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O caráter ocidental, romano e latino, voltado para questões conexas com a vida prática,
contribuiu para esta orientação, mas foi o quadro ambiental de Roma nos últimos anos do
século IV que mais decisivamente a influenciou. Com a multiplicação das conversões, a
multidão que lotava igrejas era formada, em sua, maioria, por cristãos recém-convertidos, por
catecúmenos insuficientemente instruídos que ainda viviam num ambiente amplamente
impregnado de costumes pagãos; essa massa preocupava-se essencialmente em obter o
perdão dos pecados e a garantia da felicidade no além (era rara a persuasão da necessidade de
uma renovação interior que investisse o homem todo). Tais tendências eram reforçadas pelo
ensino de Joviniano, em oposição à vida ascética – inadmissibilidade da graça do batismo,
inutilidade das boas obras, não-concessão de um valor especial à castidade – e, pelo fatalismo
e dualismo dos maniqueus.
Pelágio (350-425) era um monge bretão, dotado de muita força de vontade e profundo senso
do dever, eloqüente e autodidata em teologia. Chegado a Roma, começou a atacar a tepidez e
hipocrisia de muitos cristãos, e logo um círculo de amigos se formou ao seu redor.
Insatisfeitos apenas com as exortações orais, os pelagianos tentaram também uma obra de
renovação moral por meio de escritos: durante sua estada em Roma, Pelágio publicou um
comentário às cartas de Paulo, e Celéstio, advogado e monge, um tratado sobre o pecado
original (Contra traducem peccati).
O rigor moral não conseguiu evitar que o círculo pelagiano incidisse numa certa complacência
para consigo mesmo, dado que transparece na seguinte oração composta por Pelágio:
Tu conheces, Senhor, o quão santas, inocentes e puras de toda fraude, injustiça e ladroagem,
são estas mãos que elevo a ti; quão justos, limpos e isentos de mentira, os lábios com os quais
imploro a tua misericórdia…
justiça infinita de Deus: Deus é justo e não pode impor-nos algo que supere nossas forças, e
não pode dar a alguém um auxílio maior que a outrem.
o homem não necessita da ajuda divina para observar os mandamentos: ele pode ser sem
pecado e somente com o livre-arbítrio cumprir os mandamentos; a única graça admitida é a
medicinal, para a remissão dos pecados pessoais e atuais; a criação, o livre arbítrio, a
encarnação de Cristo, os exemplos de Cristo…são graças externas; negação da necessidade da
graça interna sobrenatural que torna o homem capaz de compreender e de seguir aquilo que é
incapaz, contando com seus próprios recursos (“Ou faço uso de um poder que me foi dado
uma vez para sempre, e a liberdade permanece como um dom, uma graça de Deus, mas essa
é o único dom… e a liberdade está salva. OU necessito de uma ajuda estranha à minha
vontade, e assim minha liberdade está destruída“);
o pecado original não nos enfraqueceu e estamos nas mesmas condições em que Adão foi
criado: Deus seria injusto imputando-nos uma culpa que nos é alheia; Adão foi criado mortal,
com nossas mesmas concupiscências, que são fortes em nos devido aos efeitos dos maus
hábitos e exemplos;
a redenção consiste no bom exemplo que Cristo nos deu, vivendo entre nós;
o batismo é necessário para os adultos, a fim de obter o perdão dos pecados pessoais, e não
para as crianças antes do uso da razão (distinção entre Reino de Deus e vida eterna).
Pelágio logo deixou Cartago e foi para a Palestina. Em Belém, Jerônimo atacou o pelagianismo
(Dialogus contra pelagianos); a convenção diocesana de Jerusalém, com a presença de Osório,
discípulo de Agostinho, evitou emitir um juízo (415); o sínodo de Dióspolis, em 416, ante a
denúncia dos bispos gauleses exilados, Ero e Lázaro, declarou a ortodoxia de Pelágio (este
atribuiu aos discípulos as afirmações mais audazes, negou a autoria da oração de cunho
farisaico e declarou estar em consonância com as doutrinas tradicionais da Igreja).
Em Cartago, Celéstio pediu a ordenação sacerdotal, mas foi acusado de heresia pelo diácono
Paulino de Milão. Devido à sua obstinação, foi excomungado pelo sínodo de Cartago de 411;
fugiu para Éfeso, onde foi ordenado.
os ricos batizados caso não renunciem a tudo não podem entrar no reino dos céus.
De spiritu et littera: a graça consiste na santificação interior da nossa vontade, e não somente
da lei exterior (littera);
De natura et gratia: o homem necessita absolutamente da graça, pois com o pecado perdeu a
força e a inocência originais; caráter absolutamente gratuito da graça;
De gratias Christi et de peccato originali: que Pelágio cesse de enganar-se a si mesmo e aos
outros pelo fato de disputar contra a graça; é preciso reconhecer que a graça de Deus não
somente é necessária para se conseguir a possibilidade de querer e fazer o bem, como
também nos dá a vontade e a força para cumpri-lo: sem ela nada se pode fazer de bom.
Pelágio enviou a Roma uma profissão de fé ambígua, juntamente com sua obra De libero
arbitrio, em quatro volumes. Celéstio, expulso de Éfeso e Constantinopla, dirigiu-se a Roma em
417. Interrogado durante o sínodo de São Clemente, disse que acataria a condenação papal,
mas não se retrataria das falsas proposições que Paulino lhe atribuíra. Pelo menos
provisoriamente conseguiu do novo papa, Zózimo, sua própria reabilitação e a de Pelágio. O
papa Zózimo (417-418), baseando-se em profissões de fé apresentadas por Pelágio e Celéstio,
creu poder justificá-los. Escreveu às Igrejas da África, exortando-as a alegrar-se pelo fato de
Pelágio e Celéstio não estarem fora da verdade católica; segundo seu parecer – influência do
bispo Pátroco de Arles -, os bispos não fizeram um juízo correto acerca de Celéstio, e agiram
com leviandade e precipitações dando fé a pessoas desconhecidas e desonradas; estipulou o
prazo de dois meses para que alguém fosse a Roma e refutasse Celéstio. O bispo Prailo de
Jerusalém escreveu a Zózimo a favor de Pelágio. Numa outra reunião em São Clemente foi lida
uma car ta do próprio Pelágio.
O sínodo de Cartago de 418, que contou com a participação de mais de duzentos bispos,
reconfirmou a sentença de condenação de Pelágio e Celéstio e, em nove anátemas,
estabeleceu a doutrina sobre a necessidade da graça e sobre o pecado original: a morte é
conseqüência do pecado original, transmitido efetivamente a todos os homens, necessitando-
se, por isso, do batismo, inclusive para as crianças; a graça é concedida não para auxiliar a
nossa vontade, mas para torná-la capaz de operar aquilo que por si mesma não pode realizar.
Emitiu-se uma carta sinodal declarando que Pelágio e Celéstio reconhecessem a necessidade
da graça para todo ato, e que sem ela o homem não pode conceber ou cumprir algo santo. As
cartas dos bispos africanos fizeram com que Zózimo se reportasse à sentença de Inocêncio I
(carta Quanvis patrum, de 23 de março de 418).
Dezoito bispos italianos, chefiados por Juliano de Eclano, não subscreveram, sendo
excomungados, depostos e exilados. Reuniram-se em Aquiléia e publicaram um manifesto
mitigando o pelagianismo: os homens não podem ser imunes do pecado sem a ajuda de Deus;
até as crianças necessitam de batsimo; certa graça divina é necessária para o cumprimento de
atos salvíficos; recusa do pecado original, pois constitui um atentado à santidade do
matrimônio. Perseguidos pelo imperador, refugiaram-se no oriente, onde foram acolhidos por
Teodoro de Mopsuéstia e Nestório; mas em 429 o imperador Teodósio II expulsou os
pelagianos de Constantinopla.
Juliano de Eclano deu forma racional às tendências ainda não sistematizadas de Pelágio .
Refugiado no oriente, continuou sua propagando e descolou a polêmica sobretudo para as
conseqüências às quais a doutrina do pecado original poderia levar (uma delas seria a
desvalorização do matrimônio). Agostinho defendeu-se numa outra série de opúsculos, dentre
os quais De nuptis et concupiscentia e Contra Julianum opus imperfectum, este imcompleto.
Na luta contra o pelagianismo o pensamento de Agostinho evoluiu num sentido cada vez mais
rígiso; até 396 defendia decididamente a vontade salvífica universal de Deus e atribuía a
incredulidade e a fé à vontade humana; posteriormente, quando a onipotência do querer
divino passou a dominar seu pensamento, insistiu sobre a eficácia irresistível da graça.
Provavelmente não negava a vontade salvífica universal da graça e a liberdade humana, mas
não conseguia conciliá-las devido a falta de um conceito de graça suficiente. As linhas
essenciais do agostinismo rígido podem ser resumidas nas seguintes teses:
necessidade absoluta da graça;
tendência a restringir a vontade salvífica universal sublinhando o dom que Deus faz aos eleitos
(a predestinação);
admissão de uma pena de sentido, embora levíssima, às crianças mortas sem batismo
(exclusão da visão beatífica);
O essencial da doutrina contra Pelágio fora consignado pelo Concílio de Cartago de 418. Em
431, numa carta de Celestino I aos bispos da Gália, o papa assumiu-a como própria;
acrescentou-se a essa car ta uma série de citações características coligidas por Próspero de
Aquitânia, que receberam o nome de Indiculus de gratia. O Concílio de Éfeso simplesmente
acatou as decisões formuladas pelos ocidentais.
C O semipelagianismo
A controvérsia continuou, deslocando-se desta vez da África para a Gália, onde emergiram
duas correntes contrapostas: agostiniana e antiagostiniana.
vontade salvífica universal: Deus quer a salvação de todos os homens e oferece-lhes a graça;
todos, querendo, podem corresponder à graça e salvar-se;
para o initium fidei – primeiro desejo da salvação, o anelo vago e ainda incerto de Deus – a
graça de Deus não é necessária, pois pode provir também do homem, embora a obra salvífica
não possa depois cumprir-se sem ela; com suas próprias forças o homem não está em grau de
cumprir atos sobrenaturais, mas pode desejá-los, querê-los e pedir ajuda a Deus – o homem
pode desejar a virtude, mas tal desejo permanece ineficaz sem a graça divina;
para viver conforme a fé basta o querer humano; os justificados não necessitam do dom
particular da perseverança final para conseguir a vida eterna: a perseverança final depende
apenas da livre vontade do homem;
a necessidade absoluta da graça interna sobrenatural para cada ato salvífico, inclusive para o
início da salvação e a perseverança no bem até o fim;