Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
RESUMO
A Lei 11340/06 refere-se à mulher como sujeito de sua proteção e amparo. Considerando que
o conceito mulher desvela características de gênero construídas historicamente, entende-se
que a identidade feminina vem para abarcar um amplo entendimento de que o ser mulher não
se designa pelo sexo biológico, mas sim pelas relações sociais construídas ao longo da
trajetória pessoal. Neste contexto, recaem sobre as transexuais as condições estereotipadas e
machistas que permeiam a vida das mulheres, dentre elas a violência doméstica de gênero.
Em face a isso, em março de 2014 a Coordenação de Atendimento às Vítimas de Violência e
Discriminação – CAVVID realizou atendimento a uma transexual que esteve em situação de
violência doméstica proveniente da relação com seu companheiro, buscando assim a
Delegacia da Mulher. Tal procura resultou em seu encaminhamento a uma delegacia comum,
devido ao fato desta ainda não ter documentos com nome feminino. Dessa forma, concluímos
que existe a urgente necessidade de ampliação do debate institucional, da discussão de gênero
nos espaços de atendimento e do fortalecimento da rede de proteção à mulher, de forma a
ofertar o atendimento integral às transexuais nestes equipamentos.
1
Acadêmica de Psicologia. Estagiária da Coordenação de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação,
SEMCID/PMV.Email:gabiboldrini@hotmail.com.
2
Graduada em Psicologia. Especialista em Saúde Coletiva. Coordenadora de Atendimento às Vítimas de
Violência e Discriminação, SEMCID/PMV. Email: lorenapadilhaa@gmail.com.
3
Graduada em Serviço social. Assistente Social da Coordenação de atendimento às Vítimas de Violência e
Deiscriminação, SEMCID/PMV.Email:llcampbell@live.com.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade provocar uma discussão sobre a aplicabilidade da Lei nº
11.340/2006 às travestis e transexuais femininas, discussão evocada na Coordenação de
Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação (CAVVID) a partir do atendimento
realizado a uma transexual que em seu relato trazia a situação de violência doméstica sofrida
por parte do seu companheiro. Face a isso, propõe-se uma discussão acerca da construção do
conceito de gênero e sobre a desigualdade imposta pelo machismo. Segue-se para a
conceituação da travestilidade e da transexualidade femininas e a importância de se ampliar o
debate a respeito do atendimento às transexuais e travestis femininas em situação de violência
doméstica. O debate teórico será feito por meio dos entendimentos sobre a Lei nº 11.340/2006
a partir das argumentações feitas por BUTLER (2003), BENTO (2006), LOURO (2010) e
DIAS (2014), entre outros.
Relato do Caso
SEXO X GÊNERO
O termo “gênero” começou a ser utilizado pelas feministas para expressar uma rejeição com
relação ao determinismo biológico imposto pelo “sexo”. Simone de Beauvoir, em sua célebre
afirmação de que “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”, pretendia problematizar as
imposições sociais inquestionáveis que classificam e excluem os sujeitos (REIS, 2013), visto
que ninguém é mulher em si mesma, nem homem em si mesmo. Entretanto, “não há nada em
sua explicação que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea”
(BUTLER, 2013, p. 27), permitindo que seja feita uma reflexão a respeito das imposições
sobre o ‘ser mulher’ que recaem também sobre as trans*5, inclusive aquelas que dizem
respeito à submissão e à estigmatização feminina.
Dessa forma, entende-se que ser mulher está muito além de uma imposição biológica e, a
partir dos estudos feministas, passa-se a utilizar termos como “homem” e “mulher” para tratar
das relações construídas entre esses dois universos, entendendo que um se produz somente a
partir da relação com o outro, e que pensar a questão sobre “ser mulher” abarca a questão de
pensar sobre “ser homem”. O próprio uso do termo “gênero” implica em uma rejeição das
5
“O termo trans pode ser a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, como transexual
ou transgênero, ou até mesmo travesti. Por isso, para evitar classificações que correm o risco de serem
excludentes, o asterisco é adicionado ao final da palavra transformando o termo trans em um termo guarda-
chuva”. Fonte: <http://transfeminismo.com/trans-umbrella-term/>.
explicações biológicas concernentes à relação entre os sexos, como por exemplo as de que
“mulheres devem ter filhos” e “homens devem dar o provimento do lar devido a sua maior
força física”. Assim, quando a Lei Maria da Penha condena a conduta violenta baseada no
gênero, ela está condenando a violência baseada nas relações histórico-culturais que definem
a mulher enquanto sujeito inferiorizado nas relações entre os sexos.
Segundo Scott (1990), “o gênero se torna uma maneira de indicar as ‘construções sociais’: a
criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres.”
Portanto, o gênero pode abarcar o sexo, mas não é diretamente determinado por ele – e nem o
determina. Assim, formas diversas de feminilidades e masculinidades se constituem nas
relações sociais. Entendendo que os atravessamentos que constituem cada ser humano são
únicos e singulares, a identidade de gênero – maneira como cada um se apresenta socialmente
de acordo com o gênero constituído – se torna inevitavelmente auto-declarada.
Dessa forma, não é a determinação que lhe foi dada ao nascer que vai definir se um sujeito é
homem ou mulher, mas sim as relações que foram tecidas historicamente no cotidiano da
vidade cada um – e cabe a este sujeito dar forma própria à identidade com a qual se identifica.
Diferente da orientação sexual, que diz respeito ao outro, àquele com o qual nos
relacionamos, a identidade de gênero é referente a como nos reconhecemos dentro dos
padrões de gênero estabelecidos social, histórico e culturalmente.
Já a travesti, transmutando os valores de sexo e gênero, nos permite refletir sobre os rígidos
padrões que, por vezes, atribuímos às pessoas. Segundo Peres (2002),
Os/as transexuais e os/as travestis são pessoas que, com suas identidades sexo-diversas,
questionam os padrões comportamentais normativos e denunciam as situações nas quais
variações da heterossexualidade são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas
sociais, políticas ou por crenças e valores morais. Estas práticas discriminatórias incluem a
ideia de que os seres humanosse configuram em duas categorias distintas e complementares:
macho e fêmea; que relações sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de sexos
diferentes; e que cada sexo têm certos papéis naturais na vida (BENTO, 2006).
Dessa forma, implicados com os questionamentos que a experiência transexual causa em nós,
podemos refletir: as políticas públicas voltadas para as mulheres têm agregado todas as
experiências do ‘ser mulher’? Quem e o quê define o que é uma mulher? Existe apenas uma
forma de expressão do ser mulher? Que políticas públicas podem ser ofertadas para essas
mulheres? A Lei Maria da Penha (LMP) tem cumprido o seu papel de proteger as mulheres,
independentemente de sua orientação sexual? E no que diz respeito à identidade de gênero, a
Lei 11340/06 têm sido uma lei que agrega os valores referentes aos direitos humanos?
De acordo com o Mapa da violência de 2012, o Espirito Santo é o estado que mais mata
mulheres no país. O mesmo quadro também atinge o município de Vitória, liderando o
ranking entre as capitais: a cada 100 mil mulheres, 13,2 são assassinadas. Dados apontam que
43,4% das mulheres que morrem no Brasil são assassinadas por seus próprios parceiros ou ex-
parceiros.
Entretanto, são inegáveis os avanços que a Lei Maria da Penha trouxe para o campo da
diversidade sexual. As ampliações da proteção são observadas principalmente no Artigo 2º da
Lei 11.340/2006, que descreve incondicionalidade da orientação sexual e de outras
diversidades para que a mulher goze de todas as garantias fundamentais inerentes à pessoas
humana, preconizadas pela Constituição Federal de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
O Artigo 5º da Lei Maria da Penha (LMP) classifica como violência doméstica e familiar
contra a mulher toda ação ou omissão baseada no gênero. Ou seja, ressalta a característica
principal da violência doméstica de gênero, que é de estar vinculada às relações construídas a
partir do entendimento de que há uma hierarquia natural entre os gêneros, e de que há uma
supremacia do masculino sobre o feminino, perpetuada através de preconceitos e
discriminações, produzindo tais diferenças hierárquicas.
Os avanços da LMP ficam ainda mais visíveis no Parágrafo Único deste mesmo artigo, que
garante proteção às mulheres homossexuais que sofrem violência doméstica em suas relações
conjugais por parte de suas companheiras.
Faz-se necessário alertar para o fato de que nas relações que não se encaixam no padrão
heterossexual, ao contrário do que comumente se pensa, também pode ocorrer hierarquização
dos papéis sociais, provocando desigualdades baseadas nas características socialmente
impostas a cada gênero. Sendo assim, a LMP ampara aquelas que, por estarem associadas
socialmente ao lugar de submissão, acabam por sofrer violência doméstica de gênero. Este
pensamento se amplia também às travestis e transexuais femininas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É mister que nesse contexto de diferenças e igualdades, deve-se considerar que, diante de uma
agressão ao bem jurídico tutelado, a vida, surge o dever de punir do Estado, independente de
como essa pessoa se apresenta para si e para as demais - como masculino ou feminino. A
privação da proteção garantida configura-se uma prática discriminatória que vai de encontro
ao preconizado pela Lei 11.340/06 no que tange a violência praticada contra a mulher.
Diante das argumentações expostas neste estudo, ressalta-se que o entendimento da equipe da
Coordenação de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação (CAVVID) é de que
as transexuais e travestis femininas comungam da mesma vulnerabilidade que afeta mulheres
cisgêneras6no que tange a violência doméstica praticada no íntimo das relações de afeto. Tal
setor pactua com a noção de que a Lei 11.340/06 objetiva prevenir, punir e erradicar a
violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão do sexo, mas em virtude do
gênero. Dessa forma, toma-se a compreensão de que a proteção adscrita tem alcance de
extensão superior à noção do sexo biológico “mulher”, buscando-se resguardar todos aqueles
que se comportam como mulheres, por efeito, as lésbicas, travestis, transexuais e
transgêneros.
Dar visibilidade aos casos de violência doméstica nas relações que envolvem as mulheres
trans* (como o caso tratado) faz parte das atribuições da Coordenação no enfrentamento de
todas as formas de violência doméstica e também de enfrentamento da homofobia, ambas
expressões do machismo em nossa sociedade. Não há dúvidas de que o amparo da Lei Maria
da Penha será o diferencial para que as mulheres trans* acessem o direito à segurança, à vida
e tenham a garantia de seus direitos humanos preservados.
6
Pessoa cuja identidade de gênero é consonante ao sexo biológico.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SANTOS, A. C. ‘Entre duas mulheres isso não acontece'– Um estudo exploratório sobre
violência conjugal lésbica. Revista Crítica de Ciências Sociais, 98, 2012.
SCOTT, J. Gênero:Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS:
Corpo e Cidadania. Recife, 1990.