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Resumo
O objetivo do presente estudo de caso é, com base fenomenológica, o de investigar o modo como a Psicocinética
e as brincadeiras criativas contribuem para o processo de percepção das crianças sobre suas relações com o
mundo da lecto-escrita e das operações lógicas. Participaram da pesquisa 23 crianças de primeira série do Ensino
Fundamental público, que vivenciaram atividades lúdicas durante sessões de Psicocinética, com método adaptado
e denominado currículo em movimento. Os dados foram coletados mediante entrevistas, observações e
documentos elaborados pelas crianças, e analisados pelo método psicológico-fenomenológico. Dos resultados
emergiram onze essências que destacam a importância do brincar e da educação pelo movimento na construção
dos vocabulários lingüístico, escrito e psicomotor da criança. Concluindo, este estudo mostrou a importância de
integrar diversas formas de expressão da linguagem e do movimento no currículo escolar, percebendo a criança
na unidade de seu ser.
Palavras-chave: brincar, psicocinética, fenomenologia, currículo em movimento.
Abstract
Current essay investigates the manner psychokinetics and creative games contribute towards children’s
perception on their relationships with reading and writing and with logical reasoning. Twenty-three children from
the first grade of a public elementary school participated in the study. The children were engaged in play
activities during sessions of psychokinetics through a method called curriculum in action. Data were collected by
interviews, observations and documents created by children and submitted to phenomenological and
psychological analysis (GIORGI, 2001). Eleven factors enhanced the importance of playing and of education by
movement in the context of children’s acquisition of written, reading and psychomotor abilities. Current research
indicates the importance of integrating language and movement into the school curriculum and the urgent need to
take children at their own value.
Key words: games, psychokinetics, phenomenology, curriculum in action.
*
Mestre em Educação pela PUC-RS. Especialista em Ciências do Movimento Humano pela FEEVALE-RS. Professora de
Educação Física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS/RS.
atividades preparadas pelo professor conforme o que ela adquire no meio social, interagindo com os
objetivo do encontro, e no qual as crianças são objetos, consigo mesma e com seus iguais.
observadas durante o movimento livre; momento de
atividades propostas mediante situações-problema,
atividades que, apesar de orientadas, proporcionam METODOLOGIA
aos alunos a liberdade de atuar da forma como
percebem as informações recebidas; momento de A pesquisa foi desenvolvida na forma de um
integração, período de interiorização do significado estudo de caso, de cunho qualitativo e
percebido pela criança sobre as vivências mediadas fenomenológico. Propôs-se compreender as
pelo professor, representando um novo espaço para percepções de crianças iniciantes no mundo da
exploração do ambiente criado e; finalmente, o lecto-escrita, na realidade de uma escola pública,
momento reflexivo, atividades de expressão mediante atividades lúdicas e psicocinéticas. Trata-
pictórica (desenhos e pinturas), corporal, escrita, se de uma pesquisa de situação específica não
gestual ou falada. É o momento em que as crianças generalizável cujo fim, de acordo com Lüdke e
proporcionam o feedback e a sua percepção pessoal André (1986), é o de apresentar fenômenos
sobre o vivido, e em que, ao mesmo tempo, o naturalmente simples e específicos ou complexos e
professor avalia os resultados da sessão e obtém abstratos não mensuráveis, como é o caso da
subsídios para planejar as próximas vivências. percepção subjetiva das crianças investigadas.
Durante um ano acompanhou-se a evolução de A corrente fenomenológica percebe a relação
crianças em formação escolar na primeira série do entre sujeito e objeto como interdependente e
Ensino Fundamental em Escolas Públicas de Capão produto de sujeitos possuidores de consciência
da Canoa/RS, no ano letivo de 2003. Observou-se a intencional. Para Merleau-Ponty (1999, p.01),
necessidade que as crianças possuem de brincar e defensor do pensamento fenomenológico, constitui-
trabalhar com suas habilidades psicomotoras se “um estudo das essências, e todos os problemas”
(resultantes da propriocepção mediante o ato motor) que “tornam a definir as essências: a essência da
e gnósicas (habilidades sensoriais-sensitivas ligadas percepção, a essência da consciência, por exemplo”.
às sensações corporais). A pesquisa teve como A Fenomenologia busca a descrição e a reflexão
objetivos: compreender o significado que as sobre o fenômeno no mundo vivido.
crianças atribuem às suas aquisições, sua visão Paviani (1998) destaca que a ciência
sobre o universo simbólico que o signo escrito e a fenomenológica investiga o comportamento, a
leitura promovem entre o mundo infantil e o adulto, percepção, o corpo, a sexualidade, a linguagem, os
bem como as “lacunas abertas” no processo de sentidos, a temporalidade, as relações entre
percepção das crianças que apresentam dificuldades natureza, o mundo e o ser. Investiga também
de interpretação e entendimento dos signos escritos problemas da Psicologia, da Sociologia, da História,
e da leitura. da Política, e da Lingüística, entre outros. Para que
Dessa forma, o problema que norteou a os sentidos ou aspectos de um fenômeno possam se
investigação foi: Como as crianças percebem suas manifestar no ato descritivo é necessário que o
aquisições instrumentais através de brincadeiras fenômeno apareça em sua totalidade, o que inclui
e de jogos em Psicocinética? todas as formas de estar consciente, como os
Le Boulch (2001) emprega o termo “aquisições sentimentos, os pensamentos, desejos e vontades.
instrumentais” para referir-se ao aprendizado da O método da pesquisa, inicialmente formulado
lecto-escrita e das operações lógico-matemáticas. por Giorgi (2001), é um dos mais utilizados e
Seu domínio é necessário no âmbito da prática conhecidos nas investigações da área da Psicologia
social cotidiana e para ascender ao nível da Fenomenológica. Compreende quatro passos, cujo
reflexão. Entretanto, defendeu-se neste estudo que objetivo é chegar às essências contidas nas
as aquisições instrumentais são bem mais amplas: descrições psicológicas: leitura e re-leitura para
sendo, então: um conjunto de competências obtenção do sentido do todo; leitura discriminativa
motoras, comunicativas, perceptivas, assim como das unidades de significado (tendo sempre como
de memória e pensamento, sócio-relacionais e de referência o fenômeno investigado); transformação
ajustamento que permitem à criança a apreensão da linguagem ingênua do sujeito em linguagem
significativa de determinadas informações para a científica (apoiando-se no objetivo da pesquisa e
construção do seu conhecimento. Informações essas mediante um processo reflexivo imaginativo);
síntese das unidades de significado transformadas
(condensar, integrar os insights que emergem das brincando, a aprendizagem acontece de forma
unidades de significado) – descrição específica e prazerosa e duradoura. As atividades brincadas e
geral. jogadas durante as sessões de Psicocinética,
Participaram do estudo 23 crianças de uma aplicadas ao conteúdo curricular, durante o processo
turma de primeira série de escola de Ensino de alfabetização, promovem nas crianças: prazer,
Fundamental Público Municipal de Capão da compreensão de informações iniciada em sala de
Canoa, com idade entre seis e oito anos. Os sujeitos aula, novos conhecimentos, novas brincadeiras e
da pesquisa foram escolhidos de forma intencional. formas de aprender os signos da língua escrita
A pesquisadora manteve contato com a turma através do corpo e do movimento humano.
durante um encontro semanal com duração de uma Negrine (2002) acredita que o vocabulário
hora e vinte minutos, como professora de Educação psicomotor, lingüístico e escrito se constrói no
Física por um período de oito meses do ano letivo contexto social, estando permanentemente em
de 2003. As crianças, que na pesquisa recebem desenvolvimento por meio de experiências vividas.
nomes de anjos no intuito de preservar suas Um fragmento de entrevista com Reyel (6 anos),
identidades, participaram de treze sessões de um dos sujeitos do estudo, ilustra esse pensamento
psicocinética adaptada para o currículo escolar. As quando lembra palavras que escreveu pulando nas
atividades foram realizadas com autorização dos sílabas desenhadas no chão durante uma das
pais1 . As atividades apresentaram caráter lúdico e brincadeiras com os colegas:
envolveram jogos de cooperação, brincadeiras e
contato exploratório com objetos psicomotores (...) uva, ovo, vaca. Quero que a gente
construídos com material reciclável, que as crianças continue brincando assim. No recreio...
manipulavam livremente. Nessas atividades assim, quando a gente sair da aula, antes
de ir, a gente podia brincar!
descobriam diversas possibilidades de interação
com os objetos, consigo mesma, com as outras
Em outro recorte de entrevista, Miteiel (7 anos)
crianças e com o meio2.
revela suas impressões sobre as atividades lúdicas:
Os dados da investigação foram coletados por
“me ajuda a ler e escrever. O meu nome. Oh! Eu
intermédio de oito entrevistas semi-estruturadas,
não sabia o T e o E. Agora eu sei.” Para a criança,
três observações prévias, treze observações
parece que tudo se torna mais claro quando utiliza
participantes (MOREIRA, 2002; SEIDMAN,1991),
seu corpo como base para a compreensão que busca
anotações de diário de campo (WAGNER, 1998), e
sobre as coisas.
documentos produzidos pelas crianças, como
Faz-se essa reflexão buscando em Fonseca
desenhos e textos escritos. Para a análise dos dados
(1981, p.97) que “atrofiar a imaginação da criança,
utilizou-se o método compreensivo-psicológico de
impondo uma orientação é bloquear toda a
base fenomenológica (BERNARDES, 1991;
plasticidade adaptativa que se pretende adquirir”; o
GIORGI, 2001; MERLEAU-PONTY, 1999).
ser humano deve ser visto em sua totalidade,
permitindo que se abra para o mundo. É necessário
oferecer ao aluno oportunidades que lhe permitam,
RESULTADOS E DISCUSSÃO
ao mesmo tempo, conhecer e fazer despertar suas
Após a análise fenomenológica dos dados inúmeras formas de linguagem, de comunicação, de
coletados emergiram onze essências: construção do seu relacionamento com o meio, com
1. Construção do vocabulário lingüístico, objetos e pessoas.
escrito e psicomotor no brincar – revela-se como 2. Independência e senso de sentir-se útil
um fator importante para o desenvolvimento da mediante a evolução de aquisições instrumentais
criança como pessoa, pois demonstra que, – representa uma preocupação positiva dos sujeitos
da pesquisa, que buscam afirmação e segurança
1 perante o mundo dos adultos, objeto de referência
Os pais assinaram um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido fornecido pela pesquisadora. para seu crescimento e desenvolvimento global. As
2
A descrição dos jogos e brincadeiras se encontram em
aquisições da linguagem escrita e da leitura são
TUBELO, Liana Cristina Pinto. Psicocinética e brincar: necessárias para que possam identificar as coisas e
construção do vocabulário lingüístico, escrito e psicomotor os lugares que fazem parte do universo
da criança. Porto Alegre, 2004. 218f. Dissertação (Mestrado sociocultural, pois é uma maneira de sentirem-se
em Educação) – Faculdade de Educação, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
inseridos e pertencentes ao meio social. As crianças,
como signo que designa objeto, surge do trabalho, brigar com os colegas, não subir no muro para que
das ações com objetos”. A palavra tem caráter não se machuquem. Assim se manifesta sobre o
simpráxico, ou seja, se constrói na situação vivida. tema:
4. Movimento simbólico sem limites – revela (...) brinco bem direitinho. Quando a gente
o desejo infantil de vivenciar suas experiências sem quiser brincar de esconde-esconde a gente
limitações, sem repressões, porquanto as crianças brinca, mas não pode brigar. Se subir em
desejam manipular suas experiências ao seu modo. cima do muro e cair, não brinca mais.
Elas demonstram interesse pessoal em melhorar
seus conhecimentos matemáticos, de escrita e As regras sociais são necessárias para que o
leitura, desenvolvendo atividades lúdicas fora do convívio entre os iguais seja pacífico e para que o
ambiente escolar. Em seus lares trocam respeito pelo outro seja cultivado. Entretanto, as
experiências com familiares e apreciam a leitura de crianças demonstraram se sentirem “presas” às
livros infantis porque estimulam seu imaginário regras pelo contrato de coerção e punição.
simbólico, contudo, os adultos lhes impõem regras Ao ser perguntado sobre as atividades que
sociais para brincar: a professora, os pais e demais realizou e sua opinião a respeito da idéia de realizar
familiares. Brougère (1995, p.78) acredita que, uma gincana competitiva com brincadeiras e jogos
através da brincadeira, a criança encontra uma durante a Semana da Criança, Nanael (8 anos)
maneira de escapar à vida limitada e regulada que o respondeu: tá, sora! Mas depois nós vamos brincar,
mundo lhe impõe, uma forma de “se projetar num né?” A pesquisadora explicou-lhe: “mas vamos
universo alternativo excitante”, no qual conduz suas estar brincando também!” O menino então suspirou
ações e se autoriza a experimentar sensações, “onde e disse: “tá bom!!”
a ação escapa das obrigações do cotidiano”. A fala de Nanael vai ao encontro do
Leontiev (2001) ressalta que não é a imaginação a mencionado em estudos anteriores por Brougère
impulsionadora da ação durante uma brincadeira, (1995) e Leontiev (2001): brincadeira orientada, no
mas, sim, a situação e as condições em que ocorre olhar da criança não é brincadeira. Neste tipo de
essa ação, tornando-a necessária e dando origem à atividade ela não possui controle nem autoria, não
imaginação. A criança usa o imaginário simbólico possui liberdade para sentir e fazer o que seu
para configurar a situação vivida dentro dos moldes imaginário deseja. De acordo com os autores,
em que ela deseja viver a experiência, não cerceada permitindo que sejam despertadas as imagens
pelos adultos. interiores da criança, se permite também que a
Aladiah (6 anos) demonstra gostar de realizar criatividade se desenvolva.
atividades motoras no pátio da escola e deseja muito 5. Desconstrução e reconstrução do
brincar em um carretel gigante de madeira que se aprendido através do brincar – representam os
encontra no pátio, com o qual os meninos significados reconstruídos nas ações lúdicas, das
costumam brincar. No entanto, a professora titular quais as estruturas significantes resultam e se
não lhe permite brincar, porque receia que se constituem nas informações contidas na história
machuque; além disso, sua mãe insiste para que não prévia da criança, somando-se ao vivido e
suje suas roupas na escola. São esses os motivos transformando-se em aprendizagem significativa.
pelos quais não podia participar de algumas As experiências das crianças em busca do
atividades das sessões de Psicocinética, como conhecimento se misturam às experiências vividas
ilustra o fragmento de sua entrevista: em seus lares, onde gostam de brincar de escolinha.
Gostam de socializar suas aprendizagens com
(...) eu não queria me arrastar no chão outrem, amigos e familiares e percebem sua
porque eu tô com a roupa limpa e não satisfação com a brincadeira como um motivo para
posso me arrastar no chão.” [...] “Gosto aprender mais na escola, descobrindo outras formas
de vir pro pátio. Queria brincar naqueles de utilizar o aprendido.
negócio redondo (carretel gigante de Luria (2001, p.101-102) ressalta que, ao entrar
madeira que tem no pátio da escola). Esses na escola, a criança “já possui suas próprias
dias eu vi os guris subindo lá. habilidades culturais” e é de posse dessas
habilidades que “ela modela sua própria cultura
Miteiel (7 anos) lembra que sua professora primitiva” e, “embora não possua a arte da escrita,
titular impõe regras de convívio social para que o ainda assim escreve; e ainda que não possa contar,
menino e seus colegas possam brincar, como: não ela conta, todavia”. Posteriormente, com o apoio
das novas experiências, calcadas na formalidade do fenômenos constantemente percebidos entre e nas
currículo escolar, a criança passa a codificar e crianças, assim como as representações simbólicas.
decodificar os símbolos do mundo social, códigos Os jogos psicomotores desenvolvem percepções
esses que o adulto insiste em lhe transmitir. Sobre conscientes quanto ao espaço e aos ajustamentos
isso, Aladiah (6 anos) afirma: necessários para a melhoria de performance durante
a brincadeira.
Já sei todo o abecedário, eu sempre fazia As crianças observam seus colegas e
isso em casa. [...] Brinco de escolinha, reproduzem as atividades que os atraíram ou
também, de noite. A Solange me ensina a
despertaram interesses particulares, revelando
fazer as coisas da folhinha. Depois a gente
brinca de escolinha. Depois ela tá me representações simbólicas, como a tábua de
ensinando a lê agora. Só que eu não sei ler equilíbrio, que se transforma em skate, e a esteira de
ainda, eu sei lê algumas palavrinhas. puxar, que imaginam ser uma prancha de surf. Em
outra situação, ao perceberem que seus espaços
É pertinente observar que o tema de casa, para a estão limitados, as crianças procuram outros locais
menina, constitui-se uma tarefa formal ou trabalho a no pátio para brincar com liberdade.
cumprir, por isso, depois de cumprida, é que, Merleau-Ponty (1999) destaca que o corpo
finalmente, “brinca de escolinha”. Brincadeira que oferece um meio de sentir o mundo e ser o próprio
acontece a seu modo, sem orientação de outrem e é, mundo no espaço e no tempo, representando o que o
neste momento, que a aprendizagem torna-se próprio corpo sente no espetáculo do instante vivido
consciente, reconstruindo os conhecimentos no espaço-tempo. Duas vinhetas de observação da
anteriormente apreendidos e construindo elos com segunda sessão de Psicocinética ilustram a
novas informações. Dessa maneira, a criança vai afirmação do filósofo:
desenvolvendo e transformando os processos
mentais elementares em superiores, como afirma Aliadiah (6 anos) tenta girar a tábua de
Vygotsky (1988). equilíbrio, mas não tem muito êxito,
Geist (2001) sustenta que cada experiência é perdendo o equilíbrio. Ela tenta imitar o
um renascer, desconstruindo o vivido e feito de Daniel, que antes de ela pegar o
brinquedo, estava brincando de girar a
reconstruindo novos saberes. Por outro lado, é
tábua executando 180º com o aparelho [...].
impossível dizer, segundo Mier (1989), que uma Após a tentativa de Aladiah, ela e Achaiah
experiência baseada em outra, reconhecendo que a (7 anos) resolvem brincar de gangorra em
vivência atual carrega impressões de vivências cima da tábua de equilíbrio, quando uma
anteriores, desconstrua efetivamente estruturas desce a outra sobe, e vice-versa. As duas
significantes. Desse modo, crê-se aqui, que a dão muitas risadas, elas percebem que
representação simbólica, presente no mecanismo precisam dar um impulso para que o peso
infantil de assimilação e acomodação do vivido, de uma supere o peso da outra a fim de
preserva a estrutura significante do que é deslocar o aparelho de cima para baixo.
verdadeiramente significativo para ela, Grande parte do grupo se concentra na
transformando os demais elementos da experiência esteira de puxar. Algumas duplas estão
(sentido, sentimentos e ações), conforme seu constituídas por casais, outras por duplas
interesse, imaginação e criatividade, em percepção de meninos. Observo que normalmente não
do real no seu mundo vivido. O jogo, o brinquedo e se formam duplas de meninas, talvez por
a experiência vivida, então, terão um novo olhar, esta atividade requerer uma força maior
um novo enfoque e um novo contexto social, para deslocar o colega que está sentado no
relacional e afetivo para a criança, pois ela re- pano. Quando há meninas puxando, elas
significa a aprendizagem a cada novo momento puxam em duas, exercitando a atividade
vivenciado, sob seus próprios moldes e controle. em trio. Nos casais, observo que os
meninos puxam as meninas. [...] Elemiah
6. Psicomotricidade e brincar no (7 anos), que está sendo puxada por Ariel
desenvolvimento da percepção consciente – (7 anos), fica de pé na esteira e simula uma
mostra a tomada de consciência da criança sobre postura corporal de surfista em cima de
suas ações, revelando-se na atividade lúdica em uma prancha, dobra os joelhos e se percebe
meio ao universo exploratório, na qual testa suas mais segura na evolução do movimento de
possibilidades, ajustando-se e desenvolvendo suas deslocamento da esteira no chão. Ela pede
habilidades. A observação e a imitação são
permite distinguir as coisas, defini-las e associadas aos jogos que desenvolvem habilidades
constatá-las. motoras proporcionam às crianças um novo olhar
sobre a língua escrita e a leitura. A aprendizagem
Cada indivíduo elabora sua própria forma de se acontece de forma solta, natural, os participantes
expressar. No jogo são construídos significados interagem, trocam idéias, se ajudam mutuamente na
para coisas reais e irreais, pois permite representar busca de soluções com um objetivo comum ao
ludicamente situações do vivido ou transformá-las grupo: brincar. O ser humano se desenvolve com
simbolicamente para que possam ser aceitas ou plenitude, no seu contexto social, relacional,
entendidas. O jogo possui função social, uma vez intelectual, afetivo, cognitivo e psicomotor.
que reproduz o mundo real visto pelo paradigma da Montessori (1949, p.252) contribuiu, com seu
ludicidade e do faz-de-conta. método sensório-motor, para a formação de uma
Nas atividades em que as crianças são os atores nova Pedagogia, com base na interação e na
do jogo, ou seja, em que fazem o papel de peças construção do conhecimento pelo próprio sujeito.
móveis e interativas (jogo da velha gigante, por Para a autora, “existe entre as crianças uma forma
exemplo), o componente simbólico é vivido com clara de fraternidade, calcada sobre um sentimento
bastante intensidade, sugerindo que elas preferem mais elevado que cria a unidade de grupo”. Nessas
ser parte do jogo, influenciar e agir diretamente no situações elas se encontram normalizadas e
andamento imaginário da brincadeira. Preferem não integradas umas às outras mediante experiências
ser meros espectadores, como em um jogo de livres, nas quais lhes são permitidos a autonomia
tabuleiro, no qual somente mexem as peças para corporal, o diálogo verbal e demais formas de
jogar e não as vivenciam. Como revela Reyel (6 expressão, sentindo e agindo como grupo.
anos) nesse recorte de entrevista: Exemplificando o que foi dito, é descrita uma
situação vivida em sessão de Psicocinética, na qual
[o jogo] é de pessoas. [...] daí eu fiquei as crianças exploram as situações elaboradas pela
bom, fiquei melhor. Não fiquei fraco que
mediadora: três jogos desenhados no chão com o
nem todos os dias. Assim, de vez em
quando eu ganhava, sabe. Daí eu me senti uso do giz de quadro-negro. Elas se agrupam nas
bem. brincadeiras, executando formas que criam para
jogar, enquanto algumas observam e depois imitam
Para Starepravo (2003, p. 22), o jogo precisa ser ou desenvolvem diferentes alternativas para brincar
“interessante”, deve representar desafios para as com os jogos. Os jogos desenhados estão
crianças. Lembra que durante os jogos ou relacionados ao conhecimento de sílabas e
brincadeiras podem ocorrer conflitos e estes podem numerais. Cada grupo demonstra organização de
ser geradores de aprendizagens variadas, “além do pensamento no processo de criação de regras sociais
desenvolvimento de estratégias e atitudes para e na produção do conhecimento, utilizando, como
solucioná-los”. A autora ressalta essas atividades referência, o que está contido nos jogos e os
cumprem seu potencial didático somente se forem próprios conhecimentos prévios de cada
utilizados para problematizar e não para “fixar” participante.
conteúdos curriculares.
No pula-minas de números, as crianças se
O uso de conteúdos curriculares nos jogos deve organizaram em coluna para pular uma a
ser tácito, de forma que esses não se constituam o cada vez. A maioria dos meninos se
tema principal da atividade. As crianças podem encontra no pula-minas de números que
brincar com os objetos de interesse curricular, que escolheram como regra do jogo firmada
poderão ser aprendidos espontaneamente e entre eles, pular em ordem crescente.
intencionalmente e não induzidos arbitrariamente Daniel pula no um e em um pé só,
pelo professor. sustentando o outro no ar, procura localizar
10. Aprendizagem cooperativa: o jogo com o número dois, e os restantes. [...] Os
um sabor diferente – remete às diversas facetas do outros observam tranqüilamente seu
desempenho. Na vez de Gabriel, ele pula
jogo e do brincar que se revelam construtores do
mais rápido, pois já teve tempo de observar
desenvolvimento global do indivíduo, em sua a localização dos números, mas pula com
dimensão cognitiva, sociocultural, afetiva, os dois pés juntos e, ao chegar no número
intelectual, e cooperativa. Atividades que 20, começa a voltar. Os outros colegas
contemplam o conteúdo do programa curricular, reclamam e ele pede permissão: “Ah!
como função energética da ação, acionada pelo Pode-se concluir que as “lacunas abertas” das
estímulo do sistema límbico. Esse sistema, crianças que apresentam dificuldades na
localizado no sistema nervoso central, coordena e interpretação e construção de suas aquisições
organiza as emoções e os comportamentos instrumentais, se encontram na pouca valorização
motivados dos indivíduos. das diversas linguagens que utilizam para se
A criança é “sujeito da palavra em processo”, é expressar e nas oportunidades insuficientes do meio
sujeito em movimento, afirmam Jódar e Gómez escolar para que elas se expressem.
(2002, p.41). E, de acordo com Deleuze e Guattari Quanto à visão das crianças sobre o universo
(1997, p. 129) simbólico que o signo escrito promove entre seu
mundo infantil e o adulto, foi possível perceber
[...] esse movimento que arrasta a língua e sentimentos de angústia durante sua busca pela
traça sempre um limite diferido da compreensão da linguagem escrita que lhes permite
linguagem não se deixa escrever na escrita sentirem-se pertencentes ao meio social,
formalizada e está sempre por ler,
disciplinado e regrado pelo adulto. Regras e normas
emergindo de modo inesperado em outras
linguagens que não a falada, mas que nela que devem adotar e se adaptar. Nesse processo, as
se baseia ou se completa. crianças utilizam o seu universo lúdico e rico em
simbolismos para converter as informações e regras
Conforme Junqueira Filho (2003), a criança é transmitidas pelos adultos ao seu mundo imaginário
falada por suas ações, por suas histórias reais ou sob seu controle e autoria. O mundo do faz-de-
imaginárias, pelo que gosta e pelo que não gosta de conta, do brincar de escolinha, dos jogos de
realizar, pelas situações que vive e às quais reage, imitação e jogos de regras sociais, onde elas
resiste, evita ou se entrega. Os indivíduos são mesmas instituem os limites. Essas reflexões foram
falados a todo o momento pelas múltiplas observadas nas descrições do movimento
linguagens das quais fazem uso para expressar sua simbólico sem limites e da desconstrução e
existência no mundo e sua percepção sobre ele. Esta reconstrução do aprendido através do brincar.
percepção, a leitura que o indivíduo faz do Durante a pesquisa observou-se que, na medida
percebido é baseada nas vivências e conhecimentos em que as crianças manipulavam os brinquedos
que possui. psicomotores, jogavam e brincavam e lhes era
permitida a utilização de diferentes formas de
expressão corporal na qual os signos escritos
CONCLUSÃO estavam constantemente presentes, elas produziram
significados e aprimoraram o movimento
Os resultados do presente estudo demonstraram psicomotor necessário ao desenho da letra.
a imprescindível necessidade de se propiciar aos Os signos escritos se internalizaram com maior
educandos diversos tipos e formas de vivências facilidade quando foram envolvidos em atividades
corporais, visuais, auditivas, ou seja, estimular a lúdicas, nas quais se misturaram à subjetividade de
criança através do exercício de seus sentidos para cada criança. Nessa atividade, lançada aos
que sejam desenvolvidas as habilidades ajustamentos corporais necessários para o
psicomotoras que se constituem requisitos para o desenvolvimento do seu brincar, a criança descobre-
aprendizado formal da linguagem escrita, da leitura se sujeito de ação intencional. Sobre o tema, Colello
e das operações lógico-matemáticas. Observou-se, (1995, p.22) considera que
inclusive, que mediante brincadeiras e jogos
pertencentes ao universo lúdico e simbólico infantil, [...] a relação entre educação corporal e a
conquista da escrita não se explica pelo
a criança consegue uma melhor compreensão e propósito específico de habilitar a mão que
construção de significados para o que é apreendido. desenha as letras.
Isso foi percebido na essência que focalizou a
construção do vocabulário lingüístico, escrito e A relação entre educação corporal e escrita se
psicomotor; bem como naquela que tratou de explica pela promoção do esforço de cada um em
reflexões sobre a psicomotricidade e o brincar no expressar suas idéias de diversas e múltiplas formas
desenvolvimento da percepção consciente e, em manifestações que podem, inclusive, ser
ainda, na que descreveu as diferentes linguagens escritas.
na semiótica do pensamento infantil.
Ao relatar as experiências vividas pelos sujeitos crianças e adultos. Educação: Revista da Faculdade de
deste estudo, almeja-se que, a exemplo de Jean Le Educação da PUCRS, Porto Alegre, v.14, n.20, p.15-40, 1991.
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distante, modificarem-se as políticas educacionais
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públicas do país. Acredita-se que a educação pelo assegurado. In: SANTOS, Santa M. P. (Org.). Brinquedoteca:
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dominam conteúdos e os demais os suportam. Faz- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?
se imperativo que o sistema educacional se abra Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
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bem, produzindo sua própria história e cultura. de Pesquisa em Poética da Imagem, São Paulo, n.15, p.29-67,
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o movimento humano presentes em toda forma de GIORGI, Amedeo. Método psicológico fenomenológico:
aprendizagem e que devem servir de fio condutor alguns tópicos teóricos e práticos. Educação: Revista da
para o desenvolvimento da pessoa como unidade, Faculdade de Educação da PUCRS, Porto Alegre, v.24, n.43,
envolvendo o corporal, o mental, o afetivo e o p.133-150, 2001.
intelectual, não esquecendo a função simbólica HUIZINGA, Johan. O jogo e a competição como funções
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imanente à representação mental. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.52-87.
A pesquisadora descobre-se, ao final deste
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estudo, ensinante-aprendiz e aprendiz-ensinante, experimentar e explorar outra educação. Educação &
posição na qual o mundo é nossa escola e o Realidade: Revista da Faculdade de Educação da UFRGS,
movimento, nosso livro didático. Em nosso corpo, Porto Alegre, v.27, n.2, p.31-45, jul./dez. 2002.
escreve-se e se pode ler nosso passado, presente e JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de A. Educação infantil e as
futuro, legado que deixaremos aos nossos múltiplas linguagens: o quebra-cabeça que é jogo de trilha. In:
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Endereço para correspondência: R: dos Narcísios, 3677 – Núcleo São José – CEP: 95555-000 – Capão Novo-RS. E-mail:
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