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FRENTE 2 Literatura
MÓDULO 37 Pré-Modernismo I
1. CONCEITO E ÂMBITO rastreado em Euclides da Cunha, operariado e pelo subproletariado,
Lima Barreto, Monteiro Lobato e novos atores que, ainda timidamente,
O Pré-Modernismo não confi- Graça Aranha. se projetam na cena política.
gura um estilo literário ou uma O período pré-modernista convi- Entre os fatos históricos que mar-
escola, com um programa definido, veu com diversas correntes do século cam o período, destacamos: a Revolu-
com propostas estéticas específicas. XIX, que já se iam esgotando quando ção de Canudos, o fenômeno do
Não é como o Romantismo, Realismo, da “explosão” modernista de 1922. cangaço e do fanatismo religioso, no
Simbolismo etc. Trata-se de um Daí o caráter de estagnação, de Nordeste; a Revolta da Chibata, a
período cronológico marcado imobilismo que impregnou a literatura revolta contra a vacina obrigatória, no
pelo sincretismo (= fusão, mistura) oficial das academias e salões literá- Rio de Janeiro; a Guerra do Contes-
de diversas tendências, identificado rios, que assistiram (= ampararam) os tado, em Santa Catarina; as greves
primeiramente por Tristão de Ataíde últimos suspiros do Parnasianismo operárias dos imigrantes do Brás e da
(Alceu de Amoroso Lima), que cu- (Alberto de Oliveira, Raimundo Mooca, em São Paulo (1917).
nhou a expressão Pré-Moder nismo Correia, Bilac, Vicente de Carvalho
para designar um conjunto de autores ainda escreviam); do Neoparnasia- 3. EUCLIDES DA CUNHA
que, entre 1902 (Os Sertões, de nismo (Amadeu Amaral e Martins (1866-1909)
Euclides da Cunha, e Canaã, de Gra- Fontes); da prosa tradicionalista
ça Aranha) e 1922 (Semana de Arte de feitio clássico (Rui Barbosa e "Misto de celta, de tapuia
Moderna), representam a aliança ou Joaquim Nabuco); do regionalismo e grego", como se autodefinia, Eu-
transição entre as correntes do fim realista-naturalista (Simões clides da Cunha foi militar (expulso
do século XIX e antecipações da Lopes Neto, Valdomiro Silveira, do Exército), engenheiro, jornalista,
modernidade. Afonso Arinos) e até neoclássicos professor, acadêmico e grande es-
Assim, as chamadas correntes e neorromânticos encontraram critor.
pré-modernistas marcam-se por uma espaço para suas tardias manifesta- Acompanhou, como correspon-
antinomia: o moderno versus o an- ções. dente do jornal A Província de São
timoderno, a renovação versus o Em síntese, quanto à linguagem e Paulo (hoje O Estado), as operações
conservadorismo, aliando (= sin- ao estilo, os pré-modernistas expres- do Exército contra os rebeldes de
cretizando) tendências diversas. sam-se como realistas, naturalis- Canudos, permanecendo no Sertão da
• O aspecto conservador, an- tas, impressionistas, simbolis- Bahia de agosto a outubro de 1897.
timoderno, pode ser localizado na tas, assimilando em graus diferentes Em 1898 e 1901, escreveu, pri-
sobrevivência da mentalidade as características desses estilos. meiro em Descalvado, depois em São
positivista e determinista dos realistas Quanto aos temas, ao conteúdo, é José do Rio Pardo, Os Sertões, cuja
(naturalistas) e parnasianos, e no que se aproximam dos modernos, publicação, em 1902, alcançou reper-
estilo, no código, na linguagem, que, pelo compromisso com a realidade cussão nacional.
com poucas ousadias, perma- brasileira: o sertão da Bahia (Eu- Além de Os Sertões, deixou ou-
neceram fiéis aos modelos realistas clides da Cunha); o subúrbio ca- tros livros sobre problemas brasileiros:
(Machado, Aluísio, Eça, Zola, Flau- rioca (Lima Barreto); o Vale do Contrastes e Confrontos, À Margem
bert, Balzac). Vale observar que o Paraíba paulista (Monteiro Loba- da História, Peru versus Bolívia, Re-
Modernismo de 1922 representou, so- to); a adaptação do imigrante ao latório sobre o Alto Purus.
bretudo, uma ruptura em termos de trópico (Graça Aranha).
linguagem, do código, e, nesse sen- ❑ Características
tido, os pré-modernistas foram, em 2. O CONTEXTO HISTÓRICO • O cientista e o artista
diferentes medidas, antimodernos. Primeiro grande pensador social
• O aspecto antecipador da As primeiras décadas do século brasileiro, Euclides da Cunha harmo-
modernidade localiza-se mais em XX têm como marca a contradição niza o rigor científico, a erudi-
nível do conteúdo, na problema- entre a postura tradicionalista da oli- ção, a formação positivista e
tização da realidade brasileira, na garquia rural e a inquietação dos se- determinista, a exatidão do ma-
crítica às instituições arcaicas, no tores urbanos, esta última matizada de temático e engenheiro, com a
regionalismo crítico e vigoroso e no diversas tendências assimiladas da paixão pela palavra e a potên-
espírito inconformista e rebelde que, América do Norte e da Europa, pelo cia verbal, provando que a arte e a
de diversas maneiras, pode ser imigrante, pela classe média, pelo ciência não se opõem.
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MÓDULO 38 Pré-Modernismo II
1. MONTEIRO LOBATO ❑ Apreciação crítica cócoras enquanto o Brasil esperava
(1882-1948) “A sua obra é variada: contos, por ele”, na famosa figura de Jeca
crônicas e artigos, ensaios quase Tatu; depois se desculpou, falando
❑ Vida das difíceis condições da vida do cam-
panfletários, e literatura infantil. Des-
Nasceu na chácara do Visconde ponês. Atacou publicamente o Mo-
taca-se aqui o sentido da obra do
de Tremembé, seu avô materno, hoje dernismo, no artigo “Paranoia ou
contista de feitio regionalista. Ela está
conhecida como Chácara do Pica- Mistificação?”, de 1917, escrito a pro-
presa à experiência no interior, com-
Pau Amarelo. Formou-se em Direito pósito de uma exposição de Anita
preendido sobretudo nos limites da
em São Paulo, tendo participado in- Malfatti. A principal característica de
região que se denominaria das ‘cida-
tensamente de atividades políticas es- sua linguagem é a oralidade.
des mortas’, onde brilhou o fausto das
tudantis. Fundou a Companhia
grandes fazendas de café do século
Editora Nacional; incentivou as cam-
passado [XIX]. Constitui-se assim de TEXTO
panhas do petróleo e do ferro, fun-
flagrantes bem apanhados do homem
dando, em 1931, a Cia. Petróleo do UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA
e da paisagem, embora tomados nos
Brasil. Foi preso por escrever carta ao
seus aspectos exteriores, para nos
ditador Getúlio Vargas sobre o proble- Chamava-se João Teodoro, só. O
comunicar a sugestão de marasmo e
ma do petróleo brasileiro. Mudou-se mais pacato e modesto dos homens.
indolência reinantes. E não disfarça
para a Argentina, regressando no ano Honestíssimo, com um defeito ape-
inteiramente o propósito de denúncia
seguinte, 1947. nas: não dar o mínimo valor a si pró-
de uma situação de indiferença,
❑ Obras deplorável. Por exemplo, Urupês e prio. Para João Teodoro, a coisa de
Urupês (doze histórias tiradas do Cidades Mortas, os dois primeiros menos importância no mundo era
sertão paulista) – 1918 livros que deram consagração e João Teodoro.
Ideias de Jeca Tatu – 1918 popularidade ao A.” Nunca fora nada na vida, nem ad-
Cidades Mortas – 1919 mitia a hipótese de vir a ser alguma
Negrinha (contos) – 1920 (Antonio Candido e J. A. Castello, coisa. E por muito tempo não quis
O Macaco que se Fez Homem – Presença da Literatura Brasileira II, nem sequer o que todos ali queriam:
1923 pp. 348-9) mudar-se para terra melhor.
A Barca de Gleyre (correspon- Mas João Teodoro acompanhava
dência com Godofredo Rangel) – 1944 A principal faceta de sua produ- com aperto de coração o depere-
ção literária são os contos, de cunho cimento1 visível de sua Itaoca.
• Literatura Infantil regionalista, que enfocam o homem e — Isto já foi muito melhor, dizia
Reinações de Narizinho a paisagem da região que se denomi- consigo. Já teve três médicos bem
Viagem ao Céu naria “das ‘cidades mortas’”, isto é, o bons, agora só um e bem ruinzote. Já
O Picapau Amarelo decadente Vale do Paraíba. Criticou teve seis advogados e hoje mal dá
Emília no País da Gramática etc. a indolência do caboclo, “sempre de serviço para um rábula2 ordinário
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como o Tenório. Nem circo de cavali- 2. AUGUSTO DOS ANJOS ❑ “Não sou capaz de amar
nhos bate mais por aqui. A gente que (1884-1914) mulher alguma!”
presta se muda. Fica o restolho3. De- “Se algum dia o prazer vier
cididamente, a minha Itaoca está-se ❑ Vida procurar-me, dize a este
acabando... Paraibano, desde a infância enfer- monstro que fugi de casa!”
João Teodoro entrou a incubar4 a miço e nervoso, é, a rigor, um poeta O asco do prazer é expresso de
ideia de também mudar-se, mas para inclassificável. Sua obra é constituída maneira contundente; a relação entre
isso necessitava dum fato qualquer de um único livro — Eu (1912) —, os sexos é apenas “a matilha espan-
que o convencesse de maneira abso- que, reeditado em 1919, passou a tada dos instintos”, ou, “parodiando
luta de que Itaoca não tinha mesmo chamar-se Eu e Outras Poesias. saraus cínicos, / bilhões de centros-
conserto ou arranjo possível. Transformado em catecismo dos somas apolínicos / na câmara promís-
— É isso, deliberou lá por dentro. pessimistas e em bíblia dos azarados cua do vitellus”.
Quando eu verificar que tudo está e malditos, o livro Eu é de uma insti- Reduzindo o amor humano à ce-
perdido, que Itaoca não vale mais na- gante popularidade, resistente a to- ga e torpe luta de células, cujo fim
da de nada, então arrumo a trouxa e dos os modismos, impermeável às não é senão criar um projeto de ca-
boto-me fora daqui. retaliações da crítica e aos vermes do dáver, o poeta aspira, como Cruz e
Um dia aconteceu a grande novi- tempo. Foi o poeta mais original de Sousa, à imortalidade gélida, mas lu-
dade: a nomeação de João Teodoro nossa literatura, no período que vai minosa, de outros mundos onde não
para delegado. Nosso homem rece- de Cruz e Sousa aos modernistas. lateje a vida-instinto, a vida-carne, a
beu a notícia como se fosse uma ca- vida-corrupção.
cetada no crânio. Delegado, ele! Ele ❑ “Eu, filho do carbono e do
que não era nada, nunca fora nada, amoníaco” As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
não queria ser nada, não se julgava As leituras precoces de Darwin, Viver na luz dos astros imortais,
capaz de nada... Haeckel, Lamarck, Schopenhauer e Abraçado com todas as estrelas!
Ser delegado numa cidadezinha outros, feitas na biblioteca de seu pai, (Augusto dos Anjos, “Queixas Noturnas”)
daquelas é coisa seriíssima. Não há fundamentaram a postura existencial
cargo mais importante. É o homem que do poeta, a adesão ao Evolucionismo ❑ “As palavras se desintegram
prende os outros, que solta, que man- de Darwin e Spencer e a angústia fun- na minha boca como
da dar sovas, que vai à capital falar da, letal, ante a fatalidade que arrasta cogumelos mofados.”
com o governo. Uma coisa colossal toda a carne para a decomposição. (von Hofmannsthal)
ser delegado — e estava ele, João Fundem-se a visão cósmica e o deses- Augusto dos Anjos vale-se muitas
Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!... pero radical, produzindo uma poesia vezes de técnicas expressionistas
João Teodoro caiu em meditação violenta e nova em língua portugue- na montagem de seus textos. O
profunda. Passou a noite em claro, sa. Combinou inovações arrojadas expressionismo, corrente estética
pensando e arrumando as malas. Pe- com elementos provindos do Parna- situada nos limiares do Modernismo,
la madrugada botou-as num burro, sianismo e do Simbolismo. representou uma reação contra o
montou no seu cavalinho magro e impressionismo, contra o gosto pela
A IDEIA
partiu. nuance, contra o refinamento e
Antes de deixar a cidade foi visto De onde ela vem?! De que matéria bruta sutileza na captação do momento.
por um amigo madrugador. Vem essa luz que sobre as nebulosas A imagem é intencionalmente de-
— Que é isso, João? Para onde Cai de incógnitas criptas misteriosas formada e agrupada de maneira des-
se atira tão cedo, assim de armas e Como as estalactites duma gruta?! concertante, por meio da transfigu-
bagagens? ração da realidade. Em lugar da
Vem da psicogenética e alta luta
— Vou-me embora; respondeu o delicadeza e da suavidade, a imagem
Do feixe de moléculas nervosas,
retirante. Verifiquei que Itaoca chegou Que, em desintegrações maravilhosas,
é deformada, por meio de um dese-
mesmo ao fim. Delibera, e depois, quer e executa! nho violento, que acentua e barbariza
— Mas, como? Agora que você a forma, aproximando-se, às vezes,
está delegado? Vem do encéfalo1 absconso2 que a cons- do grotesco e da caricatura.
— Justamente por isso. Terra em [tringe, Daí o “mau gosto”, o “apoético”
que João Teodoro chega a delegado, Chega em seguida às cordas da laringe, que, em Augusto dos Anjos, são con-
eu não moro. Adeus. Tísica, tênue, mínima, raquítica... vertidos em poesia. O jargão científico
E sumiu. e o termo técnico, tradicionalmente pro-
Quebra a força centrípeta que a amarra, saicos, não devem ser abstraídos de
(Monteiro Lobato, Cidades Mortas) Mas, de repente, e quase morta, esbarra um contexto que os exige e os justifica.
No molambo3 da língua paralítica!
Fazia-se mister uma simbiose de ter-
Vocabulário (Augusto dos Anjos)
1 – Deperecimento: definhamento.
mos que definissem toda a estrutura
2 – Rábula: advogado de limitada cultura. Vocabulário da vida (vocabulário físico, químico e
3 – Restolho: resto, sobra. 1 – Encéfalo: cérebro. 2 –Absconso: recôndito, biológico) e termos que exprimissem
4 – Incubar: planejar. oculto. 3 – Molambo: trapo. o asco e o horror ante a existência.
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Apoiando-se na hipérbole, no pa- Acostuma-te à lama que te espera! Dissolva-se, portanto, minha vida
radoxo e na exploração de efeitos so- O Homem, que, nesta terra miserável, Igualmente a uma célula caída
noros, Augusto dos Anjos funde a Mora entre feras, sente inevitável Na aberração de um óvulo infecundo;
Necessidade de também ser fera.
inflexão simbolista e a retórica cientifi-
Mas o agregado abstrato das saudades
cista, criando uma dicção singular, que
Toma um fósforo, acende teu cigarro! Fique batendo nas perpétuas grades
projeta a hipersensibilidade e a visão O beijo amigo é a véspera do escarro, Do último verso que eu fizer no mundo!
trágica e mórbida da existência. A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Observe, nos versos a seguir, o (Augusto dos Anjos)
jogo de aliterações e efeitos sonoros: Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga, Vocabulário
“Tísica, tênue, mínima, raquítica...”,
Escarra nessa boca que te beija! 1 – Diatomácea: micro-organismo que tem ca-
“Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento”, “Cinzas,
pacidade de sintetizar substâncias orgâni-
caixas cranianas, cartilagens” , “De
(Augusto dos Anjos) cas a partir de substâncias inorgânicas.
aberratórias abstrações abstrusas”, “Bruto, de
2 – Criptógama: espécie vegetal que não se
errante rio, alto e hórrido, o urro / reboava”, “À
reproduz por meio de flores: as algas, os
híspida aresta sáxea áspera e abrupta.” BUDISMO MODERNO
musgos, os liquens e as samambaias.
3 – Esbroar: reduzir(-se) a pequenos fragmen-
TEXTOS Tome, Dr., esta tesoura, e… corte tos, a pó.
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
VERSOS ÍNTIMOS Todo o meu coração, depois da morte?!
divisão entre objetos e espaço, e canálise, procurava incluir na criação mento, como descargas de vivências
ênfase em linhas de força. Os futuris- artística os meios de elaboração do profundas, delírios emocionais, vio-
tas foram os primeiros a utilizar ruídos inconsciente, superar a realidade tal lentando nosso impulso natural de
na música e, crítica e humoristica- como ela é percebida cotidiana- buscar as coisas fáceis, sobretudo
mente, criaram até um “teatro sin- mente. Na literatura, criaram o pro- nos domínios da expressão através
tético futurista”, com peças cujos atos cesso “da escrita automática”, utili- da língua.
duravam menos de cinco minutos. zando-se da livre associação de
palavras. Na pintura, representavam ❑ A integração poética da
Cubismo: nome da teoria do imagens do inconsciente e do sonho. civilização material
grupo de pintores liderados por Bra- Além de André Breton, são surrealis- “À sociedade nova, aqui e alhu-
que e Picasso em Paris, a partir de tas os escritores Paul Éluard, Antonin res, correspondia, necessariamente,
1906. Influenciados por esculturas Artaud e Louis Aragon. Salvador Dalí literatura nova — eis o que não se
primitivas e por Cézanne, criaram um notabilizou-se na pintura e Luis cansaram de repetir, desde o primei-
tipo de pintura que eliminou a pers- Buñuel, no cinema. ro instante, todos os teóricos e ar-
pectiva, multiplicando os pontos de Num mundo em que os setores do tistas; (...)
vista num mesmo quadro. Escolhen- conhecimento — ciências, artes, filo- Como é natural, estes tomaram
do objetos familiares, facilmente re- sofia — são interdependentes, um tra- consciência muito mais cedo que os
conhecíveis, os cubistas os pinta- ço fundamental é comum a todas demais do que significavam os pro-
vam, não como os viam, mas como essas esferas: a instabilidade. A Arte gressos técnicos e científicos do co-
os entendiam estruturalmente: reor- se “desrealiza”, torna-se abstrata ou meço do século [XX]; eles
ganizavam os constituintes formais não figurativa, abandona a reprodu- perceberam desde logo que a própria
desses objetos em composições ção imitativa dos seres e objetos re- natureza e a própria qualidade do
geométricas, representando simulta- ais, para, em vez disso, criar seus espírito humano iam se modificar ao
neamente seus vários aspectos. Al- próprios objetos. impacto da máquina; esta última não
guns textos de Oswald de Andrade A Arte Moderna assume posição representava apenas um acréscimo à
foram influenciados pelo cubismo. de constante ruptura, assimilando em vida cotidiana, mas um fator catalítico
seu próprio organismo a fragmenta- de alcance imprevisível.”
ção de uma época marcada pela des-
continuidade e pelo caos inventivo e (MARTINS, Wilson. A Literatura
demolidor. Brasileira. “O Modernismo”.
Na Física, surgem as descobertas São Paulo: Cultrix. Vol. VI. p.13.)
de Max Planck (Teoria dos Quanta,
1900: a energia radiante tem, como a O rápido desenvolvimento tecno-
matéria, estrutura descontínua) e de lógico, que marca os albores do sécu-
Albert Einstein (Teoria da Relativida- lo XX, traz, ao lado da modificação que
de, 1905: a duração do tempo não é a provoca na moda, variações no gosto
mesma para dois observadores que estético e uma ânsia pela novidade;
se deslocam um em relação ao outro). torna-se necessário enfatizar a cren-
Na Filosofia e Psiquiatria, desen- ça de que o novo é sempre melhor. A
volvem-se as pesquisas de Henri técnica traz consigo o dinamismo
Georges Braque (1882-1963). Instrumen- Bergson e Sigmund Freud, respecti- também nas atitudes diante da vida.
tos musicais. Óleo sobre tela (50x61cm). vamente. Bergson, em Matéria e Me-
Coleção particular. mória (1907), afirma que a intuição é ❑ O verso livre
o único meio de conhecimento da O verso livre não implica ausên-
Dadaísmo ou Dadá: movimen- duração dos fenômenos e da vida. cia de ritmo, mas a criação do “ritmo
to antiburguês de arte e literatura que Freud, na Introdução à Psicanálise a cada momento”. Sabemos que, em
se espalhou pela Europa após a (1916/1917), promove a investigação português, a técnica do verso depre-
Primeira Guerra. Rejeitava os valores psicológica no tratamento das neuro- ende, tradicionalmente, esquemas
morais e estéticos tradicionais, le- ses, por meio da procura de tendên- que vão de duas a doze sílabas, com
vando essa rejeição ao absurdo, mas cias reprimidas no inconsciente do acentos regularmente distribuídos. Já
abrindo caminho para novos modos e indivíduo e do seu retorno consciente o que caracteriza o verso livre é,
meios de expressão. Surgiu em Zuri- pela análise. sobretudo, uma mudança de atitude:
que, em 1916, e reuniu artistas como sua unidade de medida deixa de ser
Tristan Tzara, Francis Picabia, Marcel 2. A POESIA MODERNA a sílaba e passa a basear-se na com-
Duchamp. binação das entoações e das pausas.
Surrealismo: originou-se em A poesia moderna rompe a sinta- O ritmo decorre, pois, da sucessão
Paris, em 1924, sob a liderança de xe, o encadeamento lógico; é elíptica, dos grupos de força valorizados pela
André Breton, e teve muito em comum alusiva, não tem limitações norma- entoação, pela maior ou menor
com o Dadá. Tendo apoio da Psi- tivas, e o ritmo é criado a cada mo- rapidez da enunciação.
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dispostos em três partes: “Brasão”, Cada uma dessas “máscaras” ou A modernidade de Fernando Pes-
“Mar Português” e “O Encoberto”. heterônimos constitui uma atitude, soa principia pela negação do sen-
Tratam, respectivamente, das figuras uma experiência assumida por Fer- timento puro como conteúdo poético
históricas e lendárias que permitiram nando Pessoa, e desemboca em um (“Tudo o que em mim sente está
a ascensão de Portugal, do apogeu jogo infinito de linguagens/seres, re- pensando”). A essência de sua lin-
de Portugal com as navegações e do velador de uma poderosa consciên- guagem nova reside na constante re-
declínio português. cia crítica do fenômeno poético e de versão do sentimento em pensa-
uma densa posição metalinguística. mento, na constante alquimia do sen-
• Outras Obras As “máscaras” assumidas pelo poeta tido em outra coisa que o excede.
– Poemas de Alberto Caeiro dialogam entre si, correspondem-se e
– Odes de Ricardo Reis indicam as contradições existentes ❑ Fernando Pessoa,
– Poesias de Álvaro de Campos entre elas. ele-mesmo
– Poesias de Fernando Pessoa Multiplicando-se em vários poetas Fernando Pessoa ortônimo, ou
– Poemas Dramáticos – O Mari- — Alberto Caeiro, Ricardo Reis seja, ele-mesmo, diverge muito de
nheiro e Álvaro de Campos —, seus Caeiro e Reis, porque não inculca
– Quadras ao Gosto Popular heterônimos, além da poesia que uma norma de comportamento; nele
– Poemas Ingleses – Poemas realiza sob seu próprio nome, Fer- há quase apenas a expressão
Franceses – Poemas Traduzidos nando Pessoa propõe um jogo infinito musical e sutil do frio, do tédio
– Poesias Inéditas da linguagem, oscilando entre o sentir e dos anseios da alma, de es-
e o pensar, entre o ser e o não ser, tados quase inefáveis em que
Em prosa (textos recolhidos, es- entre o rosto e a máscara. se vislumbra por instantes
tabelecidos e organizados por vários “Tudo o que em mim sente “uma coisa linda”, nostalgia
autores): está pensando”, diz de si o poeta, dum bem perdido que não se
– O Livro do Desassossego, por propondo uma chave para penetrar- sabe qual foi, oscilações qua-
Bernardo Soares mos no labirinto em que ele nos en- se imperceptíveis duma inte-
– Páginas Íntimas e de Auto- reda através da multiplicidade de lin- ligência extremamente sensí-
Interpretação guagem e de cosmovisões: Caeiro é vel, e até vivências tão profun-
– Páginas de Estética e de Teo- um mestre bucólico, Reis é um neo- das que não vêm “à flor das
ria e Crítica Literária clássico estoico, Campos é um futu- frases e dos dias”, mas se insi-
– Textos Filosóficos rista neurótico e angustiado e Fernando nuam pela eufonia dos versos,
– Sobre Portugal – Introdução ao Pessoa, ele-mesmo, parece ser o pelas reticências, numa lingua-
Problema Nacional heterônimo de algum outro ser/poeta, gem finíssima.
– Da República instalado entre um heterônimo e outro, Fernando Pessoa, ele-mesmo, re-
– Ultimatum e Páginas de Socio- nos intervalos, nos interstícios, sim- toma motivos e formas da lírica por-
logia Política ples “ficção do interlúdio”. tuguesa, desde a Idade Média. É onde
– Cartas de Amor A explosão dos heterônimos aspi- mais se projeta o nacionalista
– Textos de Crítica e Intervenção rava ao universal como esperança de místico, o sebastianista racional
unidade: que o poeta se dizia, especialmente no
• Considerações poema esotérico Mensagem, réplica
Realiza uma poética densamente Sentir tudo de todas as maneiras, / não sistemática de Os Lusíadas.
experimental, que, partindo das for- Viver tudo de todos os lados, / Ser a
mas líricas tradicionais, ultrapassa-as mesma coisa de todos os modos TEXTOS
de forma criativa, evoluindo através possíveis ao mesmo tempo, / Realizar
de diversas etapas: o saudosismo em si toda a humanidade de todos os I
esotérico, o paulismo, o futu- momentos / Num só momento difuso,
rismo, o interseccionismo e o profuso, completo e longínquo. POBRE VELHA MÚSICA!
sensacionismo. (Álvaro de Campos, Pobre velha música!
O poeta desdobra-se em várias “Passagem das Horas”) Não sei por que agrado
“máscaras”. Uma delas, Fernando Enche-se de lágrimas
Pessoa, ele-mesmo, constrói a poe- Mas essa esperança de unidade Meu olhar parado.
sia ortonímica, assinada pelo pró- desemboca no esfacelamento. A so-
Recordo outro ouvir-te.
prio Fernando Pessoa. As outras ma dos heterônimos, que tinham no- Não sei se te ouvi
“máscaras” constituem os heterô- me, biografia, profissão e traços Nessa minha infância
nimos do poeta, dentre os quais se característicos, deveria produzir o Que me lembra em ti.
destacam: Alberto Caeiro, Ricardo Todo. Mas entre um sujeito e outro
Reis e Álvaro de Campos, além de ou- desponta o Outro, o Neutro, o Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
tros, menos desenvolvidos: Bernardo Fluido. É o Negativo “ele-mesmo” E eu era feliz? Não sei:
Soares, Alexandre Search, Antônio quem triunfa, recobrindo a afirmação Fui-o outrora agora.
Mora, G. Pacheco e Vicente Guedes. e negando-a, uma e outra. (Fernando Pessoa)
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O que nós vemos das coisas são as coisas Se quiserem que eu tenha um misticismo, meus pensamentos / e os meus
Por que veríamos nós uma coisa se hou- [está bem, tenho-o. pensamentos são todos sensações”.
[vesse outra? Sou místico, mas só com o corpo.
Por que é que ver e ouvir seria iludir-nos A minha alma é simples e não pensa.
Sua poesia, contudo, é mais de
Se ver e ouvir são ver e ouvir? pensamentos que de sensações.
O essencial é saber ver. O meu misticismo é não querer saber. O caráter paradoxal da teoria de
Saber ver sem estar a pensar, É viver e não pensar nisso. Caeiro se manifesta também no plano
Saber ver quando se vê, estilístico: seus poemas evitam tudo o
E nem pensar quando se vê Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Nem ver quando se pensa. Vivo no cimo dum outeiro1
que se costuma tomar por poesia.
Numa casa caiada e sozinha, Seus versos parecem prosa, pois são
Mas isso (tristes de nós que trazemos a E essa é a minha definição. uma forma ritmicamente frouxa de ver-
[alma vestida!), so livre, cujo andamento dá a impres-
Isso exige um estudo profundo, Vocabulário são de naturalidade, de esponta-
Uma aprendizagem de desaprender 1 – Outeiro: colina, morro.
E uma sequestração na liberdade
neidade sem qualquer premeditação
[daquele convento artística (o que é, na verdade, um
Também em relação à poesia
De que os poetas dizem que as estrelas efeito artístico dessa poesia). Seu
[são as freiras eternas Caeiro é polêmico, porque suas ideias
vocabulário é restrito e as mesmas
E as flores as penitentes convictas de um geram uma poesia “antipoética”, que
palavras e expressões se repetem
[só dia1, nega a transcendência:
Mas onde afinal as estrelas não são senão
com pequeno intervalo, sem nenhum
[estrelas O luar através dos altos ramos,
esforço aparente de evitar o que é
Nem as flores senão flores, Dizem os poetas todos que ele é mais tradicionalmente considerado “pobre-
Sendo por isso que lhes chamamos Que o luar através dos altos ramos. za de estilo”. Também do ponto de
[estrelas e flores. vista estritamente linguístico e gra-
Mas para mim, que não sei o que penso, matical, a escrita de Caeiro é menos
Nota O que o luar através dos altos ramos
1 – Observar a crítica a algumas imagens con- É, além de ser
culta e menos rigorosa que a de seus
vencionais da poesia de fundo romântico, espi- O luar através dos altos ramos, “discípulos”.
ritualizada, que Caeiro rejeita. É não ser mais Com tudo isso, a pequena obra
Que o luar através dos altos ramos. singular e singela de Alberto Caeiro
Assim, nossa dificuldade em alcança, com recursos de simplici-
captar o mundo tal como ele é deve- dade extrema, momentos de verda-
se ao nosso vício de interpor o pen- deira mágica poética, nos quais a
samento entre nós e as coisas. Nós sensação é realmente vívida e não
somos como que doentes de pensa- apenas pretexto para a discussão de
mento. Em vez de nos relacionarmos ideias. É o caso do poema seguinte,
com os objetos em sua singularida- que pode ser tomado, de fato, como a
de, que é a sua realidade, nós gene- expressão de um momento de
ralizamos, e destruímos com isso a iluminação zen-budista:
realidade das coisas. Diz Caeiro:
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
Compreendi que as coisas são reais e todas Alberto Caeiro. E vai-se, sempre muito leve.
[diferentes umas das outras; Pormenor do E eu não sei o que penso
Compreendi isto com os olhos, nunca com o
[pensamento. mural de Nem procuro sabê-lo.
Compreender isto com o pensamento seria Almada
[achá-las todas iguais. Negreiros, na TEXTOS
Faculdade de O GUARDADOR DE REBANHOS
Já se viu em Caeiro semelhança Letras da (1910/1911 – fragmentos)
com o zen-budismo, especialmente em Universidade
Há metafísica bastante em não pensar em
sua insistência no não pensamento de Lisboa
[nada.
como condição da experiência exis- (1958).
tencial verdadeira. Caeiro defende um O que penso eu do Mundo?
pensamento contra o pensamento, Os poemas de Caeiro, que falam Sei lá o que penso do Mundo!
uma filosofia antifilosófica (“Com da concretude do mundo, da realidade Se eu adoecesse pensaria nisso.
filosofia não há árvores, há ideias única das sensações, são na verdade
Que ideia tenho eu das coisas?
apenas” ) e nega qualquer forma de poemas abstratos, quase inteiramente
Que opinião tenho sobre as causas e os
espiritualismo ou de transcendência, carentes de imagens do mundo, por-
[efeitos?
ou seja, nega a ideia de qualquer rea- que o que o poeta faz é defender uma Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
lidade além daquela que constitui teoria – uma curiosa teoria que con- E sobre a criação do Mundo?
nossa experiência concreta e imedia- dena todas as teorias. Seu livro cha- Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os
ta das coisas, com as quais nosso ma-se O Guardador de Rebanhos, [olhos
corpo se relaciona: mas, como ele diz, “o rebanho é os E não pensar. É correr as cortinas
34 –
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Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O único sentido íntimo das coisas E amo-o sem pensar nele,
O mistério das coisas? Sei lá o que é É elas não terem sentido íntimo nenhum. E penso-o vendo e ouvindo,
[mistério! Não acredito em Deus porque nunca o vi. E ando com ele a toda a hora.
O único mistério é haver quem pense no Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
[mistério. Sem dúvida que viria falar comigo VI
Quem está ao sol e fecha os olhos E entraria pela minha porta dentro
Começa a não saber o que é o Sol Dizendo-me, Aqui estou! Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
E a pensar muitas coisas cheias de calor. Porque Deus quis que o não
Mas abre os olhos e vê o Sol (Isto é talvez ridículo aos ouvidos [conhecêssemos,
E já não pode pensar em nada, De quem, por não saber o que é olhar para Por isso se nos não mostrou...
Porque a luz do Sol vale mais que os [as coisas, Sejamos simples e calmos,
[pensamentos Não compreende quem fala delas Como os regatos e as árvores,
De todos os filósofos e de todos os poetas. Com o modo de falar que reparar para elas E Deus amar-nos-á fazendo de nós
A luz do Sol não sabe o que faz [ensina.) Belos como as árvores e os regatos,
E por isso não erra e é comum e boa. E dar-nos-á verdor na sua primavera,
Mas se Deus é as flores e as árvores E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
Metafísica? Que metafísica têm aquelas E os montes e sol e o luar,
[árvores? Então acredito nele,
A de serem verdes e copadas e de terem Então acredito nele a toda a hora, XXXVI
[ramos E a minha vida é toda uma oração e uma
E há poetas que são artistas
E a de dar fruto na sua hora, o que não [missa,
E trabalham nos seus versos
[nos faz pensar, E uma comunhão com os olhos e pelos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
A nós, que não sabemos dar por elas. [ouvidos.
Que triste não saber florir!
Mas que melhor metafísica que a delas, Mas se Deus é as árvores e as flores
Ter que pôr verso sobre verso, como quem
Que é a de não saber para que vivem E os montes e o luar e o sol,
Nem saber que o não sabem? [constrói um muro
Para que lhe chamo eu Deus?
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol
“Constituição íntima das coisas...” Quando a única casa artística é a Terra toda
[e luar;
“Sentido íntimo do Universo...” Que varia e está sempre bem e é sempre
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer [a mesma.
Sol e luar e flores e árvores e montes,
[nada. Se ele me aparece como sendo árvores e Penso nisto, não como quem pensa, mas
É incrível que se possa pensar em coisas [montes [como quem respira,
[dessas. E luar e sol e flores, E olho para as flores e sorrio...
É como pensar em razões e fins É que ele quer que eu o conheça Não sei se elas me compreendem
Quando o começo da manhã está raiando, Como árvores e montes e flores e luar e sol. Nem se eu as compreendo a elas,
[e pelos lados das árvores E por isso eu obedeço-lhe, Mas sei que a verdade está nelas e em mim
Um vago ouro lustroso vai perdendo a (Que mais sei eu de Deus que Deus de si E na nossa comum divindade
[escuridão. [próprio?). De nos deixarmos ir e viver pela Terra
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, E levar ao colo pelas Estações contentes
Pensar no sentido íntimo das coisas Como quem abre os olhos e vê, E deixar que o vento cante para
É acrescentado, como pensar na saúde E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e [adormecermos
Ou levar um copo à água das fontes. [montes, E não termos sonhos no nosso sono.
1. OUTROS HETERÔNIMOS também tomado ao latim. Sua poesia maneira antiga, com grande rigor de
DE FERNANDO PESSOA aborda os temas clássicos da brevi- construção, com estrofes que alter-
dade da vida, da necessidade de go- nam versos longos e breves, de métri-
❑ Ricardo Reis zar o presente, que é a única realidade ca perfeita e sem rimas.
Ricardo Reis é cultor dos clássi- acessível diante da fatalidade da
cos gregos e latinos. Seu paganismo morte que sempre nos aguarda. Esta
TEXTOS
deriva da lição dos escritores da Anti- atitude hedonista (voltada para o
guidade, mas revela também influên- prazer), ou epicurista (decorrente da
I
cia de Alberto Caeiro, no amor pela filosofia de Epicuro), é associada a
vida rústica e no apego à Natureza. uma postura estoica, que propõe a Para ser grande, sê inteiro: nada
Sua poesia, porém, distancia-se mui- austeridade na fruição dos prazeres, Teu exagera ou exclui.
to da de Caeiro por ser cultíssima, pois seremos tanto mais felizes quanto Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
marcada por sintaxe latinizante (gran- menores forem nossas necessidades. No mínimo que fazes.
des inversões, enorme liberdade na Ricardo Reis tem no poeta latino Assim em cada lago a Lua toda
ordem das palavras, regências desu- Horácio (século I a.C.) seu modelo Brilha, porque alta vive.
literário, e seus poemas são odes à (Ricardo Reis)
sadas) e vocabulário raro, por vezes
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TABACARIA Estou hoje perplexo, como quem pensou POEMA EM LINHA RETA
[e achou e esqueceu.
Não sou nada. Estou hoje dividido entre a lealdade que Nunca conheci quem tivesse levado
Nunca serei nada. [devo [porrada.
Não posso querer ser nada. À Tabacaria do outro lado da rua, como
Todos os meus conhecidos têm sido cam-
À parte isso, tenho em mim todos os [coisa real por fora,
[peões em tudo.
[sonhos do mundo. E à sensação de que tudo é sonho, como
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,
[coisa real por dentro.
[tantas vezes vil,
Janelas do meu quarto,
(...) Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Do meu quarto de um dos milhões do
[mundo que ninguém sabe quem é Indesculpavelmente sujo,
Fiz de mim o que não soube, Eu, que tantas vezes não tenho tido
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
E o que podia fazer de mim não o fiz. [paciência para tomar banho,
Dais para o mistério de uma rua cruzada
O dominó que vesti era errado.
[constantemente de gente, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo,
Conheceram-me logo por quem não era e
[absurdo,
[não desmenti, e perdi-me.
Para uma rua inacessível a todos os pensa- Que tenho enrolado os pés publicamente
Quando quis tirar a máscara,
[mentos, [nos tapetes das etiquetas,
Estava pegada à cara.
Real, impossivelmente real, certa, desconhe- Que tenho sido grotesco, mesquinho,
Quando a tirei e me vi ao espelho,
[cidamente certa, [submisso e arrogante,
Já tinha envelhecido.
Com o mistério das coisas por baixo das Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó
[pedras e dos seres, Que quando não tenho calado, tenho
[que não tinha tirado.
Com a morte a pôr umidade nas paredes
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário [sido mais ridículo ainda;
[e cabelos brancos nos homens.
Como um cão tolerado pela gerência Eu, que tenho sido cômico às criadas de
Com o Destino a conduzir a carroça de
Por ser inofensivo [hotel,
[tudo pela estrada de nada.
E vou escrever esta história para provar Eu, que tenho sentido o piscar de olhos
[que sou sublime. [dos moços de fretes,
Estou hoje vencido, como se soubesse a
Essência musical dos meus versos inúteis, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras,
[verdade
Quem me dera encontrar-te como coisa [pedido emprestado sem pagar;
Estou hoje lúcido, como se estivesse para
[que eu fizesse, Eu, que, quando a hora do soco surgiu,
[morrer.
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria
E não tivesse mais irmandade com as [me tenho agachado
[de defronte,
[coisas Para fora da possibilidade do soco;
Calcando aos pés a consciência de estar
Senão uma despedida, tornando-se esta Eu, que tenho sofrido a angústia das
[existindo,
[casa e este lado da rua [pequenas coisas ridículas,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
A fileira de carruagens de um comboio, e Eu verifico que não tenho par nisto tudo
Ou um capacho que os ciganos roubaram
[uma partida apitada [neste mundo.
[e não valia nada.
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um (...) (...)
[ranger de ossos na ida. (Álvaro de Campos) (Álvaro de Campos)
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• A prosa pessoal urbana grita. Penso depois: não só para corrigir, como II
A prosa urbana de Mário de An- para justificar o que escrevi. Daí a razão deste
Prefácio Interessantíssimo. (…)
drade recolhe vários falares paulista-
(…) Então Macunaíma percebeu que não era
nos do dia-a-dia, seja a fala mais assombração nada, era mas o monstro Oibê
Escrever a arte moderna não significa
polida, como aparece nos Contos No- minhocão temível. Criou coragem pegou no
jamais para mim representar a vida atual no
vos (1947), seja a oralidade dos bair- que tem de exterior: automóveis, cinema,
brinco da orelha esquerda que era a máquina
ros de imigrantes italianos, como revólver e deu um tiro na assombração. Porém
asfalto. Si estas palavras frequentam-me o livro Oibê não fez caso e veio vindo. O herói tornou
Belazar te (1934). No primeiro, Mário não é porque pense com elas escrever mo- a ter medo. Pulou na rede agarrou a gaiola e
descarrega muita dose de psicolo- derno, mas porque, sendo meu livro moderno, escafedeu pela janela, jogando baratas no
gismo, que culmina no célebre conto elas têm nele razão de ser. caminho todo. Oibê correu atrás. Mas era só
“Peru de Natal”, o mais conhecido dos (…) de brincadeira que ele queria comer o herói.
contos de Mário. Apoiando-se em Macunaíma desembestara agreste fora mas
Chove? isso ia que ia acochado pelo minhocão. Então
Freud (Totem e Tabu), desmistifica as
Sorri uma garoa cor de cinza, botou o furabolo na goela, fez cosquinha e
relações familiares. lançou a farinha engolida. A farinha virou num
muito triste, como um tristemente longo...
Em Belazarte, com muita graça e areão e enquanto o monstro pelejava pra atra-
A casa Kosmos não tem impermeáveis
compadecimento cristão, Mário fala da vessar aquele mundo de areia escorregando,
[em liquidação...
gente pobre e oprimida das classes Macunaíma fugia. Tomou pela direita, desceu
Mas neste largo do Arouche o morro do Estrondo que soa de sete em sete
médias de São Paulo. posso abrir o meu guarda-chuva para- anos seguiu por uns caponetes e depois de
Em Amar, Verbo Intransitivo, Mário [doxal, cortar um travessão encapelado fez o Sergipe
de Andrade dá tratamento literário a este lírico plátano de rendas mar... de ponta a ponta e parou ofegante num agar-
processos psicanalíticos freudianos, rado muito pedregoso. Na frente havia uma
como fixações, recalques e sublima- Ali em frente... — Mário, põe a máscara! lapa grande furada por uma furna com um
— Tens razão, minha Loucura, tens razão. altarzinho dentro. Na boca da socava um frade.
ções. Neste romance, narra-se a história
O rei de Tule jogou a taça ao mar... Macunaíma perguntou pro frade:
de uma jovem alemã, Fräulein, cha- — Como se chama o nome de você?
Os homens passam encharcados...
mada por uma família de burgueses O frade pôs no herói uns olhos frios e
Os reflexos dos vultos curtos
paulistanos para iniciar Carlos, filho secundou com pachorra:
mancham o petit-pavé...
mais velho, na vida sexual. — Eu sou Mendonça Mar pintor.
As rolas da Normal Desgostoso da injustiça dos homens faz três
esvoaçam entre os dedos da garoa... séculos que afastei-me deles metendo cara no
(E si pusesse um verso de Crisfal sertão. Descobri esta gruta ergui com minhas
TEXTOS
No De Profundis?...) mãos este altar do Bom Jesus da Lapa e vivo
De repente aqui perdoando gente mudado em frei Fran-
(fragmentos) um raio de Sol arisco cisco da Soledade.
I risca o chuvisco ao meio. — Está bom, Macunaíma falou. E partiu na
chispada.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo (Mário de Andrade, (…)
sem pensar tudo o que meu inconsciente me Pauliceia Desvairada) (Mário de Andrade, Macunaíma, cap. XV)
A amada que me deu a vida partiu etílico-gastronômico-culturais. Em Paris, do-se ao Partido Comunista e fundando
sem me dizer adeus. Oswald lança seu primeiro livro de poe- o jornal O Homem do Povo, pasquim
A francesa que trouxe de Paris veio sias, Pau-Brasil, ilustrado por Tarsila. humorístico-panfletário, que foi empas-
buscar o dinheiro para outro homem. Com a crise internacional em 1929, telado por estudantes da Faculdade de
Landa, que foi o primeiro sonho vi- Oswald vai à falência, dependurando- Direito do Largo São Francisco. Serafim
vo que me ofuscou, tornou-se a estátua se nos reis da vela, apelido dos agiotas Ponte Grande é o romance que projeta
de sal da lenda bíblica. Olhou para o da zona bancária do centro velho de essa fase de radicalidade criativa e
passado. São Paulo. Perde tudo, transforma-se ideológica.
lsadora Duncan estrondou como num “vira-latas do Modernismo”, mas Fiel à sua proposta de “monogamia
raio e passou. A que encontrei, enfim, adquire uma vigorosa experiência das sucessiva”, Oswald casa-se, em 1936,
para ser toda minha, meu ciúme matou... misérias do mundo das finanças, com a poetisa Julieta Bárbara e, em
Estou só e a vida vai custar a reflorir. matéria-prima que vai transpor em O 1942, com Maria Antonieta d’Alkimin,
Estou só.” Rei da Vela. sua relação mais estável, documentada
Mais tarde, já no auge do movi- No início dos anos de 1930, passa nos poemas de Cântico dos Cânticos,
mento modernista (1926), casa-se com a viver com Patrícia Galvão (Pagu), ati- para Flauta e Violão e no livro de
Tarsila do Amaral, formando o elegan- víssima mulher que foi finalmente resga- memórias.
tíssimo casal Tarsiwald, fundador do tada para a memória nacional por Nas décadas de 1940 e 1950,
Movimento Antropófago. Entra em con- Augusto de Campos, em trabalho pu- Oswald dedica-se à vida acadêmica,
tato com alguns artistas europeus, co- blicado no ano de 1982. inclinando-se para a problemática es-
mo Blaise Cendrars e Leger. Neste Com Pagu, Oswald realiza uma gui- piritual e para os temas essenciais da
período promove concorridas reuniões nada ideológica para a esquerda, filian- vida.
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2. CARLOS DRUMMOND DE Passeios na Ilha (ensaios e crô- Alguns anos vivi em Itabira.
ANDRADE (Itabira, MG, 1902 nicas, 1952) Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
– Rio de Janeiro, 1987) Fala, Amendoeira (1957)
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
A Bolsa e a Vida (crônicas e poe- Oitenta por cento de ferro nas almas.
❑ Vida mas, 1962) E esse alheamento do que na vida é
• Descendente de fazendeiros e Cadeira de Balanço (crônicas e [porosidade e comunicação.
mineradores da cidade mineira de poemas, 1970)
Itabira (jazidas de ferro). A vontade de amar, que me paralisa o
O Poder Ultrajovem e mais 79 Tex- [trabalho,
• Expulso de um colégio de pa- tos em Prosa e Verso (1972) vem de Itabira, de suas noites brancas,
dres; estudou Farmácia em Belo Hori- Os Dias Lindos (1977) [sem mulheres e sem horizontes.
zonte. 70 Historinhas (1978) E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
• Contato com o Modernismo é doce herança itabirana.
Boca de Luar (1984)
paulista; fundação de A Revista (1925), (...)
O Observador no Escritório (1985)
primeiro periódico de literatura moder-
Moça Deitada na Grama (1987)
na em Minas. — Drummond manteve estreitos la-
O Avesso das Coisas (1987)
• Funcionário público no Rio de ços de amizade com o grupo dos mo-
Janeiro. dernistas de 1922 (Mário, Oswald e
❑ Apreciação Bandeira). Sob inspiração dos ideais da
• Autor de crônicas jornalísticas
— Nos primeiros livros são constan- Semana de 22, funda, em 1925, A
bastante populares.
tes a ironia, a atitude mineira- Revista, ponta de lança do Modernismo
mente desconfiada de refletir, o
❑ Obra em Minas Gerais. Em 1928, publica o
pessimismo, a autonegação, as arquifamoso “No Meio do Caminho”, na
• Poesia
reminiscências da infância itabi- Revista de Antropofagia.
Alguma Poesia (1930)
rana. Drummond parece buscar a si — A partir de Sentimento do
Brejo das Almas (1934)
mesmo, posicionando-se como espec- Mundo e especialmente em A Rosa
Sentimento do Mundo (1940)
tador de um mundo que não aceita e do Povo, a poesia de Drummond
Poesias (1942)
que tenta descrever e encontrar. centra-se na dimensão social, no
A Rosa do Povo (1945)
Poesia até Agora (1948) cotidiano, na denúncia da estupidez,
— No “Poema de Sete Faces”, que da incompreensão; na luta contra o
Claro Enigma (1951)
abre o primeiro livro, Alguma Poesia medo (“que esteriliza os abraços”) e
Viola de Bolso (1952)
(1930), a confissão do poeta que se contra a consciência da impos-
Fazendeiro do Ar & Poesia até
Agora (1953) sente gauche (= sem jeito, inadaptado) sibilidade da luta (“eu tenho apenas
Viola de Bolso Novamente En- e a ironia, sob a forma intencional de duas mãos / e o sentimento do mundo”).
cordoada (1955) um antilirismo: — Em “Mãos Dadas”, o compromis-
Quando nasci, um anjo torto
Poemas (1959) so com o homem, a solidariedade:
desses que vivem na sombra
A Vida Passada a Limpo (1959) disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
Lição de Coisas (1962) Não serei o poeta de um mundo caduco.
(...) Também não cantarei o mundo futuro.
Versiprosa (1967)
(...)
Boitempo (1968) (...)
Meu Deus, por que me abandonaste
Menino Antigo (1973) se sabias que eu não era Deus O tempo é a minha matéria, o tempo
As Impurezas do Branco (1973) se sabias que eu era fraco. [presente, os homens presentes,
Discurso da Primavera & Algumas Mundo mundo vasto mundo, a vida presente.
Sombras (1978) se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução. — A poesia social de Drummond faz
A Paixão Medida (1980)
Mundo mundo vasto mundo,
Corpo (1984) desabrochar o “sentimento do mun-
mais vasto é meu coração.
Amar se Aprende Amando (1985) do”, marcado pela consciência da
Tempo Vida Poesia (1986) (...) solidão, da impotência do homem di-
Poesia Errante (1988) — Na “Confidência do Itabirano”, a ante de um mundo frio e mecânico que
O Amor Natural (1992) infância e a vida, modelando a prover- o reduz a objeto. “Os Mortos de Sobre-
Farewell (1996) bial “secura” do poeta, o alheamen- casaca”, “Congresso Internacional do
to, o poeta que se sente de ferro, que Medo”, “A Noite Dissolve os Homens”,
• Prosa se diz ilha, mas que esconde sob essa “Mundo Grande”, “O Lutador”, “Mão
Confissões de Minas (ensaios e aparente indiferença uma indisfarçável Suja”, “A Morte do Leiteiro”, “A Flor e a
crônicas, 1944) solidariedade, um profundo senso do Náusea” e “José” incluem-se nessa
Contos de Aprendiz (1951) humano e do social: vertente.
48 –
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— Em Claro Enigma (1951) pas- calização de processos estruturais que a foice o fascículo
sa a predominar a escavação do real, já estavam presentes desde Alguma a lex o judex
o maiô o avô
mediante um processo de interroga- Poesia, na opção pelo prosaico, pelo irô-
a ave o mocotó
ções e negações que acaba revelando nico, pelo antirretórico, pelo antilirismo o só o sambaqui
o vazio à espreita do homem. O mundo intencional e que predispunham, pela
define-se como “um vácuo atormenta- recusa e pela contenção, ao poema- (...)
do” (existencialismo niilista). A objeto, típico da Geração de 1950.
— A procura da poesia, a poe-
abolição de toda crença e o apagar-se O processo básico é a linguagem
sia metalinguística, que se pensa
de toda esperança trazem consigo o nominal – (“fazer as coisas e as
e se interroga, a metapoesia são cons-
autofechamento do espírito. palavras – nomes de coisas – boiar
tantes no poeta:
Essa negatividade, a abolição de nesse vácuo sem bordas a que a
Não faças versos sobre acontecimentos
toda crença, o apagar-se de toda es- interrogação reduziu os reinos do ser”), (...)
perança traduzem-se pela expressão por meio da desintegração da palavra. Penetra surdamente no reino das
de dor, do vazio, da angústia, da cons- Drummond, contudo, não aderiu a [palavras.
ciência da queda que aprisiona todo ser nenhuma receita poética das vanguar- (“Procura da Poesia”)
vivo, daí o autofechamento: das do Concretismo, Poema-Processo, Meu verso é minha consolação.
(...) Poesia-Práxis etc. Meu verso é minha cachaça.
A ruptura com a sintaxe, a rima final (...)
É sempre nos meus pulos o limite.
ou interna, a assonância, a aliteração e
É sempre nos meus lábios a estampilha. Meu verso me agrada sempre...
o eco, a repetição compulsória do som-
É sempre no meu não aquele trauma.
coisa, aproximam, contudo, Drummond (“Explicação”)
Sempre no meu amor a noite rompe. das operações técnicas das vanguar-
Sempre dentro de mim meu inimigo. das de 1950/60:
E sempre no meu sempre a mesma
[ausência. ISSO É AQUILO Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
(“O Enterrado Vivo”)
O fácil o fóssil Rimarei com a palavra carne
o míssil o físsil ou qualquer outra, que todas me convêm.
— Lição de Coisas marca a opção a arte o infarte (...)
concreto-formalista do poeta. Essa poe- o ocre o canopo
sia objetual de Drummond é uma radi- a urna o farniente (“Consideração do Poema”)
– 49
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dentadura múltipla, parte de suas emoções e de seu ima- Todos os cemitérios se parecem,
a serra mecânica, ginário. Os antepassados e a relação e não pousas em nenhum deles, mas
sempre desejada, [onde a dúvida
com eles constituem um problema
jamais possuída, apalpa o mármore da verdade, a descobrir
inquietante, que põe em questão os
que acabará a fenda necessária;
fundamentos de nossa existência, como onde o diabo joga dama com o destino,
com o tédio da boca,
a boca que beija,
se constata no poema “Convívio”: estás sempre aí, bruxo alusivo e
[zombeteiro,
a boca romântica?...)
Cada dia que passa incorporo mais esta que resolves em mim tantos enigmas.
50 –
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amor é entendido como uma forma pri- Diferentes são as grandes “artes poé- ❑ 8. Exercícios lúdicos:
vilegiada e incontornável de exploração ticas” de Drummond, como “Procura da “uma, duas argolinhas”
da existência e, portanto, de conhe- Poesia”:
cimento – conhecimento de si e do Aqui temos os jogos com as pala-
outro. Mas se trata de algo “amargo” Não faças versos sobre acontecimentos.
vras – atividade aparentemente infantil,
Não há criação nem morte perante a poesia.
porque impõe sofrimento, sendo uma mas poética em sua essência, e respon-
Diante dela, a vida é um sol estático,
sede insaciável, um desejo impossível sável por alguns dos mais espantosos e
não aquece nem ilumina.
de satisfazer, uma necessidade que não As afinidades, os aniversários, os complexos poemas de Drummond,
encontra correspondência: [incidentes pessoais não contam. como “Áporo” ou “Isso é Aquilo”. As
Não faças poesia com o corpo,
Que pode uma criatura senão, “brincadeiras” podem ter, por exemplo,
esse excelente, completo e confortável
entre criaturas, amar? sentido crítico, de criticism of life, como
[corpo, tão infenso à efusão lírica.
amar e esquecer,
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de no divertido e malicioso quadro da artifi-
amar e malamar,
[dor no escuro cialidade da vida moderna, em “Os
amar, desamar, amar?
são indiferentes.
sempre, e até de olhos vidrados, amar? Materiais da Vida”:
Nem me reveles teus sentimentos,
(...)
que se prevalecem do equívoco e tentam
[a longa viagem. Drls? Faço meu amor em vidrotil
Este o nosso destino: amor sem conta,
O que pensas e sentes, isso ainda não é nossos coitos são de modernfold
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
[poesia. até que a lança de interflex
doação ilimitada a uma completa
[ingratidão, vipax nos separe
(...)
e na concha vazia do amor a procura em clavilux
Penetra surdamente no reino das palavras.
[medrosa, camabel camabel o vale ecoa
Lá estão os poemas que esperam ser
paciente, de mais e mais amor. sobre o vazio de ondalit
[escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero, a noite asfáltica
Amar a nossa falta mesma de amor, e na plkx
há calma e frescura na superfície intata.
[secura nossa
Ei-los sós e mudos, em estado de
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a
[dicionário.
[sede infinita.
(...) ❑ 9. Uma visão, ou tentativa de,
(“Amar”)
da existência: “tentativa de
❑ 7. A própria poesia: Chega mais perto e contempla as palavras.
exploração e de interpretação
“poesia contemplada” Cada uma
do estar-no-mundo”
Trata-se das “artes poéticas” de tem mil faces secretas sob a face neutra
Drummond: poemas sobre o quê e o e te pergunta, sem interesse pela resposta,
Trata-se de poemas em torno de
como da poesia. Podem ser poemas de pobre ou terrível, que lhe deres:
questões e conjecturas sobre a exis-
circunstância, singelos como “Poesia”: Trouxeste a chave?
(...) tência, o “estar-aqui”, sobre o que há “no
Gastei uma hora pensando um verso
meio do caminho”:
que a pena não quer escrever. Trata-se de uma “arte poética” por-
No entanto ele está cá dentro que é um poema que contém uma con- No meio do caminho tinha uma pedra
inquieto, vivo. tinha uma pedra no meio do caminho
cepção do que seja a poesia e de como
Ele está cá dentro
tinha uma pedra
e não quer sair. ela deva ser feita. A concepção expressa
no meio do caminho tinha uma pedra.
(...) neste texto é bastante diferente da que Nunca me esquecerei desse
antes apareceu no poema “Poesia”, pois [acontecimento
Esse poema trata da incapacidade
aqui a ideia é de que o poema é um na vida de minhas retinas tão fatigadas.
de expressão (a poesia intuída que não
Nunca me esquecerei que no meio do
chega às palavras), que revela uma objeto de palavras e, portanto, que a
[caminho
ideia “romântica” de poesia (como algo poesia se faz com palavras, não sendo
tinha uma pedra
que existe na alma do poeta, para a qual algo que possa existir “dentro” do poeta, tinha uma pedra no meio do caminho
ele pode “não encontrar palavras”). independentemente das palavras. no meio do caminho tinha uma pedra.
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MÓDULOS 20 e 21 Pontuação
A vírgula é usada para indicar a separação entre termos independentes entre si, quer no período, quer na oração.
Por indicar o que já está separado, a vírgula não pode ser empregada entre os termos que mantêm entre si uma estreita
ligação. Seria erro grave, portanto, colocá-la entre
• o sujeito e o verbo:
sujeito verbo
verbo complemento
verbal
A mais nobre missão do ser humano é prestar sua ajuda ao semelhante... (Sófocles)
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1. USA-SE VÍRGULA PARA j) nas datas, o nome do rativos (em leis, decretos, por-
SEPARAR: lugar: “São Paulo, 11 de dezembro tarias, regulamentos etc.).
de 1977.”;
a) termos que exercem a 4. PONTO FINAL
mesma função sintática: “Ela l) partículas e expressões
tem sua claricidade, seus caminhos, de explicação, correção, con- Usa-se para:
suas escadas, seus andaimes.” (Ce- tinuação, conclusão, conces- — denotar maior pausa,
cília Meireles); são: “Sairá amanhã, aliás, depois de encerramento, períodos que
amanhã.”; terminem por oração que não
b) orações coordenadas as- seja interrogativa direta ou
sindéticas: “Examinou o polvarinho m) para indicar, às vezes, a exclamativa:
e o chumbeiro, pensou na viagem, elipse do verbo: “Em frente, um
estremeceu.” (Graciliano Ramos); gramal vastíssimo.” (Raul Pompeia). “O retrato mostra uns olhos re-
dondos, que me acompanham para
c) orações coordenadas 2. DOIS-PONTOS todos os lados, efeito de uma pintura
sindéticas, salvo as introduzi- que me assombrava em pequeno.”
das pela conjunção e: “Ces- Usam-se: (Machado de Assis, Dom Casmurro).
saram as buzinas, mas prosseguia o a) em enumerações expli-
alarido nas ruas.” “O último (amor) é cativas: “De vez em quando o olhar 5. PONTO DE
que é o verdadeiro, porque é o único distraído esbarra numa novidade: INTERROGAÇÃO
que não muda.” (Manuel Antônio de bangalô em construção, obras na
Almeida); calçada, ou apenas um papel na vi- Usa-se:
draça...” (Augusto Meyer); a) nas orações interrogati-
d) aposto explicativo: “Co- vas diretas: “Quem sou? Para onde
nhecia também o marido, seu Ra- b) para anunciar citações: vou? Qual minha origem?” (Augusto
malho, sujeito calado, sério, “Murmura a relva: ‘que suave raio!;’ / dos Anjos);
asmático, eletricista da Nordeste.” Responde o ramo: ‘como a luz é
(Graciliano Ramos); meiga!’” (Castro Alves); b) no diálogo, sozinho ou
acompanhado de exclamação
e) pleonasmo, polissíndeto c) para indicar esclareci- para expressar dúvida:
e repetições: “Tornou a andar, a mento, síntese, consequência “– Conheceu, gente, o que é
andar, a andar.” (Machado de Assis); do que foi dito: “Não és bom, nem sangue de Peixoto?!” (Guimarães
és mau: és triste e humano...” (Olavo Rosa).
f) Vocativo: “Dom Casmurro, Bilac).
domingo vou jantar com você.” (Ma- 6. RETICÊNCIAS
chado de Assis); 3. PONTO E VÍRGULA
Usam-se para denotar hesitação,
g) orações subordinadas Usa-se: interrupção do pensamento:
adjetivas explicativas: “Calçava a) para anunciar pausas
sapatos de duraque, rasos e velhos, mais fortes: “Os dois primeiros al- “Sei que você fez promessa... mas
a que ela mesma dera alguns vitres foram desprezados por impra- uma promessa assim... não sei... Creio
pontos.” (Machado de Assis); ticáveis; Ernesto não tinha dinheiro que, bem pensado... Você acha que,
nem crédito tão alto.” (Machado de prima Justina?” (Machado de Assis).
h) orações intercaladas: “A Assis);
rosa, disse o Gênio, é a tua infância.” 7. ASPAS
(Augusto Meyer); b) para separar as adversa-
tivas, enfatizando o contraste: Usam-se para ressaltar expressões
i) orações subordinadas “Não se disse mais nada; mas de ou apontar vocábulo com estran-
adverbiais deslocadas: “Assim noite Lobo Neves insistiu no projeto.” geirismo ou gíria e nas citações:
como a abelha fabrica mel no cora- (Machado de Assis);
ção negro do jacarandá, a doçura es- – “Me passe” os cobres... é a
tá no peito do mais valente guerreiro.” c) para separar os diversos fórmula de uma cobrança amigável.
(José de Alencar); itens de enunciados enume- (Júlio Ribeiro).
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• Figuras de linguagem
AUTORRETRATO Efetivamente a rua era aquela; Recursos expressivos, geralmente
e o velho palácio estava na em linguagem conotativa. As mais usa-
Provinciano que nunca soube minha frente. Era um palácio de das na descrição são a metáfora, a
Escolher bem uma gravata; trezentos anos, cor de barro, que comparação, a prosopopeia, a
me parecia muito familiar quanto onomatopeia e a sinestesia.
Pernambucano a quem repugna
ao desenho de sua alta porta, aos
A faca do pernambucano; ornatos das colunas e ao lança-
Poeta ruim que na arte da prosa mento da escada do vestíbulo. O rio era aquele cantador de
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas (Cecília Meireles) viola, em cuja alma se refletia o
Ficou cronista de província; batuque das estrelas nuas, perdi-
Arquiteto falhado, músico • Frases enumerativas das no vácuo milenarmente frio do
Falhado (engoliu um dia Sequência de nomes, geralmente
Um piano, mas o teclado sem verbo. espaço... Depois ele ia cantando
Ficou de fora); sem família, isso de perau em perau, de
Religião ou filosofia; cachoeira em cachoeira...
A cama de ferro; a colcha
Mal tendo a inquietação
branca, o travesseiro com fronha
[de espírito
de morim. O lavatório esmaltado,
Que vem do sobrenatural, (Bernardo Élis)
a bacia e o jarro. Uma mesa de
E em matéria de profissão pau, uma cadeira de pau, o
Um tísico profissional. tinteiro, papéis, uma caneta. • Sensações
Quadros na parede. Um dos cinco sentidos, ou seja,
(Manuel Bandeira) as percepções visuais, auditivas, gus-
(Érico Veríssimo) tativas, olfativas e táteis.
❑ Elementos predominantes
na descrição • Adjetivação
Caracterizadores qualificando Os sons se sacodem, ber-
• Frases nominais
São frases sem verbo ou orações nomes ram... Dentro dos sons movem-se
em que predominam verbos de esta- cores vivas, ardentes... Dentro
do ou condição. dos sons e das cores, movem-se
A pele da cabocla era desse
moreno enxuto e parelho das cheiros, cheiro de negro... Dentro
Sol já meio de esguelha, sol chinesas. Tinha uns olhos graú- dos cheiros, os movimentos dos
das três horas. A areia, um bor- dos, lustrosos e negros como tatos violentos, brutais... Tatos,
ralho de quente. A caatinga, um os cabelos lisos, e um sorriso
sons, cores, cheiros se fundem
mundo perdido. Tudo, tudo para- suave e limpo a animar-lhe o
do: parado e morto. rosto oval de feições delicadas. em gosto de gengibre...
apenas através de diálogos, ou mes- elementos, em seu texto não devem QUEM? – a personagem, ou perso-
mo fugir ao nexo lógico de episódios. faltar emoção, suspense, surpresa e nagens;
As narrativas mais longas (ro- criatividade para torná-lo cativante O QUÊ? – o enredo, ou seja, o
mance, novela, conto) podem expl- ao leitor. A linguagem é fundamental acontecimento em si;
orar mais detalhadamente as noções para definir o estilo, conferindo um COMO? – o modo como se tecem
de tempo — cronológico (marca- toque de originalidade ao texto. os fatos;
do pelas horas, por datas) e psico- ONDE? – o lugar, ou os lugares, da
ló gi co (marcado pelo fluxo 3. O QUE SE PEDE NA ocorrência;
inconsciente) — e de espaço (cená- NARRAÇÃO QUANDO? – o momento, ou
rio, paisagem, ambiente). Visando, momentos, em que se passam os
porém, à narração para vestibular, A narrativa deve tentar fatos;
são elementos imprescindíveis: per- responder às seguintes perguntas POR QUÊ? – a causa do aconteci-
so na gens e ação. Além desses essenciais: mento.
Quando o visitante do Hospício de Alienados atravessava uma sala viu um louquinho de ouvido
personagem espaço ação espaço ação personagem
colado à parede, muito atento. Uma hora depois, passando na mesma sala, lá estava o homem na mesma posição.
tempo cronológico ação espaço personagem
“Que é que você está ouvindo?” O louquinho virou-se e disse: “Encoste a cabeça e escute”. O outro colou
discurso direto personagem ação discurso direto ação
ouvido à parede, não ouvia nada: “Não estou ouvindo nada”. Então o louquinho explicou intrigado: “Está
discurso direto personagem discurso
• Narrador onisciente ou pouco: por que as coisas nunca – Estou cansada demais para
onipresente eram dela? conversar.
O narrador é uma espécie de (Clarice Lispector, Imitação • Indireto – o narrador transcre-
testemunha invisível de tudo quanto da Rosa) ve a fala da personagem, adaptando
ocorre, em todos os lugares e em o tempo verbal.
todos os momentos; ele não só se ❑ Tipos de discurso Olhando ao redor, Luci dis-
preocupa em dizer o que as Os tipos de discurso de que po- se que estava cansada demais
personagens fazem ou falam, mas de utilizar-se o narrador são: para conversar.
também traduz o que pensam e sen-
tem. Portanto, ele tenta passar para o • Direto – o narrador transcreve • Indireto livre – é a fusão da
leitor as emoções, os pensamentos e fielmente a fala da personagem. fala do narrador com a da persona-
os sentimentos das personagens. 1) – Estou cansada demais pa- gem, sem qualquer indicação gráfica
ra conversar, disse Luci, (travessão, dois-pontos ou verbos
Exemplo olhando ao redor. como “disse”, “falou” e outros).
Um segundo depois, muito 2) – Olhando ao redor, Luci dis-
suave ainda o pensamento fi- se: “Estou cansada demais pa-
cou levemente mais intenso, ra conversar”. Luci olhou ao redor. Estou
qua se tentador: não dê, elas 3) – Olhando ao redor, Luci dis- cansada demais para
são suas. Laura espantou-se um se: conversar.
ESTRUTURA NARRATIVA
Personagem(ns)
[ – definem-se pelas caracte-
rísticas e pelas ações Espaço [ – lugar (definido pela descrição ou apenas
citado)
[
– direto (fala da personagem)
Discurso – indireto (o narrador traduz a fala da personagem)
– indireto livre (fusão da fala do narrador e da
Tempo [ –– cronológico (tempo real)
psicológico (tempo mental) personagem)
{
– narrador onisciente (tudo sabe, conhece a
de terceira pessoa
[
interioridade das personagens)
(de fora da história) – narrador observador (tudo vê)
Foco Narrativo
de primeira pessoa
(de dentro da história) { – narrador-personagem (conta o que vê como
personagem)
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são as falas, já que elas se A moça olhou de lado e ou se (dicendi interrogativo) para
esclarecem dentro do contexto. O esperou. introduzirem a fala da personagem
exemplo abaixo ilustra essa possibi- — Você não sabe quando a na voz do narrador. Observe, nos
lidade: gente é criança e de repente vê exemplos abaixo, os discursos indi-
— Bonito papel! quase três da uma lagarta listada? retos destacados.
madrugada e os senhores comple- A moça se lembrava: “Ele começou, então, a contar
tamente bêbados, não é? — A gente fica olhando ... que tivera um sonho estra-
Foi aí que um dos bêbados pe- A meninice brincou de novo nos nho.”
diu: olhos dela. “Todos se calaram para ouvi-lo
— Sem bronca, minha senhora. O rapaz prosseguiu com muita e ele, muito sério, perguntou qual
Veja logo qual de nós quatro é o seu doçura: era o assunto. Informado, pros-
marido que os outros querem ir para — Antônia, você parece uma la- seguiu dizendo que estava
casa. garta listada. profundamente interessado
(Stanislaw Ponte Preta) A moça arregalou os olhos, fez em colaborar.”
exclamações. “João perguntou se ele
O diálogo acelera a narrativa, le- O rapaz concluiu: estava interessado nas
vando o leitor a entrar em contato — Antônia, você é engraçada! aulas.”
direto com as personagens. O nar- Você parece louca. Na narração, para reconstituir a
rador apenas dá indicações sobre (Manuel Bandeira) fala da personagem, utiliza-se a
quem fala. Além de imprimir mais estrutura de um discurso direto ou
dinamismo e realismo à narração, o O discurso direto apresenta de um discurso indireto. O domínio
diálogo presentifica a história. Os pontuação específica, podendo dessas estruturas é importante tan-
traços linguísticos do discurso direto aparecer depois de dois-pontos, to para empregar corretamente os
revelam a identidade cultural e entre aspas ou com travessão. tipos de discurso na redação esco-
social da personagem e, ao mesmo Alguns romancistas modernos abo- lar, como para exercitar a transfor-
tempo, oferecem elementos para liram esses recursos gráficos e mação desses discursos exigida
sua caracterização psicológica. inovaram a introdução do diálogo, em alguns exames vestibulares.
Segundo Celso Cunha e como é o caso de José Saramago, No discurso indireto, o narrador
Lindley Cintra (Nova gramática do em Memorial do Convento, que exprime indiretamente a fala da
português contemporâneo), “no apenas usa a maiúscula no meio do personagem. O narrador funciona
plano expressivo, a força da discurso do narrador para introduzir como testemunha auditiva e passa
narração em discurso direto o discurso direto. para o leitor o que ouviu da perso-
provém essen cialmente de E, pegando numa ideia, depois nagem. Nessa transcrição, o verbo
sua capacidade de atualizar noutra, por alguma razão desco- aparece na terceira pessoa, sendo
o episódio, fazendo emergir da nhecida as ligando, perguntou ao imprescindível a presença de
situação a personagem, tornando- soldado, E vossemecê, que verbos introdutórios dicendi ou de-
a viva para o ouvinte, à maneira de idade tem, e Baltazar respondeu, clarativos (dizer, responder, retru-
uma cena teatral, em que o Vinte e seis anos. car, replicar, perguntar, pedir,
narrador desempenha a mera fun- exclamar, contestar, concordar,
ção de indicador das falas. Estas, (José Saramago, ordenar, gritar, indagar, declarar,
na reprodução direta, ganham Memorial do Convento) afirmar, mandar etc.) seguidos dos
naturalidade e vivacidade, enri- conectivos que (dicendi afirmativo)
quecidas por elementos 3. DISCURSO INDIRETO ou se (dicendi interrogativo) para
linguísticos tais como excla- introduzirem a fala da personagem
mações, interrogações, interjei- No discurso indireto, o narrador na voz do narrador. Observe, no
ções, vocativos e imperativos, que exprime indiretamente a fala da exemplo abaixo, o discurso indireto
costumam impregnar de personagem. O narrador funciona destacado:
emotividade a expressão oral”. como testemunha auditiva e passa
Observe o efeito dos diálogos para o leitor o que ouviu da perso- (...) e moleque Prudêncio me
na pequena narração a seguir. nagem. Nessa transcrição, o verbo disse que uma pessoa do meu
aparece na terceira pessoa, sendo conhecimento se mudara na
NAMORADOS imprescindível a presença de véspera para uma casa roxa,
verbos dicendi (dizer, responder, situada a duzentos passos da
O rapaz chegou-se para junto retrucar, replicar, perguntar, pedir, nossa.
da moça e disse: exclamar, contestar, concordar,
— Antônia, ainda não me ordenar, gritar, indagar, declarar, (Machado de Assis)
acostumei com o seu corpo, com afirmar, mandar etc.) seguidos dos
a sua cara. conectivos que (dicendi afirmativo)
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Na passagem do discurso direto para o indireto, cabem as seguintes observações quanto à construção da frase:
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4. DISCURSO INDIRETO LIVRE 5. DISCURSO DO NARRADOR incomodei. Andei cortando rosas. Fui
ver o poço debaixo das laranjeiras.
Resultante da mistura dos Há, também, o discurso em que o Não senti nada. Passei mesmo um
discursos direto e indireto, existe uma narrador registra a ação das perso- dia delicioso. Como é possível que
terceira modalidade de técnica nagens, além de comentar, analisar, aquilo fosse arsênico? Como é pos-
inferir, interpretar e relacionar fatos da sível imaginar que se deixe um paco-
narrativa, o chamado discurso indireto
história. É o discurso do narrador. te de arsênico na mesa da cozinha?
livre, processo de grande efeito
Nem me ocorreu que existisse no
estilístico. É uma espécie de monó- De repente, Honório olhou para o mundo arsênico em tanta quantidade.
logo interior das personagens, mas chão e viu uma carteira. Abaixar-se, E que população de ratos há na
expresso pelo narrador que deverá, apanhá-la e guardá-la foi obra de granja para se ter de usar veneno aos
obrigatoriamente, ser de terceira alguns instantes. Ninguém o viu, quilos?
pessoa e onisciente. Este interrompe salvo um homem que estava à porta (Cecília Meireles)
a narrativa para registrar e inserir re- de uma loja...
flexões ou pensamentos das perso- (Machado de Assis) Resumindo
nagens, com as quais passa a ser
confundido. Foco narrativo ou ponto de vista
6. MONÓLOGO INTERIOR
As orações do discurso indireto
do narrador:
livre são, em regra, independentes, Forma dramática ou literária do
sem verbos dicendi, sem pontuação discurso da personagem consigo • Narrador personagem ou
que marque a passagem da fala do mesma. No monólogo interior, o participante: foco narrativo
narrador para a fala da personagem, narrador (em primeira ou terceira em primeira pessoa.
mas com transposições do tempo do pessoa) registra as emoções da per-
sonagem, suas divagações íntimas, • Narrador observador: foco
verbo (pretérito imperfeito) e dos
pronomes (terceira pessoa). Esse seus desabafos. Dessa forma, a narrativo em terceira pessoa.
discurso é muito empregado na personagem parece esquecer-se do
• Narrador onisciente: foco
narrativa moderna, pela fluência e leitor ou do ouvinte, escrevendo ou
falando, de maneira desconexa, tudo narrativo em terceira pessoa.
ritmo que confere ao texto. Exemplo:
que lhe vem à mente, sem obedecer,
Deu um passo para a catingueira.
necessariamente, à concatenação
Se ele gritasse “Desafasta”, que faria Tipos de discurso:
lógica dos períodos e aos aspectos
a polícia? Não se afastaria, ficaria sintáticos tradicionais. Essa associa- • direto (diálogo): o narrador
colado ao pé de pau. Uma lazeira, ção livre de ideias traduz o “fluxo de reproduz textualmente a fala
a gente podia xingar a mãe consciência” da personagem, que o
dele. Mas então... Fabiano estirava o narrador transcreve utilizando, de da personagem.
beiço e rosnava. Aquela coisa arriada preferência, o discurso direto ou o • indireto: o narrador conta o
e achacada metia as pessoas na indireto livre. que a personagem fala.
cadeia, dava-lhes surra. Não enten- Observação
Para a maioria dos autores, • indireto livre: a fala da
dia. Se fosse uma criatura de
saúde e muque, estava certo. monólogo e solilóquio represen- personagem funde-se com a
tavam a mesma forma de discurso da
Enfim, apanhar do governo não é fala do narrador.
personagem consigo mesma.
desfeita, e Fabiano até sentia orgulho • do narrador: o narrador conta
ao recordar-se da aventura. Mas
MONÓLOGO a história e tece comentários
aquilo... Soltou uns grunhidos. Por
que motivo o governo aprovei- sobre personagens e
Quem é capaz de imaginar que o
tava gente assim? Só se ele pó branco de um saco de papel, em acontecimentos.
tinha receio de empregar tipos cima da mesa da cozinha, não seja • Monólogo: em primeira ou
direitos. Aquela cambada só açúcar ou sal? Naturalmente, provei. terceira pessoa, registro do
servia para morder as pessoas Tinha um sabor acre e pegajoso.
inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão Pensei: deve ser algum desses adu- pensamento da personagem,
ruim se andasse fardado? Iria pisar bos químicos que o Antônio traz para linguagem às vezes des-
os pés dos trabalhadores e dar as beterrabas. Não consigo lembrar
conexa, “fluxo de
pancadas neles? Não iria. se cuspi ou engoli. Devo ter engolido.
Fiquei com uma sensação ads- consciência”.
(Graciliano Ramos) tringente na garganta. Mas não me
60 –