Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v1, n1, p. 41-52, março de 2017. ISSN 2526-4702.
ARTIGO
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Resumo: Este artigo se constrói a partir de reflexões desenvolvidas sobre dados coletados
em espaços públicos de sociação de pequenas cidades localizadas na região Noroeste do
Estado do Rio de Janeiro e objetiva refletir sobre o potencial deste campo de observação
para uma análise da pessoalidade como modo de conduta pública. Os modos de vida
urbanos identificados nos contextos observados colocam em evidência modalidades de agir
em público fortemente marcadas porum estoque de conhecimento compartilhado sobre
cadeias de reputação e seus membros e um regime do próximo. Uma cultura pública
fortemente marcada pela influência de conteúdos intersubjetivos autonomizados e
objetivados. Primeiramente, objetiva-se demonstrar como esses espaços públicos de
sociabilidade se constituem como contextos de cultivo de si e de relações próximas, para
que então possamos refletir sobre os efeitos da pessoalidade como modo de conduta pública
e os modos como tal regime do próximo se relaciona com as modalidades de engajamento
na ação até então analisadas. Finalmente, visa-se traçar algumas hipóteses a serem
analisadas, bem como conferir destaque ao potencial das pequenas cidades como
laboratório de análise e experimentação da pessoalidade como um recurso actancial. Este se
trata de um artigo teórico-conceitual e que recorre a dados de campo e considerações
analíticas anteriormente desenvolvidas, com vias a avançar em alguns dos pontos de
reflexão anteriormente traçados pela sua autora. Palavras–chave: pessoalidade; regime do
próximo; conduta pública; cultura subjetiva.
Abstract: This article is based on reflections developed on data collected in public spaces
of small cities located in the Northwest region of the State of Rio de Janeiro and aims to
reflect on the potential of this field of observation for an analysis of the regime of
personhood as a way of public conduct. The urban ways of life identified in the contexts
observed highlight public ways of acting strongly marked by a stock of shared knowledge
about chains of reputation and their members and a regime of personhood (régime de
familiarité). A public culture strongly marked by the influence of intersubjective,
autotomized and objectified content. Firstly, it aims to demonstrate how these public spaces
of sociability are constituted as contexts of self-cultivation and close relations, so that we
can then reflect on the effects of personal relationships as a mode of public conduct and the
ways in which this familiarity regime relates with the modalities of engagement in the
action until then analyzed. Finally, it is intended to outline some hypotheses to be analyzed,
as well as to highlight the potential of small cities as a laboratory for analysis and
experimentation of personal relationships as an action resource. This is a theoretical-
conceptual article and that uses field data and analytical considerations previously
developed, with ways to advance some of the points of reflection previously drawn by its
author. Keywords: Personhood; Familiarity regime; Public conduct; Subjective culture
1
Professora Dra. do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política - Universidade Vila Velha. E-
Mail: manu_uenf@yahoo.com.br.
42
Delimitando o objeto
Este artigo se constrói a partir de dados coletados em espaços públicos de
sociação de cidades de pequeno porte localizadas na região Noroeste do Estado do Rio
de Janeiro. Os dados coletados em diferentes situações observadas ou relatadas de modo
sistemático nos últimos três anos vêm demonstrando a proeminência de uma alta
pessoalidade no trato dos atores em copresença em diferentes ocasiões da vida
cotidiana, com especial destaque para aquelas transcorridas nos espaços públicos de
sociabilidade local. Ponderadas as devidas variações em termos das posições ocupadas
pelos diferentes grupos de atores, bem como a complexidade do contexto e do processo
de observação, esses dados sugerem a manutenção de uma cultura pública fortemente
marcada pela influência de elementos intersubjetivos.
Se por um lado tais evidências, coletadas em situações sociais observadas em
cidades pequenas, em nada invalidam a tese simmeliana, também realçam aspectos que
nos permitem compreender com maior complexidade o que há para além da
impessoalidade, reserva e distanciamentona experiência de vida em cidades
contemporâneas. Do ponto de vista da condição citadina, interessam-nos aqui, acima de
tudo, os referidos espaçosde jogo, mesmo que restritos,“para o desdobramento de suas
qualidades peculiares”, de cultivo de si e de relações próximas (Simmel, 2005, 583).
Ao mesmo tempo, essa cultura pública pequeno urbana, mais do que meramente
penetrada por traços de um regime de engajamento na ação centradoem um registo de
proximidade, demonstra ser em grande medida constituída por ele. Esse estoque de
conhecimento compartilhado sobre pessoas, suas cadeias de reputação e afiliações,
evidenciado nos dados de campo coletados, é ele mesmo autonomizado, se constituindo
como um repertório público, que produz efeitos objetivos e participa da constituição dos
quadros de interação.
Estes espaços públicos de sociabilidade servem igualmente a manutenção de
relações próximas e ao encontro com o outro, servindo aprocessos de exposição de si
com diferentes potenciais de visibilidade. Servem ao mostrar-se para o próximo, como
servem ao encontro com o (ao menos potencialmente) desconhecido. São contextos de
manutenção da fachada, bem como de sua construção. Percebidos como laboratórios de
experimentação, contextos pequeno-urbanos aqui inspiram reflexões que contribuem
para se pensar muito mais do que gradações entre dimensões urbanas, objetivando o
entendimento de fenômenos, processos e relações sociais transcorridos em contextos
marcados pela pessoalidade como modo de conduta pública.
O espaço público como contexto de cultivo de si e as ponderações pequeno-urbanas
O que confere aos contextos de observação selecionados um caráter público são
os sentidos que lhes são atribuídos por seus usuários, bem como as tonalidades com que
tal quadro se constitui, incidindo sobre as experiências vividas. Ali decorrem “situações
rotineiras e quotidianas nas quais se constituem interações regidas pelas regras da
visibilidade mútua” (Freire, 2005, p. 44), trata-se de “espaços de fluxos e de encontros,
de estabelecimento de relações de copresença e que são abertos e acessíveis por
definição, mesmo que a sua acessibilidade possa ser objeto de contestação, sobretudo no
que se refere aos seus [variados] usos e significados” (Blanc, 2016a, p. 8).
Ao mesmo tempo em que as situações observadas envolvem citadinos em
copresença em espaços de sociabilidade que lhes são familiares, eles os compartilham
com um fluxo de transeuntes, visitantes mais ou menos regulares do local, estrangeiros
ou mesmo conterrâneos desconhecidos. Atores competentes ou não para agir de acordo
com as situações transcorridas em um espaço público marcado pela pessoalidade, mas
que são afetados por seus efeitos e interpelados a agir segundo seu regime de ação. São
contextos públicos de sociação porque assim definidos por seus usuários, ao mesmo
tempo em que o são porque assim se definem enquanto quadros da sua experiência
social.
Durante o desenvolvimento da tese A sociabilidade e o lazer erótico como forma
social nos contextos urbanos das cidades do Rio de Janeiro e Paris (Blanc, 2013), foi
possível observar como um clube de suingue carioca e uma sauna libertina parisiense se
constituíam como espaços em potencial para o estabelecimento de novas parcerias
sexuais, aos iniciados, de construção de carreiras liberalistas sexuais, e de
experimentação de práticas sexuais públicas e/ou grupais, entre os iniciantes. Ao mesmo
tempo, esses se tratavam de locais de encontro entre conhecidos, entre seus habitués.
Eram percebidos, portanto, como espaços públicos de sociabilidade para membros de
grupos desviantes organizados (se nos inspirarmos em Becker, 2008), em contraste com
aquelas situações nas quais os próprios liberalistas sexuais, individualmente ou em
casais, se encontravam com seus parceiros regulares para a realização das suas práticas,
em contextos privados (suas próprias casas, motéis ou casas de festa, eventos fechados
aos membros de uma dada rede de relações). Assim também, essas situações eram
regidas por regras específicas, dadas por experiências de visibilidade mútua que tinham
o olhar do outro, outsider ou não, como um referencial significativo e valorizado (Blanc,
2013).
Esses espaços públicos de sociabilidade erótica não estavam isentos de um
caráter pessoalizado, serviam ao desenvolvimento de relações íntimas, não apenas
porque sexuais, mas porque assim definidas pelos seus usuários mais frequentes: os
clubes eram espaços de encontro com o novo, mas também de desenvolvimento e
manutenção das relações já estabelecidas entre seus frequentadores mais assíduos.
Ali eram identificáveis formas de engajamento na ação pautadas em certa
familiaridade com o contexto, objetos, pessoas e mesmo práticas ou competências. Ao
mesmo tempo, esse contexto era o espaço de transmissão de um repertório de valores,
comportamentos e modalidades de ação efetivadas entre seus habitués.
Esta experiência de pesquisa possibilitou apreender modalidades de
discriminação mútua entremeadas por uma relativa reserva e capaz de garantir uma
experiência de anonimato compartilhada (Guimarães; Cavalcante, 2007) capaz de
proteger as identidades individuais dos envolvidos para além das fronteiras da sub-
região moral de sociabilidade erótica. Essa reserva fomentava o estabelecimento e
manutenção de tais práticas, contribuindo com o seu desenvolvimento e manutenção ao
garantir a gestão dos encontros sexuais em sua efemeridade: o estabelecimento de uma
variabilidade de parceiros, bem como o fortalecimento de redes de relações liberalistas
sexuais (Blanc, 2013).
A constituição de tal quadro da experiência social requeria, nas situações então
observadas, o estabelecimento de determinadas fronteiras morais, simbolizadas pelas
portarias dos próprios clubes, senão os modos de vida que se desenrolavam para além
deles. A possibilidade de recorrer aos espaços públicos de sociabilidade erótica para o
exercício das suas práticas sexuais, sem que estas afetassem suas imagens para além
desses mesmos contextos, fora possível a esses interlocutores, dado o potencial de
mobilidade que possuíam e exercitavam entre seus mundos sociais.
Quanto aos objetivos que aqui nos interessam, tais reflexões contribuem, em
contraste, para a ponderação da experiência de intersubjetiva de mobilidade vivida entre
os atores pequeno-urbanos observados e que incidem sobre suas modalidades de ação
em público.
Se os espaços se distinguem pelas experiências espaciais que proporcionam aos
seus transeuntes, como assim o define Michel de Certeau (1994), a experiência de
2
Este argumento fora desenvolvido mais detalhadamente em coautoria com Assis e no artigo “De qual
família você é?” Cidades de médio e pequeno porte e rituais de interação, a ser publicado no livro
Moralidades em Cidades da Periferia (Organizado por Jussara Freire, Luiz Antônio Machado da Silva,
Gabriel Noel e Natália Bermudez com auxílio do edital APQ3 - Faperj) e que ainda se encontra em
processo de editoração.
3
Destaca-se novamente que a expressão citada pretende definir a noção de regime do público,
segundo Thévenot (2006), sendo aqui aplicada para refletir sobre formas de engajamento em um
regime familiar.
4
Em referência ao “Você sabe quem está falando?”, de Roberto Damatta (1997).