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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p.

161-174, 2012 161

O JOGO DA LINGUAGEM EM JOGO DE CENA :


O ESTATUTO DA REPRESENTAÇÃO PELO VIÉS
ENUNCIATIVO

Fábio Aresi

RESUMO
É meu objetivo no presente trabalho realizar uma lei-
tura interpretativa da produção cinematográfica Jogo de
Cena (2006), de Eduardo Coutinho, tomando como
aporte teórico o viés enunciativo de Émile Benveniste.
Assim, procuro evidenciar o papel da enunciação como
possibilidade do cineasta de jogar com o gênero “docu-
mentário”, ao colocar como um problema a noção de
representação.

PALAVRAS-CHAVE: Enunciação; representação; sig-


nificação.

P
or mais que possa parecer esquisito ou inadequado para um texto que
se propõe a tratar de um tema como a linguagem, tal como o título
do mesmo sugere, e que se propõe a tratá-lo a partir do campo da
linguística, inicio este trabalho dizendo que o que me levou a produzi-lo foi,
antes de tudo, o deslumbramento causado pelo trabalho de um cineasta. Falo
aqui da produção cinematográfica de Eduardo Coutinho, filmada em 2006 e
intitulada Jogo de Cena.
Assim como Freud (1974)1, o qual, tomado pelo mistério que o fascinava
na escultura de Michelangelo representando Moisés e as Tábuas da Lei, foi
levado a procurar desvendar a causa desse poderoso “efeito estético”, tive de

1
FREUD, S. O Moisés de Michelangelo (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
162 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

semelhante maneira a necessidade de me demorar mais longamente sobre o


filme a que assisti e de me perguntar o que nele me despertou tanto o interes-
se. Não demorei a chegar à conclusão de que tal filme me interessou princi-
palmente porque, entre outras coisas, colocou-me questões instigantes sobre
a linguagem, em especial, sobre o misterioso aspecto da linguagem ao qual
geralmente volto minha atenção: o da enunciação.
Dessa forma, e tendo em vista essa explicação prévia sobre o contexto
peculiar de origem do presente trabalho, adianto que o texto que se segue não
apresenta a mesma proposta de objetividade que observamos comumente em
textos de cunho linguístico que almejam um estatuto de “cientificidade”. Pelo
contrário: se olho para a linguagem neste trabalho, eu o faço sem qualquer
pretensão de positividade, sendo esse olhar mais um gesto pessoal de reação
ao prazer gerado pelas surpresas da linguagem do que qualquer outra coisa.
Tomo, assim, o mesmo rumo epistemológico traçado por Claudine Normand
em seu itinerário linguístico, optando por “correr o risco desse discurso frágil”
(Normand, 2009, 105)2 e tentando, em parte, fazer o que ela chama, em
sua Petite grammaire du quotidien (Normand, 2002)3, de uma “linguistique
douce”. Creio que tal posicionamento frente à linguagem e à teoria linguística,
no caso, a reflexão teórica de Émile Benveniste sobre a enunciação, permite
definir desde já uma concepção de análise enunciativa da linguagem, a saber,
aquela que concebe que o pensamento de Benveniste não constitui um “mé-
todo” diretamente aplicável à análise da linguagem, tal como se pode falar dos
modelos de análise enunciativa de Oswald Ducrot e de Antoine Culioli, mas
uma teoria da linguagem que intervém à moda de efeitos sobre o linguista em
sua análise da linguagem, o que certamente permite explicar a pluralidade de
análises, de diferentes naturezas, que as reflexões de Benveniste possibilitam.
Assim, se volto minha atenção para o filme Jogo de Cena instigado por aspectos
de ordem enunciativa, é porque sofro os efeitos da teoria benvenistiana, efeitos
que se refletirão na análise que empregarei mais adiante. Trata-se, portanto, de
um duplo gesto de interpretação, um relacionado à minha leitura pessoal do
filme de Eduardo Coutinho, outro relativo à minha leitura também pessoal da
teoria de Benveniste.

2
NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
3
NORMAND, C. Bouts, brins, bribes: petite grammaire du quotidien. Paris: Éditions le Pli, 2002.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 163

O primeiro problema que encontro, diante de tal empreendimento, é


o fato de que não me sinto confortável para falar de forma coerente sobre o
objetivo deste estudo sem ter tido a oportunidade de, ao menos, dizer algumas
palavras sobre o filme que pretendo analisar. No entanto, permito-me adian-
tar isto: buscarei mostrar que talvez o elemento principal, o efeito que mais
cause fascínio em Jogo de Cena seja justamente o jogo natural do qual todos
nós fazemos parte, desde sempre: o jogo da língua em sua instância mais bela
e, ao mesmo tempo, mais arisca – a sua instância de discurso. Em suma, é o
jogo da enunciação que possibilita ao cineasta Eduardo Coutinho também
jogar com o gênero “documentário”, ao colocar como um problema a noção
de representação. Tratarei de esclarecer melhor essa explicação, ainda um tanto
obscura, primeiramente a partir da apresentação do filme de Coutinho e, mais
além, através da análise de trechos do mesmo.

***
Os filmes de Eduardo Coutinho se caracterizam, em geral, por serem
filmes documentários que tematizam a vida cotidiana através de entrevistas
com pessoas comuns. No entanto, colocar suas produções sob o rótulo de
“documentários” sem ao menos uma ressalva seria enunciar apenas uma meia-
-verdade, e traria como consequência a ocultação de sua principal particula-
ridade, a qual, paradoxalmente, distancia seus filmes desse gênero cinemato-
gráfico: Eduardo Coutinho não vê seus documentários como algo oposto à
ficção, tal como geralmente se concebe o documentário – o retrato fiel de uma
“realidade” do mundo. Como diz Bernardo (2010, p. 176)4, “podemos alinhar
os documentários do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho entre as melhores
obras de ficção que o cinema poderia nos apresentar, sem deixar de chamá-los
‘documentários’”. Isso se dá pelo fato de o cineasta colocar seus filmes sempre
em um movimento constante entre a realidade e a ficção, de tal modo que se
torna impossível, para o espectador, dissociá-los.
O filme Jogo de Cena, de 2006, segue o mesmo estilo, porém com uma
nova premissa. O filme inicia com um anúncio colocado por Eduardo Couti-
nho em um jornal, no qual se lê a seguinte passagem: “CONVITE – Se você é
mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias pra contar

4
BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
164 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos”. A partir


de então, o documentário mostra as entrevistas selecionadas entre as 23 reali-
zadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, nas quais as protagonistas,
mulheres comuns que responderam ao anúncio, sentadas no palco do teatro,
de frente para a câmera e de costas para as poltronas vazias da plateia, contam
histórias de suas vidas. No entanto, a grande brincadeira de Coutinho está
no fato de, três meses após ter feito as entrevistas, ele enviá-las nas formas de
texto e de gravação para algumas atrizes, umas famosas, outras desconhecidas,
de maneira que elas interpretassem essas histórias da melhor maneira que pu-
dessem no mesmo lugar onde as originais foram gravadas. O resultado de tal
trabalho é, no mínimo, curioso.
O espectador sente seu primeiro estranhamento enquanto assiste à histó-
ria da segunda mulher entrevistada, chamada Gisele. Ela conta sobre a perda
de seu primeiro filho, ainda recém-nascido, e sobre seu subsequente sofri-
mento quando, no meio da entrevista e sem qualquer aviso, a mesma história
passa a ser contada/reencenada pela atriz Andréa Beltrão, passando, a partir
de então, a ser contada de forma intercalada pelas duas mulheres. A mesma
história é, assim, duplicada, tornada uma outra, embora seja, paradoxalmente,
ainda a mesma história que ouvimos. O estranhamento torna-se ainda mais
inquietante quando ouvimos a divertida e comovente história de Maria Nilza,
uma negra magra e alegre que narra sua ida do interior para a cidade grande
e sua gravidez inesperada logo na chegada por conta de uma “rapidinha” com
um motorista em plena Praça da Sé, no centro de São Paulo. Ao final de sua
história, porém, somos tomados de surpresa. A mulher volta os olhos para a
câmera e calmamente afirma: “Foi isso que ela disse”.
A partir desse momento, a dúvida entre a realidade e a ficção é colocada
de forma permanente, e intensificada cada vez mais pelo cineasta. A surpresa
inicial de ver uma versão “original” e uma “interpretada” é substituída pela
angústia de não saber mais o que é “original” e o que não é. Uma mesma
narrativa é apresentada em três versões, por três diferentes mulheres, sem que
saibamos qual delas (ou se algumas delas) é a “verdadeira dona da história”.
Chegamos de fato a nos perguntar se haveria, afinal, alguma “dona” das histó-
rias contadas, já que, como afirma Bernardo (2010, p. 179)5, “as histórias es-

5
BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 165

capam tanto das mulheres entrevistadas quanto das atrizes que as interpretam,
como se começassem a andar sozinhas no palco, primeiro, e na tela, depois”.
Outro exemplo é a divertida história contada por Fernanda Torres sobre sua
experiência com o candomblé, história que apresenta apenas a versão da atriz
e nos coloca a eterna questão: essa história é dela mesmo? Vemos, assim, que,
ainda nas palavras de Bernardo (op.cit., p. 181):

Os documentários de Eduardo Coutinho não escondem que


são documentários, mas ao mesmo tempo revelam-se ficção que
igualmente não escondem que são ficção, misturando as esta-
ções de maneira límpida e instigante.

Além disso, entre e durante as histórias, as próprias atrizes também re-


latam sua experiência ao interpretar as histórias das mulheres que lhes foram
entregues. Andréa Beltrão se comove e chora durante sua encenação, enquan-
to que a suposta Gisele “verdadeira” não deixa cair uma lágrima sequer. Após
sua encenação, Andréa revela não ter preparado choro algum, na tentativa de
representar da forma mais fiel possível a fala de Gisele, mas as lágrimas vie-
ram mesmo assim. Confessa a atriz: “Eu teria que ensaiar muitas vezes para
conseguir falar isso friamente ou – não que ela diga friamente; ela não fala
isso friamente – mas estoicamente, olimpicamente dessa maneira, eu teria que
me preparar demais”. Marília Pêra, interpretando Sarita, uma filha de turcos
explosiva, emotiva e carismática, acaba fazendo da história sobre a separação
entre ela e a filha uma outra história, mudando não só a “personagem” Sarita
como também o próprio conteúdo da narrativa. Fernanda Torres, por sua vez,
ao interpretar Rita e narrar a história de sua gravidez inesperada e a dor por
ter que colocar seus sonhos e ambições de lado em uma idade tão jovem, por
diversas vezes interrompe sua encenação, parecendo espantada, paralisada e,
ao mesmo tempo, embaraçada pela surpreendente dificuldade que encontra
ao tentar dar voz a uma “personagem real”. Sua frustração é visível quando
ela desabafa para Coutinho: “É tão engraçado isso, nossa! Parece que eu estou
mentindo para você. Eu não consigo. Eu não separo ela do que ela diz, enten-
de? Eu acho impossível separar”.
Em resumo, o estranhamento provocado não só nos espectadores, como
também nas próprias atrizes mostra o quão primoroso é o “jogo de cena”
166 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

criado por Coutinho em sua produção cinematográfica. Quanto à minha re-


ação ao filme, enquanto linguista da enunciação, senti que a todo momento
ele me colocava questões relacionadas à linguagem: o que permite a Coutinho
realizar esse “jogo de cena”, fazendo com que histórias sejam duplicadas, às
vezes triplicadas, sendo elas ao mesmo tempo idênticas e radicalmente no-
vas? Como dar explicação ao que causa incômodo à atriz Fernanda Torres
em sua representação de “Rita”? Ou ainda, em que medida podemos falar de
representação na fala das pessoas presentes no filme, sejam elas atrizes ou não,
quando olhamos para esta fala sob o viés enunciativo? Acredito que tais ques-
tões colocam em relevo propriedades muito específicas da linguagem, as quais
dizem respeito à enunciação em sua característica singular de trazer elementos
que apontam, ao mesmo tempo, para aspectos da ordem do repetível e do
irrepetível. Tendo isso em mente, parto agora para uma breve apresentação
dos principais pressupostos da teoria benvenistiana, de maneira a realizar, em
seguida, alguns comentários sobre o filme Jogo de Cena fundamentados em tal
reflexão teórica.
***

Em entrevista publicada em 1968 sob o título de “Estruturalismo e lin-


guística”, Émile Benveniste brilhantemente afirma:

Todo homem inventa sua língua e a inventa durante toda sua


vida. E todos os homens inventam sua própria língua a cada ins-
tante e cada um de uma maneira distintiva, e a cada vez de uma
maneira nova. Dizer bom dia todos os dias da vida a alguém é
cada vez uma reinvenção (Benveniste, 1968/2006, p. 18)6.

Essa passagem da entrevista, além de ser muito bela, resume, a meu ver,
a perspectiva acerca da linguagem delineada por Benveniste no decorrer de
muitos de seus textos dedicados à linguística geral. Com efeito, se Benveniste
pode ser considerado como “o linguista da enunciação e o principal represen-
tante do que se convencionou chamar de teoria da enunciação” (cf. Flores;

6
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 167

Teixeira, 2005, p. 29)7, é porque muitos de seus trabalhos atestam sua pre-
ocupação acerca da relação entre o homem e a linguagem, ou seja, ele instaura
um campo, o da Enunciação, ao se interrogar justamente acerca da questão da
subjetividade na linguagem. Assim, para o linguista, homem e linguagem não
podem ser pensados de forma dissociada, uma vez que um é condição de exis-
tência do outro, sendo ambos mutuamente constitutivos. Segundo Benveniste
(1958/2005, p. 285)8, “é um homem falando que encontramos no mundo,
um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria defini-
ção do homem”, o que significa que não há homem preexistente à linguagem.
Da mesma forma, é ilusório supor a linguagem como preexistente ao homem,
já que “a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujei-
to, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso” (op.cit., p. 286).
Portanto, é na inter-relação constitutiva entre homem e linguagem que
Benveniste vê a possibilidade de abordar o fenômeno da enunciação, esta pas-
sagem da língua ao discurso por um locutor e que é, ao mesmo tempo, a pos-
sibilidade da subjetividade e da atualização da própria língua. Nesse sentido, a
concepção de linguagem de Benveniste afasta-se daquela instrumentalista que
vê a linguagem como mera reprodução do pensamento ou como reflexo da re-
alidade. Assim, estou de acordo com Dessons (2006)9 quando este afirma que
a teoria esboçada por Benveniste constitui uma espécie de “antropologia histó-
rica da linguagem”. De igual maneira, parto da premissa estipulada pelo autor
de que o prefixo –re é de fundamental importância na elaboração teórica de
Benveniste. Ora, se “cada vez que a palavra expõe o acontecimento, cada vez o
mundo recomeça” (Benveniste, 1963/2005, p. 31, grifo meu)10, como diz
Benveniste, então cada ato de enunciação constitui uma nova criação, única e
irrepetível. A língua é, portanto, recriada, ainda que, paradoxalmente, sejam
os mesmo elementos da língua ali presentes em cada enunciação. Assim, nas
palavras de Dessons (2006, p. 14), “par l’exercice du langage, le monde n’est pas
un éternel retour, mais une constante création. En ce sens, le préfixe –re fonctionne
comme un marqueur d’historicité”. Essa concepção de linguagem é ainda mais

7
FLORES, V.; TEIXEIRA, M. Introdução à linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
8
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.
9
DESSONS, G. Émile Benveniste: l’invention du discours. Paris: Éditions in Press, 2006.
10
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.
168 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

saliente quando Benveniste afirma: “A linguagem reproduz11 a realidade. Isso


deve entender-se da maneira mais literal: a realidade é produzida novamente
por intermédio da linguagem. Aquele que fala faz renascer pelo seu discur-
so o acontecimento e a sua experiência do acontecimento” (Benveniste,
1963/2005, p. 26). Dessa forma, se a realidade é produzida novamente e se o
acontecimento e a experiência do acontecimento são tornados atuais, isto se
dá pelo discurso, isto é, na e pela enunciação, o que implica necessariamente
em reconhecer que se trata a cada vez de um acontecimento novo e singular,
já que se trata desde já de uma experiência de fala e que, como tal, possui sua
própria historicidade. É nessa perspectiva que afirma Dessons (2006, p. 40):
“Dans le langage, Il n’y a pas de répétition, ou, du moins, la répétition d’une
séquence n’est pas une redite, mais un dire chaque fois nouveau”.
De que maneira Benveniste faz operar essa sua concepção de linguagem e
de que maneira podemos empregá-la em nossa análise do papel da representa-
ção no filme Jogo de Cena? Acredito que podemos pensar sobre essas questões a
partir de um dos pontos centrais do pensamento benvenistiano, a significação,
e, consequentemente, a partir da conhecida distinção elaborada pelo linguista
no plano da forma e do sentido na linguagem, a saber, a dicotomia semiótico/
semântico.
É em um texto de 1964, chamado Os níveis da análise linguística, quando
aborda a noção de “nível de análise”, tal como o título aponta, que Benve-
niste problematiza a propriedade de significação da língua, ou como afirma
Normand (2009, p. 154)12: “É somente a partir de 1964 que a propriedade
de significação é apresentada nos seus textos como um problema fundamen-
tal da linguística, exigindo novos conceitos e que se modifique o método de
descrição”. Assim, ao analisar os níveis de análise linguística a partir da relação
entre forma e sentido, Benveniste colocará a significação na língua sob uma
dupla perspectiva, a qual será nomeada em “A forma e o sentido na lingua-
gem” (1966) de dicotomia semiótico/semântico. Para ele, “há para a língua duas
maneiras de ser língua no sentido e na forma” (Benveniste, 1966/2006,

11
A versão traduzida para o Português do texto de Benveniste apresenta uma pequena diferen-
ça da versão original em francês. Nesta, o termo utilizado pelo linguista é “re-produit”, fican-
do claro através do neologismo o valor conceitual do prefixo –re. No texto em português, o
termo foi traduzido como “reproduz”, o que pode causar certa ambiguidade.
12
NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 169

p. 229)13. A primeira é a língua como semiótica, pertencente ao domínio do


signo linguístico e circunscrita apenas às relações internas da língua, cuja fun-
ção primeira é a de significar; a segunda maneira diz respeito à língua como
semântica, pertencente ao domínio da língua em ação, cuja função é a de
comunicar. Nas palavras de Benveniste:

A semiótica se caracteriza como uma propriedade da língua; a


semântica resulta de uma atividade do locutor que coloca a lín-
gua em ação. O signo semiótico existe em si, funda a realidade
da língua, mas ele não encontra aplicações particulares; a frase,
expressão do semântico, não é senão particular. [...] e enquanto
o signo tem por parte integrante o significado, que lhe é ineren-
te, o sentido da frase implica referência à situação de discurso e
à atitude do locutor (Benveniste, Idem, p. 229-230)14.

Trata-se, portanto, de uma dupla propriedade de significação, a qual


confere à língua a especificidade de ser o único sistema semiológico capaz de
interpretar a si mesmo e a todos os outros sistemas. A língua seria, assim, o
interpretante da sociedade (Idem, p. 43-67)15. Essa distinção realizada por Ben-
veniste entre semiótico e semântico coloca ainda em evidência a propriedade da
língua de ser, ao mesmo tempo, da ordem do repetível e do irrepetível. Ora,
a língua, tomada em sua acepção semiótica tem como característica o fato de
o sentido de suas unidades – os signos – ser da ordem do reiterável, uma vez
que este sentido, ainda sob o ponto de vista semiótico, caracteriza-se como a
propriedade do signo de ser identificável e delimitável no interior do sistema
da língua, em relação às suas demais unidades. Assim, conforme afirma Ben-
veniste, “cada signo tem de próprio o que o distingue dos outros signos. Ser
distintivo e ser significativo é a mesma coisa” (idem, p. 228)16. Dessa forma,
“o signo tem sempre e somente valor genérico e conceptual” (idem, p. 228),
sendo, portanto, passível de ser repetido.

13
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
14
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
15
Idem (p. 43-67).
16
Idem, p. 228.
170 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

Por outro lado, o sentido, tomado em sua acepção semântica, caracteri-


za-se por ser da ordem do irrepetível, uma vez que sempre “implica referência
à situação de discurso e à atitude do locutor” (idem, p. 230). Ora, se o sentido
da frase, expressão semântica por excelência, é “a idéia que ela exprime” (idem,
grifo do autor), ela – a frase – será então a cada vez um acontecimento único
e não-reiterável, ou como afirma Benveniste: “Ela não existe senão no instante
em que é proferida e se apaga neste instante; é um acontecimento que desapa-
rece” (idem, p. 231).
Assim, é da articulação entre semiótico e semântico que nasce a possibili-
dade de conversão da língua em discurso, este se referenciando sempre e ne-
cessariamente a um “eu-tu”, a condição intersubjetiva da comunicação, e um
“aqui-agora”, a condição histórica de cada ato enunciativo. A historicidade de
que falo aqui, no âmbito da teoria benvenistiana, diz respeito ao fato de que
cada enunciação está intrinsecamente ligada a sua situação singular de ocor-
rência, além de que constitui sujeitos também a cada vez singulares, tendo em
mente o fato de que o “sujeito” do qual fala Benveniste não é o sujeito empíri-
co, mas “sujeito” enquanto efeito de uma enunciação, constituído sempre na e
pela sua realização. Esses fatores fazem de cada enunciação um acontecimento
único e irrepetível, portanto histórico. É nessa mesma direção que afirma Des-
sons (2006, p. 109)17: “Cette relation, établie par l’instanciation du sujet dans le
présent de sa parole, fait du langage la condition même de l’histoire”. Ou então,
ainda nas palavras do autor:

L’énonciation n’est donc pas un produit de l’histoire; elle en


est au contraire la condition, puisqu’elle fonde l’historicité en
faisant que chaque parlant s’individue dans une instance de dis-
cours toujours nouvelle, relative chaque fois à la situation de
parole dans laquelle elle s’inscrit et qui ne se répète pas (op.cit.,
p. 110).

Em suma, o ato individual de semantização da língua, ou a conversão


individual da língua em discurso, faz com que cada enunciação tenha sua
própria historicidade, sendo, assim, indissociável daquele que a produziu e da

17
DESSONS, G. Émile Benveniste: l’invention du discours. Paris: Éditions in Press, 2006.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 171

situação de fala em que ela se deu, mesmo que o enunciado, produto formal
da enunciação, seja passível de ser repetido. A enunciação mostra, portanto,
essa dualidade da língua, ao mesmo tempo um bem coletivo e de sentido ge-
ral, e um bem inegavelmente individual e novo a cada fala.
***

Tendo realizado esta breve apresentação de alguns pressupostos da teo-


ria de Benveniste, acredito agora poder tecer algumas considerações sobre a
minha leitura do filme Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, a partir de uma
perspectiva enunciativa da linguagem. Assim, trata-se, como já mencionei no
início deste trabalho, de uma interpretação do filme que traz efeitos de uma
outra interpretação, a da teoria enunciativa de Benveniste. Com isso, preten-
do deixar claro que não é meu intuito aqui dar conta da totalidade do filme,
seja com relação aos sentidos que a produção de Eduardo Coutinho permite
depreender, seja com relação às possíveis abordagens da mesma, nem da totali-
dade do pensamento de Émile Benveniste acerca da enunciação (se é que isso é
possível). Trata-se, em última análise, de um recorte de ambas as partes, recor-
te realizado a partir de um determinado ponto de vista, de uma interpretação
pessoal. Não deixo, assim, de estar implicado nessa interpretação.
Se, conforme nos diz Benveniste, a língua recria a realidade ao re-pro-
duzí-la cada vez de uma forma nova, então não é exagerado dizer que, de
certa forma, cada um de nós leva a realidade na boca e, ao abri-la, recriamos
o mundo na forma de palavras, e é a cada vez um novo mundo que criamos.
Nesse sentido, o que Eduardo Coutinho faz em Jogo de Cena é nos mostrar de
forma radical a natureza deste “re-produzir a realidade” na e pela enunciação.
O cineasta nos faz perceber claramente que recontar uma história significa, em
última instância, torná-la outra. É contar uma nova história. A substituição
frequente dos indivíduos que contam suas narrativas apenas realça o aspecto
de criação de cada representação. Porém, se levarmos a reflexão de Benveniste
a cabo, percebemos que as próprias “mulheres comuns”, convidadas a con-
tar histórias sobre suas reais experiências do passado, também não deixam de
re-presentá-las, no mesmo sentido benvenistiano de “re-produzi-las”, isto é,
reinventá-las. Elas são desde já ficções18. Ora, uma mesma experiência pode

18
Trago aqui a bela passagem de Bernardo (2010, p. 15) acerca do caráter ficcional do discurso.
172 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

ser tornada “atual” através da sua enunciação, pode ser revivida através do
discurso, mas ao ser tornada “atual”, ela já é uma outra experiência, é já uma
experiência de fala, ficcional por natureza, evento singular pois portador de
uma historicidade ligada à sua instância de discurso. Como diz Benveniste:
“Dizer bom dia todos os dias da vida a alguém é cada vez uma reinvenção”
(Benveniste, 1968/2006, p. 18)19.
Olhar para a representação por esse viés também permite entender a in-
cômoda situação de Fernanda Torres ao não conseguir representar a história
narrada por “Rita”. Sua frustração é perfeitamente compreensível: como repe-
tir algo que é da ordem do irrepetível? Como recuperar algo tão evanescente
e singularmente situado como a enunciação? Para ela havia sobrado apenas o
enunciado de “Rita”, e, no final das contas, só o que conseguiu com ele foi rea-
lizar uma outra enunciação, na qual a história de “Rita” geniosamente tornou-se
a história de Fernanda Torres tentando representar “Rita”. O mesmo pode ser
evidenciado nas lágrimas inesperadas de Andrea Beltrão interpretando “Gisele”
e no distanciamento de Marília Pêra na sua representação de “Sarita”. Nessa
perspectiva, não deixa de soar essencialmente benvenistiano o desabafo de Fer-
nanda Torres sobre sua encenação de “Rita”: “Eu não consigo. Eu não separo ela
do que ela diz, entende? Eu acho impossível separar”. E quem conseguiria? Toda
enunciação está sempre intrinsecamente atrelada àquele que a produziu, pois
é somente nela e através dela que o falante pode se individuar, constituindo-se
como sujeito, e é dessa relação íntima e instanciada em um presente único que
a frase – a expressão semântica por excelência – tira o seu sentido. A frase será,
então, a cada vez um acontecimento novo e único, assim como o seu sentido.
Sobre este último ponto, trago, por fim, um último trecho de Jogo de
Cena, que constitui também os últimos instantes do longa-metragem, uma
pequena surpresa engenhosamente guardada por Eduardo Coutinho. Essa
passagem emocionante é descrita com graça por Bernardo (2010)20, de quem
tomo a liberdade de citá-la na íntegra:

Segundo o autor, “temos acesso ao real apenas através da mediação dos discursos; todo dis-
curso elabora ficções aproximativas à realidade, portanto, todo discurso funda-se pela ficção;
logo, todo discurso é ficcional”. [BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro:
Tinta Negra, 2010].
19
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
20
BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 173

Sarita Brumer, a descendente de turcos rompida com a filha e


representada por Marília Pêra, de repente volta ela mesma ao
jogo de cena, declarando-se insatisfeita com o depoimento ini-
cial, por muito triste. É a única vez que isso acontece no filme.
Consumida pela saudade da filha que mora nos Estados Unidos
e que a ignora desde que levou um tapa da mãe, ela pede para
cantar uma clássica canção de ninar, ‘Se essa rua fosse minha’
– o seu depoimento fica ainda mais triste e, é claro, ainda mais
bonito. É impossível conter as lágrimas, em particular para
quem como eu cantava justamente essa música para os seus fi-
lhos pequenos dormirem. Cada estrofe da velha canção ganha
novos contornos, como se ela tivesse sido escrita especialmente
para retratar os dois lados da difícil relação de amor entre mãe
e filha, uma relação que perdeu o espaço para a compreensão
mútua (op. cit., p. 189-190, grifos meus).

A canção de ninar é antiga e sempre a mesma. Porém, como toda e qual-


quer manifestação da linguagem, a cada vez que entra no jogo da enunciação,
isto é, a cada vez que é cantada, ela se torna outra canção. No caso de “Sarita”,
o sentido da canção não é mais aquele de ninar, mas algo ainda mais singelo e
bonito: trata-se de uma emocionante declaração de amor à filha. A canção, as-
sim, é renovada e revestida de um outro sentido, inteiramente novo, como se,
conforme afirma Bernardo (op. cit., p. 189-190), tivesse sido escrita especial-
mente para isso. Embora a canção seja já bem conhecida, opto por terminar
meu trabalho com ela, a declaração de amor de “Sarita”, da mesma forma que
Eduardo Coutinho o faz em seu brilhante Jogo de Cena:

Se essa rua, se essa rua fosse minha/ eu mandava, eu mandava


ladrilhar/ com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante/ para o
meu, para o meu amor passar/ Nessa rua, nessa rua tem um
bosque/ que se chama, que se chama Solidão/ Dentro dele,
dentro dele mora um anjo/ que roubou, que roubou meu co-
ração/ Se eu roubei, se eu roubei teu coração/ É porque tu rou-
baste o meu também/ Se eu roubei, se eu roubei teu coração/ É
porque, é porque te quero bem.
174 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo

THE GAME OF LANGUAGE IN JOGO DE CENA: THE


STATUS OF REPRESENTATION THROUGH THE
ENUNCIATIVE APPROACH

ABSTRACT
It is my goal in this paper to make an interpretative
reading of the film Jogo de Cena (2006), produced by
Eduardo Coutinho, having as theoretical support Émile
Benveniste’s enunciative approach. Thus, it is my pur-
pose to show the role of énonciation as the possibility of
the film director to play with the “documentary” genre,
in putting as a problem the notion of representation.

KEYWORDS: Énonciation; representation; signification.

Recebido em: 28/09/11


Aprovado em: 10/05/12

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