Pensar os problemas teóricos e metodológicos envolvendo a leitura dos Quaderni.
A partir dos anos 1980, a leitura filológica e diacrônica desenvolvida por Francioni se torna central para as interpretações das notas gramscianas. Todavia, essa leitura filológica em determinados momentos se concentra exclusivamente na dimensão intratextual, abdicando de produzir uma leitura política mais ampla em torno do pensamento gramsciano. Por isso, esse trabalho procura ampliar a diacronia proposta por Francioni e Cospito para além do texto gramsciano. Uma vez que os Quaderni partem do interior da tradição marxista, é preciso construir uma leitura diacrônica que seja capaz de captar o desenvolvimento dos principais conceitos gramscianos em relação à tradição da qual emergem. Nessa ampliação, pretendemos perceber como Gramsci estabelece uma revisão significa dessa tradição, sobretudo no que concerne às suas concepções de história e política. Com isso, pretendemos demonstrar que tais reelaborações conceituais significam a constituição de uma consciência histórica singular que coloca Gramsci para além do próprio marxismo, colocando-o como um pensador central à política no mundo contemporâneo. Por razões de espaço, iremos tomar como referenciais para construir essa diacronia para além do texto, os principais textos de Marx e Lenin. Em Marx, a história e política possuem funções centrais. A história emerge como forma de desmistificação das posturas transcendentais e metafísicas, de modo que as ações humanas, e não mais as ideias, são postas como modos de concretização da história. Nesses termos, Marx constrói uma concepção de história imanente marcada pela ação dos homens dentro de determinados limites históricos constituídos pelas gerações anteriores. Essa imanência histórica, por outro lado, é entrecortada pela expectativa da revolução, encarada como forma de realização da humanidade. Isso ocorre porque a teleologia histórica marxiana é marcada pela perda da humanidade em razão da existência das classes. Assim, cabe ao proletariado, classe universal por excelência, construir o movimento revolucionário, extinguir as classes e reganhar a humanidade. Nesses termos, a expectativa revolucionária marca um telos da história que tem como horizonte o encontro do homem consigo mesmo. Dentro dessa concepção de história, a política aparece como um momento fundamental, uma vez que permite avanços dos operários em relação às suas lutas. Fora da organização política da classe operária, de sua aquisição de consciência de classe, a revolução se torna impossível. Todavia, as análises políticas de Marx acerca das lutas de classes na Alemanha e na França, demonstram os limites da política, sobretudo daquela opera institucionalmente. A compreensão marxiana do Estado e de suas instituições se encontra vinculada às classes, de modo que o Estado emerge como órgão repressor responsável pela manutenção da ordem burguesa. Nesse sentido, o avanço político da classe operária esbarra nesses limites inerentes à ordem burguesa. Em razão disso, nos momentos decisivos da luta da classe a política termina, dando origem ao conflito aberto entre as classes. Nesse momento, a revolução abandona seu invólucro político adquirindo sua forma essencialmente social. Portanto, a consciência histórica de Marx se encontra marcada pela expectativa revolucionária constituída a partir do aguçamento do conflito entre as classes, marcado pelo abandono da política em detrimento de uma dimensão social. Tal consciência histórica se mostra marcada pelo contexto histórico vivido por Marx. Há o traumatismo ético da modernidade apontado por Marshall Berman, bem como a sensibilidade romântica alemã ressaltada por Jacques Rancière. No que concerne à política, é preciso relembrar o contexto histórico, percebendo que as principais instituições republicanas ainda se mostravam em construção nos principais países europeus. Lenin, vivendo o contexto do início do século XX, redimensiona a expectativa marxiana, elaborando uma consciência histórica marcada pela decadência do capitalismo e pela urgência da construção revolucionária na Rússia. Em razão disso, a ideia de crise se mostra fundamental à noção de história leninista, de mod que a política opera subordinada à esse momento de crise terminal do capitalismo. Essa crise ocorre em razão do desenvolvimento do próprio capitalismo. O imperialismo marca a transição de uma fase de livre concorrência para uma monopolista, na qual Estado e grandes empresas se aliam. Nesse estágio superior do capitalismo a economia se torna cada vez mais global, abrindo possibilidades maiores para a socialização da produção. Além disso, a ampliação do imperialismo leva ao choque entre as várias nações imperialistas. Nesse sentido, o avanço do capitalismo gera uma crise profunda entre suas principais nações, arrastadas para o conflito bélico. A crise gestada pela guerra é fundamental, sobretudo dentro do contexto russo. Isso ocorre porque a crise gera abalos econômicos e políticos, abrindo brechas no poder do Estado e possibilitando a revolução. Com isso, é preciso organizar politicamente os operários e os camponeses com vistas à tomada do Estado. Essa política é vivida enquanto urgência em razão da ideia das vantagens do atraso. Caso essa oportunidade revolucionária seja perdida, o capitalismo se consolidaria definitivamente na Rússia, tornando a luta socialista mais complexa e difícil. Além disso, essa política se orienta para a derrubada do Estado, também compreendido exclusivamente a partir de uma dimensão de classe e repressora. Após a revolução esse mesmo Estado não perde sua função repressora. Ao contrário, essa função é utilizada como força de aplainamento da sociedade, eliminando os resquícios burgueses. Assim, em Lenin a política também aparece dentro de certos limites. O momento fundamental da revolução não é a política, mas a tomada do Estado pela classe operária. Em razão disso, a política aparece de modo instrumental no pensamento de Lenin. Ao abordar a necessidade de participação dos partidos comunistas nas instituições burguesas, Lenin coloca que essa participação pode garantir determinados avanços nas lutas operárias. Todavia, o caráter burguês das instituições impede e bloqueia o avanço dos operários, de modo que a luta democrática e institucional serve apenas nos momentos de refluxo das lutas. Em relação à Marx, a consciência histórica de Lenin avança a expectativa revolucionária, bem como sua urgência, em razão da centralidade que a crise imperialista ocupada em seu pensamento. Além disso, o líder bolchevique radicaliza a centralidade do Estado, pensando a revolução em termos de um assalto frontal ao aparato estatal. Nesse sentido, a política aparece em Lenin como uma dimensão instrumental e subordinada ao projeto autoritário de tomada do Estado. Assim como Marx e Lenin, Gramsci coloca como horizonte de expectativa a realização da universalidade. Todavia, suas concepções de história e política divergem significativamente de tais autores. Em primeiro lugar, isso ocorre porque Gramsci parte de um diagnóstico histórico que afasta as possibilidades revolucionárias, bem como a centralidade da crise imperialista. Esse diagnóstico gramsciano parte da detecção de uma transformação morfológica da história e da política, marcada pela transição da revolução permanente para a hegemonia civil. Com isso, Gramsci percebe que as relações entre Estado e sociedade civil se alteram em determinado estágio da modernidade Ocidental. Na modernidade Ocidental, a sociedade civil se fortalece em detrimento do Estado, de modo que o assalto ao Estado se torna inócuo, uma vez que não garante a efetivação das transformações históricas. Em razão disso, a política também se desloca da esfera do Estado para a da sociedade civil. Portanto, o conceito de hegemonia, embora formulado originalmente por Lenin, procura auferir os modos pelos quais a legitimidade do poder se constrói socialmente a partir da atuação cultural e política dos intelectuais na construção do consenso na sociedade civil. Em decorrência dessa transformação da revolução permanente para a hegemonia, a concepção de política em Gramsci se torna bastante diferente em relação à Marx e Lenin. Isso ocorre também em razão de um profícuo diálogo com o pensamento de Maquiavel. Em diálogo com o político florentino, Gramsci é capaz de superar a visão exclusivamente classista e repressora do Estado, percebendo como na contemporaneidade a formação do Estado se encontra diretamente conectada aos conflitos que se desenvolvem no interior da sociedade civil. Além disso, o aparato estatal atua também como peça fundamental na elaboração do consenso das massas, sendo responsável pela universalização de determinada cultura política. Em segundo lugar, o diálogo com Maquiavel permite a Gramsci pensar a política a partir de uma postura realista, marcada pela necessidade de elaboração de uma política virtuosa que leve em consideração determinados critérios de interpretação da realidade histórica de determinado momento. Com isso, a política gramsciana opera a partir um intrincado a complexo jogo de forças políticas cujos resultados são imprevisíveis, visto que dependem da virtude política dos atores em questão. Ainda, essa transformação morfológica que marca o conceito de hegemonia também gera uma revalorização das instituições políticas e da democracia, ausentes em Marx e Lenin. Conforme a revolução se encontra cancelada, as transformações históricas ocorrem a partir da conquista da hegemonia a partir da própria política. Conforme a política se encontra no centro das análises, as instituições democráticas aparecem não como limitadores de uma política popular; ao contrário, a democracia aparece enquanto forma política responsável por alçar os governados à condição de governantes. Nesse sentido, há um vínculo indissociável entre hegemonia e democracia. Os limites das instituições democráticas em Gramsci não levam à sua recusa. Isso ocorre porque tais limites não estão vinculados à estruturação das classes, mas aos atrasos da política em relação à dinâmica da economia. Há, para Gramsci, uma diferença fundamental entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política. Deste modo, o avanço das lutas dos grupos subalternos está também ligado às possibilidades de constituição de instituições políticas democráticas que operem supranacionalmente e permitam a passagem do subalterno à condição de dirigente. O conceito de hegemonia consegue demonstrar às concepções gramscianas acerca da política. Por outro lado, o de revolução passiva, complemento do primeiro, é capaz de fornecer um caminho para pensarmos a dimensão da história dentro dos Quaderni. Esse conceito também parte dessa leitura histórica acerca da modernidade e pretende marcar uma nova modalidade de transformações históricas no mundo contemporâneo. Com as revoluções permanentes canceladas, as transformações históricas ocorrem por meio das revoluções passivas. Isso significa que as mudanças podem não mais ocorrer a partir de explosões, mas alongadas molecularmente no tempo. Assim, o ritmo dessas transformações se encontra orientado pela política-hegemonia. Nesses termos, o grau de avanço e progresso das transformações históricas depende da virtude política dos atores em questão. Por isso, Gramsci fala em modalidades de revolução passiva. Nesses termos, uma vez que a concretização das transformações se encontra orientada pela virtude política dos atores em questão, a história em Gramsci se mostra imprevisível. A dialética, que em Marx e Lenin, se coloca a partir da vitória da antítese sobre a tese, em Gramsci se coloca em uma dialética da virtude, na qual a síntese se conclui a partir da política. Nesse sentido, história e política formam um par indissociável em Gramsci, uma vez que a história se concretiza a partir da imprevisibilidade da própria política. Além disso, a revolução passiva, ao elaborar uma concepção de tempo diversa da revolução permanente, consegue escapar a urgência revolucionária ou mesmo a ideia das vantagens do atraso. Isso ocorre porque ao alongar indefinidamente o tempo das transformações históricas, a concepção de história de Gramsci se afasta decisivamente da ideia de crise e de urgência, presentes sobretudo no pensamento leninista. Com isso, sua concepção de história, assim como a de política, leva a uma valorização da democracia, também marcada por um temporalidade alongada ao contrário da revolução. Portanto, a consciência histórica de Gramsci se encontra profundamente marcada pelo diagnóstico da modernidade Ocidental. A partir desse diagnóstico Gramsci elabora os principais conceitos dos Quaderni, hegemonia e revolução passiva. Com tais conceitos, Gramsci supera, em primeiro lugar, os limites da política elencados por Marx e Lenin, colocando-a no centro das reflexões da filosofia da práxis. Na modernidade, a política não se coloca como um momento da revolução, mas como a dimensão responsável por elaborar as grandes transformações históricas. Em segundo lugar, hegemonia e revolução passiva, atuam decisivamente na revisão da concepção de história de Marx e Lenin. Descartado o tempo redentor próprio à revolução, o tempo histórico em Gramsci não é vivenciado a partir da crise ou da urgência, mas do tempo molecular próprio de uma política democrática adequada ao mundo contemporâneo. Portanto, para concluir, voltando a nossa diacronia inicial, é possível redimensionar o lugar de Gramsci no pensamento contemporâneo. Gramsci parte do mesmo horizonte de expectativa de Marx, mantendo fixo o olhar na constituição da universalidade. Todavia, seu sujeito não é mais a classe operária, mas os grupos subalternos. Sua estratégia não é a revolução e seu tempo redentor, mas o tempo alongado da política. Seu foco não é o Estado, mas a construção do consenso no interior da sociedade civil. Nesses termos, por mais que parta de um referencial marxista, as reflexões construídas por Gramsci nos Quaderni transpassam a própria tradição que as gestou, de modo que o lugar de Gramsci no pensamento contemporâneo é o lugar de um pensador chave para o enfrentamento das questões contemporâneas a partir da perspectiva de uma esquerda moderna que elege a política e a democracia como elementos centrais, recusando os resíduos revolucionários deslocados no tempo.