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Minha motivação para trabalhar na área começou nos anos 90, quando entrei na faculdade de
Psicologia pela primeira vez. Meu primeiro curso extracurricular foi de Psicologia Jurídica,
realizado junto a uma psicóloga do extinto presídio Carandiru. Ela nos levou a uma prisão em
uma cidade do litoral de São Paulo e, neste dia, sabia que este era o caminho que eu queria
trilhar. Muita coisa aconteceu em minha via e tive que parar os estudos, retomando depois de
mais velha, já em 2000. No meu retorno, surgiram os adolescentes e o sistema prisional.
Comecei minha pesquisa durante a graduação, nas disciplinas de Métodos de Pesquisa e
Pesquisa Orientada, fiz meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre o tema, com uma
pesquisa de campo que me colocou em uma unidade por quase um ano. Ao me formar,
entreguei meu TCC na instituição responsável pelas unidades, na primeira vaga que surgiu me
chamaram para o processo seletivo e fui aprovada. Em menos de 06 meses de formada eu já
estava atuando e exatamente na área que queria.
Atualmente sou docente de uma instituição de ensino superior da rede privada, porém atuei
como Psicóloga, por 04 anos e como Coordenadora da Equipe Técnica, por 06 meses, em uma
unidade de privação de liberdade de adolescentes autores de ato infracional que, na Bahia,
leva o nome de CASE- Comunidade de Atendimento Socioeducativo. No momento, minha
relação com a instituição e com os adolescentes é de pesquisadora, que visita as unidades
esporadicamente e troca experiências com os profissionais que lá atuam.
Vale ressaltar que os atendimentos são realizados em diversos espaços, muitos coletivos, que
se diferem e muito dos settings terapêuticos dos atendimentos individuais. Você pode atender
o adolescente na quadra de futebol, durante as oficinas profissionalizantes, durantes as visitas
de familiares, no almoço dentro dos alojamentos, nos passeios externos e, até, na sala de
atendimento.
Este acompanhamento também tem por objetivo a construção do relatório enviado à área
Jurídica, no caso a 2ª. Vara da Infância e da Juventude, como forma de colaborar com o
processo jurídico e com as possíveis progressões de medida ou liberação deste adolescente.
Na prática diária existem dificuldades, como a rivalidade existente nas unidades, resquícios
do sistema prisional, que inviabilizam a realização de muitas atividades que poderiam ser
desenvolvidas nestes espaços. A parceria com instituições externas à unidade, que nem
sempre se abrem para receber os adolescentes em cursos, atividades culturais (o que
novamente se esbarra no estigma social).
A rotatividade de profissionais que, em sua maioria, não são concursados, é algo que também
dificulta o trabalho, pois não permite uma sequencia nos projetos e ações de melhoria.
3.Perante sua atuação como psicóloga, quais os dilemas e os conflitos éticos vivenciados ?
Nunca vivenciei um conflito ético. Muitos questionam como agir se o adolescente nos conta
sobre atos aos quais ele não responde ou nos conta sobre algo que está pensando em fazer
dentro da unidade (como agredir ou matar alguém). Porém, o nosso objetivo naquele espaço
não é apenas apontar o certo e o errado (aliás, não vejo isso como sendo objetivo da
Psicologia em área alguma), mas fazer pensar sobre suas ações e possibilitar que o indivíduo
enxergue mudanças neste pensamento, no seu comportamento, que perceba novas
possibilidades de solucionar problemas sem o uso da violência.
O Código de Ética é claro quando nos permite quebrar o sigilo profissional quando o que está
em jogo é a vida do paciente ou de outras pessoas, portanto, não é difícil manter a ética.
Se a questão é sobre acompanhar adolescentes que cometeram atos, às vezes, graves e contra
pessoas, digo que ao escolher trabalhar nesta área, ou outras áreas com este mesmo dilema, se
faz necessário olhar além do ato, além do crime cometido, é necessário se olhar o outro, o ser
humano que está por trás do ato, o adolescente, que é adolescente antes de ser autor de um ato
infracional. É preciso ter um novo olhar sobre este tema (violência, criminalidade) e sobre o
ser humano como um todo, inserido em contextos que, muitas vezes, nem sabemos que
existem. Digo que aprendi muito com eles e que hoje olho a vida e o ser humano de uma
forma muito diferente, que talvez só esta atuação tenha tornado possível.
Acredito muito na mediação e na Justiça Restaurativa como caminhos possíveis para a Justiça
(juvenil e adulta). Estes projetos foram implantandos no Rio Grande do Sul e tem tido muitos
frutos.Porém, para tanto, é preciso mudar o foco de vingança para justiça, o que é, para mim,
um caminho possível para uma mudança real no combate à criminalidade e à violência.
Mudar o foco da punição para a socioeducação, de fato, é o que deveríamos considerar
quando discutimos o sistema prisional como um todo.
A participação dos adolescentes na construção de seus relatórios, por exemplo, é uma ação
cujo efeito é importante para responsabiliza-lo por si e por suas ações, retirando a culpa e
inserindo a reflexão, possibilitando autorreflexão, o que é essencial para que possamos pensar
sobre nós, nossas vidas, nossas limitações e potencialidades.
6.Como você vê a relação entre o ECA e o CREPOP na atuação com Menores em Conflito
com a Leiadolescentes autores de ato infracional ?
São duas instâncias diferentes, uma é a Lei que rege direitos e deveres deste público, a outra é
uma instância de pesquisa, de organização de trabalho. No entanto, ambas devem dialogar,
pois a organização do trabalho deve pautar-se na lei. O CREPOP tem sido importante na
elaboração de relatórios e de documentos de referência para a atuação com este público, no
entanto, sinto falta de ações mais pontuais e consistentes do Conselho Federal e Estaduais, na
prática, na vida cotidiana das unidades e, portanto, dos profissionais da Psicologia que nelas
atuam. Os materiais de referência auxiliam os que estão se inserindo agora, mas não resolvem
muitos problemas de quem já está na área e precisa de um respaldo maior e de espaços de
discussão sobre a atuação e sobre novas possibilidades dentro destes contextos.
Vale destacar que temos o SINASE desde 2012, uma lei que rege o atendimento no sistema
socioeducativo, que define como devem ser as unidades, o trabalho desenvolvido, a estrutura
física e de profissionais etc.
7.Você considera que sua remuneração é satisfatória e compatível coma (as) atividade (es)
que você exerce?
Não, definitivamente não. Embora esteja fora do mercado atualmente, sei que a remuneração
não é compatível com o trabalho. Gostaria de ressaltar que esta incompatibilidade ocorre em
grande parte da atuação da Psicologia na área social, como é o caso do CRAS, CREAS,
CAPS etc. A atuação na área social ainda é realizada por profissionais que se dedicam à área
por acreditar, por se identificar, muito mais do que por ser bem remunerado.
8. O que diria ao estudante que tem interesse em, ao se formar, atuar na área?
Minha sugestão é que se envolva em pesquisas sobre e na área, que busque estágios, que
conheça a área antes da formação, pois isso é importante e enriquecedor, além de nos colocar
de frente com a realidade da atuação neste contexto, o que pode definir se este é realmente o
caminho que desejamos seguir. Buscar remuneração ou status profissional nesta área é um
erro. Nestes espaços devemos estar buscando compreender o ser humano, com seus lados
mais sombrios e mais brilhantes, com suas lágrimas mais dolorosas e seus sorrisos mais
intensos. A vida junto a adolescentes é assim, extraordinária, e junto a estes adolescentes, não
é diferente.