
reencarnação de Wotan, Entrementes, faz referências críticas à
taumaturgia de Paracelso e à verdadeira significação da pedra filoso­
fal. Pede abruptamente que descubra para ele tudo quando puder
sobre o mistério de Mesa Verde. (Balzac também era louco pelos
índios!). Não me interessaria ver alguns alfabetos maias? Mostra-me
então os continentes perdidos — em meu mapa no estúdio. Explica
por que acredita que houve uma raça de homens verde ou azul, tanto
quanto vermelha, parda, amarela, preta e branca.
E me diz: Pourquoi pas\ Exatamente o que nos deu impulso no
começo da noite. Foi essa expressão de Picasso que me pôs em mo­
vimento. Porquoi pas\ para tudo!
Quem é o homem que triunfa? Aquele que crê. Que o “inteli­
gente” duvide, critique, categorize e defina. O homem de coração
crê. E o mundo pertence àquele que mais crê. Nada é tolo demais,
trivial demais, artificial demais ou estupendo demais para o homem
que crê. Conhecimento esmaga o espírito, crença abre a pessoa,
liberta a pessoa. Quando ouço meu amigo, às vezes me pergunto o
que diríam as pessoas se pudessem ouvir o que se passa entre nós.
Permita que eu lhe conte, nunca ele me disse coisa alguma tão fan­
tástica que eu não pudesse engolir. De poesia e pintura à mitologia
e alquimia, das hierarquias mundanas às sublimes, tudo tem unidade
para mim e sentido também. Sentido profundo.
Está ficando tarde e eu estou cansado. Mas pensei que você
sentiría prazer em ter um sopro dessa festa de conversa. Muitas
vezes, à noitinha, pensei em Reichel, cujo mistério de vidro está
pendurado atrás de mim. Ele também pertence a este mundo de
magia e mistério. Ele não vem mais, Reichel, mas seu espírito está
aqui — e seus quadros falam incessantemente. Penso nele em suas
visitas semanais a Notre Dame, entrando pela Porte Astrologique e
subindo até a torre “para sentir as chimères”, como diz. Depois
descendo para sair pela Porte Chimique. Mas sempre esperando que
um dia abram para ele a Porte Magique, Reichel, diga-se de passa­
gem, tem um medo mortal de decompor-se em “um fluido químico”
quando morrer. Não quer ser arrolhado em uma garrafa. Tem medo
de ser “mal usado”. Mas tudo isso fica para outra vez.
“É engraçado, como costumava dizer Reichel. Mas está ficando
tarde. Esta noite dormirei com as estrelas, os símbolos, os fluidos e
os sonhos de outra época. Je me griserai avec les paroles des poètes
maudits. Vive la magic! Vive le magisme! Bonne nuitl

95
Postscriptum

Depois de comer um pouco de gengibre de Hong Kong, depois


de preparar a lâmina de vidro com cores, depois de comprar uma
espátula, eu me instalo para meu primeiro gouache. Daqui por diante
vou pintar para mim — decorar minhas próprias paredes.
Mas primeiro uma coda ao negócio de Picasso. Foi quando
estava tomando as injeções que Picasso, que então começara a pintar
seriamente, se entregou ao trabalho noturno. De manhã seus amigos
encontravam as pinturas caídas no chão,
Isso é tudo! A Vida Notumal

96
Reflexões Sobre o Caso Maurizius
(Uma humilde avaliação de um
grande livro)

HENRY MILLER

1974
Este romance* de um dos grandes escritores da Alemanha,
baseado em um famoso erro judiciário, como nosso caso Sacco e
Vanzetti, teve repercussões em todo o mundo.
Com a plenitude e profundidade de visão que distingue o artista
criativo, Wassermann expandiu o tema a um grau que lhe dá a
magnitude de tragédia grega.
Etzel Andregast, rapaz de dezesseis anos, desempenha um papel
singular e muito perturbador neste drama de paixões conflitantes.
Graças à sua fanática crença na justiça e na luta por ela, o conde­
nado Maurizius, após passar dezoito anos na penitenciária, é libertado.
O livro não oferece consolo, nem soluções. Todos os persona­
gens envolvidos no caso sofrem destinos trágicos, com exceção de
Anna Jahn, que cometera o crime pelo qual Maurizius foi injustamente
punido. Etzel, o herói do livro, é definitivamente desgraçado por
sua experiência. O próprio Maurizius, pouco depois de sua libertação,
suicida-se. O pai de Etzel, que, como promotor público, foi
responsável pela injustiça praticada contra Maurizius, desintegra-se
completamente.
Uma história sombria e horrenda, contada através de sinistros
vislumbres, que revelam as alturas e funduras da alma germânica
esperando o advento de um líder que provoque sua dissolução.
A ação desenvolve-se na cidade de Hanau, principalmente, e
em Berlim, onde Etzel segue a pista de Waremme; também na
penitenciária de Kressa, perto de Hanau, onde Maurizius está preso.
A história inicia-se dezoito anos depois de ocorrido o famoso
crime. Acompanhamos os incidentes que levam ao assassínio da
esposa de Maurizius através dos olhos e lábios dos vários personagens
— o próprio Maurizius, Waremme-Warschauer, o velho Maurizius
e outros. Tudo gira em torno do falso testemunho de Waremme,
amigo íntimo de Maurizius. Quem disparou a anna permanece em
mistério quase até o fim.

* The Maurizius Case de Jacob Wassermann, traduzido por Caroline


Newton e publicado por Horace Liveright, Nova York, 1929.

98
O rapaz Etzel, obcecado pela inocência de Maurizius, parece
motivado por um senso de dever e justiça superior ao de seu infle­
xível pai, que, em sua personificação da lei, assume as proporções
de um monstro. Mas na realidade, embora o rapaz não tenha
consciência disso, seu feito cavalheiresco é impulsionado por espírito
de vingança: ele quer destruir o trabalho de seu pai. No fundo de
sua mente está o obscuro sentimento de que seu pai é responsável
por tudo. Privado da afeição de sua mãe, ele se transforma em um
vingador. Procurando a libertação da vítima inocente, Maurizius,
ele inconscientemente procura a libertação de sua mãe, que, como o
prisioneiro, foi levada a sofrer injustamente nas mãos do pai.
O tema da história não é apenas a improriedade da justiça
humana, mas a impossibilidade de alcançá-la. Todos os personagens
testemunham isso, à sua própria maneira, mesmo aquele “Pilar de
Justiça”, o próprio Herr Von Andergast, Parece que justiça é mera­
mente um pretexto para praticar crueldade contra o mais fraco.
Justiça, divorciada de amor, torna-se vingança.
Em volta da figura de Maurizius, cuja fraqueza de caráter
precipita o crime, gira como um redemoinho verdadeira constelação
de figuras cujos motivos, paixões e interesses estão inextricavel-
mente entrelaçados. A questão de justiça, o tema subjacente, é
praticamente abafada pela riqueza de drama subsidiário engendrado
pelo que se podería chamar de destino.
Algumas das cenas esclarecedoras, assim como angustiantes,
ocorrem na penitenciária durante as conversas entçe Maurizius e o
Barão Von Andergast, e entre Maurizius e um velho carcereiro
chamado Klakusch.
“Quando sozinho”, diz Maurizius, “um ser humano não tem
alma... E conseqüentemente, sozinho, ele não tem Deus... para
mim ninguém morre.”
São particularmente reveladores os diálogos com Klakusch, que
é uma espécie de figura dostoievskiana, a voz da própria consciência.
Eles atingem os limites de compreensão humana. Por exemplo, a
respeito da questão de justiça...
“Que quer você dizer com justiça?”, pergunta Maurizius.
“Ninguém devia realmente usar essa palavra”, responde Klakusch.
“Por que, Klakusch?”
“Ê uma palavra igual a um peixe, escorrega da mão quando a
gente a segura.” Depois, acrescenta: “Se a gente tivesse voz, o que
não poderia ser alcançado? Mas está faltando a voz.”
Falando de Klakusch a Herr Andergast, Maurizius observa:
Havia algo de notável no homem. Ele fingia ser tão simples, parecia

99
tão inofensivo, mas depois de estar com ele algum tempo, a gente
tinha a impressão de que conhecia tudo no mundo e que a gente
precisava apenas perguntar-lhe a respeito. Mas ele estava interessado
apenas na penitenciária. Não falava em outra coisa senão nos
presidiários...”
“Posso dizer-lhe o que é um criminoso”, falou Klakusch um
dia. “Criminoso é alguém que se arruina, isso é o que ele é. O ser
humano que se arruina é um criminoso.”
Em outra ocasião Klakusch diz a Maurizius: “Eu gostaria de
saber por que você está sempre triste. Eu digo sempre aos rapazes:
“Tudo é regulado para vocês, vocês têm uma boa cama, alimentação
suficiente, têm um teto sobre as cabeças... que mais desejam?
Nenhuma preocupação, nenhum negócio, não precisam lutar... que
mais desejam?”
Depois de uma ou duas observações de Maurizius, Klakusch
continua: “Mas, entenda isto, o juiz não pode agir de maneira dife­
rente. O erro é este: Quando um juiz condería, ele, como ser humano,
está condenando um ser humano e isso não deve acontecer.”
“Realmente”, pergunta Maurizius, espantado, “você pensa que
isso não deve acontecer?”.
“Não deve acontecer”, repete Klakusch em tom inesquecível.
“Um ser humano não deve condenar um ser humano.”
“E que dizer de punição?”, replica Maurizius. “Punição não
é necessária? Tem sido necessária desde que o mundo começou.”
Klakusch inclina-se sobre Maurizius e segreda: “Então, precisa­
mos destruir o mundo e criar pessoas que pensem de maneira dife­
rente* Isso tem sido martelado em nós desde a infância, mas nada
tem a ver com seres humanos verdadeiros. É uma mentira, isto é
o que é. Uma mentira. Aquele que pune afasta com mentiras seu
próprio pecado.”
Levando o assunto mais longe, Maurizius tenta acentuar (nada
menos que Maurizius, o condenado!) que a sociedade abandonou
há muito tempo o verdadeiro princípio de punição, assim como o
princípio de retaliação; a proteção da sociedade e a melhora do cri­
minoso eram a única preocupação. “Klakusch”, diz ele, “sustentou
que os iniciados simplesmente riem da idéia de proteção ou melhora;
como se pode impedir que uma pessoa insana lacere seu rosto com
as próprias mãos? O mundo de seres humanos é uma pessoa assim
insana; pretende proteger aquilo que destrói constantemente por sua
falta de compreensão. Por essa razão, Klakusch disse: 'Pare, mundo
de humanos, e ataque o problema por um ângulo diferente!’”

* O grifo é meu.

100
Finalmente chegamos a este espantoso dêroulement, como é
narrado por Maurizius ao Procurador-Geral Andergast. O que se
segue é apresentado imediatamente em seguida à citação acima:
“Tivemos essa conversa em uma tarde de dezembro. Desde
manhã, a queda de neve vinha escurecendo a cela e, antes de sair
Klakusch disse: ‘Eu não gosto mais das coisas, meus dias estão
completos e acabados. Eu sei demais sobre coisas, nada mais pode
entrar em minha cabeça ou meu coração.’ Quando voltou à noxtinha
para esvaziar o balde — sempre fazia isso para mim, embora, de
acordo com o regulamento da casa, eu próprio devesse fazê-lo —
quando ficou lá parado diante de mim, juntei coragem e perguntei-
lhe: ‘Diga-me, Klakusch, você pensa que há pessoas inocentes
sentenciadas nesta casa?’ Ele pareceu despreparado para a pergunta
e respondeu hesitante: ‘É bem possível.’ Continuei meu interrogatório:
‘Quantas pessoas inocentes que foram condenadas você conheceu em
seu trabalho, quero dizer, conhecidas como inocentes?’ Ele pensou
por algum tempo, depois contou nos dedos, murmurando os nomes
em voz baixa. ‘Onze.’
‘“E você acreditou imediatamente na inocência delas quando
vieram para cá pela primeira vez?’ ‘Não, isso não’, respondeu ele,
‘isso não. Se uma pessoa acreditasse na inocência delas e depois
precisasse observá-las consumindo-se, se a pessoa tivesse certeza,
então, eu digo..Insisti com ele: ‘Então, então o quê, Klakusch?’
‘“Bem, então’, disse ele, ‘então, falando estritamente, a pessoa
não podería continuar vivendo.’ Já estava escuro em minha cela. Eu
ainda podia perceber sua figura, por isso aventurei a pergunta que
tinha no coração e que desejava fazer. ‘Bem, como estão as coisas
em relação a mim, você me considera culpado ou inocente?’ E ele:
‘Preciso responder?’
“ ‘Eu ficaria satisfeito se você me respondesse claramente e
sinceramente’, disse eu. Ele pensou de novo, depois disse: ‘Está certo,
amanhã cedo você terá sua resposta.’ E no dia seguinte bem cedo
veio a resposta. Ele se enforcara no batente da janela de seu quarto.”
De fato, bem poderia ser essa a resposta do autor ao enigma,
pois, à medida que a história se desenrola, à medida que os negros
fios em que o crime está atado são desfeitos, cada um dos perso­
nagens envolvidos, desde o severo promotor público até o fraco
Maurizius, até mesmo Etzel, o libertado, é visto como igualmente
culpado. A própria sociedade é acusada: estamos todos manchados
por culpa. Este parece ser o ponto de vista do autor. E, portanto,
não pode haver solução, nem fim do crime, nem fim da injustiça
do homem para com o homem, exceto através do tedioso e penoso
aumento de compreensão, simpatia e tolerância. Tentando fixar a
responsabilidade, procurando o motivo e a causa de crime, afunda­

101
mos em um pântano do qual parece não haver possibilidade de
saída. Tudo é ilusão e delírio. Não há terra firme em que ficar.
Crime e castigo estão arraigados na própria fibra do ser humano.
Mesmo os amantes de justiça — talvez especialmente os amantes de
justiça — são condenados perante o superior tribunal de amor e
compaixão.
O pequeno Etzei Andergast, que Wassermann retrata como um
Davi lutando contra Golias e que parece a própria encarnação da
justiça, é uma figura digna do mais sério estudo. Como revelam as
continuações de The Maurizius Case *, o autor parece ter ficado
desnorteado por sua própria criação. Morreu antes de ter podido
dar-nos o livro final, que exporia a plena natureza dessa enigmática
criatura. Há algo monstruoso em Etzei Andergast: ele é fascinante­
mente atraente e repelente ao mesmo tempo. Representa o novo tipo
de mocidade que tornou possível o advento e influência de Adoif
Hitler. Podería mesmo ser considerado um Hitier embriônico. Ele
é o “assassino da' alma’’, para usar a linguagem de suas vítimas.
No segundo volume da trilogia, Wassermann dá um resumo
bastante longo de The Maurizius Case a fim de lançar mais luz sobre
o caráter maléfico do jovem Etzei Andergast.** Mais uma vez obser­
vamos horrorizados o efeito sobre Etzei da notícia de que Maurizius
foi perdoado. “Podem eles jogar-lhe (a Maurizius) uma miserável
esmola em lugar de pagar-lhe o que devem?”, grita Etzei. Nesse
ponto, o mundo transforma-se em caos para Etzei; não há mais
sentido em coisa alguma. Justiça, acredita ele, exige não que Mau­
rizius seja perdoado, mas que o Estado ou a sociedade, peça perdão
a Maurizius. O que Etzei esperava era não apenas a completa exone­
ração da vítima inocente, mas a revelação e punição de todos quantos
contribuíram para a desnecessária perseguição e sofrimento do
homem. Completamente decepcionado e frustrado, no fim como no
começo, pelos atos de seu pai, o rapaz transforma-se em uma fúria
desvairada. Como antes lhe tiraram fraudulentamente a afeição de
sua mãe, agora roubam-lhe seu triunfo. Com um pano de fundo
assim, tudo pode ser esperado quando um personagem dessa espécie
chega à maturidade. Dadas as condições apropriadas, ele é capaz
de abalar o mundo em seus alicerces. E quem se lembrará, quando
esse incrível demônio cavalgar o redemoinho, que quando menino
ele era o próprio símbolo de retidão?
Fosse ou não fosse essa a intenção do autor, é óbvio que os
mais espantosos paralelos podem ser traçados entre a situação da

* Doctor Kerkhoven (ou Etzei Andergast, em alemão) e Kerkhoven’s


Third Existence.
** Pp. 316 e 321 de Doctor Kerkhoven.

102
Alemanha, como Hitler a via, e a situação de Maurizius, como
Etzei a via.
Um dos mais obscuros, mas significativos detalhes, no que se
refere à atividade de Etzei no caso Maurizius, é a involuntária ligação
em sua mente entre o criminoso e sua própria mãe. Como diz o
próprio Wassermann, “só um negro desejo persiste nele, à medida
que a imagem de sua mãe gradualmente desaparece da memória, e
de maneira estranha esse desejo mistura-se com a notícia do assassi­
nado Maurizius, como se, daquele lado também, inocência tivesse
mandado seus espectrais mensageiros”. Por trás do desejo de salvar
e absolver o inocente Maurizius existe o anseio secreto de libertar
sua mãe e reunir-se a ela. O mistério que envolve sua mãe distante
tem a mesma textura que aquele que envolve a vítima infeliz defi­
nhando na penitenciária. O destino conspirou contra ambos. Mas
à medida que Etzei prossegue em suas investigações, a lógica das
circunstâncias tende a corroborar cada vez mais suas intuições, isto
é, que seu pai está no fundo de toda aquela horrível injustiça. Em
uma carta que escreve à mãe, mas que não pode postar porque não
sabe o endereço dela, ele diz: “Um rapaz da minha idade parece
ter as mãos e os pés amarrados por fortes cordas. Quem sabe, talvez
quando o cordão estiver cortado, a pessoa já esteja aleijada e do­
mesticada. Provavelmente é esse o propósito. A pessoa tem que ser
domesticada. Eles domesticaram você também? *... Gostaria muito
de saber o que se passa. Sei que você me compreende. Tenho a
impressão de que lhe fizeram uma injustiça. É verdade?... Você
deve saber que para mim injustiça é a coisa mais horrível do
mundo.** Não sou capaz de dar-lhe uma idéia de meus sentimentos
quando experimento uma injustiça, seja a mim ou a outros; é exa­
tamente o mesmo. Vai direto ao fundo de mim. Faz doer meu corpo
e minha alma, como se alguém tivesse enchido minha boca de areia
e eu devesse ficar sufocado no mesmo instante.”
Por que esse arraigado e obcessivo ódio à injustiça em um
simples rapaz de dezesseis anos? Obviamente só há uma razão: a
perda da afeição de sua mãe. Quem é responsável por essa privação?
Obviamente aquele monstro tirânico, seu pai. “Em sua qualidade
de mágico (isto é, em seu papel de principal frustrador e sufocador),
Etzei deu-lhe o nome de Trismegistos. Sempre que pensava no pai
em sua função punitiva chamava-o assim.” A amputação da natureza
afetiva do menino deixou-o torto, por assim dizer. Incapaz de dar
expressão aos instintos normais de amor, ele só podia afirmar-se
por meio de rebelião. Salvar Maurizius é o mesmo que salvar a si
próprio. Impossível viver neste mundo como um ser amputado,

* Pensa-se na parábola do Ganso Selvagem de Kierkegaard.


** O grifo é meu.

103
aleijado: a influência estropiadora do pai precisa ser destruída, injus­
tiça precisa ser extirpada.
Desnecessário acentuar que temos aqui o ponto crucial do dilema
de Etzel. A luta contra a injustiça, o desejo de derrubar a ordem esta­
belecida, o próprio instinto de rebelar-se, tão fundamental no coração
humano, são revelados como ambivalência. O que Etzel exige, o que o
mundo de milhões de sofredores exige, embora eles não saibam
como expressá-lo, não é a eliminação de injustiça, nem mesmo o
estabelecimento de justiça, mas a satisfação de uma fome ainda
muito mais imperiosa, porque é uma necessidade positiva e perma­
nente do coração humano. É nada menos que a condição de amor.
Aquele a quem se nega sua legítima porção de amor é aleijado e
frustrado nas próprias raízes de seu ser. Por mais nobre que seja
a causa, por mais brilhante que seja a bandeira sob a qual ele luta,
mesmo que o próprio Deus pareça estar de seu lado, aquele que
procura meramente erradicar injustiça representa uma paródia. O
ego inflado, bêbado de poder, não conhece limites: o fim é autodes-
truição. No tirano é bastante fácil acompanhar o desenvolvimento
dessa terrível lógica, mas nas pessoas corretas e indignadas o drama
tem repercussões ainda mais desastrosas. Os Etzels deste mundo,
que são encontrados de ambos os lados da cerca, não podem ter
descanso, não conhecem paz. Embora se apresentem como salvadores
dos inocentes, só conseguem causar destruição. São os enganadores
de si próprios, e a própria paixão que os leva em seu caminho 6
um veneno para o mundo. Esta parece ser a essência da mensagem
de Wassermann.
Quando Etzel foge para Berlim, a fim de seguir a pista do
perjuro Waremme, deixa para seu pai um bilhete no qual diz: “Estou
absolutamente consciente do que lhe devo. Mas nós não temos acesso
um ao outro e é inútil eu procurar algum acesso. Não posso dizer
que qualquer coisa se ergue entre nós porque tudo se ergue entre
nós... * A verdade deve vir à luz. Desejo descobrir a verdade...”
E depois, à maneira clássica, inicia a viagem que termina em um
círculo. É a velha história do herói partindo para a compulsória
missão de aventura a fim de libertar a imaginária vítima de injustiça
e assim derrubar os poderes dominantes. Em nome da verdade e
da justiça, ele se toma um agente de crime. Neste caso, como obser­
vamos, a vítima de injustiça, Maurizius, parece estar investida de
maior senso de clareza e conhecimento do que seu pretenso salvador.
Por seu sofrimento, ela atinge um grau de sabedoria que é negado a
seu libertador. Embora efetivamente nio seja Maurizius quem matou
sua esposa, porém sua cunhada, Anna Jahn, foi o senso de sua
própria culpa que o forçou a tomar-se bode expiatório. Em seu

* O grifo é meu.

104
coração, ele admite que foi culpado da morte da esposa. Maurizius
sabe muito bem que foi sua própria consciência que impôs a
punição extrema que é obrigado a sofrer. O fato de, dezoito anos
depois, quando solto de sua cela, procurar Anna Jahn e descobrir
que ela é vazia e inútil, superficialmente parece ser um insulto
gratuito nas mãos do destino, mas exame mais acurado de seu caráter
simplesmente revela como é natural e adequado esse desenvolvimento.
Foi na esperança de encontrar um lastro, um leme, uma âncora, que
Maurizius se aliou a uma mulher quinze anos mais velha do que ele.
O menino mimado toma-se rapidamente o queridinho da mulher mais
velha. Ele procura apoio fora e não dentro. Quando se vê diante da
irmã jovem, que por sua idade, seu encanto e sua beleza, é capaz
de inspirar verdadeiro amor, ele não sabe o que fazer. Gostaria de
jogar longe a muleta que lhe serviu, mas já está devendo tanto a
essa esposa que lhe serve de muleta, está tão conscientizado, que não
pode renunciar. A verdade é que precisa de ambas — e isso é impos­
sível, pelo menos em nossa sociedade.
Ninguém pensou em suspeitar de Anna Jahn, exceto o velho
pai Maurizius. Diante do mundo, enquanto o julgamento se arrasta,
Anna Jahn assume cada vez mais o caráter de anjo imaculado. As
trevas que envolvem suas ações, até mesmo suas motivações, só
podem ser compreendidas à luz de sua relação com Gregor Waremme,
aliás Warschauer. Mas sobre isso falaremos mais adiante...
Waremme é uma figura poderosa, realmente satânica que como
diz Wasserman com razão traiu todo verdadeiro instinto. Renegado
no sentido mais profundo da palavra. Nascido judeu, toma-se cató­
lico fervoroso, nacionalista alemão, pregador de guerra. Dotado pela
Natureza de uma diversidade de talentos, capaz por seu magnetismo
de exercer tremenda influência sobre os outros, apesar disso nada
cria, senão tragédia a seu redor. Quando Etzel o encontra, ele está
nos últimos estágios de desintegração, fato que de maneira nenhuma
diminui seus poderes de sedução. Realmente, é só a inocência de
Etzel que o salva de ser devorado por essa sinistra figura. É como
se um libertino ficasse desesperadamente apaixonado por uma moça
de virginal pureza. Waremme não tem defesa contra inocência. As
cenas entre esses dois nos bairros miseráveis de Berlim fazem
lembrar o lendário encontro entre Teseu e o Minotauro no coração
do labirinto.

105
Eu disse um pouco atrás que o herói do livro é Etzel Andergast.
Se empregamos o termo herói no sentido superficial, ele é o herói.
E então Gregor Waremme é o vilão. Mas, como em um livro do
alcance e profundidade indicados, não pode haver antagonismo
herói-vilão, uma vez que todos os principais personagens são ao
mesmo tempo herói e vilão combinados, prefiro considerar Waremme
como a figura principal.
Inicialmente realizei um estudo desse livro a fim de fazer um
script para o cinema. Eu queria ver retratada na tela essa história,
mais do qualquer outra. Queria que ela chegasse a todos os lares.
Queria ver resultados — isto é, em favor dos homens atrás das
grades em todo o mundo civilizado. Queria o que Etzel queria, isto
é, a libertação dos inocentes. Só que, em meu modo de pensar, todos
quantos estavam atrás das grades eram inocentes!
Estranhamente, caí na mesma cilada que Etzel. Apesar de toda
razão, eu queria também ver o mundo abalado até seus alicerces
nessa questão de injustiça. Uma vida de experiências decepcionantes
não impediu que eu esperasse e rezasse para que essa história atin­
gisse seu alvo — alterasse talvez o coração humano.
Devo aqui admitir que fui incompetente para fazer o script
necessário. Entrementes, a guerra aumentava de tamanho. Para rea­
lizar um filme sobre injustiça seria preciso fazer uma cópia do
cosmos. O mundo, como um queijo maduro, estava fervilhando de
Maurizius. Em toda parte predominava a injustiça. O próprio termo
“prisioneiro” tornara-se quase sem sentido; onde antes havia milhares
agora havia centenas de milhares, milhões, realmente. Prisioneiros de
guerra, é verdade, mas ainda assim prisioneiros e a maioria deles
sofrendo um destino mais horrível que o do imaginário Maurizius.
Prisioneiros de carne e osso, a serem libertados, depois da guerra,
se sobrevivessem. Sem dúvida havia uma diferença, mas quem se
preocuparia em meditar sobre aquela diferença? Desviar a atenção
para aquele outro tipo de prisioneiro, o sentenciado, podería ser
considerado uma traição. A guerra vinha em primeiro lugar! Vença­
mos a guerra (ambos os lados diziam a mesma coisa, naturalmente)
e cuidaremos das outras injustiças. Mas cuidarão? Os triunfos e as

106
derrotas da guerra não são talhados para abrandar o coração dos
homens. As vítimas de injustiça da sociedade serão esquecidas depois
da guerra, como o foram durante a guerra e antes dela. Todo o
mundo sabe disso. Que fazer, então? Parece haver apenas uma
resposta lógica. “Destruir o mundo e criar pessoas que pensem de
maneira diferentel"
Nisso é que Wassermann, em sua trilogia centralizada em Etzel
Andergast e no Dr. Kerkhoven, parece estar interessado; a destrui­
ção de nosso mundo atual e a emergência de um tipo de ser humano
novo e melhor. O libertado Maurizius foi incapaz de começar vida
nova. Quase todos atualmente por trás das grades são incapazes de
começar vida nova. Também o são os carcereiros, os juizes e os
advogados que os acusaram ou defenderam. A própria sociedade,
pelo menos a espécie de sociedade em que acreditamos, está de mãos
e pés atados. Recusa perdoar e recusa pedir perdão. Exercendo a
prerrogativa de punição, colocou-se também perante o tribunal de
justiça. Essa sociedade inevitavelmente provoca seu próprio fim.
Não, a sociedade não pode fornecer solução, porque de alto a
baixo está impregnada de princípios errados, de motivos errados.
Filósofos, artistas, estadistas, cientistas, quantos deles retrataram
nosso ignominioso fim? Não demos ouvidos. Não importaria se em
todas as horas do dia e da noite, por todas as estações de rádio do
mundo civilizado, gritássemos a terrível advertência. Ainda assim
seríamos incapazes de fazer qualquer coisa. O autor de script que
alegremente alterou o livro para atender às necessidades da tela —
e assim engordou sua carreira — é um símbolo da grande maioria
que forma nossa espécie de sociedade.
A verdade não é importante, a justiça não é importante. Impor­
tante é “prosseguir”. “Negócios como de hábito”, não importa onde
isso nos leve. Dêem-nos qualquer espécie de lixo, mas mantenham
os cinemas funcionando!
Mesmo Waremme, figura diabólica como é, está léguas acima
desse nível de pensamento. Waremme capitula diante do mundo,
mas só como um gigante se curva às cordas que o puxam para
bai*n. Waremme não pertence ao mundo, mais do que Etzel ou
Maurizius. Ê por isso que o livro será sempre infinitamente superior
a qualquer interpretação cinematográfica que dele possa ser feita,
Não há no mundo cinematográfico figuras capazes de registrar os
pefftementos e sentimentos desses personagens principais. Ainda que
falassem as próprias frases do autor continuariam inconvincentes.
Para compreender e apreciar este drama, como Wassermann o re­
tratou, a sociedade precisaria ser uma coisa diferente do que é hoje.
Wassermann já está falando a uma sociedade mais alta, uma socie­
dade melhor. Supõe ele que nós temos ouvidos com que ouvir, que
nós temos olhos e coração. Mas em nossa sociedade esses órgãos

107
estão faltando. A nossa já é uma sociedade de “gueules cassées”, uma
sociedade de surdos, coxos, cegos, doentes — e pessoas sem rosto.
O cego conduz o cego. Nós estamos caindo do penhasco. Aqueles
que são capazes de ler e compreender também vão cair do penhasco,
não se enganem quanto a isso. A mensagem não é para nós. A men­
sagem está perdida. Já é tarde demais. As muralhas da prisão estão
sendo rebaixadas, mas o mesmo está acontecendo aos internados. E
nós todos estamos internados na mesma prisão. Nós todos estamos
sendo explodidos juntos. Hurra! Hurra!
Tarde demais, Klakusch. Tarde demais para dar ouvidos àquelas
suas maravilhosas palavras.
“PARE, MUNDO DOS HUMANOS, E ATAQUE O PROBLE­
MA POR UM ÂNGULO DIFERENTE!”
A quem você dirigiu essas palavras? Não a nós. Nós estamos
surdos. Nós vamos passar, como o porco de Gadarene. Nada nos
fará parar. Hurra! Hurra!

Creio ter meditado sobre The Maurizius Case mais do que sobre
qualquer livro que já tenha lido, a não ser Wiíliam Blake’s Circle
of Destiny* Esqueço-me dele durante algum tempo e depois ele
volta, insistente e insidiosamente. Falo sobre ele a todos que parecem
dispostos a ouvir. Vejo pela fisionomia de meus ouvintes que não
pode ter para eles a mesma significação que teve para mim. É um
daqueles livros que parecem ter sido escritos expressamente para
quem o está lendo. Nada é capaz de explicar sua sedução. Não é
o maior livro que já li, nem o mais bem escrito. Nem seu tema é
o mais elevado. É uma peça de propaganda a que um homem como
eu é peculiarmente suscetível. Persegue-me, como a esfinge perseguia
os homens da Antiguidade. Pois ele contém um segredo sob a forma
de enigma. É misterioso porque, apesar de todas as explicações,
aquelas do autor e aquelas de seus intérpretes, nada é verdadeira­
mente explicado. Será porque é a respeito de justiça, da qual quase
nada sabemos? Será porque a descrição de justiça humana desperta
em nós sugestões de uma justiça divina? Por que um cavaleiro
errante como Etzel se torna mais tarde um verdadeiro monstro?
Significa isso que o homem declaradamente preocupado com justiça
é ele próprio o mais injusto dos homens? É incumbência do homem
aplicar justiça aqui na terra? E, se não tenta fazê-lo, está fugindo
a um dever para com seu semelhante ou está inspirando nele uma
atitude mais elevada? Klakusch está terrivelmente certo em sua
opinião — pelo menos é o que eu sinto — e, no entanto, é uma

* De Milton O. Percival (Columbus University Press).

108
figura secundária no livro, uma figura incidental, patética, quase
ridícula. Sem Klakusch, a vítima, Maurizius, não teria nada, ninguém
para sustentá-la. Klakusch precisa matar-se a fim de convencer
Maurizius da verdade que proclama. O mundo nunca “enfrentará o
problema por um ângulo diferente”. No nível do mundo, todo pro­
blema é insuperável; os ângulos de abordagem são sempre de baixo,
de homens submersos. A morte de Klakusch parece não servir a
propósito algum. (A menos que afete homens como eu.) Aqueles
que têm o poder de abrir as portas conservá-las-ão fechadas até
soar a trombeta do juízo final. Arrastarão o mundo para baixo
junto com eles, de preferência a mudar sua atitude.
Fiz menção anteriormente ao fato de o autor haver acentuado a
ligação, na mente de Etzel, entre o prisioneiro Maurizius e a mão
que lhe fora roubada. Volto a isso de novo. Libertar a mãe! Isso
para mim só tem um sentido — libertar seu próprio poder de amar.
Salvar Maurizius realmente nada significa. Etzel nunca conheceu o
homem. Para ele, como para seu pai antes dele, é “um caso”. É a
desculpa de que Etzel precisa para vingar-se do pai. Por que fica
ele tão enfurecido quando sabe que Maurizius foi solto? (A soltura
significa apenas que ele foi “perdoado”.) Se a liberdade do homem
fosse sua única preocupação, como seria para alguém que agisse
por motivos humanos comuns, ele teria ficado feliz, ainda que não
inteiramente satisfeito com as ações ou motivos de seu pai. Mas não
é por Maurizius que ele se interessa — é por essa coisa abstrata,
justiça. Mas, serâl Ê justiça que ele deseja na mais ampla medida
ou é aquele irmão gêmeo perdido de justiça — amor? É ele, Etzel,
que foi enganado, não Maurizius.
Ê no segundo volume da trilogia, Dr. Kerkhoven, que eu per­
cebo com horror como ficou deformado o amor de Etzel. Aqui começa
o enigma de outro caso triangular, no qual Etzel se comporta de
maneira muito semelhante a Maurizius, que ele tentou socorrer.
Quero dizer, usando as palavras do próprio Wassermann quando se
refere a Maurizius, que “ele não é homem suficiente para desistir
de uma coisa ou da outra”. “Renúncia”, diz Wassermann, “exige um
reconhecimento claro; mas caracteres mal-eosidos (como Maurizius)
raramente têm clara noção de sua situação ou de seus impulsos se­
cretos; preferem debater-se de um lado para outro na incerteza”.
A diferença entre os dois casos, porém, é ser Maurizius meramente
um homem “fraco”. Etzel é positivamente mau. Ele não apenas se
traiu, ele trai seu salvador, D. Kerkhoven. É interessante notar, nesse
sentido, que a mulher no triângulo, Marie, esposa de Kerkhoven, é
um pouco mais velha do que Etzel. Será que em seu cérebro defor­
mado ela substituiu sua mãe, cujo amor lhe fora negado? Sua paixão
por Marie é incontrolável. Há nela algo de desesperado, algo quase
feroz. Etzel, como Maurizius, merece piedade, não censura. Sabemos

109
que ele não deseja desonrar o homem que reverencia, Dr. Kerkhoven,
É compelido a fazê-lo por forças fora de seu alcance. Mas sentimos
que ele é culpado e, em relação a Maurizius, não somos inclinados
a sentir o mesmo. Seus atos todos são violações, é isso. Ele nos faz
recuar com horror e consternação. Faz até mesmo a grande e santa
figura, Kerkhoven, querer assassinar. E nós aplaudimos Kerkhoven.
Sabemos que ele tem justificação para desejar Etzel morto.
A Mãe! Deve-se ter em mente que o retrato dela foi completa­
mente apagado da memória de Etzel. “Ele não tem retrato algum
dela, nem mesmo um retrato interno, pois faz muito tempo que ela
desapareceu de sua vida e toda lembrança dela, por alguma razão
que ele não é capaz de compreender, foi obliterada, até mesmo todas
as marcas externas, fotografias, pinturas.” Wassermann insiste
freqüentemente no antagonismo existente no lar, como que para
pôr o dedo sobre a fonte de todas as complicações futuras. Refe­
rindo-se a um dos companheiros de Etzel, em cuja casa não há
paz, ele observa: “A atitude revolucionária de um menino muitas
vezes tem suas raízes em uma família irregular. Em muitos lares
burgueses a afeição está morta há gerações. Raramente um coração
é bem dotado, se uma fome insatisfeita por afeição não o toma
sedento de vingança.” E posteriormente, quando o professor Camill
Raff esforça-se por analisar o estranho comportamento de Etzel,
quando se põe a meditar sobre o significado da peculiar pergunta
que Etzel lhe fez — “Existem deveres conflitantes ou só existe um
único dever?” — ele reflete assim: “Um rapaz de dezesseis anos de
idade precisa resolver livremente, precisa mover-se na ilusão de
infinito. Se é forçado a abandonar a liberdade de sonho e seguir os
caminhos de propósito e utilidade, o sofrimento começa inevitavel­
mente porque ele logo sente e passa a perceber que está sendo
forçado a abandonar uma feliz confusão e a alegria de incomensu-
rável abundância para a qual a vida nunca mais poderá oferecer
compensação.” E ainda mais adiante, quando Herr Von Andergast
procura o reitor para ter uma conversa com ele sobre Etzel, é-nos
dado outro vislumbre das profundas perturbações que estão tendo
lugar na alma do rapaz. “Parece sempre que Etzel andava distraído
de um lado para outro nos canais normais e estava aproveitando
toda oportunidade que lhe era oferecida para esquivar-se a fim
de executar alguma secreta intenção sua. Quando reaparece' dá a
impressão de ter roubado alguma coisa e estar escondendo depressa
e ardilosamente o produto do roubo. De fato, tudo é roubado, as
experiências que ele procura e que não podem ser examinadas, as
palavras e pensamentos que está acumulando, as imagens que está
guardando em sua insaciável fantasia. Em toda parte ele encontra
cúmplices, toda porta abre-se para o mundo e todo conhecimento
novo do mundo suja sua alma imaculada. “Aquele menino tem um
espírito inquieto”, observa o reitor. “Realmente, ele só acredita

110
naquilo que pode ser provado tão claramente quanto a luz do dia...
Nem Deus teria facilidade com ele.”
Aqui estão portanto as origens de um santo ou um demônio.
Claramente, Etzel está cheio de caráter. É-se tentado a dizer de
um espírito assim inquieto que ele tem as qualidades essenciais de
um artista. E, embora Deus pudesse ter dificuldade com ele, não
são precisamente essas almas que Deus encontra prazer em
conquistar? Não é verdade que somente dos espíritos inquietos e
atormentados nós podemos esperar grandes coisas? No segundo
volume, quando observamos a influência salutar do Dr. Kerkhoven
atuando sobre o rapaz, somos levados a alimentar grandes esperanças.
Mas estas, infelizmente, logo se desvanecem. Mesmo um curandeiro
extraordinário como Kerkhoven é aqui impotente. Se não houvesse
Marie, Kerkhoven talvez pudesse fazer progresso. Mas Marie é
precisamente a encarnação de uma tentação contra a qual Etzel é
incapaz de lutar. Marie, definhando por falta de afeição apropriada,
substitui aquela fonte de amor perdida pela qual Etzel ansiava em
sua mãe. Marie passa a ser para ele a própria afeição. E ele, agora
não mais preocupado com “dever”, deixa-se afogar no oceano da
afeição dela.
O retrato que nesse volume obtemos da vida de Etzel depois
de deixar a casa paterna é como um estudo íntimo de um corte
transversal da sociedade civilizada. Que Alemanhal, murmuramos.
Que ninho de víboras! Nada mais que corrupção, dúvida, desilusão,
crime. Aqui vemos o solo de onde surgirá o tipo esquizofrênico, os
Steppenwolfs * de amanhã. Que Alemanhal Ah, mas é só da Ale­
manha que estamos tratando aqui? Que dizer da França? Que dizer
da Itália, Espanha, Hungria, Polônia, România? Que dizer da
Inglaterra? Que dizer de nossos próprios Estados Unidos da América?
Será necessário descrever de novo esses pustulentos cemitérios?
Pense no jovem que Céline descreve em Mort à Crédit. Podería um
canibal levar vida mais feia e desesperançada de que o jovem
Ferdinand naquele jardim de cultura, a França? Para ter um retrato
de perversão e hipocrisia, de monstruosa estupidez e insensibilidade,
volte-se para Enemies of Promise de Cyril Connolly. Que homem, a
menos que fosse feito de ferro, podería sobreviver àquela espécie
de treinamento que tem o nome de educação nas escolas inglesas?
Penso imediatamente em outro inglês, descrevendo outra espécie de
vida, igualmente amarga, fútil e desprezível, mas típica de nossa
sociedade civilizada: George Orwell em Down and Out in Paris and
London. E daí para Arthur Koestler não há mais que um passo. Nas
obras de Koestler toda a Europa é denunciada e julgada culpada. Em

* Ver Steppenwolf, um romance de Hermann Hesse.

111
toda parte encontramos homens cujas mãos estão molhadas de sangue.
Em toda parte o homem caça. Em toda parte há acusador e acusado.
Não injustiça, mas intolerância é o tema que impregna todos os
livros de Koestler. Com isso vai uma falta completa de dignidade
humana e a traição de todos os padrões humanos. Os heróis estão
caídos na lama e são pisoteados: Scutn of the Earth. Alvos de pie­
dade ou desprezo. Ignorados, deixados murchar, apodrecer. E na
Rússia, onde a grande experiência social está em andamento há uns
vinte anos ou mais, que encontramos? Será o último refúgio de
esperança para o homem branco na Europa? Leia Darkness at Noon
de Koestler. Esse julgamento, que lembra outros julgamentos célebres
na história européia, faz-nos virar o estômago. É exagerado? Nada
podería ser exagerado hoje em dia. Nenhuma vilania, nenhum crime,
nada por mais vil, ignóbil e degradante está abaixo dos membros
atuais de nosso mundo civilizado. A Inquisição está aqui de novo;
ora queima na Alemanha, ora na Rússia, ora na Itália, ora na Espa­
nha, ora na França. Os longos pesadelos de Kafka não foram
senão um preparativo para os horrores reais que iríamos experimentar
mesmo em mais alto grau. Na índia praticamente todo líder capaz
e inteligente está na prisão ou no exílio. Na Grécia, na Bélgica, na
Polônia, o povo foi traído precisamente por aqueles que deviam
libertá-lo de seus opressores. Não é de admirar que na Inglaterra
i tenhamos um homem como Alex Comfort gritando a pleno pulmões
(e ninguém até agora o prendeu) que “a sociedade é o inimigo”, esta
sociedade, esta sociedade chamada civilizada. Anos antes da atual
explosão, o homem que é agora condenado como “colaboracionista”,
o homem que é para esta geração o que Romain Rolland foi para a
última, o homem de verdade e cultor do bom e do belo, Jean Giono,
ergueu sua voz de igual maneira. Em Refus d’Obéissance, temos a
pungente rebelião de um homem de espírito que percebeu ter sido
em vão o sacrifício feito na última guerra. Onde Comfort agora usa
a palavra sociedade, Giono usa Estado Capitalista. Hoje vemos que
culpado não é apenas o Estado capitalista, mas toda forma de gover­
no agora praticadâ em todo o mundo civilizado. Por isso, ao ler
Giono, deve-se substituir Estado capitalista por sociedade.
Eis como Giono começa sua cruciante narrativa:
“Não posso esquecer a guerra. Gostaria de poder. Às vezes
vários dias se passam sem que eu pense nela, depois de repente
vejo-a mais uma vez, sinto-a, ouço-a, sofro-a de novo. E estou com
medo...
“Eu não me envergonho. Em 1913 recusei aderir aos prepara­
tivos militares que reuniram todos os meus camaradas. Em 1915,
parti para a frente sem acreditar em la patrie. Eu estava errado.
Não em não acreditar, mas em ir.

112
“Eu sei que nunca matei ninguém. Passei por todos os ataques
sem uma arma ou, melhor, com uma arma que era inútil. (Todos
os sobreviventes da guerra sabem como era fácil, com um pouco de
terra e urina, transformar um fuzil Lebel em uma bengala.)
“Não estou envergonhado, mas, considerando bem o que eu fiz,
foi um ato de covardia ter ido à guerra. Eu tinha o ar de aceitar.
Não tive a coragem de dizer: “Não partirei para o ataque.” Não
tive a coragem de desertar. Só tenho uma desculpa: eu era jovem.
Não sou covarde. Fui ludibriado pela minha imaturidade e fui
igualmente ludibriado por aqueles que sabiam ser eu imaturo...
“A guerra não é uma catástrofe... é um meio de governo. O
Estado capitalista não reconhece os homens que procuram o que
chamamos felicidade, os homens cuja natureza é ser o que são, os
homens de carne e osso — só os conhece como material para pro­
dução de capital. Para produzir capital, tem, em certas épocas,
necessidade de guerra...
“No Estado capitalista aqueles que desfrutam só desfrutam
sangue e ouro. O que ele faz que suas leis, seus professores e seus
escritores acreditados digam é que há o dever de sacrificar-se. Ê
necessário que você, eu e os outros nos sacrifiquemos. Por quem?
O Estado capitalista esconde delicadamente de nós o caminho
do matadouro: você se sacrifica por seu país (já não se atrevem
mais a dizer isso), mas afinal de contas por seu vizinho, por seus
filhos, pelas gerações futuras. E assim por diante, geração após ge­
ração. Quem come no fim os frutos desse sacrifício?
“Eu falo objetivamente. Eis aqui um organismo que está fun­
cionando. É chamado Estado capitalista, como podería ser chamado
cão, gato ou lagarta. Aí está ele, estendido sobre minha mesa, com
a barriga aberta. Vejo seu organismo funcionando. Nesse organismo,
se eu tirar a guerra, desorganizá-lo-ei tão violentamente que o
tomarei incapaz de vida — exatamente como se eu tirasse o coração
do cão, ou como se eu dissecasse o centro motor da lagarta.
“Continuemos a ser objetivos. Que adianta meu sacrifício? Nada!
(Eu ouço! Não grite tão alto nas sombras. Não mostre suas bocas hor­
ríveis, suas vítimas da fábrica. Não fale, você que diz que sua oficina
está fechada e que não há pão em casa. Não uive contra o portão
daquele castelo onde há dança. Eu ouçol). Meu sacrifício não serve
para nada, exceto para prolongar a existência do Estado capitalista.
“Esse Estado capitalista merece meu sacrifício? É bondoso,
paciente, amável, humano, honesto? Está procurando felicidade para
todos? É levado por seu movimento sideral em direção à bondade
e beleza, e leva a guerra consigo apenas como a terra leva sua
fogueira central? Eu não faço essas perguntas para respondê-las por
mim mesmo. Faço-as para que cada um as responda por si.”

113
Este é o tom e espírito de Giono, um polemista e propagandista.
Este é o tipo de homem hoje marcado como traidor. Há outro Giono,
ainda maior, que escreveu Le Chant du Monde e Que ma Joie De-
meure. Este é o Giono que está apaixonado pela vida, que procura
-!as belezas da terra”, que se deleita com todas as criações da natu­
reza da mais alta à mais baixa, é o homem que ama crianças, o
homem do solo, o homem que foi uma inspiração para todos quantos
entraram em contato com ele. E esse homem é agora um traidor?
Recuso acreditar nisso. Eu digo que existe alguma coisa errada numa
sociedade que, por discordar das opiniões de um homexn, pode
condená-lo como um arquinimigo. Giono não é traidor. A socie­
dade é a traidora. A sociedade é traidora de seus belos princípios,
seus princípios vazios. A sociedade está constantemente procurando
vítimas — e encontra-as entre os gloriosos em espírito.
Mas esta é sociedade para você. Uma sociedade culpada nas
garras do medo. Sempre cheirando e farejando, sempre temerosa de
invasão, sempre apontando um dedo acusador. Todo homem é
culpado. Todo homem está carregado de culpa — desde o nasci­
mento. Se já houve uma idade culpada, é esta. Culpa e histeria. E,
no fundo de tudo, como um dragão maligno, está o Medo.

114
Voltando a The Maurizius Case... Observe, por favor, como
todos os personagens estão crivados de culpa. Mesmo Maurizius, o
inocente. Especialmente Maurizius, digamos. Não é ele quem diz;
“O homem é separado do homem por culpa”? Cada um, Elli, a
esposa, Anna Jahn, sua irmã, o velho Maurizius, o Barão Von An-
dergast, Waremme-Washauer — todos se roem de culpa.
O inocente! Concentremo-nos nele por um momento, na natu­
reza peculiar de sua situação, como é vista pela lei, pela própria
sociedade. Maurizius tem palavras significativas a dizer sobre esse
assunto. Ouçamos o que ele diz quando aquele modelo de justiça,
Herr Von Andergast, visita-o em sua cela e repete o que homens
da lei em toda parte do mundo civilizado reiteram tão freqüente-
mente, banalmente e irrefletidamente.
Herr Von Andergast acaba de dizer: “Todos são considerados
inocentes enquanto sua culpa não tiver sido indiscutivelmente esta­
belecida.”
E é aqui que Maurizius responde: “Assim está escrito. Não é
possível negá-lo. Muitas coisas estão escritas. Mas afirmará você
que isso é cumprido? Onde? Quando? A quem? Sobre quem?...
Como disse, não estou me referindo a minhas circunstâncias pes­
soais. .. Eu não tive apenas minha experiência pessoal, tive milhares.
Ouvi falar em milhares de juizes, vi minhares deles diante de mim,
fui capaz de observar o trabalho de milhares, e 6 sempre a mesma
coisa. Desde o início ele é o inimigo. Para ele o ato foi praticado,
ele toma o ser humano no que tem de mais baixo. O acusador é
seu deus, o acusado sua vítima, punição sua meta. Se alguém chegou
ao ponto de comparecer perante um juiz, está liquidado... Juiz!
Isso tinha outrora uma alta significação. O mais elevado na socie­
dade humana. Conheci pessoas que me disseram que em todo
julgamento experimentam nos testículos a mesma horrível sensação
que a gente tem quando se vê repentinamente sobre um profundo
abismo. Todo interrogatório depende do emprego de vantagens
táticas que em sua maioria são asseguradas tão desonestamente
quanto os subterfúgios de uma vítima acuada... Como pode alguém
obter a proteção que sua lei exige? A lei é apenas um pretexto
para a cruel organização criada em seu nome e como é possível
esperar que alguém se curve diante de um juiz que faz do ser humano
acusado um animal maltratado?... Tudo se resume no fato de que
aqueles que vivem no céu têm a menor concepção do inferno,
mesmo que a gente fale com eles sobre isso durante dias. Lá toda
fantasia falha. Só pode compreender quem está dentro dele.”
Depois, em seguida a outras palavras de Von Andergast sobre
a imperfeição das instituições humanas e a impossibilidade de destruir
a estrutura toda, Maurizius é instigado a proferir palavra por palavra
fragmentos do discurso condenatório feito pelo próprio Andergast.

115
É o retrato de um criminoso feito pelo próprio criminoso. Não o
criminoso Maurizius, mas o criminoso Von Andergast. Aqui está
como Andergast reflete consigo mesmo sobre as palavras que proferiu
dezoito anos antes:
“A repetição, quase ao pé da letra, de um discurso feito quase
meia geração atrás, encheu-o de espanto, mas o curioso era que
nada nele parecia familiar ou conhecido, a ele, seu autor, embora
pudesse julgar com bom grau de certeza que Maurizius não o alterara
nem o deturpara; é que lhe parecia algo estranho, algo desagradável
e repugnante, exagerado, cheio de frases, de retórica e de contrastes
forçados. Enquanto fitava o sentenciado encolhido de medo, a
aversão por sua própria oratória, que acabara de ouvir da boca
daquele homem, tornou-se náusea física, de tal modo que finalmente
precisou lutar contra a inclinação de vomitar. Teve que ranger os
dentes convulsivamente. Era como se suas palavras rastejassem pela
parede iguais a vermes, pegajosas, descoloridas, odiosas, feias. Se
toda realização era tão fugaz, tão temporária, tão discutível, como
podería alguém suportar ser submetido à prova? Se uma verdade,
pela qual se estivera uma vez disposto a jurar perante Deus e homem,
podia depois de algum tempo tomar-se uma palhaçada, em que pé
ficavam as coisas no referente à “verdade” em geral? Ou acontecia
apenas que algo dentro dele se deteriorara, que a estrutura de seu
ego ruíra?”
E agora é Maurizius falando de novo, falando de sua romântica
mocidade. Ele acabou de falar a Andergast sobre o amor puro que
sentira por uma prostituta aos dezesseis anos de idade e sobre o
trágico desenlace daquele episódio em sua vida. “Talvez, em verdade,
a gente nunca se recupere de uma coisa assim”, disse ele. Naqueles
anos, como ele diz, toda coisa egoística era esporádica e quem quer
que não rompesse decididamente com seu ambiente e sua tradição
era submergido e liquidado, e precisava arrumar-se da melhor ma1
neira possível com sua negra disposição de ânimo. Como ele diz,
uma pessoa podia ser “romântica” e ter muito pouca consciência.
Segue-se este significativo discurso:
“Ainda me lembro que aos dezenove anos cheguei à casa depois
de uma representação de Tristan, como uma pessoa feliz, nascida
de novo, e roubei vinte marcos da gaveta da escrivaninha de meu
pai. Ambas as coisas eram compatíveis. Sempre ambas foram com­
patíveis. Prestar a uma moça o sagrado juramento de que se casaria
com ela e logo depois deixá-la desprezívelmente entregue a seu
destino, e com elevada disposição de ânimo ler e assimilar a biografia
e as obras de Buda. Tirar os ganhos de um pobre alfaiate e ficar
fascinado diante de uma Madona de Rafael. Podia-se ficar tremen­
damente comovido no teatro assistindo a Weavers de Hauptmann e
ler com satisfação que os grevistas do Ruhr haviam sido fuzilados.

116
Ambas as coisas. Sempre as duas eram possíveis... Aí você tem
outro retrato. Um auto-retrato. Acha-o mais agradável que o seu?
O único aspecto redentor dele está em admitir duas possibilidades
de cada vez. O seu é crueldade implacável porque só admite uma.”
É em Waremme-Warschauer, porém, que a dualidade realmente
floresce. “Tudo que se dizia sobre ele era tão precisamente correto
quanto teria sido o exato oposto.” Mestre em uma dúzia de líijguas,
poeta, filósofo, filólogo e político, ele é também jogador, Don Juan,
pervertido, perjuro e renegado. Nele o cancro que existe no próprio
coração da sociedade floresce luxuriantemente. Como a figura mais
dotada e mais culta do livro, ele é uma verdadeira flor do mal.
Em um daqueles intermináveis monólogos que faz na presença de
Etzel, menciona certa vez um ditado oriental que, parece-me, é
particularmente aplicável a ele próprio. “Se um homem é separado
de sua alma e do anseio de sua alma, ele não permanece parado na
estrada, mas apressa suas andanças.” Relembrando sua mocidade,
Waremme diz a Etzel: “Eu podia tomar pessoas de assalto, eu podia
inflamar seu entusiasmo interminavelmente, eu podia... Que não
podia eu?... Eu podia entregar-lhes de novo suas próprias almas...
Para mim comunicação era minha outra natureza, minha verdadeira
natureza igual ao bater de meu pulso; onde pudesse comunicar-me
eu já me identificava; era a forma mais sublime de amor aos homens
e mulheres, um incansável assédio para levar os outros a saírem de
si próprios, libertá-los de todas as barreiras e reservas. Eu próprio
não tinha nenhuma, nem barreira, nem reserva, era só isso...”
No curso de um desses monólogos, é feito um contraste entre
a Europa e os Estados Unidos. Waremme passara uns doze anos em
algumas de nossas grandes cidades americanas, inclusive Chicago.
Tentara romper com a Europa. Mas, como diz argutamente, “voltar
as costas à Europa não significa ainda ser capaz de viver sem ela”.
Só depois de renunciar à Europa podería uma pessoa de sua espécie,
confessa ele, começar a compreender o que ela realmente significava.
“A Europa não era meramente a soma total dos laços de sua exis­
tência individual, amizade e amor, ódio e infelicidade, sucesso e
decepção; era, venerável e intangível, a existência de uma unidade
de dois mil anos, Périeles e Nostradamus, Teodorico e Voltaire,
Ovídio e Erasmo, Arquimedes e Gauss, Calderon e Dürer, Fídias e
Mozart, Petrarea e Napoleão, Galileu e' Nietzsche, um imensurável
exército de gênios e um exército igualmente imensurável de demô­
nios. Toda essa luz lançada na escuridão e brilhando de novo para
fora dela, um sórdido charco produzindo um vaso dourado, as
catástrofes e inspirações, as revoluções e os períodos de trevas, as
moralidades e as modas, todo o grande curso comum com suas cor­
rentes, seus estágios e seus pináculos, formando um só espírito. Isso
era a Europa, isso era a sua Europa.”

117
Assim, Waremme parte para os Estados Unidos, como uma
espécie de Colombo II, para proclamar o espírito da Europa. E que
acontece? “Depois de algumas semanas”, relata ele, “eu estava intei­
ramente indigente. Isso não me preocupava muito. Ninguém pode
morrer de fome lá. Todo o país é, por assim dizer, um enorme plano
de seguro contra a fome. As instituições de caridade pública são tão
gigantescas que mendigos são quase tão raros quanto reis. E eles
têm democracia. O que existe entre viver e não morrer de fome é
coisa diferente.* ** Imagine um tremendo hospital, dotado de todo
conforto moderno, cheio de doentes incuráveis, nenhum dos quais
morre, e você terá o que existe ‘entre’. Mortes prefudicariam a
reputação do estabelecimento.
Ê tudo tão tremendo, tão insuportavelmente imenso, que o
indivíduo quase não tem mais nome, a coisa separada não tem nada,
nada que a diferencie. Ruas numeradas, por que não pessoas nume­
radas, numeradas talvez de acordo com os dólares que ganham com
o sangue de gado, com a alma do mundo?” Depois Halsted Street,
a mais comprida rua do mundo — a nova estrada para o Gólgota.
E depois o Negro.
Ele passa a falar de sua incapacidade para comunicar qualquer
coisa do espírito àqueles americanos com os quais entra em contato.
“Não”, reflete Waremme, “eles não amam o espírito, eles amam a
coisa, o objeto, amam o desempenho, o elogio, um fato, mas espírito
é para eles misterioso além de toda medida. Eles têm uma coisa em
seu lugar, o sorriso. Eu precisei aprender a sorrir”. E assim ele
vagueia de uma cidade para outra. “Jack joga você para John, John
para Bill, e quando Bill descobre que você não serve mais para nada,
ele o deixa no monte de lixo — tudo isso de maneira muito amistosa,
naturalmente. Continue sorrindo!”
E, depois, Chicago... os trinta mil canários que acabam de ser
desempacotados, cantando com trinta mil minúsculas gargantas...
abafando o barulho de guindastes e motores, os gritos de locomo­
tivas e pessoas. Ele fica ali parado, sem saber se ri ou chora. “É
tão louco, tão sagrado e tão fantástico.” Depois, os matadouros...
“onde o cheiro adocicado de sangue ergue-se dos tremendos salões
e depósitos, uma nuvem constante de sangue paira sobre toda a
cidade; as roupas do povo cheiram a sangue, assim como suas camas,
suas igrejas, seus quartos, sua comida, seus vinhos, seus beijos. Joshua
Cooper. Joshua coberto de sangue e lançando a luva. Weremme fala
agora com desenfreada paixão. “Feras? Ora, toda fera tem a alma
de um Quaker em comparação com a deles... Figuras aquerônticas,
as feras bípedes dos subúrbios. Nós não temos espécie igual neste

* O grifo é meu.
** Idem.

118
país; a mais depravada daqui ainda faz lembrar que ela nasceu de
uma mãe...”
Finalmente, nessa longa tirada entra um raio de luz. Vem da
“radiante cara de aniversário” de Hamilton La Due. Na pessoa de
La Due, Waremme começa a perceber o americano potencial, o
verdadeiro democrata que Whitman cantou. “Eu vi um ser humano
que, apesar de todo seu insignificante exterior, representava uma
unidade, o cristal formado da matéria-prima. Havia provavelmente
inúmeras pessoas iguais a ele e, quanto mais eu olhava esse tremendo
complexo, mais me convencia de que ele era efetívamente apenas
um dos inumeráveis homens iguais a ele que eu encontrei acidental­
mente. Isso abalou profundamente meu orgulho europeu...” Wa­
remme prossegue dizendo que La Due não tinha mensagem alguma,
não era evangelista, tinha uma simples cordialidade infantil, nada
mais. “Ele provavelmente não pensava no assunto. Aceitava tudo
como era, o atemorizador e o agradável. . Depois, em um jorro
de eloqüência, Waremme resume a significação de La Due. “Naquela
tremenda nação, com suas tremendas cidades, suas tremendas mon­
tanhas, torrentes e pradarias, sua tremenda riqueza e tremenda pobre­
za, suas tremendas fábricas e tremendo medo de anarquia e revolução,
lá no meio daquilo tudo nós encontramos o pequeno e inofensivo
La Due. . . como direi, como uma nova espécie de ser humano. Não
pude deixar de admirar-me. Através dele aprendi a compreender que
o todo é ainda uma massa não fermentada...”
É bastante curioso que o homem representado como Demônio
encarnado fosse capaz de reconhecer o caráter exemplar de uma
figura como Hamilton La Due. Será por ser ele uma figura comple­
tamente obscura, esse La Due, um homem simples sem pretensões
de qualquer espécie, um homem inconsciente de sua própria bondade?
Para Etzel também só um homem que ele reverencia e que finalmente
vai visitar: Mechior Ghisels, o escritor. De fato, Ghisels tomou-se
na mente de Etzel quase um deus. Mas esse deus, em contato mais
próximo, mostra ser humano demais. É um deus que se exauriu
através de sacrifícios. Quando Etzel o encontra, ele está prostrado
no sofá, homem tão esgotado que é incapaz de dar resposta adequada
à causticante pergunta: “Que é justiça, se eu não a descubro, eu, eu
mesmo, Etzel Andergast?” Ghisels, parecendo exatamente um homem
crucificado, só consegue responder: “Eu nada tenho a responder a
isso, a não ser: Perdoe-me, eu não sou mais que um fraco homem.5’
Quando se despede de Ghisels, Etzel lembra-se de uma bela frase
que outrora significara muito para ele e, depois, diz o autor, Etzel
compreende em seu coração que “os dez mil anjos sobre a pétala de
rosa eram uma metáfora, um poema, um símbolo misterioso e belo,
nada mais, oh!, nada mais que isso”.

119
Existem nessa entrevista aspectos que eu gostaria de repisar um
pouco mais. Em primeiro lugar, Ghisels parece ser o porta-voz do
próprio autor. Há entre as vidas dos dois homens semelhanças que
não podem ser ignoradas. Wassermann também era sobrecarregado
pelas insaciáveis exigências de seus leitores. Pessoas acreditavam ser
ele algo mais que um escritor, seus livros continham uma promessa
que faltava nas palavras de teóricos políticos e sociais. Nessa con­
versa com Etzel, Wassermann usa Ghisels para traçar seu próprio
quadro profético da sociedade européia e das crises com que ela
se defrontava. Ê como se ele fizesse o jovem Etzel, sua própria e
atormentada criação, sair das páginas do livro e procurá-lo em seu
estúdio. Como se Etzel permanecesse na frente dele, martelando sua
própria mesa e dizendo: “Eu exijo uma resposta! Você me colocou
nesta situação impossível, agora ajude-me a sair dela!” É como se
Wassermann estivesse descontente com sua própria habilidade verbal,
sua própria inventiva, como se estivesse cansado daqueles eternos
problemas humanos que nunca podem encontrar resposta direta
através da arte, como se estivesse desafiando a si próprio para um
último e supremo esforço, o esforço divino de um homem elevado
acima de todas as considerações pessoais, sabendo que no nível
humano não hã solução para aqueles problemas. Com The Maurizius
Case, Wassermann está se aproximando do fim de sua própria vida,
Ele parece ter arregimentado todas as suas forças para este trabalho
final. No último volume da trilogia, seu próprio aparecimento é
inconfundível. Como Herzog, o romancista arruinado, ele também
procura uma figura que durante muito tempo reverenciou. O Dr.
Kerkhoven é um ser elevado, é superior ao próprio autor. É como
se o Criador enfrentasse sua própria criação e fosse vencido, justa-
mettíe vencido. Kerkhoven é um símbolo do curandeiro. Como é
significativo ter o artista elevado à mais alta posição, o tipo de que
o mundo tem mais necessidade neste momento! Se parece que falhou
com Etzel no momento crucial, devemos lembrar que ele está sendo
julgado por um rapaz de dezesseis anos, cuja experiência da vida
não lhe permite compreender as limitações do artista. Devemos
também lembrar, parece-me, que Wassermann estava provavelmente
condenando a si próprio e, através de si, todos os artistas de nosso
tempo. Olhando assim Ghisels, como são significativas as palavras
do autor: “Este é o sentido que ele (Etzel) pensa ter descoberto nos
escritos. Que a gente precisa dar mais um passo.” Essa frase, quando
nos aprofundamos mais na trilogia, descreve a qualidade essencial
daquela monumental figura, Kerkhoven. Kerkhoven está sempre co­
meçando de novo, sempre ousando ultrapassar os limites — seus
próprios limites.
Talvez agora possamos olhar de novo as palavras de Ghisels
com maior clareza. Aqui está como ele fala a Etzel: “O que o traz

120
a mim nada tem de novo para mim — infelizmente. É uma crise que
avançou fazendo círculos inofensivos em um tanque. Hã alguns anos,
a gente podia ainda consolar-se com a opinião de que era este ou
aquele caso isolado, que a gente podia ajustar-se àquilo — a gente
pode acostumar-se com exemplos isolados — mas hoje estamos amea­
çados pelo colapso de toda a estrutura que construímos durante dois
mil anos. Há um desejo arraigado e doentio de derrubar as coisas,
nos seres humanos mais sensíveis. Se isso não puder ser impedido
— e eu receio que já seja tarde demais — deverá levar nos próximos
einqüenta anos a um assustador colapso, muito pior do que quaisquer
guerras ou revoluções até o presente. Curioso é que a perturbação
muitas vezes provém daqueles que vivem na ilusão de terem sido
convocados para salvaguardar o que é chamado nossas mais sagradas
possessões.”
Etzel ouve atentamente, mas como um boxeador aguardando
uma oportunidade. Ê a respeito de justiça que ele quer ouvir falar.
“Justiça, parece-me, é o coração pulsante do mundo. É ou não é?”,
pergunta ele. E depois Ghisels dá a resposta.
“É, querido amigo. Justiça e amor eram originariamente irmãs.
Em nossa civilização não são mais sequer parentes distantes. Pode-se
dar muitas explicações, sem explicar coisa alguma. Não temos mais
um povo, um povo constituindo o corpo político, aquilo que chama­
mos democracia é fundado sobre uma massa amorfa, não pode
dispor-se e elevar-se inteligentemente, e estrangula todo idealismo.
Talvez precisemos de um César. Mas de onde virá ele? E nós deve­
mos temer o caos que o produzirá. O que as melhores pessoas fazem
na melhor das hipóteses é oferecer um comentário a um terremoto...”
Ele continua um momento depois. “Eu gostaria apenas de
dizer-lhe uma coisa. Pense nela um pouco; talvez o ajude a dar um
passo, pois nós só podemos avançar muito, muito vagarosamente,
passo a passo... Não é um meio de salvação, nem uma tremenda
verdade, o que eu tenho em mente, mas talvez, como disse, uma
indicação, uma útil sugestão... O que quero dizer é isto: bem e
mal não são determinados pela relação de pessoas entre si, mas
inteiramente pelas relações de um homem consigo mesmo. Você
compreende?”
Etzel inclina a cabeça afirmativamente. Ele compreende, sim,
muito claramente. Mas... Bem, em certo sentido ele não quer com­
preender. Algo o está preocupando, algo que ele nunca compreenderá.
Se alguém é aprisionado injustamente, que fazer então? Que deve
ele fazer nesse caso? Deve esquecer a pessoa? Deve deixar o homem
em tormento? Deve dizer consigo mesmo: que me interessa isso?
Como a relação de alguém consigo mesmo pode ajudar neste caso?
Em seguida ele faz a Ghisels a pergunta que o último não é capaz de

121
responder. Poucos momentos depois, completamente desiludido, ele
se despede do homem que antes adorava. Ele precisa prosseguir —
é guerra. Precisa fazer com que justiça seja estabelecida, aconteça o
que acontecer.

Voltemos agora à figura mais enigmática do livro: Anna |ahn,


a assassina. Tudo gira em torno de Anna Jahn. Realmente tudo. Ela é
o fulcro em que repousa todo o drama. Ela é como vidro imóvel.
Todos os horríveis acontecimentos que se tecem em uma teia inextri-
cável, que se enrolam finalmente em casulos e sufocam todos os
interessados, parecem ter sua origem no mero fato da existência de
Anna Jahn. Ela é como um Bórgia ao contrário. Parece nada fazer,
a menos que seja inspirar infortúnio. Ela é só aparência, é isso.
Reflete os desejos, as esperanças, os sonhos e ilusões de todos aqueles
com os quais entra em contato. Ela é o mal — porque se tornou
impotente para agir.
Qual é seu crime, precisamente? Estupidez. Pensando bem, nada
pior pode ser dito sobre tal personagem do que isto: ela é abismal-
mente estúpida. A cena entre ela e Maurizius, quando o último, solto
da prisão, a investiga profundamente, é quase terrível demais para
ser lida. “O tempo”, diz Wassermann, “que cobre generosamente ou
expõe cruelmente, tem uma maneira soberana de revelar finalmente
aquilo que, por falta de verdadeira medida e proporção, parece aos
olhos humanos uma desesperada complicação de profundidades miste­
riosas. A simplicidade original do destino, após serem dissipadas as
vagas nuvens do momento fugaz. Nem mesmo a palavra mágica de
Waremme pode alterar isso, Aqueles que imaginam justificar-se perante
Deus ou elucidar suas confusas sinuosidades, torcendo a simplicidade
do mundo para transformá-la em um magnífico mistério, são os verda­
deiros réprobos, pois eles não podem ser salvos de si próprios.”
Sim, embora Wassermann a despeça soberanamente, devemos
procurar em Waremme um último retrato dela. Waremme conhece-a
até as raízes, conhece-a ainda melhor do que Wassermann, se é
possível dizer coisa tão absurda. Ele a conhece impiedosamente, como
o bisturi de um cirurgião. E por que não a conhecería? Ela não viveu
nele como uma ferida pustulenta?
Na noite em que Etzel arranca finalmente de Waremme a con­
fissão que esperava havia tanto tempo é que obtemos esse retrato
fluoroscópico de Anna Jahn. E com ele a chave de toda a tragédia.
Compreendemos finalmente por que Maurizius agiu como o fez, porque
estava ele preso como que pelo destino.
“Agora vou dizer uma coisa que ninguém no mundo sabe, exceto
você e eu”, começa Waremme. “Pode parecer a princípio algo muito

122
comum, mas em vista da pessoa em questão, é muito incomum. É isso
que fez de mim o árbitro final. Quando compreendí a situação, senti
como se um gigante tivesse me agarrado e quebrado minha espinha.
Isto é, ela amava o homem (Maurizius), era isso. Amava-o tanto, com
paixão tão furiosa, que sua mente se nublou e ela ficou incuravel-
mente doente. Essa foi a coisa mais profunda para ela, esse amor, foi
o salto no Orcos. E ele, ele não sabia disso. Nem sequer tinha noção
disso. Ele, de sua parte, meramente a amava, o infeliz homem, mas
implorava, cortejava-a e choramingava, enquanto ela, ela já dera o
mergulho. Que ele não o soubesse — era coisa que ela não podia
perdoar. O fato de amá-lo tão interminavelmente — ela nunca perdoou
a ele ou a si própria. Por isso, ele tinha que sofrer punição. Ele devia
não estar mais no mundo. O fato de ter matado sua irmã por causa
dele nunca deveria, em circunstância nenhuma, construir uma ponte
entre ele e ela. Ela fizera disso uma lei de ferro e se encarcerara
dentro dela, Criou a morte dele, causou a expiração dele, era sua
mais cruel perseguidora e, a fim de suportar a vida dele e a punição
dele junto com ele, transformou-se em uma fúria sem alma. Ao mesmo
tempo, tinha com isso um orgulho burguês e uma covardia burguesa,
que dificilmente se poderíam encontrar em tal grau em outra pessoa...
Não, Mohl (Etzel), voeê não pode compreender aquele caráter e,
devo dizê-lo, queira Deus que você não o compreenda. Uma pagã
selvagem e uma fanática tola, cheia de arrogância e paixão por auto-
destruição, casta como um retábulo de altar e ardendo com mística e
escura sensualidade como uma floresta primitiva; rigorosa, mas sedenta
de ternura, cercando-se de barreiras insuperáveis, odiando quem ten­
tasse derrubá-las, odiando-o por respeitá-las — e tudo isso, acima de
tudo, sob uma má estrela. Há muitas pessoas que vivem sob uma má
estrela. Falta-lhes luz. Elas desejam seu negro destino, perseguem-no
até muito longe e o desafiam até ele chegar e pisoteá-las. Assim
era ela... ”
Em sua pequena cela, Maurizius refletira interminavelmente
sobre a natureza dessa mulher e também fizera dela um julgamento
terrível. Para conhecer alguma coisa sobre ela, pensa ele consigo
mesmo, seria preciso abrir o peito dela e examinar seu coração.
Não havia verdadeiro cerne em sua natureza. “Ela é destruidora,
venenosamente solitária e egocêntrica, limitada em si própria e em
seu próprio destino.” Falando consigo mesmo em voz alta, na presença
de Andergast, ele resume a relação em uma palavra: narcisismo.
“Vasos aos quais nós damos o conteúdo, talvez mesmo a alma e certa­
mente seu movimento e sua destinação. Talvez eles só se tomem
nossas vítimas porque estão tão narcisisticamente presos em si pró­
prios. E que é narcisismo? Ê algo que não tem corpo e eles nos tornam
responsáveis, nos fazem pagar até o dia do julgamento por desejarmos

123
abraçar uma coisa que não tem corpo, uma mera imitação de ser
humano...”
Às vezes, pensando em Anna Jahn, pois em minha mente ela
está viva e suas raízes estão em toda parte, em todos os nossos
pensamentos, todas as nossas ações... às vezes, digo eu, chego a
compará-la a mulheres que conheço e que se assemelham a ela, todas
figuras misteriosas, extraordinariamente belas, sedutoramente tristes
ou melancólicas, e todas distintamente angélicas. Em cada caso elas
se movem como que em uma teia, tecendo os destinos que as cercara
a cada passo que dão, com suas vidas inextricavelmente presas a
outras vidas, mas em tal grau que se alguém tentasse separá-las com a
tesoura se veria cortando um fungo semelhante a esponja — ou uma
daquelas bolas de tiras de elástico que crianças fazem para vê-las saltar
acima de telhados. Se alguém ousar abrir uma porta na vida de
tais pessoas será imediatamente sugado como que por um vácuo. Elas
são como flores que engolem você inteiro e o digerem durante a noite.
Em todos esses vampiros angélicos, eu encontrei um fato curioso que
se repete — elas conseguem ser violadas ainda muito moças. A mulher
Fílipovna (em Dostoiévski) é um exemplo clássico. Mas mesmo na
vida elas são clássicas, todas são exemplos clássicos. A gente nunca as
aceita inteiramente como vivas: elas nos vêm das páginas de livros,
dos sonhos de santos e loucos. Que temos corações parecem ter até
que se sonda a profundidade de sua crueldade, que é abismai. Facas
e revólveres florescem em sua presença, mas ninguém sequer se admira
da incongruência desses acessórios, tão natural parece que esses seres
seráficos auxiliem em toda execução de crime. Verdadeiramente, sua
presença entre nós é misteriosa, pois elas não são desta terra, nem
do submundo. No jardim da diversidade feminina, elas são como
que camélias negras. São as flores em que anjos se disfarçam quando
esquecem sua origem. Sua inocência perdida atua como um ímã que
permite ao organismo abarcar toda contradição e irradiar confusão.
A terra gira sobre seu eixo uma vez por dia, mas esses anjos perdidos
recusam não apenas a girar, mas também a morrer. Da vida eles
passam rapidamente para lenda e da lenda voltam novamente à vida.
Sua morte é apenas um Scheintot.
Quando, em minha imaginação, dirijo o filme de The Maurizius
Case, vejo Anna Jahn aparecendo em toda cena. Não sou capaz de
imaginar qualquer dos personagens existentes exceto dentro dela e
através dela. Se a vejo nua, ela é como uma daquelas virgens medievais
que iluminam as páginas de livros raros. Se a vejo vestida, é sempre
na sedução aveludada de sua própria pele. Sempre que ela aparece,
flores saltam, flores pesadas de orvalho e de irresistível fragrância;
saltam em sua esteira, como os fogos de artifício fosforescentes cria­
dos por um veloz navio. Perpetuamente um sorriso paira sobre seus
lábios. Mas é um sorriso de tão infinita tristeza que a gente não o

124
reconhece; é como uma pálida lua crescente em uma noite na qual as
estrelas estão embriagadoramente brilhantes. Desse corpo em que tanta
tristeza e esplendor estão ancorados provém uma constante emanação
de figuras iradas, todas Annas Jahn, mas todas variando em brilho
e gravidade, como se estivessem vomitando um cálculo infinito de
seu próprio peso atômico. Isso empresta a todo encontro uma atmos­
fera de ultralucidez (Blake’s Vegetable Eye.) O corpóreo e o espiritual
misturam-se, mas diafanamente. Tudo tem lugar nos “ares”, sendo a
deixa dada desde o mundo dos mortos. No plano do narcisismo, onde
ela está encalhada como um farol abandonado, o drama não tem o
menor sentido. Ela é simplesmente um campo heráldico no qual o sim­
bolismo predomina. Nada se agita em sua alma, pois ela é de vidro de
um extremo a outro, imóvel. Mas nas emanações todas as potências
e principados refletem seus conflitos como uma voragem. E de fan­
tasma a fantasma, presos como estão em uma miríade de filamentos
de um gigantesco casulo, tremores passam convulsivamente coroo os
estremecimentos de um polvo incinerado.

Aqui devo deixar Anna Jahn por enquanto. Que sua alma repouse
em paz. É outro dia, e minha mente não está mais trabalhando em
imagens cinematográficas. “Agostinho diz que Deus deve existir porque
o encontrou nos vastos palácios de sua memória.” Leio isso em um
dos livros recentes de Wallace Fowlie. As palavras me perseguem,
especialmente a frase “nos vastos palácios de sua memória”.
The Maurizius Case está cheio de vastos palácios de memória.
Mas por qualquer razão Deus está ausente. Parece que todos os perso­
nagens do livro, todos os principais certamente, estão exsudando suas
memórias de tristeza e desespero. Quando se deixa cair o livro, tem-se
a impressão de haver habitado um cemitério. As memórias transfor­
maram-se em ossos mortos e os ossos estão cheios de vermes. Maurizius
é memória encarnada. Nele, todos vivem e morrem vezes e vezes.
Não só indivíduos, mas raças, civilizações. Toda noite ele produz uma
nova floresta de memórias. Toda noite? Todo minuto do dia, pois os
minutos são divididos em segundos e os segundos estão separados por
anos-luz. Quanto a Waremme, nele todas as culturas são recapituladas,
digeridas e jogadas aos cães. Nele vivemos atrás das épocas de ouro
do passado. Ele lá está como, algo filtrado através dele, até mesmo o
conhecimento de Deus. Ele é a voz da nostalgia. Parece mais solitário
do que o prisioneiro Maurizius. Nada pode atenuar sua miséria: ele é
o próprio espírito de uma idade agonizante. Nele a condenação do
mundo cultural ressoa como a voz perdida do dinossauro. Ele vive na
“fenomenologia da mente”.
Todos são almas angustiadas — Andergast, Elli, a esposa, Anna
Jahn, a mãe de Etzel, o velho Maurizius, todos eles. Que Alemanha!

125
Que mundo! No entanto, é um mundo cheio de riquezas, como
Waremme constantemente nos revela. Não é o terreno baldio da
mórbida imaginação de Eliot. Nem é a Alemanha deste exato momento
cronológico, quando, de acordo com notícias de jornais, 20.000.000 de
almas estão correndo de um lado para outro como baratas, sem saber
como ou onde escapar das bombas que se aproximam. Nesta Alemanha
existem ainda belos quadros; sente-se cultura em toda parte, mesmo
no interior das muralhas da prisão. As pessoas conversam em uma
linguagem que é estimulante e muitas vezes elevada. Apesar da estru­
tura burguesa em que tem lugar o drama, há um forte calor humano
impregnando tudo. Espírito existe, ainda que seja viciado. Não é um
deserto. Não é um vácuo. Grande parte disso devemos a Wassermann,
mas a maior parte devemos à própria Europa. Mesmo a falta de solução
do problema devemos à Europa, àquela perfeita visão das coisas que
reconhece ser a tragédia a própria essência do mundo.
Ainda esta manhã eu estava olhando alguns velhos cartões postais
da Europa. Que terrível nostalgia senti! Muitas daquelas esquinas
não existem mais; muitas das catedrais foram reduzidas a pedaços
pelas explosões, Mas serão reconstruídas. A Europa sempre terá uma
aparência diferente de nosso mundo. Mais velha, marcada por cica­
trizes, crivada de memórias. Uma aparência mais humana, apesar da
incessante luta e carnificina que encheram sua história. Precisamos
desse mundo, ainda que nele não exista um único Hamilton La Due
com sua “radiante cara de aniversário”. Precisamos de homens que
desesperem, assim como de homens que esperem. Mas, acima de tudo,
precisamos das riquezas da Europa. A América é uma terra empobre­
cida: tem tudo e não tem nada. É verdade que existem aqui homens
iguais a La Due, mas não como folhas de capim. E se pedissem
minha opinião honesta, se me perguntassem em qual deles eu prefe­
riría viver, no mundo de La Due ou no mundo de Waremme, eu
escolhería o último. Mesmo que Waremme seja o Diabo encarnado,
pode-se ter uma conversa com ele, pode-se ficar à vontade com ele.
Não há abundância de diabos e demônios nas fachadas das grandes
catedrais? Ninguém se afasta dos grandes portais de uma catedral
porque o Diabo também está representado. No mundo de La Due eu
não vejo edifícios simbólicos de espécie alguma. Reconheço o coração
generoso, os instintos bons, o desejo de servir, e lhes faço toda jus­
tiça. Mas é preciso mais do que isso para construir um mundo.
O Caso Maurizius, como o Caso Dreyfuss, o Caso Tom Mooney,
o Caso Sacco Vanzetti, o Caso Bridges — que dossiê de casos poder-
-se-ia compilar! — enchem a gente de tristeza e desespero, não por
ter havido um erro judiciário, mas porque a própria sociedade é
revelada como uma vasta teia na qual todos os seus membros, bons
e maus, estão presos e se contorcem impotentes. Todos os membros

126
inteligentes da sociedade sabem que os códigos legais e morais de
suas respectivas terras são inadequados, mas o que não sabem, até
termos um “caso” célebre, é que nada pode ser feito, que as mãos
de todos estão amarradas. Só quando uma flamejante injustiça está
sendo perpetrada é que percebemos como é vazia a cultura do mundo.
De repente, todo o edifício parece estar pobre — os vermes tomam-se
visíveis. A maré histórica arrasta-nos: concordamos com um sinal
de cabeça, resmungamos ou fechamos os olhos. Um caso segue-se a
outro e finalmente há um holocausto. O edifício desmorona, cam­
baleia, estrondeia sobre nossos ouvidos. Mais um capítulo é acrescen­
tado à nossa ignominiosa história. Mas o homem sobrevive a tudo,
mesmo aos vermes.
Talvez a coisa mais terrível que pode ser dita sobre o homem
civilizado é que sua instrução de maneira nenhuma o ajuda a melhorar
as condições. Em todo conflito grave vemos que há em ação forças
fora de seu controle. Ele pode decidir esposar o bem, mas isso não
significa que possa realizar o bem. Mesmo o fervor com que se sacri­
fica é muitas vezes suspeito. Etzel Andergast, como acentuamos antes,
é um exemplo do tipo que se agita em favor do bem e do direito por
motivos errados. Ele simboliza o trágico dilema da sociedade em
geral, que encontra sua nêmesis no inconsciente. De que adiantam
os nobres e elevados ideais incutidos por nossa cultura se somos
continuamente traídos por nossa inerradicável paixão? Implorar que
paremos e abordemos nossos problemas por outro ângulo, como reco­
menda Klakusch, é impossível. Nós e nossos problemas somos uma
só criação. Cada idade tem seus problemas peculiares, assim como
cada tipo de indivíduo tem os seus. Quanto melhor o homem, maiores
seus problemas. E o mesmo com um povo, o mesmo com uma época.
É nossa condição peculiar, nesta idade, termos consciência de soluções
que sabemos estar dentro de nossas possibilidades efetuar. Soluções,
digo eu, não ajustamentos. A neurose generalizada em que os membros
de nossa sociedade civilizada estão presos significa exatamente isso.
É por isso, imagino eu, que Wassermann passou do impasse do Caso
Maurizius para o impasse mais complicado e mesmo mais desesperado
do Doutor Kerkhoven, principal figura no segundo livro da trilogia.
Mas que descobre Kerkhoven? Exatamente o que todos os nossos
curandeiros de hoje enfrentam — o fato de não poder atender a
multidão de pessoas doentes que o assedia. Psicanálise não é solução,
assim como não o seria a segunda vinda de Cristo. Para curar a
consciência doente do mundo é necessária uma perspectiva totalmente
nova. Não um salvador. Cada homem terá de salvar a si próprio,
agora, se nunca antes. Porque agora sabemos que nenhuma outra
solução é possível. Tentamos todas elas, vezes e vezes. Esta é a lição
da história — a futilidade de todas as outras tentativas. Esta é a
significação da ratoeira que se chama interpretação cíclica da história.

127
Não importa se alguns percebem dentro das repetições do ciclo uma
espiral para cima ou para baixo... o ciclo precisa ser rompido.
Precisa haver saída, ou o homem, como o conhecemos, voltará a
algum nível subhumano. Esta é a questão. Não será decidida da
noite para o dia, por guerra ou revolução, nem por revivescência
religiosa. Exigirá séculos de luta. E o homem tem resistência para
ela, especialmente à medida que tomar-se mais consciente da natureza
daquela luta. Em certo sentido, esta é uma luta apocalíptica. O homem
tem agora diante de si dois caminhos — para trás e para frente. Tem
uma oportunidade de escolha, como nunca antes teve. Forjou uma
nova consciência e isso significa que precisa avançar para um novo
nível de conhecimento ou ver-se diante de aniquilação. Este não é
um pensamento reservado apenas aos metafísicos e analistas. Está
hoje no coração de todo homem, aguilhoa-o e atormenta-o, fazendo
dele a criatura doente e impotente que é.
Não estou falando de um milênio futuro. Haverá perpétuo con­
flito, perpétua guerra. Mas esses problemas que nos adoeceram mor­
talmente logo não existirão mais. Avançaremos para um outro plano,
capazes de enfrentar problemas maiores e mais nobres. As guerras
não cessarão. Esta forma particular de sofrimento que tem o nome
de guerra será ainda indispensável, mesmo que apenas em razão de
tornar-se cada vez mais crítica, cada vez mais discutível, à medida
que os homens avançam para um nível de consciência mais elevado,
a capacidade de dispensar os meios puramente físicos de expressão.
Há uma tremenda extensão de escuridão a ser atravessada e é uma
escuridão cheia de rios de sangue. O que os quatro séculos de peste
e pestilência foram para a Europa, guerras e revoluções serão para
o futuro do mundo inteiro. Mas esses cataclismas assumirão caráter
diferente à medida que avançarmos através deles. Basta apenas pensar
nos vários estágios de iniciação, em sua qualidade cada vez mais
aterrorizadora, para compreender o que se quer dizer aqui. Todo
nascimento de consciência exige uma agonia suprema e até agora
inigualada. E nós estamos, sem dúvida, no limiar de uma nova visão
das coisas. Por mais aterrorizadora que seja a perspectiva, isso pode
ser dito a seu favor — o nascimento de uma nova idade exalta a
coragem dos homens. O desespero e aversão com que os homens têm
ido à guerra nestes últimos séculos cederão à medida que eles come­
çarem a perceber a luz de um novo dia.

FINIS

128
Mamãe, China e o Outro Mundo

HENRY MILLER

1977
NOTA PRELIMINAR

Este texto foi inspirado por um sonho no qual


eu morrí e me vi no Devachan (limbo) onde encon­
trei minha mãe, que odiei durante toda minha
vida.

Mamãe
Eu não percebí que havia morrido — eu parecia tão vivo —
até que vi minha mãe aproximar-se. Então ocorreu-me que eu também
devia ser o que chamamos de morto. Eu não tivera tempo de tomar
conhecimento do que me cercava; tudo parecia muito natural, ainda
que diferente.
O que imediatamente me impressionou foi a expressão radiante
no rosto de minha mãe. (Era realmente algo novo para mim.) Ela
parecia mais nova do que eu jamais a vira, mesmo quando menino.
Estava quase alegre.
— Oh, Henry — exclamou ela, quando nos aproximamos mais
— você não sabe como estou contente em vê-lo. Esperei por você
tanto tempo. Que foi que o prendeu tanto tempo na terra?
Um jorro de palavras correu para meus lábios, mas tudo quanto
pude proferir foi: “Mamãe, querida Mamãe”. Também não parecia
haver necessidade de palavras. Eu ainda estava vivo, mas em um
novo sentido. Tinha uma inteligência diferente, todo um novo con­
junto de emoções. Acima de tudo, estava em paz — num estado de
bem-aventurança, mais exatamente.
— Onde estamos nós? — consegui finalmente dizer.
Minha mãe encolheu os ombros, sorrindo.
— Não sei — respondeu. — Ninguém faz essa pergunta. Esta­
mos contentes como somos e onde estamos. É apenas um vasto e
interminável espaço, sem tempo, apenas momentos de eternidade.
Essa era a mais extraordinária declaração que podería ser feita
pela mãe que conhecí lá embaixo.
— Mamãe, você deve ter aprendido muita coisa desde que está
aqui — disse eu.
— Filho — respondeu ela — só há uma coisa pior do que
ignorância, é a estupidez. Não me admira que você não pudesse tole­
rar-me lá embaixo. Eu era estúpida, terrivelmente estúpida.

130
Comecei a contraditá-la, mas ela continuou falando.
— Como vê, filho, a única coisa que temos a fazer aqui é
aprender com nossos erros, para que, quando estivermos prontos a
encarnar-nos novamente, tenhamos aprendido nossa lição. Temos
aqui todo o tempo em nossas mios. Alguns aprendem mais depressa
do que outros e vão embora antes que cheguemos realmente a
conhecê-los.
— Diga-me — perguntei, interrompendo-a. — Existe aqui algu­
ma espécie de governo?
— Oh, não — respondeu ela depressa. — Aqui não há neces­
sidade de governo. Somos todos capazes de governar-nos. Como vê,
uma das primeiras coisas que acontece à gente é a perda de todo
ódio, todo rancor, todo preconceito. Além disso, aqui não há nações.
. É apenas um grande mundo, uma grande família.
— Como você consegue viver, quem fornece a comida, quem
faz o trabalho pesado?
— Não há trabalho algum a fazer — disse Mamãe. — Tudo
quanto você deseja você tem. Onde quer que deseje ir, você só
precisa desejar e estará lá, o lugar vem até você. Lembra-se que
em casa, no quarto de despejo, havia uma guitarra que ninguém
tocava? Aquela guitarra era minha,,. mas eu havia esquecido como
tocar. Aqui tenho uma guitarra a qualquer hora que deseje e sou
capaz de tocá-la muito bem... Espere um momento e lhe mostrarei.
Para meu espanto, um momento depois havia uma guitarra em
sua mão e ela estava tocando habilmente.
— Você toca como Segovia — exclamei, cheio de admiração.
— Segovia está aqui — respondeu minha mãe. — Conheci-o
e ele me deu algumas lições. A gente aprende tudo depressa aqui.
O importante é o Desejo.
De repente, ocorreu-me que meu pai não estava por ali. Quando
perguntei se sabia onde ele estava, ela respondeu: — Provavelmente
em algum canto distante. Não me encontrei com ele ainda.
— Você não sente falta dele? — perguntei.
— Não, filho — disse ela. — Não sinto falta de pessoa alguma
ou de coisa alguma. Aqui a gente aprende a contentar-se muito
depressa. Além disso, seu pai talvez ainda esteja bebendo até perder
a cabeça, entende? Isto não é o Céu. Duvido que haja tal lugar.
— A propósito — acrescentou — não lhe perguntei se você
gostaria de comer e beber alguma coisa. Se quiser, pode ser servido
instantaneamente. Pode ter Chateubriand com cebolas e purê de bata­
tas. Você sempre gostou de cebolas.

131
— Obrigado, mamãe, eu não quero nada. Sinto como se tivesse
de tudo. O próprio ar dá sustento. É como respirar um elixir...
Oh, isso me faz lembrar, pareço não ver o céu.
— Não há isso aqui — respondeu ela rapidamente. — Ouvi
pessoas referindo-se a isso como céu astral. Neste momento, nós
estamos em nossos corpos astrais. Pelo menos é o que me disseram.
Mas não faz a menor diferença para mim que espécie de nome eles
dão ao corpo. Serve-me perfeitamente.
— Quer dizer que você nunca tem dor de dente ou dor de
ouvido, não tem prisão de ventre, nem diarréia?
Minha mãe sacudiu a cabeça vigorosamente.
— Você não gostaria de ficar aqui para sempre? — perguntei.
Novamente ela sacudiu a cabeça.
— Não, filho, nosso lugar é na terra. Precisamos voltar vezes
e vezes até ela tomar-se um lugar adequado para viver. Seria egoísmo
de minha parte ficar aqui neste paraíso e deixar os terrenos sofrendo.
Essa foi de fato uma declaração surpreendente, partindo de
minha mãe. Eu passara, num espaço de tempo muito curto, não
apenas a gostar dela, mas a respeitá-la e admirá-la.
— Mamãe — disse eu de repente — há em minha mente uma
questão que me preocupa. Só você pode resolvê-la.
— Eu não sou dotada de toda sabedoria — disse ela — mas
pergunte-me, talvez eu possa ajudar.
— É isto, mamãe. Quando eu estava em Londres, alguns anos
atrás, um amigo meu levou-me para conhecer um médium. Era um
homem espantoso esse médium. Mal eu havia sentado, por exemplo,
quando ele me disse: “Seus livros causaram grande perturbação, não
causaram?” Ninguém lhe dissera que eu era escritor. Logo depois
ele me disse que meu maior companheiro no além era meu irmão.
Eu tive um irmão... Talvez um irmão que tivesse morrido antes
de eu nascer?
Minha mãe hesitou um momento antes de responder.
— Filho — disse ela — aquele homem estava certo. Eu tive
um filho natimorto, antes de você nascer. Era um menino.
— Então ele provavelmente está aqui também — exclamei eu.
— Sim e não — disse minha mãe. — Ele podería já ter voltado
à terra.
Um homem aproximou-se de nós de repente e agarrou meu braço.
— Você é Henry Miller, não é? — perguntou ele com um
sorriso.
Olhei para ele, mas não consegui reconhecê-lo.

132
— Você não se lembraria de mim — disse. — Foi há muito
tempo que nos conhecemos. Você era ainda muito moço. Deu-me
um emprego de mensageiro. Eu estava em liberdade condicional
depois de dez anos na prisão por ter baleado minha esposa. Você
ouviu minha história, incluiu-me no corpo de mensageiros e adian­
tou-me dez dólares de seu bolso. Lembra-se agora de mim?
Sacudi negativamente a cabeça. Aquilo havia acontecido tantas
vezes que eu não poderia lembrar-me de todos. De repente ocorreu-me
que a maioria dos 100 000 homens, mulheres e meninos que eu
entrevistara quando gerente de pessoal da companhia telegráfica devia
estar aqui agora. Eu provavelmente sobrevivera a todos eles. E com
isso comeci a pensar em alguns dos estranhos personagens que
conhecera naquele período.
Neste ponto, minha mãe interveio para dizer-me que acompanha­
ra minha carreira como escritor até o fim.
— Eu estava tão feliz por você — exclamou ela. — Você
queria tanto ser um grande escritor e depois de muita luta conseguiu.
— Talvez o médium tivesse razão — observei. — Talvez meu
irmão me ajudasse sem que eu soubesse.
— Muitas pessoas aqui fizeram o que podiam para ajudá-lo
— disse minha mãe. — Você causou sensação até neste mundo!
— Mamãe — disse eu abruptamente — há uma pessoa que eu
gostaria muito de conhecer, se ainda está aqui. Lembra-se daquela
primeira moça que eu amei loucamente?
Minha mãe sacudiu a cabeça.
— Não penso que nos tenhamos encontrado. Provavelmente ela
não quer encontrar-se comigo.
— Por que você diz isso? — perguntei.
— Porque nunca simpatizei muito com qualquer das mulheres
pelas quais você se apaixonou. A verdade é que nunca achei qualquer
delas suficientemente boa para você.
— Mamãe, que bom você me dizer isso! Se pelo menos me
tivesse dito isso quando estávamos lá embaixo!
— Como lhe disse, filho, eu era uma mulher muito estúpida,
É também seu pai me dava muito trabalho.
— Você ainda o ama?
— Aqui nós não amamos à moda dos terrenos. Não fazemos
distinção entre uma pessoa e outra.
— Isso não é bastante monótono?
— Não, realmente. Além disso, ajuda a evitar muita angústia.
— É estranho — disse eu — mas sinto-me muito à vontade
aqui, embora esteja aqui apenas há alguns minutos. £ engraçado,

133
nlo é Céu e não é Inferno. E não vejo anjos voando ou tocando
harpa.
— Não existe Céu ou Inferno, filho. Tudo isso é bobagem. E
também não existe pecado. Isso 'é uma invenção dos judeus que os
cristãos adotaram e que desde então vem envenenando o mundo.
Quanto a Inferno, o verdadeiro inferno é na Terra.
— Mamãe, você disse o verdadeiro inferno. Há uma coisa que
eu queria perguntar-lhe. . Tudo aqui parece um sonho.
— Você está muito certo. Este é o mundo do sonho, a verdadeira
realidade. Lá embaixo tudo é ilusão. Só a imaginação é real.
Ela fez um momento de pausa a fim de apontar para dois
homens que passavam.
— Está vendo aqueles dois — disse. Está vendo os cigarros
pendurados em seus lábios. Bem, aqueles são cigarros de sonho...
têm gosto de fumo e cheiro de fumo, mas é apenas fumo de sonho.
Eles podem fumar quanto quiserem, que nunca terão câncer.
Então aqui não há pecado e não há câncer, meditei. Lugar
maravilhoso.
— Aqui as pessoas não são punidas por seu mau procedimento?
— perguntei.
— Não, aqui não existe punição. A menos que você chame de
punição o fato de nada ter para fazer, a não ser pensar nos erros
que cometeu quando estava na terra.
— Sim, mamãe, eu chamo a isso punição severa,
— Mas é punição auto-imposta. Há uma diferença. Você sabe,
meu filho, o universo é governado por leis. Se você viola a lei, tem
que sofrer a pena. Isso é apenas justo, não é? Ademais, como se
pode aprender, a não ser por experiência? Você talvez tenha notado,
aqui nós não temos escolas. Aqui a gente adquire sabedoria, não
instrução. Vivemos de acordo com nossos instintos e nossas intuições.
Assim permanecemos metade animais e metade humanos. Na terra,
a função do cérebro é muito exagerada. Pense naqueles todos cien­
tistas que falam em anos-luz e bilhões de estrelas. Isso é pura tolice.
Aqui tudo é simples e fácil de compreender. Quem criou o Universo
não pretendia que a vida fosse uma série de enigmas de palavras
cruzadas. Fê-lo para que fosse desfrutado. E é nisso que judeus e
cristãos acham tão difícil acreditar. Eles chafurdam em culpa. Nem
mesmo isso os faz felizes.
— Você conheceu judeus desde que está aqui?
— Não, filho. Eu prefiro os negros, os pigmeus, os zulus. São
pessoas maravilhosas, alegres. E onde viviam na terra não tinham
quase nada.

134
— Sabe? — continuou ela. — Quando eu nascer de novo,
espero vir a ser homem e preto. Eu me dou maravilhosamente bem
com aquelas pessoas.
Não pude deixar de sorrir. Mamãe estava muito diferente da
mulher que eu conhecera na Terra.
— Quanto tempo você pensa que ainda ficará aqui? —
perguntei.
— Cabe a mim decidir quando partir. Quando eu tiver escolhido
a família e o ambiente em que desejo nascer. Quando eu estiver
pronta para outra volta.
— Espero que você não vá logo, mamãe. Eu me sentirei perdido
sem você.
— Não, você não se sentirá — disse ela rapidamente. — Esta
é uma das primeiras coisas que a gente aprende quando chega aqui.
Confiança em si mesmo. Nada mais de solidão. Onde quer que você
vá, estará à vontade. Quem quer que você encontre, será seu amigo.
Quis saber se ela já encontrara almas de outros planetas. E, em
caso afirmativo, em que línguas elas se comunicavam. Não fiquei
surpreendido quando me disse que naturalmente já encontrara almas
de outros planetas — mesmo de outros universos. Não eram muito
diferentes dos terrenos — talvez os olhos fossem mais brilhantes e
a mente mais arguta. Mas, embora as pessoas do espaço exterior
pudessem compreender as pessoas daqui, estas últimas não eram
capazes de compreender as pessoas do espaço exterior.
(Esqueci de dizer que as pessoas daqui compreendiam todas as
línguas da terra, embora talvez não soubessem falá-las. Era como
se tivessem recebido o dom das línguas.)
Do pouco que pude ficar sabendo sobre as pessoas do espaço
exterior, parecia não haver coisa alguma muito misteriosa no universo,
O mistério era o homem, onde quer que estivesse. Isso causou grande
impressão em mim. Então havia alguma coisa de verdade no que
dizia a Bíblia, que o homem fora feito à imagem do Criador. E
conseqüentemente era um enigma para si próprio.
Depois de ouvir de seus lábios tanta coisa que tinha sentido para
mim, decidi perguntar-lhe francamente por que sempre fora fria
comigo. Eu queria particularmente saber por que nunca tivera uma
palavra de consolo para mim, quando sabia que meu coração estava
partido. Gostaria de saber se não poderia agora ajudar-me a localizar
Cora. Não, a única maneira de encontrar alguém aqui era pensar
firme, desejar a pessoa, que ela aparecería. Minha mãe pensava que
muito possivelmente Cora já havia voltado à Terra.
— Era uma boa menina — disse ela — só que eu não a vi
muitas vezes aqui. Eu sabia que você estava sofrendo, mas você

135
precisava resolver por si mesmo. Sempre acreditei em deixar as pessoas
fazerem o que desejam, mesmo quando desejam matar-se.
Decidi não falar mais em Cora, mas tentar encontrá-la por mim
mesmo.
Minha mãe aventurou-se, porém, a dizer mais algumas palavras.
— O verdadeiro lugar para procurá-la — falou — é a Terra.
Esse é todo o propósito do amor... — descobrir a sua outra metade.
Às vezes, a busca continua por mil anos.
Essas observações intrigaram-me.
— Ora, mamãe — exclamei — você parece ter lido Marie
Corelli.
— Marie Corelli... Marie Corelli... — repetiu ela algumas
vezes. — Sim, filho, esse nome me é familiar. Eu a li quando adoles­
cente. Lembro-me especialmente de um livro... A Romance of Two
Worlds. Todo mundo estava lendo este livro naquele tempo. Era a
moda. — Fez um momento de pausa. — Por que me pergunta sobre
ela? Você a leu também?
— De fato, li. Eu a redescobri quase no fim de minha vida.
Ela significou muito para mim. Mamãe, você acha que ela pode estar
aquil Ela morreu há apenas cinqüenta anos.
— Não tenho a menor idéia — respondeu mamãe. — Mas eu
já lhe disse como encontrar as pessoas que está procurando.
Suas palavras deixaram-me jubiloso. Que sorte eu tinha, pensei,
em estar aqui onde se encontravam tantos de meus escritores favori­
tos. Talvez eles tivessem um clube ou .formassem uma comunidade
própria. Eu procuraria não só Marie Corelli, mas também Dos-
toiévsky, Knut Hamsun, Hermann Hesse. Neste reino, eu tinha mais
probabilidade do que na terra de encontrar aqueles que desejava
encontrar.
Mas eu ainda não acabara de interrogar minha mãe sobre as
coisas que nos haviam distanciado na vida. Percebi, naturalmente,
no momento em que a encontrei, que ela era aqui uma pessoa intei­
ramente diferente. Como era bom trocar idéias com ela. Lá embaixo
quase não nos falávamos.
— Mamãe — comecei — lembra-se de uma mulher com quem
eu queria me casar e que era consideravelmente mais velha que eu?
Lembra-se do dia em que lhe falei sobre ela... nós estávamos sentados
na cozinha. .. você pegou uma grande faca de trinchar e ameaçou
enfiá-la em mim se eu dissesse mais uma palavra sobre casamento?
Se, como disse há um momento, você acreditava em deixar as pessoas
fazerem o que quisessem, por que ficou tão furiosa, tão violenta?
— Porque — respondeu ela — você estava fora de si. Era
apenas uma paixonite aguda, não era verdadeiro amor.

136
— Contudo — acrescentou — você foi viver com ela durante
alguns anos, embora não se casasse. Foram anos de tormento e sofri­
mento, não foram?
Sacudi a cabeça afirmativamente.
— Mas, mamãe, não importa se era uma paixonite. Era uma
boa mulher. Você devia ter tido um pouco de compaixão por ela.
Em resposta ela disse:
— Às vezes a compaixão da gente se esgota. O mundo lá
embaixo era tão cheio de miséria que, se a gente tivesse pena de
todos que estavam sofrendo, podería derramar rios de lágrimas.
Quando voltar à terra desta vez, terei mais coragem e força do
que antes.
Tendo passado por tanto sofrimento, miséria e humilhação, eu
podia apreciar suas palavras. Tinha mais uma pergunta vital a
fazer-lhe.
— Mamãe — comecei — nunca fui capaz de acreditar que
você preferia que eu fosse alfaiate em vez de escritor. Isso era ver­
dade ou você tinha alguma outra razão?
— Estou muito contente por ter-me feito essa pergunta. Natu­
ralmente, nunca quis dar a entender que um alfaiate era mais
importante que um escritor. (Embora deva confessar que depois de
estar aqui cheguei à conclusão de que uma coisa não é melhor que
a outra. Conheci aqui algumas pessoas maravilhosas que não tinham
a menor importância na terra.) Mas estou divagando. Eu queria que
você ficasse com seu pai, para guiá-lo e protegê-lo. Não podia suportar
vê-lo arruinado. Esta é a verdadeira razão pela qual queria que você
fosse alfaiate.
— Eu desconfiava disso — respondí. — Mas, mamãe, por que
você recusava ler tudo quanto eu havia escrito?
— Filho, seu pai falou-me sobre seus livros e eu não queria ler
aquela linguagem vinda de você. Eu sabia, quando você era menino,
que tinha as qualidades essenciais de um escritor. Lembra-se de todos
os livros que eu lhe dava em cada Natal? Eu invejava você por ter
todos aqueles maravilhos livros para ler. Desde o tempo em que me
casei com seu pai, nunca tive tempo sequer para olhar um livro.
— Pobre mamãe — disse eu. — E eu era tão tolo que pensei
que você não se interessava pqr livros. Como eu era estúpido!
Ela olhou para mim com ternura e disse:
— Depois que vim para cá descobri que livros não são tão
importantes quanto acreditamos na terra. Nós não temos jornais,
revistas ou livros. Eu diría que falando um com o outro estamos
lendo e escrevendo livros. E nós não temos também dores de cabeça

137
e colite. Cada dia adquirimos uma visão mais larga da vida, nos
tomamos mais tolerantes e mais em paz conosco e entre nós,
— Eu gostaria que alguns escritores que conheço ouvissem suas
palavras. Como está bem colocado! Agora vejo de onde veio meu
talento! Isso sempre foi um mistério para mim, sempre me preocupou.
Eu costumava consolar-me dizendo que numerosos gênios nascem de
pais muito comuns. Que egoísmo!
Ao que minha mãe observou:
— Ninguém tem vida fácil na terra. A terra é o campo de prova.
E, como observei antes, está mais próxima de ser o Inferno. O
tormento, a pobreza, a miséria da humanidade parecem ser vingança
de um deus cruel. Aqui não falamos em Deus ou deuses. Buda
também não falou, se você se lembra das palavras dele.
Eu estava ficando cada vez mais impressionado com as palavras
de minha mãe. Longe de ser uma ignorante, eu encontrara sabedoria
em suas palavras, Teria ela talvez andado em companhia de alguns
grandes escritores do passado? Devia haver muitos deles aqui, pensei
comigo mesmo. Mas, como logo descobri, os melhores haviam voltado
muito tempo antes para a terra. Algumas almas permaneciam apenas
uma semana ou um mês, enquanto outras ficavam séculos. Assim,
logo descobri que Dostoiévsky, Tolstói, Walt Whitman, Knut Hamsun
e alguns outros dos meus grandes favoritos não estavam mais no
limbo. Haviam aprendido depressa. Eu poderia ter-me encontrado
com Hemingway, Sinclair Lewis, Waldo Frank e outros iguais, até
mesmo Jack London, mas deixei passar.
Conhecendo minha preocupação com literatura, ela apontou para
certo canto onde eles geralmente se reuniam, mas eu não me interessei
em ir lá. De certo modo, estava aprendendo mais e divertindo-me
mais, simplesmente conversando com minha mãe. Desistira da idéia
de descobrir meu pai. Ele e Barrymore, seu companheiro de bebedeiras
lá embaixo, provavelmente haviam descoberto um agradável bar em
uma esquina distante.
Geralmente se presume que uma pessoa não sabe que está morta
até algum tempo depois de expirar. Isso certamente era verdade no
meu caso. Naturalmente, como observei antes, não existe tempo aqui.
Assim como nunca se vê uma escola, um aparelho de rádio ou tele­
visão, um telefone, também nunca se vê um relógio. Cinco minutos
podem parecer um ano e cem anos podem parecer alguns dias. Além
disso, é claro, não há sinais de automóveis ou trem. O céu é com­
pletamente diferente, mais parecido com o do Mediterrâneo, e as
estrelas brilham cintilantemente dia e noite. Falta também vida sel­
vagem, mas o ar é cheio de pássaros de toda espécie e todas as
cores. Cantando melodiosamente. O chão é cravejado de flores silves-

138
tres, cintilando como rubis, safiras, esmeraldas. No horizonte, as
beiras curvam-se para cima, dando a impressão de estar dentro de
uma panqueca ilimitada. Cansaço é quase desconhecido, pois este
corpo astral nunca se desgasta. Coisa notável é que ninguém parece
ter pressa. Nada tem grande importância ou urgência. Tudo parece
natural, extremamente natural. A gente sente-se à vontade e em paz
imediatamente. Os intelectuais e cientistas, com suas causticantes
questões e duvidosas teorias, compartilham aqui um repouso aparen­
temente eterno.
Tive a premonição de que minha mãe estava se preparando para
voltar à Terra. Perguntei-lhe como nos reconheceriamos quando eu
também voltasse à Terra. Ela disse que não havia meio. A gente
apenas sentia que conhecera outra pessoa em uma existência anterior.
Enquanto falava, lembrei-me de todas as coisas que ouvira na Terra
a respeito de reencarnação, carma etc. Quase toda gente que eu
conhecia havia experimentado alguma estranha “coincidência” em
um momento ou outro de sua vida. Foram muitas as vezes em que,
num país estrangeiro, eu andei por uma rua em que já estivera antes,
em que eu reconhecí todas as casas do quarteirão. Aconteceu também
muitas vezes encontrar alguém e reconhecê-lo instantaneamente. Talvez
nos tivéssemos encontrado no Egito, na China ou na África. Apesar
de todos os argumentos dos cínicos e descrentes, a existência da alma,
da eternidade da vida, era bem conhecida dos terrenos. Se havia
uma coisa como Inferno na Terra, havia também “vislumbres de
outras realidades”. “Realidade” não era exatamente a palavra sobre
a qual discutiam filósofos e metafísicos? Entretanto, acontecia muitas
vezes que um camponês simples e ignorante ou um dos chamados
idiotas conhecia mais sobre tais assuntos do que o sábio. Por mais
que desejasse ver de novo minha mãe, por mais que desejasse encon­
trar-me de novo com Cora, comecei a sentir cada vez mais que esco­
lhería outro planeta em lugar da Terra para voltar. Embora tivesse
tirado o maior proveito de uma vida difícil, embora tivesse aprendido
a transformar o mal em bem, eu ainda achava que a Terra nada mais
tinha a oferecer-me. Se possível, eu escolhería não só outro planeta,
mas outro Universo! Eu não estava mais procurando aprovação, mas
confirmações.
Refletindo sobre a ausência de figuras como Marie Corelli e
Rider Haggard, comecei a suspeitar que elas haviam escolhido um
mundo diferente daquela de onde tinham vindo.
A única coisa que eu rezava para jamais tomar a ver era
violência. Um mundo sem crime, sem guerra ou revolução, sem
doença e pobreza, sem rancor e preconceito parecia, no meu modo de
pensar, o único Céu verdadeiro. Que os mortos matem os mortos,
pensei comigo mesmo. Por maluco que isso pareça, tinha grande

139
sentido para mim. Nem um sequer de nós teve verdadeira oportuni­
dade na Terra. Mesmo os ricos eram miseráveis. Mesmo os homens
de gênio sofriam atribulações de toda espécie. Nem os bons haviam
sido poupados. Era como se o planeta estivesse doente ou condenado.
Un monde maudit, Não era de admirar que os brilhantes fossem os
poetas, os loucos, como Blake e Rimbaud. Não era de admirar que
tudo estivesse de pernas para o ar. Não era de admirar que o homem
estivesse começando a explorar o espaço exterior — a fim de
descobrir novos lares para uma humanidade que definhava, uma
humanidade que matara a mãe que a dera à luz.
O crime de odiar minha mãe quando vivo parecia-me agora
enormemente significativo. Eu era de fato, como escrevera em algum
livro, “um traidor da raça humana”. A única saída para mim era
deixar o planeta de uma vez por todas, encontrar outro Céu e Terra,
outro Deus ou deuses. Parecia agora absolutamente sem importância
procurar meus amados escritores. Eu sabia agora que eles nio pode­
ríam dar-me consolo, nem sabedoria. Todo o negócio de literatura
parecia completamente fútil.
Se minha mãe estava preparada para partir, eu certamente não
o estava. Havia muita coisa que ainda tinha a descobrir — talvez
eu ficasse retido mil anos. Tanto melhor, pensei comigo mesmo.
Talvez depois daquele tempo nenhum mundo fosse reconhecível. Talvez
houvesse um novo Céu e uma nova Terra em toda parte, em todos os
Universos.
Durante essas reflexões, minha mãe fugira de minha vista sem
que eu percebesse. Olhei à minha volta, mas não pude ver traços
dela. Teria já voltado para a Terra? A simples idéia de tal possibi­
lidade encheu-me de profunda tristeza. Deixei-me cair ao chão e
segurei a cabeça com as mãos.
Quando ergui os olhos, avistei minha mãe a certa distância. Ela
parecia estar indo embora. Olhando mais cuidadosamente, observei
que estava acenando, estava dizendo adeus.
Então levantei-me, com os olhos cheios de lágrimas, e dando
um clamoroso grito, exclamei:
— Mamãe, eu a amo. Eu a amo\ Está-me ouvindo?
Imaginei ter visto um fraco sorriso iluminar seu rosto e depois,
de repente, ela não se encontrava mais ali.
Eu estava sozinho, mas mais sozinho do que nunca me sentira
na Terra. E ficaria sozinho, talvez, por séculos ou, quem sabe, talvez
por toda a eternidade.
Henry Miller
Finis
19-8-76

140
China

Mesmo quando menino, o nome China evocava em mim estra­


nhas sensações. Significava tudo quanto era vasto, maravilhoso,
mágico e incompreensível. Dizer China era virar as coisas de cabeça
para baixo.
Como é maravilhoso que esse mesmo nome China desperte no
velho que está escrevendo estas palavras os mesmos estranhos e
incríveis pensamentos e sentimentos.
Uma das lembranças especiais que eu tenho da China é que
ela esteve à frente do mundo em tudo. Seja em cozinha, cerâmica,
pintura, teatro, arquitetura ou literatura, a China sempre foi a primeira.
Impressionante e absurda ilustração disso é o fato de no Japão
de hoje, segundo me contaram, os melhores restaurantes serem
chineses.
Só há uma arte em que para mim os chineses nunca se desenvol­
veram: a música. Para meus ouvidos ocidentais, a música chinesa
tem um som horroroso. (Contudo, quando vivia em Paris, um via­
jante que regressava deixou-me uma coleção de discos chineses.
Depois de algum tempo, acostumei-me um pouco àquela música esqui­
sita, mas nunca fiquei apaixonado por ela.) Talvez eu esteja errado,
mas duvido que a China já tenha produzido um Beethoven, um
Bach, um Mozart, um Debussy ou um Schumann.
Recentemente, lendo uma biografia de Gêngiskhan, fiquei sur­
preendido ao descobrir que seu exército penetrara a muralha da
China (no século XI) exatamente como os alemães circundaram a
Linha Maginot.
O que talvez pareça incrível aos chineses de hoje é que, de
acordo com alguns eruditos, a grande Muralha foi construída em
dois ou três dias! Todo homem, mulher e criança foram postos a
trabalhar, de acordo com o relato.
Ouvi um dia uma história igualmente espantosa na sala egípcia
do Louvre. O francês que me levou lá para ver o forro do templo
de Denderah apontou para o zodíaco sobre nossas cabeças, o qual,
disse ele, indicava que a história egípcia datava de 40 000 anos e não
de cinco mil, como geralmente nos contam.
Nós do mundo ocidental somos muito novos, meros bebês em
comparação com os hindus, chineses e egípcios, para mencionar
apenas alguns povos. E, com nossa juventude, vão nossa ignorância,
estupidez e arrogância. Pior ainda, nossa intolerância, nossa incapaci-

141
dade até mesmo para tentar compreender os modos de outros povos.
Nós, nos Estados Unidos, somos talvez os piores pecadores.
Pense, por exemplo, que não foram nossos estadistas que con­
seguiram abrir a porta da China, mas um punhado de jovens e
entusiásticos jogadores de pingue-pongue!
Quando me disseram pela primeira vez que eu poderia escrever
uma matéria para uma revista chinesa — sobre o assunto que eu
escolhesse — fiquei virtualmente sem fala. Depois senti-me aterro­
rizado. Mas finalmente o que me fez voltar a mim foi a lembrança
de que aquilo que eu mais amava nos chineses era humanidade. O
ditado romano aplica-se aos chineses ainda mais do que os romanos:
“Nada humano está abaixo de mim.”
Essa qualidade humana combinada com um belo senso de humor
é o atributo salvador de um grande povo. Eu devia também acres­
centar a capacidade de persistir, manter-se firme em qualquer cir­
cunstância. No famoso livro Siddartha, Hermann Hesse faz seu herói
dizer: “Eu sou capaz de pensar, sou capaz de esperar e sou capaz
de passar sem.” Para mim essas qualidades tornam um homem
invencível, especialmente “esperar e passar sem”. Os Estados Unidos
não conhecem nem uma nem outra. Talvez seja por isso que com
200 anos de idade já mostram sinais de estar caindo aos pedaços.
Quando vivi em Paris (1930-1940), meu amigo Lawrence Durrell
apelidou-me de “homem com alicerce chinês”. Nunca recebi maior
cumprimento.
Penso sempre que é possível eu ter sangue oriental em, minhas
veias. Com isso, quero dizer mongol ou chinês. Muitas pessoas,
quando se encontram comigo pela primeira vez, perguntam se eu não
tenho sangue asiático. Isso sempre me agrada imensamente. Nunca
quis ser tomado como descendente dos alemães, como sou.
Mesmo em meus escritos, noto que tenho afinidade com os
chineses. Eu digo o que é, o que foi, o que está acontecendo. Não
me entrego a longas análises psicológicas. Penso que o comporta­
mento do personagem deve falar por si mesmo. E, no entanto, o
escritor que eu mais admiro é o russo Dostoiévsky. Certamente,
ninguém poderia estar mais longe dos chineses do que Dostoiévsky.
Pergunto a mim mesmo como os chineses consideram a obra
dele. Será ele amado ou evitado? Para mim, sem Dostoiévsky havería
um fundo buraco negro na literatura mundial. À perda de Shakes-
peare, que também deve parecer um homem selvagem para os
chineses, não seria tão grande quanto a de Dostoiévsky.
É estranho que eu nunca tenha visto os países que mais desejava
visitar: Índia, China, Tibete, Japão, Islândia. Mas vivi com eles em

142
minha mente. Uma vez tentei persuadir o editor de uma revista
britânica a deixar-me fazer uma viagem a Lhassa, Timbuctu e Meca,
sem escalas intermediárias. Mas não tive sorte. Todas as três cidades
parecem lugares misteriosos e vivem em minha imaginação.
Tenho consciência de que em toda esta matéria eu não fiz
distinção entre a República Popular da China e Formosa (República
da China). Eu não estou interessado em ideologias ou política. Acho
que pessoas são pessoas em toda parte, mesmo na região mais negra
da África. Quando penso na China, penso nos chineses como um
povo, não nas coisas que os* dividem.
Os Estados Unidos tentam dar ao mundo uma imagem de nação
unificada, “una e indivisível”. Nada poderia estar mais longe da
verdade. Nós somos um povo dilacerado por conflitos, dividido de
muitas maneiras e não apenas regionalmente. Nossa população contém
algumas das pessoas mais pobres e mais abandonadas do mundo.
Provavelmente contém também as pessoas mais ricas de qualquer
país do mundo. Há preconceito de raça em alto grau e desumanidade
para com o homem mesmo entre os caucasianos dominantes. Como
sugeri antes, os Estados Unidos estão se enterrando rapidamente.
Acredito que os países antigos, pobres em sua maior parte, tomarão
conta em muito poucos anos. E o povo que inventou os fogos de
artifício sobreviverá àqueles que inventaram a mortal bomba atômica.
Nós, americanos, talvez um dia cheguemos a todos os planetas e
tragamos de cada um deles pequenas quantidades de solo, mas nunca
chegaremos ao coração do universo, que reside na alma até da mais
pobre e mais baixa das criaturas humanas.
Receio que o velho adágio “Irmãos sob a pele” não seja mais
verdadeiro, se é que o foi algum dia. As nações ocidentais não mere­
cem confiança, por mais democráticos que possam vir a ser seus
governos. Enquanto os ricos governarem, será caos, guerras, revolu­
ções. Os líderes para os quais nos voltarmos não estão em evidência.
É preciso descobri-los. Deve-se lembrar, como disse certa vez Swami
Vivekananda, que “antes de Gautama houve vinte e quatro outros
Budas”.
Hoje não podemos mais contar com salvadores. Cada homem
precisa contar consigo mesmo. Como disse certa vez um grande sábio:
“Não conte com milagres, você é o milagre.”

143

S-ar putea să vă placă și