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TEMAS POLÊMICOS

DA JURISDIÇÃO DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO RIO GRANDE DO SUL

VOLUME IV

ORGANIZADORES:
DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

ADRIANO GONÇALVES PAULO | ANDRÉ INACIO SILVA LOPES | ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO
| ARTHUR FELTRIN MILAMI | BETIELI DA ROSA SAUZEM MACHADO | BRUNA EMMANOUILIDIS | CAROLINA
DA SILVA RUPPENTHAL WEYH | CAROLINE ANDRESSA RECH | CAROLINE MULLER BITTENCOURT | CÉSAR
DE OLIVEIRA GOMES | DIÓGENES VICENTE HASSAN RIBEIRO | DOUGLAS RAUBER SPULDARO | FERNANDA
TAVARES SONDA | FLÁVIO BARBOZA DE CASTRO | GRÉGORA BEATRIZ HOFFMANN | IANAIÊ SIMONELLI DA
SILVA | JANRIÊ RODRIGUES RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JOÃO FELIPE LEHMEN | JOSÉ
ALCEBIADES DE OLIVEIRA JUNIOR | JULIA ROHERS RAUBER | JULIO CESAR FINGER | LARA SANTOS
ZANGEROLAME TAROCO | LEONARDO SERRAT DE OLIVEIRA RAMOS | LEONEL PIRES OHLWEILER |
LUCAS RECKZIEGEL WESCHENFELDER| MAURO BORBA | MICHELLE FERNANDA MARTINS | NATHAN
RITZEL DOS SANTOS | NEWTON BRASIL DE LEÃO | RICARDO HERMANY | ROBERTA DE MOURA ERTEL |
ROGERIO GESTA LEAL | SABRINA SANTOS LIMA | VICENTE DE PAULO BARRETTO
ORGANIZADORES
DES. ROGÉRIO GESTA LEAL
PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO


DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO
GRANDE DO SUL

VOLUME IV

Porto Alegre
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
2018
EXPEDIENTE

ORGANIZADORES
DES. ROGÉRIO GESTA LEAL
PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT
CAPA
MARCELO OLIVEIRA AMES
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
SERVIÇO DE IMPRESSÃO & MÍDIA DIGITAL – DSO/TJRS

ISBN 978-85-89676-29-8 (E-BOOK)





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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ADMINISTRAÇÃO 2018-2019

Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro – Presidente

Desa. Maria Isabel de Azevedo Souza – 1ª Vice-Presidente

Des. Almir Porto da Rocha Filho – 2º Vice-Presidente

Des. Túlio de Oliveira Martins – 3º Vice-Presidente

Desa. Denise Oliveira Cezar – Corregedora-Geral da Justiça


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DA 3ª VICE-PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO


ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ................................................................................... 7

APRESENTAÇÃO DA UNISC – DOUTORADO e MESTRADO EM DIREITO ............. 9

1. O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do


cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública –
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto................................................................................. 11

2. A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e


possibilidades – Newton Brasil de Leão.............................................................................. 23

3. Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo


de caso – Rogério Gesta Leal ............................................................................................ 39

4. Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime


do artigo 89 da lei de licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela
jurisprudência – Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro............................................ 51

5. Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo


de caso – Mauro Evely Viera de Borba ............................................................................... 71

6. Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo


Penal e os tribunais – Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins .................. 89

7. Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação


das pessoas com deficiência – Leonel Pires Ohlweiler ....................................................... 111

8. Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus”


indireta – Jayme Weingartner Neto .................................................................................. 139

9. O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito – Vicente de Paulo Barretto e César de


Oliveira Gomes .............................................................................................................. 159

10. Casos difíceis e a contribuição de Neil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça
Brasileira – José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos ................. 187

11. Ação civil pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul e qualificação do serviço público via controle da administração pública:
racionalidade e fundamentação – Caroline Muller Bitencourt e Janriê Rodrigues Reck.............. 203

12. A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública – Ricardo Hermany e Betieli da
Rosa Sauzem Machado ................................................................................................... 221

13. Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de


medicamentos essenciais, limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul? – Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame
Taroco.......................................................................................................................... 247
14. Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares:
análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Sabrina Santos Lima
e Grégora Beatriz Hoffmann............................................................................................. 283
15. Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços
home care de saúde – Fernanda Tavares Sonda ................................................................ 317
16. Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio
da garantia do transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça – André Inacio Silva
Lopes e João Felipe Lehmen ............................................................................................. 353
17. A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa
o Tribunal de Justiça? – Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami........................... 371
18. Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público
de educação infantil: em busca de uma solução viável – Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos
Santos .......................................................................................................................... 387
19. A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime
do art. 89 da Lei de Licitações – Carolina da Silva Ruppenthal Weyh ................................ 405
20. O papel do Poder Judiciário para preservação do interesse público sob a perspectiva da
democracia deliberativa – Roberta de Moura Ertel ........................................................... 417
21. As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos
atentórios contra a Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle –
Ianaiê Simonelli da Silva ................................................................................................ 427
22. Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de
casos julgados no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Lucas Reckziegel
Weschenfelder .................................................................................................................... 439
23. A função do juiz a partir da democracia deliberativa – Bruna Emmanouilidis ............. 457
24. Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª câmara
criminal do TJRS – Flávio Barboza de Castro................................................................... 467
APRESENTAÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL

As funções de um Tribunal não se restringem apenas às atividades


administrativas latu sensu e à jurisdição resolutiva de conflitos. A produção científica
que decorre da atividade forense é farta e valiosa, com o particular atributo de ter
como ponto de partida justamente os conflitos da vida de relação e os desafios à
inteligência com que se deparam todos os operadores do Direito.
As universidades são – há mais de um milênio – polos irradiadores de ideias
e cultura, assumindo assim funções simultâneas e harmônicas de crítica, pesquisa
e produção intelectual de vanguarda.
Através deste livro a UNISC e o Tribunal de Justiça, através desta obra
TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO RIO GRANDE DO SUL, em sua quarta edição, fortalecem e amplificam
a relação harmônica entre a atividade acadêmica e a prestação jurisdicional
rotineira, apresentando um conjunto de artigos de doutrina, análise de casos,
direito comparado, política criminal e administração pública.
Com coordenação do Desembargador e Professor Doutor  Rogério Gesta
Leal, a obra traz a visão, as reflexões e as pesquisas de magistrados, advogados e
professores sobre grandes temas do Direito.
Boa leitura a todos.
 
TÚLIO DE OLIVEIRA MARTINS
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Terceiro Vice-Presidente do Tribunal de Justiça
Presidente da Comissão de Biblioteca
APRESENTAÇÃO DA UNISC

O presente livro TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, VOLUME IV, é o
resultado dos debates promovidos na linha de pesquisa  Estado, Administração
Pública e sociedade, coordenado pelo professor Titular Doutor Rogério Gesta
Leal,  desenvolvendo suas atividades junto ao Mestrado e Doutorado em Direito,
com área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas na Universidade
de Santa Cruz do Sul, e envolvendo estudos acerca da jurisprudência do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, contando com diálogos entre
pesquisadores, professores e magistrados gaúchos.
O Volume IV desta obra que já se apresenta como referência bibliográfica
nos debates jurídicos e acadêmicos do Brasil, mais uma vez conta com a parceria
exitosa entre Universidade de Santa Cruz do Sul e o Poder Judiciário gaúcho,
permitindo ampliar às reflexões sobre múltiplos temas de alta complexidade e
impacto social.
Os autores são professores universitários, juízes, desembargadores, alunos
de doutorado, mestrado e graduação que, em suas variadas pesquisas e práxis,
buscam enfrentar as temáticas selecionadas de forma analítica e crítica.
As questões abordadas extremamente complexas, ganham uma maior
dimensão em se tratando do tema de políticas públicas, por deveras complexo,
especialmente por estar no limiar de conteúdos que envolvem uma observação
tanto jurídica como política. Mesmo porque se sabe que tais campos, o político
e o jurídico, na prática, são incindíveis, podendo ser facilmente observável em se
tratando de políticas públicas.
A identificação da metodologia utilizada permitirá percorrer de forma mais
segura os caminhos selecionados enquanto objeto de pesquisa, portanto, além de

9
artigos bibliográficos será utilizada a metodologia de análise de jurisprudência e
também de casos concretos julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul.
Importa ainda referir que ao se propor realizar um estudo de caso, os
trabalhos vão abordar os temas eleitos a partir de três momentos que são distintos,
mas que ao mesmo tempo são complementares entre si: descritivo, analítico
e prospectivo. No primeiro momento, o descritivo, os esforços voltam-se aos
elementos de identificação, qualificação e contextualização do caso, aonde a fim
de destacar o caso de seu contexto irá se elucidar o máximo de informações fáticas
acerca dele; diagnosticar e aprofundar para uma melhor análise os elementos
quantitativos e qualitativos do caso; permear com elementos que ligam o caso ao
conjunto da realidade social, a partir da identificação dos agentes envolvidos, os
meios e os resultados que se relacionam.
No segundo momento, o analítico, buscar-se-á a  “demarcação dos
fatores, variáveis, agentes que participam deste caso, bem como suas implicações
múltiplas (econômicas, políticas, ideológicas, culturais, religiosas, etc.), além do
enquadramento normativo matriz”.
No terceiro momento, o prospectivo, vai se definir quais os cenários de
enfrentamento do caso que estão presentes na espécie, possibilidades de ação
(jurídica, política, social, cultural, etc.), e tarefas a realizar – individuais ou
coletivas, através do enfrentamento dos cenários fáticos e normativos (em todas as
suas espécies), considerando-se todos os seus efeitos jurídicos, sociais, econômicos,
políticos, culturais e outros; o levantamento das possibilidades de enfrentamento
para realocar as perspectivas dos envolvidos fomentando as possibilidades de
escolha; e por fim, o acompanhamento através de tarefas pré-ordenadas a fim de
orientar a ação concreta.
 
 ROGÉRIO GESTA LEAL
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Professor Titular da UNISC e FMP
Doutor em Direito

CAROLINE MÜLLER BITENCOURT


Professora da UNISC
Doutora em Direito
O CRIME DE CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES
E A RESPONSABILIDADE PENAL DO PREFEITO:
PERDA DO CARGO E A INABILITAÇÃO
PELO PRAZO DE 05 ANOS PARA O EXERCÍCIO
DE CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICA

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Acao Penal - Procedimento Ordinario Nº 70056562614 (Nº CNJ: 0380888-


19.2013.8.21.7000) – Quarta Câmara Criminal – Comarca de Sapucaia do Sul

PROCESSO-CRIME. PREFEITO MUNICIPAL. ART. 1º, INCISO XIII,


DO DECRETO-LEI Nº 201/67.
A contratação de servidores autorizada por Decreto do Chefe do Executivo
Municipal, sem efetiva caracterização de situação de excepcionalidade, tipifica o
delito previsto no art. 1º, inciso XIII, do Decreto-Lei nº 201/67, especialmente
tratando de cargos de natureza permanente da Administração, como na espécie.
Ação penal julgada procedente. Unânime.

Partes: Ministerio Publico, Autor – Vilmar Ballin, Denunciado.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.


Acordam os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, julgar procedente a ação penal para
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

condenar o denunciado VILMAR BALLIN por incurso no art. 1º, inciso XIII, do
Decreto-Lei nº 201/67, na forma do art. 71 do Código Penal, à pena de 04 meses
de detenção, em regime aberto, substituída por prestação pecuniária, no valor de
cincos salários mínimos, à entidade designada no juízo da execução. Determinar,
ainda, após o trânsito em julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de
05 anos para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, nos
termos do disposto no § 2º do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes
Senhores DES. NEWTON BRASIL DE LEÃO E DES. JULIO CESAR
FINGER.
Porto Alegre, 24 de novembro de 2016.
DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO,
Presidente e Relator.

RELATÓRIO

Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (RELATOR) – O Ministério


Público denunciou VILMAR BALLIN, Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul, por
incurso nas sanções do art. 1º, inciso XIII, do Decreto-Lei nº 201/67, na forma do
art. 71 do Código Penal (diversas vezes), pela prática dos seguintes fatos delituosos:
Em diversas oportunidades entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, em
Sapucaia do Sul, o denunciado Vilmar BaIlin, aproveitando-se da condição de
Prefeito Municipal, nomeou, admitiu e designou os servidores abaixo relacionados
contra expressa disposição da Constituição Federal, em especial seu artigo 37,
caput e inciso II, bem como contra expressa disposição da Constituição do Estado
do Rio Grande do Sul, em especial seus artigos 19, capute inciso 1, e 32, caput.

CONTRATO
DECRETO INGRESSO
NOME CARGO (folhas dos
EXECUTIVO NO CARGO
autos)
Agente de
1. Adriana Regina Pinto de Moura 3874/2012 combate a 01/03/2012 801/802
endemias
Agente de
2. Amanda Silva Borges 3874/2012 combate a 01/03/2012 804/805
endemias
3. Ana Marcia dos Santos Paim 3889/2012 Psicóloga 13/06/2012 806/807

12
O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do cargo e a inabilitação pelo
prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública

Agente de
Ana Paula Teixeira
4. 3874/2012 combate a 01/03/2012 808/809
Meireiles
endemias
Anderson Fernandes Agente
5. 3765/2011 22102/2011 810/811
Borges municipal
Agente de
6. Andrea Martins 3874/2012 combate a 01/03/2012 812/813
endemias
Agente de
7. Andressa Garcia Gonçalves 3874/2012 combate a 01/03/2012 814/815
endemias
Angela Cristiane Quadros Agente
8. 3889/2012 21/06/2012 816/817
de Farias administrativo
9. Antonio Vinícius de Moreira 3903/2012 Recepcionista 19/06/2012 818/819
Maquinista
10. Armindo Correa de Freitas 3873/2012 (Agente 19/03/2012 821/822
municipal)
Auxiliar
11. Bruno da Silva Kauer 3937/2012 Municipal 25/10/2012 823/824
(Servente)
12. Carine Mendes Garbin Diesel 3891/2012 Professor N2 24/05/2012 826/827
Agente
13. Cana Viviane Lima dos Santos 3765/2011 17/01/2012 829/830
municipal
14. Celso Luis Teixeira 3876/2012 Professor N2 09/04/2012 831/832
20/07/201
15. Claudio Antonio Ribeiro 3796/2011 Motorista 837/838
2
Atendente de
16. 16. Cristiane Moraes Silva 3815/2011 educação 20/04/2012 840/842
infantil
Auxiliar
Daniel Goniçalves de
17. 3866/2012 municipal 12/04/2012 843/844
Azevedo
Servente
18. Elizandro Domingos de Souza 3873/2012 Maquinista 2210312012 845/846
19. Elizeu da Silva Reis 3796/2011 Motorista 25/07/2011 847/848
20. Emilene Elusa da Silva 3870/2012 Assistente social 16/03/2012 850/851
Erika Vanessa de Lima
21. 3891/2012 Professor N2 25/05/2012 8521853
Silva
22. Fabiana Garcia Cabra 393812012 Psicóloga 25/10/2012 855/856
Auxiliar
23. Fabiano Nunes Maciel 3866/2012 municipal 11/06/2012 857/858
Servente
Técnica
24. Fernanda Fraporti 3796/2011 municipal 13/04/2011 859/860
(Contadora)

13
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Agente
25. Fernanda Tome Henrique 3859/2011 12/01/2012 861/862
administrativo
Atendente de
26. Franciele Tricia Cezimbra da Silva 3815/2011 educação 12/12/2011 864/866
infantil
Franciene Rodrigues Agente
27. 3765/2011 01/04/2012 867/868
Pereira municipal
Auxiliar
Francisco de Paula dos
28. 3866/2012 municipal 31/05/2012 869/870
Santos
Servente
29. Gilmar de Bastos Dutra 3841/2011 Maquinista 01/12/2011 872/873
Guilherme Pereira dos
30. 3859/2011 Motorista 29/05/2012 874/875
Santos
31. lara Luíz Geiger 3859/2011 Assistente social 18/01/2012 877/878
Técnica
32. lnara Karina Dias Vieira 3796/2011 municipal 15/02/2011 879/880
Contadora
Agente de
33. Ines Dolores de Oliveira 3874/2012 combate de 01/03/2012 881/882
endemias
34. Jaqueline Flores de Souza 3889/2012 Assistente social 12/06/2012 883/884
Agente
35. Jenifer Luciano Pereira 3765/2011 23/01/2012 885/886
municipal
Técnica
Jocelaine de Fátima
36. 3796/2011 municipal 14/07/2012 887/888
Martins de Lima
Contadora
37. Jorge Tadeu dos Santos 3796/2011 Maquinista 09/08/2011 890/891
Auxiliar
38. Juliano Garcia de Oliveira 3866/2012 municipal 30/03/2012 898/899
Servente
Agente de
39. Kasusa Margarezzi 3874/2012 combate a 01/03/2012 900/901
endemias
40. Laida Paulo Rosa 3889/2012 Motorista 01/06/2012 902/903
Agente de
41. Leila Maria Einsteld 3874/2012 01/03/2012 904/905
combate a
Agente de
42. Lizandra BIos dos Santos 3874/2012 combate a 01/03/2012 906/907
endemias
43. Lucas Severo Leczinski 3903/2012 Recepcionista 20/06/2012 908/909
Agente de
44. Luciano Leonel da Silva 3874/2012 combate a 01/03/2012 912/913
endemias

14
O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do cargo e a inabilitação pelo
prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública

Auxiliar
45. Lucio Mauro de Oliveira Cardoso 3866/2012 municipal 09/03/2012 91 4/915
Servente
Auxiliar
Luiz Antonio Soares
46. 3866/2012 municipal 16/03/2012 916/917
Brandão
Servente
47. Mara Cristiane Teixeira 3889/2012 Pedagoga 14/06/2012 918/919
48. Marcelo Ferreira Pires 3796/2011 Motorista 20/07/2011 921/922
Auxiliar
Marcio Lourenço Rodrigues de
49. 3866/2012 municipal 19/03/2012 925/926
Souza
Servente
Atendente de
50. Marcos Antonio de Farias 3815/2011 educação 24/11/2011 927/929
infantil
Agente de
51. Marilda Flores de Azeredo 3874/2012 combate a 01/03/2012 930/931
endemias
52. Melissa Trombíni Pedroso 3870/2012 Assistente social 16/03/2012 933/934
Agente
53. Natália Tormes da Silva 3765/2011 25/08/2011 935/936
municipal
Auxiliar
54. Nelso Luiz de Souza 3666/2012 municipal 14/06/2012 937/938
Servente
55. Nithiane Capeila Farias 3859/2011 Psicóloga 02/07/2012 940/941
56. Patricia Brum Pacheco 3859/2011 Educador social 02/05/2012 943/944
Paulo Cesar da Silva
57. 3841/2011 Maquinista 01/12/2011 946/947
Vignochi
58. Raquel Bizarro Marques 3889/2012 Assistente social 07/05/2012 948/949
59. Rodrigo Albenaz Leal 3841/2011 Maquinista 26/01/2012 950/951
Auxiliar de
60. Rosania Maria Pires 3859/2011 09/02/2012 952/953
serviços gerais
Agente de
Roselaine de Souza
61. 3874/2012 combate a 01/03/2012 954/955
Vargas
endemias
Agente de
Roselaine Joaquim
62. 3874/2012 combate a 01/03/2012 956/957
Bresolin
endemias
Atendente de
Stella Regina Gomes
63. 3815/2011 educação 31/10/2011 958/960
Ramos
infantil
Agente de
64. Tais Macíel Mendes 3874/2012 combate a 01/03/2012 961)962
endemias

15
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Auxiliar
65. Valdemir Nunes 3866/2012 municipal 28/03/2012 963/964
Servente
Auxiliar
66. Viadimir da Silva 3866/2012 municipal 08/03/2012 965/966
Servente

Para a prática dos delitos, o Chefe do Executivo municipal de Sapucaia do


Sul editou os Decretos números 3765/2011, 3796/2011, 3800/2011, 3811/2011,
381512011, 3824/2011, 3841/2011, 3859/2011, 3861/2011, 386512012, 3866/2012,
3870/2012, 3873/2012, 3874/2012, 3876/2012, 3878/2012, 3889/2012, 3891/2012,
3892/2012, 3900/2012, 3903/2012, 3937/2012 (fls. 12/61 e 967/1160), declarando
supostas situações de necessidade temporária ou excepcional interesse público e
autorizando contratações diretas, sem concurso público, de diversos servidores
(acima exemplificativamente relacionados) para os cargos de agente de combate
a endemias, psicólogo, agente municipal, agente administrativo, recepcionista,
maquinista, agente municipal, auxiliar municipal, servente, professor N2, motorista,
atendente de educação infantil, assistente social, técnico municipal contador,
pedagogo, educador social, auxiliar de serviços gerais, dentre outros.
Ocorre que as referidas contratações foram realizadas por iniciativa
exclusiva e autônoma do Chefe do Executivo, sem efetiva caracterização das
situações de temporalidade e excepcionalidade que supostamente as embasariam e
sem autorização do Poder Legislativo municipal (fis. 67/75).
Nesse contexto, sem qualquer justificação de excepcionalidade, o Prefeito
preencheu ao seu nuto parcela considerável de cargos e funções de caráter essencial
e permanente da Administrção Municipal, sem realizar concurso público e sem
qualquer garantia de impessoalidade na escolha e substituição dos profissionais
contratados.
Ao longo de tais práticas criminosas, o denunciado violou deveres para com
a Administração Pública, prevalecendo-se de seu cargo, afrontando os princípios
de legalidade e impessoalidade e, ainda, privilegiando interesses privados em
detrimento do interesse público.
Os referidos decretos foram por fim declarados inconstitucionais pelo Órgão
Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul através da Ação
Direta de Inconstitucionalidade n° 70049370125 (fls. 67/75).
Devidamente notificado (fl. 1202), o denunciado VILMAR BALLIN
apresentou resposta escrita (fls. 1210/1218).

16
O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do cargo e a inabilitação pelo
prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública

Após manifestação do Ministério Público (fls. 1225/1228), a denúncia foi


recebida, à unanimidade, por esta Quarta Câmara Criminal, em 23.01.2014 (fls.
1244/1249v).
Apresentada defesa prévia, com rol de testemunhas (fls. 1281/1282).
Foi oposta exceção de litispendência (fls. 1321/1325), julgada improcedente
(fls. 1338/1339).
As testemunhas arroladas pela defesa foram inquiridas (fls. 1360/1363, fls.
1363v/1366v, fls. 1367/1371 e fls. 1648/1652).
O réu foi interrogado (fls. 1652v/1659).
No prazo do art. 10 da Lei nº 8.038/90, a defesa postulou que fosse
oficiada a Secretaria da Saúde para informar: se Sapucaia do Sul constava no rol
dos municípios infestados por Aedes aegypti, se o plano de contingência para
dengue foi instituído em caráter de urgência e se havia orientação sobre a forma de
contratação de agentes de combate a endemias para o cumprimento do plano de
contingência para dengue do Estado do Rio Grande do Sul (fls. 1693/1694).
O Ministério Público nada requereu (fls. 1689/1689v).
Foram juntadas as informações da Secretaria da Saúde (fl. 1703). O
Ministério Público manifestou-se sobre o prosseguimento do feito (fl. 1707). A
defesa deixou transcorrer in albis o prazo (fl. 1709).
No prazo do art. 11 da Lei nº 8.038/90 o Ministério Público ofereceu
alegações escritas. Afirma haver prova suficiente à condenação do acusado. Sustenta
que os servidores contratados temporariamente foram admitidos no serviço
público para o preenchimento de cargos de natureza permanente, sem a realização
de concurso público e, portanto, sem garantia de impessoalidade. Ressalta que as
circunstâncias de urgência e excepcionalidade que justificaram as contratações não
preenchiam as exigências constitucionais, tanto que os decretos foram declarados
inconstitucionais pelo Órgão Especial desta Corte. Enfatiza que as contratações
foram feitas por ato unilateral do Chefe do Executivo, sem qualquer respaldo do
legislativo municipal. Requer seja julgada procedente a ação penal para condenar
VILMAR BALLIN, por incurso nas sanções do art. 1º, inciso XIII, do Decreto-Lei
nº 201/67 (diversas vezes), na forma do art. 71 do Código Penal (fls. 1713/1716).
A defesa de VILMAR BALLIN alega atipicidade objetiva da conduta.
Afirma que havia lei municipal autorizando o acusado a declarar, via decreto, a
situação excepcional, não preenchida, portanto, a elementar do tipo contratação
contra expressa disposição de lei. Que havia necessidade de contratar temporária e
emergencialmente servidores. Que não houve lesão ao bem jurídico protegido

17
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

pela norma, não se podendo confundir ilegalidade administrativa com ilícito


penal. Que o inciso V do art. 260 da Lei Municipal nº 2028/97 autorizava as
contratações da forma como realizadas. Que o Decreto nº 3.960/12 comprova não
ter desbordado dos limites do ato administrativo, pois o acusado revogou de pronto
os decretos e exonerou os servidores, assim que declarada a inconstitucionalidade
das contratações. Enfatiza que não houve dolo e que a multiplicidade de funções
abarcadas pelos decretos de contratação temporária demonstra a premência em
dar continuidade aos serviços da administração. Requer seja julgada improcedente
a ação penal para absolver o acusado (fls. 1721/1732).
É o relatório.

VOTOS
Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (RELATOR)
De acordo com a inicial, o denunciado VILMAR BALLIN, na condição
de Prefeito Municipal de Sapucaia do Sul, teria nomeado, admitido e designado
sessenta e seis servidores contra expressa disposição da Constituição Federal, em
especial o art. 37, caput, e inciso II, bem como da Constituição do Estado do Rio
Grande do Sul, art. 19, caput, e inciso II e art. 32.
A materialidade está demonstrada pelos documentos acostados aos autos, em
especial os Decretos 3765/2011, 3796/2011, 3800/2011, 3811/2011, 3815/2011,
3824/2011, 3841/2011, 3859/2011, 3861/2011, 3865/2012, 3866/2012, 3870/2012,
3873/2012, 3874/2012, 3876/2012, 3878/2012, 3889/2012, 3891/2012, 3892/2012,
3900/2012, 3903/2012 e 3937/2012 (fls. 19/68 e 983/1177v).
A autoria é certa.
Interrogado, o acusado confirma as contratações, embora alegue que estava
autorizado por lei a efetuá-las. Disse que estava amparado pela Procuradoria do
Município e que não tinha ingerência sobre as pessoas indicadas para ocupar os
respectivos cargos (fls. 1652v/1659).
As testemunhas arroladas pela defesa, Ângela Maria Schenato (fls.
1360/1363), Luciano Rodrigues (fls. 1363v/1366v), José Eloir Wink (fls. 1367/1371)
e Ademir de Almeida Pereira (fls. 1648/1652), todas ouvidas como informantes,
referem que o acusado estava amparado por lei a efetuar as contratações e que
muitas delas eram necessárias à manutenção dos centros de assistência social, para
que continuassem recebendo verba do governo federal.
As contratações, segundo a defesa, tiveram por base a Lei Municipal nº
2028/1997, que autorizava a administração municipal a efetuar contratações de
pessoal, por prazo determinado, na forma da lei.

18
O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do cargo e a inabilitação pelo
prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública

De acordo com o art. 260 da Lei Municipal nº 2028/1997:

Para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, a


administração municipal poderá efetuar contratações de caráter pessoal, por prazo
determinado, na forma da lei.
Parágrafo único - para fins previstos neste artigo, consideram-se como necessidade
temporária de excepcional interesse público as contratações destinadas a:
I – combater surtos e epidemias;
II – atender a situações emergenciais ou de calamidade pública;
III – atender a outras situações de urgência, que vierem a ser definidas por lei;
IV – atender a convênio temporário, firmado entre o Município e outro órgão
público;
V – a declaração, de excepcional interesse público, dar-se-á por decreto do Poder
Executivo.

Na espécie, não houve prova da urgência nas contratações. Pelo contrário.


Os subsídios carreados aos autos revelam ausência de situação excepcional.
A justificativa de que as contratações seriam necessárias ao combate da
dengue, bem como à manutenção dos centros de assistência social não se mostra
suficiente a amparar a conduta, como realizada pelo denunciado.
Foram contratados sessenta e seis servidores, para diversos cargos, muitos
de natureza permanente, como motorista, psicólogo, professor, assistente social,
pedagogo, recepcionista, contador, dentre outros, sem a realização de concurso
público.
Ainda que fossem consideradas emergenciais as contratações de agentes de
combate a endemias, restariam as demais sem justificativa de excepcionalidade.
As nomeações ocorreram em 2011 e 2012 e o Município de Sapucaia do
Sul passou a condição de infestado por Aedes aegypsi em março de 2013, como
informado pelo Centro Estadual de Vigilância em Saúde (fl. 1703). Nesse sentido,
também o ofício endereçado ao Município, em 20 de março de 2013 sugerindo a
contratação de 42 agentes de combate a endemias e 4 supervisores (fls. 1703v/1704).
Assim, ainda que o Município de Sapucaia tivesse um plano de contingência
para dengue em 2008, não estava com surto ou epidemia a justificar as contratações,
da forma como efetuadas.

19
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia


em concurso público de provas ou de provas e títulos, conforme determina o inciso
II do art. 37 da Constituição Federal de 1988, podendo a lei estabelecer os casos
de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público (inciso IX do art. 37 da CF/88).
A situação que caracteriza a contratação excepcional, sem concurso público,
é a absolutamente emergencial, decorrente de enchentes, calamidade pública,
licença gestante, dentre outras, não verificadas no caso.
Além disso, as contratações não se deram na forma da lei, mas por Decretos,
declarados inconstitucionais pelo Órgão Especial desta colenda Corte.
Na espécie, as contratações foram originadas por Decreto, ato unilateral do
Chefe do Poder Executivo, sem respaldo legislativo, e não caracterizavam situações
de excepcionalidade.
Ao contrário do que alega a defesa, a multiplicidade de funções abarcadas
pelos decretos de contratação temporária não demonstra a urgência em dar
continuidade aos serviços da administração, mas sim que tratavam de cargos de
natureza permanente.
Nem se diga que o Prefeito Municipal estaria autorizado por lei a efetuar as
contratações.
A lei autorizava tão somente a declaração de situação excepcional e não
a contratação em si. Tampouco o fato de o acusado ter revogado de pronto os
decretos e exonerado os servidores, assim que declarada a inconstitucionalidade
das contratações, elide o cometimento dos delitos.
Também não há falar em ausência de dolo. O denunciado estava no segundo
mandato. Evidente, portanto, que tinha conhecimento de que não poderia efetuar
contratações da forma como realizadas, por Decreto, sem concurso, e sem caráter
emergencial.
Dolo caracterizado, vontade de admitir servidor sem concurso, contra as
disposições legais e constitucionais. Não houve prejuízo ao Município e sim a
outros possíveis candidatos preteridos.
A distância temporal entre os delitos cometidos pelo Prefeito deve ser
relativizada, havendo que prevalecer o fato de terem sido praticados na mesma
gestão. Assim, tratando-se de crimes da mesma espécie, executados de forma
semelhante, atendidos os demais requisitos do art. 71 do Código Penal, deve ser
reconhecida a continuidade delitiva.

20
O crime de contratação de servidores e a responsabilidade penal do prefeito: perda do cargo e a inabilitação pelo
prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função pública

Assim, comprovadas materialidade e autoria, impositiva a condenação


do denunciado VILMAR BALLIN por incurso nas sanções do art. 1º, XIII, do
Decreto-Lei nº 201/67, na forma do art. 71 do Código Penal.
O denunciado não registra antecedentes negativos, condenação com trânsito
em julgado. Agiu com dolo intenso, como administrador do Município, em seu
segundo mandato, tinha plena consciência de que não poderia efetuar contratações
por Decreto, sem concurso e sem efetiva situação de excepcionalidade. Favoráveis os
demais operadores do art. 59 do Código Penal, vai estabelecida a pena-base em 04
meses de detenção (§ 1º do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67), diminuída em 01 mês
pela confissão, definitiva em 03 meses de detenção. Aumentada de 1/3 em razão da
continuidade faz pena definitiva de 04 meses de detenção, regime inicial aberto.
Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, substituo a pena privativa
de liberdade por prestação pecuniária, no valor de cinco salários mínimos, à
entidade designada no juízo da execução.
As condutas como praticadas, demonstram que não tem condições de
permanecer no cargo. Dele se utilizou para nomear, admitir e designar servidores
contra expressa disposição da Constituição Federal. Como agente público,
praticou conduta oposta àquela desejada, de atendimento ao interesse da
comunidade, ofendendo aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade,
constitucionalmente previstos, revelando manifesta inaptidão para o exercício do
cargo de Prefeito Municipal, falta de espírito público e isenção para governar.
Nessas condições, determina-se, ainda, após o trânsito em julgado, a perda
do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício de cargo ou função
pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado
ao patrimônio público ou particular, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º do
Decreto-Lei nº 201/671.
Julgo procedente a ação penal para condenar o denunciado VILMAR
BALLIN por incurso no art. 1º, inciso XIII, do Decreto-Lei nº 201/67, na forma
do art. 71 do Código Penal, à pena de 04 meses de detenção, em regime aberto,
substituída por prestação pecuniária, no valor de cincos salários mínimos, à
entidade designada no juízo da execução. Determino, ainda, após o trânsito em
julgado, a perda do cargo e a inabilitação pelo prazo de 05 anos para o exercício

1 – § 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a
inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem
prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.

21
Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, nos termos do disposto no §


2º do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67. Custas na forma da lei. Após o trânsito em
julgado, oficie-se o Tribunal Regional Eleitoral e inclua-se o nome do réu no rol dos
culpados. A Secretaria providenciará os registros e comunicações.
Des. Newton Brasil de Leão (REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
Des. Julio Cesar Finger - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO - Presidente


- Ação Penal - Procedimento Ordinário nº 70056562614, Comarca de Sapucaia
do Sul: “À UNANIMIDADE, JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO PENAL
PARA CONDENAR O DENUNCIADO VILMAR BALLIN POR INCURSO
NO ART. 1º, INCISO XIII, DO DECRETO-LEI Nº 201/67, NA FORMA DO
ART. 71 DO CÓDIGO PENAL, À PENA DE 04 MESES DE DETENÇÃO, EM
REGIME ABERTO, SUBSTITUÍDA POR PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA, NO
VALOR DE CINCOS SALÁRIOS MÍNIMOS, À ENTIDADE DESIGNADA NO
JUÍZO DA EXECUÇÃO. DETERMINARAM, AINDA, APÓS O TRÂNSITO
EM JULGADO, A PERDA DO CARGO E A INABILITAÇÃO PELO PRAZO
DE 05 ANOS PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICA,
ELETIVO OU DE NOMEAÇÃO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO § 2º
DO ART. 1º DO DECRETO-LEI Nº 201/67, NOS TERMOS DOS VOTOS
PROFERIDOS EM SESSÃO.”

22
A EXIGÊNCIA DO DOLO ESPECÍFICO PARA
CARACTERIZAR O CRIME LICITATÓRIO:
CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES

Newton Brasil de Leão

Ação Penal - Procedimento Ordinário Nº 70074945049 (Nº CNJ: 0258619-


36.2017.8.21.7000) – Quarta Câmara Criminal – Comarca de Veranópolis

AÇÃO PENAL. PROCEDIMENTO ORDINÁRIO. PREFEITO


MUNICIPAL. CRIME LICITATÓRIO. ARTIGO 89,  CAPUT, DA LEI Nº
8.666/93. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES
LEGAIS. DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR DANO AO ERÁRIO NÃO
DEMONSTRADO. CONTRATAÇÃO PRECEDIDA DE LEVANTAMENTO
DE VALORES PELO MATERIAL A SER ADQUIRIDO, BEM COMO LEVADA
A EFEITO MEDIANTE A APROVAÇÃO DA ASSESSORIA JURÍDICA DO
MUNICÍPIO. ESCOLHA DO MENOR VALOR. ABSOLVIÇÃO IMPOSITIVA.
COM BASE NO ARTIGO 386, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL, AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
Partes: Ministério Público, Autor – Waldemar de Carli, Denunciado; Paulo
César Guzzo, Denunciado.

ACÓRDÃO

Acordam, os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em julgar
Newton Brasil de Leão

improcedente a denúncia, absolvendo os réus, forte no artigo 386, inciso III, do


Código de Processo Penal.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores
DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO (PRESIDENTE)
E DES. ROGÉRIO GESTA LEAL.
Porto Alegre, 08 de março de 2018.
DES. NEWTON BRASIL DE LEÃO, Relator.

RELATÓRIO

1. Trata-se de ação penal, proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO contra


WALDEMAR DE CARLI, Prefeito Municipal de Veranópolis/RS, e PAULO
CÉSAR GUZZO, na qual a estes imputada a prática do delito do artigo 89,
caput, da Lei nº 8.666/93, por fatos ocorridos entre 31.07.2009 e 10.12.2010,
em Veranópolis/RS, oportunidades em que os denunciados deixaram de exigir
licitação fora das hipóteses previstas em lei, com o fim de adquirir basalto, em
forma de detritos próprios, para uso da Prefeitura Municipal, junto à EMPRESA
Isidoro Fortunatto Gilioli - ME.
Conforme a vestibular, “os denunciados (...) firmaram contrato de fornecimento de
basalto em forma de detritos próprios com a empresa Isidoro Fortunatto Gilioli – ME, com
inexigibilidade de licitação, fora das hipóteses previstas em lei, o que ocasionou favorecimento
e preferência à empresa em questão, ferindo o princípio constitucional da isonomia e artigo
3º, da Lei 8.666/93”.
A denúncia foi recebida em 24.07.2014 (fl. 336).
Foram apresentadas respostas escritas (fls. 341/353 e 356/369).
O recebimento da denúncia foi ratificado (fl. 372).
Foram ouvidas testemunhas, e interrogados os réus (fl. 390, e CD da fl. 391).
Em memoriais, o Ministério Público, tendo como demonstradas materialidade
e autoria do delito, requer a condenação dos réus, nos termos da denúncia.
A defesa de PAULO CÉSAR, a seu turno, aduz ausência de ilícito penal.
Sustenta inviabilidade de competição no presente caso, e atendimento à norma
do artigo 25, da Lei de Licitações. Alega, ainda, ausência de prejuízo ao erário,
referindo sequer mensurado este pela acusação. Pugna pela improcedência da ação.
A defesa de WALDEMAR sustenta inexistência de crime, ressaltando
publicado, no dia 09.07.2009, o pertinente edital de inexigibilidade de licitação.

24
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

Menciona que a relação é de longa data, não tendo sido o denunciado o responsável
pelo longínquo vínculo. Salienta que a relação apenas teve sua formatação alterada,
em obediência à determinação do Departamento Nacional de Produtos Minerais,
que vetou que o Poder Público realizasse, por si, a mineração. Por tal razão,
explicou, a família proprietária do terreno passou a minerar por conta própria,
inclusive assumindo o passivo ambiental. Argumenta, ainda, ausência de dolo e de
prejuízo ao erário. Postula absolvição.
Os autos foram conclusos para sentença ao Magistrado singular, quando
então, constatada a eleição do réu WALDEMAR DE CARLI para novo mandato
como chefe do Executivo municipal, foi deslocada a competência para esta 4ª
Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Neste grau, em promoção, o Ministério Público se manifestou no sentido do
regular prosseguimento do feito.
Em 22.09.2017, foi por este Relator determinada a intimação das defesas
para ratificação dos atos judiciais praticados na Comarca de origem, sendo que, no
silêncio, restariam assim considerados os atos.
A defesa de WALDEMAR ratificou seus memoriais, restando inerte a
defesa de PAULO CESAR, com o que considerados igualmente ratificados.
É o relatório.

VOTOS

Des. Newton Brasil de Leão (RELATOR)


2. O Ministério Público ofereceu denúncia contra WALDEMAR DE
CARLI, atual Prefeito Municipal de Veranópolis/RS, e PAULO CÉSAR GUZZO,
Prefeito em exercício ao tempo do fato, imputando-lhes a prática do delito do
artigo 89, da Lei nº 8.666/93.
Conforme a acusação, os réus teriam deixado de exigir licitação, fora das hipóteses
elencadas em lei, assim favorecendo a empresa Isidoro Fortunatto Gilioli – ME.
As contratações do município junto à referida empresa, via processos de
inexigibilidade, estão estampadas nos contratos inseridos às fls. 14/16 (Contrato
nº 212/2010), 17/19 (Contrato nº 163/2009), 20/21 (Contrato nº 162/2009), e
199/200 (Contrato 115/2012).
Ainda dos autos, identifico que a relação entre as partes é de longa data,
conforme demonstram os contratos nºs 010/97 (fls. 65/67) e seus aditivos (fls.

25
Newton Brasil de Leão

68/70), 010/2005 (fls. 51/53), 033/2005 (fls. 54/56) e seu aditivo (fl. 657), e
066/2006 (fls. 58/60) e seus aditivos (fls. 59/61).
A relação até o contrato nº 066/2006, contudo, possuía formatação diversa,
eis que a Municipalidade arrendava a pedreira e a área rural em que instalada a
briteira, para aproveitamento de resíduos de basalto na usina de britagem.
Após, em nova fase da contratação, o Município passou a locar a área rural
em que instalada a usina de britagem, bem como a adquirir rocha de basalto para
utilização na usina de britagem do Município.
3. A prova testemunhal mostrou o que segue.
Fabiane Mercalli (CD da fl. 391), assessora jurídica na administração do
prefeito WALDEMAR DE CARLI, referiu, em síntese, que a relação entre as partes
já ocorria há muito anos. Mencionou que, antes do novo formato de contratação,
o Município locava e minerava na área. Contudo, diante de determinação legal, a
partir de 2009 os entes públicos foram proibidos de proceder, por conta própria, à
mineração. Diante disso, informou que o Município passou a locar o espaço e a
adquirir as pedras, mediante dispensa de licitação.
Zenírio Francisco Ciello, Secretário de Obras do Município quando da
administração do Prefeito WALDEMAR, comentou que a exploração do local
era realizada pelo próprio ente público. À época, o Município locava a área do Sr.
Isidoro. Apresentado o documento da fl. 153, referiu terem sido feitos inúmeros
levantamentos de preços, ressaltando que a escolha era a mais viável (CD da fl. 391).
Edgar Gilioli, filho do falecido proprietário da área em questão, Isidoro
Gilioli, referiu ter tomado ciência do fato a partir de sua convocação para depor
perante a autoridade policial. A relação perdurava por cerca de quarenta/cinqüenta
anos, através da locação da área. A partir de 2008/2009, o Município não mais
pôde explorar, por si próprio, a atividade de mineração, conforme determinação
do DNPM. Após orçamentos, foi concluído que possuíam a melhor proposta
de valores, razão pela qual a própria família passou a detonar as pedras para a
Prefeitura, cobrando do Município o custo pela aquisição do material. Com tal
mudança, assumiram não apenas a responsabilidade técnica, bem como o passivo
ambiental, e a responsabilidade civil decorrente da atividade. Soube que outras
empresas seriam consultadas, porém não pode garantir que isso tenha sido feito. O
município passou a arcar com o custo da contratação da empresa, porém deixou de
ter outros, como detonação, licenças, etc. A parceria entre as partes era reiterada,
sendo comum a prestação de serviços por parte de seu genitor ao Município (CD
da fl. 391).

26
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

O acusado WALDEMAR DE CARLI, por sua vez, ressaltou as vantagens


do Município ao proceder à contratação ora em tela, com a empresa da família de
Isidoro Gilioli. Foram procedidos vários cálculos, bem como visitadas as demais
pedreiras do Município, tudo indicando referida contratação como a mais benéfica.
Aclarou, quanto às demais pedreiras, que ou não apresentavam condições de
operação, ou licença ambiental. Destacou a localização vantajosa da empresa de
Isidoro, eis situada a 100 metros do britador do Município. A demanda de brita
era muito alta, pois asfaltaram cerca de 30 quilômetros de vias, bem como doaram
brita para a indústria e o comércio. Aludiu ter agido sempre em prol do interesse
municipal (CD da fl. 391).
O denunciado PAULO GUZZO, em seu depoimento (CD da fl. 391),
destacou que as medidas eram legais, e sempre visaram o melhor para o Município.
Utilizavam muita brita, sendo vantajosa a contratação pelo fato do britador já
operar naquele local. Quanto às questões técnicas relativas ao processo licitatório,
comentou terem agido em conformidade com parecer técnico. Ressaltou a
realização de vários cálculos, com base nos quais identificaram que a manutenção
da relação, já antiga, se fazia como a mais vantajosa ao Município.
Analisada a prova testemunhal, constato confirmou esta que a relação entre
as partes era de longa data, bem como destacou as vantagens, após a proibição do
Município em proceder à mineração por conta própria, da opção pela empresa de
ISIDORO GILIOLI - ME. Dentre as vantagens, foram destacadas, em suma, sua
localização, estrutura, licenças já aprovadas, e melhor preço.
4. Além da prova oral, dos autos destaco os documentos a seguir:
Às fls. 99/102, está inserida a comunicação dirigida ao Prefeito Municipal,
relativa ao processo de inexigibilidade de licitação para compra de rocha basalto
transformada em detritos próprios.
Neste, verifico constar carimbo de aprovação do processo pela assessoria
jurídica do Município, e, ao final, a ratificação do Chefe do Executivo aos seus
termos, e determinação de publicação.
Ainda do aludido documento, constato, dentre as justificativas para a
contratação, o fato da empresa escolhida possuir a pedreira no mesmo local da
usina de britagem do Município, fator que implicaria em menor custo.
À fl. 105, está a cópia da publicação do edital que tornou pública a
contratação da empresa Isidoro Fortunato Gilioli, mediante inexigibilidade de
licitação, para compra de rocha de basalto transformada em detritos próprios.

27
Newton Brasil de Leão

À fl. 124, consta cópia da Solicitação de Licitações para Compra e/ou


Serviço, na qual expressas a inexigibilidade de licitação, e sua respectiva justificativa.
Às fls. 120/123, inseridos documentos de levantamento de valores para a
aquisição de rocha de basalto para utilização na usina de britagem.
Atendendo à solicitação do Município, manifestaram-se as empresas
Basalto Sottili Ltda. (fl. 120), Isidoro Fortunato Gilioli - ME (fl. 121), Darceu José
Canevese – ME (fl. 122), e Airton Marca – ME (fl. 123).
Dentre as propostas, a de menor valor foi aquela apresentada pela empresa
Isidoro Fortunato Gilioli – ME.
5. Com base na prova produzida nos autos, e no caso concreto ora em
exame, entendo que inexistiu dolo na conduta dos gestores públicos denunciados,
o que leva à improcedência da presente ação penal.
Esclareço entendia, esta Câmara, que para configuração do ilícito previsto
no artigo 89, da Lei nº 8.666/1993, era desnecessária comprovação do dolo
específico de causar dano ao erário, bem como o efetivo prejuízo a este, porque tal
delito, até então, era considerado como de mera conduta.
Neste viés, a consumação do crime se dava com o simples fato de não
realizar, o gestor municipal, a devida concorrência pública, fora das hipóteses
previstas em lei. Para sua configuração, portanto, não eram exigidos os elementos
atrás referidos.
Entendia dessa forma, também, o Superior Tribunal de Justiça, cujas
decisões consideravam que o crime do artigo 89, da Lei nº 8.666/93, seria “...
de mera conduta, no qual não se exige dolo específico de fraudar o erário ou causar efetivo
prejuízo à Administração Pública, bastando, para sua configuração, que o agente dispense
licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixe de observar as formalidades pertinentes
à dispensa” (AgRg no Ag 1367169/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma,
julgado em 27/03/2012, DJe 03/04/2012).
Todavia, ao julgar a Ação Penal n° 480/MG, referida Corte acolheu a tese
da imprescindibilidade, para o tipificar do ilícito, do dolo específico de causar dano
ao erário, bem como do efetivo prejuízo. Neste sentido:

“AÇÃO PENAL. EX-PREFEITA. ATUAL CONSELHEIRA


DO  TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. FESTA DE
CARNAVAL.  FRACIONAMENTO ILEGAL DE SERVIÇOS PARA
AFASTAR A  OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO. ARTIGO
89 DA Lei N. 8.666⁄1993.  ORDENAÇÃO E EFETUAÇÃO DE

28
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

DESPESA EM DESCONFORMIDADE COM A LEI. PAGAMENTO


REALIZADO PELA MUNICIPALIDADE ANTES DA  ENTREGA
DO SERVIÇO PELO PARTICULAR CONTRATADO. ARTIGO
1º,  INCISO V, DO DECRETO-LEI N. 201⁄1967 C⁄C OS ARTIGOS
62 E 63 DA LEI  N. 4.320⁄1964. AUSÊNCIA DE FATOS TÍPICOS.
ELEMENTO SUBJETIVO. INSUFICIÊNCIA DO DOLO GENÉRICO.
NECESSIDADE DO DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR DANO AO
ERÁRIO E DA CARACTERIZAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO. Os
crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666⁄1993 (dispensa de licitação
mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º, inciso
V, do Decreto-lei n. 201⁄1967 (pagamento realizado antes da entrega do
respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a
presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização
do efetivo prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal
Federal. Caso em que não estão caracterizados o dolo específico e o dano
ao erário. Ação penal improcedente”  (APn 480/MG, Rel. Ministra
MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/Acórdão Ministro
CESAR ASFOROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 29/032012,
DJe 15/062012).
 
A par disso, as Turmas Criminais do Superior Tribunal de Justiça, integrantes
da Terceira Seção passaram a exigir, para a caracterização do crime de dispensa
irregular de licitação, previsto no artigo 89, da Lei 8.666/93, a comprovação de efetivo
dano ao patrimônio público decorrente da contratação direta, assim decidindo:
 
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993.
DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS
HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI. INÉPCIA DA DENÚNCIA.
ART. 41 DO CPP. DOLO ESPECÍFICO. EFETIVO PREJUÍZO AO
ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE. ATIPICIDADE
DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA DE ARGUMENTOS APTOS A
ENSEJAR A REFORMA DA DECISÃO.
1. O agravo regimental não merece prosperar, porquanto as razões
reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento
assentado na decisão agravada.

29
Newton Brasil de Leão

2. Na hipótese dos autos, o órgão acusatório não descreveu de que forma


o denunciado concorreu para a empreitada criminosa. Também não
demonstrou a maneira pela qual a dispensa da licitação configurou o
crime previsto no art. 89 da Lei n 8.666/1993. Não ficou nítida na inicial
acusatória a intenção dos agentes em lesar os cofres públicos, tampouco
a ocorrência de prejuízo. Em outras palavras, não há na inicial ofertada
pelo Parquet menção à ocorrência de dolo específico ou de dano ao erário.
3. A jurisprudência desta Corte Superior, firmada a partir do julgamento
da APn n. 480/MG, em 29/3/2012, acompanhando o entendimento do
Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (Inq n.
2.482/MG, julgado em 15/9/2011), assevera que a consumação do crime
do art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige a demonstração do dolo específico,
ou seja, a intenção de causar dano ao erário e a efetiva ocorrência de
prejuízo aos cofres públicos. Precedentes.
4. Agravo regimental improvido” (AgRg no AREsp 324.066/MG, Rel.
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em
12/02/2015, DJe 27/02/2015).
“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL. LEI
N. 8.666/93. ART.92. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE
EFETIVO DANO AO ERÁRIO E DO DOLO ESPECÍFICO.
1. Esta Corte Superior entende que a configuração do delito do art. 92 da
Lei n. 8.666/1993 depende da demonstração do dolo específico do agente
e da ocorrência de prejuízo ao erário.
2. Não cabe a este Sodalício examinar suposta afronta a regra
constitucional, ainda que para fins de prequestionamento, sob pena de
usurpação da competência da Corte Suprema.
3. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no REsp
1360216/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado
em 03/03/2015, DJe 11/03/2015).

No mesmo sentido, passou a decidir esta 4ª Câmara:

“REPRESENTAÇÃO CRIMINAL. PREFEITO. PEDIDO


DE ARQUIVAMENTO. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. NÃO
REALIZAÇÃO DO CRIME PREVISTO NO ART. 89, DA LEI Nº

30
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

8.666/93. PREJUÍZO AO ERÁRIO INEXISTENTE. DEFERIMENTO


DA POSTULAÇÃO. Concluiu a Procuradoria de Prefeitos, que, embora
tenha havido dispensa/inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais
para a contratação de serviços de transporte escolar, restou demonstrado
que não houve prejuízo ao erário, de modo que não tipificado o delito do
art. 89, da Lei nº 8.666/93. Diante da postulação de arquivamento do
feito pelo titular da ação penal - art. 129, inc. I, da CF -, corolário lógico
é o acolhimento a teor do art. 3º, inc. I, da Lei nº 8.038/90. DEFERIDO
O PEDIDO DE ARQUIVAMENTO” (Representação Criminal Nº
70065999203, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 20/08/2015).
 
“PROCESSO-CRIME. ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93. DISPENSA
E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES
LEGAIS. Imprescindível a presença do dolo específico de causar dano
ao erário e a demonstração de efetivo prejuízo para a tipificação do delito
previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93. Entendimento alterado pela Corte
Especial do colendo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento da
Ação Penal nº 480/MG. Peça acusatória que não descreve o dolo específico
de causar dano ao erário nem o efetivo prejuízo. Denúncia rejeitada.
Unânime” (Ação Penal - Procedimento Ordinário Nº 70062050224,
Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides
Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 25/06/2015).
 
Aderindo a tal posicionamento, no mesmo sentido passei a decidir, disso
exemplo:

“APELAÇÃO CRIME. LICITAÇÕES. ART. 89, CAPUT, DA LEI Nº


8.666/93. DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES
LEGAIS. PRELIMINARES. AFASTAMENTO. DOLO NÃO
DEMONSTRADO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. SENTENÇA REFORMADA.
ABSOLVIÇÃO IMPOSITIVA. RECURSOS DEFENSIVOS PROVIDOS”
(Apelação Crime Nº 70055141634, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 25/06/2015). 

31
Newton Brasil de Leão

Base nisso, meu alvitre no presente levará em consideração o dolo subjetivo


e o resultado naturalístico, elementos que considero necessários à configuração do
tipo.
Pois bem.
Como atrás já referi, analisados os autos e a prova produzida, não verifico
presente, no caso em tela, o dolo específico do ordenador da despesa em lesar os
cofres públicos, requisito esse, como antes dito, indispensável à caracterização do
crime previsto no artigo 89, da Lei 8.666/93.
Não há dúvida, saliento, quanto à efetiva ocorrência da inexigibilidade de
licitação pelos réus.
Todavia, não verifico intento dos agentes em lesar os cofres públicos.
Pelo contrário.
Após a necessária nova formatação da relação visando à compra pelo
Município de rocha basalto transformada em detritos próprios – já que o ente
público não mais pôde seguir no procedimento de mineração por sua própria
conta –, a decisão dos gestores, em contratar com a empresa Isidoro Gilioli - ME,
foi precedida de levantamento de preços (fls. 120/123, que indicou como melhor
valor o da empresa contratada, isso sem ainda considerar os custos de transportes),
bem como lastreada em aprovação do processo de inexigibilidade pela assessoria
jurídica do Município.
Da mesma forma, houve a devida publicação do edital de inexigibilidade
de licitação, assim conferindo publicidade à contratação, não se tratando de
contratação às escondidas.
6. Acrescento ausente, no meu sentir, também, prejuízo ao erário público.
A proibição de que a mineração fosse praticada pelo Município levou à
necessidade de nova formatação jurídica para a compra de rocha basalto, visando
assim obter brita para as obras municipais. À partir daí, então, foi procedida
consulta de valores junto aos fornecedores desse material, tendo o menor valor
sido apresentado pela empresa contratada.
E nos valores apresentados às fls. 120/123, restou expresso que o material
seria retirado pela Secretaria de Infraestrutura, Urbanismo e Trânsito do Município,
com o que não estava considerado, nesse valor, o transporte do material.
O transporte das pedras até a usina de britagem, portanto, aumentaria ainda
mais o valor do material a ser adquirido.
E, no particular, restou destacado que a empresa Isidoro Gilioli - ME
possuía sua pedreira na mesma gleba de terras em que instalada a usina de britagem

32
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

do Município, razão pela qual a escolha era a melhor opção, eis assim evitado
dispêndio com o custo do transporte.
Além disso, saliento que os autos não apresentam provas de que o material
tenha sido adquirido por valor que não fosse, efetivamente, o de mercado.
Enfim, caso a contratação direta, ainda que indevidamente realizada, tenha
gerado contrato efetivamente cumprido, não existirá crime, visto que não se pune
o “deixar de fazer uso da licitação”, ainda que reprovável.
O que se pune, com base no mais atual entendimento, é a instrumentalização
da contratação direta para gerar lesão ao erário.  
E, no caso, isso não restou demonstrado.
7. Ante ao exposto, julgo improcedente a denúncia, absolvendo os réus,
forte no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Des. Rogério Gesta Leal (REVISOR) – Acompanho o eminente Relator.


Com efeito, não houve apontamento da intenção deliberada de lesar o
erário, o que sequer ocorreu, já que todas as testemunhas ouvidas confirmaram
que o serviço foi prestado e devidamente pago pelo Município, pelo menor valor
dentre os preços orçados.
Os mais recentes julgamentos promovidos pelo Supremo Tribunal Federal não
têm acolhido a tese segundo a qual, para se configurar o crime previsto no art. 89, da
Lei nº 8.666/93, é necessário comprovar prejuízo econômico ao erário. Consoante
disposto pelo Ministro Edson Fachin, na AP 971, de 10.10.2016, a Constituição
elegeu a licitação como instrumento prévio à contratação pelo Poder Público visando
à proteção de interesses que vão além da proteção ao patrimônio público.
Por outro turno, a Suprema Corte, quanto ao elemento subjetivo do tipo,
mantém a compreensão estável no sentido de que, para a configuração da tipicidade
subjetiva, exige-se demonstração da intenção do agente de causar prejuízo ao erário,
não bastando o dolo genérico, consistente na vontade consciente de dispensar ou inexigir
licitação fora das hipóteses legais. Nesse prisma, cumpre citar excerto do julgamento
referido do Pretório Excelso, em que restou assinalada a diferenciação a ser feita
casuisticamente, a fim de diferenciar o administrador inapto do administrador
ímprobo, senão vejamos:
Nas hipóteses em que as ilegalidades não são evidentes, naquelas onde
podem surgir dúvidas razoáveis a respeito da dispensa ou inexigibilidade de
licitação, onde o administrador pode se encontrar diante de um dilema de razoável
sustentação, de uma controvérsia insoluta, e vem a optar por uma direção que,

33
Newton Brasil de Leão

depois acaba por ser pacificamente considerada incorreta, é que se tem adotado
o entendimento de que a configuração da tipicidade subjetiva do delito previsto
no art. 89 da Lei 8.666/93, exige vontade dirigida a lesar o erário. Do contrário,
não haveria qualquer distinção entre a infração meramente administrativa, ligada
à dispensa ou inexigibilidade praticada fora dos parâmetros legais, e o crime
ensejador de pena corporal.
A respeito, trago à colação precedentes daquele sodalício:
Ação Penal. Ex-prefeito municipal. Atual deputado federal. Dispensa irregular
de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade.
Ação penal improcedente. [...] 3. Não se verifica a existência de indícios de vontade
livre e conscientemente dirigida por parte dos denunciados de superarem a necessidade
de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade
consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento
licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento
indevido da licitação. 4. A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº
8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade
livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção
entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento
de ilícitos penais. A ausência de indícios da presença do dolo específico do delito, com
o reconhecimento de atipicidade da conduta dos agentes denunciados, já foi reconhecida
pela Suprema Corte (Inq. nº 2.646/RN, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ayres Britto,
DJe de 7/5/10). 5. Denúncia rejeitada. Ação penal julgada improcedente. (Inq
2616, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2014,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 28-08-2014 PUBLIC 29-08-2014)

PENAL. PROCESSUAL PENAL. PREFEITO. DESMEMBRAMENTO


DO PROCESSO. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE. CRIME DO
ARTIGO 89 DA LEI 8.666/93. DOLO. AUSÊNCIA DE PROVA
ACIMA DE DÚVIDA RAZOÁVEL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
ABSOLVIÇÃO. [...]. 2. O delito do artigo 89 da Lei 8.666/93 exige, além
do dolo genérico – representado pela vontade consciente de dispensar ou
inexigir licitação fora das hipóteses legais -, a configuração do especial fim de
agir, consistente no dolo específico de causar dano ao erário. Desnecessário o
efetivo prejuízo patrimonial à administração pública. 3. Inexistente indicativo
de conluio, ilegalidade manifesta ou desvio de finalidade claramente
perceptível, os atos de gestão praticados pelo Prefeito de acordo com as

34
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

orientações técnicas dos órgãos especializados do Município, sobretudo


em temáticas que envolvem juízo de legalidade - tais como ocorrem
nas plurissignificativas regras de dispensa e inexigibilidade de licitação
-, se qualificam com o predicado de boa-fé presumida. 3.1. No caso, (i)
a ratificação da inexigibilidade de licitação foi realizada de acordo com
a orientação dos órgãos técnicos do Município e a prova dos autos não
rendeu razões que razoavelmente impusessem ao acusado, como gestor
(Prefeito), adoção de conduta contrária às manifestações técnicas; (ii) foi
verificada oscilação de entendimento no âmbito do Tribunal de Contas local
quanto à lisura da inexigibilidade da licitação, assim como o arquivamento,
pelo Ministério Público Cível, de inquérito cível pertinente aos mesmos
fatos; (iii) as provas pessoais produzidas – testemunhas e interrogatório do
acusado, - alinharam-se pela insuficiência de prova da participação dolosa do
Prefeito no crime previsto no artigo 89 da Lei 8.666/93. 4. A presunção de
inocência, princípio cardeal no processo criminal, é tanto uma regra de
prova como um escudo contra a punição prematura. Como regra de prova,
a formulação mais precisa é o standard anglo-saxônico no sentido de que
a responsabilidade criminal deve ser provada acima de qualquer dúvida
razoável (proof beyond a reasonable doubt) e que foi consagrado no art.
66, item 3, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. 5. Ação
penal julgada improcedente. (AP 580, Relator(a):  Min. ROSA WEBER,
Primeira Turma, julgado em 13/12/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
DJe-139 DIVULG 23-06-2017 PUBLIC 26-06-2017) (Grifei)

Destaco que muito embora esta Câmara1, então alinhada ao entendimento


exarado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na Ação Penal nº
480/MG, julgada em 29.03.12, no sentido de que crime capitulado no art. 89, da
Lei nº 8.666/93, é material2, estou aderindo à jurisprudência do Excelso Supremo

1 – Apelação Crime nº 70069719813, Relator: Newton Brasil de Leão, julgada em 09.02.2017, Apelação
Crime nº 70071518336, Relator: Julio Cesar Finger, julgado em 15.12.2016, e Apelação Crime nº
70070171673, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, julgado em 10.11.2016.
2 – “Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa de licitação mediante, no caso concreto,
fracionamento da contratação) e 1º, inciso V, do Decreto-lei n. 201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do
respectivo serviço pelo particular) exigem, para que sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao
erário e da caracterização do efetivo prejuízo.

35
Newton Brasil de Leão

Tribunal Federal, para o efeito de filiar-me ao entendimento de que se trata de


delito formal, sendo dispensável qualquer resultado naturalístico para a sua
consumação. Por outro lado, exige-se o dolo específico, não bastando, tão somente,
o desatendimento formal da licitação. In casu, o elemento subjetivo do tipo não está
comprovado, pois, embora não tenha havido a licitação, tal fato não se originou de
qualquer intenção delituosa.
Ademais, recentemente, acompanhei o voto do Juiz Convocado nesta
Câmara, Dr. Sandro Luz Portal, trazendo à tona a rediscussão do tema, tendo em
vista a posição adotada pelo Supremo:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA AS LICITAÇÕES.


DISPENSA IRREGULAR DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. DECISÃO
CONDENATÓRIA. INSURGÊNCIA DEFENSIVA. AUSÊNCIA DE DOLO
ESPECÍFICO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. NULIDADE DA SENTENÇA.
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. Não há que se falar em omissão quando
a tese defensiva supostamente ignorada foi devidamente enfrentada na decisão
recorrida, mais ainda quando, a despeito de não examinados ponto a ponto os
argumentos ventilados, ressurgir claro do contexto geral da decisão a intenção de
rechaçar todos eles. Preliminar rejeitada. INOBSERVÂNCIA DO ART. 212 DO
CPP. A pontual reforma processual não criou, entre nós, o princípio acusatório
puro, buscando autorizar às partes a perguntar diretamente à testemunha, sem a
intervenção direta do condutor da solenidade, que pode, tanto quanto podia desde
seu princípio, promover à inquirição. DISPENSA DE LICITAÇÃO. Embora
vigore no ordenamento jurídico brasileiro a obrigatoriedade de licitação, o certame
poderá ser dispensado em hipóteses especificas, no que se insere a situação
emergencial. Demonstrado, no caso dos autos, que os apelantes dispensaram de
forma irregular o procedimento licitatório, cientes da obrigatoriedade da licitação.
DOLO ESPECÍFICO. NÃO CONFIGURADO. Para a configuração do crime
previsto no art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93, é indispensável a demonstração do dolo,
consistente na intenção do agente em causar dano à Administração Pública, conforme
entendimento unânime firmado no âmbito dos Tribunais Superiores. Ausente, no caso

Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal. - Caso em que não estão caracterizados o dolo
específico e o dano ao erário. Ação penal improcedente. (APn 480/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA
DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em
29/03/2012, DJe 15/06/2012)”.

36
A exigência do dolo específico para caracterizar o crime licitatório: condições e possibilidades

dos autos, a efetiva intenção dos réus em causar prejuízo ao erário, não basta para a
fundamentar a condenação a mera dispensa formal da licitação. Absolvição que se
impõe. PRELIMINARES REJEITADAS. APELOS DEFENSIVOS PROVIDOS.
(Apelação Crime Nº 70070575634, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Sandro Luz Portal, Julgado em 20/07/2017)
Feito o necessário registro, mas no caso não ficando comprovado o dolo
específico, imperioso o decreto absolutório, nos termos do art. 386, inc. III, do CPP.
Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (PRESIDENTE) - De acordo
com o(a) Relator(a).
DES. ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO - Presidente
- Ação Penal - Procedimento Ordinário nº 70074945049, Comarca de Veranópolis:
“JULGARAM IMPROCEDENTE A DENÚNCIA, ABSOLVENDO OS RÉUS,
FORTE NO ARTIGO 386, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
UNÂNIME.”
Julgador(a) de 1º Grau: ANTONIO LUIZ PEREIRA ROSA

37
LIMITES EXPANSIVOS DA REVISÃO CRIMINAL
E O DIREITO FUNDAMENTAL
A AMPLA DEFESA: UM ESTUDO DE CASO

Rogério Gesta Leal1

I – NOTAS INTRODUTÓRIAS:

Pretendemos tratar neste artigo de alguns aspectos da Ação Revisional


Criminal no sistema jurídico brasileiro, notadamente em face das provocações que
um caso judicial decidido pelo Segundo Grupo de Câmaras Criminais, do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
As particularidades deste caso ensejam reflexões sobre os limites expansivos
da Ação Revisional Criminal diante de incongruências processuais e decisionais
impactantes aos direitos, principalmente, do réu e de sua família, o que a nosso
sentir ocorreu aqui.

1 – Rogério Gesta Leal é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
Doutor em Direito. Prof. Titular da UNISC. Professor da FMP. Professor Visitante da Università Túlio
Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor
da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede
de Direitos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador
Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da
Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira.
Coordenador da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades
brasileiras – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Rogério Gesta Leal

Para cumprir tal desiderato, vamos analisar, rapidamente, o caso concreto


em si de que estamos falando, para em seguida verificar quais as condições e
possibilidades da Revisional Criminal no Brasil, nomeadamente diante do tema da
prescrição punitiva do Estado.

II – DA CONSTITUIÇÃO TERATOLÓGICA DOS FATOS, ATOS E


CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CASO:

Antes do exaurimento da ação penal que condenou o ora autor da presente


revisional,2 fora interposta ação cível indenizatória em face do falecimento da
vítima, julgada improcedente em todas as instâncias, para indenização pelo ato
cometido, em tese, pelo réu.3
O problema é que, após aquelas duas ações mencionadas, outra fora
interposta pelo pai da vitima, a ação civil ex delicto nº 042/1.08.0002221-3, também
voltada à responsabilização do réu pela morte da vítima, porém, pelo fato de que,
nesse processo, ter figurado como autor o pai da vítima, não habilitado no polo
ativo do primeiro processo cível, a nova ação não foi afetada pela coisa julgada do
processo nº 042/1.03.0001021-6. O título executivo judicial que aparelhou esta
ação ex delicto fora justamente a sentença penal condenatória do feito em que fora
declarada a extinção da punibilidade do ora autor da revisional, com base nas
disposições do art. 584, do Código de Processo Civil (a sentença criminal definitiva
é título executivo judicial) e, por isto, tornou despicienda a instrução probatória para
verificar a configuração (ou não) do elemento culposo na conduta empreendida
pelo réu à causa mortis da vítima.

2 – Ação Penal nº 042/2.03.0000034-0, em que o réu, Sr. Ernesto Maurício Carlos Arndt Neto, restou
condenado às penas da prática de homicídio culposo por decorrência de erro médico (artigo 121,
parágrafos 3º e 4º, do Código Penal), o qual teria ocorrido entre 24 e 26 de abril de 1997 no Município
de Canguçu/RS. Da decisão condenatória, o requerente interpôs recurso de apelação, no qual pleiteou a
reforma da sentença para que fosse absolvido em relação à acusação formulada pelo Ministério Público.
Ocorre que, com o trânsito em julgado à acusação, o juízo monocrático extinguiu a punibilidade do
requerente em razão da prescrição da pretensão punitiva, sendo este o estado atual da condição do réu.
3 – Como informa o ilustre Relator desta revisional, antes de o réu ser condenado criminalmente,
havia sido ajuizada ação cível visando a responsabilização do requerente frente à morte da vítima (nº
042/1.03.0001021-6). Essa ação foi julgada improcedente (sentença publicada em 16 de maio de 2005),
aliás, pelo mesmo magistrado que, posteriormente, veio a condenar criminalmente o imputado na ação
penal nº 042/2.03.0000034-0 (fls. 1510-1520, sentença publicada em 30 de abril de 2007).

40
Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo de caso

Estes fatos evidenciam que a ação penal não tem por objeto exclusivamente
a condenação ou a absolvição do réu, mas ela também tem outras funções
extrapenais na medida em que gera título executivo judicial impactante, violento,
por conta da previsão das disposições não só do art. 584, do Código de Processo
Civil, mas também do art. 63, do Código de Processo Penal, que diz a mesma coisa
(transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução,
no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante
legal ou seus herdeiros).
E aí nós criamos essa teratologia, ou seja, o ora autor da revisional é absolvido
da reparação cível (primeira) por provocação da morte da vítima, mas é condenado
pelos mesmos fatos (e pelo mesmo magistrado que proferiu a sentença civil), em
sede de ação penal. A sentença penal condenatória transitada em julgado extingue
a punibilidade do autor, impossibilitando o Estado punir o réu penalmente, mas
manteve-se indene o título executivo judicial gerado por este feito criminal.
Diante destes fatos o que temos de perquirir é se existe, na espécie, para o
autor da revisional, causa legítima de pedir, visando justamente discutir algo que,
em tese, nunca foi discutido: se a prova existente dos autos autoriza a condenação?
Para responder a esta questão impõem-se a demarcação normativa do
instituto da revisão criminal, o que passo a fazer.

III – DAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADES DA AÇÃO


REVISIONAL CRIMINAL:

Podemos dizer que a ação revisional configura oportunidade de resistência


legítima e motivada que se confere ao condenado penalmente contra a coisa julgada
com o fim de reparar injustiças ou erros judiciais.
Temos de lembrar que no sistema jurídico criminal brasileiro o justo
substancial há de prevalecer sobre o justo formal4, e é por tal razão que a revisional
criminal se apresenta como instrumento processual para permitir que o condenado
possa buscar, a qualquer tempo, nos casos expressos em lei, novo exame de processo
findo, a fim de alcançar algum benefício devido.
Lembrando Fernando da Costa Tourinho Filho:

4 – Ver no ponto o trabalho de SOUTO, Miguel Abel. Teorias de la pena y limites al ius punieni desde el
Estado Democrático. Madrid: Dilex, 2012.

41
Rogério Gesta Leal

A atividade jurisdicional, como outra de qualquer setor da atividade humana,


está sujeita a erros. A justiça é feita pelos homens, simples criaturas humanas,
sem o dom da infalibilidade. [...] Aliem-se, ainda, a ilusão, a emoção, a falta de
atenção, o transcurso do tempo, a brevidade da percepção e outras causas. Tudo são
fatores que produzem má apreciação do fato objeto do processo. [...] Não houvesse
órgãos jurisdicionais hierarquicamente superiores para controlar e reexaminar
as decisões provindas dos órgãos inferiores, inegavelmente a situação seria de
descalabro. Mesmo fazendo uso dos meios legais de impugnação da decisão, há um
momento em que impossível se torna outro reexame: quando se esgotam todas as
instâncias. O ato jurisdicional torna-se irrecorrível, e a sentença, justa ou injusta,
é considerada inatacável e irrevogável. Torna-se ela, então, inexpugnável (coisa
julgada formal), impedindo, também, que em outro qualquer juízo se instaure
outro processo sobre o mesmo litígio (coisa julgada material). Por isso, uma
condenação injusta é prejudicial não somente ao réu, mas também à sociedade, que
passa a desacreditar da Justiça. Em virtude dessa situação, desde épocas remotas,
se admitem providências para impugnar a injustiça de uma decisão condenatória.
Hoje, em todos os ordenamentos jurídicos ditos civilizados, a coisa julgada penal,
a despeito de necessária à ordem pública, pode ser atacada diante de uma sentença
condenatória manifestamente injusta. E o remédio jurídico-processual que
permite reabrir-se o processo, em que se cometeu a injustiça, rasgando-se o selo da
intangibilidade, é a revisão criminal.5

Efetivamente estão em rota de confluência – ora de maneira convergente,


ora divergente –, na revisional criminal, a segurança jurídica, decorrente da
imutabilidade da coisa julgada, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição
Federal, e o valor justiça, o que coloca o instituto constitucional não em zona de
relativização absoluta, mas exposto a ponderações normativas (principiológicas e
regratórias), e decisionais, que buscam equilíbrios, por vezes tensos e conjunturais,
às relações sociais.6

5 – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.  Manual de Processo Penal.  São Paulo: Saraiva, 2016,
pp.921/922.
6 – Conforme decidido Recurso Especial nr. 1.342.392 - GO (2012/0186262-8), da Relatoria do
Ministro Jorge Mussi, Superior Tribunal de Justiça, publicada no DJe: 12/08/2014.

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Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo de caso

A matéria é versada nos artigos 621, e seguintes do Código de Processo


Penal atual, e foi inserido no sistema jurídico pátrio pelo Decreto n. 847, de 11
de novembro de 1884, mantido pelo Decreto n. 221, de 20 de novembro de 1894,
de acordo com a Constituição de 1891, objetivando substituir o antigo recurso de
revista.
O Inciso I, do art. 621, do CPP, aduz que pode ser ajuizada a revisional quando
a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos.
Tal dispositivo prevê que são duas as situações em que a sentença condenatória (ou
absolutória imprópria) deve ser contrária. Vejamos cada uma destas hipóteses, nos
limitamos a elas porque o caso sob julgamento aqui se amolda.
a) Sentença condenatória contrária ao texto expresso da lei penal: o que quer
dizer uma contrariedade à lei penal, mas também processual penal, à Constituição
Federal ou a qualquer ato normativo que tenha sido utilizado como fundamento da
sentença condenatória (por exemplo, portarias, às leis completivas empregadas na
aplicação de uma lei penal em branco, etc.). Além disso, também se encaixa nessa
situação aquela sentença penal condenatória que incidir em erro no momento da
subsunção dos fatos à lei penal, isto é, no momento da tipificação legal. Também,
com fundamento nesse primeiro inciso, é possível a revisão criminal sob o
argumento de nulidade, porquanto significa dizer que a decisão judicial é contrária
ao texto expresso da lei.
Importante ressaltarmos que não estarmos diante de recurso quando
falamos de Revisional, visando a uniformização de jurisprudência, mas diante
de verdadeira ação desconstitutiva da coisa julgada formada, ação autônoma de
impugnação, e como tal tem de ser compreendida e recebida, implicando amplo
grau de cognição por parte do Judiciário, notadamente em face das hipóteses que
a autorizam, todas visando reparar injustiça neural que pune indevidamente o réu.
b) Sentença condenatória contrária a evidência dos autos: ou seja, não se trata
de prova nova que chega aos autos após a decisão condenatória, mas aquela que
foi colacionada na instrução do devido processo legal e valorada equivocadamente
pelo decisor monocrático ou colegiado diante do universo de fatos e elementos
carreados à complexidade das ações, omissões e consequências consectárias. Se a
reanálise pela nova ação deste conjunto de dados gera dúvida razoável e fundada
nos julgadores revisionais, impõem-se a sua procedência – parcial ou total. Vai
nesta direção os ensinamentos de Frederico Marques: se duvidas surgirem no espirito
do juiz da revisão, a respeito da justiça ou injustiça da decisão, só lhe restará rescindir o resto

43
Rogério Gesta Leal

condenatório, desde que as duvidas forem de tal porte, que o possa levar a concluir que a
imputação não ficou suficientemente provada.7
É tão patente a importância desta ação que, no que se refere à correlação
entre o pedido e a revisão, a amplitude da matéria a ser examinada é a maior
possível, podendo o tribunal proferir decisão absolutória mesmo quando o pedido
tenha sido de anulação do julgamento ou diminuição da pena. Por outro lado, em
razão da proibição da reformatio in pejus, não pode a decisão da revisional agravar a
situação do condenado, estando vinculado o tribunal ao máximo da pena aplicada
no juízo do processo que se quer revisar.8
Como diz Ada Pellegrini Grinover: Só em casos excepcionais, taxativamente
arrolados pelo legislador, prevê o ordenamento jurídico a possibilidade de desconstituir-se
a coisa julgada por intermédio da ação de revisão criminal e da ação rescisória para o juízo
cível. Isto ocorre quando a sentença se reveste de vícios extremamente graves, que aconselha a
prevalência do valor “justiça” sobre o valor “certeza”. 9
Mesmo no Direito alienígena é esta a percepção hegemônica, como
evidenciam Anne-Marie Larguier e Jean Larguier, ao argumentarem acerca da
necessidade de que o Poder Judiciário tenha o conhecimento de eventuais erros
jurisdicionais, por imperativo de justiça e coerência à verdade dos fatos que se
julgam, sejam eles relacionados à participação dos indivíduos no crime, seja em
relação às condições de seu cometimento ou à identidade dos criminosos.10
O Supremo Tribunal Federal já julgou neste sentido:

O polêmico fraseado “contra a evidencia dos autos” (inc.I, do art.621 do CPP) é


de ser interpretado à luz do conteúdo e alcance do Direito Subjetivo à presunção

7 – MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense,
1965, p.347. Na mesma direção o texto de BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016, p.975.
8 – Ver o texto de TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. São
Paulo: Saraiva, 1999. Ver igualmente os textos de MÉDICE, Sérgio de Oliveira. Revisão Criminal. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Editora, 2012.
9 – GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie,
ações de impugnação, reclamação aos tribunais. GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio
Magalhães, FERNANDES, Antonio Scarance. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.237.
10 – LARGUIER, Anne-Marie; LARGUIER, Jean. Droit Pénal Spécial. Paris: Dalloz, 1996, p.278.

44
Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo de caso

de não culpabilidade, serviente que é (tal direito) dos protovalores constitucionais


da liberdade e da justiça real. São contra a evidencia dos autos tanto o julgamento
condenatório que ignora a prova cabal de inocência quanto o que se louva em
provas insuficientes ou imprecisas ou contraditórias para atestar a culpabilidade
do sujeito que se ache no polo passivo da relação processual penal. Tal interpretação
homenageia a Constituição, com o que se exalta o valor da liberdade e se faz justiça
material, ou, pelo menos, não se perpetra a injustiça de condenar alguém em cima
de provas que tenham na esqualidez o seu real traço distintivo.11

Nesta decisão ainda lembra seu Relator, o Ministro Carlos Ayres Brito, que
a revisão criminal retrata o compromisso do nosso Direito Processual Penal com a verdade
material das decisões judicias e permite ao Poder Judiciário reparar erros ou insuficiência
cognitiva de seus julgados.12
Agora cabe refletirmos sobre o seguinte: nos casos de prescrição da pretensão
punitiva do Estado, é sempre incabível a revisão criminal da sentença condenatória
que não pode mais ser executada? A resposta é negativa. Explicamos, analisando
o caso concreto.

IV – POSSIBILIDADES EXPANSIVAS DO OBJETO DA AÇÃO


REVISIONAL EM FACE DAS CONSEQUÊNCIAS DA SENTENÇA PENAL
CONDENATÓRIA E A AUSÊNCIA DE NEXOS CAUSAIS CONDICIONANTES
COM A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO:

O caso concreto que estamos analisando decorre de condenação na esfera


penal sofrida pelo réu – ora revisando –, em primeiro grau, por homicídio culposo

11 – HC 92.435/SP, relatoria do Min. Carlos Ayres Brito, Primeira Turma, julgado em 25/03/2008.
Lembra o Relator ainda que: Em matéria penal, a densificação do valor constitucional do justo real é o direito
à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art.5, da CF). É dizer: que dispensa qualquer demonstração ou
elemento de prova é a não-culpabilidade (que se presume). O seu oposto (a culpabilidade) é que demanda prova, e
prova inequívoca de protagonização do fato criminoso.
12 – E nem precisamos nos valer, aqui, da lição de Radbruch, ao dizer que: O conflito entre a justiça e a
segurança jurídica pode ser resolvido de modo que o direito positivo, assegurado através de um estatuto e do poder,
tem então a precedência, mesmo quando seu conteúdo for injusto e inconveniente, a não ser que a contradição da lei
positiva em relação à justiça atinja uma medida tão intolerável que a lei, enquanto “direito injusto”, tem que ceder à
justiça. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Antonio Amado, 1979, p.411.

45
Rogério Gesta Leal

em face de erro médico, e pelo fato de que foi impossibilitado de debater esta
decisão no segundo grau por causa da prescrição da pretensão punitiva do Estado,
já declarada pelo decisor monocrático prolator da sentença vergastada. E quais os
interesses do réu para que houvesse o julgamento na instância superior dos fatos
denunciados contra si? Dois: (i) a de ser ver inocentado, pelos argumentos sempre
sustentados de que nunca houve prova de sua autoria no crime que lhe foi imputado;
(ii) a de não responder por reparação de danos causados pela morte da vítima.
Ambas as pretensões do revisando são legítimas sob o ponto de vista
jurídico e moral, não só porque tem convicção de que não matou ninguém – em
especial na condição de médico que tem um nome e imagem a zelar, mesmo que
agora postumamente, por seus familiares –, mas porque inexistem provas que lhe
incrimine. Não tendo sido o autor da morte da vítima – esta sua tese sempre –, nada
há que indenizar a quem quer que seja. Não há causa lícita – somente provável –
que justifique estar respondendo por ação ex delicto promovida pelo pai da vítima.
A prescrição da pretensão punitiva do Estado frente ao réu, por conta
daquela condenação criminal em primeiro grau, em nada interfere naquelas
pretensões referidas. Persistiu o revisando com sua reputação e honra manchadas
por juízo de mérito causal que lhe imputou crime de homicídio, publicizado a
todos os cantos da pequena comunidade de Canguçu, causando-lhe (e a sua
família) dissabores aflitivos por mais de vinte anos, vindo a falecer com esta
pecha, quiçá uma das causas do definhamento pessoal e orgânico sofrido. Não
seriam estas razões suficientes para justificar ação judicial própria que proporcione
ao revisando o enfrentamento minucioso do erro in judicando indicado (decisão
contrária as evidências dos autos)?
Ainda, esta mesma decisão judicial monocrática condenatória gerou
título judicial penal exequível, de forma direta e imediata, inadmitindo qualquer
irresignação por parte do revisando, pois consectário impositivo do sistema jurídico
pátrio, em nada tendo a ver com a prescrição declarada.13 Título judicial este que

13 – Esta ação ex delicto ajuizada na esfera cível contra o revisando, requerendo a indenização de dano
moral e material juridicamente reconhecido na sentença condenatória vergastada, repetimos, tem
como causa de pedir tão somente o ilícito criminal reconhecido naquela decisão jurisdicional transitada
em julgado, a qual, por consequência, faz coisa julgada no direito civil. Esta ação civil torna certa a ação
de indenizar de que trata o art. 91, I, do CP, passando para o juízo cível tão somente a liquidação e a
execução da sentença, não sendo possível instrução probatória relacionada as causas que constituíram
o titulo executivo penal.

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Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo de caso

está, pelos argumentos deduzidos na pretensão do revisando, inquinado de vício


absoluto, pois alicerçado sobre elementos contrários a evidência dos autos que lhe
deram origem. Por isto busca na revisão desconstituir a decisão condenatória que deu
vida a ação ex delicto, a qual, por sua vez, ameaça bem jurídico constitucionalmente
protegido que é o seu patrimônio e de sua família.
E mais, reza o artigo 627, do CPP, que a absolvição do beneficiário da
revisão implicará o restabelecimento de todos os direitos perdidos em virtude da
condenação; ou seja, desaparecem com a decisão que julgar procedente o pedido de
revisão criminal a pena, a medida de segurança, os efeitos extrapenais da decisão, a
inscrição do nome do réu no rol dos culpados.14
O que não podemos mais discutir em sede de revisão, portanto, é tão somente
a pretensão punitiva do Estado, esta sim prescrita, permanecendo indene o direito
de revisar se houve erro judiciário no que diz com a prova que vai de encontro as
evidências dos autos, pois, se assim o for, isto vai atingir letalmente o título jurídico
penal que conforta a ação civil ex delicto em andamento, no mínimo.
A contrário senso estaríamos sufragando a hipótese de criar situação que
Alexy chama de injustiça extrema, pois atribuiríamos à ação revisional proposta
redução tamanha de alcance que isto ultrapassaria determinado limiar de incorreção
ou injustiça que, inexoravelmente, faria com que este dispositivo perdesse seu caráter
jurídico teleológico e fundante, colapsando de certa forma o próprio sistema jurídico,
pois persistiriam os danos causados pelas incorreções ou injustiças provocadas
gerando espirais contaminantes para além dos bens jurídicos em jogo (como no caso
dos autos em que decisão penal condenatória está a afetar o patrimônio do réu).15
Como diz Alexandre Travessoni – tratando desta tese de Alexy:

Segundo Alexy, vale a máxima segundo a qual “quanto mais extrema for uma
injustiça, mais seguro é o seu conhecimento” (ALEXY, 1992a, p. 91). Isso significa,
portanto, que quanto mais extrema for uma injustiça, mais evidente é o fato de ela
ser uma injustiça extrema. Para Alexy, essa máxima não acaba completamente

14 – Ver o texto de ISHIDA, Válter Kenji. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2010.
15 – Ver os textos: (a) ALEXY, Robert. Defesa de um Conceito de Direito Não-positivista. Tradução A. T. G.
Trivisonno. In: ALEXY, R.; TRIVISONNO, A. T. G. (Org.). Teoria Discursiva do Direito. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2014, p.275; (b) ALEXY, Robert. On the Concept and the Nature of Law. Ratio
Juris, Oxford, v. 21, 2008, p.282 e (d) ALEXY, Robert. The Dual Nature of Law. Ratio Juris, Oxford, V.
23, 2010, P.175.

47
Rogério Gesta Leal

com a incerteza ligada ao argumento da injustiça, mas a minimiza. E uma perda


mínima de segurança jurídica é aceitável, pois compatível com algumas incertezas
geralmente aceitas no âmbito do direito (ALEXY, 1992a, p. 91). Além disso,
afirma Alexy, essa perda mínima de segurança jurídica seria compensada pelo
ganho em termos de correção material que se obtém ao se evitar uma injustiça ex-
trema (ALEXY, 1992a, p. 91 s.). Segundo Alexy, a segurança jurídica é um valor
importante para o direito, mas não o único (ALEXY, 1992a, p. 91).16

É disto que se trata aqui, impondo-se o reconhecimento da ação revisional


para viabilizar o exercício do Direito Fundamental à ampla defesa, observando-se
aqui argumentos de legalidade autoritativa e eficácia social, sem apelarmos para
justificativas metafísicas ou jusnaturalistas.
Em face de todo o exposto, votamos para conhecer da presente Ação
Revisional, proporcionando que os autos recebessem a análise probatória de
mérito, o que restou consumado no julgamento pela maioria dos Desembargadores
que compuseram a sessão.

Bibliografia:
ALEXY, Robert. Defesa de um Conceito de Direito Não-positivista. Tradução A.
T. G. Trivisonno. In: ALEXY, R.; TRIVISONNO, A. T. G. (Org.). Teoria Discursiva
do Direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
----. ALEXY, Robert. The Dual Nature of Law. Ratio Juris, Oxford, V. 23, 2010.
----. On the Concept and the Nature of Law. Ratio Juris, Oxford, v. 21, 2008.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Recursos no processo penal: teoria geral dos
recursos, recursos em espécie, ações de impugnação, reclamação aos tribunais. GRINOVER,
Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, FERNANDES, Antonio
Scarance. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

16 – TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. O que significa “a injustiça extrema não é direito”?
Crítica e reconstrução do argumento da injustiça no não-positivismo inclusivo de Robert Alexy. In Revista
Estudos Jurídicos, Joaçaba, v. 16, n. 3, p. 97-122, Edição Especial 2015, p. 100. Grifos nossos. Por tais
argumentos e muitos outros apresentados no texto do autor, ele refere que se o princípio da segurança
jurídica exige o cumprimento das normas do direito positivo, o princípio da correção moral ou justiça
(de primeira ordem) exige que estas mesmas normas não sejam injustas. (p.114)

48
Limites expansivos da revisão criminal e o direito fundamental a ampla defesa: um estudo de caso

ISHIDA, Válter Kenji. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2010.


LARGUIER, Anne-Marie; LARGUIER, Jean. Droit Pénal Spécial. Paris:
Dalloz, 1996.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. IV. Rio
de Janeiro: Forense, 1965.
MÉDICE, Sérgio de Oliveira. Revisão Criminal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris Editora, 2012.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Antonio Amado, 1979.
SOUTO, Miguel Abel. Teorias de la pena y limites al ius punieni desde el Eestado
Democrático. Madrid: Dilex, 2012.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado.
São Paulo: Saraiva, 1999.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.  Manual de Processo Penal.  São
Paulo: Saraiva, 2016.
TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. O que significa “a injustiça
extrema não é direito”? Crítica e reconstrução do argumento da injustiça no não-positivismo
inclusivo de Robert Alexy. In Revista Estudos Jurídicos, Joaçaba, v. 16, n. 3, p. 97-122,
Edição Especial 2015.

49
EXIGÊNCIA DA COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO
ECONÔMICO PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DO
ARTIGO 89 DA LEI DE LICITAÇÕES:
ANÁLISE DA INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
CONFERIDA PELA JURISPRUDÊNCIA

Julio Cesar Finger1


Douglas Rauber Spuldaro2

INTRODUÇÃO

A Lei 8.666 de 1993, atendendo aos preceitos constitucionais e aos reclamos


da sociedade3, foi editada com o propósito de estabelecer o regramento aplicável
às contratações realizadas pela Administração Pública brasileira. Atende, nesse
sentir, à norma insculpida no art. 37, XXI, da Constituição Federal da República,
que erigiu à condição de princípio a obrigatoriedade de o Estado utilizar o processo
licitatório, em regra, como única forma de contratação. A razão disso é clara:
busca, por meio do processo licitatório, garantir não só a proposta mais vantajosa

1 – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito do


Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
2 – Assessor de Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Mestre em
Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
3 – “Deve considerar-se que as condutas reprimidas apresentam uma danosidade e um grau de
reprovabilidade valorados como de extrema gravidade. A opção legislativa retratou uma vocação da
sociedade.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.
Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 450.
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

ao ente público, como também a isonomia entre os possíveis contratantes4 com


uma Administração que é pautada pelos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, na esteira dos artigos 37, caput, da Constituição
Federal5 e 3º da Lei de Licitações6.
Admite, no entanto, em casos previstos na Lei, que haja dispensa ou
inexigibilidade do procedimento, permitindo-se a contratação direta. Segundo
remansoso entendimento doutrinário, os casos de contratação direta sem o uso
do certame público são aqueles exclusivos dos artigos 17, incisos I e II, 24 e 25 da
Lei 8.666/93, por inviabilidade de competição ou por escolha e conveniência do
legislador. Não quis o legislador dar ao administrador margem para o arbítrio e isso
se mostra claro não só em razão do rol taxativo de hipóteses previstas em relação
à dispensa de licitação - em que há um abrandamento da regra do procedimento
público - como pelas exíguas hipóteses em que, pela lógica, se considera inexigível,
em vista da ausência de pressuposto fático, lógico ou jurídico. Impôs, ainda, a
obrigatória justificação7 para os casos em que o certame público não é adotado8.

4 – O procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta


mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Visa propiciar iguais oportunidades aos que desejam
contratar com o Poder Público, dentro dos padrões previamente estabelecidos pela Administração, e
atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos. MEIRELLES, Hely Lopes.
Licitação e Contrato Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 25.
5 – Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  [...] (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
19, de 1998)
6 – Art. 3o  A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a
seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional
sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade,
da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da
vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
7 – Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as
situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto
no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à
autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como
condição para a eficácia dos atos.  (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005)
8 – Previu o legislador, inclusive, que o descumprimento das formalidades caracterizaria crime, tal
como descreve o tipo do artigo 89 da Lei 8.666/93 in fine, o que não passa incólume às críticas da
doutrina, a exemplo do que registrou Cezar Roberto Bitencourt no Boletim IBCCrim - Ano 19 - Nº
225 - AGOSTO - 2011 - p. 3-4.

52
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

Não é estranho notar, nesse caso, que a própria Lei 8.666 de 1993 tenha inaugurado
a Seção III dispondo, no artigo 89, se tratar de crime a conduta de Dispensar ou
inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades
pertinentes à dispensa ou inexigibilidade.
A previsão normativa, contudo, tem sido objeto de crítica ao longo do
período da sua vigência, em especial daqueles que buscam salvaguardar a posição
de um administrador incauto, em detrimento daquele efetivamente direcionado
a evitar o procedimento licitatório. Busca a referida compreensão, endossada
atualmente pela doutrina e jurisprudência predominante, restringir o alcance
do artigo 89 da Lei 8.666, ao requerer a prova de dolo específico na conduta da
dispensa e a produção de resultado danoso (econômico) à Administração. Diante
disso, o objeto do presente é apresentar a evolução dessa compreensão, em especial
pela análise dos precedentes paradigmáticos que infirmaram o atual entendimento
e crítica doutrinária correspondente.

CARACTERÍSTICAS DO TIPO DO ARTIGO 89 DA LEI 8.666 DE 1993

A conduta do artigo 89 da Lei 8.666 vem demonstrando, na atualidade,


que está ligada, muitas vezes, às práticas corruptivas9. Trata-se de casos em que o
administrador público, por meio de expedientes escusos, maquia os instrumentos
do certame, com o fim de direcionar a contratação pública, no mais das vezes
superfaturando o objeto com o fim de locupletamento, próprio e/ou de terceiros,
ou mesmo para um aparentemente menos gravoso favorecimento pessoal que
pode, no futuro, ser ou não objeto de troca, e.g., financiamento de campanha
política. A dispensa irregular, não obstante, é passível de gerar responsabilização,
eventualmente, por improbidade administrativa, na esteira da Lei 8.429 de 1992,
assemelhando-se, ainda, com outras infrações também tipificadas, tais como as
disposições do art. 1º do Decreto-lei 201/67, quando praticadas pelos alcaides, e
crimes contra a Administração, como o peculato e a corrupção ativa e passiva. É
conduta vedada pelo ordenamento - por motivos que serão a seguir discutidos -, no
âmbito administrativo, civil e criminal.

9 – RITT, C.F.; LEAL, R.G. Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações
no sistema jurídico brasileiro? In: Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul: dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2015, p. 109-129.

53
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

A previsão criminal é norma penal em branco imprópria, homovitelina,


complementada pelas hipóteses contidas nos artigos 17, I e II, 24 e 25 da Lei
8.666/9310. É tipo misto-alternativo, que comporta três hipóteses distintas:
dispensar ou inexigir licitação, fora das hipóteses previstas na Lei, ou deixar
de observar as formalidades relativas à dispensa ou inexigibilidade do certame,
sendo as duas primeiras comissivas e a terceira omissiva11. Estabelece, segundo
se extrai da leitura literal do tipo, um crime formal, de mera conduta, que se
consuma com simples prática do verbo nuclear, sem qualquer exigência da
comprovação de prejuízo, ponto a ser discutido no presente. Trata-se, inclusive,
do que originalmente descrevia a doutrina especializada, a exemplo de Nucci12, ao
classificá-lo como crime formal, de forma livre, comissivo, instantâneo, de perigo
abstrato, unissubsistente ou plurissubsistente, hipótese em que admite tentativa.
Bastaria, nessa linha, que houvesse o dolo genérico13, não se fazendo “necessário
que a Administração Pública venha a padecer de algum prejuízo concreto”14.
Contudo, como se verá no presente, a doutrina e jurisprudência passaram a

10 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed.
Rio de São Paulo: Dialética, 2012, p. 1.034.
11 – PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contratações da administração
pública. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 529.
12 – NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: Editora RT, 2007, p. 739.
13 – Assim, aliás, foi o que destacou o Ministro Felix Fischer no HC 94.720/PE, em 2008: “II  -  A
simples leitura do caput do art. 89 da Lei nº 8.666/93 não possibilita qualquer conclusão no sentido
de que para a configuração do   tipo   penal   ali   previsto exige-se qualquer elemento de caráter
subjetivo  diverso do dolo. Ou seja, dito em outras palavras, não há qualquer  motivo para se concluir
que o tipo em foco exige um ânimo, uma  tendência,  uma  finalidade dotada de especificidade própria,
e isso,  é  importante  destacar,  não  decorre  do  simples fato de a redação  do  art. 89, caput, da Lei
nº 8.666/93, ao contrário do que se  passa,  apenas à título exemplificativo, com a do art. 90 da Lei
nº  8.666/93, não contemplar qualquer expressão como "com o fim de", "com  o  intuito  de",  "a fim
de", etc. Aqui, o desvalor da ação se esgota no dolo, é dizer, a finalidade, a razão que moveu o agente
ao dispensar   ou   inexigir   a licitação fora das hipóteses previstas em lei é de análise desnecessária
(Precedente). III  - Ainda, o crime se perfaz, com a mera dispensa ou afirmação de que  a  licitação é
inexigível, fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente consciência dessa circunstância. Isto é,
não se exige qualquer  resultado  naturalístico  para  a  sua consumação (efetivo prejuízo para o erário,
por exemplo) (Precedente).”
14 – COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito Penal das Licitações: comentários aos arts. 89 a 99 da Lei
n. 8.666, de 21-6-1993. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 20.

54
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

construir um entendimento mais restritivo15, a indicar não ser suficiente a simples


dispensa ou inexigibilidade em desacordo com a lei16. Nesse sentir, começou a
se elaborar, inicialmente na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a
ideia de que a conduta depende da intenção (dolo17) de produção de resultado
danoso ao Erário (Ação Penal 214/SP, entre outras), tendo como “destinatário o
administrador e adjucatários desonestos e não aos supostamente inábeis”18. No
Supremo Tribunal Federal também se enraizou o referido entendimento no sentido
de “exigir o prejuízo ao erário e a finalidade específica de favorecimento indevido
como necessários à adequação típica”19. A compreensão é endossada pela doutrina
especializada mais atual, ao destacar que “não se pune a mera conduta, ainda que
reprovável, de deixar de adotar a licitação. O que se pune é a instrumentalização da
contratação direta para gerar lesão patrimonial à Administração”20.
Pois bem.
A doutrina21 e jurisprudência22 atualmente dominantes entendem que
a previsão criminal contida no artigo 89 da Lei de Licitações é ação que exige
dolo direto e específico, referindo que “a tipificação apenas pode ocorrer quando
o sujeito adotou a conduta consciente de promover a contratação direta sabendo
ou tendo condições de saber que a licitação era obrigatória”23. Nesse sentir, além
de descumprir a formalidade, o agente deve ter consciência que a ação é violadora

15 – LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência legal de licitação (art. 89 da Lei
8.666/1993). In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Ano 21. Vol. 104. out-
set/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 14-29.
16 – STF, Ap 683/MA, Relator Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, Julgamento em 09/08/2016: “O
tipo do art. 89 da Lei 8.666/93 não menciona prejuízo à Administração ou finalidade específica. Esses
requisitos são agregados por construção doutrinária e jurisprudencial.”
17 – Destaca-se, no ponto, que os crimes previstos na  Lei 8.666/93 não admitem modalidade culposa.
18 – STJ, Ap 214/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Corte Especial, DJE 01/07/2008.
19 – STF, Inquérito 2.616/SP, Relator Ministro Dias Toffoli, Plenário, julgamento em 29/05/2014.
20 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª ed.
Rio de São Paulo: Dialética, 2012, p. 1034.
21 – “É imperioso, para a caracterização do crime, que o agente atue voltado a obter um outro resultado,
efetivamente reprovável e grave, além da contratação direta.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à
lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed. Rio de São Paulo: Dialética, 2014. p. 1173.
22 – STF, Inq 2.482/MG, Red. Min. Luiz Fux, Plenário, DJE 15/09/2011.
23 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16ª ed.
Rio de São Paulo: Dialética, 2014. p. 1175.

55
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

da lei24. Esse dolo25, segundo entendimento pacificado em precedentes tanto do


Supremo Tribunal Federal como do Superior Tribunal de Justiça, é aquele de causar
dano26, prevalecendo a compreensão de que se busca assegurar a incolumidade
patrimonial27.
O ponto de destaque, todavia, é verificar se há exigência de realização desse
resultado  - a assemelhar o tipo a um crime material28 - e, mais, se ele precisa ser
comprovado. Nada obstante, cumpre indagar se a infração se aperfeiçoa tão somente
com a ocorrência de prejuízo patrimonial à Administração, dado que é objetivo
do processo licitatório não só garantir a melhor proposta para a Administração,
tal como disciplina o artigo 3º da Lei 8.666/93, senão também lograr cumprir
com os princípios da isonomia e da moralidade administrativa. Destaca-se, nesse
sentir, que a objetividade jurídica do tipo penal em comento é, segundo posição
amplamente majoritária na doutrina, não só a incolumidade patrimonial como
também a isonomia e a moralidade administrativa29.

24 – “Talvez seja este o crime que maior preocupação traga ao administrador público porque diz
respeito a assuntos absolutamente controvertidos, que dependem em grande parte de interpretação de
questões não pacíficas. Assim, só pode ser aplicável à hipótese a clara e dolosa à lei.” BARROS, Márcio
dos Santos. 502 comentários sobre licitações e contratos. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
NDJ, 2011. p. 507.
25 – “É o dolo, correspondendo ao conhecimento, pelo agente, de que a dispensa ou inexigibilidade
da licitação se haverá de efetivar em desacordo com a lei, ou, ainda que não o seja, de que se as estão
processando com menosprezo das formalidades que a lei exige para tanto, tendo o agente a vontade
livre de praticar as ações de acordo com a figura encartada no dispositivo.” PEREIRA JÚNIOR, Jessé
Torres. Comentários à lei de licitações e contratações da administração pública. Rio de Janeiro:
Renovar, 1994. p. 530.
26 – STF, Ap 559/PE, Rel. Ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, Julgamento em 26/08/2014: A incidência
da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento
subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que
se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que
revelam o cometimento de ilícitos penais.
27 – STJ, Ap 261/PB, Rel. Ministra Eliana Calmon, Corte Especial, DJE 02/03/2005: “É penalmente
irrelevante a conduta formal de alguém que desatente as formalidades da licitação, quando não há
conseqüência patrimonial para o órgão público.”
28 – Nesse sentido, por exemplo, foi o que destacou a Ação Penal 214/SP, ao registrar que “o delito é
de resultado, reclamando prejuízo ao erário”.
29 – Nesse sentido, PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contratações
da administração pública. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 529; COSTA JÚNIOR, Paulo José.

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Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

VIRAGEM JURISPRUDENCIAL. DO DOLO GERAL AO


ESPECÍFICO. DO CRIME FORMAL AO MATERIAL.

Segundo entendimento da doutrina especializada, a exemplo de Marçal


Justen Filho em Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, em edições
publicadas tanto em 199330 como em 201231, a criminalização “volta-se contra
as condutas em que o agente atuou visando obter especificamente o resultado
reprovável”, porém, “não é suficiente o mero resultado danoso - aliás, o dano nem
é necessário para configurar-se a punibilidade”. Essa leitura se deveu, ao que tudo
indica, à natureza formal do crime em comento, que dispensa a ocorrência de
resultado naturalístico32, muito embora ele possa ocorrer. Prevalecia, nesse sentido,
o entendimento de que era exigível tão somente o dolo para a caracterização do
crime, consumando-se a infração com a dispensa irregular em uma das suas três
formas, quais sejam, dispensar ou inexigir licitação, fora das hipóteses previstas na
Lei, ou deixar de observar as formalidades relativas à dispensa ou inexigibilidade
do certame, com o intuito de obter resultado reprovável.
Entretanto, como destacado antes, é possível observar que os Tribunais
passaram a dar à previsão normativa interpretação mais restritiva. No entendimento
firmado junto ao Pretório Excelso, observa-se claramente que o dolo específico e
a comprovação do prejuízo passaram a ser exigidos mais claramente a partir do
Inquérito 2.482/MG, julgado no ano de 2011.
Na oportunidade, houve uma mudança no entendimento então corrente,
capitaneado, no caso concreto, pelo Ministro Luiz Fux, após ascender à Corte
Suprema, ao registrar que os crimes da Lei de Licitações “não são delitos de mera
conduta nem delitos formais, são delitos de resultado” e que, sem prejuízo, é
possível “verificar-se a ausência de um dos elementos necessários do tipo, que é o

Direito Penal das Licitações: comentários aos arts. 89 a 99 da Lei n. 8.666, de 21-6-1993. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 19; entre outros.
30 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. Rio de
Janeiro: Aide, 1993, p. 451.
31 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed.
Rio de São Paulo: Dialética, 2012, p. 1.031.
32 – Nesse sentido, aponta Nucci, ao referir que o crime “não exige resultado naturalístico para a
consumação, consistente em efetivo prejuízo para a Administração”. NUCCI, Guilherme de Souza.
Leis penais e processuais penais comentadas. 9ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
p. 562.

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Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

dolo”33. Destacou o Ministro Toffoli, naquele caso, com pretensão de justificar a


necessidade de demonstração de prejuízo, que a peça acusatória deveria descrever
a vantagem obtida, a tom do disposto no artigo 99 da Lei 8.66634. O Ministro
Ricardo Lewandowski, por seu turno, indicou que “o crime do artigo 89 da Lei
de Licitações não é um crime formal ou de mera conduta, exige o dolo” e que,
naquele caso, não “ficou evidenciado o prejuízo ao erário”. Prevalece, desde então,
junto ao Supremo Tribunal Federal, que o tipo pressupõe, “além do dolo simples
(vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio
procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos
por meio do afastamento indevido da licitação” (Inquérito 2.616/SP)35.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, identifica-se mais claramente
a exigência do dolo específico e da comprovação do prejuízo a partir da Ação
Penal 480/MG, julgada pela Corte Especial em 2012. Até então, como destaca a
própria decisão, prevalecia nas Turmas que bastava o dolo genérico36. A partir dela,
todavia, se firmou a compreensão que evoluiu para a exigência de comprovação do
dolo de causar prejuízo à Administração, além da correspondente prova37.

33 – Lembre-se, aqui, que o Ministro Luiz Fux já mantinha o entendimento sobre a exigência de
comprovação do dolo de causar prejuízo desde pelo menos o ano de 2008, quando ainda estava
vinculado ao Superior Tribunal de Justiça, pelo que se denota da leitura da Ação Penal 214/SP, acima
destacada.
34 – Art. 99.  A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia
fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem
efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente. § 1o   Os índices a que se refere este
artigo não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor
do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. § 2o   O produto da
arrecadação da multa reverterá, conforme o caso, à Fazenda Federal, Distrital, Estadual ou Municipal.
35 – STF, Inquérito 2.616/SP, Relator Ministro Dias Toffoli, Plenário, julgamento em 29/05/2014.
36 – Refere o Relator: “Não desconheço, por exemplo, a atual orientação da Quinta e da Sexta Turmas
desta Corte, no sentido de dispensar a presença do dolo específico, bastando o genérico.”
37 – Nesse sentido, registra o Habeas corpus nº 190.782/BA, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, DJe
17/12/2012: “Inicialmente, ressalte-se que a controvérsia relativa à caracterização do delito do art.
89 da Lei n.º 8.666/93 tem sido objeto de divergência tanto na doutrina quanto na jurisprudência,
orientando-se este Tribunal Superior, inicialmente, no sentido de que o ilícito em questão constituiria
crime de mera conduta, sendo dispensável, para a sua configuração, a existência do dolo específico
de fraudar o erário ou do efeito prejuízo à Administração Pública. Assim, entendia esta Corte que
era suficiente, para a caracterização desse delito, que o agente dispensasse licitação fora das hipóteses
previstas em lei ou deixasse de observar as formalidades pertinentes à dispensa. Nesse sentido: AgRg no
AG 1.367.169/PR, 5.ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe de 03/04/2012; sem grifos no original;

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Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

No referido julgamento, venceu a tese sustentada pelo Ministro Cesar Asfor


Rocha, que destacou a necessidade de estar caracterizado “não só o dolo específico
de causar dano ao erário, mas também o próprio dano”38. Defendeu-se, naquela
oportunidade, em giro diverso do que vinha sendo julgado nas Turmas, a exigência
do dolo específico, a registrar, como se destacou anteriormente, a diferença da
conduta criminalizada daquela dos administradores inábeis, o que, segundo
compreendemos (ou aqui se vai defender), está adequado à interpretação restritiva
do tipo. Referiu, no ponto, que a conduta do artigo 89 tem por objetivo “apenar
os administradores efetivamente desonestos, mal intencionados e criminosos,
cabendo ao órgão acusador comprovar o dolo específico do acusado de causar
danos aos bens públicos.”39
No mesmo julgamento, o Ministro Felix Fischer, em direção contrária
ao que havia decidido anteriormente40, considerando as peculiaridades do caso
concreto41, afastou a tipicidade, por reputar não ter ocorrido prova de ocorrência de
prejuízo, seja econômico, seja quanto à isonomia. Curioso observar, todavia, que já
naquela oportunidade se verificou que, apesar de ser exigido o dolo dirigido ao fim
de causar dano ao erário, a prova da ocorrência do prejuízo seria difícil, sobremodo
porque ele não é estritamente econômico. Segundo destacou o Ministro Teori
Zavascki, então componente daquela Corte, “O elemento caracterizador do dolo
é o de afastar a competição licitatória com o propósito de favorecer determinado

HC 159.896/RN, 6.ª Turma, Rel. Min. VASCO DELLA GIUSTINA (Desembargador convocado
do TJ/RS), DJe de 15/06/2011; HC 171.152/SP, 6.ª Turma, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe de
11/10/2010. Contudo, em recente julgado, a Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, ao
analisar hipótese semelhante à dos autos, assentou que, para a configuração do delito previsto no art.
89 da Lei de Licitações, é necessário demonstrar o dano causado ao erário, bem assim o dolo específico
em produzir o resultado lesivo.”
38 – STJ, Ap 480/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Red. Min. Cesar Asfor Rocha,
Corte Especial, DJE 29/03/2012, p. 35.
39 – Idem, ibidem. p. 36.
40 – Ver nota 13.
41 – O Ministro registra no seu voto: “[...] Desta forma, ressalvando o meu entendimento acerca do
tema, e em atenção ao decidido pelo Plenário da e. Suprema Corte nos autos da Ação Penal nº 527/
PR, bem como por esta e. Corte Especial nos autos das Ações Penais nº 261/PB, 375/AP e 330/SP,
anteriormente mencionadas, e repito, considerando as peculiaridades deste caso, peço vênia à em.
Ministra relatora, para divergir parcialmente, julgando improcedente a denúncia.”

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Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

fornecedor [...] ainda que este ofereça preço de mercado (ou seja, ainda que não se
comprove o dano material).”42
A partir desse julgado, todavia, firmou-se o entendimento da exigência da
comprovação do prejuízo, como dissemos alhures, referindo-se expressamente, em
julgados ainda de 2017, que a ausência de demonstração do elemento subjetivo
específico e da ocorrência de resultado naturalístico, consistente no prejuízo ao
erário, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta43. A compreensão ainda
dominante no Superior Tribunal de Justiça44 invoca precedentes do Supremo
Tribunal Federal, no sentido tanto do Inquérito 2.616/SP como do paradigmático
Inquérito 2.482/MG, acima destacados.
Da leitura dos precedentes, é possível observar que o Supremo Tribunal
Federal firmou o entendimento da exigibilidade da prova do dolo específico para a
caracterização do crime do artigo 89 da Lei de Licitações. Por outro lado, no que diz
respeito à prova do prejuízo, há divergência entre a Primeira e a Segunda Turmas.
Ao passo que a Segunda Turma45 vem destacando a exigência de comprovação
do prejuízo, a Primeira Turma46 é menos assertiva, apontando, tão somente, a
exigência de prova do dolo específico de causar prejuízo. O Superior Tribunal de
Justiça, por sua vez, unificou o entendimento entre as Turmas competentes para a
matéria criminal, registrando tanto ser necessária a prova do dolo específico como
a demonstração de prejuízo ao Erário, o que denota a adoção do entendimento
mais restritivo47.

42 – STJ, Ap 480/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Red. Min. Cesar Asfor Rocha,
Corte Especial, DJE 29/03/2012, p. 59.
43 – STJ, AgInt no REsp 1582669/MG, Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, DJe 07/04/2017.
44 – STJ, RHC 49627/RN, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 30/06/2017.
45 – STF, AP 683/MA, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 09/08/2016: “[...] 2. Inépcia
da denúncia. Art. 41 do Código de Processo Penal. O tipo do art. 89 da Lei 8.666/93 não menciona
prejuízo à Administração ou finalidade específica. Denúncia apta. 3. Art. 89 da Lei 8.666/93. A
jurisprudência interpreta o dispositivo no sentido de exigir o prejuízo ao erário e a finalidade específica
de favorecimento indevido como necessários à adequação típica – INQ 2.616, relator min. Dias Toffoli,
Tribunal Pleno, julgado em 29.5.2014.”
46 – STF, AP 580/SP, Rel. Ministra Rosa Weber, 1ª Turma, DJe 13/12/2016: “O delito do artigo 89 da
Lei 8.666/93 exige, além do dolo genérico – representado pela vontade consciente de dispensar ou inexigir
licitação fora das hipóteses legais -, a configuração do especial fim de agir, consistente no dolo específico
de causar dano ao erário. Desnecessário o efetivo prejuízo patrimonial à administração pública.”
47 – STJ, RHC 49627/RN, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, DJe 30/06/2017: “A
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que

60
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

No ponto específico, curioso observar que, segundo entendimento


dominante no seio dos Tribunais, deve haver comprovação de prejuízo patrimonial;
do contrário, não há crime. Logo, de forma sintética, só seria responsabilizado
criminalmente o administrador que dispensar licitação fora das hipóteses legais,
com o intuito de lesar os cofres públicos e, com isso, causar dano ao patrimônio,
sendo exemplo desse entendimento o paradigmático julgamento proferido na Ação
Penal 480/MG, do Superior Tribunal de Justiça48. Em compreensão semelhante,
objeto de discussão ao final, refere Justen Filho que “o crime consiste não apenas
na indevida contratação indireta, mas na produção de um resultado final danoso”,
de modo que “se a contratação direta, ainda que indevidamente adotada, gerou um
contrato vantajoso para a Administração, não existirá crime”49.
Esse mesmo caminho vem sendo trilhado pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul em julgamentos proferidos pela 4ª Câmara Criminal,
naturalmente competente para analisar os crimes previstos na Lei de Licitações.
Curiosamente, no entanto, e aqui o propósito e interesse científico na discussão,
a pesquisa realizada junto ao sistema informatizado apontou que, no período dos
últimos vinte e quatro meses50, os resultados não registraram um caso sequer em
que dita prova tenha sido demonstrada, em que pese as dezenas de precedentes
resultantes da consulta51. Em outros termos, a exigência de demonstração do

o tipo penal inscrito no art. 89 da Lei 8.666/1993 exige "o prejuízo ao erário e a finalidade específica
de favorecimento indevido como necessários à adequação típica – Inq 2.616, relator min. Dias Toffoli,
Tribunal Pleno, julgado em 29.5.2014" (AP 683/MA, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe
06/3/2017). Portanto, não constando da denúncia o dolo específico de causar dano ao erário e a
demonstração do efetivo prejuízo, verifica-se que não ficou devidamente demonstrada a tipicidade do
delito imputado, revelando-se, dessa forma, inepta a inicial acusatória.”
48 – STJ, Ap 480/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Red. Min. Cesar Asfor Rocha,
Corte Especial, DJE 29/03/2012: “Os crimes previstos nos artigos 89 da Lei n. 8.666/1993 (dispensa
de licitação mediante, no caso concreto, fracionamento da contratação) e 1º, inciso V, do Decreto-lei n.
201/1967 (pagamento realizado antes da entrega do respectivo serviço pelo particular) exigem, para que
sejam tipificados, a presença do dolo específico de causar dano ao erário e da caracterização do efetivo
prejuízo. Precedentes da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal.”
49 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed.
Rio de São Paulo: Dialética, 2012, p. 1.034.
50 – Pesquisa efetuada no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no período
compreendido entre julho de 2017 e julho de 2015.
51 – Apelações Crime nº 70069719813, 70070699798, 70071518336, 70068009703, 70068028224,
70069599744, 70070171673, 70054465596, 70068782077, 70068279025, 70062655766, 70068332386,
70064336787, 70066506791, 70065870040, 70058649104, 70062050224, entre outras.

61
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

prejuízo econômico, diversamente daquilo que ocorre em relação ao tipo do artigo


90 da Lei 8.666/9352, tem trazido consequências diversas, malgrado as semelhanças
- no que aqui importa - entre os tipos penais53.

Mudança de orientação?

O entendimento atualmente majoritário nos Tribunais Superiores não


passa incólume às críticas. Curioso observar, nesse sentido, que a redação dada
pelo legislador, na linha do que defendia claramente a doutrina antes indicada
– em especial aquela editada ao tempo dos fatos -, não exige o dolo específico e,
menos ainda, a comprovação de prejuízo econômico. No ponto, sustenta a crítica
especializada terem sido esses requisitos típicos criados pela jurisprudência54 e que,
mesmo no caso de a exigência se reverter primariamente em favor do acusado,
não se pode conferir ao juiz, sem que sejam oferecidas fortíssimas razões jurídicas,
o poder de restringir a aplicação do tipo penal, em que pese a redação um tanto
lacônica dada pelo legislador55.
Aqui, a leitura dos precedentes que levaram a essa conclusão, cujas premissas,
a despeito da polêmica registrada neles próprios56, passaram a ser replicadas a

52 – STJ, REsp 1484415/DF, Ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, DJe 22/02/2016: “[...]
Diversamente do que ocorre com o delito previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, o art. 90 desta lei
não demanda a ocorrência de prejuízo econômico para o poder público, haja vista que o dano se revela
pela simples quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada
com a frustração ou com a fraude no procedimento licitatório. De fato, a ideia de vinculação de prejuízo
à Administração Pública é irrelevante, na medida em que o crime pode se perfectibilizar mesmo que
haja benefício financeiro da Administração Pública.”
53 – Cabe registrar, por oportuno, que não se caminha na linha da eficiência penal, no seu pior sentido.
O recurso aos números apenas tem o objetivo de demonstrar que a jurisprudência ora em voga evidencia
um esvazimento de possíveis condutas tipificáveis, também a apontar no sentido de que a dogmática
seguida pela jurisprudência carece de sustento teórico.
54 – Tais exigências foram destacadas claramente a partir da interpretação jurisprudencial, dos quais
são paradigmáticos, como se disse, as Ação Penal 480/MG, do Superior Tribunal de Justiça, e o
Inquérito 2.482/SP, do Supremo Tribunal Federal.
55 – LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência legal de licitação (art. 89 da Lei
8.666/1993). In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Ano 21. Vol. 104. out-
set/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 19.
56 – Tanto no Inquérito 2.482/SP como na Ação Penal 480/MG fica claro que não se tratou de discussão
pacífica entre os julgadores, havendo clara divergência em relação à exigência de comprovação de

62
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

partir de então, denota a preocupação dos julgadores com a proporcionalidade57


da aplicação de eventual punição58. Mais, em alguns casos, parece haver confusão
entre os conceitos de dolo específico e natureza formal do delito, porém, ao que
tudo indica, a transformação no tipo em crime material é algo que desborda a
interpretação teleológica (restritiva) que busca corrigir – no âmbito penal – possível
injustiça em relação ao administrador que simplesmente decide por não seguir o
procedimento previsto em lei59, em atenção ao princípio da fragmentariedade60.
Não se confundem, pois, os conceitos de exigibilidade de dolo específico de
produção do resultado danoso à Administração e o de prova do correspondente
prejuízo.

prejuízo à Administração Pública.


57 – Seria possível cogitar, nessa quadra, os limites e possibilidades da decisão judicial tendente a
“corrigir” eventuais “excessos” punitivos do legislador, mas tal desiderato obviamente refoge aos lindes
propostos para esse breve estudo.
58 – O Ministro Gilmar Mendes chega a referir que, naquele caso, parecer ter havido um “exagero” e
que a vida política nos municípios do interior são “prenhes de intrigas”, de molde que, “Para se aceitar
denúncia em relação ao artigo 89, nós temos que fazer um escrutínio realmente rigoroso, sob pena
de, em qualquer hipótese, fazer-se esse tipo de imputação que vai se aproximar muito da ideia de uma
responsabilidade objetiva”.
59 – STJ, REsp 1505356/MG, Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/11/2016: [...]
A   contratação de serviços sem procedimento licitatório, quando não   caracterizada   situação de
inexigibilidade, viola os princípios da  legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência e os deveres
de    legalidade    e   imparcialidade   e   configura   improbidade administrativa.  Ausente  o  prejuízo  ao
erário no caso concreto, a situação   amolda-se   ao   conceito de improbidade administrativa, nos
termos   do   art.   11,   caput,   e   inciso I, da Lei 8.429/1992. Nesse sentido:   REsp   1.038.736/MG,
Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,   julgado em 4.5.2010, DJe 28.04.2011; REsp
1.444.874/MG, Rel. Ministro   Herman   Benjamin,   Segunda Turma, julgado em 3.2.2015, DJe
31.3.2015,   e  REsp  1.210.756/MG,  Rel.  Ministro  Mauro  Campbell Marques, Segunda Turma,
julgado em 2.12.2010, DJe 14.12.2010. Art. 11 da Lei 8.429/92 dolo genérico.”
60 – Nesse sentido, a propósito, é o que refere o Ministro Ayres Britto no Inquérito 2.646/RN: “[...] Pois
é assim que se garante a distinção, a meu sentir necessária, entre atos próprios do cotidiano político-
administrativo (controlados, portanto, administrativa e judicialmente nas instâncias competentes) e atos
que revelam o cometimento de ilícitos penais. E de outra forma não é de ser, pena de se transferir
para a esfera penal a resolução de questões que envolvem a ineficiência, a incompetência gerencial e a
responsabilidade político-administrativa. Questões que se resolvem no âmbito das ações de improbidade
administrativa.” STF, Inquérito 2.646/RN, Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 07/05/2010.

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Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

Atualmente, pelo que se observa dos precedentes consultados, o Tribunal


de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul61 e Superior Tribunal de Justiça62,
demandam a prova dos dois elementos – dolo específico e prova do prejuízo aos
cofres públicos -, descrevendo a necessidade, inclusive, que o apontado prejuízo
seja indicado já na denúncia, sob pena de rejeição in limine63. Difere a exigência
– mais restritiva nessas Cortes – daquela estabelecida pelo Supremo Tribunal
Federal, donde se extrai de forma absoluta tão somente o requerimento de prova do
dolo específico, pois, como se viu, emerge divergência entre as Turmas a respeito

61 – Ementa: PROCESSO-CRIME. PREFEITO MUNICIPAL. DISPENSA E INEXIGIBILIDADE


DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI. DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR
DANO AO ERÁRIO E DEMONSTRAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO. IMPRESCINDIBILIDADE
PARA A TIPIFICAÇÃO DO DELITO PREVISTO NO ART. 89 DA LEI N° 8.666/93. Entendimento
alterado pela Corte Especial do colendo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento da Ação
Penal nº 480/MG. Peça acusatória que descreve o dolo específico de causar dano ao erário, bem como
o efetivo prejuízo. Narrativa de crime, em tese, com sinalização probatória inicial. Indispensável a
instrução processual para exame mais fundo da prova. Denúncia recebida. Unânime. (Ação Penal
- Procedimento Ordinário Nº 70060258910, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 28/04/2016)
62–STJ,HC343715/MG,MinistroSebastiãoReisJúnior,6ªTurma,DJe01/12/2016:“[...]Dizajurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça que o crime do  art. 89 da Lei n. 8.666/1993 não é de mera conduta, cumprindo
ao Parquet imputar não apenas a contratação indevida, mas também o dolo específico  do  agente  de  causar
dano à Administração Pública, bem como o efetivo prejuízo ao erário. Precedentes.
2.  No  caso,  o  órgão ministerial ao apresentar a denúncia, embora tenha  registrado  que  prefeito  do
município, sem a instauração de procedimento   licitatório,   teria   contratado,   com   base
em parecer elaborado     pelo   então   advogado   da   municipalidade,   serviços   de
assessoria  jurídica  de  outro  profissional  da  área,  deixou  de descrever o efetivo prejuízo ao erário
decorrente dessa conduta. Não há  na  peça  vestibular  nenhuma  menção  à ocorrência de danos aos
cofres  públicos  decorrentes  da  dispensa  de  licitação. Assim, a exordial acusatória não é apta a deflagrar
a ação penal em questão. 3. Ordem concedida para reconhecer a inépcia formal da denúncia.”
63 – STJ, RHC 49627/RN, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, DJe 30/06/2017:
“[...] A jurisprudência do   Superior   Tribunal   de   Justiça   e do Supremo Tribunal Federal é
firme  no  sentido  de  que  o tipo penal inscrito no art. 89 da Lei 8.666/1993  exige "o prejuízo ao
erário e a finalidade específica de favorecimento   indevido   como   necessários   à adequação típica
– Inq 2.616,   relator   min.   Dias   Toffoli,   Tribunal   Pleno,   julgado   em 29.5.2014"   (AP   683/
MA, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 06/3/2017). Portanto, não constando da
denúncia o dolo específico de causar dano   ao   erário   e   a   demonstração   do   efetivo   prejuízo,
verifica-se  que  não  ficou devidamente demonstrada a tipicidade do delito   imputado,  revelando-
se,  dessa  forma,  inepta  a  inicial acusatória.”

64
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

da prova do prejuízo64. Importante notar, no entanto, que o próprio Superior


Tribunal de Justiça, nas Turmas que julgam os correlatos casos de improbidade
administrativa, não exigem a demonstração do referido prejuízo quando há ofensa
ao correspondente artigo 10, inciso VIII,  da Lei 8.429 de 199265, por compreender
– ao que entendemos correto – ser presumido e não se restringir às perdas
econômicas66. Refere-se expressamente, nesses casos, que “o prejuízo decorrente
da dispensa indevida de licitação é presumido (in re ipsa), consubstanciado na
impossibilidade da contratação pela Administração da melhor proposta”.67
A restrição às perdas econômicas, aliás, vai de encontro às bases da Lei de
Licitações, que não visa apenas ao melhor interesse patrimonial da Administração,
senão também garantir a impessoalidade, isonomia de acesso e participação de
interessados, em última análise, como corolário do próprio Estado Democrático
e da moralidade pública. Diante desse espectro, ganha especial interesse o
destaque acima proposto também porque já começa a emergir junto ao Supremo
Tribunal Federal, com reflexos no Superior Tribunal de Justiça, uma mudança de
entendimento, na linha do que vimos referindo. Mantém-se hígida a exigência
da prova do dolo específico de causar prejuízo ao Erário, porém, de acordo com
a Primeira Turma, em especial em precedentes de relatoria do Ministro Edson

64 – STF, Inquérito 4.104/SC, Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 22/11/2016: “[...] Esta
Corte tem decidido que, para a caracterização da conduta tipificada no art. 89 da Lei 8.666/1993,
é indispensável a demonstração, já na fase de recebimento da denúncia, do “elemento subjetivo
consistente na intenção de causar dano ao erário ou obter vantagem indevida” (INQ 2.688, Rel. Min.
CÁRMEN LÚCIA, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 12.2.2015).”
65 – Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou
omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou
dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: [...] VIII
-  frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com
entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente; (Redação dada pela Lei nº 13.019, de
2014)
66 – STJ, AgInt no AREsp 530518/SP, Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 03/03/2017:
“[...] A fraude à licitação dá ensejo ao chamado dano in re ipsa. Nesse sentido:   REsp 1.376.524/
RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 9/9/2014; REsp 1.280.321/MG, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques,  Segunda  Turma,  DJe  9/3/2012;  REsp  1.190.189/SP,  Rel.
Ministro  Mauro  Campbell  Marques,  Segunda Turma, DJe 10/9/2010, e REsp 1.357.838/GO, Rel.
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 25/9/2014.”
67 – STJ, AgRg no REsp 1499706/SP, Relator Ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, DJe 14/03/2017.

65
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

Fachin e Rosa Weber, não se exige prova do prejuízo68. Tal entendimento repõe
a jurisprudência na orientação da doutrina de primeira hora, que parece a mais
correta, de que o crime em questão é formal, embora reclame dolo específico.
A manutenção da exigência do dolo específico, por outro lado, parece também
suficientemente adequada para discriminar o administrador inábil do desonesto,
satisfazendo a precupação com a fragmentariedade e a proporcionalidade.
Observamos, nesse aspecto, que a justificativa encontrada pelas Cortes
Superiores, a exemplo dos argumentos trazidos pelo Ministro Dias Toffoli69, no
que diz respeito ao requerimento da prova do prejuízo patrimonial com base no
disposto no artigo 99 da Lei 8.666, não se mostra incompatível com a dispensa
da demonstração dele. Trata-se de simples circunstância, que, acaso conhecida
e aferível (prejuízo), permite agravar a pena de multa estabelecida, por conta do
princípio da especialidade, em complemento às regras trazidas nos artigos 49 e
60 do Código Penal. Soma-se, ainda, a consideração de que eventual regra que
disponha sobre aplicação de pena, seja ela de qualquer espécie, não tem o condão
de repercutir na tipificação, a menos que a norma assim preveja. Em especial, neste
caso, em que a hipótese de gradação da pena pecuniária em nada tem a ver com o
conteúdo típico. Não tem o condão, pois, de criar um novo elemento restritivo70.
Mais, a previsão criminal não tem por escopo proteger tão somente a incolumidade
patrimonial pública, senão também todos aqueles princípios que determinam a
utilização do certame público, sobretudo a moralidade e a isonomia, bens que não
são passíveis de quantificação econômica, porém, possuem estatura constitucional.
A referida revisão do entendimento – recente, é bom que se diga -, já começa
a encontrar eco também junto ao Superior Tribunal de Justiça, que, como se viu
antes, possui um entendimento mais restritivo. Ainda que em precedente isolado e

68 – STF, Ação Penal 580/SP, Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, Julgamento em 13/12/2016:
“[...] O delito do artigo 89 da Lei 8.666/93 exige, além do dolo genérico – representado pela vontade
consciente de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais -, a configuração do especial
fim de agir, consistente no dolo específico de causar dano ao erário. Desnecessário o efetivo prejuízo
patrimonial à administração pública.”
69 – STF, Inq 2.482/MG, Red. Min. Luiz Fux, Plenário, DJE 15/09/2011: “[...] Seria até impossível
de se fixar uma pena desse tipo do art. 99, ausente uma nuclear do tipo que, em razão do art. 99, impõe
que o art. 89 também tenha como nuclear do seu tipo a vantagem obtida pelo agente.”
70 – LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência legal de licitação (art. 89 da Lei
8.666/1993). In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Ano 21. Vol. 104. out-
set/2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 21.

66
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

timidamente, a Quinta Turma já fez referência ao julgado de relatoria do Ministro


Edson Fachin, apontando “ser a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal no sentido da desnecessidade da prova do dano ao erário, mas apenas
o dolo específico de causar prejuízo ao erário.”71 No entanto, o hoje minoritário
entendimento existente tanto no Supremo Tribunal Federal como no Superior
Tribunal de Justiça já sinaliza na direção da volta à inexigibilidade da prova do
prejuízo para fins de caracterização do crime. Portanto, um retorno ao programa
normativo adotado pelo legislador e à salvaguarda de todos bens jurídicos
envolvidos, constitucionalmente previstos, e que devem ser protegidos pela Lei nº
8.666/93.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crime do artigo 89 da Lei de Licitações é formal, de resultado cortado,


marcado pela intenção transcendente de causar prejuízo, isto é, requer dolo
específico, na terminologia adotada correntemente pelos Tribunais72. Isso sucede,
segundo Figueiredo Dias, “sempre que a intenção tipicamente requerida tem
por objeto uma factualidade que não pertence ao tipo objetivo de ilícito [...] nos
quais o tipo legal exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um
resultado que todavia não faz parte do tipo de ilícito.”73 Como exemplo, o autor
faz referência ao artigo 262 do Código Penal Português74, à semelhança do que a
doutrina nacional costuma conferir ao caso da extorsão, prevista no artigo 158 do

71 – STJ, HC 384302/TO, Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, DJe 09/06/2017.


72 – STF, Ação Penal 971/RJ, Ministro Edson Fachin, Primeira Turma, Julgamento em
28/06/2016:  “[...] Como é próprio de diversos crimes formais, exigir-se especial fim de agir por parte
do agente, voltado a causar prejuízo, é diferente de exigir que a consumação deste crime esteja atrelada
à efetiva ocorrência do prejuízo. Exemplificativamente, o crime de extorsão, previsto no art. 158 do
Código Penal, é formal porque não exige a efetiva obtenção da indevida vantagem econômica, mas a
intenção do agente voltada a obtê- la é indispensável no âmbito da tipicidade subjetiva.”
73 – DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal:  parte geral. Tomo I: questões fundamentais: a doutrina
geral do crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 380.
74 – Artigo 262.º. Contrafacção de moeda. 1 — Quem praticar contrafacção de moeda, com intenção
de a pôr em circulação como legítima, é punido com pena de prisão de três a doze anos. 2 — Quem,
com a intenção de a pôr em circulação, falsificar ou alterar o valor facial de moeda legítima para valor
superior é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

67
Julio Cesar Finger e Douglas Rauber Spuldaro

Código Penal75, em que, muito embora seja pretendida a obtenção da vantagem, ela
é dispensável76. A hipótese é de delito de intenção, portanto, o que não se confunde
com a necessidade de comprovação do resultado naturalístico e, menos, que se
limite ao aspecto econômico77. Trata-se, aliás, do entendimento que já começa a
ser sustentado frente ao Supremo Tribunal Federal, em especial a Primeira Turma,
como se referiu acima.
Nessa senda, nos parece ser cabível a demonstração de inexistência de
prejuízo, porém, tão somente ao condão de contribuir para a demonstração
de ausência do dolo na conduta. Estaria questionada, com a correspondente
demonstração, a prova do dolo específico de causar dano ao erário, o que não
guarda relação direta com a existência de prejuízo. Desse modo, a prova de que
o resultado não ocorreu não afasta, per se, a caracterização do crime, eis que ele
(resultado) é completamente dispensável no caso do crime de dispensa ilegal de
licitação. Acaso ocorrido, por outro lado, é mero exaurimento do crime, com
reflexos estritos à dosimetria da pena, inclusive quanto à extensão do artigo 99 da
lei.
Em suma, em vista da pluralidade de elementos acima discorridos, se
mostra necessária a reavaliação da exigência da prova do prejuízo (econômico)
para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de Licitações. O tipo penal é
formal e, segundo registra predominante entendimento hoje corrente, depende do

75 – Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para
si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma
coisa: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa. [...]
76 – Figueiredo Dias, para o caso português, traz o seguinte exemplo: “[...] o tipo legal exige, para
além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que todavia não faz parte do tipo de
ilícito. Assim, p. ex., o art. 262º-1 requer para além do dolo do tipo da contrafacção de moeda, que
esta seja levada a cabo com intenção de por em circulação, mas não que esta intenção vem efectivamente a
concretizar-se num resultado típico; [...]
77 – STF, Ação Penal 971/RJ, Ministro Edson Fachin, Primeira Turma, Julgamento em 28/06/2016:
“Nessa linha, indispensável estar atento para o fato de que a exigência do procedimento licitatório
feita pela lei e pela Constituição não busca apenas a proposta economicamente mais vantajosa para
a Administração Pública. A economicidade da proposta, por certo, é elemento importante, pois
resguarda o patrimônio público. Entretanto, a razão da exigência de licitação, porque expressamente
declarado pela Constituição da República, é oportunizar a todos igualdade de condições para contratar
com o Poder Público. Não é por outra razão que o precitado art. 37, XXI, da CR/88 ressalta que obras,
serviços, compras e alienações em geral serão contratados, enfatizo, mediante “licitação pública que
assegure igualdade de condições a todos os concorrentes...” .

68
Exigência da comprovação do prejuízo econômico para a caracterização do crime do artigo 89 da Lei de
Licitações: análise da interpretação restritiva conferida pela jurisprudência

dolo específico de causar prejuízo. A intenção vertida na ação do agente (causar


prejuízo) não se confunde, contudo, com a necessidade de prova do efetivo prejuízo,
que, se ocorrer e ficar demonstrado, é mero exaurimento do crime. Nessa esteira,
à luz da análise aqui empreendida, aponta-se para a possibilidade de haver uma
tendente revisão do entendimento mais restritivo, na linha da interpretação que se
forma junto à Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Dita compreensão,
segundo aqui defendido, se mostra mais consentânea com o programa normativo
do artigo 89 da Lei de Licitações, a requerer, para a sua consumação, o dolo
específico de causar prejuízo, porém, sem que haja exigência da prova dele e,
mais importante, tampouco a sua limitação ao aspecto econômico. Por fim, a
exigência de comprovação do dolo específico parece suficiente a atender – como
tributo à fragmentariedade e proporcionalidade - a necessidade de distinção entre
o administrador inábil e o desonesto.

REFERÊNCIAS

BARROS, Márcio dos Santos. 502 comentários sobre licitações e contratos.


2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora NDJ, 2011.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Boletim IBCCrim. Ano 19. Nº 225.
Agosto de 2011.
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70
OS PERIGOS DO SUBJETIVISMO JUDICIAL –
CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE
SEU CONTROLE. ESTUDO DE CASO

Mauro Borba1

RESUMO. O presente trabalho, tendo por base fática um caso concreto


julgado por uma das câmaras criminais do Tribunal de Justiça do Estado Rio
Grande do Sul, trata do fenômeno crescente do protagonismo judicial no campo
da política, buscando suas origens e seu modo de atuação. Examina e diferencia
judicialização da política e ativismo judicial, focando uma análise crítica sobre o
ativismo caracterizado por um subjetivismo que vai além dos limites da legalidade
e não se furtando em traças possíveis alternativas de superação.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos e cada vez com mais frequência na atualidade, o Poder
Judiciário teve suas funções expandidas, passando a exercer certo protagonismo na
seara política e institucional que envolve o Estado Democrático brasileiro.
Essa atuação de destaque pode ser observada em sua série de julgados onde
são aventadas questões cuja relevância transcende a alçada propriamente jurídica.
Embora não seja um fenômeno exclusivamente nacional, uma vez que foi/é
verificado em outros países, desde aqueles de tradição da civil law, ou da common
law, a atividade jurisdicional empreendida na atualidade não encontra similar na

1 – Juiz em Porto Alegre, Doutor (UFRGS) e Mestre em Direito (UFSC/UNISC)


Mauro Borba

história constitucional brasileira, sendo que não raras vezes tal atuação transborda
os limites legais da sua competência, caracterizando o chamado ativismo judicial,
com manifestações impregnadas de um excesso de subjetivismo que as afastam da
legalidade.
O presente ensaio pretende analisar e discutir o fenômeno, ainda que
brevemente e por isso mesmo sem pretensão de esgotá-lo. Para tanto situará as
causas que deram origem ao protagonismo judicial, pontuando a diferença entre
judicialização e ativismo; identificará, filosoficamente, a matriz subjetivista que
informa uma atuação desgarrada do modelo legal, apontará possíveis saídas de
correção, limitação e/ou controle e por fim seguirá a exposição do caso judicial
que serviu de base fática para esse ensaio.

JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL

Ao longo dos tempos o Poder Judiciário vem passando por transformações


no perfil de sua atuação. Neste sentido, a promulgação da Constituição de 1988
simbolizou um momento de uma radical modificação na forma como era concebido
o exercício da jurisdição no Brasil.
A Constituição de 1988, além de abrir as portas do Poder Judiciário (art.
5o, XXXV), ainda consagrou uma plêiade de direitos fundamentais, inclusive de
caráter prestacional, a uma população que não passou, de fato, pela experiência
de um Welfare State. Essa verdadeira corrida ao Poder Judiciário vem agravada, no
Brasil, pela crescente desconfiança da população em relação a classe política. Há,
ainda, outras causas relevantes, como o caráter contra majoritário que a Constituição
confere ao direito (o que faz com que minorias organizadas cada vez mais procurem
diretamente o Poder Judiciário em vez de tentar ter suas pretensões redimidas na
arena propriamente política) e mesmo certa cultura do litígio, que concebe o recurso
a jurisdição, no mais das vezes, uma opção preferencial em relação as demais
formas de composição de conflitos. Isso faz com que o Poder Judiciário tenha
crescido em importância aos olhos da comunidade política.
Muito influenciou essa mudança, a experiência constitucional da Europa
continental, notadamente a partir do segundo pós-guerra, sendo vital para que se
entenda o contexto brasileiro.
Como se sabe, o direito constitucional saiu do conflito reconfigurado com
relação ao seu objeto (novas constituições foram promulgadas), quanto ao seu
papel (centralidade da Constituição, entendida como topo normativo) e quanto ao

72
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

modo de aplicação de suas normas (surge uma nova hermenêutica constitucional).


A par disso, ocorrem profundas mudanças de caráter institucional, das
quais a criação de tribunais constitucionais e a progressiva ascensão do Poder
Judiciário são, sem dúvida a face mais visível. Costuma-se designar esse fenômeno
– de passagem dos Estados legislativos de direito para os Estados constitucionais de
direito – como neoconstitucionalismo2.

Como ensina Lênio Streck, o Constitucionalismo Contemporâneo3 representa


um redimensionamento da práxis político-jurídica, que ocorre em dois níveis: no
plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático
de Direito, e no plano da teoria do direito, que exige a reformulação não só da teoria
das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição), mas
também na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e na teoria da
interpretação (que passa, a partir da matriz hermenêutica, a ser antirrelativista)4.
Explicando melhor, no modelo antigo, a Constituição era compreendida
essencialmente como um documento político, cujas normas não eram aplicáveis
diretamente, ficando sua concretização na dependência da atuação dos
poderes Legislativo e Executivo. Tampouco existia controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis – e, nos países em que havia, era tímido e pouco
relevante. Já no Estado Constitucional de direito, a Constituição passa a valer
como a norma jurídica central, a qual disciplina o modo de produção das leis e atos
normativos, além de estabelecer limites para o conteúdo destes. Esse é o contexto
em que vigora a centralidade da Constituição e a chamada supremacia judicial, a
primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretação final e
vinculante das normas constitucionais5.

2 – BARROSO, 2016, p. 159-175


3 – O termo neoconstitucionalismo foi recentemente abandonado por Lenio Luiz Streck (2011, p. 35-
37) em detrimento da expressão Constitucionalismo contemporâneo, para caracterizar sua própria
perspectiva teórica, diferenciando-a de tentativas de incorporação brasileiras da Jurisprudência dos
Valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy e do ativismo judicial norte-americano.
4 – STRECK, 2011, p. 37. Dito de outro modo, para Streck e Abboud (2014, p. 74), o chamado
“novo constitucionalismo” é um fenômeno político-jurídico surgido no pós-guerra, assentado num
“paradigma filosófico jurídico que se originou a partir do giro linguístico”; neste fio, com o advento do
novo constitucionalismo, “ocorrem profundas mudanças no paradigma jurídico. Dentre elas, podemos
mencionar o surgimento dos princípios constitucionais, a necessária distinção entre norma e texto
normativo, a superação do silogismo como forma de solução das questões jurídicas etc.”.
5 – BARROSO, op. cit., p. 159-175, p. 162.

73
Mauro Borba

A Constituição de 1988 inaugurou, no Brasil, um Estado Democrático e


Social de Direito, no âmbito do qual, contingencialmente, a nossa vida política
passou a ser caracterizada por um acentuado deslocamento do centro de decisões
do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional.
Segundo Streck:

No Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o


que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social,
a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar
políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia;
já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o
Judiciário. (STRECK, 2014, p. 64).

Observa que, em democracias constitucionais, o direito assume um caráter


hermenêutico, caracterizado pelo fato de o constitucionalismo, a partir de preceitos
e princípios, invadir o espaço que tradicionalmente era reservado à regulamentação
legislativa; associam-se, assim, dois fatores: o aumento da demanda por direitos
fundamentais e o decréscimo da liberdade de conformação do legislador, em
favor da justiça constitucional6. Nesses termos, o direito seria considerado de um
instrumento de transformação social, na medida em que regula a intervenção do
Estado na economia, estabelece a obrigação da realização de políticas públicas e
traz um grande catálogo de direitos fundamentais-sociais7.
Entrelaçam-se, aqui, duas teses: por um lado, a da força normativa da
Constituição, que, com Konrad Hesse, pode-se traduzir como a sua “pretensão
de eficácia”8 e, por outro, a da Constituição Dirigente, adaptada à doutrina
constitucional portuguesa por Gomes Canotilho, para quem a “constituição
programático-dirigente não substitui a política, mas torna-se premissa material
da política”, donde resulta que as “inércias do Executivo e falta de atuação do
Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a
utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o
Estado Democrático de Direito”9.

6 – STRECK, op. cit., p. 59.


7 – Ibid., p. 59-60.
8 – HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 14-5.
9 – CANOTILHO, 2001, p. 487

74
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

Essas premissas teóricas, que realçam a centralidade do elemento


jurisdicional do Estado, bem como o elemento político do Direito, provocam
uma radical modificação na forma como era concebido o exercício da jurisdição
constitucional no Brasil. A partir disso, é possível afirmar, com Clarissa Tassinari
(2013, p. 27), que duas expressões passaram a estar diretamente vinculadas à
atividade jurisdicional: ativismo judicial e judicialização da política.
As expressões ativismo judicial e judicialização da política costumam ser
empregadas, quase que indistintamente, para trabalhar a ideia do acentuado grau
de judicialização que caracteriza o momento atual do Direito brasileiro. Não se
está, contudo, falando do mesmo fenômeno. É preciso, como aponta Tassinari
(2013), diferenciar para compreender.
Luís Roberto Barroso (2011), por exemplo, aponta que a judicialização da
política, no Brasil, é um fato, que se explica pela combinação de fatores como a
redemocratização, um constitucionalismo abrangente e o sistema híbrido de controle
jurisdicional de constitucionalidade de leis e atos normativos; ao passo que o ativismo
judicial consistiria numa atitude, num modo específico e proativo de interpretar a
Constituição, propiciado pela possibilidade de aplicação direta de normas constitucionais
(mesmo sem intermediação legislativa) e por fatores como a prerrogativa de declaração
de inconstitucionalidades e de imposição de deveres ao Poder Público.
Nessa linha, o contraponto entre judicialização da política e ativismo judicial,
dar-se-ia em função da diferença existente nas causas que lhes deram origem.
Barroso identifica o ativismo como um “modo específico e proativo de interpretar
a Constituição, expandindo o seu sentido e seu alcance”, ou como uma postura
que “procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem,
contudo, invadir o campo da criação livre do Direito”. Nestes termos o ativismo
para ele, nada mais é do que “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário
na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no
espaço de atuação dos outros dois poderes10.
Para TASSINARI (2013) porém, o problema é que os elementos que Barroso
elenca como caracterizadores do ativismo, no atual paradigma constitucional,
devem ser inerentes a qualquer juiz no exercício de suas atribuições, ou seja, pelos
critérios elencados pelo ilustre professor e ministro, não há como se compreender
a distinção entre ativismo e judicialização.

10 – BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, op. Cit.
p. 279-280

75
Mauro Borba

Contudo, não se pode discordar da leitura do fenômeno da judicialização


como produto das transformações ocorridas no direito com advento do novo texto
constitucional, consagrando o Estado Democrático de Direito que, sabido, desloca
o polo de tensão do Executivo par ao Judiciário.
A propósito da judicialização, Vanise Regina Lírio do Valle, acertadamente
afirma que a constitucionalização do direito após a segunda guerra mundial, a
legitimação dos direitos humanos e as influências dos sistemas norte-americano e
europeu são fatores que contribuíram fortemente para a concretização do fenômeno
da judicialização do sistema político, inclusive o brasileiro11. Tais acontecimentos
provocaram uma maior participação/interferência do Estado na sociedade, o que,
em face da inércia dos demais poderes, abriu espaço para a jurisdição, que veio
suprir as lacunas deixadas pelos demais braços do Estado. Desse modo o Judiciário
passou a exercer um papel determinante na definição de certos padrões a serem
respeitados.
As novas Constituições, a remodelagem do Estado, bem como a existência
de novos direitos (como os difusos) acabaram criando uma nova relação entre os
Poderes, em que o Judiciário deixa de ser um poder inerte e alheio às transformações
sociais12
Segundo TASSINARI (2013) a judicialização é muito mais uma constatação
sobre aquilo que vem ocorrendo na contemporaneidade por conta da maior
consagração de direitos e regulamentações constitucionais, que acabam por
possibilitar um maior número de demandas, que, em maior ou menor medida,
desaguarão no Judiciário, do que uma postura a ser identificada (como positiva ou
negativa).
Nesse sentido STRECK (2014b, p. 163-164) sustenta que:

“Ativismo e judicialização são temas que frequentam as grandes


discussões da teoria jurídica brasileira. O acentuado protagonismo do
Poder Judiciário vem despertando, não só no Brasil, um conjunto de
pesquisas que buscam a explicação desse fenômeno. Nesse sentido, a

11 – VALLE, Vanise Regina Lírio do (Org.). Ativismo Judicial e o Supremo Tribunal Federal:
laboratório de Análise Jurisprudencial do STF, Curitiba, Juruá, 2009, p. 32
12 – VIANNA, Werneck: CARVALHO, Maria Alice R. de; MELLO, Manuel P. Cunha; BARGOS,
Marcelo B. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan, 1999,
p.15.

76
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

formação de uma “juristocracia” (ou judiciariocracia) — chamemos


assim a esse fenômeno — não pode ser analisada como uma consequência
exclusiva da vontade de poder (no sentido da Wille zur Macht, de
Nietzsche) manifestada pelos juízes, mas, ao mesmo tempo, deve-se
levar em consideração a intrincada relação interinstitucional entre os três
poderes. Em síntese, todas essas questões apontam para um acentuado
protagonismo do Poder Judiciário no contexto político atual”.

Este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do


Poder Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, no cenário mundial.
As primeiras reflexões mais consistentes sobre o tema derivam dos Estados
Unidos. Pelo menos desde 1803, com o célebre caso Marbury v. Madison13,4
discussões sobre o papel e os limites da atuação do Poder Judiciário passam a
pautar o debate público norte-americano.
LEAL (2011) citando Ronald DWORKIN em sua tese, desenvolvida no
texto The judge´s new role: should personal convictions count?, publicado no Journal of
Internacional Criminal Justice, v. 1, março de 2003. New York: Damos, 2003, p.
4-12; observa:
Sustenta o autor americano no texto referido que ao longo dos anos que
se seguiram à Segunda Guerra Mundial começou-se a perceber de forma mais
veemente nos Estados Unidos que a judicatura cada vez mais se pronunciava sobre
questões morais ao interpretar e aplicar o sistema jurídico na solução de casos
concretos.
STRECK, acrescenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente
tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição
norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal
Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o
caráter federativo do Canadá.
É possível poder-se dizer, com TASSINARI, que a judicialização apresenta-
se como uma questão social. A dimensão desse fenômeno, portanto, não depende do
desejo ou da vontade do órgão judicante. Ao contrário, ele é derivado de uma série
de fatores originalmente alheios à jurisdição, que possuem seu ponto inicial em
um maior e mais reconhecimento de direitos, passam pela ineficiência do Estado
em implementá-los e desaguam no aumento da litigiosidade – característica da

13 – Marbury v. Madison, 5 U.S. 1 Cranch 137 (1803).

77
Mauro Borba

sociedade massas. A diminuição da judicialização não depende, portanto, apenas


de medidas realizadas pelo Poder Judiciário, mas, sim, de uma plêiade de medidas
que envolvem comprometimento de todos os poderes constituídos.
Observa STRECK (2014b, p. 164) que:

“... na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras


dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema.
A grande questão não é o “quanto de judicialização”, mas “como as
questões judicializadas” devem ser decididas. Aqui está o busílis. Este é o
tipo de controle que deve ser exercido. A Constituição é o alfa e o ômega
da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões
da comunidade política”.

É aqui que entra a necessidade de situar-se a diferença entre a judicialização


e o ativismo judicial.
Através das abordagens realizadas, consegue-se identificar que a excessiva
judicialização que assola as democracias modernas pede ser observada por um
duplo viés: social e político, ou seja, ela emerge de com contexto social de exigência
de direitos, bem como de um arranjo político de desídia da implementação destes
fora da jurisdição, questões que se imbricam mutuamente.
A doutrina brasileira, de modo geral, concebeu as transformações ocorridas
com o advento da Constituição de 1988 através da constatação da ocorrência de
“uma ampliação do papel político institucional do STF”14.
Autores como BARROSO (2016), RAMOS (2010), VERÍSSIMO (2010), em
resumo identificam o ativismo como um excesso de controle de constitucionalidade
(numa aplicação “direta”, sem filtros da Constituição), controle que apesar de
existente desde a República, nunca havia sido exercido.
Ora, aplicar diretamente a Constituição, declarar inconstitucionalidades,
impor eventualmente condutas ao Poder Público etc., nada mais são do que
funções inerentes a qualquer juiz brasileiro. Todos os juízes, no exercício de suas
atribuições, têm o dever de guarda da Constituição, e isso faz com que, nesta quadra
da história, toda a jurisdição seja jurisdição constitucional (STRECK, 2011). Essa

14 – VILHENA, Oscar V. Supremocracia. Revista DireitoGV, São Paulo, 4 (2), pp. 441-464, jul/dez
2008.

78
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

é a sua responsabilidade política15. Isso não necessariamente implica ou estimula,


contudo, que o julgador assuma uma postura ativista, como se o cumprimento de
finalidades constitucionais dependesse de suas atitudes, preferências ou escolhas (a
saber: a escolha por um modo específico e proativo de interpretar a Constituição).
Aplicar a Constituição pode não ser (nem deve ser, como se verá) uma conduta
ativista.
A questão do ativismo tem menos a ver com um excesso de judicialização,
ou de controle de constitucionalidade e mais com uma postura subjetivista e
discricionária do judiciário, apropriando-se de competências que não tem.
Na obra coletiva “Diálogos institucionais e ativismo” escrita pelo grupo de
pesquisa Novas Perspectivas da Jurisdição Constitucional (sucessor do Laboratório
de Análise Jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal), é possível identificar
a sua jurisprudência ativista traduzida em “estratégias de reivindicação de
competências que não seriam de plano reconhecidas”16.
Nesse sentido Lenio STRECK afirma que:

“... a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. Ocorre na


maioria das democracias e decorre desse processo todo que acima foi posto.
O problema é o ativismo, que, para mim, é a vulgata da judicialização.
Enquanto a judicialização é um problema de (in)competência para prática
de determinado ato (políticas públicas, por exemplo), o ativismo é um
problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e
morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões
solipsistas)” 17.

“... um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide a partir de


argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído
pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de

15 – Segundo Ronald Dworkin (2002, p. 137), a “doutrina da responsabilidade política” implica que
“as autoridades políticas devem tomar somente as decisões políticas que possam justificar no âmbito de
uma teoria política que também justifique as outras decisões que eles se propõem a tomar”.
16 – SILVA, Cecília de Almeida. Et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba, Juruá, 2010, p.
13-20.
17 – STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial em números? Coluna Observatório Constitucional,
disponível em https://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-
judicial-numeros; acesso em agosto 2018.

79
Mauro Borba

magistrados); já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir das


relações entre os poderes do Estado (pensemos aqui no deslocamento
do polo de tensão entre os Poderes Legislativo e Executivo em direção à
justiça constitucional...”18

Para STRECK19 os tribunais e o STF fazem política quando dizem que não
fazem; eles fazem ativismo quando dizem que não fazem; e judicializam quando
sustentam não fazer.

“...Por exemplo, quando o STF decide que, no artigo 366 do CPP, a prova
considerada urgente fica ao arbítrio do juiz decidir, está não somente
fazendo ativismo, com a institucionalização da discricionariedade judicial
— ponto importante para aferir o grau de ativismo e da judicialização
— como também está “legislando”. Não parece que o legislador, ao
estabelecer, nos marcos da democracia, que a prova considerada urgente
possa ser colhida de forma antecipada, tenha “querido” deixar isso ao
bel prazer do juiz... Bom, mas foi isto que o STF disse que o dispositivo
“quer dizer”. Atenção: sei que o STF mudou sua posição depois disso
(HC 114.519). O que importa, entretanto, é que assim já havia julgado.

Ainda: quando o legislador institucionaliza o sistema acusatório no Código


de Processo Penal, mediante a aprovação de uma alteração significativa do artigo
212, o STJ e o STF negam validade ao dispositivo, sem qualquer arguição sobre
a inconstitucionalidade do novel dispositivo. Simplesmente se negam a cumprir
o dispositivo. Isso é ou não é ativismo? O sol nascerá amanhã? O produto do
legislador não está conspurcado pelo Poder Judiciário? E veja-se o alcance desse
tipo de decisão (por todos, o HC 103.525 – STF). Com isso, diariamente, milhares
de acusados têm seus direitos violados por falta do cumprimento de um dispositivo
que trata de direitos fundamentais. E assim por diante”20.

18 – STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, op. Cit. P. 589, nota de rodapé 123.
19 – STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial em números? Coluna Observatório Constitucional,
disponível em https://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-
judicial-numeros; acesso em agosto 2018.
20 – Idem

80
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

Segundo ele, o que sustenta esse modo de julgar é a filosofia da consciência.


Entende que o direito não superou o que a filosofia já fez há muito tempo:

“Para a metafísica clássica, os sentidos estavam nas coisas (as coisas têm
sentido porque há nelas uma essência. Por isso era possível revela-la.
A superação do objetivismo dá-se na (ou com) a modernidade. Com o
advento do iluminismo, o fundamento não é mais o essencialismo. O
homem não é mais sujeito às estruturas. Anuncia-se o nascimento
da subjetividade. A palavra “sujeito” muda de posição. Ele passa a
“assujeitar” as coisas. É o que se pode chamar de esquema sujeito-objeto,
em que o mundo passa a ser explicado (e fundamentado) pela razão.
Já a ruptura com a filosofia da consciência – esse é o “nome” do
paradigma da subjetividade – dá-se no século XX, a partir do que se
passou a ser denominado de “giro linguístico”. Esse giro “liberta”
filosofia do fundamentum que, da essência, passara na modernidade para
a consciência”.
Correndo sempre o risco de simplificar essa complexa questão, pode-
se afirmar que no linguistic turn, a invasão que a linguagem promove no
campo da filosofia, transfere o próprio conhecimento para o âmbito da
linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação;
é na linguagem que se dá o sentido (e não mais na consciência de si do
pensamento pensante).O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a
partir do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade “assujeitadora
e não o sujeito da relação de objetos (...).
(...) Com o giro – que aqui denomino de ontológico-linguístico – o sujeito
não é fundamento do conhecimento.
(...) a novidade é que o sentido não está mais na consciência (de si
do pensamento pensante), mas, sim, na linguagem, como algo que
produzimos e que é condição de nossa possibilidade de estarmos no
mundo. Não nos relacionamos diretamente com os objetos, mas com a
linguagem, que é a condição de possibilidade desse relacionamento; é
pela linguagem que os objetos vêm a mão (...)
(...) nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser entendida como
condição de possibilidade. A linguagem é o que está dado e, portanto, não

81
Mauro Borba

pode ser produto de um sujeito solipsista (selbstsüchtiger)21 que constrói


seu próprio objeto de conhecimento. Nesse sentido a viragem ontológico-
liguística se coloca como o que precede qualquer relação positiva. Não
há mais um “sujeito solitário”; agora há uma comunidade que antecipa
qualquer constituição de sujeito(...)
(...) trata-se, fundamentalmente, de uma “virada hermenêutica” (...) pela
qual se vê como tarefa primeira, o reconhecimento de que a universalidade
da compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou da
positivação)”.

Nesse sentido STEIN sustenta22 que superando-se do paradigma da filosofia


da consciência, o acesso a algo não será mais de forma direta e objetivante, mas
sim pela mediação do significado e do sentido. Não existe acesso às coisas sem
mediação do significado. Não temos acesso às coisas assim como elas são, mas
sempre a partir de um ponto de vista, a partir de uma clivagem, a cadeira enquanto
cadeira, a árvore enquanto árvore. Isto é mediação do significado.
Podemos pois, afirmar, que a linguagem faz essa mediação, a linguagem é
a condição de ser desse relacionamento; por isso não podemos afirmar que “um
ônibus é uma bicicleta”23; por isso quando a norma diz que ninguém poderá ser preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso
da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (CPP,
art. 282 – Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011); ou quando dispõe que
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
(Constituição Federal, art. 5º, LVII); ou ainda quando estabelece que as perguntas
serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que
puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição
de outra já respondida e que  sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição. (CPP, art. 212 e § único – (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008);

21 – Numa tradução literal seria o sujeito “viciado em si”; filosoficamente seria um sujeito privilegiado,
que constrói/controla o mundo a partir de suas convicções
22 – STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre, EDIPUCRS,
1997, p. 86
23 – STRECK, Lenio Luiz. O direito e três tipos de amor: o que isto tem a ver com subjetivismo?
Coluna Senso Incomum in https://www.conjur.com.br/2016-dez-15/senso-incomum-direito-tres-tipos-
amor-isto-ver-subjetivismo; acessada em agosto 2018.

82
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

parece claro que quando assim dispostas e redigidas elas dizem algo, elas dão um
sentido, um condicionante que ao intérprete não é possível alterar. Ao intérprete
não é dado “preencher” o sentido da norma quando não há vazio a ser preenchido;
não lhe é permitido substituir o sentido da coletividade expresso na lei pelo
sentido de pensamento subjetivista; ao intérprete, nesses casos, não é dado decidir
conforme sua consciência.
Dizendo de outro modo, se a norma/lei é clara, não tendo lacunas de
sentido, ela tem incidência cogente, não sendo possível ao intérprete afastar essa
incidência, não lhe é possível deixar de aplicá-la, a menos, é óbvio que afaste sua
incidência naquelas hipóteses em que isso é possível através de um controle de
constitucionalidade. Se não houve esse controle sobre a lei ou a norma, ela tem de
ser cumprida.
Os paradigmas conformam o nosso modo de compreender o mundo e
nada está a indicar que o direito esteja imune a isso, de modo que não poderiam
passar desapercebidas teorizações, enuncidados, decisões que reduzem o complexo
“ato de julgar” à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) devesse apenas
“explicações” a um, por assim dizer, “tribunal da razão” ou decorresse de “ato de
vontade” do julgador (STRECK, 2010, p. 18).
A questão que se coloca a seguir é a da superação desse problema.

APORTES FINAIS. O QUE FAZER COM OS JUÍZOS MORAIS, O


QUE FAZER COM A SUBJETIVIDADE?

Reconhecer ou deixar de reconhecer determinado direito, numa demanda


judicial, é uma questão de democracia. Numa democracia os juízes não têm escolha
(no sentido de poderem escolher aplicar ou não aplicar determinada norma). Na
democracia juiz não escolhe. Decide. E decide não conforme suas convicções
pessoais ou seus juízos morais, mas sim de acordo com o ordenamento jurídico
do Estado; no caso brasileiro decide de forma fundamentada, dando as razões
jurídicas de seu convencimento (Constituição, art. 93, IX).
Um dos elementos centrais desse tema, e particularmente relevante para a
discussão do ativismo judicial, é a questão a respeito de quais argumentos o Poder
Judiciário está autorizado, desde um ponto de vista democrático, a mobilizar para
resolver as demandas que chegam à sua jurisdição.
Ainda que de modo breve pelos limites desse ensaio, entendemos que juízes
e tribunais devem tomar decisões geradas por argumentos de princípio, não por

83
Mauro Borba

políticas, isto é, decisões sobre quais direitos as pessoas têm sob determinado
sistema constitucional, não decisões sobre como se promove o bem-estar geral
(DWORKIN, 2002).
Sustenta o pensador norte-americano que que a judicatura não deve invocar
argumentos que caracterizem convicções pessoais de ordem moral – own personal
morality – (LEAL, 2011). Mesmo quando precisam decidir questões que envolvam
problemas de dimensões morais, não devem confiar nas suas convicções pessoais
morais, mas na moralidade da comunidade como um todo, ou nos princípios
oriundos da história da Nação (LEAL, idem).
É preciso ter cuidado no sentido de que decidir por princípios não pode ser
encarado como álibi para nova discricionariedade.
No dizer de STRECK (2010, p. 96) as teorias do direito e da Constituição,
preocupadas com a democracia e a concretização dos direitos fundamentais-
sociais previstos constitucionalmente, necessita de um conjunto de princípios que
tenham nitidamente a função de estabelecer padrões hermenêuticos com o fito
de: a) preservar a autonomia do direito, garantindo respeito à sua integridade e
coerência; b) estabelecer que a fundamentação das decisões é um dever fundamental
dos juízes e tribunais; c) estabelecer condições hermenêuticas para a realização de
um controle da interpretação constitucional (imposição de limites às decisões – o
problema da discricionariedade); d) garantir que cada cidadão tenha sua causa
julgada a partir da Constituição e que haja condições para aferir se essa resposta
está ou não constitucionalmente adequada.

O CASO CONCRETO – SÍNTESE.

O caso judicial em concreto, que serviu de base fática para este trabalho, diz
respeito à Apelação-Crime nº 70070480017 (CNJ: 0258195-28.2016.8.21.7000), 4ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, comarca
de Estrela, julgada em 14.11.2017.
Onde o réu, recorrendo da sentença que o condenou em 1º grau, dentre
outras, alegou a nulidade da audiência de instrução e por conseguinte da sentença,
face à inobservância da regra contida no art. 212 do CPP, já que a juíza tomou a
iniciativa probatória, formulando, ela própria, as perguntas às testemunhas.
Tanto em 1º quanto em 2º grau o parecer do Ministério Público foi no
sentido do desacolhimento da nulidade arguída.
O voto do relator foi no sentido oposto, acolhendo a tese da nulidade,
sustentando: a) não fazer sentido falar-se em nulidade relativa quando se está

84
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

a tratar da imposição constitucional de respeito ao devido processo legal; b) do


mesmo modo, não é possível exigir a demonstração de prejuízo para a decretação
da nulidade, uma vez que, pela filtragem constitucional do processo penal, forma
é garantia, e se existe um tipo processual que determina/garante certa forma de
prática do ato e se essa forma é desrespeitada ou violada, o prejuízo, por óbvio,
é presumido. Nesse contexto, o “princípio” (sic) pas de nullité sans grief não foi
recepcionado pela nova ordem constitucional, de maneira que toda nulidade
pressupõe um prejuízo; c) tampouco é cabível alegar que as partes, em determinados
casos, convalidaram os atos instrutórios, sob pena de se passar de um “processo
de partes” para um “processo das partes”. O conceito de convalidação, como
decorrência da preclusão, é inadequado, pois convalidar como o “tornar válido
pelo decurso do tempo” é o mesmo absurdo de tornar legal um ato absolutamente
ilegal porque ninguém reclamou no “momento oportuno”. Ora, o processo penal
não pode chancelar ilegalidades praticadas por agentes do Estado usando esse
subterfúgio. Estamos tratando da violação de garantias constitucionais e não de
irregularidades contratuais ou discussões “privadas”; d) a Constituição, ao dispor,
no art. 129, inc. I, que cabe ao Ministério Público a titularidade da ação penal
pública, afastando da alçada do Poder Judiciário prerrogativas de ingerências na
acusação, estabeleceu, concomitantemente, o princípio (ou sistema) acusatório. E
com a reforma processual penal, levada a cabo pelas Leis nº 11.689/08 (Tribunal
do Júri), 11.690/08 (prova) e 11.719/08 (procedimento), mais um importante
passo foi dado na direção da concretização desse princípio. Isso ficou evidente,
entre outros aspectos, no que diz respeito à produção da prova, com a substituição
do sistema presidencialista ou inquisitorial pelo fiscalizador ou garantidor,
vinculado ao cross-examination, na medida em que passou a ser competência do
juiz apenas o indeferimento de perguntas impertinentes e, em caráter excepcional,
a complementação da inquirição das testemunhas a respeito de pontos
eventualmente não esclarecidos, conforme determina a nova redação do art. 212
CPP. Hoje, já não é mais possível desconhecer que a Constituição, ao estabelecer
o sistema acusatório, não recepcionou uma série de institutos processuais penais,
marcados pelo seu caráter inquisitório, visto que absolutamente incompatíveis com
o sistema acusatório adotado pelo novo paradigma constitucional; e) como não
houve revogação formal do dispositivo, nem afastada a sua incidência por algum
controle de constitucionalidade, a sua incidência ao caso era cogente, uma vez
que a magistrada que presidiu os atos da instrução criminal (mídias, ff. 189 e 200)

85
Mauro Borba

foi muito além de qualificar, tomar compromisso e contextualizar as testemunhas,


tendo adotado postura nitidamente inquisitorial, iniciando a formulação das
perguntas, portanto se antecipando à parte que as arrolou e, em alguns momentos,
conduzindo as respostas.
O voto revisor e afinal vencedor foi no sentido de que: a) a nulidade da
audiência de instrução pela ausência do representante ministerial deve ser rejeitada,
uma vez que, se existente, é de natureza relativa, dependendo da oportuna arguição
e da comprovação de efetivo prejuízo aos acusados (art. 563, CPP), o que inocorreu
no caso; b) não há vedação ao juiz, que preside a audiência, de perguntar aos réus
e às testemunhas. O entendimento encontra-se pacificado nos Tribunais Superiores
(RHC 117665, Relator: Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 10.09.2013, e RHC
68.845/ES, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 22.11.2016).
Ressaltando que a inquirição dos réus, sobre os fatos constantes da denúncia,
continua sendo atribuição do Juiz, pois o ato possui regramento próprio, consoante
os arts. 187 e 188, do CPP;
Esta é a posição majoritária do Segundo Grupo Criminal, deste Tribunal
(EMBARGOS INFRINGENTES E NULIDADE. LESÃO CORPORAL (ART. 129,
§ 9º, DO CP). PRELIMINAR DE NULIDADE. AUSÊNCIA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. ART. 212, DO CPP. ENTENDIMENTO
MAJORITÁRIO. A inobservância à regra do art. 212, do CPP, em virtude do não
comparecimento do Promotor de Justiça na audiência de instrução e interrogatório enseja mera
nulidade relativa, estando o seu reconhecimento atrelado à prova do prejuízo e se sujeitando
à preclusão. Na espécie, mesmo que o Julgador não tenha se limitado a complementar a
inquirição, mas sim conduzido a audiência e inquirido as testemunhas sobre os fatos constantes
da denúncia, inexistindo prova do prejuízo à defesa (art. 563, do CPP), inviável a nulificação do
aludido ato processual). Bem como posição da Câmara: (Apelação Crime Nº 70074511601,
Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Julio Cesar Finger, Julgado
em 09/11/2017; Apelação Crime Nº 70074366527, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 14/09/2017; Apelação Crime
Nº 70069277762, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides
Pedroso de Albuquerque Neto, Redator: Julio Cesar Finger, Julgado em 28/07/2016); c) o juiz
deve estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto; deve suprir as
deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par conditio; e
não pode se satisfazer com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova;
deve assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a analisar os elementos
fornecidos pelas partes, determinando sua produção, sempre que necessário, como

86
Os perigos do subjetivismo judicial – condições e possibilidades de seu controle. Estudo de caso

quer Antonio Magalhães Gomes Filho, em seu texto As Reformas no Processo Penal: As
novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma.
E isto se dá porque o processo (em face do duplo grau de jurisdição) e o
juiz são os destinatários das provas, razão pela qual também quem as colhe para
formar convicção e julgar pode sim inquirir as testemunhas no feito. Aliás, se pode
suprir eventuais deficiências dos litigantes, igualmente pode iniciar a inquirição
das testemunhas, passando a palavra às partes para que façam perguntas diretas
posteriormente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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professor Lenio Luiz Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 159-175.
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Ronaldo (Orgs.), Constituição e ativismo judicial: limites e possibilidades da
norma constitucional e da decisão judicial. Rio, Lumen Iuris, 2011.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação
do legislador: contributo para a compreensão das constitucionais programáticas. 2.
ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins
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87
Mauro Borba

STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. Hermenêutica jurídica


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Editora Revista dos Tribunais, vol. 2, São Paulo, 2014b.
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Coluna Senso Incomum in https://www.conjur.com.br/2016-dez-15/senso-
incomum-direito-tres-tipos-amor-isto-ver-subjetivismo; acessada em agosto 2018.
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Constitucional, disponível em https://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-
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______, O que é isto – decido conforme minha consciência? Livraria do
Advogado Editora, Porto Alegre, 2010.
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do
poder judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
VERÍSSIMO, Marcus Paulo. A Constituição de 1988, 20 anos depois:
suprema corte e ativismo judicial “à brasileira”. Revista Direito GV, São Paulo,
4(2), pp. 407-440, jul/dez 2008.

88
TRIBUNAIS, AUTORREFERÊNCIA E EVOLUÇÃO DO
SISTEMA DO DIREITO: O ART. 212 DO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL E OS TRIBUNAIS

COURTS, SELF-REFERENCE AND EVOLUTION OF


THE LEGAL SYSTEM: ARTICLE 212 OF THE CRIMINAL
PROCEDURE CODE AND THE COURTS

Diógenes Vicente Hassan Ribeiro1


Michelle Fernanda Martins2

Resumo: O direito é autorreferente. Os tribunais ocupam a posição central


do sistema jurídico. A evolução, que pode ser estimulada, não pode ser causada.
Na medida em que os tribunais operam apenas na forma da clausura operativa,
destacando a autorreferência, deixando de abrir-se cognitivamente, não ocorre
evolução sistêmica, sendo a complexidade externa do ambiente rejeitada. Isso
reafirma a autorreferência no ponto da clausura operativa do código operacional,
sem a abertura para a Constituição Federal, verdadeira aquisição evolutiva da
sociedade. Tal problemática pode ser observada nas decisões judiciais que versam
sobre o descumprimento do artigo 212 do Código de Processo Penal.
Palavras-chave: autopoiese; Código de Processo Penal; Constituição Federal

1 – Professor permanente do PPGD Direito e Sociedade UNILASALLE/Canoas/RS. Mestre e Doutor


em Direito, Desembargador do TJRS.
2 – Mestranda em Direito e Sociedade pelo Unilasalle; Bolsista CAPES; Advogada; michelle@
malgarinemartins.adv.br
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

Abstract: The lawis self-referential. The courts occupy the central position of the
legal system. The evolution that can be stimulated, can not be caused. To the extent that
the courts operate just in the way of operational closure, highlighting the self-reference,
not opening cognitively, there is no systemic evolution and the external complexity of
the environment.is rejected. This reaffirms the self-reference at the point of operative
closure of the operational code, without opening to the Federal Constitution, true
evolutionary acquisition of the society. This problematic can be observed in judicial
decisions that deal with Article 212 of the Criminal Procedure Code.
Keywords:autopoiesis; Criminal Proceedings; Federal Constitution.

1 – INTRODUÇÃO

Atualmente, na sociedade brasileira, vive-se em um Estado Democrático


de Direito3, no qual são assegurados diversos direitos e garantias aos indivíduos,
estando grande parte deles arrolados e garantidos no texto constitucional.
A Constituição da República Federativa do Brasil é a maior garantia do
cidadão e traça as diretrizes políticas do Estado. Mostra-se oportuno referir que
nossa Carta Constitucional foi publicada logo após um período ditatorial, sendo
“a constituição mais liberal e mais democrática que o país já teve”(CARVALHO, 2002, p.
199). Assim, a gama de liberdades e direitos é ampla, já que o povo havia aprendido
a importância destas previsões legais e procurava a democracia plena.
Após a promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988, diversos
outros textos legais foram modificados para que pudessem seguir as diretrizes
políticas nela estabelecida; entre estes instrumentos, encontra-se o Código de
Processo Penal.
O Código de Processo Penal foi promulgado em 1941, quando o Brasil
vivenciava o Estado Novo, ou seja, durante um regime totalitário (MARQUES,
1998, p. 104), onde não havia plenitude de direitos e garantias.Deste modo, a
colidência entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal afigura-
se inevitável, de modo que o texto legal do último necessita ser modificado e
readaptado, de modo que diversas reformas são feitas.
Estas reformas objetivam a garantir maiores direitos aos indivíduos, buscando
a condução de um processo justo e que assegure as garantias do acusado. No entanto,

3 – O conceito de Estado Democrático de Direito será analisado no decorrer do texto, adiantando-se,


desde já, que essa forma de Estado está prevista na Constituição Federal.

90
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

na prática, muitas vezes, denota-se a não aplicação destas reformas processuais, por
consequência, a não aplicação das garantias constitucionais dos cidadãos.
Pelas breves pesquisas recentes realizadas – as quais serão abordadas neste
artigo -, aparentemente uma destas garantias que, muitas vezes, não é aplicada, é
aquela constante no artigo 212 do Código de Processo Penal, a qual consiste na
mudança da forma de inquirição de testemunhas, buscando a imparcialidade do
julgador ao distanciá-lo da colheita de provas, ocorrendo a distinção das atividades
de acusar, julgar e defender, devendo estas serem feitas por órgãos distintos. Ou então,
aparentemente, quando se verificaa aplicação desta regra, o desrespeito a tal regra é
considerado tão somente uma nulidade relativa, conforme se verifica, por exemplo,
do posicionamento da Segunda Turma do STF (RHC 110.623/DF, HC 112.212/
SP, HC 117.102/SP e RHC 122.467/SP). Este problema mostra-se constante, em
especial, no primeiro grau de instrução, conforme será abordado neste artigo.
Esta não aplicabilidade das reformas de processo penal e, principalmente,
do artigo 212 do Código de Processo Penal, identifica-se como um problema a
ser enfrentado, pois não há respeito pela tradição4, pela herança histórica e pela
aquisição evolutiva da sociedade.
No entanto, pretende-se demonstrar que, ao serem desconstituídas ou
reformadas estas sentenças pelos tribunais, isto é, ao haver a afirmação que a não
aplicabilidade deste artigo não encontra respaldo na Constituição Federal, numa
perspectiva luhmanianna, o direito é reafirmado, pois é dito que aquilo não é
direito, sendo, portanto, direito.

2 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A FUNÇÃO DO


PROCESSO PENAL

Para analisar o ponto central deste trabalho, é necessário, primeiramente,


entender o que é o Estado Democrático de Direito, assim como entender qual seria
a função do processo penal dentro dele.

4 – Tradição é utilizada aqui no sentido trabalhado por Hans-George Gadamer: “A tradição sempre
é um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e venerável [...]
necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal
sempre está atuante nas mudanças históricas” (GADAMER, Hans George. Verdade e Método I: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad: Flávio Paulo Meurer. 7ª. Edição. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2005).

91
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

Para que se alcance a compreensão de no que efetivamente consiste o Estado


Democrático de Direito, necessário fazer um brevíssimo retrospecto de como se
chegou até esse estágio, passando inicialmente pelo Estado Liberal e pelo Estado
Social de Direito.
O Estado Liberal de Direito nasceu na metade do século XIX, principalmente
por meio da Revolução Francesa de 1789. Entretanto, oportuno ressaltar que
também foi institucionalizado na Alemanha e eclodido na Inglaterra e nos Estados
Unidos da América (BALLESTRIN; SANTOS, 1995, p. 460).
Nas palavras de Norberto Bobbio, o Estado Liberal justifica-se como “o
resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres que convencionaram estabelecer
os vínculos estritamente necessários a uma convivência pacífica e duradoura” (BOBBIO,
2000, p. 14).
Neste modelo, o povo passa a ser o soberano do Estado. O povo é
representado pelo Poder Legislativo, devendo esse exercer “a vontade do povo”.
Nesse sistema, o Poder Judiciário era considerado a simples “boca da lei”, isto é,
deveria agir/julgar conforme a lei determinava (BALLESTRIN; SANTOS, 1995,
p. 461), provavelmente em razão da vontade do povo já estar contida na legislação.
O Estado Social de Direito, por sua vez, surge em superação ao modelo
liberal que havia entrado em crise em virtude de problemas de ordem econômica:
não se resolvia o problema do proletariado, que vivia à margem da sociedade,
assim existindo grande desigualdade social. O Estado Social surge, portanto,
visando ao “bem-estar” social, o Estado confortador que intervém na realidade
social. Tem como objetivo principal assegurar as “garantias individuais dos cidadãos e
pelo cumprimento dos direitos sociais reconhecidos até então” (BALLESTRIN; SANTOS,
1995, p. 462).
Como consequência os direitos sociais e trabalhistas surgem e são
institucionalizados. A origem desses direitos remonta a Constituição de Weimar na
Alemanha, a Constituição do México e a Revolução Russa Social dos Trabalhadores
(BALLESTRIN; SANTOS, 1995, p. 462).
O Judiciário ganha novas funções, passando a ter a possibilidade de intervir.
Apresenta-se aqui um Judiciário interventor. É importante referir a criação
da Justiça Constitucional elaborada por Kelsen e o caso paradigmático norte-
americano Marbury vs. Madson (BALLESTRIN; SANTOS, 1995, p. 463).
Entretanto, até mesmo sob o Estado Social de Direito, não se resolve o
problema da desigualdade, razão pela qual surge uma nova concepção de Estado:
o Estado Democrático de Direito (MORAIS; STRECK, 2006, p. 97).

92
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

O Estado Democrático de Direito busca a síntese dos Estados anteriores


(Estado Liberal e Estado Social), buscando um equilíbrio, uma ponderação.
Segundo Lênio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais, o novo modelo objetiva
a “incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado
garantir através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à
comunidade” (MORAIS; STRECK, 2006, p. 54).
Este modelo é normatizado através de regras e princípios, sendo dotado de
uma grande carga axiológica e principiológica, “valorando assim por meio dos Direitos
Fundamentais, a realização e efetivação da proteção direitos individuais, difusos e coletivos,
visando a proteção das minorias frente às maiorias”. Aqui é importante frisar que vige o
princípio da supremacia constitucional, objetivando sempre o bem comum, através
dos preceitos de justiça social e substancial (BALLESTRIN; SANTOS, 1995, p.
462-463).
O Estado Democrático de Direito foi instituído por meio da Constituição
Federal de 1988, sendo que a República Federativa do Brasil é consolidada no
respeito e na garantia da efetivação de direitos, liberdades fundamentais e respeito
à dignidade da pessoa humana. Ou seja, o Estado Democrático de Direito é aquele
que respeita a plenitude dos direitos sociais, onde os direitos humanos são direitos
inerentes a todos (CONCEIÇÃO; MELO, 2011, p. 1816).
No tocante à função do processo penal, deve-se destacar ensinamento de
Nereu Giacomolli, que refere que“uma leitura convencional e constitucional do processo
penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o
processo penal humanitário” (GIACOMOLLI, 2014, p. 12). Isto é, deve-se analisar
o processo penal pelo viés constitucional, de modo a garantir o devido processo
penal e, por consequência, os direitos humanos.
Se houve uma análise da história, pode-se perceber que o direito processual
penal possui movimentos oscilantes, sendo que, em determinado momento,
preocupa-se mais com a segurança da sociedade, enquanto, em outros momentos,
preocupa-se mais com as garantias do indivíduo (FERNANDES, 2010, p. 19).
Antônio Scarance Fernandes destaca que:

o processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si


valores políticos e ideológicos de uma nação. Espelha, em determinado
momento histórico, as diretrizes básicas do sistema político do país,
na eterna busca de equilíbrio na concretização de dois interesses
fundamentais: o de assegurar ao Estado mecanismos para atuar o seu

93
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

poder punitivo e o de garantir ao indivíduo instrumentos para defender


os seus direitos e garantias fundamentais e para preservar a sua liberdade
(FERNANDES, 2010, p. 22)

O processo penal não é somente um instrumento que reflete os valores


políticos e ideológicos da nação. Ele, na verdade, é o espelho das diretrizes políticas
do país em certo momento histórico, buscando sempre equilibrar dois direitos
fundamentais: a defesa dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, visando
a assegurar a sua liberdade, assim como garantir mecanismos ao Estado para que
este realize o seu poder punitivo.
Tendo esta noção presente, é importante saber que, acima de tudo, o processo
penal tem função garantidora:

Por intermédio do processo penal, a sociedade deverá ter a garantia não só


de que as regras do jogo processual serão observadas, mas também de que
os valores em discussão tenham a limitação garantidora. Somente haverá
a máxima efetividade de direitos se houver uma máxima efetividade de
garantias, sendo imprescindível que haja uma normatização constitucional
para ampará-las. É aqui que surge a necessidade de discutir e identificar
qual é o sistema processual penal adotado pela Constituição. (BIZOTTO;
EBERHARDT; JOBIM, 2006, p. 20)

É necessário que o processo penal tenhafunção garantidora. Em outras


palavras, é importante que haja uma máxima efetividade de direitos, que os
direitos dos indivíduos sejam garantidos e que, para isso, exista uma normatização
constitucional que as assegure. Esta seria a razão pela qual se precisa saber qual o
sistema processual penal adotado pela Constituição.
Tendo abordado sobre o que seria o processo penal, mostra-se relevante
destacar o que se entende por função na abordagem deste artigo. Conforme os
conceitos de Niklas Luhmann, função/funcionalismo é aquilo que torna único
e diferencia determinado fenômeno, o que o torna contigente e confrontável
com outros fenômenos, sendo, aliás, essa confrontação que torna possível o
conhecimento (CORSI; BARALDI; ESPOSITO, 1996, p. 80). A função da arte, por
exemplo, seria a possibilidade de ofertar ao mundo a possibilidade de contemplá-lo
a si próprio, fazer com que o mundo apareça no seu interior (CORSI; BARALDI;
ESPOSITO, 1996, p. 20).

94
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

Dessa forma, verifica-se que a função do processo penal é não só assegurar


o poder punitivo do Estado, para garantir a segurança da sociedade, mas também
assegurar aos indivíduos as suas garantias e instrumentos para defender a sua
liberdade em face ao Estado. Além disso, esta função seria o que permitiria ao
processo penal entrar em choque com os demais fenômenos da sociedade, a partir de
onde torna-se possível debater e construir o conhecimento de alternativas possíveis.

3 – AS REFORMAS DE PROCESSO PENAL

Como já referido anteriormente, o Código de Processo Penal foi promulgado


em 1941, quando vigorava no Brasil um regime totalitário, o Estado Novo, sendo
que, portanto, as diretrizes políticas nele constantes foram relativas àquele tempo.
Contudo, posteriormente, em 1988, foi promulgada a Constituição, que trouxe uma
série de direitos e garantias que protegem a garantia do indivíduo, de modo que
foi necessária a readaptação do processo penal e, portanto, de seu diploma legal.
Desta forma, foram realizadas diversas reformas no Código de Processo
Penal. A primeira delas é a Lei 10.792/2003 que promove alteração no capítulo
de interrogatório do acusado no Código de Processo Penal, visando a garantir o
direito ao interrogado, em especial, o direito ao silêncio.
Após, no ano de 2008, são publicadas a Lei 11.689/08, a Lei 11.670/08 e a
Lei 11.719/08, que trazem uma série de modificações, as quais buscam modernizar
o procedimento do processo penal e torna-lo mais célere. Há ainda a Lei 11.960/08
que busca dar mais direitos às vítimas.
Após as reformas, verifica-se, pelo disposto nos artigos 156, inciso I, e artigo
257, ambos do Código de Processo Penal, que o sistema brasileiro processual penal
adotado é o acusatório, que dispõe que as tarefas de acusar, julgar e defender são
distintas, sendo exercidas por pessoas diferentes.
Ainda, buscando se conformar ao sistema acusatório, pode se ver, no artigo
155 do Código de Processo Penal, que são proibidas decisões fundamentadas tão
somente colhidas no processo investigativo.
Vê-se também que a Lei 11.719/08 alterou significativamente os processos
comum e sumário. Nos crimes em que a pena máxima cominada for de quatro anos
ou superior, o procedimento será o comum. Quando a pena máxima cominada
foi inferior a quatro anos, o procedimento será o sumário. Já o procedimento
sumaríssimo será aplicado às infrações de menor potencial ofensivo.

95
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

Outra modificação relevante é aquela trazida pela Lei 11.719/08 que


prevê que o interrogatório do acusado seja o último ato da instrução processual
penal.
Outras alterações importantes também, no âmbito processual penal, dizem
respeito a necessidade de fundamentação da prisão preventiva, assim como a
concentração dos atos em uma só audiência e a possibilidade de absolvição sumária
após a apresentação da defesa, entre outras.
No entanto, a reforma que interessa aqui discutir é aquela feita por meio do
artigo 212 do Código de Processo Penal, feita por meio da Lei 11.690/08, a qual
transformou a forma de inquirição de testemunhas, que será abaixo debatida.

4 – A (NOVA) FORMA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS DO


CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A SUA APLICAÇÃO NA PRÁTICA

O artigo 212 do Código de Processo Penal, por meio da redação dada


pela Lei 11.690/08, refere que “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente
à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem
relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”.
No parágrafo único do artigo 212 do Código de Processo Penal, é referido
que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
A reforma trazida pela Lei 11.690/08 mudou, portanto, a forma de
inquirição de testemunhas, limitando o juiz a questionar apenas sobre pontos não
esclarecidos. Desta forma, é necessário tecer algumas considerações.
Conforme já acima salientado, o modelo de processo penal adotado pelo
Brasil é o sistema acusatório (GRECO FILHO, 2012, p. 173), o qual consagra
como garantias o contraditório e a ampla defesa, já que, em seu artigo 129, inciso
I, consagrou a promoção da ação penal como ação privativa do Ministério Público,
consagrando sua opção pela distinção das tarefas de julgar, acusar e defender.
Estabelecido o sistema acusatório, torna-se necessário retirar a gestão
probatória das mãos do julgador, conferindo-se liberdade às partes para apresentar
provas sem interferência judicial(BIZOTTO; EBERHARDT; JOBIM, 2006, p. 23),
já que, no sistema antigo e arcaico, muitas declarações se perdiam em razão da
sistemática adotada.

96
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

Primeiramente, as perguntas eram feitas pelo juiz, depois a parte que a tinha
arrolado e depois a parte contrária. O assistente de acusação questionava após o
Ministério Público. No sistema anterior, o juiz as elaborava mentalmente e traduzia
a testemunha. A testemunha respondia e o juiz, interpretando a linguagem, as
traduzia para sua linguagem e ditava ao serventuário, que a datilografava, de modo
que muitas declarações eram perdidas (GIACOMOLLI, 2008, p. 56).
Ainda sobre a complementariedade da inquisição pelo juiz, no caso de
pontos não esclarecidos, Nereu Giacomolli refere que:

Mesmo sendo o julgador o destinatário da prova, cabe às partes perguntar


o que interessa ao direcionamento do convencimento que desejarem, num
jogo dialético entre elas, próprio de um modelo acusatório de processo
penal. A função do juiz é manter o equilíbrio processual na colheita
da prova. Entretanto, para os que admitem a atuação do magistrado, o
parágrafo único do art. 212 há de ser interpretado restritivamente, ou
seja, a intervenção do magistrado é supletiva, somente sobre pontos
não esclarecidos, em face do que foi perguntado e respondido pelas
testemunhas, vedando-se perguntas sobre pontos não levantados pelas
partes em suas perguntas. Sendo admissível sua intervenção subsidiária,
esta ocorrerá após a das partes. (GIACOMOLLI, 2008, p. 57).

Nereu Giacomolli refere, portanto, que o juiz é tão somente o destinatário da


prova, não competindo a ele produzi-lá. A função do juiz é tão somente equilibrar
a relação processual na colheita da prova. Ainda que se admita a intervenção
do julgador neste momento, de produção probatória, ela serve tão somente para
suplementar pontos que não foram esclarecidos.
A adoção pelo artigo 212 no Código de Processo Penal representa que
o sistema da cross-examination ou direct examinationfoi adotado e não mais o
sistema presidencialista(BARROS, p.3).O sistema presidencialista era o que era
adotado antigamente, antes da reforma de 2008, na qual as partes realizavam
os questionamento, e o juiz redirecionava ao depoente. Com a reforma e a nova
redação do artigo 212, passa-se a adotar o sistema da cross-examination ou direct
examination, no qual as partes lançam questionamentos diretamente ao depoente, e
não há mais o intermédio do juiz.

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Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

Analisando os julgados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, vislumbra-


se que existem cinco habeas corpus que foram julgados com esta matéria: HC
122.467/SP, HC 14.787/SP, HC 117.102/SP, HC 112.212/SP e HC 110.623/DF.
Em todos os cinco julgados, compreendeu-se que não deveria se declarar a nulidade
do julgado, pois não havia sido comprovado o prejuízo, consoante o artigo 563 do
Código de Processo Penal.
No mesmo sentido, existem diversas decisões nesse sentido no Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul. A título apenas de exemplo, cita-se a Apelação
70057862138 (3ª Câmara Criminal), Apelação 700648167828 (7ª Câmara Criminal)
e Apelação 70063099709 (6ª Câmara Criminal), todas julgadas no ano de 2015.
O artigo 563 do Código de Processo Penal estabelece que “Nenhum ato será
declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.”
Conforme Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio
Magalhães Gomes Filho:

Constitui seguramente a viga mestra do sistema das nulidades e decorre


da ideia geral que as formas processuais representam tão-somente a
um instrumento para a correta aplicação do direito; sendo assim, a
desobediência às formalidades estabelecidas pelo legislador só deve
conduzir ao reconhecimento da invalidade do ato quando a própria
finalidade pela qual a forma foi instituída estiver comprometida pelo
vício. (FERNANDES; FILHO; GRIONVER, 1999, p. 26)

Portanto, a nulidade só pode ser declarada quando a finalidade da própria


norma estiver comprometida pelo vício em questão, de modo que, nos casos em
concreto acima salientados, se considerou que o desrespeito a regra não trouxe
prejuízo ao réu, razão pela qual não deveria ser reconhecida a nulidade, observando
assim o diploma processual penal vigente.
Merecem destaque ainda seis casos discutidos pelo Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul: Apelação 7055015051, Apelação 70053747077, Apelação
70054173893, Apelação 70052922382, Apelação 70052873015 (todos da 5ª
Câmara Criminal) e Apelação 70035811710 (3ª Câmara Criminal).
Nestes seis casos, foi declarada a nulidade da instrução no órgão de primeiro
grau, tendo em vista a violação do artigo 212 do Código de Processo Penal, já
que o juiz teria substituído ao Ministério Público, não tendo o órgão acusador
comparecido nas audiências. Os acórdãos destacam que ao juiz não é vedado

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Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

formular perguntas; no entanto, não pode substituir o órgão acusador, violando o


sistema acusatório, assim como caracterizando ativismo judicial5.
Ao analisar a apelação 70035811710, o julgador esclarece o procedimento
da seguinte maneira:

Primeiramente a parte demonstra o que pretende provar com a inquirição


de determinado sujeito; em seguida, garante-se o contraditório e, por
último, o magistrado, realiza a complementação, na esteira da situação
processual formada com as perguntas, com o objetivo de esclarecer
situações que, a seu juízo, não restaram claras. Caminha-se na esteira
de um sistema democrático, ético e limpo de processo penal (fair play).
Evitam-se os intentos inquisitoriais, o assumir o lugar da parte, a
parcialização do sujeito encarregado do julgamento. A nova realidade
processual, na perspectiva da complexidade contemporânea, da
velocidade, instantaneidade, telepresença, temporalidade expansiva,
do devir e do estar, abandona o primitivismo paternalista e adentra
na supremacia da constituição e da necessidade de aplicação da regra
ordinária quando encontrar respaldo constitucional.

Verifica-se, portanto, que, nestes seis acórdãos, as decisões foram


reformadas, visando a assegurar o sistema acusatório constitucional, assegurando
assim a função do processo penal, que é – principalmente – garantir os direitos
fundamentais dos indivíduos.
Estando vinculada a nova realidade processual com complexidade moderna,
em razão do período que hoje se vive, assim como com a Constituição,conforme
acima ressaltado, pretende-se abordar tais assuntos, assim como analisar o papel
da sentença em um papel pós-moderno. Do mesmo modo, pretende-se abordar a
Constituição como aquisição evolutiva da sociedade.

5 – Quando se fala em ativismo judicial, se está referindo a “ultrapassagem das linhas demarcatórias da
função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e,
até mesmo, da função de governo” (RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial – Parâmetros Dogmáticos.
São Paulo: Saraiva, 2010, 2010, p. 116).

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Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

5 – A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE MODERNA E A SUA


POSSÍVEL REDUÇÃO (TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS E A AUTOPOIESE)

ParaAnthony Giddens, vive-se hoje em uma sociedade pós-tradicional, em


uma sociedade que reconstruiu a tradição, enquanto a dissolvia, já que, em alguns
momentos, “a tradição polarizou alguns aspectos fundamentais da vida”, enquanto
outros foram deixados de lado, como o “iluminismo radicalizador” (GIDDENS,
1997, p. 74). Embora esse notório sociólogo não aborde a teoria dos sistemas
sociais, acredita-se ser importante referir algumas das suas observações no presente
texto, considerando a contribuição do conjunto da sua obra para a compreensão
da sociedade.
Vive-se hoje em uma sociedade complexa. A complexidade seria o “excesso
de possibilidades, contra a contingência de soluções, em que deve haver seleção, opção,
escolha, por uma hipótese, que pode não se revelar a correta” (RIBEIRO, 2014, p. 62).
Quanto mais possibilidade de escolha se tem, mais complexidade há, assim sendo
o contexto pós-tradicional:

Nos contextos pós-tradicionais, não temos outra escolha senão decidir


como ser e como agir. Partindo desta perspectiva, até os vícios são
escolhas: são modos de se enfrentar a multiplicidade de possibilidades
que quase todos os aspectos da vida cotidiana, quando se olha da maneira
adequada, oferecem(GIDDENS, 1997, p. 94)

Anthony Giddens, portanto, destaca que, no contexto pós-tradicional, é


necessário que sejam feitas diversas escolhas, as quais envolvem o nosso ser e o
nosso agir, de modo que até os nossos vícios seriam escolhas. As nossas escolhas
seriam a forma de enfrentar as possibilidades que nos são oferecidas em todos os
aspectos da vida cotidiano.
Essa multiplicidade de ofertas e possibilidades, carrega consigo o risco e
o perigo. Conforme Diógenes Ribeiro, amparado em Niklas Luhmann, “há risco
e improbabilidades, o que demanda esforço e cálculo, que somente servem para reforçar a
conclusão”.
Para explicar o risco e o perigo, Germano Schwartz refere que “Se o futuro
dano é consequência de decisão, está-se diante do risco. Por outro lado, se se julga que o
dano posterior é provocado externamente, ocorre o perigo” (SCHWARTZ, 2015, p. 13).
Ou seja, quando o possível dano advém de uma decisão, há o risco. Quando o

100
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

futuro dano é um fenômeno externo, ocorre o perigo. Ressalta-se ainda que “o risco
deve ser tratado como um fenômeno de contingência advinda da complexidade da sociedade
contemporânea” (SCHWARTZ, 2015, p. 15).
Para que se possa compreender o risco e o perigo, é preciso compreender a
sociedade. Para explicar a sociedade, Niklas Luhmann6 cria a teoria dos sistemas
sociais. Esta teoria refere que a sociedade é um todo, sendo dividida em diversas
esferas (economia, política, direito, entre outros) (LUHMANN, 1993, p. 9-10),
sendo que a sociedade é composta de comunicação e só de comunicação, embora
esta seja improvável. Luhmann salienta a improbabilidade de consenso:

Para una teoría de los sistemas sociales no se puede contar con un tal
consenso, y esto sobre todo es válido para describir el sistema de derecho
como un sistema social autopóietico, operativamente clausurado. En
este sentido, la ciencia del derecho que se considera ciencia de textos
no tiene ninguna necesidad de dar ninguna explicación. La sociología
del derecho se conforma la mayor parte del tiempo con un concepto
vago de acción o de comportamiento (behavior) y llena los contenidos
específicos del derecho con la consideración de las representaciones y las
intenciones del que actúa o con la consideración del “sentido mentado”
(gemeinten Sinn de Max Webber) de la acción. Para nosotros esto no basta.
No discutimos que existan operaciones del tipo psíquico equivalentes a
las operaciones sociales del derecho y que se puedan investigar en modo
empírico (con la conocida falta de confiabilidad). Pero aquel que se orienta
conscientemente al derecho, debe saber de qué sentido se trata. Debe
remitirse a un sistema social de derecho ya constituido a los sedimentos
textuales de este sistema.(…) La autopoiesis del derecho se puede realizar
tan sólo mediante operaciones sociales (LUHMANN, 1998, p. 103-104)

Na teoria dos sistemas sociais, não é possível se contar com um consenso.


Disso decorreria a importância de verificar o direito como um sistema autopoiético,
que é operativamente enclausurado, sendo que o direito não teria a necessidade de

6 – Niklas Luhmann refere que complexidade não se confunde com complicação, mas explica que
é uma questão crucial observar a complexidade. Além disso, refere que, sem observador, não há
complexidade.. (LUHMANN, Niklas.Introdución a la teoría de sistemas. México D. F.: Antrhopos,
1996a, p. 144)

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Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

dar explicações. Contudo, aquele que se orienta ao direito, precisar entender o seu
sentido, remetendo-se ao sistema social do direito. Em outros termos, o direito,
para se reproduzir autopoieticamente, necessita,além da clausura operativa do
código, que o diferencia, também da abertura cognitiva ao ambiente. Conforme já
acima referido, o direito, como sistema e como função, precisa se “confrontar” com
outras funções, de outros sistemas, para que haja a construção do conhecimento,
assim como a sua compreensão.
A autopoiese consiste em “um sistema que é capaz de se autorreproduzir por
intermédio de seus próprios elementos em uma lógica recursiva” (SCHWARTZ, 2015,
p. 19). Assim sendo, mesmo que não ocorra qualquer forma de consenso entre os
sistemas sociais e os subsistemas, o direito – que tem como função a estabilização
das expectativas normativas através da regulação - (LUHMANN, 1998. p 188),
para realizar a sua função e se reproduzir autopoieticamente, precisa aprender dos
outros, por via da abertura cognitiva, o que faz, ou pode fazer, também através das
decisões judiciais.
A autopoiese do direito, nesse sentido, seria também uma forma de redução
da complexidade, a medida em que o direito se permite escolhas. Estas escolhas
são feitas por meio de sentenças judiciais, as quais se revelam um gerenciador de
risco, na medida em que optam por determinada solução, analisando as possíveis
consequências e buscando a ter o menor risco possível.
Através da análise de escolhas e riscos feitas por Anthony Giddens, em
“Modernização Reflexiva”, verifica-se que a decisão judicial nada mais é do que
uma forma de reduzir a complexidade na sociedade pós-moderna, pós-tradicional.
Assim também é o ensinamento de Leonel Severo Rocha:

O risco é a contingência: uma decisão sempre implica a possibilidade de


que as suas consequências ocorram de maneira diferente. As organizações
são os sistemas encarregados de reduzir a complexidade em tal situação.
E essa é uma das funções do Poder Judiciário, cuja posição é central no
Sistema do Direito (ROCHA, 2013, p. 37)

Nesse sentido, as organizações são as responsáveis por reduzir a


complexidade na sociedade, sendo esta uma das funções do Direito. A decisão
judicial é, portanto, um gerenciador de risco em uma sociedade pós-tradicional,
a qual apresenta diversos riscos. Na proporção em que a decisão judicial é o
gerenciador de risco da nossa sociedade pós-moderna, quando leis são criadas ou

102
Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

readaptadas, é porque se acredita que o juiz poderá gerenciar aquele risco quando
da aplicabilidade da legislação.
Os problemas pós-tradicionais; no entanto, não descartam a tradição.
Questiona-se, portanto, até que ponto a tradição deve ser observada e até que ponto
deve ser questionada, ponto que será abordado em seguida.

6 – A CONSTITUIÇÃO COMO AQUISIÇÃO EVOLUTIVA DA


SOCIEDADE E O PROBLEMA DA TRADIÇÃO

No Estado Democrático de Direito brasileiro, a maior garantia que se possui


é a Constituição Federal, instrumento que garante nossos direitos e garantias,
trazendo uma plenitude de direitos individuais e sociais.
Conforme Germano Schwartz, a Constituição deve ser vista como uma
aquisição evolutiva da sociedade(SCHWARTZ, 2015, p. 9), isto é, a Constituição
evolui conforme a sociedade evolui. Acredita-se que não somente a Constituição,
mas o direito, como um todo, também deve ser verificado como uma aquisição
evolutiva da sociedade.
Embora o direito possa ser previsto legalmente, pode ocorrer que este
não seja concretizado, pois conflite como outras esferas da sociedade, como, por
exemplo, a moral ou a política, sendo, que para a sua concretização ser realizada,
será mais fácil quando a sociedade já tiver evoluído naquele determinado ponto e
entender a importância de sua concretização.
Dessa forma, a aquisição evolutiva da sociedade estaria diretamente
relacionada à tradição e/ou à memória, pois o direito somente se implementaria e
seria concretizado efetivamente a partir do momento em que a sociedade estivesse
pronta para cumpri-lo, não rompendo com a função estabilizadora das expectativas
normativas dos indivíduos.
Isso também não significa que os direitos não deveriam ser implementados.
Ao revés, é extremamente importante que eles sejam implementados, para que
possa ocorrer este choque com as outras esferas da sociedade, pois, como acima
já referido, embora improvável o consenso entre os sistemas e suas respectivas
funções na sociedade, o entendimento e o conhecimento só serão possíveis através
deste choque. Contudo, deve-se destacar que “a evolução não pode ser causada, nem
construída, apenas estimulada” (RIBEIRO, 2014, p. 66).

103
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

Porém, para que este estímulo seja possível, imprescindível que se entenda
a tradição e/ou memória da sociedade, pois será através dela que será possível
a compreensão de como ocorreu, ocorre ou ocorrerá a evolução, procurando
assim evitar consequências indesejadas. Conforme Giddens, “tradição está ligada
à memória”(GIDDENS, 1997, p. 81). Ainda, segundo o autor, “a memória é um
processo ativo, social, que não pode ser apenas identificado com a lembrança” (GIDDENS,
1997, p. 81).
A memória e a tradição se mostram importantes, pois ensinam com a
própria história, conforme ensinamento de Hans-George Gadamer:

A tradição sempre é um momento da liberdade e da própria história.


Também a tradição mais autêntica e venerável [...] necessita ser afirmada,
assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal
sempre está atuante nas mudanças históricas” (GADAMER, 2005, p. 422).

Atradição necessita ser afirmada, para que se possa aprender com a a


história.
Ainda que se viva em sociedade complexa, onde existem múltiplas opções
de decisões, assim como existe uma gama de problemas pós-modernos, não é
possível descartar a tradição e a herança já conquistadas. Não se pode desprezar o
direito que a sociedade já adquiriu. Ao revés, deve-se aproveitar os ensinamentos
que elas trouxeram.
Todavia, por igual, não se pode deixar de questionar esta tradição para
que se possa evoluir enquanto sociedade; contudo, é sempre necessária uma
argumentação relevante para que se possa descartá-las.
Dessa forma, as garantias constitucionais previstas, portanto, na
Constituição Federal, em especial, no que diz respeito à persecução penal, não
devem ser ignoradas. Se a Constituição estabelece que o sistema processual penal
segue o sistema acusatório, utilizando o contraditório e a ampla defesa, isso deve
cumprido.
Por isso, não há como ignorar que o sistema acusatório é uma conquista da
sociedade e que por isto não pode ser eliminado. Do mesmo modo, não se pode
ignorar a observação ao artigo 212 do Código de Processo Penal por representar
a tradição e a herança histórica já conquistada. Nesse sentido, destacam Bizotto,
Eberhardt e Jobim:

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Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

Afasta-se, pois, de qualquer idéia de um processo penal que possua


um magistrado que proceda de ofício, ainda mais quando na busca e
valorização da prova; construído desde uma instrução escrita e secreta,
nos quais estão excluídos ou limitados o contraditório e o direito de
defesa (BIZOTTO; EBERHARDT; JOBIM, 2006, p. 26)

Estando determinado que o julgador deve afastar-se da colheita de provas,


para que seja possível um sistema acusatório, assim deve ser feito, para que o
contraditório e o direito de defesa não sejam limitados.

7 – O ARTIGO 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E O


SISTEMA AUTOPOIÉTICO

Do mesmo modo, torna-se necessário demonstrar que, apesar das


dificuldades aqui apresentadas, o direito, por ser um sistema autopoiético, apresenta
as respostas a ele próprio, conforme será abaixo aplicado.
Utilizando-se dos seis casos acima listados apreciados pelo Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, verifica-se que o Tribunal, ao decidir, respondeu a
ele mesmo e afirmou o direito, de forma autopoiética.
Na Apelação 70055015051, Apelação 70053747077, Apelação 70054173893,
Apelação 70052922382, Apelação 70052873015 (todos da 5ª Câmara Criminal) e
Apelação 70035811710 (3ª Câmara Criminal), verificou-se que, em primeiro grau,
um dispositivo processual penal, alinhavado com a Constituição Federal, tinha
sido violado, já que não se observou o artigo 212 do Código de Processo Penal.
No entanto, os tribunais reformaram estas decisões, respondendo à sociedade o
que era direito.
Os Tribunais, ao aplicarem o artigo 212 do Código de Processo Penal,
o analisaram em consonância com as disposições constitucionais, afinal “a
Constituição somente pode ser compreendida a partir de diferenciação funcional entre o
sistema político e o sistema jurídico, visto que se apresenta como uma aquisição evolutiva
da sociedade”, de forma que utiliza o direito da razão e não mais o direito natural
(SCHWARTZ, 2015, p. 26-27).
Conforme Luhmann, os tribunais ocupam o papel central no sistema
jurídico (LUHMANN, 1990), pois somentes estes têm a possibilidade de prolatar
decisão com o enforcing power final (LUHMANN apud SCHWARTZ, 2015,

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Diógenes Vicente Hassan Ribeiro e Michelle Fernanda Martins

p. 21). Assim, “as decisões dos tribunais se irradiam perante todo o sistema, alimentando
e reprocessando a periferia, ao mesmo tempo em que ela influencia e irrita as decisões dos
tribunais” (SCHWARTZ, 2015, p. 21).
A periferia, por sua vez, seria a legislação, “o ponto onde há a abertura cognitiva
e pelo meio do qual se mantém a unidade interna, situando-se a periferia como verdadeiro
borderline ente o sistema jurídico e o sistema político”(SCHWARTZ, 2015, p. 21).
Nessa forma, o Tribunal ao afirmar que a não aplicação do artigo 212 é
um não-direito, que o julgador não pode substituir o órgão acusador, acaba por
declarar o constante no artigo 212 do Código de Processo Penal como direito, já
que tudo aquilo que não se conforma com direito, demonstra que o contrário é o
direito. É o binômio Direito/Não Direito. (SCHWARTZ, 2015, p. 25).
A Constituição da República Federativa do Brasil passa a ser, portanto,
a unidade da diferença entre o Processo Penal e o que não é direito, já que a
Constituição estabelece diretrizes políticas para o processo penal, assim como
se comunica com outras esferas da sociedade, em especial, com a política,
representando as escolhas da sociedade. Desse modo, verifica-se que os tribunais
atendem ao questionamento da sociedade, informando que o sistema acusatório é
um direito, uma aquisição evolutiva da sociedade.

8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da observação, é possível identificar que, na Constituição da


República Federativa do Brasil, há direitos e liberdades que representam uma
aquisição evolutiva da sociedade, esta aquisição ocorreu através da tradição e da
herança histórica.
Do mesmo modo, pode-se observar que, para a conformaçãoda normas
constitucionais, o Código de Processo Penal necessitou passar por diversas
alterações. No entanto, vislumbra-se que, na prática, nem sempre estas reformas
são atendidas, a exemplo do caso do artigo 212 do Código de Processo Penal, em
especial, quando se trata de julgamento em primeiro grau.
É possível observar que, em seis casos, os julgamentos de apelação no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconheceram a nulidade arguida, pois
o juiz havia substituído o órgão acusador, em clara violação ao sistema acusatório
e assim violando as garantias do acusado, o que se transveste em problema grave,
já que há notório rompimento com a tradição e a herança histórica e, logo, com a

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Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

aquisição evolutiva da sociedade, sem que haja argumentação relevante.


A decisão judicial de primeira instância, nestes casos, deixa de observar a
tradição/memória, não analisando os riscos que a decisão poderá trazer, o que
poderia comprometer a reprodução autopoiética do direito. Contudo, verifica-
se que, os tribunais, em sede de segunda instância, sendo o centro do direito,
conseguem responder ao seu próprio sistema, já que conseguem decretar a anulação
da instrução probatória e demonstrar que o sistema acusatório é um direito da
sociedade e, portanto, do indivíduo, impondo-se sua aplicação.
Ademais, é importante referir que a Constituição Federal passa a ser união
entre o processo penal e o não direito, já que a Constituição traz diretrizes políticas
para o processo penal, permitindo que este fenômeno – e suas escolhas – entre em
conflito com outros fenômenos e outras esferas da sociedade. Somente a partir
deste dissensso será possível o entendimento das diretrizes políticas estabelecidas
para o processo penal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ativismo judicial. Revista da ESMESC (Escola Superior da Magistratura do
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Tribunais, autorreferência e evolução do sistema do direito: o art. 212 do Código de Processo Penal e os Tribunais

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110
VULNERABILIDADE NOS SERVIÇOS PÚBLICOS
EDUCACIONAIS: O CASO DO DIREITO À EDUCAÇÃO
DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA.

Leonel Ohlweiler1

RESUMO: o presente artigo examina a vulnerabilidade nos serviços


públicos educacionais, a partir do caso da ADI nº 5357 julgado pelo Supremo
Tribunal Federal. A ação foi proposta defendendo a inconstitucionalidade dos
artigos 28 e 30 do Estatuto da Pessoa com Deficiência. A metodologia utilizada
foi pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com estudo de caso. Concluiu-se que
as obrigações impostas às entidades particulares educacionais são constitucionais.
É fundamental adotar o paradigma social para melhor compreender
hermeneuticamente a vulnerabilidade, pois as situações de exclusão originam-se
do modo como a sociedade está organizada. A Convenção Internacional sobre os
Direitos da Pessoa Com Deficiência aplica-se aos serviços de educação brasileiros.
A Lei nº 13.146/2015 materializou o dever constitucional de remoção de barreiras
capazes de obstruírem a participação plena e efetiva das pessoas com deficiência
na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: vulnerabilidade, serviços públicos, educação,
pessoas com deficiência, inclusão.

1 – Pós-Doutor em Direito pela UFSC. Mestre e Doutor em Direito. Desembargador do TJRS. Professor
da UNILASALLE, nos cursos de Graduação e Mestrado. Coordenador da revista de Jurisprudência
do TJRS.
Leonel Ohlweiler

ABSTRACT: this article examines the vulnerability in educational public


services based on the Case of ADI No. 5357 judged by the Supreme Court. The action
was filed arguing the unconstitutionality of Articles 28 and 30 of the Statute of Persons
with Disabilities. The methodology used was bibliographical and jurisprudential
research with case study. It is concluded that the obligations imposed on educational
private entities are constitutional. It is essential to adopt the social paradigm to
better understand hermeneutically vulnerability because the exclusion situations are
originated the way in which society is organized. The International Convention on the
Rights of Persons with Disabilities is applicable to Brazilian education services. Law nº
13.146 / 2015 materializes the constitutional duty of removing barriers able to obstruct
the full and effective participation of disabled people in society.
KEYWORDS: vulnerability, public services, education, people with
disabilities, inclusion.

INTRODUÇÃO.

O tema da vulnerabilidade das pessoas com deficiência sempre foi algo debatido
no âmbito do Direito e, de algum modo, relativamente a alguns serviços públicos,
no Direito Administrativo. No entanto, por ocasião da entrada em vigor da Lei nº
13.146/2015 as discussões intensificaram-se, pois o texto introduziu significativas
mudanças paradigmáticas ao adotar os pressupostos da Convenção sobre Direitos
das Pessoas com Deficiência. Migrou-se do vetusto entendimento de deficiência sob
a perspectiva médica para o modo de compreensão biopsicossocial, como o próprio
artigo 2º, §1º, da citada legislação brasileira refere. De que modo os serviços públicos,
sejam eles prestados diretamente pelo Estado ou por pessoas jurídicas de direito
privado, entenderam a nova concepção quando voltados para pessoas com deficiência?
O julgamento da ADI 5.357 pelo Supremo Tribunal Federal discutiu a
questão, considerando a demanda proposta pela Confederação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino (COFEN) sustentando a inconstitucionalidade de
alguns dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência em relação ao serviço
educacional e obrigações impostas às escolas privadas. Muito embora o tema
já tenha sido levado para o STF, o caso que será examinado possui contornos
originais e de grande relevância para o Direito Administrativo. Em última análise,
a polêmica centrou-se na própria concepção do modelo social de deficiência e
suas consequências jurídicas. A deficiência não pode mais ser entendida a partir

112
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

das bases do pensamento que ressalta o aspecto da tragédia pessoal, eis que as
causas que determinam o surgimento de barreiras são de modo preponderante
sociais, relacionadas com a construção da sociedade, inclusive das escolas privadas
responsáveis pela educação, direito social fundamental.
Mas o que os intérpretes do Direito Administrativo, bem como prestadores
de serviços públicos devem compreender é que as pessoas com deficiência, em
permanente situação de vulnerabilidade, têm muito a contribuir para a sociedade,
para uma comunidade escolar na qual prime a solidariedade e a dignidade
humana. A Educação inclusiva possui determinados pressupostos teóricos e
práticos, discutidos por ocasião do caso julgado pelo STF e materializados no
Estatuto das Pessoas Com Deficiência, dai a importância desta investigação, ao
chamar a atenção dos principais aspectos de uma verdadeira dimensão social da
deficiência, com reflexos no âmbito da teoria dos serviços públicos. Quando se fala
deste instituto, tão caro para a história do Direito Administrativo, indaga-se, para
quem ele foi pensado? Há mesmo o caráter de universalidade quando se discute a
abrangência para pessoas em situação de vulnerabilidade?
Utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial,
com estudo de caso. Ainda que o caso possua contornos particulares, configura-se
indicação capaz de problematizar uma gama de referências teóricas, em especial
quando, por características particulares, tornou-se julgamento paradigmático,
como a ADI 5.357 do STF no qual, em síntese, o tema das políticas públicas
educacionais são postos em discussão.
Na primeira parte do estudo haverá a exposição do julgado, explicitando-
se os argumentos utilizados pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de
Ensino, com os fundamentos de fato, mas especialmente de direito por tratar-se
de Ação Direta de Inconstitucionalidade. É relevante destacar a importância da
ação proposta, tanto que participaram como amicus curiae a Federação Nacional
das APAES, a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down,
Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e
Pessoas com Deficiência, Conselho Federal da OAB, Associação Brasileira para a
Ação por Direitos das Pessoas com Autismo, Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, Associação Movimento de Açao e Inovação Social, Organização Nacional
de Cegos do Brasil, Federação Fraternidades Cristãs de Pessoas com Deficiência
do Brasil, Organização Nacional das Entidades de Deficientes Físicos do Brasil,
Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco
do Brasil e da Comunidade e Federação Nacional das Associações Pestalozzi.

113
Leonel Ohlweiler

Após, discute-se a vulnerabilidade como construção histórica, a


dificuldades de compreensão do tema, bem como a necessidade de estabelecer
alguns parâmetros. A deficiência, por sua vez, é analisada a partir das concepções
individualistas, nas quais o aspecto médico e de tragédia pessoal preponderou,
sublinhando a necessidade de dialogar com o modelo social de deficiência, suas
alterações epistemológicas, mas também construir soluções que não olvidem o
aspecto individual.
Na terceira parte do estudo, explicitou-se a imbricação entre algumas
dimensões da vulnerabilidade da deficiência, na linha da construção realizada
por Mike Oliver, e o julgamento da ADI 5.357 pelo Supremo Tribunal Federal,
indicando a riqueza dos debates realizados e o caráter paradigmático da decisão.
É claro que muitas divergências ainda ocorrerão, mas é importante não
desconhecer o caráter sociopolítico da temática e que muito da história sobre as
pessoas com deficiência revelou a constante luta contra discriminação, opressão
social e indiferença das concepções jurídicas dominantes. O serviço público da
educação, independente do prestador, sob a perspectiva das políticas públicas e da
Constituição Federal brasileira, não pode deixar-se sequestrar pelos postulados de
uma discriminação institucional, incumbindo ao Poder Judiciário dar-se conta do
profundo caráter democrático dos direitos humanos.

1. O CASO DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


JULGADO PELO STF NA ADI 5.357: VULNERABILIDADE E INCLUSÃO.

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Referendo


na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.357, Relator
Ministro Edson Fachin, em 09.06.2016, examinou questão relevante sobre a
vulnerabilidade das pessoas com deficiência e o serviço público educacional, mas
prestado por entidades privadas. A decisão foi assim ementada:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA


CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA. ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO
INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO. 1. A Convenção Internacional
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o princípio da

114
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

igualdade como fundamento de uma sociedade democrática que respeita


a dignidade humana. 2. À luz da Convenção e, por consequência, da
própria Constituição da República, o ensino inclusivo em todos os
níveis de educação não é realidade estranha ao ordenamento jurídico
pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra explícita. 3. A Lei
nº 13.146/2015 indica assumir o compromisso ético de acolhimento e
pluralidade democrática adotados pela Constituição ao exigir que não
apenas as escolas públicas, mas também as particulares deverão pautar
sua atuação educacional a partir de todas as facetas e potencialidades que
o direito fundamental à educação possui e que são densificadas em seu
Capítulo IV. 4. Medida cautelar indeferida.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pela Confederação


Nacional dos Estabelecimentos de Ensino requerendo a declaração de
inconstitucionalidade do §1º do artigo 28 e do artigo 30, “caput”, da Lei nº
13.146/2015, sob o argumento de violação do artigo 208, III, CF, que prevê o
dever de o Estado atender as pessoas portadoras de deficiência com relação ao
serviço educacional, além do alto custo econômico das medidas para as escolas
privadas. Também se mencionou o malferimento dos artigos 5º, “caput”, incisos
XXII, XXIII, LIV, 170, incisos II e III, 205, 206, “caput”, incisos II e III, 209 e 227,
“caput”, §1º, inciso III, todos da Constituição Federal.
O diploma legal atacado instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência, cujo §1º do artigo 28 determina a aplicação às instituições
privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, obrigatoriamente, diversas
obrigações previstas nos incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV,
XV, XVI e XVIII, desde a necessidade de adotar sistema educacional inclusivo em
todos os níveis e modalidades, aprimoramento dos sistemas educacionais, projeto
pedagógico, medidas de acessibilidade, etc. Ademais, o cumprimento dessas
obrigações não poderia acarretar a cobrança de valores adicionais de qualquer
natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas.
Os fundamentos jurídicos desenvolvidos pela parte autora mencionaram,
de plano, a circunstância de a Lei nº 13.146/2015 não constituir norma geral de
Educação Nacional e a escola particular não ser detentora de concessão pública.
O artigo 209, CF, por sua vez, disciplina o ensino como livre à iniciativa privada.
A parte autora alegou que o atendimento de deficiente ou portador de necessidade
especial é primordial, bem como exclusivo do Estado, incumbindo-lhe a obrigação

115
Leonel Ohlweiler

de oferecer educação apropriada. O Estado não poderia eximir-se da execução


direta de certas atividades. Sobre a inconstitucionalidade do referido diploma legal,
referiu não ser possível obrigar as escolas particulares a matricularem os portadores
de deficiência, como fez o §1º do artigo 28. Por fim, aduziu violação ao princípio
da razoabilidade, eis que o legislador infraconstitucional não efetuou a correta
ponderação. Deixou de considerar não só os efeitos de tais obrigações legais, bem
como não avaliou outros pressupostos constitucionais, como a livre iniciativa.
O Ministério Público federal manifestou-se pela improcedência da ação
direta de inconstitucionalidade, sob o argumento de a legislação nacional sobre
educação condicionar a liberdade de iniciativa das instituições privadas de ensino.
Não configura violação do direito de propriedade e da função social a determinação
de as escolas particulares matricularem alunos com deficiência, pois apenas
ocorreu a observância do sistema educacional inclusivo, adotado pela Convenção
Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, com “status” de norma
constitucional. O Procurador-Geral da República, igualmente, aludiu que somente
há sistema educacional inclusivo com a implantação nas esferas pública e privada,
pois oferecer educação às pessoas com deficiência não é dever exclusivo do Estado.
As disposições da lei atacada materializaram as indicações constitucionais de
igualdade material, cidadania e dignidade humana.
O Ministro Relator situou o debate sobre a constitucionalidade ou não
do dever de atendimento educacional adequado às pessoas com deficiências, por
parte das escolas privadas, pois a Lei nº 13.146/205 estabeleceu medidas com altos
custos. Após a discussão sobre responsabilidade do serviço público educacional,
público e privado, vulnerabilidade das pessoas portadoras de Deficiência, alteridade,
igualdade e aplicação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, decidiu-se pelo indeferimento da medida cautelar por não vislumbrar a
fumaça do direito pleiteado e, por consequência, “periculum um mora”.
Destaca-se ainda, por ocasião da sessão de julgamento ocorrida no dia 09
de junho de 2016, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu transformar o
julgamento, inicialmente apenas para referendar a medida cautelar indeferida, em
exame de mérito. O Min. Edson Fachin foi acompanhado na integralidade do seu
voto. No entanto, houve divergência por parte do Min. Marco Aurélio, cujo voto
acolhia parcialmente a ADI para estabelecer a constitucionalidade dos artigos
atacados, relativamente à necessidade de planejamento quanto à iniciativa privada,
mas seria inconstitucional a interpretação de que são obrigatórias as múltiplas
previdências nos artigos 28 e 30 da Lei nº 13.146/2015. Sustentou que caberia ao

116
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

Estado implementar medidas para a efetividade do acesso à Educação das pessoas


com deficiência, pois muito embora seja dever de todos, nos termos do artigo 209 da
Constituição Federal, em relação à iniciativa privada a responsabilidade é subsidiária.

2. VULNERABILIDADE E DEFICIÊNCIA: PERSPECTIVAS DAS


POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTIR DO MODELO SOCIAL.

O caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal é de grande relevância para o


debate sobre as políticas públicas referentes às pessoas com deficiência, bem como
a compreensão dos aspectos atinentes à vulnerabilidade, não apenas pelo debate
proporcionado, tratando de questões constitucionais sobre o nível de proteção
normativa das pessoas com deficiência, a concepção adotada no julgamento e a
aplicação da Convenção Internacional da ONU.

2.1. A Vulnerabilidade como Construção Histórica.

O artigo 3º da Constituição Federal disciplinou que constituem objetivos


fundamentais da República Federativa do Brasil, (I) construir uma sociedade justa
e solidária, (III) erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades
sociais, além de (IV) promover o bem de todos sem preconceitos e quaisquer
formas de discriminação. Há, portanto, no horizonte de sentido dos propósitos
constitucionais do Estado Democrático brasileiro, determinadas concepções de
vulnerabilidade institucionalizadas. A Lei nº 13.146/2015, objeto da presente
investigação, igualmente remete para o tema ao prever no artigo 1º que o Estatuto
da Pessoa com Deficiência destina-se a assegurar e a promover, em condições de
igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com
deficiência, visando sua inclusão social e cidadania. No plano constitucional,
como infraconstitucional, não é possível compreender a vulnerabilidade apenas
no âmbito da lógica formal, pois como destaca Ernildo Stein, “sabemos que os
conceitos sempre têm mais atrás de si do que simplesmente serem funções, ou
serem signos. Eles vêm carregados por elementos de valor, de validade, e este
caráter de valor e validade é que faz com que os conceitos não sejam simplesmente
abstratos, todos eles formais e abstratos, mas faz com que eles tenham uma certa
carga valorativa.” (STEIN, 2004, p. 114).

117
Leonel Ohlweiler

A compreensão da vulnerabilidade, portanto, não pode divorciar-se do


questionamento sobre seus pressupostos de compreensão, sob pena de introduzir
posturas carregadas de subjetividade no processo de construção da decisão
jurídica. Exige-se, com efeito, a justificação do conceito a partir de dado horizonte
histórico de tradição ou a sua localização em determinado paradigma. Adota-se
aqui a necessidade de laborar com o que Ernildo Stein denomina de justificação
operatória2, ou seja, a vulnerabilidade deixará de ser utilizada aleatoriamente no
Direito Administrativo quando articulada com determinado sentido histórico e a
partir do conjunto de indicações jurídicas. No entendimento de Terry Cannon,
o termo vulnerabilidade tornou-se vago e com utilização abusiva, colocando
em risco a objetividade (CANNON, 2006, p. 351), sendo que a necessidade de
construir uma concepção mais útil exige aprofundar a investigação, mas afastando,
por exemplo, os entendimentos que relacionam a vulnerabilidade dos estigmas de
vitimização (CANNON, 2008, p. 1).
O debate sobre a questão remonta à ideia de que a vulnerabilidade é
própria do homem, como adverte Frédérique Fiechter-Boulvard, relacionando-
se com a possibilidade de sofrer lesão, com o fato de ser frágil, deteriorar-se e,
portanto, vinculada ao termo risco, qualificando-se com algo que afeta a condição
humana, apresentando-se como um perigo eventual, mais ou menos previsível
(FIECHETER-BOULVARD, 2000, p. 13-14)3. Junto com o conceito de resiliência,
a vulnerabilidade foi pouco a pouco construída para aprofundar pesquisas sobre

2 – Sobre a justificação operatória aduz o autor: “Deve haver coerência interna no uso dos conceitos
para que eles, em conjunto, me ofereçam um todo articulado operatoriamente, um todo que me dê a
possibilidade de dizer: o sentido deste texto é este. No momento em que uso aleatoriamente um conceito
e o coloco dentro de um conjunto de páginas sobre um tema determinado que quero desenvolver, eu
legitimo este conceito, eu lhe dou uma certa garantia que ele somente teria se eu estivesse reproduzindo
a história da filosofia na qual ele surgiu, ou o paradigma no qual ele se desenvolveu, ou no conjunto
de ideias do autor que ele se desenvolveu, porque lá ele teria uma coerência recebida do conjunto.
Assim, quando eu o desligo desse contexto histórico, sou obrigado como que criar um contexto atual
a partir de outros conceitos. É isto que chamo de uma espécie de justificação operatória. Eu passo a
justificar o uso de um conceito filosófico descritivamente. Neste sentido, descrevendo um conjunto
de conceitos, utilizando um conjunto de conceitos, eu também justifico o uso deles através de uma
descrição determinada”(STEIN, 2004,p. 98/99).
3 – Conforme Axelle Bordiez-Dolino, ao examinar o conceito de vulnerabilidade, o termo origina-se do
latim vulnus (ferimento) e vulnerare(ferido), sendo que de acordo com o Dicionário Larousse, significa
aquele que pode ser ferido, atingido. O termo também é sinônimo de frágil, sensível (BORDIEZ-
DOLINO, 2016, p. 2).

118
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

como o indivíduo poderia adaptar-se a ambientes em mudança ou superar situações


traumáticas, ganhando a atenção de diversas disciplinas interessadas na noção
de risco e gestão de desastres, eis que por meio dos estudos de vulnerabilidade
permitia-se analisar, calcular e prever riscos (BORDIEZ-DOLINO, 2016, p.2). No
intuito de laborar com a vulnerabilidade no Direito Administrativo, para o objeto
do presente estudo sobre as ações públicas, é importante destacar a necessidade
de superar algumas pré-compreensões sobre a questão, deixando-se de considerar
a vulnerabilidade predominantemente como resultado de tragédias pessoais ou
resultado de acontecimentos da natureza.
Muito embora existam tais elementos, sob a perspectiva da hermenêutica
sociológica4 aqui adotada, a vulnerabilidade, com todas as consequências, decorre
muito mais de estruturas sociais que favorecem quadros de riscos, dificuldades,
incapacidades, etc. Dar-se conta dessa dimensão, impõe recordar algumas questões
sobre o modo como tal conceito foi paulatinamente erigido. Ainda que com
imaginário voltado para a crítica, Hélène Thomas aduz que no início dos anos 1970
surgiram diversos estudos nas áreas da psiquiatria, psicologia, pediatria, psicanálise e
geriatria discutindo a questão, sendo que em 1980 o termo vulnerabilidade difundiu-
se em diversos artigos e a partir de 1990 de modo massivo na literatura francesa
(THOMAS, 2008, p.04). Como aduz, tal expressão foi utilizada inicialmente em
estudos relacionados com os idosos, para designar “idosos frágeis” na literatura
médica dos anos 80 e sob duas perspectivas (a)designar um estado fisiológico dos
idosos e (b) descrever o estado social de isolamento, muito embora ainda não se
caracterizava como conceito preciso para identificar as pessoas que seriam afetadas
por fatores de riscos (THOMAS, 2008, p.04).
Conforme Cristina Churruca Muguruza, a vulnerabilidade associa-
se ao problema dos desastres ambientais, destacando que historicamente eles
são explicados por causas naturais: “Los desastres se han interpretado como
fenómenos excepcionales. Inesperados, consecuencia directa de factores naturales
(meteorológicos, medioambientales o demográficos), y sin correlación con los

4 – A expressão é oriunda da obra de Zygmunt Baumann e refere-se à interpretação das decisões humanas
tomadas em situações socialmente configuradas, direcionando-se para o esforço da compreensão das
realidades com base em perspectivas sociológicas (BAUMAN, 2015, p. 56). O autor aduz: “O postulado
da hermenêutica sociológica exige que sempre que busquemos o significado dos pensamentos ou ações
humanos devemos examinar as condições socialmente configuradas das pessoas cujos pensamentos ou
ações pretendemos entender/explicar.” (BAUMAN, 2015, p. 57).

119
Leonel Ohlweiler

procesos sociales.”(CHURRUCA MUGURUZA, 2014, p. 50). Tal modo de


explicação, além disso, alimentava-se com a atribuição de responsabilidade às
vítimas, em virtude da falta de conhecimento e práticas irracionais, como destaca
a autora. No entanto, nos anos 70 e 80, a discussão sobre desastres incorpora
outros componentes, pois sem desconsiderar os fatores do clima, agrega as causas
sociais, econômicas e políticas, influenciando no tratamento da vulnerabilidade
nas questões humanitárias com maior abrangência (CHURRUCA MUGURUZA,
2014, p. 50).
A partir de 1990, muito embora a noção de fragilidade do idoso não fosse
um conceito homogêneo, a vulnerabilidade interessa não somente para as ciências
médicas, mas a todas aquelas que lidam com a questão do idoso, tornando-se um
paradigma comum, no entendimento de Hélène Thomas. E, de fato, no início dos
anos 90, no âmbito de ações humanitárias, em virtude de crises dos mais variados
matizes, o conceito tradicional de vulnerabilidade, ainda muito relacionado com
grupos de pessoas vulneráveis altera-se e exige a problematização do seu significado
de modo mais amplo, reconhecendo aspectos políticos, étnicos, de gênero, etc.
(CHURRUCA MUGURUZA, 2014, P. 51).
Assim, surgem diversos estudos nas áreas da economia, sociologia,
antropologia, gestão de desastres, ciências ambientais, de saúde e nutrição, sendo
que a vulnerabilidade proporciona a construção de indicadores estatísticos, inclusive
focados para os problemas dos desastres (THOMAS, 2008, p. 09). Como aludido, o
campo das investigações ambientais utilizou-se muito da noção de vulnerabilidade,
relacionando a questão dos desastres naturais, conectando-os com problemas de
desigualdades geográficas e sociais, adquirindo importância significativa, por
exemplo, os índices sociais do PNUD, impondo-se a necessária distinção entre
vulnerabilidade e pobreza (THOMAS, 2008, p. 09-10). Na década de 2000, o
tema da vulnerabilidade igualmente se desenvolve com os temas precariedade e
insegurança, havendo diversas publicações acadêmicas, proliferando-se a utilização
na área da sociologia francesa. No entendimento de Axelle Brodiez-Dolino a
noção de vulnerabilidade em tal período pouco a pouco se impôs como conceito
com forte adequação para discutir as novas políticas sociais (BRODIEZ-DOLINO,
2016, p. 05).
Esse diálogo com a tradição possibilita algumas questões relevantes. A
vulnerabilidade, com todos os problemas de significado, foi pensada no horizonte
das ciências médicas conectando-se em um primeiro momento aos aspectos
individuais, seja do idoso, do doente ou paciente. Portanto, eventuais transposições

120
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

não podem desconsiderar a necessidade de vislumbrar a vulnerabilidade para


além da “tragédia pessoal”, mas situar o tema no campo das construções sociais,
políticas e econômicas. Conforme será explicitado, tal compreensão social não
importa eliminar a questão do indivíduo, mas de algum modo potencializar a
dimensão social, além de ultrapassar os estigmas das categorizações – grupos de
vulneráveis – e de doenças. Na mesma linha, quando a vulnerabilidade migra
paulatinamente para a área ambiental, por força da análise dos desastres, ocorre
a simbolização desses como ocorrências da natureza, mais uma vez olvidando as
determinantes sociais. Tais questões, que surgem a partir da construção de uma
espécie de consciência histórica da vulnerabilidade, permitem outras possibilidades
no debate sobre o tema com relação às pessoas com deficiência.
De qualquer modo, a vulnerabilidade não pode cair nas amarras da
categorização, cuja aplicação exige a devida justificação operatória, considerando
seu caráter dinâmico, com variações temporais, dependendo ainda da combinação
de múltiplos fatores geográficos, econômicos, sociais, políticos e pessoais
(CHURRUCA MUGURUZA, 2014, p. 52). Segundo Terry Cannon, os cinco
componentes da vulnerabilidade são: (a)meios de subsistência e resiliência; (b)
bem-estar; (c)autoproteção; (d)proteção social; e (e)governança (CANNON,
2008, p. 4-5). Tais componentes devem ser compreendidos como indicações que
se relacionam com o processo de descrição da vulnerabilidade, sem qualquer
pretensão de criar elementos fechados em uma dimensão abstrata. No entanto,
efetivamente há diversas possibilidades de abordagem, destacando-se que por ser
um conceito amplo, a vulnerabilidade pode ser descrita como exposição ao risco,
incapacidade de reação e dificuldade de adaptação diante da materialização do
risco (ALVES, 2012, p. 06).
Algo relevante para bem laborar com o tema reside na crítica segundo
a qual indicações como bem-estar e dificuldades de adaptação, por exemplo,
possuem fortes componentes da estrutura social e não somente características
individuais da pessoa em situação de vulnerabilidade. Dai a relevância de observar
que “ao contrário desse aspecto superficial, pensar a vulnerabilidade implica outra
perspectiva, pensar a ideia de solidariedade da comunidade humana, sob a égide
de construção dos laços sociais, considerando a diversidade cultura e os diversos
níveis existenciais (biológico, psicológico, social, comunitário, cultural, histórico,
ecológico etc.).” (SOCZEK, 2008, p. 23)5.

5 – Aduz o autor de modo expresso: “É possível afirmar, portanto, que o conceito de vulnerabilidade

121
Leonel Ohlweiler

Tal aspecto está presente na decisão do Supremo Tribunal Federal, ADI


5.357, ora em discussão, na medida em que se questiona o serviço educacional
quando prestado por estabelecimentos privados e se o Estatuto das Pessoas com
Deficiência materializou o ethos constitucional de construir espaços de alteridade
e inclusão, exigindo-se ações voltadas para solidariedade. Com efeito, impõe-
se debater qual perspectiva hermenêutica é crível construir no âmbito da Lei
13.146/2015.

2.2. Deficiência e suas Dimensões Sociais: perspectivas hermenêuticas


para a Lei nº 13.146/2015.

A decisão do STF sobre a constitucionalidade ou não de alguns


dos dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência caracteriza-se como
paradigmática, em virtude das discussões realizadas sobre o enfoque a ser dado
ao tema da deficiência. A ação julgada foi proposta pela Confederação Nacional
dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, sob o principal argumento de
a citada lei importar medidas de alto custo para as escolas privadas, violando
dispositivos constitucionais. O debate, de fato, é relevante e a tese defendida pela
entidade representativa das escolas particulares chegou a capitanear o voto do
Ministro Marco Aurélio, destacando que a obrigação por medidas de inclusão
seria do Estado. Conforme será examinado, tal interpretação não é compatível
com algumas indicações constitucionais e, inclusive, volta-se contra o marco
da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da
ONU. A Presidência da República, ao prestar informações na Ação Direta de
Inconstitucionalidade, aludiu que a nova legislação deixou de tratar a deficiência
como problema médico e adotou o paradigma de considerá-la como questão social.
Mas em que consiste tal alteração?
Como alude Anthony Giddens, historicamente, nas sociedades ocidentais,
predominou o modelo individualista da deficiência:

implica abertura ao outro, ao diferente, como reconhecimento do outro, e, também, um reconhecimento


de sua própria vulnerabilidade. Pensar a vulnerabilidade não implica uma vitimização dos diversos
sujeitos ou grupos sociais vulneráveis, ou a ideia de tutela em sentido paternalista, considerando as
ideias de participação e responsabilidade (responsabilização) dos sujeitos diretamente afetados e das
comunidades nas quais estão efetivamente inseridos.” (SOCZEK, 2008, p. 24).

122
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

“Esse modelo significa que as limitações individuais são a principal


causa dos problemas das pessoas deficientes. No modelo individual da
deficiência a ‘anormalidade’ corporal é vista como causa de um certo
grau de deficiência ou limitação funcional – um indivíduo que sofre de
quadriplegia é incapaz de caminhar por exemplo. Essa limitação funcional
é vista como a base de uma classificação mais ampla do indivíduo como
‘um inválido’. Por trás do modelo individual, há uma abordagem de
tragédia pessoal à deficiência.” (GIDDENS, 2012, p. 300).

A análise realizada por Mike Oliver foi contundente quando destacou


que no modelo médico os doentes, no caso, deficientes, deveriam buscar a ajuda
de médicos profissionais com a finalidade de alcançar a reabilitação, sendo que o
deficiente, ao adquirir a consciência da deficiência, deve aceitá-la e aprender a viver
com ela, ou seja, para o autor o peso maior da responsabilidade recai diretamente
sobre os ombros da pessoa (OLIVER, 1998, p. 37)6. Inclusive, refere que a
deficiência importa alguma espécie de perda ou tragédia pessoal, constituindo-se
em concepção oportunista ao referir que se os indivíduos não conseguem alcançar
as metas de reabilitação, determinadas por profissionais, tal fracasso decorre
da inaptidão do deficiente, livrando-se da responsabilidade o profissional pelo
conjunto de valores tradicionais, bem como a ordem social (OLIVER, 1998, p. 37).
No entendimento de Colin Barnes, o modelo da tragédia pessoal entende a
deficiência como uma questão individual, mencionando a lógica de tal compreensão:
“O problema é seu, e é sua responsabilidade ajustar-se a uma sociedade construída
em torno das necessidades de uma maioria mítica com o corpo perfeito.” (DINIZ,
2013, p. 239). Alude as três condições do homem definidas em tal modelo como (a)
limitação, entendida como quaisquer perdas, ou anormalidades, de estruturas ou
funções psicológicas, fisiológicas ou anatômicas, representando a exteriorização
de um estado patológico e, em linha de princípio, reflete os distúrbios no âmbito
do órgão; (b)deficiência, quaisquer limitações ou perdas (consequência de uma
limitação) da capacidade de fazer uma atividade no modo e extensão consideradas
normais para um ser humano. A deficiência representa a objetivação da limitação e

6 – No entendimento de Mike Oliver, tal concepção pode ser criticada sobre três aspectos: a)são
essencialmente deterministas, b)esquecem os aspectos sociais, políticos e econômicos extrínsecos
e c)desautorizam e negam as interpretações subjetivas da deficiência desde a perspectiva da pessoa
implicada (OLIVER, 1998, p. 37).

123
Leonel Ohlweiler

como tal reflete os distúrbios da pessoa, referindo-se à capacidade funcional extrínseca


a atos e comportamentos que, por consenso geral, constituem aspectos essenciais da
vida de cada um e (c) handicap (desvantagem), ou seja, condições de desvantagens
vividas por uma determinada pessoa, consequência de uma limitação ou de uma
deficiência que limite ou impede a possibilidade de cumprir o papel normalmente
próprio àquela pessoa, representando a socialização de uma limitação ou deficiência
(BARNES, 2008, p. 89).
Os aspectos acima referidos, a partir do chamado modelo social da
deficiência7, é passível de críticas, como fundar-se exclusivamente na definição
médica de normalidade, sendo que Colin Barnes destaca a existência de estudos
indicando o conceito de normalidade como altamente controvertido e influenciado
por diversos fatores sociais, culturais e circunstâncias contingentes. Por outro lado,
a limitação é definida como a causa, seja da deficiência, seja da desvantagem.
Em relação a esse último, refere o autor, é representado como um fato neutro ou
natural e como consequência inevitável de uma das duas condições, limitação ou
deficiência (BARNES, 2008, p. 89). De modo expresso, refere mais uma vez:

L’approccio adottato dalla classificazione ICIDH pone una posizione


di dipendenza le persone che abbiano una menomazione, reale o
presunta. La loro condizione é analizzata da un punto di vista solo ed
exclusivamente medico, e si basa sull’assunto che queste siano dipendenti
da professionisti del campo medico per ogni tipo di suporto terapêutico e
sociale. (BARNES, 2008, p. 89).

Na medida em que a limitação é compreendida como causa primeira


do problema da deficiência, uma vez não obtida eficácia na cura, as pessoas com

7 – Segundo Agustina Palacios, é possível situar o nascimento do modelo social no final dos anos
sessenta, em especial nos Estados Unidos e na Inglaterra, pois as pessoas que viviam em instituições
residenciais tomaram a iniciativa, impulsionadas pela reivindicação de mudanças políticas: “Los
activistas con discapacidad y las organizaciones de personas con discapacidad se unieron para condenar
su status como ‘ciudadanos de segunda clase’. Reorientaron la atención hacia el impacto de las barreras
sociales y ambientales, como el transporte y los edifícios inaccesibles, las actitudes discriminatórias y los
estereotipos culturales negativos, que, según alegaban – discapacitaban a las personas con discapacidad.
De este modo, la participación política de las personas con discapacidad y sus organizaciones abrió un
nuevo frente en el área de los derechos civiles y la legislación antidiscriminatoria.” (PALACIOS, 2008,
p. 107).

124
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

limitações são vistas como incapazes e, corolário, excluídas da possibilidade


de participação e de colaborar para a vida em comunidade. A importância dos
debates iniciados com o modelo social da deficiência foi destacar que não há
conhecimento neutro, pois, até mesmo, como sublinha Colin Barnes, em muitos
países nasceu uma espécie de indústria da deficiência, compreendendo instituições
estatais, empresas privadas, organizações de caridade, com a atuação de diversos
profissionais (BARNES, 2008, p. 90). Nos Estados Unidos, na década de setenta, o
chamado Movimento da Vida Independente foi importante, pois coincidiu com os
processos de luta por direitos civis e, no caso da deficiência, houve sua politização,
cujos esforços dos deficientes para alcançar uma vida independente, mediante o fim
da discriminação e inclusão de seus direitos na sociedade, conduziu ao surgimento
da perspectiva sociopolítica da sociologia americana (OLIVER, 1998, p. 39).
O modelo social da deficiência, portanto, segundo Anthony Giddens,
contou com o labor de Paul Hunt, ativista que defendeu os direitos dos deficientes
na Grã-Bretanha, desenvolvendo uma “alternativa radical ao modelo individual,
argumentando que havia distinção crucial entre limitação e deficiência”
(GIDDENS, 2012, p. 300), criando a Union of Physically Impaired Against Segregacion
(UPIAS), construindo a tese segundo a qual a deficiência seria uma forma de
opressão social, pois, deste modo, “a deficiência não era mais compreendida
como problema de um indivíduo, mas em termos de barreiras sociais que as
pessoas com limitações enfrentam para participarem plenamente da sociedade.”
(GIDDENS, 2012, p. 301). Em 1976 foi publicado o documento “Princípios
Fundamentais da Deficiência”, contendo uma reinterpretação sócio-política da
deficiência, delineando uma distinção fundamental entre o biológico e o social,
pois “limitação” caracterizaria a falta de uma parte ou de todo um membro, ou
ter um membro, órgão ou mecanismo defeituoso no corpo, enquanto “deficiência”
seria a desvantagem ou restrição da atividade causada por uma organização social
contemporânea, que não leva em conta pessoas que têm limitações físicas e, assim,
as exclui da participação nas atividades sociais vigentes (BARNES, 2008, p. 90).
Ainda que tenha sofrido algumas críticas, as questões postas pelo modelo
social são úteis, por exemplo, para melhor compreender a aplicação do Estatuto
das Pessoas com Deficiência no âmbito do serviço educacional, eis que muitas
das desvantagens ou impedimentos são construídos por uma sociedade incapaz
de lidar com o diferente. Não se trata, portanto, de problema individual, mas da
sociedade e se existem desvantagens em termos de inclusão na educação, tema
específico desta investigação, como alude Colin Barnes, urge trabalhar para mudar

125
Leonel Ohlweiler

a sociedade, modificando sua forma de organização para “aceitar a realidade da


diferença humana” (DINIZ, 2013, p.239). Agora, tanto o modelo social, como o da
tragédia pessoal, que atribui a responsabilidade ao indivíduo, são visões políticas
de como devemos viver.
Relativamente às críticas, a deficiência não pode ser vislumbrada
exclusivamente sob a perspectiva das barreiras sociais, mas também avaliar o aspecto
do indivíduo. Tal circunstância não importa atribuir razão ao modelo médico. O
caráter pessoal da deficiência não se dirige para fincar pressupostos de origem natural
ou fundados no paradigma da tragédia, da doença, da anormalidade. As discussões
pelo modelo social comprovam a absoluta inadequação de tal postura com os atuais
paradigmas de direitos humanos e direitos fundamentais. Em virtude de tais debates,
Colin Barnes delineou algumas questões, referindo inicialmente que:

“[...] a perspectiva inspirada no modelo social não nega a importância e o


valor de intervenções apropriadas sobre a vida das pessoas com deficiência
baseada em sua condição individual de sujeito, sejam elas baseadas
na medicina, na reabilitação, na instrução ou sobre o seu trabalho, mas
endereça a atenção sobre os limites de tais intervenções, voltadas para
favorecer a inclusão em uma sociedade construída por sujeitos não-
deficientes e para sujeitos não-deficientes.” (BARNES, 2008, p. 91).

Portanto, na medida em que o senso comum orienta-se para tratar com


a deficiência, a partir do modelo individual, de fato é necessário construir os
delineamentos de uma espécie de hermenêutica sociológica, voltada para deslocar
a atenção das limitações funcionais da pessoa deficiente para os problemas
causados pelos ambientes, barreiras e culturas que rondam os deficientes. Tal
modo de significar assume a postura crítica, considerando as dificuldades inerentes
ao modo de compreender arraigado na sociedade ou permeado pela lógica dos
interesses econômicos, como retrata bem o caso julgado pelo STF (ADI 5.357).
Mas, como destacado, sem desconsiderar a dimensão individual da pessoa com
deficiência.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
adotando a linha de compreensão social aqui laborada, aliada ao paradigma
dos direitos humanos, significou não somente ultrapassar a perspectiva do
modelo médico e de políticas públicas assistencialistas, mas do próprio modo de
vislumbrar o tema da vulnerabilidade, como refere Patrícia Cuenca Gomez, pois

126
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

não considera as pessoas com deficiência como anormais, mas representantes da


diversidade humana (CUENCA GOMEZ, 2014, p. 90). Não se trata, portanto, de
acentuar o caráter de doença, de anormalidade, mas reconhecer de modo expresso
no Preâmbulo, letra “m”, o valor das contribuições que realizam e podem realizar
ao bem estar geral e para a diversidade das comunidades. No serviço educacional
tal premissa é essencial para bem compreender o processo de inclusão, eis que se
trata de oportunidade para a construção de uma autêntica comunidade escolar,
com a riqueza das vivências proporcionada pelas pessoas com deficiência.
Outro aspecto inovador da Convenção reside na clara postura de diálogo
na sua própria elaboração, na medida em que o seu conteúdo normativo contou
com a ampla participação de movimentos das pessoas com deficiência (CUENCA
GOMEZ, 2014, p. 91), disciplinando a necessidade de adotar tal postura para
aplicação e elaboração do marco legislativo, revelando a importância da face
política da compreensão social da deficiência. O artigo 4º, item 3, refere que os
Estados-Partes comprometem-se a assegurar e promover na elaboração e aplicação
da legislação e políticas para tornar efetiva a Convenção, em outros processos de
efetivação de decisões sobre questões relacionadas com as pessoas com deficiência,
a adoção de consultas, permitindo a efetiva participação, por meio de organizações
que representam as pessoas com deficiência.
Mas a mudança de paradigma reside também no modo como a
Convenção acolheu o aspecto social da vulnerabilidade, mas com a perspectiva
dos direitos humanos, por exemplo, quando no artigo 1º disciplinou que as
pessoas com deficiência incluem aquelas que tenham deficiências físicas, mentais,
intelectuais ou sensoriais a longo prazo que, ao interagir com diversas barreiras,
possam impedir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de
condições com as demais. Nos termos do recordado por Patricia Cuenca Gomez, a
deficiência é, em grande parte, provocada pela sociedade, destacando dois grandes
debates que ocorreram por ocasião da elaboração da Convenção: a) optou-se no
documento internacional assumir a linha da perspectiva dos direitos humanos,
deixando em segundo plano a perspectiva do desenvolvimento social e b)elaborar
um documento que legitimasse o pressuposto da regulação dos diferentes direitos
sob a ótica da igualdade e não a visão da discriminação, pois ao invés de conceber
prescrições genéricas contra a discriminação, a Convenção estendeu aqueles
direitos universalmente reconhecidos para as pessoas com deficiência (CUENCA
GOMEZ, 2014, p. 93-94).

127
Leonel Ohlweiler

Por fim, merece destaque o novo paradigma assumido pela Convenção


sobre a acessibilidade universal, nos termos dos artigos 3º e 9º, impondo-se
aos Estados-Partes, a fim de que as pessoas com deficiência possam viver de
forma independente e participar em todos os aspectos da vida, aplicar medidas
pertinentes para assegurar o acesso, em igualdade de condições com os demais,
ao entorno físico, o transporte, a informação e as comunicações, incluindo os
sistemas e as tecnologias da informação e comunicação, e aos outros serviços e
instalações abertos ao público ou de uso público, tanto em zonas urbanas, como
rurais. Trata-se, com efeito, de concretizar o chamado desenho universal, de modo
que equipamentos e serviços possam ser utilizados por todos, sem a necessidade de
adaptações.
A Lei nº 13.146/2015, por sua vez, ao referir o parâmetro da Convenção,
disciplinou no artigo 1º o seu propósito: assegurar e promover, em condições de
igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Como aludem Cristiano
Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto:

Dentre inúmeros fundamentos do diploma legal em exame, o que


desponta, em primeiro lugar, consiste exatamente na proteção do
deficiente como consequência do desdobramento dos direitos humanos.
Estes, importando em verdadeira superação do modelo egoístico, onde
predominava o indivíduo, coloca-se em favor do interesse da sociedade
como um todo, ai incluindo, com mais razão, o deficiente, em face de
sua notória hipossuficiência. (FARIAS, CUNHA e PINTO, 2016, p.18).

Tal paradigma adotado reflete na concepção do direito à educação, tema


específico e objeto da ADI 5.357 julgada pelo STF, consignando-se de modo
expresso que a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados
sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda
a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos
e habilidades físicas sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características,
interesses e necessidades de aprendizagem. Ademais, o texto normativo coloca que
o dever é do Estado, mas também da comunidade escolar e da sociedade assegurar
educação de qualidade à pessoa com deficiência.

128
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

3. Aplicações da Compreensão Social da Deficiência no Serviço Público


Educacional: os debates do Caso da ADI 5357.

O Ministro Edson Fachin, logo no início da decisão discutida, assentou


premissa importante: “A busca na tessitura constitucional pela resposta jurídica
para a questão somente pode ser realizada com um olhar que não se negue a ver
a responsabilidade pela alteridade, compreendida como elemento estruturante da
narrativa constitucional.” Quando se sustenta a relevância da própria compreensão
constitucional por meio da alteridade, concretiza-se, em primeiro lugar, o
paradigma dos direitos humanos, no que tange à vulnerabilidade, pois ultrapassa
a compreensão individualista migrando para laborar com a questão do outro e a
necessidade de desenvolver processos de inclusão. O Supremo Tribunal Federal,
por ocasião do julgamento da ADI 5.357 entendeu de modo expresso que a atuação
do Estado “não apenas diz respeito à inclusão das pessoas com deficiência, em
perspectiva inversa, refere-se ao direito de todos os demais cidadãos ao acesso a
uma arena democrática plural. A pluralidade – de pessoas, credos, ideologias, etc.
– é elemento essencial da democracia e da vida democrática em comunidade.”
O serviço educacional deve ser construído a partir dessas premissas,
de inclusão e pluralidade, pois somente assim haverá um ensino democrático,
cabendo ao Estado e inclusive à rede privada de ensino, desenvolver o processo
educacional com tais indicações. Não é por outro motivo que o artigo 1º da Lei
nº 13.146/2015 destaca os propósitos de assegurar e promover, em condições de
igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, objetivando sua inclusão social e cidadania. No artigo 4º disciplina-se
a realização do princípio da igualdade, mas sob a perspectiva material, exatamente
nos termos da decisão quando destaca: “Assim, a igualdade não se esgota com a
previsão normativa de acesso igualitário a bens jurídicos, mas engloba também
a previsão normativa de medidas que efetivamente possibilitem tal acesso e sua
efetivação concreta.” A questão foi debatida por Patricia Cuenca Gómez ao
sublinhar o entendimento preponderante da Convenção dos Direitos da Pessoa
com Deficiência de privilegiar a regulação dos diferentes direitos, abordando-os
desde a ótica da igualdade (CUENCA GÓMEZ, 2014, p. 93). Não há dúvida que
o problema da discriminação é abordado na legislação brasileira, mas os processos
de discriminação combatem-se por meio de direitos já reconhecidos, apenas com
as devidas especificações para as pessoas com deficiência.

129
Leonel Ohlweiler

No entendimento de Agustina Palácios “una de las premisas fundamentales


del modelo social de discapacidad se basa en que todas las personas poseen – no solo
un valor intrínseco inestimable-, sino también que son intrínsecamente iguales en
lo que se refiere a su valor, mas allá de cualquier diversidad física, psíquica, mental
o sensorial.” (PALACIOS, 2008, p. 167). A compreensão da deficiência, a partir de
tal perspectiva, ressalta que com relação às pessoas com deficiência a desigualdade
assume um aspecto triplo: a) desigual distribuição de recursos; b) desigualdade
nas relações de poder e c) desigualdade nas oportunidades de participar na vida
cotidiana (PALACIOS, 2008, p. 167). As premissas aludidas são necessárias para
melhor entender a igualdade no serviço educacional, impondo-se a realização
de políticas públicas para ultrapassar, por exemplo, práticas que determinam a
segregação de pessoas com deficiência ou as impedem da convivência com toda a
comunidade escolar.
Outro ponto relevante de pré-compreensão do Estatuto da Pessoa com
Deficiência foi a referência pelo Relator ao artigo 24 da Convenção, dispositivo
que trata da Educação, disciplinando que os Estados-Partes reconhecem o direito
das pessoas com deficiência e para efetivá-lo sem discriminação e com base na
igualdade de oportunidades, garantirão o sistema educacional inclusivo em todos
os níveis. Os Estados-Partes também assegurarão, para realizar o caráter inclusivo
da educação, que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema de
ensino sob a alegação de deficiência, bem como recebam o apoio necessário,
no âmbito do sistema educacional geral, com o objetivo de facilitar sua efetiva
educação.
Detecta-se assim a premissa fundamental da ADI 5.357 em relação ao
caráter inclusivo de todo o serviço educacional. O Ministro Edison Fachin, ao
proferir seu voto, defendeu o entendimento segundo o qual a Lei nº 13.146/2015
assumiu o compromisso com o ensino inclusivo das pessoas com deficiência,
exigindo que não somente as escolas públicas, mas as escolas privadas deverão
pautar sua atuação educacional a partir de todas as facetas do direito fundamental
à educação. A Convenção, que sempre deverá ser considerada na decisão
judicial sobre o tema, explicitou o ensino inclusivo, segundo destacado pelo
Relator, considerado como o que “milita em favor da dialógica implementação
dos objetivos esquadrinhados pela Constituição da República.” Conforme Colin
Barnes, na entrevista concedida para Débora Diniz, “a inclusão envolve incluir as
pessoas deficientes em todos os elementos da sociedade” (DINIZ, 2013, p. 248).
Como sustenta, não há dúvida que as políticas públicas de acesso são bem vindas,

130
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

mas a Convenção, o Estatuto das Pessoas com Deficiência e o julgamento da ADI


5.357 incorporaram o pressuposto de que é preciso ir além e modificar o próprio
significado de educação.
A educação inclusiva prima pelo convívio com a diferença, pois nos
termos da decisão “é somente com o convívio com a diferença e com o seu
necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art.
3º, I e IV, CRFB).” Recepciona-se o entendimento da Convenção de reconhecer
como valiosa as contribuições existentes e potenciais das pessoas com deficiência
ao bem-estar comum e à diversidade de suas comunidades, ou seja, “o ensino
privado não deve privar os estudantes com ou sem deficiência – da construção
diária de uma sociedade inclusiva e acolhedora, transmudando-se em verdadeiro
local de exclusão, ao arrepio da ordem constitucional vigente.” Aliás, Mike Oliver
já alertava para o problema da deficiência determinar uma política de identidade
pessoal, a fim de tornar a experiência da sociedade não algo negativo, um fardo
que se leva, mas algo positivo (OLIVER, 1998, p. 49), exigindo-se o labor constante
de construir novas representações culturais, como os diplomas legais citados e a
ADI 5357. O STF perfilhou o entendimento de que o “ensino inclusivo é
política pública estável, desenhada, amadurecida e depurada ao longo do tempo
em espaços deliberativos nacionais e internacionais dos quais o Brasil faz parte.
Não bastasse isso, foi incorporado à Constituição da República como regra.” O
tema, portanto, já era tratado no Brasil há algum tempo, pois como recordou a
Ministra Rosa Weber, por ocasião do julgamento em debate, desde 2008 já havia
o propósito do ensino inclusivo na Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva, a fim de assegurar acesso, participação e
aprendizagem dos estudantes com deficiência nas escolas regulares. Assim, a Lei
nº 13.146/2015 explicitou alguns aspectos sobre o tema, organizando algumas
indicações normativas importantes.
É claro que quando se fala em educação inclusiva surge o problema dos
custos, mas por vezes travestida com temas constitucionais como livre iniciativa.
Como já descrito, a parte autora da ação proposta trouxe para o debate a
inconstitucionalidade da lei por violar o caráter livre do ensino à iniciativa privada,
não sendo possível obrigar as escolas particulares a matricularem os estudantes
com deficiência, como fez o §1º do artigo 28, sendo que a referida lei importa na
geração de altos custos. Os argumentos suscitados, de certo modo, foram discutidos

131
Leonel Ohlweiler

ao longo deste breve estudo, pois passa pelo modo como o próprio conceito de
educação é construído, seja ele prestado pelo Poder Público ou pela iniciativa
privada. Aqui, em alguma medida, e muito embora examinado no contexto
do conceito de trabalho, Colin Barnes, coloca a relação entre as barreias, cuja
construção é social, e algumas questões do modo de funcionamento do capitalismo
(DINIZ, 2013, p. 249).
É que a noção de serviço educacional, independente de quem o preste, não
se desnatura, não se despe do caráter público, de elemento essencial para a vida em
sociedade. No fundo, iniciativas como a da ADIN proposta lida com a educação
como elemento que integra a cadeia produtiva e de mercado e é pensada para abarcar
as pessoas que melhor se adaptam a esse sistema, desconsiderando cidadãos inseridos
em representações culturais negativas. Como já mencionado, e a decisão em tela, de
algum modo caminha para tal, é preciso modificar a representação de alguns setores
da sociedade sobre o conceito de serviço educacional. Para Colin Barnes, “qualquer
sociedade que não ofereça algum tipo de sistema de bem-estar para pessoas em
situação de pobreza ou outra situação desvantajosa não pode ser caracterizada como
uma sociedade civilizada e desenvolvida.” (DINIZ, 2013, p. 249).
No entendimento do Ministro Relator, para afastar a tese dos custos,
“não é possível sucumbir a argumentos fatalistas que permitam uma captura da
Constituição e do mundo jurídico por supostos argumentos econômicos que, em
realidade, se circunscrevem ao campo retórico. Sua apresentação desacompanhada
de sério e prévio levantamento a dar-lhes sustentáculo, quando cabível, não se
coaduna com a nobre legitimidade atribuída para se incoar a atuação desta Corte.”
E agregou o seguinte: “Como é sabido, as instituições privadas de ensino exercem
atividade econômica e, enquanto tal, devem se adaptar para acolher as pessoas
com deficiência, prestando serviços educacionais que não enfoquem a questão da
deficiência limitada à perspectiva médica, mas também ambiental. Esta última
deve ser pensada a partir dos espaços, ambientes e recursos adequados à superação
de barreiras – as verdadeiras deficiências de nossa sociedade.”
A linha de argumentação desenvolvida pela decisão vai ao encontro do
sustentado por autores como Colin Barnes, ao criticar o foco no aspecto individual
da deficiência, pois muito embora não se desconheça que existe, urge compreender
que as causas das desvantagens das pessoas com deficiência são formados pela
própria sociedade (DINIZ, 2013, p. 245). No caso, questiona-se o modo como a
comunidade escolar – incluindo as escolas particulares – responde a pessoas com
deficiência. A Lei nº 13.146/2015 adotou o entendimento da deficiência a partir

132
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

da referência de caráter biopsicossocial, tanto que no §1º do artigo 2º, disciplinou


a avaliação realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar considerando
não somente os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, mas fatores
socioambientais, psicológicos e pessoais, limitação no desempenho de atividades
e a restrição de participação. Já, o artigo 3º, inciso IV, normatizou o conceito de
barreira como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite
ou impeça a participação social da pessoa, bem com o gozo, a fruição e o exercício
de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à
comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança.
O serviço público educacional, na linha do decidido pelo STF na ADI
5.357, não pode conviver constitucionalmente com barreiras em relação às pessoas
com deficiência, motivo pelo qual não há qualquer inconstitucionalidade do
diploma legal antes mencionado, ao incluir as escolas privadas no cumprimento
das obrigações do artigo 28. Impõe-se a referência explícita do voto do Ministro
Edson Fachin:

Se é certo que se prevê como dever do Estado facilitar às pessoas com


deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida
em comunidade, bem como, de outro lado, a necessária disponibilização
do ensino primário gratuito e compulsório, é igualmente certo
inexistir qualquer limitação da educação das pessoas com deficiência
a estabelecimentos públicos ou privados que prestem o serviço público
educacional.

Admitir a pretensão veiculada na petição inicial da Confederação


Nacional dos Estabelecimentos de Ensino importaria desconsiderar que o dever
de inserção das pessoas com deficiência no ensino privado configura um dos
relevantes elementos para elaborar ações públicas, a fim de desconstruir as barreiras
previstas no artigo 3º, IV, “e”, da Lei nº 13.146/2015, que tão-somente concretiza
a concepção constitucional de dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF),
igualdade (artigo 5º) e o serviço público à educação (artigo 208, inciso III). O
diploma legal infraconstitucional materializou a postura de encontrar não soluções
individuais e/ou de adaptações dos cidadãos, mas soluções dirigidas à sociedade
como um todo, considerando o contexto dos serviços públicos educacionais. Como
aduziu o Relator: “Ressalte-se que, não obstante o serviço público de educação seja
livre à iniciativa privada, ou seja, independentemente de concessão ou permissão,

133
Leonel Ohlweiler

isso não significa que os agentes econômicos que o prestam o possam fazê-lo
ilimitadamente ou sem responsabilidade.”
A educação é, portanto, integrante do direito ao bem-estar, configurando-
se direito fundamental, indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa,
conectando-se de modo direito com a dignidade humana, como bem alude Regina
Maria Fonseca Muniz, aduzindo que sem tal direito o cidadão jamais poderá
atingir sua plenitude, inclusive pelo fato de configurar-se como ente eminentemente
social, “cuja integração no meio em que vive exige educação, seja para o convívio,
seja para o exercício de sua cidadania.” (MUNIZ, 2002, p. 114).
Como a dignidade humana exige o respeito à vida objetiva de todos8, a
vida das pessoas como deficiência deve ter o mesmo valor, sem discriminação, e
com especial atenção para situações de vulnerabilidade, repensando-se o serviço
público educacional, de modo a ultrapassar o paradigma individualista para
configurar-se como meio de prevenção de barreias e impedimentos, na linha do
defendido por Agustina Palacios (PALACIOS, 2008, p. 124).
Tal propósito da educação foi especificado por ocasião do julgamento
da ADI 5.357, pois prevaleceu o entendimento de aplicação direta da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, especialmente os
artigos 1º e 24. Esse último dispositivo determina que para efetivar o direito à
educação sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estado
assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, pois “à escola não é
dado escolher, segregar, separar, mas é seu dever ensinar, incluir, conviver.”

CONCLUSÃO.

O julgamento da ADI 5.357 pelo Supremo Tribunal Federal trouxe mais


uma vez para o debate a vulnerabilidade das pessoas com deficiência e os deveres
de prestação do serviço educacional, nos termos do artigo 27 da Lei nº 13.146/205,
segundo o qual a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados
sistema educacional inclusivo em todos os níveis de aprendizado ao longo de toda
a vida. Não se pode olvidar a necessidade de modificar os paradigmas sobre a

8 – Para Ronald Dworkin a dignidade relaciona-se com o respeito pela vida objetiva de cada um, de
modo que nenhuma ação pode ser considerada legítima, por exemplo, quando fundada na humilhação
e discriminação, pois o respeito pela importância de qualquer vida proíbe que se causem danos a
algumas pessoas para benefício de outros (DWORKIN, 2012, p. 344-345).

134
Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

questão. Conforme a problematização sob o enfoque social, todas as pessoas são


potencialmente vulneráveis e, considerando a dimensão de temporalidade, em
algum momento da vida podem surgir barreias sociais que impeçam ou dificultem
o pleno exercício de direitos e convivência na comunidade.
A perspectiva hermenêutica adota neste breve estudo considera que a
vulnerabilidade decorre muito mais de estruturas sociais que favorecem quadros
de riscos, dificuldades e incapacidades. Desde o enfoque médico, para lidar com
os idosos, passando pelo problema dos desastres ambientais, é um desafio indicar
o significado da expressão vulnerabilidade. No entanto, de plano é relevante situar
a questão no campo das construções sociais, políticas e econômicas, distanciando-
se das tentativas de categorização. Somente assim é possível laborar com a
vulnerabilidade das pessoas com deficiência de modo a compreender em todas as
dimensões que as barreiras impostas, na verdade, em grande medida, decorrem de
construções sociais, como as graves consequências dos processos de exclusão do
serviço educacional, tema objeto do julgamento realizado pelo STF.
A circunstância de a educação ser materializada por escolas privadas não
é capaz de descaracterizar o caráter jusfundamental do direito e a necessidade
de o estabelecimento concretizar as políticas públicas inclusivas. No entanto,
considerando a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é
imprescindível compreender que a educação é incompatível com o modelo da
tragédia pessoal, no qual a deficiência é problema individual. Urge modificar a
maioria da sociedade, a forma como a comunidade escolar estrutura-se e aceitar
a inevitável realidade das diferenças humanas. O acesso à educação para pessoas
com deficiência exige a problematização da igualdade de oportunidades para todos,
remetendo para o debate sobre a necessidade de controlar processos de exclusão
estrutural, seja nas escolas públicas ou privadas.
A decisão examinada concluiu que o Estatuto da Pessoa com Deficiência
assumiu o compromisso do ensino inclusivo, exigindo atuação educacional a partir
dos marcos da Convenção, pois é somente com o convívio com a diferença e o
necessário acolhimento que será possível construir uma sociedade livre, justa e
solidária. O ensino privado não deve privar os estudantes, com ou sem deficiência,
da construção diária de uma sociedade acolhedora. É crível sustentar que aqui
reside um dos mais relevantes aspectos simbólicos do julgamento realizado, o
quotidiano de conviver com pessoas com deficiência não é algo negativo, mas
enriquecedor para a experiência humana.

135
Leonel Ohlweiler

O STF, portanto, assumiu expressamente o entendimento segundo o


qual o ensino inclusivo é política pública desenhada e amadurecida ao longo do
tempo, exigindo-se consciência histórica para entender todas as consequências,
em especial, de modo que nem mesmo a livre iniciativa pode ser materializada,
divorciada do direito fundamental à educação para pessoas com deficiência.
Em relação à tese dos custos, não é possível sucumbir a argumentos fatalistas
que permitam a captura da Constituição e do mundo jurídico por argumentos
econômicos. Nos termos do que foi decidido, o serviço educacional não pode
conviver constitucionalmente com barreiras em relação às pessoas com deficiência,
não existindo inconstitucionalidades na Lei nº 13.146/2015 ao englobar as
escolas privadas no cumprimento de obrigações de adotar o sistema educacional
inclusivo, com um conjunto de aprimoramentos dos sistemas educacionais
para o favorecimento do acesso, permanência, participação e aprendizagem em
instituições de ensino, vendando-se a cobrança de valores adicionais de qualquer
natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas.
O processo de compreensão desenvolvido neste estudo conjugou o aspecto
individual da pessoa com deficiência, de modo a erigir o serviço educacional
preocupado com as histórias de vida, suas circunstâncias materiais e o próprio
sentido de deficiência para cada um, mas, ao mesmo tempo, reafirmar o caráter
social das barreiras construídas. Desenvolver políticas públicas na área da
educação, como o fez a Lei 13.146/2015, na área da educação para pessoas com
deficiência, deve considerar os meios de subsistência de pessoas já inseridas em
profundos processos de exclusão, cabendo à comunidade escolar incrementar meios
de resiliência e identificar os fatores que contribuem para o bem-estar na escola,
favorecendo elementos de autoproteção. As estruturas do serviço educacional
devem ser construídas para favorecer o desenvolvimento e aprendizagem, mas em
especial com ampla participação da comunidade e das pessoas com deficiência,
adotando a concepção de governança na qual prevalece a coordenação de atores e
instituições, fortalecendo o caráter democrático da educação.

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Vulnerabilidade Socioambiental em Cubatão-SP através da Integração de Dados
Sociodemográficos e Ambientais em Escala Intraurbana. Trabalho Apresentado no

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Vulnerabilidade nos serviços públicos educacionais: o caso do direito à educação das pessoas com deficiência.

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138
APRECIAÇÃO DA PENA CRIMINAL
EM SEGUNDO GRAU: O PROBLEMA DA
“REFORMATIO IN PEJUS” INDIRETA

Jayme Weingartner Neto1

INTRODUÇÃO

Poucos temas, no âmbito das ciências criminais, tem tanta relevância prática
no exercício cotidiano da jurisdição de segundo grau e, ao mesmo tempo, carecem
de sólido consenso teórico-jurisprudencial, quanto o problema da dosimetria da
pena ao exame recursal.
No presente texto, recorta-se o específico problema da “reformatio in pejus”
indireta, examinando-se a jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ)
para verificar se, e em que termos, o Tribunal “ad quem”, em recurso exclusivo da
defesa, pode manter o “quantum” de pena da sentença, mesmo realizando nova
ponderação e afastando circunstâncias desfavoráveis.

O PANORAMA JURISPRUDENCIAL

O Superior Tribunal de Justiça ostenta precedentes no sentido de que “o


efeito devolutivo pleno do recurso de apelação autoriza ao Tribunal ad quem, ainda

1 – Desembargador TJ/RS, Doutor em Direito do Estado (PUCRS), Mestre em Ciências Criminais


(Coimbra), Professor do PPG do Unilasalle/Canoas e Diretor da Escola Superior de Magistratura da
AJURIS
Jayme Weingartner Neto

que em recurso exclusivo da defesa, a proceder à revisão das circunstâncias judiciais


do art. 59 do Código Penal, reconhecidas pela sentença condenatória como
desfavoráveis, melhor explicitando-as, bem como a alteração dos fundamentos para
justificar a manutenção; não havendo falar em reformatio in pejus se a situação do
sentenciado não foi agravada” (STJ, AgRg no AREsp 756758 / RS, 5ª T., Ministro
Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 21/06/2016).
Nesta linha, em recurso exclusivo da defesa, desde que não agravada a
situação do condenado, “o efeito devolutivo da apelação permite a análise das
circunstâncias concretas do fato pelo Colegiado, com nova ponderação sobre os
termos da dosimetria aplicada”, sem que isso importe em violação do princípio
do non reformatio in pejus (STJ, HC 290426/BA, Quinta T., Ministro Rel. Moura
Ribeiro, j. em 10/06/142 e HC 232861/SP, 6ª T., Ministra Maria Thereza de Assis
Moura, j. em 11/03/14).
Entretanto, notadamente no âmbito da Sexta Turma do STJ, a questão tem
evoluído de modo diverso, ao menos em algumas hipóteses, instalando-se dissídio
jurisprudencial. O eminente Min. Rogério Schietti Cruz tem ofertado relevantes
reflexões sobre o tema. No HC nº 302.488, admite, mantida a reprimenda,
encontrem os tribunais outros fundamentos em relação à sentença impugnada –
uma mais qualificada motivação, em suma:

“Assim, não há impedimento de que, sem agravamento da situação penal


do réu, o Tribunal, a quem se devolveu o conhecimento da causa por força
de recurso exclusivo da defesa, possa emitir sua própria e mais apurada
fundamentação sobre as questões jurídicas ampla e dialeticamente
debatidas no juízo a quo, objeto da sentença impugnada. (...) A proibição
de reforma para pior garante ao réu, na espécie ora versada, o direito
de não ter sua situação agravada, direta ou indiretamente. Não obsta,
entretanto, que o Tribunal, para dizer o direito – exercendo, portanto, sua

2 – O Min. Relator consigna, verbis: “No que se refere à tese de constrangimento ilegal pela manutenção
da pena-base no mesmo patamar, apesar do afastamento de circunstâncias judiciais, o acórdão
proferido pelo Tribunal de origem deve ser mantido eis que está de acordo com o entendimento
reiterado desta eg. Quinta Turma no sentido de que ‘o princípo da ne reformatio in pejus não vincula o juízo
ad quem aos fundamentos adotados pelo juízo a quo, somente representando obstáculo ao agravamento da pena,
inadmissível em face de recurso apenas da Defesa’ (STJ, Quinta Turma, HC nº 236.180/RS, Rel. Min. Laurita
Vaz, DJe 11.9.13)” – grifei.

140
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

soberana função de juris dictio – encontre motivação própria, respeitada,


insisto, a imputação deduzida pelo órgão de acusação, a extensão
cognitiva da sentença impugnada e os limites da pena imposta no juízo
de origem. (...) Nesse sentido grassam diversos julgados dos Tribunais
Superiores, notadamente em tema de individualização da pena, nos quais,
não raro, o Tribunal, em recurso exclusivo da defesa, de fundamentação
livre e de efeito devolutivo amplo, encontra outros fundamentos em
relação à sentença impugnada, não para prejudicar o recorrente, mas
para manter-lhe a reprimenda imposta no juízo singular, sob mais
qualificada motivação.”3

Discorda o Min. Schietti, todavia, de precedente do STF que aceitou a


“substituição de uma circunstância [do art. 59] por outra para manter a pena fixada
em primeiro grau” – trata-se do HC 76156/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
Primeira Turma, 08/5/1998.
O STF tem afirmado a inexistência de reformatio in pejus em contextos
similares. Também a Primeira Turma admitiu expressamente a suplementação de
fundamentos pelo Tribunal ad quem, “limitado tão-somente pelo teor da acusação
e pela prova produzida” (HC 101917/MS, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira
Turma, 09/02/2011; HC 106113/MS, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma,
1º/02/2012) – o limite seria reconhecer, em desfavor do paciente, “circunstância
fática não reconhecida em primeiro grau”. A mesma Primeira Turma reafirmou que
não há reformatio in pejus se o Tribunal de Justiça, “ao negar provimento ao recurso
criminal defensivo, não reconheceu, em desfavor do recorrente, circunstância fática
não reconhecida em primeiro grau, apenas fazendo sua reclassificação dentre os
vetores previstos no art. 59 do Código Penal (RHC 119.149/RS, Rel. Min. Dias
Toffoli, Primeira Turma, 10/02/2015).4

3 – STJ, Sexta Turma, HC nº 302.488/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 10/11/14.
4 – No caso, o Juiz havia negativado a conduta social do réu por outras duas condenações transitadas
em julgado posteriormente ao fato (uma terceira, com trânsito anterior, configurou reincidência).
O Tribunal ad quem afastou tal fundamento, como inidôneo para desvalorar a conduta social, mas
o utilizou para afirmar os maus antecedentes “e personalidade voltada à prática criminosa”. Assim,
manteve o acréscimo de 10 meses à pena-base de 4 anos já operado em primeiro grau. O Min. Relator
expressamente referiu possível a “correta qualificação de elemento equivocadamente considerado, na
fixação da pena-base pelo juízo de piso” e nem o fato de haver o juízo de primeiro grau afirmado
que não havia elementos para aquilatar a personalidade “impede que se reconheça o equívoco dessa

141
Jayme Weingartner Neto

A Segunda Turma do STF perfilha visão semelhante: “O efeito devolutivo


inerente ao recurso de apelação permite que, observados os limites horizontais da
matéria questionada, o Tribunal aprecie em exaustivo nível de profundidade, a
significar que, mantida a essência da causa de pedir e sem piorar a situação do
recorrente, é legítima a manutenção da decisão recorrida ainda que por outros
fundamentos” (RHC 116013/RS, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma,
21/10/2014).
Noutro caso bastante peculiar, porém, dividiu-se a Segunda Turma, ao
discutir se o Tribunal de Apelação, ao redimensionar a pena-base em patamar
para além daquele fixado no juízo originário, embora reduzindo a penal total,
“reconhecendo vetoriais desfavoráveis não veiculadas na sentença (art. 59, CP),
incorrera ou não na reformatio in pejus (RHC 103310/SP, Rel. Min. Teori Zavascki,
Red. Ac. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, 03/3/2015).5 Observa-se que
os dois Ministros vencidos consideraram a reprimenda final – diminuída – para
balizar a resposta negativa à alegação de reforma para pior, firmados na ampla
devolutividade do recurso de apelação, e concluir que é legítima a “revisão do
quantum estabelecido em cada fase do modelo trifásico da dosimetria”, pelo que
o recurso contra a individualização da pena “não limita o Tribunal de apelação
ao reexame dos motivos da sentença” (a restrição a “observar no ponto é que as
novas circunstâncias do fato hão de estar explícitas ou implicitamente contidas na
acusação” – conforme o citado HC 76156, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira
Turma [08/5/1998, objeto, a decisão, da reserva do Min. Schietti]). Os dois
Ministros vencedores, a seu turno, aferiram a pena parcial [nos termos trifásicos
dados pelo art. 68 do CP] para bitolar o alcance do non reformatio in pejus. Numa
ou noutra senda, todavia, inescapável conclusão, a contrario: caso não ultrapassada
pena (para além do quantum fixado no juízo originário), seja na pena final ou,

mensuração, classificando-se corretamente aquele elemento dentre as circunstâncias judiciais do art. 59


do Código Penal”. Ficaram vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux.
5 – A ordem foi concedida por votação de empate, vencidos o Min. Relator e a Min. Carmen Lúcia.
A pena de primeiro grau finalizara em 7 anos e 9 meses de reclusão (tráfico majorado) e a pena-base
negativara culpabilidade, motivo e consequências. O Tribunal ad quem, em provimento parcial, reduziu
a pena final para 6 anos, 5 meses e 23 dias de reclusão, porém aumentando a pena-base (de 5 anos e 8
meses para 6 anos e 8 meses – em face da natureza da droga [o art. 42 da Lei nº 11.343/2006 comanda
que preponderam, sobre o art. 59 do CP, a natureza e a quantidade da substância, a personalidade e a
conduta social do agente] e pelo fato de a apelante ser então secretária de agência de viagens).

142
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

para os mais exigentes, na pena-base ou na pena provisória, não há que falar em


reforma para pior.
Em decisão mais recente, a Segunda Turma do STF reafirmou, modo
unânime, entendimento no sentido de que não caracteriza reformatio in pejus quando,
em recurso exclusivo da defesa, há apenas revisão dos critérios de individualização
da pena-base definidos na sentença para manter a pena já fixada. No caso, a
decisão, em primeiro grau, valeu-se de três condenações definitivas para negativar
os maus antecedentes e de uma quarta condenação para a reincidência. Entretanto,
em segundo grau, constatou-se que a condenação usada para fins de reincidência
tinha trânsito em julgado posterior ao fato em questão, não servindo para tal fim.
Não obstante, o Tribunal local considerou validamente a existência dos outros
registros condenatórios como idôneos para justificar a majoração da pena-base
(maus antecedentes) e o reconhecimento da reincidência, mantendo a pena fixada
(HC 137.528/SC, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Tofoli, j. 13.06.2017).
A Primeira Turma, contudo, continua dividida. No julgamento do RHC
117.756/DF, ainda com o Ministro Dias Toffoli na composição, analisado um dos
pontos controvertidos (Tribunal de origem afastou a reincidência, fundamento
usado para negar a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da lei de Drogas,
porém manteve o não reconhecimento da minorante sob fundamento diverso,
em recurso exclusivo da defesa), o Relator, Ministro Dias Toffoli, asseverou a
inexistência de reformatio in pejus diante do efeito devolutivo da matéria e da
ausência de agravamento da pena imposta, entendimento seguido pelos Ministros
Roberto Barroso e Rosa Weber. Contudo, há conclusão diversa do Ministro Luiz
Fux, acompanhada pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido de que “a supressão
de um direito em recurso exclusivo da defesa afronta, fora de dúvida, o princípio do
ne reformatio in pejus, independentemente de resultar, ou não, acréscimo da pena”.
No caso, o recurso acabou sendo provido para determinar ao juízo de origem a
aplicação da minorante, porém não pelo reconhecimento da reformatio in pejus.
Ocorre que o Ministro Roberto Barroso, embora não reconhecendo a reforma
prejudicial, entendeu inidôneo o fundamento usado, em sede de apelação, para
não aplicar a minorante e, assim, acompanhou a divergência, dando provimento ao
recurso (RHC 117.756/DF, Relator p/Acórdão: Min. Luiz Fux, j. em 22/09/2015,
publicada em 11/02/2016).
Por fim, já com o Ministro Alexandre de Moraes na composição, a Primeira
Turma sinaliza para a posição majoritária, no julgamento do HC 130.924/DF
(Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 01/08/2017). No caso, o Tribunal de origem, em

143
Jayme Weingartner Neto

uma condenação pelo delito de tráfico de drogas, embora considerando inidôneas


todas as circunstâncias judiciais apontadas na sentença, reduziu a pena-base, mas
não para o mínimo, mantendo aumento de 06 meses com base na natureza lesiva
da droga nos termos do art. 42 da lei nº 11.343/06. Os Ministros Marco Aurélio
e Luiz Fux reafirmaram seus posicionamentos no sentido de que, afastadas
todas as circunstâncias judiciais referidas na sentença, necessária a redução
da pena-base ao mínimo, não podendo ser agregada nova circunstância, ainda
que a pena tenha sido reduzida. Votaram, assim, pela redução da pena para 05
anos de reclusão e, em consequência, alteração do regime para o semiaberto. Os
Ministros Roberto Barroso e Rosa Weber consignaram expressamente não estar
acompanhando os fundamentos pela reformatio in pejus, porém concordaram com
a alteração do regime (inicialmente fixado no fechado), sem modificar a pena.
O Ministro Alexandre de Moraes denegou a ordem, afirmando que “não houve
reformatio in pejus”, citando, inclusive, decisões das duas Turmas neste sentido.
Destaco que a ementa, com a devida vênia e na leitura que alcanço, não reproduz
com fidelidade o resultado do julgamento no que diz respeito à questão de fundo,
uma vez que, dos cinco ministros, três afirmaram que, afastadas as circunstâncias
judiciais que serviram de aumento da pena-base, o fato de ter sido agregada
circunstância diversa, em recurso da defesa, não importa reforma prejudicial,
pois não agravada a pena. 6
A Quinta Turma do STJ, como já referido, mantém entendimento mais
pacificado de que a proibição de reformatio in pejus não impede acréscimo de
fundamentos, sopesadas as mesmas circunstâncias fáticas, pelo Tribunal ad quem,
óbvio que mantida a pena imposta na instância original. Neste sentido, recentes

6 – EMENTA: RECURSO – CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS – AFASTAMENTO –


CONSEQUÊNCIA. Sendo afastadas, no julgamento do recurso da defesa, as circunstâncias judiciais
que serviram ao aumento, pelo Juízo, da pena-base, cumpre fixá-la no mínimo previsto para o tipo,
mostrando-se reforma prejudicial ao recorrente a tomada de empréstimo de circunstância não referida na
sentença, pouco importando que, no resultado final, em termos de sanção, tenha-se ficado em patamar
inferior ao estipulado pelo Juízo. PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS FAVORÁVEIS AO ACUSADO. Uma vez favoráveis as circunstâncias judiciais ao
acusado, ficando-se, em termos de pena-base, no mínimo previsto para o tipo, considerado o patamar
fixado no artigo 33 do Código Penal, cumpre observar o regime menos gravoso.

144
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

decisões: HC 451.630/RS, 5ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. em 21/06/20187 e HC


431.076/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. em 12/06/20188.

A Sexta Turma do STJ, entretanto, já vinha conferindo maior limitação ao


acréscimo de fundamentos, tendencialmente considerado reforma para pior. Por
exemplo, no REsp 859.251, Rel. Min. Schietti, 09/02/2015, consignou-se:

3. Embora a Corte de origem, em recurso exclusivo da defesa, tenha


afastado a desfavorabilidade da circunstância judicial relativa aos motivos
do delito (sopesando-a, então, favoravelmente ao recorrente), deixou de
proceder à respectiva redução na reprimenda, motivo pelo qual se mostra
de rigor a diminuição da pena-base nesse ponto, sob pena de ofensa ao
princípio do ne reformatio in pejus e da proporcionalidade.

No caso referido, porém, em recurso exclusivo da defesa, reconhecida pelo


Tribunal de Justiça do Paraná a impropriedade de uma circunstância judicial
(motivos do delito) – que fora negativada pelo juízo singular –, nada obstante,
foi mantido o quantum de pena-base arbitrado na sentença a quo. Mas, se leio
bem o voto do nobre Relator no STJ, o Tribunal ad quem obrou sem acréscimo
de fundamento mediante indicação de outro vetor eventualmente desfavorável,

7 – EMENTA: “[...] IV - A jurisprudência da Quinta Turma deste Tribunal Superior se firmou no


sentido de que o efeito devolutivo da apelação autoriza a Corte estadual, quando instada a se manifestar
acerca da dosimetria, regime inicial e demais questões relativas às peculiaridades do crime, a examinar
as circunstâncias judiciais e rever a individualização da pena, seja para manter ou reduzir a sanção final
imposta ou para abrandar o regime inicial.
V - No ponto, mesmo se tratando de recurso exclusivo da defesa, é possível nova ponderação das
circunstâncias que conduza à revaloração sem que se incorra em reformatio in pejus, desde que a
situação final do réu não seja agravada, conforme ocorreu na hipótese. Precedentes. Habeas corpus
não conhecido”.
8 – EMENTA: “[...] 4. Inexiste, na hipótese, ofensa ao princípio da non reformatio in pejus, pois o
Tribunal de origem se utilizou dos mesmos fundamentos apontados pelo Juízo de primeiro grau, para
manter afastado o tráfico privilegiado, tendo sido apenas direcionado vetores distintos para cada fase
da dosimetria.
5. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou que é permitido ao Tribunal de origem agregar novos
fundamentos para manter a dosimetria fixada em primeiro grau, sem se falar em ofensa ao princípio da
reformatio in pejus, desde que se valha de elementos contidos na sentença condenatória e não agrave a
situação do réu. Precedentes [...]”.

145
Jayme Weingartner Neto

operação que, no diapasão da Sexta Turma, violou o princípio do ne reformatio


in pejus e da proporcionalidade. No aresto do STJ, aliás, os outros dois vetores
negativados (culpabilidade e circunstâncias) também foram afastados, fixada, em
decorrência, a pena-base no mínimo legal.
A análise refinou-se no HC 251.417, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz,
03/11/2015, ditando a Sexta Turma que o exame para aferir reformatio in pejus
deve operar-se em “cada item do dispositivo da pena” e não considerar apenas a
“quantidade total da reprimenda”. No caso, o juiz negativara a culpabilidade, a
personalidade e as circunstâncias, tendo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
afastado a culpabilidade.9
Na dicção do aresto do STJ, o Tribunal de Minas Gerais deveria “reduzir,
como consectário lógico, a pena básica e não mantê-la inalterada, pois, do contrário,
estará agravando o quantum atribuído anteriormente a cada uma das vetoriais”.
Socorre-se, o ilustre Relator, de abalizada doutrina sobre a vedação de reformatio
in pejus como derivação do princípio mais amplo do favor rei, abarca a hipótese de
reforma para pior indireta, considera que o instituto diz respeito a cada item do
dispositivo da pena (e não apenas ao seu total), ilustra com o já mencionado HC
103.310, STF, Segunda Turma, Min. Gilmar Mendes, 07/5/2015, e com decisões
da Corte de Cassação da Itália (1916, 1929) no sentido de que, ausente recurso do
órgão acusador, “não pode o Tribunal, após absolver o apelante por um dos crimes,
elevar a pena do crime remanescente” – argumento que o Min. Schietti considera
válido para hipóteses de afastamento de agravantes ou circunstâncias judiciais.10
Finalmente, no REsp 1.547.734/PE, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j.
07/3/2017, a Sexta Turma, por unanimidade, explicitou o paradigma que passou
a assumir:

9 – No julgamento dos embargos de declaração, o Tribunal de Justiça registrou que mesmo que no
julgamento do recurso de apelação tenham sido consideradas desfavoráveis “duas circunstâncias
judiciais, em vez das três valoradas negativamente pela sentença condenatória, tal fato não induz a uma
redução automática da pena-base, mormente quando a reprimenda restou fixada em patamar suficiente
à prevenção e reprovação do delito, conforme o caso dos autos.”
10 – Como consequência lógica, o Min. Relator passa a redimensionar a pena, calculando – para
descontá-la – a fração matemática atribuída a cada vetorial negativa pelo julgamento de piso (no
particular, 1 ano e 8 meses de reclusão na fixação da pena-base de crime de latrocínio – resultado dos
cinco anos acrescidos divididos por três vetores), a redundar, na primeira fase, numa pena de 23 anos e
4 meses de reclusão, em vez dos 25 anos de reclusão originariamente atribuídos.

146
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

RECURSO ESPECIAL. ARTS. 171, § 3° (72 VEZES), E 288, AMBOS


DO CP. PRIMEIRA FASE DA DOSIMETRIA. REFORMATIO
IN PEJUS. OCORRÊNCIA. ACÓRDÃO QUE, EM APELAÇÃO
DA DEFESA, AFASTOU A ANÁLISE NEGATIVA DE DUAS
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS, MAS MANTEVE A PENA
INALTERADA. LIDERANÇA. MAJORANTE DO ART. 62, I, DO
CP. BIS IN IDEM. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL
PARCIALMENTE PROVIDO, PARA RECONHECER A VIOLAÇÃO
DO ART. 59 DO CP.
1. A proibição de reforma para pior garante ao réu o direito de não ver
sua situação agravada, direta ou indiretamente, em recurso exclusivo da
defesa, mas não obsta que o Tribunal, para dizer o direito – exercendo,
portanto, sua soberana função de juris dictio –, encontre fundamentos e
motivação própria para manter a condenação, respeitadas, à evidência, a
imputação deduzida pelo órgão de acusação e as questões debatidas na
sentença condenatória.
2. Para o exame das fronteiras que delimitam a proibição de reforma para
pior, deve ser analisado cada item do dispositivo da pena, e não apenas
a quantidade total da reprimenda. Assim, se o Tribunal exclui, em apelo
exclusivo da defesa, circunstância judicial do art. 59 do CP erroneamente
valorada na sentença, deve reduzir, como consectário lógico, a pena
básica em vez de mantê-la inalterada, pois, do contrário, estará agravando
o quantum atribuído anteriormente a cada uma das vetoriais. (...).11

Segundo a Sexta Turma, portanto, se o Tribunal ad quem exclui fatores


que aumentaram a pena, há de reduzi-la, “pois, do contrário, estará agravando
a situação do apelante”. É dizer, ao manter a pena inalterada, “modificou, para

11 – No caso, o recorrente foi condenado em primeiro grau por 72 estelionatos (art. 171, § 3º, CP) e pelo
crime previsto no art. 288 do CP a uma pena total de 9 anos, 3 meses e 10 dias de reclusão. Para tanto,
no que interessa ao tema versado, o juiz, na pena-base de ambos os delitos, considerou desfavoráveis
cinco vetoriais: culpabilidade, antecedentes, personalidade, circunstâncias e consequências do crime.
O TRF da 5ª Região afastou os antecedentes e a personalidade, mas considerou as três vetoriais
remanescentes (culpabilidade, circunstâncias e conseqüências) efetivamente negativas – portanto,
“inexiste desproporcionalidade na sua fixação apenas um ano acima do patamar mínimo previsto no
preceito secundário da norma pena [para a associação, já que para o estelionato foram dois anos acima
do mínimo]”. O STJ chegará, ao final, a uma pena total de 8 anos, 2 meses e 18 dias de reclusão.

147
Jayme Weingartner Neto

pior, a quantidade de aumento atribuída às vetoriais remanescentes. (...) seria um


assombroso contrassenso decidir em favor do réu, reconhecendo o equívoco na
análise das circunstâncias dispostas no caput do art. 59 do CP e, mesmo assim,
manter o quantum da pena privativa de liberdade”.12 Tal posicionamento vem sendo
reafirmado em recentes decisões: HC 410.534/ES, Rel. Min. Rogerio Schietti
Cruz, j. em 22/05/201813 e AgRg no AREsp 1.155.721/MT, Rel.Min. Antonio
Saldanha Palheiro, j. em 27/02/201814.
Feito este escorço jurisprudencial, quais diretrizes podem ser extraídas dos
precedentes dos Tribunais Superiores? Parece majoritário o entendimento de que,
mesmo em recurso exclusivo da defesa, mantido o apenamento15 e respeitados os
limites da imputação e a prova produzida, pode o Tribunal ad quem realizar nova
ponderação sobre a dosimetria aplicada pelo juízo a quo, encontrando melhor

12 – Mais uma vez, calculadora na mão, o Min. Relator constatou que cada uma das circunstâncias
judiciais, pelo juiz, equivaleram a acréscimos de 4 meses e 24 dias para o estelionato e 2 meses e 12 dias
para a associação. Operado o desconto das duas vetoriais descartadas, a pena-base resultou em 2 anos,
2 meses e 7 dias de reclusão para o estelionato; e 1 ano, 7 meses e 15 dias de reclusão para o crime de
associação.
13 – EMENTA: “[...] 1. Para o exame das fronteiras que delimitam a proibição de reforma para pior
deve ser analisado cada item do dispositivo da pena e não apenas a quantidade total da reprimenda.
Assim, se o Tribunal exclui, em apelo exclusivo da defesa, circunstância judicial do art. 59 do CP
erroneamente valorada na sentença, deve reduzir, como consectário lógico, a pena básica e não mantê-
la inalterada, pois, do contrário, estará agravando o quantum atribuído anteriormente a cada uma das
vetoriais. 2. Embora a paciente haja sido condenada a reprimenda inferior a 8 anos de reclusão, é
reincidente e possui circunstância judicial desfavorável - tanto que a sua pena-base ficou estabelecida
acima do mínimo legalmente previsto -, o que evidencia ser o regime inicial fechado o mais adequado
para a prevenção e a repressão do delito perpetrado. Inteligência do art. 33, § 2º, "a", e § 3º, do Código
Penal. 3. Habeas corpus parcialmente concedido para, reconhecida a ocorrência de reformatio in pejus
na dosimetria da pena, reduzir em parte a reprimenda-base estabelecida à paciente e, por conseguinte,
tornar a sua sanção definitiva em 5 anos, 2 meses e 15 dias de reclusão, a ser cumprida no regime inicial
fechado, mais pagamento de 520 dias-multa”.
14 – EMENTA: “[...] 2. No caso, ao julgar a apelação exclusivamente defensiva, o Tribunal de origem
afastou as consequências do crime por considerar inidôneos os fundamentos da sentença, mantendo,
contudo a pena-base no mesmo patamar. Ocorre que, afastada pelo colegiado local uma circunstância
judicial negativa reconhecida no édito condenatório, imperiosa seria a redução proporcional da
reprimenda básica, em atenção ao princípio da non reformatio in pejus [...]”
15 – Mais restritiva, a decisão do STF no citado HC 103310, leva em conta cada uma das três fases da
dosimetria da pena, assentando que, em nenhuma delas, é possível redimensionar o quantum para além
daquele fixado no juízo originário, ainda que a reprimenda final reste reduzida.

148
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

fundamento e motivação própria, sem que esteja a violar o non reformatio in


pejus.16 O fenômeno decorre do amplo efeito devolutivo da apelação e do princípio
constitucional da individualização da pena.
Creio que, por ora, em posição minoritária, a Sexta Turma do STJ densificou
a vedação de reforma para pior e decidiu que, excluída alguma circunstância do
art. 59 do CP erroneamente valorada na sentença, o Tribunal ad quem deve reduzir
proporcionalmente a pena-base.17
Estou convencido do acerto da orientação majoritária. Em busca do diálogo
entre as Cortes e diante do efetivo e grande respeito pela consistência dos votos
proferidos pelo eminente Min. Rogério Cruz Schietti, com as devidas vênias, o
posicionamento ora adotado pela colenda Sexta Turma do STJ, ao delimitar a
extensão da proibição de reforma para pior, não me parece o mais adequado.

NA TRILHA DE UMA DOSIMETRIA PRUDENCIAL

As normas atinentes ao fenômeno em exame estão previstas no art. 5º,


incisos XLVI (individualização da pena) e LV (ampla defesa), da Constituição
Federal, art. 617 do Código de Processo Penal e arts. 59 a 76 do Código Penal.
Conceitualmente, convocam-se os limites do efeito devolutivo do recurso interposto
e a ampla questão da dosimetria da pena.

16 – Os lindes desta “nova ponderação sobre a dosimetria”, na leitura que fiz, não são unívocos.
Tendencialmente, possível: acrescer argumento para sanar fundamentação deficiente; utilizar
fundamento diverso; reclassificar circunstâncias fáticas, deslocando-as dentre os vetores do art. 59
do CP; substituir por outras as circunstâncias judiciais ou legais de exasperação a que a decisão de
primeiro grau haja dado relevo (vale dizer, afastar uma vetorial insubsistente, mas apontar outra que
sustente a pena aplicada). Não encontrei resposta específica quanto à possibilidade (à qual respondo
afirmativamente) de que o Tribunal ad quem afaste uma vetorial insubsistente e, sem apontar outra,
reconsidere a intensidade atribuída a vetoriais supérstites, de molde a sustentar a pena aplicada.
17 – Observo que, via de regra, a doutrina brasileira apoda de reformatio indireta os casos em que,
anulada a sentença em recurso exclusivo da defesa, o novo provimento jurisdicional de primeiro grau
ultrapasse o máximo de pena aplicado no primeiro julgamento, havendo especial discussão quanto às
hipóteses da primeira decisão ter sido proferida em situação de incompetência absoluta, bem como
nas anulações das decisões do Tribunal do Júri, em face da soberania dos veredictos. Há, também, a
hipótese da Súmula nº 160 do STF.

149
Jayme Weingartner Neto

Penso, em suma, contra a obrigação de redução proporcional da pena


invocada pela Sexta Turma do STJ, que há óbices teórico-pragmáticos que decorrem
(i) do próprio efeito devolutivo recursal; (ii) da falta de consenso doutrinário-
jurisprudencial no que tange à aplicação da pena, desde seus fundamentos até os
meandros dosimétricos propriamente ditos; (iii) da inclinação formal-matemática
que deriva da ampliação adotada acerca do instituto da vedação da reformatio in
pejus, paradoxalmente a tensionar com o princípio da proporcionalidade; (iv) e do
incentivo indireto à enxurrada de recursos pelo Ministério Público, mesmo que
amplamente convicto da justiça da reprimenda alcançada, porém premido pela
nova necessidade de aferir, pari passu, a memória do cálculo.
O efeito devolutivo delimita, especialmente em termos de extensão (no plano
horizontal), a matéria que será levada à apreciação pelo Tribunal – já no âmbito
vertical, a profundidade de análise é a mais ampla possível, dentro da matéria que
foi devolvida. A rigor, não se questiona o efeito devolutivo vertical em si; antes,
se e em que medida a devolução fica emasculada pela incidência do princípio da
non reformatio in pejus. Trata-se de um limite externo e não interno, sendo o caso de
harmonizá-lo com a vedação da reforma para pior – em certa inovação doutrinária,
parece-me que a Sexta Turma do STJ especificou nova modalidade de proibição
de reformatio indireta no direito brasileiro. Natural, por conseguinte, que seja seu o
maior ônus de argumentação.
Quanto ao problema da dosimetria, com a devida vênia, a práxis e a prudência
têm mostrado que a definição do quantum de aumento não depende tão somente
do quantitativo de circunstâncias desfavoráveis. Dentro da proporcionalidade,
consabido que devem ser levadas em conta as balizas da pena abstratamente
cominada ao tipo legal infringido. É topos recorrente, e me parece acertado, todavia,
que o parâmetro não é fixo nem exato, é apenas referencial – um formulismo
preciso, matemático, neste sentido, seria, além de inviável, inconveniente.
Permito-me explicitar a racionalidade que orienta esta observação.
Em grandes linhas, um “sistema de margens penais e de arbítrio judicial para
determinação da pena dentro das margens consagra-se em todo o mundo”,18 isso
independente da teoria de base que se adote, que, no fundo, sempre depende da
resposta que se dê aos fins da pena. Não por acaso, as querelas entre os iluministas
(que propugnavam por uma pena certa, aferível por subsunção formal, a culminar

18 – BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 6ª ed. p. 148.

150
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

no dogma das penas fixas, legislativamente determinadas) e os positivistas (no


paradigma do tratamento, as penas seriam variadas e variáveis, individualizadas
pela discricionariedade judicial, que se via como “arte de julgar”), acabaram, na
prática dos ordenamentos, aproximando-se, confluindo num movimento de dupla
convergência muito bem descrito por Figueiredo Dias, que não é o caso de detalhar
aqui.
Consagrado constitucionalmente o princípio da individualização da pena,
a tarefa é compreendida como uma repartição e cooperação entre o legislador
e o juiz, mas jurídico-constitucionalmente vinculada. Quando se fala em
discricionariedade, tratando-se de aplicação do direito, entendo-a como recusa
aos métodos silogístico-formais (que pretensamente forneceriam uma quantidade
exata, como preconiza a superada Punktstrafetheorie), mas certamente a dosimetria
é juridicamente vinculada nos lindes de um “espaço de liberdade” ou moldura
(variações desta corrrente são largamente dominantes, como nas teorias alemãs
Spielraum ou Schuldrahmentheorie).
Pois bem, tendo como diretriz o artigo 59 do Código Penal, impõe-se a
individualização com dupla atenção: proibição da dupla valoração (ne bis in idem)19
e fundamentação suficiente. E apenas discrepâncias evidentes devem ser afastadas,
no duplo e legitimador binômio necessidade/suficiência e reprovação/prevenção
do crime. Em termos de política criminal, poder-se-ia cogitar da necessidade
de tutela dos bens jurídico-penais (prevenção geral positiva ou de integração, a
“estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma
violada” de que fala Jakobs) e reinserção, sempre que possível, do agente na
comunidade (prevenção especial positiva) – tudo sem ultrapassar, em caso algum,
o limite da culpabilidade.20
Uma medida ótima é desejável (o próprio método trifásico baliza neste
sentido), na proteção de bens jurídicos e das expectativas comunitárias, bem

19 – É preciso densificar o multicitado princípio do ne bis in idem – ninguém pode ser julgado mais do que uma
vez pela prática do mesmo crime, que reveste duas facetas: “por um lado, a proibição de dupla valoração do
mesmo substrato material nele [ no mesmo crime ] contida, e por outro lado, o mandado de esgotante
apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita submetida à cognição do tribunal num certo processo
penal”. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – parte geral – tomo I – questões fundamentais: a doutrina
geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2007, p. 978. Para uma
apreciação detalhada, confira-se pp. 982-8.
20 – DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português: as consequências jurídicas do crime. Lisboa:
Aequitas/Editorial Notícias, 1993. pp. 227 e seguintes.

151
Jayme Weingartner Neto

como na preservação da segurança jurídica. Tal medida não pode, entretanto, ser
excedida. “Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela
é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda
situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar
mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena
sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.”.21
Ou seja, há limites consentidos, entre o ponto ótimo e o ponto ainda
comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos. A extensão
da figura da reformatio indireta e a correlata/automática redução da pena podem,
não raro, ultrapassar o limiar mínimo da função tutelar da pena, isso tendo como
diapasão exclusivo o mero resultado da aferição métrica formal do melhor ou
pior estilo da decisão singular, em vez da ponderação, por juízes em regra mais
experientes e em colegiado (sendo as instâncias ordinárias tribunais vocacionados
para enfrentar os fatos), do acerto ou erro de manter uma determinada pena que
seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, no horizonte de
pacificação social com justiça, em face de acontecer social conflitivo. Manter uma
determinada pena, friso, o que obedece literalmente ao preceito específico do art.
617 do CPP,22 desde que amparada em dados empíricos processualmente aferidos,
ainda que ao explicitar ou agregar fundamentos.
Não é demais enfatizar a peculiaridade epistemológica envolvida da tarefa
de individualização da pena:

“E, no entanto, difícil é negar que o procedimento de determinação


da pena apresenta especialidades notáveis face ao procedimento
<<comum>> de aplicação do direito. Não enquanto o juiz é, nele
necessariamente, reenviado para regras jurídicas não escritas, conceitos
normativos e indeterminados, e mesmo puras valorações; mas já sim
na medida em que se vê obrigado a traduzir os critérios jurídicos de
determinação numa certa quantidade de pena, em que ele não pode,
por outras palavras, furtar-se a uma quantificação exacta (numérica!) das
suas valorações. É esta circunstância – não singular, mas, em todo o caso,

21 – DIAS, idem, p. 229.


22 – Verbis: Art. 617.  O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts.
383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu
houver apelado da sentença.

152
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

específica no domínio da aplicação do direito – a responsável maior, de


resto pelas diferenças ou distonias na determinação da pena, para as quais a
doutrina mais recente se encontra especialmente alertada. (...)” 23

Figueiredo Dias prossegue, notando que cresce, em geral, uma


reinvindicação de formalização na dosimetria penal contra “distonias
verdadeiramente escandalosas”, quando não de “matematização” e inclusive com
auxílio informático, e adverte: “Se, porém, uma uniformização da jurisprudência
na matéria não deixará de ser benvinda (por difícil que seja de lograr), ela não
deverá ser conseguida à custa da formalização dos procedimentos respectivos.”.24
E a doutrina brasileira não destoa, ao discorrer sobre as penas e seus critérios
de aplicação:

“No entanto, a realidade mostra bem o contrário [nem todo magistrado


está plenamente capacitado a individualizar a pena], pois o sistema
legal em tela, a par da relativa complexidade, não é mecânico, nem a
individualização da pena guia-se por critérios aritméticos ou de lógica
formal. A aferição do conteúdo das circunstâncias judiciais não dispensa
imersão na prova dos autos, e sua valoração pode exigir bastante
esforço.”.25

O que se quer dizer é que, no escopo de corrigir uma muito discutível


reforma para pior indireta, um fenômeno restrito e num substrato fático até
então inexplorado doutrinária e jurisprudencialmente, acaba-se, via oblíqua,
por matematizar o processo de aplicação da pena no direito brasileiro. E, pior,
a tabela periódica utilizada é subjetivamente imposta pelo juízo a quo, sem que
se tenham procedimentos seguros para constatar qual realmente foi seu modo de
calcular. Basta pensar nas diversas correntes metodológicas que se digladiam... O
intervalo entre o termo médio e a pena-mínima, dividido pelo cabalístico número

23 – DIAS, p. 195.
24 – DIAS, pp. 195-6. Uma tal formalização está “de antemão excluída face ao carácter necessariamente
individualizado que assumem os critérios de determinação da pena e à ilimitada variedade dos fatores
que à luz daqueles relevam”.
25 – BOSCHI, p. 182.

153
Jayme Weingartner Neto

8 (os fatores elencados no caput do art. 59 do CP)? E neste caso, em se tratando


de crimes de perigo, pondera-se também (como?) o comportamento da vítima? A
culpabilidade deve imantar um juízo global, que se revela nas demais vetoriais?
E de qual culpabilidade se trata, em face do finalismo que recusa remanesça
culpabilidade dolosa ou culposa neste estrato da teoria geral do delito?
E em crimes recorrentes, como o tráfico, de que maneira aferir a
preponderância direcionada pelo art. 42 do regramento especial? O que, aliás,
coloca-se de forma geral no concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes,
conforme o art. 67 do Código Penal. E, noutra ordem de complexidade, como
harmonizar a equação simples utilizada para expungir o alegado “agravamento
indireto” realizado no juízo ad quem, com as diversas intensidades atribuíveis a
cada fator individualmente considerado? É dizer, maus antecedentes, para ilustrar,
teriam aumentado 6 meses uma pena de tráfico, mas poderiam aumentar 9 meses se
houvesse seis condenações transitadas em julgado? E os problemas, em si, textuais-
hermêuticos? Se o juiz refere culpabilidade decorrente da consciência da ilicitude e
da exigibilidade de conduta diversa significa, sempre, que considerou desfavorável
tal vetorial? Ou, como deslindar quando juiz discorre objetivamente sobre todas
as circunstâncias (lucro fácil, como motivo do tráfico, por exemplo), mais de uma
negativa, e aplica um único acréscimo à pena-base?

CONCLUSÃO

Duas perguntas derradeiras: Diante de uma série de vicissitudes que amiúde


podem ser de estilo de texto ou de viés de leitura, viola a non reformatio in pejus
Tribunal que verifica e cofundamenta pena que, objetiva e quantitativamente,
mostra-se adequada (necessária e suficiente)? Ou incide na mesma proibição juízo
ad quem que corrige o fundamento inadequado em relação a uma vetorial (função
pedagógica do segundo grau), mas pondera que há outro fator explicitado na
sentença que justifica com sobras o quantum de aumento? Tenho, renovada vênia,
que a resposta é, desenganadamente, negativa.26

26 – Nesta linha, julgados da Primeira Câmara Criminal e do 1º Grupo Criminal do Tribunal


de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS.
CONDENAÇÃO E APENAMENTO MANTIDOS. AUTORIA. No cumprimento de mandando de
busca e apreensão, na residência, foram apreendidos entorpecentes e a quantia de R$ 1.473,00 em
notas diversas. Depoimentos dos policiais unânimes e coerentes. Réu dispensou parte das drogas ao

154
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

Quanto à proporcionalidade, para além das afinidades e diferenças em


relação à razoabilidade, sendo certa a constatação de que a aplicação de ambos
os princípios “não está excluída de qualquer matéria jurídica”,27 sua dupla face parece
gozar de gradativo reconhecimento, de modo que a proibição de insuficiência
também deve ser convocada. Ademais, se é imperativo conferir suporte racional
e disciplinar a ponderação, há que renunciar, “todavia, à sua redução a uma
fórmula matemática, esta, sim, seguramente condenada ao fracasso”.28 Penso
que a advertência aplica-se também para uma customizada proporcionalidade na
dosimetria penal.

chão e o restante foi encontrado nas buscas na casa. Versão do réu inverossímil e isolada nos autos.
Vínculo das drogas com o réu comprovado. Destinação comercial demonstrada. Condenação mantida.
PENA-BASE. A exclusão de alguma circunstância do art. 59 do CP erroneamente valorada na
sentença, mesmo em recurso exclusivo da defesa, não impõe automática redução proporcional da pena-
base. Desde que mantido o apenamento e respeitados os limites da imputação e a prova produzida,
possível realizar nova ponderação sobre a dosimetria aplicada pelo juízo a quo, encontrando melhor
fundamento e motivação própria, sem que se esteja a violar o non reformatio in pejus, sequer de forma
indireta. O fenômeno decorre do amplo efeito devolutivo da apelação e do princípio constitucional
da individualização da pena. No caso, agregado fundamento para manter uma pena já quantificada,
coloca-se sobre a reprimenda o selo da razoabilidade, que seria rasgado, para aquém da justa medida, se
descontada qualquer fração matemática. Pena mantida. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Crime
Nº 70073336828, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner
Neto, Julgado em 14/06/2017).   REVISÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ERRO
JUDICIÁRIO NO TOCANTE À APLICAÇÃO DA PENA. INEXISTÊNCIA. Dosimetria da pena
realizada com razoabilidade e proporcionalidade, estando dentro do livre convencimento motivado
do Juiz, amparado na legislação vigente. Mesmo em se admitindo que a Segunda Câmara Criminal
manteve a basilar sob fundamento diverso, viável a manutenção do quantum desde que respeitados
os limites da imputação. É possível realizar nova ponderação sobre a dosimetria aplicada pelo juízo a
quo, encontrando melhor fundamento e motivação própria, sem que se esteja a violar o non reformatio
in pejus, sequer de forma indireta. O fenômeno decorre do amplo efeito devolutivo da apelação e do
princípio constitucional da individualização da pena. Agregado/explicitado fundamento para manter
uma pena já quantificada, coloca-se sobre a reprimenda o selo da razoabilidade, que seria rasgado, para
aquém da justa medida, se descontada qualquer fração matemática. Basilar exasperada motivadamente.
Pena definitiva mantida. REVISÃO CRIMINAL IMPROCEDENTE. POR MAIORIA. (Revisão
Criminal Nº 70075959254, Primeiro Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Jayme Weingartner Neto, Julgado em 03/08/2018)
27 – SARLET, Ingo Wolfgang/MARINONI, Luiz Guilherme/ MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 391.
28 – SARLET, p. 398.

155
Jayme Weingartner Neto

Canotilho, num texto muito interessante, assim refere: “Direito


constitucional e direito penal têm necessidade de valorações comparativas, pois a
ambos são indispensáveis proposições classificatórias de preferência ou de igualdade
– mas as valorações métricas, em princípio, são estranhas aos dois ordenamentos.”.29
Tratando especificamente da proporcionalidade no campo de aplicação
das medidas de segurança no direito penal português, Figueiredo Dias descreve o
procedimento dosimétrico, sem qualquer menção a operações matemáticas:

“Deste modo, terá o juiz de averiguar, antes de tudo, se a aplicação no


caso de uma certa medida de segurança serve concretamente a realização
dos fins a que ela se destina, isto é, como se viu, a finalidade primária
de socialização do agente e a finalidade secundária de segurança da
sociedade face à perigosidade comprovada (princípio de conformidade
ou de adequação dos meios com os fins). Em seguida, terá o tribunal de
averiguar se, no caso, a aplicação de uma medida (legalmente prevista)
menos onerosa não será suficiente e eficaz relativamente à prossecução
dos fins apontados, caso em que se imporá a sua aplicação (princípio
da necessidade ou exigibilidade). Finalmente – e sobretudo -, deverá
o tribunal analisar se a aplicação da medida de segurança, apesar de
adequada e necessária, não representará para o agente uma carga
desajustada, excessiva ou desproporcionada face à gravidade do facto
ilícito-típico praticado e ao perigo de repetição de factos da mesma
espécie (princípio da proporcionalidade em sentido estrito).”30

Sarlet, ao tratar da proporcionalidade em sentido estrito, destaca que se


exige a “manutenção de um equilíbrio (proporção) e, portanto, de uma análise
comparativa entre os meios utilizados e os fins colimados, no sentido do que por
muitos tem sido também chamado de razoabilidade ou justa medida, já que mesmo
uma medida adequada e necessária pode ser desproporcional”.31
Concluo que o Tribunal ad quem, ao explicitar/agregar fundamento para

29 – CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Teoria da Legislação Geral e Teoria da Legislação Penal.
Contributo para uma teoria da legislação”, Boletim da Faculdade de Direito, número especial Estudos em
Homenagem a Eduardo Correia, vol. I, 1984. p. 827 e ss.
30 – DIAS, pp. 447/448.
31 – SARLET, p. 393.

156
Apreciação da pena criminal em segundo grau: o problema da “reformatio in pejus” indireta

manter uma pena já quantificada, está colocando sobre tal reprimenda o selo
da razoabilidade, que seria rasgado, para aquém da justa medida, se descontada
qualquer fração matemática no caso concreto que examina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 6ª ed. p. 148.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Teoria da Legislação Geral e Teoria
da Legislação Penal. Contributo para uma teoria da legislação”, Boletim da Faculdade
de Direito, número especial Estudos em Homenagem a Eduardo Correia, vol. I, 1984
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – parte geral – tomo I – questões
fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal:
Coimbra Editora, 2007,
___. Direito penal português: as consequências jurídicas do crime. Lisboa:
Aequitas/Editorial Notícias, 1993.
SARLET, Ingo Wolfgang/MARINONI, Luiz Guilherme/ MITIDIERO,
Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. p. 391.

157
O ATIVISMO JUDICIAL NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Vicente de Paulo Barretto1


César de Oliveira Gomes2

“A justiça democrática vê-se envolvida num imperativo contraditório: ao


mesmo tempo em que enfrenta desafios de amplitude desconhecida até então, ela vê
sua intervenção contestada. Nunca ela foi tão idealizada, nunca pareceu tão frágil,
porquanto seus instrumentos parecem não poder melhorar. No entanto, é preciso julgar,
apesar de tudo.” Antoine Garapon

RESUMO

O presente artigo pretende apresentar uma reflexão acerca do ativismo


judicial, a partir do horizonte revelado pelo Estado Democrático de Direito e da
expansão da jurisdição constitucional. Propõe-se, inicialmente, uma análise da

1 – Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA. Professor do Programa de Pós-


Graduação em Direito da UNISINOS; Decano da Escola de Direito da UNISINOS. Pós-doutor pela
Maison des Sciences de L´Homme, Paris. Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Coordenador-científico do Dicionário de Filosofia do Direito e do Dicionário de Filosofia Política.
Consultor ad hoc da área de Direito e de Filosofia da CAPES. Consultor ad hoc da área de Direito do
CNPQ. Bolsista de produtividade científica do CNPQ nível 1. E-mail: vicentedepaulobarreto@gmail.com
2 – Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Membro
do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos. Defensor Público Federal. E-mail: cesar_gomes10@
hotmail.com
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

atuação do poder judiciário a partir de uma aproximação do direito com a moral,


que ocasionou a inserção de valores na Constituição cujas origens repousam
na filosofia e na ética. Busca-se, na sequência, inserir as particularidades do
constitucionalismo latino-americano, atentando-se para a importância de um viés
ativista do poder judiciário para a concretização das promessas constitucionais. Ao
cabo, contextualiza-se o ativismo judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal,
a partir de precedentes dessa Corte Constitucional.
Palavras-chave: Ativismo judicial; direito e moral; direitos fundamentais;
Supremo Tribunal Federal.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 inaugurou um novo cenário no horizonte do


sistema de justiça brasileiro. Ao priorizar os direitos fundamentais e prever entre
os fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana
e o pluralismo, o texto constitucional trouxe consigo legítimas expectativas de um
futuro melhor para a sociedade brasileira.
O presente estudo propõe uma reflexão acerca do ativismo judicial, a partir
da perspectiva do Estado Democrático de Direito e da expansão da jurisdição
constitucional. Pretende-se demonstrar que a competência para velar pelo respeito
aos valores constitucionais e pela concretização dos direitos fundamentais exige
uma atuação protagonista do poder judiciário, quando se identifica a inércia de
outros atores estatais para efetivar a Constituição.
O Constitucionalismo pós-guerra, que orientou a consolidação dos
principais ordenamentos jurídicos do ocidente na segunda metade do Século XX,
trouxe como novidades a reaproximação do direito com a moral, e a preocupação
com a legitimidade da justiça. É nesse contexto que a dignidade da pessoa humana
surge como fundamento das principais constituições modernas.
A inserção de valores e princípios cujas origens remontam a outras áreas do
conhecimento humano, aliada ao ciclo de atraso que permeia alguns modelos de
sociedades, notadamente nos países latino-americanos, tem exigido do judiciário
uma ampla participação em diversas questões, tais como conflitos políticos,
bioética, racismo, identidade de gênero, entre outras.

160
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

É a partir dessas referências que se pretende demonstrar, nesse estudo, que o


ativismo judicial, entre protagonismo e limites, se impõe como instrumento efetivo
de realização da vontade constitucional.

2 O ATIVISMO JUDICIAL COMO DESDOBRAMENTO DA


EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Os referenciais teóricos que edificaram o constitucionalismo da segunda
metade do século XX trouxeram muitos desafios aos operadores do direito. De
simples carta política, a Constituição passou a ser o centro de referência dos
principais ordenamentos jurídicos contemporâneos. As categorias tradicionais
de interpretação jurídica não estavam ajustadas para os novos tempos, o que
resultou em um intenso processo de elaboração doutrinária e jurisprudencial para
o surgimento da denominada nova interpretação constitucional.3
A ascensão do direito constitucional promoveu a aproximação entre
constitucionalismo e democracia, impondo a mudança de paradigma de vários
institutos clássicos do direito e uma nova forma de organização política: o Estado
Democrático de Direito.4
O viés transformador do constitucionalismo pós-guerra emoldura o
surgimento dos denominados “novos direitos”, os quais apresentam ao sistema de
justiça um plexo de questões transnacionais, cuja proteção não é satisfeita dentro
das fronteiras tradicionais do Estado nacional.5
Nesse estado de coisas, não se poderia imaginar que a concepção tradicional
do sistema de justiça, em especial a atividade jurisdicional, ficasse à margem de
profundas mudanças. O plexo de direitos decorrentes de um constitucionalismo
transformador sedimenta um intenso processo de democratização do acesso à
justiça, com a ampliação de legitimados para reivindicar a tutela dos mais diversos
interesses6, tanto na esfera individual quanto coletiva.

3 – BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção
teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 197.
4 – Idem, ibidem, p. 190.
5 – GARCIA, Marcos Leite. “Novos” Direitos Fundamentais: características básicas. In: Âmbito
Jurídico, Rio Grande, XII, n. 70, nov 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/
site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6654>. Acesso em jul 2018. São exemplos os
direitos étnico-raciais, as questões de gênero, o meio ambiente, a biotecnologia e a bioética.
6 – SILVA, Bruno Miola da. O Supremo Tribunal Federal e o ativismo judicial: uma análise dos reflexos
dessa prática no Judiciário brasileiro. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, Pouso Alegre, v.

161
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

Aporta-se, nesse cenário de sofisticação e complexidade da vida, um novo


desenho para as funções do órgão judicial: a de promotor e garantidor dos direitos
humanos fundamentais, cujas principais ferramentais, lembra Eduardo Cambi,
repousam na independência do Poder Judiciário e na vigilância democrática dos
juízes.7
A justiça democrática, no entanto, não tem mergulhado em águas tranquilas.
O século XXI e a modernidade que o caracteriza têm imposto toda a sorte de
desafios ao ato de julgar. A proliferação dos chamados casos difíceis, em várias
hipóteses, tem retirado do intérprete a possibilidade de “fundar-se em elementos
de pura razão e objetividade, como é a ambição do direito”8. Barroso anota que
“o Direito vive uma grave crise existencial”, a qual é resultado de algumas das
marcas dessa geração: a velocidade da transformação, a profusão de ideias e a
multiplicação das novidades, que trazem a angústia da aceleração da vida.9
A pauta da modernidade é estranha aos mecanismos tradicionais de
cognição da justiça. A evolução das ciências abre infinitas possibilidades ao
homem, e revela conflitos cercados de ineditismo, que desafiam a capacidade
intelectual dos operadores do direito.10 Destaca-se, a título de exemplo, os casos de
bioética, totalmente alheios ao cotidiano do juiz.
A partir dessa perspectiva ganha ênfase a ideia de ativismo judicial, a qual
aponta para uma participação mais ampla do Judiciário na concretização dos
valores constitucionais, por vezes interferindo na atuação dos demais poderes, em
razão de omissões e espaços vazios por eles deixados.11

31, n. 1, p. 243, jan/jun. 2015,. Disponível em: https://www.fdsm.edu.br/adm/artigos/42ac878e602e


ab56029bb0134aee23f2.pdf.
7 – CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 123.
8 – BARROSO, op. cit., p. 239.
9 – Idem, ibidem, p. 189.
10 – GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad.: Maria Luíza
de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 155. “A modernidade mudou subitamente de escala as
questões apresentadas à justiça. Vemo-la confrontada a problemas de amplidão vertiginosa, até hoje
inédita na história. A ciência abre possibilidades infinitas ao homem, que não sabe como – e sobretudo
em nome do que – limitar. Da mesma maneira, os crimes de massa, que não faltaram durante esse
século, desafiaram as capacidades humana e intelectual da justiça. Esses “casos trágicos”, como os
casos de bioética ou os crimes contra a humanidade, não constituem o cotidiano do juiz, e seria falso
pretender que eles exerçam uma influência direta sobre o funcionamento da justiça.”
11 – BARROSO, op. cit., p. 245-246.

162
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

A literatura acadêmica brasileira ainda é incipiente no debate acerca


do ativismo judicial, o que torna árdua a tarefa de analisar os elementos que
legitimam esse modelo de atuação.12 Nos Estados Unidos da América, as pesquisas
em torno do tema tiveram início nos anos cinquenta. E nem poderia ser diferente.
É na história do constitucionalismo americano que surge a expressão “ativismo
judicial”, a qual identificava a atuação da Suprema Corte nas décadas de 1950 e
1960.13 Esse período foi marcado pela formação de uma jurisprudência progressista
em temas referentes aos direitos humanos, transformando a sociedade americana,
e permitindo que os efeitos perdurem até os dias atuais.14
Em países de modernidade e constitucionalismo tardios como o Brasil, a
perspectiva do ativismo judicial adquire contornos polêmicos. Uma das razões
para a imposição de resistência a esse viés protagonista do poder judiciário repousa
na concepção tradicional de justiça que ainda permeia boa parte das instituições
que compõem o sistema jurídico.
O direito brasileiro, assim como boa parte dos ordenamentos jurídicos
ocidentais, foi inspirado nas matrizes filosóficas do Estado Liberal. A partir do
princípio da separação dos poderes, conferiu-se ao judiciário a tarefa de tão-
somente garantir a atuação da vontade concreta da lei.15 Em outras palavras, o
modelo liberal contentava-se com o esquema clássico da divisão de poderes,
provocando uma neutralização política da atividade judicial.16
Anote-se que o liberalismo não foi completamente alheio à dimensão
prestacional da relação Estado-cidadão, e aos anseios de promoção do bem estar
social.17 O problema é que a ideologia liberal posicionava tais aspirações na esfera
das obrigações morais, às quais deveriam estar a cargo da sociedade, sem nenhuma
vinculação jurídica.18

12 – FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Ativismo judicial: por uma delimitação conceitual à
brasileira. Diritto & Diritti dal 1996. Disponível em: < https://www.diritto.it/ativismo-judicial-por-
uma-delimitacao-conceitual-a-brasileira/>.
13 – BARROSO, op. cit., p. 244-245.
14 – A título de exemplo, menciona-se alguns casos: ilegitimidade da segregação racial nas escolas
públicas (Brown v. Board of Education, 1954); liberdade de imprensa (New York Times v. Sullivan, 1964) e
Roe v. Wade (reconhecimento do direito à interrupção voluntária da gravidez).
15 – CAMBI, op. cit., 172.
16 – Idem, ibidem, p. 175.
17 – Idem, ibidem, p. 175.
18 – Idem, ibidem, p. 175. “Portanto, o liberalismo não considera a realização dos direitos fundamentais

163
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

O constitucionalismo lapidado no Estado Social trouxe como novidade


a inserção dos direitos sociais na categoria dos direitos fundamentais, os quais
tornam-se complementares aos direitos individuais. Trata-se de significativo avanço
no que se refere a ideia de percepção do outro, pois tão importante quanto garantir
a autonomia da vontade do indivíduo é proporcionar os meios para que o mesmo
seja inserido na sociedade e possa desenvolver livremente a sua personalidade.19
O ponto de partida do ativismo judicial tem nesse referencial teórico a sua
questão central. Em um país de modernidade tardia e democracia frágil como o
Brasil (e os demais países latino-americanos), não é possível pretender engessar
o poder judiciário, obstruindo-se sua postura ativista em questões sensíveis à
proteção dos direitos fundamentais e à organização do Estado, a título de preservar
um formalismo jurídico e uma ilusória neutralidade do juiz.
Oportuna a reflexão de Antoine Garapon quando menciona que “O
verdadeiro desafio está em estabelecer a complementariedade entre justiça e
democracia, ou melhor, os meios para a dinamização da democracia pela justiça,
e não contra a justiça.”20 O cenário exige uma compreensão acerca do aspecto
político inserido no ato de julgar, que deve ser analisado e aceito, para o fim de se
permitir uma abertura de debate sobe o novo papel do juiz na era da expansão da
jurisdição constitucional.21
Nesse estado de coisas, impõe-se considerar que o Estado do Bem-Estar
Social potencializou a litigiosidade e a demanda por justiça. Consequentemente,
o poder judiciário viu aumentar sua visibilidade social e política, resultado da
busca pela efetivação dos direitos fundamentais sociais.22 A expansão jurisdicional
decorre da conjugação de todos esses elementos, os quais consolidaram as bases
teóricas do constitucionalismo contemporâneo.

sociais como obrigação jurídica positiva do Estado ou como deveres públicos-estatais.”


19 – Idem, ibidem, p. 175.
20 – GARAPON, op. cit., p. 171.
21 – GARAPON, op. cit., p. 171-172. “Para ir contra essas representações simplistas é preciso observar
o aspecto político presente em qualquer ato de julgar, sem exagerá-lo nem negá-lo. A recusa em vê-lo
impede futuros debates e que se aceite esse novo aumento de poder do juiz para dinamizar – e não
sufocar – a nossa democracia. A particularidade dos juízes não é estar fora do sistema, “mas a ele estar
ligado de uma maneira diferente dos outros”. Cessemos, portando, de opor justiça à democracia, para
compreender que governo e jurisdição são dois modos de intervenção no espaço público; o primeiro
como poder e o segundo como autoridade.”
22 – CAMBI, op. cit., p. 78.

164
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

Lembra Ran Hirschl, que ao redor do mundo, os Tribunais Constitucionais


têm sido constantemente instados a se manifestar e resolver conflitos envolvendo
questões morais, políticas, ou pertinentes à adoção de políticas públicas controversas.23
Por outro lado, apresenta-se como imprescindível inserir no contexto atual
a necessidade de se readequar o princípio da separação de poderes. Nesse sentido,
a contribuição de Charles Mcilvain, ao criticar o uso indiscriminado da expressão
checks and balances pela doutrina.24 O novo papel do judiciário não se adequa à
doutrina clássica da separação de poderes, uma vez que essa não abrangeria as
questões judiciais.25
A perspectiva que se apresenta, a partir da aproximação entre
constitucionalismo e democracia, é de um poder judiciário independente e guardião
dos direitos fundamentais. Nas palavras de Cambi, mais uma vez, aponta-se que “o
Poder Judiciário é um defensor objetivo e independente da ordem constitucional
(higher law), servindo como uma contraestrutura instituída ou um contrapoder
de que deve ser capaz de contrariar qualquer ato ou manobra violadoras da
Constituição”.26

23 – HIRSCHL, Ran. The Political Origins of the New Constitucionalism. Indiana Journal of Global
Legal Studies, 2004, Vol. 11: Iss. 1, Article 4, p. 71. “Over the past two decades the world has witnessed
an astonishingly rapid transition to what may be called juristocracy. Around the globe, in numerous
countries and in several supranational entities, fundamental constitutional reform has transferred
an unprecedented amount of power from representative institutions to judiciaries. Most of these
polities have a recently adopted constitution or constitutional revision that contains a bill of rights
and establishes some form of active judicial review. National high courts and supranational tribunals
meanwhile have become increasingly important, even crucial, policy-making bodies. To paraphrase
Alexis de Tocqueville's observation regarding the United States, there is now hardly any moral, political,
or public policy controversy in the new constitutionalism world that does not sooner or later become a
judicial one.' This global trend toward the expansion of the judicial domain is arguably one of the most
significant developments in late twentieth and early twenty-first century government. […]”
24 – MCILWAIN, Charles Howard. Constitucionalism: ancient and modern. Indianápolis: Liberty
Found, 2007, p. 131-132. “[...] But to insist thus on the indispensability of legal limits to governmental
power and the safeguarding of these limits by an independent court is not to advocate the enfeebling
of that government itself. Among all the modern fallacies that have obscured the true teachings of
constitutional history, few are worse than the extreme doctrine of the separation of powers and the
indiscriminate use of the phrase ‘‘checks and balances.’’ The doctrine of the separation of powers has
no true application to judicial matters. Consideration of this important question should not be clouded
and confused by including the independence of the judges, with which it has nothing to do. […]”
25 – Idem, ibidem, p. 132. –
26 – Cambi, op. cit., p. 200.

165
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

Noutro dizer, é importante delinear a relevância da atividade jurisdicional


no Estado Democrático de Direito. Diferentemente do Estado Liberal clássico, no
constitucionalismo contemporâneo o juiz não irá tão-somente “dizer o direito”.
Em algumas hipóteses, ele irá concretizar o direito; noutras, irá criar a norma no
caso concreto, justamente porque deverá preencher os espaços vazios deixados
pelos poderes legislativo e executivo.
A legitimidade democrática do judiciário, nas hipóteses em que deverá
adotar uma postura ativista, decorre de sua função de efetivar a Constituição
e viabilizar a concretização dos direitos fundamentais insculpidos no texto
constitucional. Os papéis exercidos pelo judiciário ostentam natureza representativa
e contramajoritária. Importa dizer: a jurisdição constitucional é o refúgio das
minorias contra uma eventual ditadura da maioria, quando presente alguma
hipótese de violação de direitos. Não cabe ao judiciário assegurar ou expressar
os interesses da maioria, e sim, “estabelecer um compromisso constante entre a
maioria e minoria, em favor da paz social”.27
A atuação judicial, nesses casos, se dará em caráter subsidiário, ou seja,
quando restar demonstrada a ação ou omissão inconstitucional dos poderes
legislativo e executivo.
Esses são alguns dos referenciais teóricos que justificam o protagonismo
judiciário no constitucionalismo pós-guerra. Mas não são os únicos.
O Estado Democrático de Direito promoveu outro inusitado reencontro:
a reaproximação entre direito e moral. E a partir desse fenômeno, princípios e
categorias cujas origens não repousam na dogmática jurídica ganharam relevo
constitucional: dignidade da pessoa humana, solidariedade, pluralismo etc.
Nascem os conceitos jurídicos indeterminados, os quais exigirão constante
atividade interpretativa dos operadores do direito. E, também, uma detida reflexão
sobre a dimensão das questões morais na perspectiva do novo constitucionalismo.

2 O DIREITO E A MORAL NO CONSTITUCIONALISMO


DEMOCRÁTICO

O Ministro Luiz Fux, ao proferir seu voto na Arguição de Descumprimento


de Preceito Fundamental nº 5428, citando Dworkin, mencionou a pertinência de

27 – Idem, ibidem, p. 247.


28 – O Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação, para declarar a inconstitucionalidade da

166
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

se fazer uma leitura moral da Constituição. Destacou, ainda, que o art. 128 do
Código Penal brasileiro deveria sofrer essa releitura moral a que refere Dworkin,
exatamente porque havia novas luzes sobre as noveis necessidades científicas e
sociais.
A despeito de o Supremo Tribunal Federal ter perdido a oportunidade
de aprofundar a questão no mencionado julgamento, o debate acerca do fim da
separação entre direito e moral é essencial à compreensão dos desafios impostos
à atividade jurisdicional na era do constitucionalismo democrático. A partir de
parâmetros constitucionais, busca-se a consolidar a tese do construtivismo ético,
através de consensos a serem elaborados discursivamente.29
As principais democracias modernas inseriram em suas constituições o
princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se da expressão de um conjunto
de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade.30 Também
se verifica nos principais documentos internacionais, tais como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica - 1969), a Convenção contra a
Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (1984)
e a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata (Declaração de Durban - 2001).
A questão da moral insere-se na perspectiva da concepção moderna da
dignidade humana. Barretto refere que “a construção do conceito de dignidade
humana na cultura contemporânea deita suas raízes, principalmente, no
pensamento de Immanuel Kant”.31
Entre os conceitos desenvolvidos pelo filósofo de Könisgberg acerca da
dignidade humana, um dos mais destacados encontra-se na obra denominada
“Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Kant explica que as coisas
possuem valor ou preço. Esse último diz respeito àquilo que pode ser substituído
por existir o equivalente, ao qual se atribui um preço de mercado. A dignidade

interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos
artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal. Em síntese, o Colegiado garantiu a possibilidade de
interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo.
29 – CAMBI, op. cit., p. 137.
30 – BARROSO, op. cit., p. 339.
31 – BARRETTO, Vicente de Paulo. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010, p. 70.

167
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

estaria naquilo que possui um fim em si, um valor intrínseco, e não meramente


relativo.32 A moralidade seria a condição pela qual o ser racional poderia ser um
fim em si mesmo, dotado de dignidade.33
Para o pensamento kantiano, dois conceitos são fundamentais para a
compreensão da ideia de dignidade: a liberdade e a autonomia da vontade. A
dignidade humana consistiria na possibilidade de a pessoa ter autonomia na
liberdade, de forma que possa estabelecer leis universais de comportamento às
quais ela própria deverá submeter-se.34
As contribuições de Kant culminaram na consolidação da ideia de dignidade
humana a partir de duas máximas: não tratar a pessoa humana como simples meio
e assegurar as necessidades vitais da pessoa humana.35 Ambas, além de servirem
como bases para justificar a natureza jurídica da dignidade humana, emprestam
fundamento teórico para inibir a utilização do princípio da dignidade humana
como argumento de autoridade, sem qualquer justificativa para sua aplicação a
determinado caso.36
Praticamente todas as questões que vêm exigindo protagonismo das Cortes
Constitucionais possuem como pano de fundo uma discussão moral acerca da ideia
de dignidade. O intérprete deverá analisar os elementos fáticos postos em causa
para, mediante uma leitura moral do texto constitucional, avaliar se a dignidade
humana está ou não sendo violada no caso concreto. É o que se verifica nas questões
envolvendo a bioética, os direitos de natureza étnico-raciais, os conflitos fundiários,
e tantos outros temas sobre os quais o poder judiciário vem sendo provocado a se
manifestar, e cuja solução nem sempre encontra previsão legal.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, destacam-se, exemplificativamente,
o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas (ADI nº 142), as pesquisas
com células-tronco embrionárias (ADI 3.510), a interrupção da gestação de fetos
anencefálicos (ADPF nº 54), a titulação de terras ocupadas por remanescentes das
comunidades quilombolas (ADI 3.239), a demarcação de terras indígenas (Petição
nº 3388) e a violação de direitos fundamentais da população carcerária (ADPF 347).

32 – KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução, introdução e notas


de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Barcarola, 2009, p. 265-267.
33 – Idem, ibidem, p. 266-267.
34 – BARRETTO, op. cit., p. 73.
35 – Idem, ibidem, p. 74.
36 – Idem, ibidem, p. 74.

168
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

O ativismo judicial, portanto, presta-se a equilibrar e harmonizar eventuais


pontos de tensão decorrentes dessa reaproximação entre moral e direito. Não deverá
ignorar a incidência das questões morais, a ponto de comprometer a autoridade
moral da Constituição, e tampouco deverá tolerar a prevalência de uma verdade
moral superior e absoluta37, totalmente dissociada da razão pública.
O fenômeno da reaproximação do direito com a moral tem sido objeto de
relevantes estudos por parte dos juristas. E nem poderia ser diferente, uma vez
que no atual estágio de evolução do constitucionalismo, muitos casos levados aos
tribunais exigem percuciente análise por parte do juízes sobre a possibilidade de
recorrerem à moral para decidir a veracidade das proposições de direito.38 Essa é a
questão central, por exemplo, de Dworkin em sua obra “A Justiça de Toga”, onde o
jusfilósofo norte-americano propõe uma reflexão sobre como as convicções morais
de um juiz podem influenciar em seus julgamentos (se é que devem). 39
Tais inquietações de ordem moral tem na modernidade e nas inovações
tecnológicas algumas de suas principais razões. Dworkin apresenta sua teoria geral
do direito, visando à exposição de conceitos doutrinários que possam ser úteis
ao debate posto. Menciona quatro estágios da teoria jurídica (semântico, teórico,
doutrinário e da decisão judicial), pontuando que a integridade exige que os juízes
considerem a moral em algum casos, tanto para decidirem sobre o que é direito
quanto sobre o modo de honrar suas responsabilidades de juízes.40

37 – Idem, ibidem, p. 167. Esclarece o autor que “no estado democrático de direito, essa relação
complementar torna-se mais evidente, pois podemos constatar como a moral sem o direito é um ditame
da consciência individual, enquanto o direito sem a moral é mera vontade de arbítrio.”
38 – DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 5.
39 – Idem, ibidem, p. 3-4.
40 – Idem, ibidem, p. 31. “No âmbito dessa nova estrutura, a moral tem um papel a desempenhar em
dois pontos distintos da teoria jurídica: no estágio teórico, quando se atribui valor à prática jurídica; e
no estágio da decisão judicial, quando os juízes são instados a fazer justiça e informados de que a justiça
exige indenizações calculadas com base na participação de mercado. Mas as duas inserções da moral
são distintas. Ao contrário, em minha opinião o valor de integridade que deveríamos atribuir à prática
jurídica atravessa o estágio doutrinário e chega até o estágio da decisão judicial porque, argumento,
a integridade exige que os juízes considerem a moral em alguns casos, inclusive neste, tanto para
decidirem sobre o que é direito quanto sobre o modo de honrar suas responsabilidades de juízes. Uma
vez mais, a diferença não se encontra entre teorias que incluem e teorias que excluem a moral, mas entre
teorias que a introduzem em estágios distintos de análise, com consequências diferentes para o juízo
político final com que se vai consumar uma teoria completa.”

169
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

Os novos horizontes, portanto, demandam do direito uma resposta diferente


dos modelos tradicionalmente pensados. Tanto em relação às novas tecnologias
(temas relacionados à bioética, engenharia genética e biotecnologia) quanto em
relação à inserção de coletividades tradicionalmente alijadas da tutela jurídica
de seus direitos (minorias étnico-raciais, por exemplo), impõe-se o desafio de se
reformular os problemas morais, jurídicos e políticos.
É verdade que muitas dessas questões encontram no poder legislativo a arena
mais adequada para as deliberações de polêmicas que, não raro, reclamam uma
normatização, justamente porque tocam o interesse da comunidade com todas as
suas nuances ideológicas. No entanto, tem sido uma opção frequente da política
majoritária deixar que o judiciário seja o protagonista do processo decisório em
certas questões, a fim de evitar o desgaste político no âmbito de sua deliberação.41
Os novos tempos também demandam do intérprete um diálogo
interdisciplinar com outras áreas do conhecimento das ciências humanas.42 Muitas
vezes, as discussões exigem um conhecimento técnico específico, sem o qual
a solução mais apropriada poderá restar comprometida. Nesse sentido, a figura
do amicus curiae adquire grande relevância na prestação de esclarecimentos sobre
questões essenciais ao deslinde da causa.43 Trata-se, outrossim, de um instrumento
de democratização do processo, pois permite uma abertura na interpretação
constitucional, afinada ao caráter pluralista das sociedades contemporâneas.44

41 – BARROSO, op. cit., p. 243. “No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da
constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema
do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de
constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via
de ações diretas.”
42 – VILELA, Hugo Otávio Tavares.  Além do Direito: da necessária formação multidisciplinar do
juiz.  Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina,  ano 17,  n. 3209,  14  abr.  2012. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/21504>. Acesso em: 15 jul. 2018.
43 – Os amici curiae tem atuado com frequência nas principais questões constitucionais postas ao
exame do Supremo Tribunal Federal, destacando-se, por exemplo, as pesquisas com células-tronco
embrionárias (ADI 3.510) e a interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF nº 54), já
mencionadas no presente estudo.
44 – HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução
de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1997, p. 13-14. “O conceito de
interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba
por interpretá-la, ou pelo menos co-interpretá-la [...]. Toda atualização da Constituição, por meio da

170
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

O ato moral e o conceito de dignidade têm, portanto, nos estudos de


Immanuel Kant, as raízes que influenciaram o constitucionalismo pós-guerra. O
direito busca na moral a sua legitimidade, e uma relação de complementariedade.
“A moral sem o direito é um ditame da consciência individual, enquanto o direito
sem a moral é mera vontade de arbítrio”.45
Barretto esclarece que “o ato moral para Kant não disputa com o ato legal,
mas representa um reforço de suas exigências”.46 No entanto, não há de se cair
no equívoco de se pretender que concepções pessoais – de natureza religiosa,
política ou moral – se divorciem das razões públicas aptas a legitimar o exercício
da atividade jurisdicional.
A esse respeito, Cambi apresenta um exemplo de como a decisão judicial
divorciada da moral encontra dificuldades em sustentar a sua legitimidade, ao
lembrar uma sentença proferida pelo Juízo da 9ª Vara Criminal de São Paulo,
no ano de 2007. Tratava-se de uma queixa-crime ajuizada por um jogador de
futebol contra o diretor de um clube adversário, que teria insinuado que o atleta
seria homossexual. O Magistrado rejeitou a queixa-crime, sustentando que os
gramados não seriam lugar de homossexual, e que o querelado não teria apontado
o querelante como homossexual. Ao cabo, considerou que trazer o episódio à

atuação de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional
antecipada. Originariamente, indica-se como interpretação apenas a atividade que, de forma consciente
e intencional, dirige-se à compreensão e à explicitação de sentido de uma norma (de um texto). A
utilização de um conceito de interpretação delimitado também faz sentido: a pergunta sobre o método,
por exemplo, apenas se pode fazer quando se tem uma interpretação intencional ou consciente. Para
uma pesquisa ou investigação realista do desenvolvimento da interpretação constitucional, pode
ser exigível um conceito mais amplo de hermenêutica: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema
público e a opinião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (...); eles são intérpretes
constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (...). Subsiste
sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre
a interpretação (com a ressalva da força normatizadora do voto minoritário). Se se quiser, tem-se aqui
uma democratização da interpretação constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre
a interpretação constitucional. Isso significa que a teoria da interpretação deve ser garantida soba a
influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da Constituição sem o
cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas.”
45 – Barretto, op. cit., p. 167.
46 – Barretto, op. cit., p. 56.

171
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

Justiça outra coisa não foi senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante,
se comparado à grandeza do futebol brasileiro.47
Os fundamentos trazidos pelo julgador vão de encontro ao direito à
identidade sexual, ao pluralismo jurídico e demais princípios caros ao Estado
Democrático de Direito. E por essa razão a sentença não legitimaria, socialmente,
o exercício do poder jurisdicional.48
A decisão judicial acima destacada não esteve em sintonia com a dimensão
moral que deve acompanhar os atos estatais. Violou os princípios da dignidade da
pessoa humana, do pluralismo e da tolerância, que devem amparar os anseios de
uma sociedade aberta e democrática.
A retomada do debate acerca da moral no contexto do sistema jurídico deve
ser visto como uma conquista ética. O ser humano dotado de dignidade passa a ser
o centro de referência do ordenamento jurídico. O ativismo judicial, à míngua de
um maior protagonismo dos outros poderes no exercício de suas funções típicas,
busca impulsionar o avanço civilizatório, dentro dos parâmetros constitucionais.
O desafio do poder judiciário é ainda maior nos países onde a desigualdade
socioeconômica é significativa. Por um lado, necessita olhar para o futuro,
deparando-se com questões de alta complexidade jurídica relacionadas à inovações
tecnológicas e avanços científicos. Por outro, obriga-se a olhar para o passado,
enfrentando e decidindo sobre questões não processadas e superadas em tempos

47 – CAMBI, op. cit., p. 137. “À guisa de ilustração dessa última ideologia, cabe lembrar a sentença
proferida, no dia 05 de julho de 2007, pelo juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo, nos autos n. 936-07, no
qual o jogador do São Paulo Futebol Clube, Richarlyson, ingressou com queixa-crime contra o diretor
administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, por ter insinuado que o jogador seria homossexual.
O juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho rejeitou a queixa-crime, sustentando que os gramados não
seriam lugar de homossexual: ‘Futebol é jogo viril, varonil, não homossexual” e completou “Não que
um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma
Federação. Agende jogos com que prefira pelejar contra si”. Considerou que o querelado não apontou o
querelante como homossexual e, mesmo que tivesse feito, este “poderia optar pelos seguintes caminhos:
3. A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante,
comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final; 3. B – se
fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém,
melhor seria que abandonasse os gramados... Quem é, ou foi boleiro, sabe muito bem que estas infelizes
colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num
‘tête-à-tête’. Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato
insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro’.”
48 – CAMBI, op. cit., p. 137.

172
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

remotos, tais como conflitos fundiários e litígios relacionados a raça, gênero e


intolerância religiosa.
Essa é a realidade da sociedade brasileira e dos demais países que compõem
a América Latina.

3 O ATIVISMO JUDICIAL NO CONTEXTO DO


CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

A realidade do continente latino-americano guarda singularidades que a


distinguem de outros espaços geográficos do mundo. O processo de colonização
nessa região se deu mediante opressão e tentativa de invisibilização das tradições
dos povos originários em nome da imposição da cultura eurocêntrica.49
Marcada por uma população eminentemente indígena, a América Latina
tem as suas tradições e subsistência fortemente vinculadas ao cultivo da terra.50 Os
africanos, trazidos ao continente na condição de escravos, também contribuíram
para a multiplicidade de culturas que se proliferaram no continente, apresentando,
também, um traço cultural marcado pela territorialidade e ancestralidade.
As constituições latino-americanas, para alguns autores, possuem
traços revolucionários, transformadores e aspiracionais.51 Fala-se, então, em
um constitucionalismo de transformação, porquanto as constituições estão
comprometidas em viabilizar a construção de um Estado forte, democrático e
progressista. Um constitucionalismo inclusivo, que possui como foco não apenas
os direitos econômicos, mas também os direitos sociais, culturais, a dignidade e o
bem estar da sociedade.52
O constitucionalismo latino-americano, no período pós-independência
das colônias, não foi marcado pela busca de uma identidade própria, que

49 – QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005, p. 227-228.
50 – SANCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez; SOARES, Marcos Antônio Striquer Soares. Acesso
à justiça e ativismo judicial na América Latina: a exigência do hermeneuta no Estado Democrático de
Direito. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f1ee083baf7bb88a. Acesso
em 15.07.2018.
51 – LIMA, Rogério Montai de. Constitucionalismo de Transição e Transformação: Uma interface
com a Judicialização e Ativismo Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 103.
52 – Idem, ibidem, p. 103-104.

173
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

respeitasse as peculiaridades locais. Ao contrário, buscava-se soluções


estrangeiras para os problemas internos sem um prévio estudo acerca dos
efeitos da importação.53
O novo paradigma do constitucionalismo latino-americano, que deita raízes
em meados dos anos oitenta do século passado, assume um caráter transformador,
que reconhece o viés multiétnico dos Estados e o histórico de desigualdades sociais
e econômicas que assolam a região.54 As constituições dispõem de um extenso rol
de direitos fundamentais, com denso olhar para as questões sociais. Expressões
como “diversidade cultural”, “territorialidade”, e “autodeterminação” passaram a
integrar boa parte dos textos constitucionais.
Com razão, portanto, se justifica a participação mais ampla e intensa do
judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.55 Se por um lado,
descortina-se para os juízes a necessidade de se posicionarem sobre assuntos
sensíveis ao universo das inovações tecnológicas, por outro, possuem a tarefa
árdua de promoverem a inclusão das “vidas nuas”56 que historicamente vêm sendo
alijadas do processo civilizatório no contexto latino-americano.
A constatação de que a atividade judicial, nesse novo constitucionalismo,
deverá se pautar pela interdisciplinariedade, decorre do fato de muitas expressões
caras aos ideais de diversidade e tolerância possuirem raízes nas ciências
sociais, por exemplo. O intérprete deverá buscar familiariedade com palavras

53 – PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. “Los procesos constituyentes latino-
americanos y el nuevo paradigma constitucional”. IUS. Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas
de Puebla A.C., núm. 25, 2010, pp. 7-29, Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla A.C. México.
Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/2932/293222977001.pdf. Acesso em: 15.07.2018. “[...]
con el paso del tiempo estas Constituciones tradicionales, em buena medida clásicas, de América
Latina, em general prefirieron conservar lá búsqueda de soluciones externas e problemas internos
sin um prévio estudio de los efectos de la importación, y em vez de promover um verdadero debate
republicano entre el Pueblo, continuaron como fruto de elites formadas en universidades extranjeras,
que preferían uma adaptación de mecanismos constitucionales que habían sido pensados para países y
sociedades diferentes a la reflexión sincera de las soluciones que podían ser eficaces y apropriadas par
sus propios entornos. [...]”
54 – LIMA, op. cit., p. 107-108.
55 – Idem, ibidem, p. 108.
56 – BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: um mapa conceitual. Trad.: Luísa Rabolini. São Leopoldo:
Ed. Unisinos, 2017, p. 97. “[...] O ato fundador da política não é uma simples transformação da vida
natural, mas a constituição de uma vida nua – ou seja, uma vida que não é apenas natural, mas que é
tomada fora na relação com o poder e mantida sob ele.”

174
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

como “autodeterminação” e “territorialidade”, termos cujas origens estão na


antropologia.
O ativismo judicial na percepção da realidade latino-americana se faz
essencial justamente em razão da ocorrência de violações de direitos humanos
peculiares à região. O intérprete deverá imiscuir-se no horizonte da existência57
dos povos originários e afrodescendentes, dos conflitos socioambientais, agrários,
fundiários, preservação de patrimônios culturais, entre outros. Temas que se
confundem com a história da região, porém, que não são compreensíveis a um
olhar estritamente eurocêntrico.
Alguns tribunais constitucionais latino-americanos têm assumido postura
de vanguarda em matéria de ativismo judicial e proteção dos direitos humanos.
A título de exemplo, menciona-se o Tribunal Constitucional da Colômbia, que
realizou uma avaliação do progresso, avanço e retrocessos na implantação de
políticas públicas orientadas para a superação do Estado de Coisas Inconstitucional
em relação aos povos indígenas e às comunidades afrodescendentes afetadas ou em
risco de deslocamento forçado.58
A Corte Constitucional Colombiana também vem sendo protagonista em
questões referentes ao sistema carcerário local. A Sala Especial de Acompanhamento
às Sentenças T-388 de 2013 e T-762 de 2015 da Corte determinou ao governo
colombiano a adoção de uma série de medidas visando ao enfrentamento da crise,
dentre as quais a definição de indicadores sobre a efetividade do cumprimento
dos direitos, com base nos mínimos constitucionais definidos em questões como:
ressocialização, infraestrutura, alimentação, saúde, serviços públicos domiciliares,
e acesso à justiça e ao devido processo legal para pessoas privadas de sua liberdade.59

57 – HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes. 4ª Edição, p. 250.


58 – COLÔMBIA. Corte Constitucional, Magistrada Ponente Gloria Stella Ortiz Delgado, Auto
266/17. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/autos/2017/a266-17.
htm>. Acesso em: 16.07.2018. O Tribunal concluiu que, inobstante os esforços do governo colombiano,
o cumprimento das ordens emitidas para o cuidado, assistência e proteção dos povos indígenas e
comunidades afrodescendentes é insatisfatório. No que toca à identidade cultural, a Corte também
concluiu que as medidas adotadas pelo governo colombiano foram inexitosas no combate aos fatores
que afetam a perda de vidas, a vida cultural dos povos e comunidades em seus territórios.
59 – COLÔMBIA. Corte Constitucional, Magistrada Ponente Gloria Stella Ortiz Delgado, Auto
121/18. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/autos/2018/a121-18.htm.
Acesso em: 16.07.2018.

175
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

E por fim, na mesma Corte Constitucional Colombiana, a Quinta Câmara


de Revisão do Tribunal ordenou ao Ministério da Saúde e Proteção Social que
apresentasse um projeto de lei em um ano, propondo a regulamentação do direito
fundamental de morrer com dignidade. Na mesma oportunidade, o órgão judicial
reiterou a exortação ao Congresso da República para que, em um prazo de dois
anos, emita o regulamento do direito fundamental de morrer com dignidade.60
Aponta Garavito que a produção acadêmica sobre ativismo judicial em
matéria de direitos socioeconômicos tem se multiplicado na mesma proporção
em que se proliferam decisões ativistas na América Latina. O fenômeno se deve
à realidade do contexto social da região, marcado por profunda desigualdade
econômica e política. Também, segundo o autor, pela produção de inúmeros
trabalhos propondo a discussão acerca do ativismo judicial a partir da perspectiva
da doutrina dos direitos humanos.61
É possível afirmar, portanto, que a preocupação com a promoção dos
direitos fundamentais, e a posição do poder judiciário de garantidor da vontade
constitucional são os principais aportes teóricos do ativismo judicial no cenário do
constitucionalismo latino-americano.
Mas se faz oportuno retomar a ideia exposta linhas atrás acerca da concepção
de dignidade, a partir de Kant. O conceitos desenvolvidos pelo filósofo alemão
compõem um critério de análise consistente para que os tribunais identifiquem,
por exemplo, a presença de grave violação de direitos humanos em um conflito de
natureza étnico-racial.

60 – COLÔMBIA. Corte Constitucional, Magistrada Ponente Gloria Stella Ortiz Delgado, Auto
266/17. Disponível em:<http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2017/t-544-17.htm>.
Acesso em: 16.07.2018.
61 – GARAVITO, César Rodriguez. Beyond the Courtroom: The Impact of Judicial Activism on
Socieconomic Rights in Latin America. Texas Law Review, vol. 89, 2011, p. 1669-1698. Disponível
em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r27171.pdf. “The literature on the justiciability of SERs has
multiplied in proportion to the proliferation of activist rulings, both in Latin America and elsewhere.
Two angles of analysis have dominated this scholarship. First, some key contributions have concentrated
on making a theoretical case for the justiciability of of SERs in light of the demands of democratic
theory and the reality of social contexts marked by deep economic and political inequalities. Second, a
number of works have entered into the discussion from the perspective of human rights doctrine, which
has given greater precision to judicial standards for upholding SERs and boosted the utilization of these
righs with judicial organs and supervisory bodies at both the national and international level.”

176
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

Toma-se como exemplo algumas controvérsias havidas no Brasil,


relacionadas às ações afirmativas (ADPF 186), à demarcação de terras indígenas
(Petição nº 3388), à titulação de terras remanescentes dos quilombos (ADI 3.239),
e à proteção de templos de religiões de matriz africana. Todos estão relacionados à
direitos culturais amparados pela Constituição da República.
Em todos os casos acima mencionados, pode-se constatar que a violação à
dignidade está relacionada à ameaça à autonomia da pessoa (ou da coletividade),
ou à ausência de acesso às necessidades vitais para o seu livre desenvolvimento (no
que se refere ao modo de ser e viver, está se falando dos direitos da personalidade).
Essas considerações, que são de ordem moral, são cruciais para que o
intérprete apodere-se dos conceitos-chave, visando à prestação de uma tutela
adequada e efetiva dos direitos em questão.
No que se refere às religiões de matriz-africana, se verifica que no Brasil as
perseguições aos respectivos templos religiosos têm aumentado consideravelmente.62
Para além da questão do racismo, cuja problematização não é objeto do presente
estudo, pode-se verificar na hipótese uma outra vertente da dignidade sendo
violada, lembrada por Michael Rosen como “respeito enquanto respeitabilidade”.63
Esclarece o filósofo britânico que
Respeitar a dignidade de uma pessoa tratando-a com dignidade exige mostrar
respeito a ela, seja positivamente, portando-se de uma maneira que demonstre tal
respeito, seja (ao menos) negativamente, evitando comportamentos que mostrem
desrespeito.64
A História da América Latina ostenta um processo político de significativo
atraso, que resultou em desigualdade socioeconômica e sucessivas violações de
direitos humanos. Os Tribunais Constitucionais, dessa forma, em sua missão de
promover os avanços civilizatórios, têm uma dupla função: (i) “desemperrar o
processo político e social”;65 e (ii) superar as legislações promulgadas em caráter
meramente simbólico, algo comum na história dos parlamentos latino-americanos.

62 – NUNES, Dimalice. “Em três semanas, São Paulo tem oito ataques a religiões de matriz africana”.
Carta Capital, 2017. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/em-tres-semanas-
sao-paulo-tem-oito-ataques-a-religioes-de-matriz-africana. Acesso em 15.07.2018.
63 – ROSEN, Michael. Dignidade, sua História e significado. São Leopoldo: Unisinos, 2015, p. 67.
64 – Idem, ibidem, p. 167.
65 – LIMA, op. cit., p. 109.

177
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

4 O ATIVISMO JUDICIAL NO ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL

São muitos os desafios que vêm sendo impostos à sociedade brasileira e sua
ainda frágil democracia nessas duas primeiras décadas do século XXI. Ao tempo
em que se verifica uma forte descrença na representação política, surgem inúmeras
pautas que decorrem do estado de coisas que identifica a vida moderna e o mundo
globalizado.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem sido o destinatário do clamor
social por políticas igualitárias que viabilizem uma vida mais digna.66 E tem sido
provocado em demandas envolvendo temas relacionados à bioética e às inovações
científicas.
Um dos julgamentos de maior destaque da Corte Constitucional brasileira
foi a já citada ADPF 54, que discutia o direito à interrupção da gestação de fetos
anencéfalos. O Supremo Tribunal decidiu, por maioria, pela inconstitucionalidade
da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é
conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
O Relator, Ministro Marco Aurélio Mello, ao proferir o seu voto, destacou
que “não é dado invocar o direito à vida dos anencéfalos. Anencefalia e vida são
termos antitéticos.” Nas palavras do Ministro Relator, o “aborto é crime contra a
vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida
possível”.67

66 – Idem, ibidem, op. cit., p. 118.


67 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j.
12.04.2012, data de publicação: 30.04.2013. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. Acesso em: 17.07.2018. “[...] este Supremo Tribunal
proclamou que a Constituição “quando se reporta ‘direitos da pessoa humana’ e até dos ‘direitos e
garantias individuais’ como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa,
que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade.’” É certo, Senhor Presidente, que, no caso do anencéfalo, não há, nem nunca haverá,
indivíduo-pessoa.
No segundo trecho, este Tribunal assentou que “a potencialidade de algo para se tornar pessoa humana
já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou
frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica”. Ora, inexistindo potencialidade para tornar-se
pessoa humana, não surge justificativa para a tutela jurídico-penal, com maior razão quando eventual
tutela esbarra em direitos fundamentais da mulher [...].”

178
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

O Supremo Tribunal Federal, a despeito de ter regulamentado a questão


na esfera jurídica, deixou passar a oportunidade de propor uma discussão moral
acerca do conceito de vida. Ao mencionar o conceito jurídico de morte cerebral em
suas razões de decidir, o qual está previsto na Lei nº 9.434/1997, o Relator ratifica a
influência dos mecanismos de biopoder nas sociedades contemporâneas.68 Pois não
é possível ignorar que os fundamentos utilizados são meras opções do legislador, do
cidadão ou mesmo do poder judiciário, sem que tenha sido apresentada nenhuma
verdade substancialmente científica.
Inobstante as contribuições da comunidade médica no caso, sob o ponto de
vista moral, é insatisfatória a resposta dada pela Corte Constitucional ao concluir
que o feto sem cérebro não tem detém a condição de ser humano, e por isso não
faz jus à tutela do direito à vida.
A reflexão crítica também comporta outro julgado histórico do Supremo
Tribunal Federal, a ADI 351069. Questionava-se a possibilidade de utilização de
células-tronco embrionárias para pesquisa científica. Buscava-se a declaração de
inconstitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005).
A Corte, por maioria, entendeu pela constitucionalidade do dispositivo legal.
O Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, entendeu que para existir vida humana, é
preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano. O zigoto (embrião
em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-
mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não
tem cérebro formado.
Ambos os precedentes indicam os desafios morais e jurídicos a serem
enfrentados pelos juristas no que se refere à presença dos mecanismos de biopoder
na atualidade. A nova sociedade tecnocientífica impõe ao intérprete uma leitura
dos textos normativos que leve em conta tanto os fenômenos biológicos quanto os
valores morais fundantes do espaço público democrático.70

68 – Barretto, op. cit., p. 166.


69 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Ayres Britto,
j. 29.05.2008, data de publicação: 28.05.2010. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em: 17.07.2018.
70 – Barretto, op. cit., p. 166. “[...] Os desafios morais e jurídicos, que têm sido lançados pela engenharia
genética e que repercutem na sociedade e no poder judiciário, levam-nos a algumas considerações
que têm a ver com a presença cada vez mais marcantes dos mecanismos de biopoder na sociedade
contemporânea. As repercussões práticas da decisão do STF apontam para situações futuras que estão
a exigir um reflexão crítica dentro do quadro do estado democrático de direito. Essa nova sociedade

179
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

No HC 124.30671, a Primeira Turma do STF, por maioria, afastou a


prisão preventiva de acusados pela prática do crime de aborto. Ao proferir voto-
vista, o Ministro Luís Roberto Barroso anotou que o bem jurídico protegido (a
vida potencial do feto) é “evidentemente relevante”, mas a criminalização do
aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos
fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da
proporcionalidade. Entre os bens jurídicos violados, apontou a autonomia da
mulher, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos
da mulher, a igualdade de gênero – além da discriminação social e o impacto
desproporcional da criminalização sobre as mulheres pobres.
Na fundamentação, o Ministro Barroso reconhece que não há solução
jurídica para a controvérsia, e que essa sempre dependerá de uma escolha filosófica
ou religiosa de cada um a respeito da vida. Conclui afirmando que “exista ou não
vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de
o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele
dependerá integralmente do corpo da mãe”.
A partir disso, tece digressões acerca dos direitos fundamentais da mulher
violados no caso, entre os quais a violação à sua autonomia, violação do direito à
integridade física e psíquica, violação dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher,
violação à igualdade de gênero e discriminação social e impacto desproporcional
sobre as mulheres pobres.
O encaminhamento do voto-vista do Ministro se dá a partir - e tão-somente
– do olhar da gestante. Note-se que embora reconheça que a solução do caso não
encontra resposta no mundo jurídico, não propõe nenhuma tentativa de inserção
das questões morais em seus fundamentos, de forma a ampliar o debate acerca do
conceito de vida. Ao contrário, a expressão “exista ou não vida a ser protegida”
não é das mais felizes. Sinaliza a opção por ignorar uma discussão moral relevante
e necessária, e promove um distanciamento consciente do tema, como se fosse

tecnocientífica exige especificidades no ato de legislar e no ato de julgar, que irão processar-se no quadro
do estado democrático de direito, mas pressupondo uma leitura da constituição e das leis que leve em
consideração ao lado do fato biológico os valores e argumentos morais, explicitados no espaço público
democrático.[...]”
71 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 124.306/RJ, Primeira Turma, Rel. p/ acórdão Luís
Roberto Barroso, j. 09.08.2016, data da publicação: 17.03.2017. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345. Acesso em: 17.07.2018.

180
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

possível à Corte Constitucional prescindir dessa análise para uma solução ética e
justa.
Nos três precedentes acima destacados, que tangenciam questões relacionadas
à bioética, o Supremo Tribunal Federal fez a opção de não enfrentar os desafios
morais apresentados. O voto-vista proferido pelo Ministro Barroso no HC 124.306
ainda demonstra que o ativismo judicial, embora um instrumento legítimo e eficaz
à promoção dos direitos fundamentais, deverá encontrar seus limites nos princípios
constitucionais, em especial na dignidade da pessoa humana, que tem na moral a
sua razão de ser. Tratando-se de um tema que envolve profundos dilemas morais,
impõe-se concluir que a solução não se restringe à reflexões de ordem econômica
ou social,72 e tampouco devem ser contempladas apenas sob a perspectiva da
mulher, ignorando-se a condição do feto como pessoa humana em potencial73.
Na ADPF 34774, o Supremo Tribunal Federal, acolhendo a tese do
“Estado de Coisas Inconstitucional”, determinou a adoção de providências a fim
de solucionar a crise do sistema carcerário no País, em especial a realização de
audiência de custódia, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a
autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.
Na ADI 3.239, o STF declarou a validade do Decreto 4.887/03, garantindo
a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas.
Na ADPF 18675, houve o reconhecimento da constitucionalidade da política
de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília
(UnB). O Relator, Ministro Ricardo Lewandovski fundamentou no sentido de
que as políticas de ação afirmativa adotadas pela UnB estabelecem um ambiente
acadêmico plural e diversificado, e têm o objetivo de superar distorções sociais
historicamente consolidadas. 
Percebe-se que a Corte Constitucional brasileira tem protagonizado distintas
controvérsias, que vão das inovações científicas à tutela dos direitos culturais de

72 – No voto-vista, o Ministro Luís Roberto Barroso “o Estado deve atuar sobre os fatores econômicos
e sociais que dão causa à gravidez indesejada ou que pressionam as mulheres a abortar”.
73 – Barretto, op. cit., p. 174.
74 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco
Aurélio, J. 09.9.2015, data da publicação: 19.02.2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em: 17.07.2018.
75 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 186, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,
j. 26.04.2012, data da publicação: 20.10.2014. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 17.07.2018.

181
Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

comunidades tradicionais. É a expressão da complexidade e do pluralismo da vida


contemporânea.76
Inobstante as críticas que possam ser dirigidas ao protagonismo judicial, o
qual tem seus limites impostos na própria Constituição da República, a ascensão
do poder judiciário é fruto do inevitável. Resulta da comunhão havida entre direito
e democracia, e nessa união encontra-se o fundamento do constitucionalismo de
transformação: a crença na possibilidade de um futuro melhor.77

5 CONCLUSÃO

A expansão da jurisdição constitucional, a partir da segunda metade do século


XX, encurtou as distâncias entre direito e política, e reaproximou o direito da moral.
Nessa perspectiva, o ativismo judicial pode ser definido como uma postura proativa
do intérprete na implementação e concretização de direitos, a fim de levar a efeito o
viés emancipatório e transformador dos textos constitucionais modernos.
A reaproximação entre direito e moral trouxe para os sistemas jurídicos
contemporâneos algumas categorias de matrizes filosóficas que, essencialmente,
constituem o fundamento do Estado Democrático de Direito. O conceito de
dignidade da pessoa humana, em especial, é representativo desse estado da arte do
novo constitucionalismo.
Verificou-se que a concepção kantiana de dignidade exerceu forte influência
nos diplomas constitucionais havidos no período pós-guerra. Ao conceber a
ideia de que os seres humanos devem ser tratados como um fim em si mesmos,
e que se deve assegurar aos mesmos as suas necessidades vitais, Kant delineou os
fundamentos para justificar a natureza jurídica da dignidade humana.
Demonstrou-se que muitas das demandas que têm conduzido o poder
judiciário a uma atuação protagonista carregam inquietações morais em torno
do conceito de dignidade. Ao inserir o ser humano como centro de referência
do ordenamento jurídico, as constituições modernas deram ênfase à assunção
dos chamados “novos direitos”. Consequentemente, novos atores e demandas,
estranhos aos conceitos jurídicos tradicionais, vêm expondo a necessidade de o
sistema justiça se adequar às novas exigências.

76 – BARROSO, op. cit., p. 41.


77 – LIMA, op. cit., p. 59.

182
O ativismo judicial no Estado Democrático de Direito

No contexto do constitucionalismo latino-americano, buscou-se retratar


as particularidades da região, que igualmente têm demandado do intérprete a
necessidade de transitar entre passado e futuro, em uma região caracterizada por
ciclos de instabilidade política e triunfos tardios de modernidade.
O Supremo Tribunal Federal tem adotado postura ativista em casos
envolvendo debates em torno da bioética, identidade de gênero e direitos étnico-
raciais, refletindo os contrastes que cercam a sociedade brasileira.
Conclui-se que o ativismo judicial insere-se como instrumento apto a romper
a tradição positivista e normativista do direito, a qual não atende aos anseios de uma
época que tem nos ímpetos de velocidade e mudança a sua marca registrada. Nesse
contexto, o poder judiciário, a despeito de ser um poder contramajoritário, detém
legitimidade democrática para impulsionar os avanços civilizatórios necessários à
promoção e concretização dos direitos fundamentais.

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Vicente de Paulo Barretto e César de Oliveira Gomes

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185
CASOS DIFÍCEIS E A CONTRIBUIÇÃO
DE NEIL MACCORMICK: ALGUNS
CONTRAPONTOS COM A JUSTIÇA BRASILEIRA

José Alcebiades de Oliveira Junior1


Leonardo Serrat de Oliveira Ramos2

Neste texto, abordamos novamente a temática dos casos difíceis no Direito,


e que temos trabalhado em muitos momentos de nossas pesquisas, como, aliás,
nos textos que originaram a presente reflexão, dos quais algumas de suas partes
reproduzimos aqui3. Nesses escritos anteriores, demonstramos que a teoria jurídica

1 – Professor Doutor Titular da UFRGS e da URI - Santo Ângelo. Pesquisador 1D do CNPq.


2 – Mestre em Direito pela UFRGS.
3 – Este texto tem por base principal e mesmo reproduz partes do capítulo “Casos difíceis e teorias da
decisão judicial”, publicado no livro Sociologia do Direito, desafios contemporâneos, escrito por OLIVEIRA
JUNIOR, José Alcebiades de; e, SOUZA, Leonardo da Rocha de. POA: Livraria do Advogado Editora,
2016, pp. 142-158, texto que, por seu turno, considerou os seguintes outros trabalhos anteriores, com
adaptações feitas por Leonardo da Rocha de Souza: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de.
Sociologia Judiciária [mimeo], 2010; OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Teoria Jurídica e Novos
Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, capítulo “Acerca da Teoria dos Casos Dificeis no Direito",
p. 109-119. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. “Ronald Dworkin e a Dissolução da Oposição
Jus Naturalismo e Positivismo Jurídico”. Jurispoiesis, Rio de Janeiro, p. 81-85, 2000. OLIVEIRA
JUNIOR, José Alcebíades de. Casos Difíceis no Pós-Positivismo. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu;
RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Hermenêutica Plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 203-227.
Outrossim, quando mencionado o uso de obras anteriores de nossa autoria, está-se referindo a trabalhos
conjuntos escrito por José A. de Oliveira Junior e Leonardo da Rocha de Souza. Ressalte-se que a
participação do coautor Leonardo Serrat de Oliveira Ramos neste artigo, consiste em contribuições
relacionadas ao tópico sobre Neil MacCormick e a pesquisa realizada sobre os casos apresentados
José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

pode ser vista sob dois ângulos diferenciados e intercambiáveis, o analítico e o


funcional, mas, por ora, partiremos diretamente de um breve resgate do debate
entre Herbert Hart e Ronald Dworkin sobre casos difíceis, para, logo a seguir,
lembrarmos algumas das digressões de Genaro Carrió sobre os princípios, área
fértil para esses casos. Ao final passar-se-á a algumas considerações sobre a obra de
Neil MacCormick, a fim de se estabelecer contrapontos com algumas tomadas de
decisão extraídas da realidade judicial brasileira.
Por derradeiro, gostaríamos de cumprimentar o Tribunal de Justiça do RS pela
excelente iniciativa desta obra, o que fazemos na pessoa do Des. Rogério Gesta Leal.

CASOS DIFÍCEIS E O DEBATE ENTRE HART E DWORKIN

Iniciando com o que foi escrito nas obras referidas, especialmente Sociologia
do Direito (2016, p. 147-148), Hart e Dworkin muito polemizaram sobre os
ditos casos difíceis4. Otfried Höffe afirmou que Hart possui um “positivismo
suave”, porque, muito embora sustente a separação entre o direito e a moral, o
fundamento de seu sistema jurídico de regras repousa no que ele denomina de
regra de reconhecimento, que pode ser entendida para além de uma autorização
formal como uma aceitação material por parte da comunidade. Na leitura de
Höffe, tal regra pode ser entendida como sendo um “querer” além do “ter-que”
clássico e explícito da teoria kelseniana5. Embora aberta, a postura de Hart segue
sendo tipicamente positivista, pois essa regra de reconhecimento visa justamente
a uma clara distinção entre o direito e o não direito, e, assim, no caso de duas
ou mais normas poderem ser aplicadas a uma mesma situação, poderia haver
dificuldade em se saber qual delas deveria ser aplicada. Inclusive, repita-se que
as dificuldades poderiam surgir também de normas com textura aberta, diante
das quais o juiz possuiria, tal como nas situações de conflito, discricionariedade
tanto no estabelecimento do conteúdo das normas, quanto ao que diz respeito ao
processo de escolha entre uma delas para aplicar.

ao final e que de certa forma desconsideram essa teoria, e que foram extraídos da realidade judicial
brasileira.
4 – Uma ótima exposição desse debate, e que utilizaremos nestes escritos, encontra-se na obra La
Decisión Judicial. El Debate Hart – Dworkin. Estudio preliminar de César Rodriguez. Santafé de Bogotá:
Siglo Del Hombre Editores: Faculdad de Derecho. Universidad de lós Andes, 1997.
5 – HÖFFE, Otfried. Justiça política. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.135.

188
Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

Como é de conhecimento acadêmico, Dworkin6 entende que os sistemas


jurídicos são compostos também por princípios além de regras e que eles, ao final,
articulam e delimitam o próprio campo de origem e abrangência do sistema jurídico.
Com isso, estabelece uma crítica de impossibilidade lógica e de dispensabilidade
técnica, por redundância, à ideia de regra de reconhecimento, imaginando, pois
que os princípios delimitam mesmo o campo de abrangência das normas, mesmo
e, sobretudo em relação àquelas que se apresentem em forma de regra. Com efeito,
a posição de Dworkin sobre os casos difíceis é a de que eles devem ser solucionados
buscando-se a resposta correta, oriunda da consideração dos princípios envolvidos,
avaliados em seu peso.
Em tese, tanto Hart quanto Dworkin têm a pretensão de que as decisões
judiciais se mantenham dentro do figurino da ciência jurídica, embora Hart, ao
não privilegiar os princípios, não obtenha uma solução para a insuficiência de
um direito de regras, enquanto Dworkin a teria justamente por entender que
os princípios fazem parte do sistema jurídico. Em obras seminais já referidas7,
Dworkin inclusive esclarece o primarismo da visão que nega aos princípios um
caráter jurídico-positivo, afirmando que não há nenhum problema em assumir-se
que as decisões judiciais, mesmo que não sejam ações políticas em sentido estrito,
possuam essa coloração em sentido amplo em função dos valores envolvidos.
No que se refere a Hart, julga-se que seja possível considerar que a regra
de reconhecimento, ao ultrapassar a ideia de uma validez “a priori” e formal,
busque, também, sustentar sua obrigatoriedade na efetividade, politize a teoria e a
operação jurídica. A manutenção do princípio da autoridade para dizer o direito
não impede que o direito aplicado contenha valores morais ainda não positivados.
Especialmente em Hart, para quem a efetividade da norma pode acontecer de
modo discricionário, tem-se a possibilidade de inclusão de valores até então não
expressos pelo ordenamento e, assim, a possibilidade de se falar de um direito
legislado por juízes8.

6 – DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. SP: Martins Fontes, 2000, pp. 03-39.
7 – DWORKIN, Ronald. Uma questão de Princípio, SP: Martins Fontes, 2000, pp. 03-39.
8 – Debate Hart-Dworkin. La Decisión Judicial, op.cit. estúdio preliminar de César Rodriguez, pp.68-75.

189
José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

O SISTEMA JURÍDICO A PARTIR DA VISÃO REFORMISTA DE


GENARO CARRIÓ

No livro Sociologia do Direito (2016, pp. 148-150) citado ao início, autores


como Tércio Sampaio Ferraz Junior, vêm a tempo anunciando o enfraquecimento
da dicotomia Jusnaturalismo e Positivismo jurídico9. Ronald Dworkin, em
seu clássico “Levando os direitos a sério” 10, também já apontava para o tema,
tanto com a questão dos casos difíceis quanto com a discussão inovadora sobre
desobediência civil. Porém a falta de consciência dos juristas sobre o que contém e
determina a sua experiência prática, que, em realidade, é atravessada por valores,
ainda faz do assunto um importante alvo de discussão.
Considerando, então, o texto “Juízes Políticos e o Estado de Direito”,
de Dworkin11, aí sim as teses de dissolução da oposição jusnaturalismo versus
positivismo jurídico se avolumam. Ruem as certezas e a segurança jurídicas
prometidas pelo movimento sucessor do jusnaturalismo, emergindo a consequente
constatação de que as soluções jurídicas estão cada vez mais politizadas, sobretudo
quanto aos ditos casos difíceis ou controversos, existentes hoje em grande
quantidade devido ao constitucionalismo programático, aberto e reinante nas
principais democracias do mundo.12
Por outro lado, o sistema jurídico estar constituído por princípios além de
regras de há muito (anos 70) já fora assinalado por Genaro Carrió.13 E também não
é nenhuma novidade em realidades jurídicas como a brasileira, já que a oposição
jusnaturalismo versus positivismo jurídico não tem se sustentado na prática, tal
como pode ser observado no trabalho de Paulo Mendonça sobre o Supremo
Tribunal Federal14. Entretanto, não há uma consciência clara por parte dos juristas

9 – FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1994,
p. 170.
10 – DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
11 – DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.3-39.
12 – OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 71-82. Ver também: NINO, Carlos Santiago. Dworkin y la disolucion de la controversia
positivismo vs. iusnaturalismo, Revista Latino-americana de Filosofia, vol. VI, n. 3, nov. 1980, p. 213-234.
13 – CARRIÓ, Genaro. Princípios juridicos y positivismo juridico. Buneos Aires: Abeledo-Perrot, 1970,
pp.21-51.
14 – MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. Especialmente quando comenta o uso da expressão “interesse geral” para justificar a

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

e juízes dessa assertiva, pois se teria, então, que admitir que a atividade jurídica
possui uma coloração política. Recorrer a princípios ou mesmo expressões tópicas
é lançar mão de valores ou referências amplas que transcendem a legislação em
sentido estrito, e isto poderia ser entendido como politização, pois tal como diria
Dworkin, isto poderia também ser entendido como uma forma de se legislar nesses
casos.
Didaticamente Genaro Carrió15 comprova a tese sobre os princípios na obra
referida há pouco, ao comparar o jogo do direito ao jogo de futebol. Em ambos,
existem três tipos de normas: uma que proíbe e sanciona uma conduta precisa,
como, por exemplo, a proibição de colocar a mão na bola no futebol e o homicídio
no direito; uma outra, que proíbe e sanciona uma variedade de condutas, a
exemplo do jogo perigoso e da norma de responsabilidade civil do código civil; e
uma terceira, mais ampla e que funciona exatamente como um princípio, tal como
a lei da vantagem no futebol e aquela que diz, no direito, que “ninguém deve levar
vantagem com sua própria torpeza”.
Ora, essas últimas, que se dirigem mais às primeiras e às segundas,
assim como aos árbitros e aos juízes, sempre existiram, restando questionar
se são jurídicas ou como se tornaram jurídicas, etc. De qualquer maneira, ao
proporcionarem possibilidades de exceções, de introdução de outros elementos
às normas jurídicas estritas, não há como negar que politizem o direito, uma
vez que permitem claramente o uso finalístico ou teleológico do sistema, o que,
ao fim e ao cabo, não é nenhum pecado, mas ataca certos mitos positivistas
como o de que o sistema jurídico possui um fim em si mesmo e que toda a
aplicação que dele se fizer estará imune a influências externas. Com efeito, o
importante de ser constatado nesse momento é que Genaro Carrió, após uma
ampla análise do que seria princípio, bem como de um confronto dessa ideia
com a do positivismo jurídico de Hart, conclui que elas não são excludentes,
mas coincidentes em muitos de seus aspectos16.

não aplicação de lei especial sobre recursos e sim a aplicação de lei geral contida no código de Processo
Civil, por essa lei privilegiar o Poder Público.
15 – CARRIÓ, Genaro. Princípios jurídicos y positivismo jurídico, B.A. Abeledo Perrot, 1970, pp.15-20.
16 – CARRIÓ, Genaro. Princípios jurídicos y positivismo jurídico, p. 60 e ss.

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RETOMANDO REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA DECISÃO


JUDICIAL SEGUNDO RONALD DWORKIN

Também como se encontra no livro de Sociologia do Direito (2016,


pp.150-151) referido e que agora reproduzimos aqui, o autor norte-americano
Ronald Dworkin parte, no texto “Juízes Políticos e o Estado do Direito”17, do
primarismo da discussão sobre se o direito é político ou não, desenvolvendo toda
uma argumentação substitutiva. A partir de uma pesquisa na Grã-Bretanha e nos
EUA, demonstra que, embora os juristas não tenham consciência, a sua atividade
é política.
O importante é que Dworkin sustenta que essa discussão negligencia outra
bem mais fundamental sobre os tipos de argumentos envolvidos nas decisões
judiciais, apresentando a seguinte classificação: as decisões judiciais podem conter,
por um lado, argumentos de princípio político, especialmente relacionados aos
direitos fundamentais da pessoa humana; e, por outro, argumentos de procedimento
político, ligados, por assim dizer, aos interesses da coletividade, funcionando, a
partir de alguma concepção de bem- estar, de interesse público. E é dessa distinção
que a ponderação sobre a prevalência dos princípios em jogo deve ser encontrada,
entendendo que os primeiros devem ter prioridade.
A seguir, desde sua postura pragmática, Dworkin coloca em discussão
o conceito de “estado de direito”, tão essencial ao funcionamento do Poder
Judiciário. E, segundo o autor em estudo, duas concepções fortes de estado de
direito se digladiam:
a) aquele que as ações de governo estão centradas no texto legal, de acordo
com as regras públicas colocadas no “livro de regras”, independentemente do seu
conteúdo;
b) aquele que as ações de governo estão centradas nos direitos, isto é, aquele
em que ações, embora tomando em conta os textos legais, vão além deles, trazendo
à baila também outros direitos, como os morais, por exemplo.
Diante dessas concepções e considerando a linha de raciocínio de Dworkin18,
certamente a visão mais pluralista da segunda concepção é a que mais se aproxima
de seu trabalho na busca da realização dos direitos fundamentais, objetivo principal
de sua obra. Entretanto, na medida em que lembram as antigas denominações de

17 – DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, op.cit. pp. 03-39.


18 – DWORKIN, Uma questão de princípio, Op.cit.,pp. 03-39

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

positivismo e jusnaturalismo, e assim os paradoxos clássicos da filosofia do direito,


tais como estabilidade e equidade, certeza e justiça, são modelos que não podem
mais ser pensados como hegemônicos ou excludentes. Como vimos, desde Hart se
fala na textura aberta do direito e, portanto, das incertezas dos códigos. Inclusive
o modelo centrado nos direitos oferece, como diz Dworkin, a deficiência de o
poder policial poder ser usado de outras maneiras que os especificados nos livros
de regras.
Embora a importância dessa base material dos direitos fundamentais,
preocupa, de modo decisivo a Dworkin o relacionamento dessas decisões judiciais
com a democracia, além da já manifestada preocupação com o Estado de Direito.
E um argumento que poderia ser visto como insuperável a favor da democracia, o
da autoridade, que sustenta o dever dos juízes de seguir as regras do livro de regras
e não, por exemplo, as de um sábio sobre o que seja direito (segunda concepção),
se confrontam com outro que é também forte: o de o Estado poder prometer aos
seus cidadãos que regerá as suas relações de uma maneira justa.
Segundo nosso ponto de vista, a proposta de Dworkin suplanta a ideia de
uma democracia procedimental tal como aquela sustentada por Bobbio em seu
best-seller “O Futuro da Democracia”19, como uma defesa das regras do jogo. Com
efeito, Dworkin assume a responsabilidade de se ter que saber como se faz a opção
entre valores conflitantes, tais como entre argumentos de princípio e argumentos de
política em conflito, defendendo, como é conhecida, a prevalência dos primeiros.
Contudo, atenção: buscar a concretização de princípios como o de dignidade
da pessoa humana, para Dworkin, mais do que a realização de objetivos comuns
substanciais resultados de um entendimento dialógico entre os cidadãos, reside
no respeito a valores tidos como autoevidentes ou frutos de uma autoconsciência
universal, dentre os quais, para os liberais, sobressaem-se os de liberdade e de
autodeterminação.

19 – BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 7ª. Ed. Revista e ampliada. Trad. Marco Aurélio
Nogueira. SP: Paz e Terra, 2000.

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José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

ASPECTOS DA PROPOSTA DE TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E


DA DECISÃO JUDICIAL DE NEIL MACCORMICK20

Utilizando-nos aqui da leitura de Manuel Atienza21, abordamos, neste


tópico, reprisando argumentos contidos no livro de Sociologia do Direito
(2016, pp.152-155) mencionado ao início deste texto, o neoinstitucionalismo
de Neil MacCormick, autor de um livro que se tornou influente nos estudos de
argumentação jurídica nos anos 70: “Legal reasoning and legal theory”22, e que foi
contemporâneo de alguns dos mais importantes trabalhos de Robert Alexy, como
é o caso de sua “Teoria da argumentação jurídica”23.
Desde um ponto de vista que interessa diretamente ao direito, o
reaparecimento de teorias da argumentação jurídica tem a ver com a crise da ideia
de sistema nessa ciência, adotada e propugnada pela matriz positivista de Kelsen
até Hart, dentre outros, ou mesmo de alguma versão ontologista (biológica).
Theodor Viehweg é um dos precursores de uma ciência mais como um problema
argumentativo do que como conclusões decorrentes ou retiradas de um sistema24.

20 – A leitura e o comentário da teoria de MacCormick será realizada a partir de ATIENZA, Manuel.


As razões do direito. Teorias da Argumentação Jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São
Paulo: Landy, 2000, p. 169-232.
21 – As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica, op.cit.pp. 169-232.
22 – MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory Oxford University Press, 1978. Igualmente
referido por Manuel ATIENZA, As razões do Direito, op.cit. p. 171.
23 – SCHIAVELLO, Aldo. Neil MacCormick, teorico del diritto e dell’argomentazione giuridica. In:
COMANDUCCI, P.; GUASTINI, R. (org.) Analisi e diritto. Torino: Giappichelli, 1998, p. 307-345.
24 – Cfe. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito, op.cit. pp. 59-79. Por outro lado, uma tradução
da principal obra de Viehweg, “Tópica e jurisprudência”, foi editada pelo Ministério da Justiça,
Departamento de Imprensa Nacional, em 1979, com tradução e apresentação de Tércio Sampaio
Ferraz Junior. Na apresentação, procurando explicar o pensamento do autor em referência, Ferraz
Junior afirma que “as ciências naturais e matemáticas constroem sistemas axiomáticos que constituem
hipóteses genéricas que poderiam servir de prognósticos para a ocorrência de fenômenos que obedecem
às mesmas condições descritas teoricamente, modelo esse que se procurou importar para a ciência
jurídica. Viehweg detecta que esse modelo não serve ao direito, porque as teorias das ciências humanas
não só se prendem a determinadas épocas ou culturas, como também têm de levar em conta uma
variabilidade que acaba por afastá-las do modelo científico das demais ciências”. (FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. Apresentação. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio
Ferraz Junior. Brasília: Ministério da Justiça, Departamento de Imprensa Nacional, 1979.)

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

Por outro lado, é importante que se diga que a ideia de ciência do direito como
a construção de uma argumentação, surge também como uma forma de limitação
dos exageros pró e anti-positivistas, e, portanto, não somente em oposição, mas em
complementação e atribuição de importância à ideia de interpretação sistemática
no direito25. Além de uma preocupação estrutural e metódica com a interpretação,
a argumentação se dirige à tentativa de explicitar os fins da interpretação. Dito de
outro modo: da busca de uma intencionalidade do legislador ou de uma solução
previamente dada pelo sistema jurídico, a argumentação funciona muito mais como
um instrumento construtor da ponte entre o direito e os ditos “hard cases” (casos
difíceis), justamente através do emprego dos topoy, expressões com um sentido
comum ou usual, como é exemplo a expressão “interesse geral”, anteriormente
referida.
Realizando, a partir de Manuel Atienza26, algumas observações acerca da
teoria de MacCormick, pode-se dizer que ele admite a existência tanto de casos
fáceis quanto de difíceis no direito. Aos primeiros se aplica de um modo mais
tranquilo a lógica dedutiva, enquanto que para os segundos é preciso ir além, pois,
nesses casos, “pelo menos em princípio, é possível propor mais de uma resposta
correta que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo”.27
Entretanto, muitos dos casos no direito seriam tranquilos não fosse uma
observação importante de MacCormick: a lógica determina a obrigação do juiz
de sentenciar, mas não determina seu conteúdo, pois a lógica é apenas moldura
formal do argumento.28
Embora o argumento considerado lógico possa deter aspectos de aparente
autolegitimação, oriundos de uma possível confusão entre o que seja lógica e o
que seja justiça, MacCormick deseja chamar a atenção do fato de que tanto os

25 – Como assinala Ferraz Junior, “a teoria jurídica, sobretudo em consequência das intenções dos
séculos XVII e XVIII, durante muito tempo, supôs que a estrutura formal do direito podia ser entendida,
grosso modo, como uma conexão dedutiva explicável, principalmente, pela lógica dedutiva. Esta
concepção seria própria de uma época que considerou o papel da interpretação não como principal,
mas como secundário, pois, sem dúvida, é evidente que a interpretação tende a perturbar sensivelmente
o rigor do sistema dedutivo”. (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Apresentação. In: VIEHWEG,
Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília: Ministério da Justiça,
Departamento de Imprensa Nacional, 1979, p. 2.)
26 – ATIENZA, Manuel. As razões do Direito. São Paulo, Landy, 2000, pp.169-232.
27 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito. São Paulo: Landy, 2000, p.179.
28 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito. São Paulo: Landy, 2000, p. 176.

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José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

argumentos jurídicos quanto os fatos, numa suposta argumentação lógica, podem


variar em muitos dos seus aspectos, podendo, no âmbito de silogismos, gerar
verdadeiras falácias, embora com a vestimenta da lógica.29
Por isso MacCormick entende ser preciso demarcar certos pressupostos
atuais do que se entende por lógica jurídica, dentre os quais aqueles que conformam
a prática do direito segundo a realidade atual, e que começam a conformar, segundo
nosso entendimento, fundamentos que demarcarão toda a sua argumentação
jurídica:
a) “o juiz tem o dever de aplicar as regras do direito válido”, o que ocorre em
um “contexto de razões subjacentes” a esse dever, tais como a busca da certeza do
direito, o respeito à divisão dos poderes, o princípio da autoridade, etc.; 30
b) “o juiz pode identificar quais são as regras válidas, o que implica aceitar a
existência de critérios de reconhecimento, compartilhados pelos juízes”.31
Entretanto, MacCormick tem presente o fato de que os pressupostos da
lógica dedutiva enfrentam problemas relativos aos “seus limites, basicamente no
sentido de que a formulação das premissas normativas ou fáticas pode suscitar
problemas”32, o que exatamente viria a gerar os ditos casos difíceis.
Em relação a esses casos33, cabe aduzir ao que já foi dito anteriormente,
principalmente com base em Hart e Dworkin, que eles podem ser: a) relativos ao
problema de interpretação – existem “quando não há dúvida quanto qual seja a
norma aplicável”, mas ela “admite mais de uma leitura”; b) relativos ao problema
de pertinência – existem quando a discussão não é sobre a clareza da norma,
mas se ela existe; c) relativos aos problemas de prova – surgem, principalmente,
quanto “ao estabelecimento da premissa menor”, ou seja, quando existem dúvidas
sobre os fatos; d) relativos aos problemas de qualificação – que se referem a fatos
secundários e à “existência de determinados fatos primários” que se considerem
provados e sobre os quais se discute se integram ou não a previsão normativa.34

29 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 176-177.


30 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 178.
31 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 179.
32 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 179.
33 – Segundo Calsamiglia, “un caso es difícil si existe incerteza, sea porque existem varias normas que
determinan sentencias distintas – porque las normas son contradictorias -, sea porque no existe norma
exactamente aplicable”. Ver também nosso texto “Teoria jurídica e novos direitos” (CALSAMIGLIA,
Albert. Ensayo sobre Dworkin, prólogo a edición epanhola de Los Derechos em Serio, 1984, p. 13).
34 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 179-182.

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

Com esse diagnóstico amplo sobre a ideia de casos difíceis também


em MacCormick, vejamos em uma síntese como o autor escocês constrói sua
argumentação resolutiva desses casos. Partindo da teoria de Hart de que o direito
é um sistema de regras (ou normas) que dependem de uma regra (ou norma) de
reconhecimento, portanto aberto a princípios como o entende Dworkin, e tal como
posteriormente também Hart o aceitou, defende a ideia de que todo e qualquer
entendimento sobre o direito não pode prescindir de uma interpretação que, por
seu turno, considere como fundamental os vários fatores que contribuem para o
próprio entendimento do que seja realidade jurídica ou existência jurídica.35
Assim, dentre os requisitos que chama de primeiro nível36, está o da
universalidade – exigência de justiça formal. Aqui significa que a aplicação deve
respeitar o passado e que deverá ser mantida no futuro. Além disso, deve obedecer a
requisitos de segundo nível que englobem os conceitos de consistência e coerência
– ainda relativos ao sistema e que implicam a escolha da norma geral aplicável37.
Segundo Atienza, para MacCormick, “uma decisão satisfaz ao requisito de
consistência quando se baseia em premissas normativas, que não entram em
contradição com normas estabelecidas de modo válido”. E isso vale também para
a premissa fática. Esse requisito deriva “da obrigação dos juízes de não infringir o
Direito vigente e, por outro lado, da obrigação de se ajustar à realidade em termos
de prova”. Quanto à coerência, que se trata de um requisito mais forte, significa
dizer que, quando se quer defender um valor, como, por exemplo, o valor segurança
no trânsito, devem ser estabelecidas normas coerentes com esse objetivo.38

35 – SCHIAVELLO, Aldo. Neil MacCormick, teorico del diritto e dell’argomentazione giuridica, p.345.
Tema também tratado por ATIENZA, Manuel. “As razões...” p. 169 e segs. Ver também as críticas de
Dworkin a Hart sobre casos difíceis no estúdio preliminar de César Rodrígues, constante na obra La
Decisión Judicial, citado na nota segunda deste trabalho.
36 – ATIENZA, Manuel, “As razões...”, op.cit. pp.182-185.
37 – Cfe. ATIENZA, Manuel, “As razões...”, op.cit. pp.185-192. Nesse momento em que se readentra a
questão da coerência e, portanto, as possíveis antinomias de normas, deve-se trazer à colação o importante
artigo da professora Cláudia Lima Marques, "Diálogo entre o código de defesa do consumidor e o novo
código civil: do diálogo das fontes no combate às cláusulas abusivas”, Revista do Direito do Consumidor,
São Paulo:RT, jan./mar., 2003, p. 71-99, no qual após longa e fundamentada exposição, sustenta que
“é necessário superar a visão antiga dos conflitos e dar efeito útil às leis novas e antigas”, referindo-se a
um necessário diálogo entre o então novo Código Civil brasileiro e o já adolescente Código de Defesa
do Consumidor.
38 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 186-187.

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José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

Por fim, além de uma decisão estar justificada internamente ou segundo suas
relações com o sistema, precisa ter sentido em relação ao mundo. Entende-se aqui
que, além de argumentos formais e sistêmicos, deve haver respeito a argumentos
práticos de utilidade, razoabilidade e proporcionalidade material, que seriam
entendidos como argumentos consequencialistas.39
Como corolário, quanto à tese da única resposta correta de Dworkin,
MacCormick a critica em quatro pontos que, em essência, se referem ao fato de
que as decisões jurídicas devem ter algo em comum (universalidade, consistência e
coerência), mas também terão diferenças, em virtude das razões práticas relativas
a argumentos consequencialistas que podem ter sua origem em crenças subjetivas.
Portanto decisões que se referem a um mesmo fato podem ser distintas, embora
ambas válidas, o que dificulta a tese de Dworkin de que existe apenas uma resposta
correta para cada caso.40

CONTRAPONTOS EXEMPLIFICATIVOS DA DESCONSIDERAÇÃO


DA TEORIA DE NEIL MACCORMICK NA REALIDADE JUDICIAL
BRASILEIRA41

Não obstante o que foi teoricamente exposto, o jurista e professor Lenio L.


Streck, ao dissertar sobre o tema da discricionariedade, traz bons elementos para o
debate que estamos pretendendo realizar:

Evidentemente que motivação não é o mesmo que fundamentação.


Admitir que motivação seja igual ou possa substituir o conceito de
fundamentação é afirmar que o juiz primeiro decide — e para isso teria
total liberdade — e, depois, apenas motiva aquilo que já escolheu. É/seria
a morte da Teoria do Direito e do Direito Processual, porque a decisão
ficaria refém da (boa ou má) vontade (de poder) do julgador. Se isso é/fosse
verdade, o processo seria inútil. E tudo se transforma(ria) em argumentos
finalísticos-teleológicos. O processo seria apenas um instrumento ou

39 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 193-196.


40 – ATIENZA, Manuel. As razões do direito, p. 196-203.
41 – Pesquisa de casos realizada pelo meu ex-orientando em Mestrado em Direito na UFRGS e ora
Mestre em Direito (2018) por essa Universidade, Leonardo Serrat de Oliveira Ramos, por conseguinte
co-autor deste presente escrito.

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

algo que coloca uma flambagem em escolhas discricionárias, quando


não arbitrárias.42

Por outro lado, pode-se dizer que o que temos, nessa lógica, é o modelo
realista descrito por Calsamiglia - ao discorrer acerca do estudo da teoria
jurídica, em que “as decisões dos juízes são fruto de suas preferências pessoais e
de sua consciência subjetiva; o juiz primeiro decide e logo busca justificativa no
ordenamento jurídico”43.
Mas partindo para alguns exemplos, a arbitrariedade nas decisões judiciais
pode ser encontrada em questões mais amplas e gerais, mas também está em
questões mais pontuais. Por exemplo, diz o nosso código de processo civil que a
pena para a parte que não comparece ao ato é a confissão, mas o Juízo determinou
a condução coercitiva para o ato, tendo sido considerado pela instância superior
como decisão “arbitrária e despropositada”:

Agravo de instrumento. Depoimento pessoal. Determinação de condução


coercitiva da parte para o ato. Não comparecimento que implica
confissão. Inteligência do artigo 343, § 2º do cpc. Decisão arbitrária e
despropositada. Decisum reformado. Recurso provido.
TJ-SP - AI: 21671343320148260000 SP 2167134-33.2014.8.26.0000,
Relator: Giffoni Ferreira, Data de Julgamento: 28/10/2014, 2ª Câmara
de Direito Privado, Data de Publicação: 30/10/2014

Outro caso é a tentativa de proibição de um advogado de examinar e tirar


cópia em processo não protegido por segredo de justiça, indo de encontro a regra
geral de publicidade dos atos jurídicos e ao permissivo previsto no Estatuto da
OAB e do Código de Processo Civil:

42 – Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC. STRECK, Lenio Luiz.
Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-abr-23/observatorio-constitucional-jurisdicao-
fundamentacao-dever-coerencia-integridade-cpc>. Acesso em 23 jul 2018.
43 – CALSAMIGLIA, Albert. Ensayo sobre Dworkin (prólogo a la edición en español). In: Dworkin,
Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1984. Citado por OLIVEIRA JUNIOR, José
Alcebíades de; Souza, Leonardo da Rocha. Sociologia do Direito – desafios contemporâneos. Porto Alegre,
Livraria do Advogado Editora, 2016, p. 145.

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José Alcebiades de Oliveira Junior e Leonardo Serrat de Oliveira Ramos

MANDADO DE SEGURANÇA - DECISÃO QUE IMPEDIU


O IMPETRANTE DE EXAMINAR E EXTRAIR CÓPIAS EM
CARTÓRIO SEM PROCURAÇÃO NO FEITO - DECISÃO
ARBITRÁRIA E DESPROPOSITADA - FERIMENTO DE
DISPOSITIVO DO CPC E DO ESTATUTO DA ADVOCACIA -
AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E
DA AMPLA DEFESA - SEGURANÇA CONCEDIDA - LIMINAR
RATIFICADA.
TJ-MS - MS: 5573 MS 2005.005573-2, Relator: Des. José Augusto de
Souza, Data de Julgamento: 20/06/2005, Seção Criminal, Data de
Publicação: 06/07/2005

E como já dissemos, Neil MacCormick em seu estudo sobre lógica dedutiva


sustenta a existência de requisitos de “primeiro nível, aonde se encontra o da
universalidade – exigência de justiça formal”. Aqui significa que a aplicação deve
respeitar o passado e que deverá ser mantida no futuro44. Além disso, deve obedecer
a requisitos de segundo nível que englobem os conceitos de consistência, premissas
normativas que não entram em contradição com normas estabelecidas de modo
válido, e coerência, normas coerentes com o objetivo45.
Nessa linha, as decisões acima descritas não subsistem a lógica dedutiva de
MacCormick que, por seu turno, por vezes é insuficiente e deve ser criticada, muito
embora acreditemos que seja perfeitamente razoável que decisões que não possuam
um mínimo de universalização, consistência e coerência com o ordenamento
jurídico, conduzam a uma situação ainda mais grave. Sem essas considerações,
tais decisões podem ser vistas como casos de arbítrio, em que a motivação não se
reveste da necessária fundamentação que o ato jurídico precisa ter.

44 – Cfe. Leitura de ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito, op.cit. pp.182-185.


45 – ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito, op.cit. 185-192. SCHIAVELLO, Aldo. Neil MacCormick,
teorico del Diritto e dell’argomentazione giuridica. Citado por OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de;
SOUZA, Leonardo da Rocha. Sociologia do Direito – desafios contemporâneos. Porto Alegre, Livraria do
Advogado Editora, 2016, p. 155

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Casos difíceis e a contribuição de Meil Maccormick: alguns contrapontos com a Justiça Brasileira

CONCLUSÃO

Conclui-se com a afirmativa de que as problemáticas relativas aos casos


difíceis persistem, pois muitas vezes as decisões não perseguem nem mesmo aquilo
que seria minimamente coerente. O que se dirá quando tratarem-se de temas de
alta complexidade. De modo que são por todas essas razões que as discussões sobre
teoria, filosofia e sociologia do Direito em sentido amplo devem continuar.

REFERÊNCIAS

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica.


Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n
2167134-33.2014.8.26.0000. Relator: Desembargador Giffoni Ferreira, Data de
Julgamento: 28/10/2014, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:
30/10/2014
BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Mandado de
Segurança n 2005.005573-2. Relator: Desembargador José Augusto de Souza, Data
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202
AÇÃO CIVIL PÚBLICA E PISO SALARIAL DE
PROFESSORES NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL E QUALIFICAÇÃO
DO SERVIÇO PÚBLICO VIA CONTROLE DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: RACIONALIDADE E
FUNDAMENTAÇÃO1

Caroline Muller Bitencourt2


Janriê Rodrigues Reck3

Resumo: Trata-se de um estudo que faz uma análise de caso do acórdão-paradigma,


a partir do qual foi realizada uma pesquisa qualitativa, foi o de nº 70049971815 (N°
CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Para proceder a análise dos argumentos decidiu-se
considerar as perspectivas do discurso de aplicação e fundamentação da ação civil pública
envolvendo o piso salarial de professores. Como problema que conduz essa investigação
é : quais os argumentos que subjazem tanto a fundamentação como a aplicação do piso
salarial na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul? O objetivo é
analisar a racionalidade das referidas decisões a partir dos discursos, valendo-se de Klaus
Güinther e Jurgen Habermas para a pretendida tarefa.

1 – Este artigo é desenvolvido no grupo de pesquisa controle social e administrativo de políticas públicas
e serviços públicos no qual os autores são coordenadores junto ao Programa de Mestrado e Doutorad
da Unisc.
2 – Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação, mestrado e doutorado, da
Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada.
3 – Doutor em Direito. Professor do Programa de Pós-Graduação, mestrado e doutorado, da
Universidade de Santa Cruz do Sul. Procurador Federal.
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

1 INTRODUÇÃO

Trata-se o presente trabalho de reconstruir a fundamentação e os elementos


de racionalidade que subjazem o controle do serviço público de educação ao
aplicarem o piso salarial dos professores, a partir da jurisprudência do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul. A pesquisa está delimitada em uma leitura filosófica
dos discursos jurídicos, combinada com a dogmática do Direito Constitucional e
Administrativo. Espacialmente, o trabalho resume-se à jurisprudência do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, o que implica o espaço territorial deste Estado.
O problema que move este trabalho é: quais os argumentos que subjazem
tanto a fundamentação como a aplicação do piso salarial na jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Objetiva-se, de modo geral, analisar a racionalidade das referidas decisões.
Especificamente, contudo, os objetivos direcionam-se a separar as razões de
justificação e aplicação do piso, bem como o modo pelo qual se controle e sua
recepção nos acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Justifica-se o presente trabalho pela importância que o direito à educação
possui na Constituição Federal e na tradição brasileira, assim como a necessidade
de um trabalho dogmático mais apurado.
Em termos de técnica de pesquisa, foi utilizado o recurso da pesquisa de
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Foi realizada pesquisa
com as palavras-chave “ação civil pública” e “piso salarial” e “professores”. O
acórdão-paradigma selecionado, a partir do qual foi realizada uma pesquisa
qualitativa, foi o de nº 70049971815 (N° CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Foi
examinado o discurso de aplicação presente no referido acórdão. Além disto, foi
feito um exame, por estimativa, da jurisprudência posterior à referida ação civil
pública. Note-se, assim, que a técnica de pesquisa foi mista, albergando tanto
exame qualitativo como estimativo. Com isto, foi possível realizar uma indução –
com caráter provisório, dada a impossibilidade de realizar um exame da totalidade
dos acórdãos disponíveis – acerca da aplicabilidade do teto constitucional.

2 FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO AO PISO SALARIAL

Quais são as razões que fundamentam o piso salarial? Antes de analisar a


questão sob o prisma dogmático-normativo, é importante verificar a racionalidade

204
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

subjacente à tal decisão. Usando-se os parâmetros de Habermas, sabe-se que a


racionalidade está conectada com a capacidade de fundamentação em discursos.
Só é considerado racional quem é capaz de expor uma solução para um problema
prático – o que fazer – se existir fundamento em boas razões.

Este concepto de racionalidad comunicativa posee connotaciones que


en última instancia se remontan a la experiencia central de la capacidad
de aunar sin coacciones y de generar consenso que tiene un habla
argumentativa en que diversos participantes superan la subjetividad
inicial de sus respectivos puntos de vista y merced a una comunidad de
convicciones racionalmente motivada se aseguran a la vez de la unidad del
mundo objetivo y de la intersubetividad del contexto en que desarrollan
sus vidas4.

Buscando aqui estudar a diferenciação dos discursos de aplicação e


fundamentação, tem-se na verdade a pretensão de investigar as condições de
decidibilidade da norma, tanto em se pensando na “norma em abstrato”, bem
como se referindo à norma “in concreto”, ou seja, já se olhando para os fatos que
levam à sua aplicação. Por norma entende-se como todo ato de decidir que vincula
os sujeitos; assim, estar-se-á buscando olhar o processo de criação da decisão até
a forma de interpretar a própria decisão. Diga-se que esse é um problema sobre o
qual há muito a hermenêutica tem debruçado seus esforços no sentido de refletir
acerca do modo de interpretar o direito, com um grande salto a partir de Heidegger
e Gadamer5.
Klaus Stern resume dizendo que: “Todo ato de interpretação é um trânsito
do abstrato para o concreto. Nesse sentido a interpretação é sempre concreção de

4 – HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid: Taurus, 1999.


5 – Significa dizer que não é preocupação gadameriana ou heideggeriana a análise da teoria do discurso;
todavia, para o desenvolvimento da teoria da ética discursiva, importantes contribuições foram reveladas
pela hermenêutica. Nesse sentido: “Heidegger foi mais longe defendendo que toda compreensão é
temporal, intencional, histórica. Ultrapassou concepções anteriores ao encarar a compreensão não
como um processo mental, mas um processo ontológico, não como um estudo de processos conscientes
e inconscientes, mas como uma revelação daquilo que é real para o homem (...) Heidegger veio provar
que a compreensão é um passo prévio indicativo do ato de fundamentação – revelação da realidade”.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70,
2007, p. 145.

205
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

normas através dos métodos de interpretação”, da mesma forma que a interpretação


pode ser tida como: “[...] é um “discurso” ou “processo” complexo que incide sobre
um enunciado lingüístico6. Tem como objeto uma disposição, sendo seu resultado
uma norma.” Ou seja, a norma como ato de produção do intérprete sobre o texto
carrega várias possibilidades interpretativas e toda decisão não deixa de ser uma
opção por parte do interprete, entre tantas outras possíveis.
Analisando a distinção entre os discursos de fundamentação e aplicação,
ensina que os discursos corresponderiam à racionalidade prática em dois estágios:
o primeiro é a imparcialidade, que se expressa em um procedimento de justificação
que se projeta para o futuro e para todos a partir de situações imagináveis, mas
nessa operação não consegue dar conta de todas as situações concretas que
dela serão originadas diante da norma justificada; a segunda trata do fato que a
impossibilidade da previsão de todos os casos futuros é constitutiva para a própria
norma; logo, é bom para a comunidade que nos casos concretos o olhar esteja
voltado para as pretensões que, em um primeiro momento, foram pensadas de
forma generalizada, tendo em vista razões de imparcialidade, tomadas como
aplicação do princípio da universalização: daí porque o sistema de Günther e
Habermas ser estruturado duplamente, vez que é necessário mais um processo de
generalização, agora voltado a todas as situações relevantes possíveis da situação,
regidas por um juízo de “aplicabilidade”.
Os discursos devem ser lidos separadamente porque, tanto o fator da
limitação temporal, quanto o fator da limitação das informações, são fundamentais
para que aconteça a institucionalização das decisões jurídicas. A questão central
da diferenciação: se por um lado estes discursos oferecem uma abordagem
filosófica da racionalidade prática, o que rege os discursos de fundamentação é
voltado à otimização do interesse de todos oferecendo apenas razões, enquanto
que o discurso de aplicação, tomando consciência da complexidade fática, procura
escolher a melhor norma e a melhor interpretação, proporcionando coerência
ao ordenamento, mas considerando as perspectivas dos particulares que devem
manter relação com a estrutura geral das expectativas já postas pelos discursos de
fundamentação7.

6 – STERN, Klaus. Derecho Del Estado da República Federal da Alemanha. Madrid: Madrid, 1987, p. 278.
7 – HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. v. I.

206
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

Dito isso, passa-se a uma breve análise do que consistem os discursos de


fundamentação e os discursos de aplicação como forma de demonstrar as diferentes
lógicas discursivas que envolvem os atores institucionais, para então observá-los
em termos de implementação e controle de políticas públicas, quando de suas
decisões. Ainda que se busque fazer de forma exemplificativa, no sentido de avaliar
as condições e possibilidades dos atores institucionais envolvidos na comunicação.
Os discursos de fundamentação8 buscam realizar a validade das normas,
uma forma de fundamentar a norma geral baseando-se não em um caso concreto,
mas sim no paradigma de fundo que determina seu modo de interpretação e
fundamentação para o juízo de validade. Logo, dizer que uma norma valha
parcialmente prima facie significa afirmar que ela foi fundamentada de modo apenas
imparcial. No discurso de fundamentação não há como se pensar na especificidade
de um caso concreto, o que não significa construir juízos de validade “fora” da
história, pois os paradigmas condicionam qualquer interpretação. Há muito já se
sabe que não há interpretação desconectada dos fatos em geral, porque o intérprete
está inserido na história.
Habermas, concordando com Günther, explica que o papel das ideologias
passa a ser substituído pelos paradigmas (no campo da problemática do direito),
porque eles contêm descrições generalizadas de situações de um determinado tipo,
não se afastando completamente da faticidade, muito embora não se construam
a partir de um caso concreto, pois sua função é justamente formar um pano de
fundo para situações correspondentes a juízos morais, da forma de vida que nos
encontramos, nos inserimos9:

Ora, é interessante constatar que o elemento capaz de aumentar a


segurança do direito e de atenuar as exigências ideais que cercam a teoria
do direito é o mais propenso a formação de ideologias. Os paradigmas se
coagulam em ideologias, na medida em que se fecham sistematicamente
contra novas interpretações de direitos e princípios, necessárias à luz de
novas experiências históricas. Paradigmas “fechados”, que se estabilizam
através de monopólios de interpretação, judicialmente institucionalizados,
e que podem ser vistos internamente, somente de acordo com medidas

8 – Importa referir que Habermas trata de discursos de Justificação no mesmo sentido e conotação que
Klaus Güinther se refere aos discursos de fundamentação.
9 – HABERMAS, op. cit., 2003, p. 270-275, v.I passim.

207
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

próprias, expõem-se, além disso, a uma objeção metódica, que coloca em


cena o ceticismo jurídico realista: ao contrário da exigida coerência ideal
do direito vigente, as interpretações de casos coerentes permanecem, em
princípio indeterminados no interior do paradigma jurídico fixo; pois
elas concorrem com interpretações igualmente coerentes do mesmo caso
em paradigmas jurídicos alternativos. Isso já uma razão suficiente para
a compreensão procedimentalista do direito delineie um nível no qual
os paradigmas jurídicos, agora flexivos, se abram uns para os outros e se
comprovem na pluralidade das interpretações da situação10.

Dessa forma, tanto Habermas quanto Günther11, ao analisarem os discursos


de justificação (ou fundamentação), explicam que neste os participantes, com base
no paradigma de fundo, imaginam todas as possibilidades ou circunstâncias nas
quais são dadas as características pressupostas pelo conteúdo da norma, pois é
a diversidade de aplicação que se produz o material para que se possa atribuir
à validade da norma, função do discurso de fundamentação. Utilizando-se da
aplicação do princípio da universalidade, ora apenas referido como “U”, é possível
observar todas as consequências e efeitos colaterais para a aplicação da norma.
Como nem todas as consequências de observação de uma norma são importantes
para uma avaliação em que se faça jus a validade de uma norma, para a essência do
princípio da universalização importam os interesses de cada um individualmente,
o que faz com que, ao invés da validade depender de critérios isentos de interesses,
seja possível a partir da multiplicidade de interesses (ainda que eventualmente
conflitantes entre si, acometidos pela consequência de uma norma carecedora de

10 – HABERMAS, op. cit., 2003, p. 275-276, v.I.


11 – Diz que: “Para a fundamentação é relevante exclusivamente a própria norma, independentemente
de sua aplicação em cada uma das situações. Importa se é do interesse de todos que cada um observe
a regra, visto que uma norma representa o interesse comum de todos e não depende de sua aplicação,
mas dos motivos que conseguimos apresentar para que ela tenha de ser observada por todos como uma
regra. Em contraposição, para a sua aplicação cada uma das situações é relevante, não importando se a
observância geral também contempla o interesse de todos. Em vista de todas as circunstâncias especiais,
o fundamental e se e como a regra teria de ser observada em determinada situação. Na aplicação
devemos adotar, “como se estivéssemos naquela situação”, a pretensão da norma de ser observada por
todos em toda situação (isto é, como uma regra), e confrontá-la com cada uma de suas características.
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral. Justificação e aplicação. Tradução de
Claudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. , p. 69-70.

208
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

justificativa) a constituição de um interesse comum. Esse só será possível após a


clareza dos interesses individualmente postos12.
Esta é uma das razões pela qual se chama o discurso de produção de normas
de discursos de justificação.
Justificar o porquê da existência da existência de uma norma é, enfim,
trazer as razões pelas quais os demais participantes livres de uma sociedade teriam
interesse na referida norma. A partir da característica da positividade do Direito,
assim como do uso da linguagem, o Direito possui a possibilidade de coordenar
ações, já que ele está ao mesmo tempo apoiado em instituições administrativas e é
capaz de se valer de umas das próprias funções da linguagem, que é a de coordenar
ações. Retomando o raciocínio: uma vez que o Direito consegue coordenar ações,
as normas serão, no final das contas, elementos de coordenação da ação. Para se
coordenar a ação em uma ou outra direção, há de se estruturar a decisão em forma
de discurso e dar boas razões relacionadas ao interesse dos participantes de uma
sociedade livre. Tudo isto, ainda, em um procedimento democrático.
O discurso de justificação geralmente é um amálgama de razões. Na
perspectiva da Democracia deliberativa, não há predominância a priori entre as
razões que são trazidas aos discursos de justificação. Os discursos de justificação
estruturam-se em diferentes combinações de argumentos pragmáticos, éticos e
morais, os quais, após o procedimento democrático, são positivados em norma e se
transformam em Direito.
São argumentos pragmáticos aqueles relacionados ao auto interesse dos
envolvidos, éticos aqueles que envolvem os valores da comunidade e morais aqueles
que possuem pretensão de universalidade.

Nos discursos ético-existenciais a razão e a vontade determinam-se


reciprocamente, sendo que a vontade permanece enraizada no contexto
tematizado da história de vida. Nos processos de autocompreensão,
os intervenientes não se podem desligar da história ou da forma de
vida que, de facto, se encontram. Os discursos prático-morais exigem,
em contrapartida, uma fractura com todas as evidências dos costumes
concretos e estabelecidos, assim como um distanciamento em relação
àqueles contextos práticos com os quais a identidade individual está
entretecida de forma inextricável. É unicamente a partir dos pressupostos

12 – GÜNTHER, op. cit., 2004, p. 61-65.

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Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

comunicativos de um discurso de âmbito universal, no qual todos os


eventuais indivíduos envolvidos possam tomar parte e assumir uma
atitude hipotética e argumentativa face às pretensões de validade de
normas e de modos de conduta tornadas problemáticas, que se constitui
o nível superior de intersubjetividade relativa a um intercruzamento da
perspectiva individual com a perspectiva de todos. Este ponto de vista da
imparcialidade dilacera a subjetividade da perspectiva individual de cada
participante, sem, no entanto, perder a ligação à atitude performativa dos
participantes. A objectividade do chamado observador ideal iria obstruir o
acesso ao conhecimento intuitivo do universo de vida. O discurso prático-
Moral quer dizer o alargamento ideal da nossa comunidade comunicativa
a partir da perspectiva de dentro. Neste fórum, só aquelas propostas de
normas que exprimem o interesse comum de todos os intervenientes
poderão obter uma anuência justificada13.

Um piso nacional de remuneração para professores. Qual é o seu discurso de


justificação? Que razões é possível enumerar, dentro deste contexto, para se considerar
uma boa ideia o estabelecimento de uma melhor remuneração para os professores.
Afinal de contas, há razões contrárias também, já que professores com baixos
salários geram economia aos cofres públicos e particulares, diminuindo os custos das
mensalidades e dos tributos, além de aliviar os gastos com aposentadoria no futuro.
Entretanto, é importante notar que a educação possui forte vinculação
com o projeto de futuro do Brasil. Após o final da ditadura, o Brasil assumiu
um forte compromisso, que se expressou em um valor, qual seja, o de mudar a
cultura autoritária e desigual. Esta valoração apareceu em diversos momentos
da Constituição, a saber, em seu preâmbulo, na ideia da busca da redução das
desigualdades, na educação como direito social, nas competências, na dignidade
e principalmente no enunciado do art. 205, atribuindo à educação a importante
missão de desenvolvimento da pessoa, exercício da cidadania e preparo para o
trabalho. A valorização da educação era e ainda é um importante valor específico da
comunidade brasileira. Tradicionalmente os professores tiveram seus vencimentos
aviltados, o que invariavelmente reflete na qualidade do trabalho, razão pela qual o
valor comunitário da educação é refletido no vencimento dos professores.

13 – (HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Instituto Piaget: Lisboa, [s.d.]. 112-113)

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Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

Em termos de auto interesse, a melhora na educação reflete em melhores


condições de bem-estar civilizatório e econômico para todos.
Finalmente, há também forte cunho moral em se estabelecer um piso salarial.
Não só qualquer a qualquer trabalho deve corresponder remuneração digna, mas
principalmente o trabalho dos trabalhos, que é precisamente o da condução da
aprendiz à luz. Se não há razões para privilégios, muito menos há razões para a
humilhação histórica a que passam os professores no Brasil.
Estas exigências transformaram-se em norma, a saber, a Emenda
Constitucional nº 53. Esta emenda inseriu mais um inciso no art. 206 da
Constituição Federal, o qual trata das diretrizes gerais da educação: “VIII - piso
salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos
termos de lei federal”. De pronto a palavra piso leva à polêmica, podendo significar
ou a remuneração global do professor ou o vencimento básico.
Parte da EC 53 foi regulamentada pela Lei 11.738. A polêmica acima, em
princípio, foi vencida pela regulamentação, a qual foi clara:

Art. 2o O piso salarial profissional nacional para os profissionais do


magistério público da educação básica será de R$ 950,00 (novecentos e
cinqüenta reais) mensais, para a formação em nível médio, na modalidade
Normal, prevista no art. 62 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.§ 1o O piso
salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios não poderão fixar o vencimento inicial
das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada
de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais.

Caso o ente federativo, mesmo aplicando o percentual reservado para a


educação (vinte e cinco por cento da receita de impostos) não consiga alcançar
o piso, a União complementará o valor. O art. 5º da referida lei esclarece que em
janeiro de cada ano o piso será reajustado, sem necessidade de Lei Ordinária a tanto.
Também norma de especial relevo é aquela contida no art. 2º, a qual
estabelece um regime de distribuição de carga horária: “§ 4o Na composição da
jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga
horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos”. Note-
se que também é norma que possui forte teor pragmático e moral, ao reservar um
tempo para a preparação e estudos dos professores.

211
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

3 USO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE


CORREÇÃO E QUALIFICAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO E O CASO DO
PISO SALARIAL DE PROFESSORES

Antes de analisar o acórdão que servirá para nossa análise, importante


relembrar a importância da ação civil pública, especialmente como forma de
tutela coletiva de direitos, embora seja necessário referir, que sendo anterior a
Constituição de 1988 e por ela recepcionada, conceitos como transindividuais e
coletivos ganham novo roupagem com o estabelecimento do Código de Defesa do
Consumidor.
Conceituando-se a ação civil pública tem-se que é um instrumento processual
que reprime ou impede atos lesivos ao meio ambiente, ao consumidor a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações
da ordem econômica, conforme art. 1º, protegendo assim os interesses difusos
da sociedade. O papel que ação civil pública exerce no ordenamento jurídico
transcende qualquer função meramente jurídica, pode-se dizer que é uma ação que
nasce em prol da coletividade e da justiça social que, por mais processualista que
possa se caracterizar a Ação Civil Pública, não pode deixar de ser lida como um
remédio constitucional, voltado a tutela da coletividade14.
Note-se que ela não está prevista no rol de garantias de direitos fundamentais
do art. 5º, o que não impede que não o seja por equiparação, dado o conteúdo
de direitos que esta visa a tutela.Para Sarlet (2012), isso ocorre porque, é um
instrumento destinado a especialmente na tutela dos novos direitos15.
A posição mais clássica no tratamento da ação civil pública é de sua ênfase
nos direitos difusos, conforme lembra Didier: “ É importante destacar que os
interesses difusos são aqueles de que sejam titulares pessoas indeterminadas, mas
que se demonstre vínculo jurídico ou fático definido. Atualmente esses direitos
estão estritamente relacionados com a relação de consumo e direitos ao meio
ambiente, o que significa dizer, a ACP que não é destinada a garantia de direitos
individuais16”.

14 – DIMOULIS, Dimitri. Curso de processo constitucional: controle de constitucionalidade e


remédios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
15 – SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
16 – DIDIER JR, Fredie (Org.). Ações constitucionais. 6ª Ed. Salvador: Jusdium, 2013.

212
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

Na expressão ação civil pública não se identifica a pretensão que lhe


constituiu o objeto. O adjetivo civil indica meramente que ação tem
natureza não-penal, não se voltando, portanto, a pedidos condenatórios
decorrentes da prática de ilícitos penais. Já o adjetivo pública deve ser
visto como antagônico à ação privada, de como a indicar que a ação
pode ser deflagrada por órgão do próprio Estado, como é o caso especial
do Ministério Público, na defesa de interesses de natureza coletiva e com
vistas ao bem-estar da comunidade, ao contrário da ação, de sentido
clássico, só permitida, em regra, ao indivíduo que fosse realmente o titular
do direito a ser tutelado. Poder-se-á, pois, afirmar que se trata de ação
pública porque não se cinge à esfera dos interesses singulares, consagrada
pela doutrina individualista das ações, mas, ao contrário, visa a alcançar
interesses grupais da sociedade17

Teria como seu principal objetivo a busca pela responsabilização por danos
causados ao meio ambiente, aos consumidores a ao patrimônio cultural e natural
do País ou por qualquer ato ilegal, através de prestação pecuniária de quem causou
o dano ou através do estabelecimento de obrigações de fazer ou não fazer. Logo
estamos tratando de lesão ou ameaça ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem
econômica, a livre concorrência, ao patrimônio histórico, ao patrimônio turístico,
ao patrimônio artístico, ao patrimônio paisagístico, ao patrimônio estético, bem
como a qualquer outro interesse difuso ou direito coletivo.
Contudo, a ênfase da análise em questão é sobre a tutela de direito coletivo,
que, por definição do Código de Defesa do Consumidor em seu art. 81 revela que:

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:


I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;

17 – CARVALHO FILHO, J. dos S. Ação Civil Pública. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

213
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os


decorrentes de origem comum. (Brasil, Lei 8.078)

O interessante em relação aos direitos coletivos propriamente dito, quer


nos dizer que ligados entre si poderá ser observada a partir de suas concepções:
1) relação institucional como através de uma associação, sindicato, federação;
ou 2) o vínculo estaria centrado na relação jurídica com a parte contrária. Tal
fator é relevante porque a associação não é uma imposição constitucional, o que
não poderia ser impeditivo da tutela de direitos coletivos, nesse sentido o direito é
coletivo em face de seu objeto.
Certamente destacado é o nível de efetividade dessas demandas coletivos
no restabelecimento de direitos, esta se tratando de uma significativa economia
de demandas individuais que certamente ocasionariam um maior número de
demandas e conseqüentemente uma maior demora na apreciação e concessão
da tutela jurisdicional. Casos em que exista relevância social a ação civil pública
mostra-se adequada a tutela desses direitos coletivos tanto sob o aspecto do direito
material invocado, como da celeridade processual na solução da demanda.
O acórdão paradigma a ser analisado neste artigo é a apelação em Ação
Civil Pública nº 70049971815 (N° CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Trata-se
de apelação que confirmou a decisão de primeiro grau. Na ementa encontra-se a
seguinte partícula:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PISO SALARIAL


PROFISSIONAL NACIONAL PARA OS PROFISSIONAIS DO
MAGISTÉRIO PÚBLICO DA EDUCAÇÃO BÁSICA. DEMANDA
PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS18.

Note-se que o Tribunal de Justiça entendeu se tratar de direitos individuais


homogêneos. Existiu, aqui, um incorreto enquadramento, já que se trata claramente
de direito coletivo, nos termos do inciso II, parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078

18 – BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação Civil Pública nº 70049971815 (N°
CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Relator Des. Miguel Ângelo. Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/112967664/apelacao-e-reexame-necessario-reex-70049971815-rs/inteiro-teor-
112967673?ref=serp. Acesso 02 de julho de 2018.

214
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

(Código de Defesa do Consumidor), pois se trata de direito no qual há uma relação


jurídica base e ligação com a parte ex adversa, e não uma origem de fato comum,
como é o caso dos direitos individuais homogêneos.
O Relator foi o Desembargador Miguel Ângelo. A apelação exigiu o
enfretamento de uma série de preliminares, as quais não serão aqui analisadas.
Argumento interessante, mas também fora dos objetivos deste artigo, é o relacionado
com o federalismo. Entendeu-se que a referida norma não afronta o federalismo,
já que é possível que a Constituição estabeleça obrigações aos Estados-membros e
Municípios, como o fez em diversos dispositivos.
Quando do enfretamento do mérito, chama a atenção o seguinte trecho:
Com efeito, no Estado democrático de direito incumbe ao Judiciário, nos
limites de sua competência e no exercício da atividade típica da jurisdição, dizer
o direito aplicável ao caso concreto, fazendo-o sem receio de desagradar a quem
quer seja, em ordem a fazer cumprir a Constituição da República e as leis vigentes
no país19.
Tem-se, aqui, a divisão entre discursos de justificação, antes explicitados, e
os discursos de aplicação.
Os discursos de aplicação também estão estruturados em razões. Porém
a configuração é diversa. São analisadas as normas candidatas à aplicação ao
caso, selecionados todas as circunstâncias relevantes e feita uma reconstrução
dos argumentos de base para fins de interpretação. Enquanto que os discursos
de justificação, a partir dos parâmetros anteriormente postos, está orientado à
universalidade, os discursos de aplicação estão orientados à adequação:

For this reason, the application of norms calls for argumentative


clarification in its own right. In this case, the impartiality of judgment
cannot again be secured through a principle of universalization; rather,
in addressing questions of context-sensitive application, practical reason
must be informed by a principle of appropriateness (Angemessenheit).
What must be determined here in which of the norms already accepted

19 – BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação Civil Pública nº 70049971815 (N°
CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Relator Des. Miguel Ângelo. Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/112967664/apelacao-e-reexame-necessario-reex-70049971815-rs/inteiro-teor-
112967673?ref=serp. Acesso 02 de julho de 2018.

215
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

as valid is appropriate in a given case in the light of all relevant features


of the situation conceived as exhaustively as possible20.

O Tribunal, aqui, reconheceu que a sua especialidade reside nos discursos


de aplicação, e não de justificação.
O desembargador adotou como razões de decidir a doutrina de Andreas
Krell. Os seguintes trechos aqui citados indicam uma adesão aos argumentos de
base apresentados. Observe-se o seguinte trecho:

Por outro lado, certas matérias, devido a sua importância e


particularidades, deixam pouco espaço para inovação ou particularização
estadual ou local; nesses casos, cabe um disciplinamento homogêneo
mediante normas da União que devem garantir a segurança, certeza e
igualdade para todas as pessoas políticas federativas21.

Entende-se, aqui, que o piso adquire tal relevância que ultrapassa os limites
das comunidades presentes nos Estados-membros.
O caráter de missão de superação da humilhação por que sofrem os
professores também veio através do uso da fala do supracitado autor:

“Deve ser considerado também que em um Estado intervencionista


como o brasileiro, que tem a sua base numa Constituição dirigente e deve
atender às complexas exigências da sociedade, ‘atenua as fronteiras entre
as competências dos órgãos estatais’, o que leva à ‘formação de áreas
comuns de atuação’, especialmente no âmbito da função normativa,
onde a Administração preenche cada vez mais espaços, em virtude da
complexidade de regulamentação técnica, da necessidade de celeridade e
da hegemonia política do Poder Executivo22.

20 – HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics. Cambridge:


Mit press, 2001.
21 – BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação Civil Pública nº 70049971815 (N°
CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Relator Des. Miguel Ângelo. Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/112967664/apelacao-e-reexame-necessario-reex-70049971815-rs/inteiro-teor-
112967673?ref=serp. Acesso 02 de julho de 2018.
22 – BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação Civil Pública nº 70049971815 (N°
CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Relator Des. Miguel Ângelo. Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.

216
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

O STF enfrentou a questão na ADI 4.167. A ADI foi reputada improcedente,


com as seguintes linhas de argumentação, em resumo:

“Ementa: CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. PACTOFEDERATIVO


E REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA. PISONACIONAL PARA
OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃOBÁSICA. CONCEITO DE
PISO: VENCIMENTO OUREMUNERAÇÃO GLOBAL. RISCOS
FINANCEIRO EORÇAMENTÁRIO. JORNADA DE TRABALHO:
FIXAÇÃODO TEMPO MÍNIMO PARA DEDICAÇÃO A
ATIVIDADESEXTRACLASSE EM 1/3 DA JORNADA. ARTS. 2º,
§§ 1º E 4º, 3º,CAPUT, II E III E 8º, TODOS DA LEI 11.738/2008.
CONSTITUCIONALIDADE. PERDA PARCIAL DE OBJETO.1.
Perda parcial do objeto desta ação direta deinconstitucionalidade,
na medida em que o cronograma deaplicação escalonada do piso de
vencimento dos professores daeducação básica se exauriu (arts. 3º e 8º
da Lei 11.738/2008).2. É constitucional a norma geral federal que fixou
o pisosalarial dos professores do ensino médio com base novencimento,
e não na remuneração global. Competência daUnião para dispor
sobre normas gerais relativas ao piso devencimento dos professores da
educação básica, de modo autilizá-lo como mecanismo de fomento ao
sistema educacionale de valorização profissional, e não apenas como
instrumentode proteção mínima ao trabalhador.3. É constitucional a
norma geral federal que reserva opercentual mínimo de 1/3 da carga
horária dos docentes daeducação básica para dedicação às atividades
extraclasse.Ação direta de inconstitucionalidade julgadaimprocedente.
Perda de objeto declarada em relação aos arts. 3ºe 8º da Lei 11.738/2008.23”

Sobre o tema da jornada de trabalho, em específico, existiu empate, de modo


que a questão ainda está em aberto na jurisprudência federal, estando pendente
a resolução do tema 958 do STF. O TJRS, contudo, resolveu a questão no nível
estadual no incidente de inconstitucionalidade nº 70059092486. Neste incidente
foi considerado inconstitucional a fixação de carga horária.

com.br/jurisprudencia/112967664/apelacao-e-reexame-necessario-reex-70049971815-rs/inteiro-teor-
112967673?ref=serp. Acesso 02 de julho de 2018.
23 – Brasil, Supremo Tribunal Federal. (ADI 4.167, rel. min. Joaquim Barbosa,Pleno, DJe de 24.08.2011)

217
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO


4º DO ARTIGO 2º DA LEI FEDERAL Nº 11.738/08. CARGA
HORÁRIA DOS PROFISSIONAIS DO MAGISTÉRIO PÚBLICO DA
EDUCAÇÃO BÁSICA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL
ORGÂNICA E MATERIAL. PACTO FEDERATIVO E IGUALDADE.
VIOLAÇÃO. Insuperável o vício de inconstitucionalidade da norma
federal que estabelece a jornada de trabalho para os profissionais do
magistério público da educação básica, invadindo a competência dos
demais entes federados, em clara extrapolação ao que lhe cometera o
disposto no Artigo 60, inciso III, alínea “e” do ADCT - que se restringe
à fixação de um piso nacional para a categoria. Inconstitucionalidade
formal orgânica. A Lei 11.378/08 é de caráter nacional, não se resumindo
ao âmbito da União. Violação ao Pacto Federativo. A Carta Maior
consagra na figura do Presidente da República a iniciativa legislativa
privativa para as leis que disponham sobre “servidores públicos da União
e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e
aposentadoria”, ex vi do artigo 61, § 1º, inciso II, alínea “c”. A redação
é de observância obrigatória pelos Estados-membros, já que Princípio
Constitucional Extensível (simetria) que integra a estrutura da federação,
observada, portanto, também pelos Municípios. Precedentes do STF.
Ao dispor sobre jornada de trabalho dos profissionais do magistério
público da educação básica em nível nacional, não apenas o legislador
federal extrapolou os limites estabelecidos pela Constituição Federal, no
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - no artigo 60, inciso
III, alínea “e”, como, comprometendo o pacto federativo, adentrou na
competência dos demais entes federados para estabelecerem a própria
legislação a respeito do regime jurídico dos seus servidores públicos.
Inconstitucionalidade material: viola o princípio da isonomia a Lei que
trata de forma igual situações absolutamente desiguais, como são as
diferentes realidades vivenciadas pelas mais diversificadas comunidades ao
longo do território nacional. INCIDENTE JULGADO PROCEDENTE
PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DO § 4º DO
ARTIGO 2º DA LEI 11.738/2008, POR MAIORIA. (Incidente de
Inconstitucionalidade Nº 70059092486, Tribunal Pleno, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Redator: , Julgado em
26/05/2014)

218
Ação Civil Pública e piso salarial de professores na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e
qualificação do serviço público via controle da Administração Pública: racionalidade e fundamentação

Como se vê, a razão de decidir está vinculada com a autorização da


Constituição Federal.
Posteriormente a ADI 4.848 veio a questionar justamente a possibilidade de
a União estabelecer os percentuais de reajuste, novamente sem sucesso.
Analisando-se a jurisprudência posterior à ACP 0303773-53.2012.8.21.7000
foi possível notar a eficácia desta. De fato, a referida ACP configurou-se como
um elemento de referência dentro do sistema, a partir da qual passaram a orbitar
subteses, dando segurança aos professores.

4 CONCLUSÃO

A título de conclusão do presente trabalho, foi possível estabelecer que o piso


salarial possui forte sustentação argumentativa. Ao procurar a jurisprudência do
TJRS, esta argumentação apareceu implícita, uma vez que as controvérsias giraram
mais em torno do sentido de federalismo do que propriamente a necessidade
de valorização da educação e do trabalho do professor. Tal linha argumentativa
é interessante por que coloca fora de questão que a educação é prioridade, mas,
entretanto, não permitiu uma visualização do pensamento o tribunal a respeito.
De todo modo, existiu uma superação da ética local em favor de argumentos
de moralidade. Ao se reconhecer a existência de pautas nacionais, cuja importância
transcende o âmbito regional, foi reconhecido, pelo menos no caso da educação, uma
certa primazia do argumento moral. Esta primazia do argumento moral permitiu
que a ação civil pública, enquanto ação de controle, pudesse ser utilizada para fins de
compelir o Estado do Rio Grande do Sul a cumprir a lei. Além da evidente vantagem
proporcionada pela obrigação de fazer, a fixação da tese foi útil também no que toca
à criação de subteses, como o da incidência de adicionais sobre o piso.

5 REFERÊNCIAS

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. (ADI 4.167, rel. min. Joaquim


Barbosa,Pleno, DJe de 24.08.2011. Acesso em 04 de julho de 2018.

219
Caroline Muller Bittencourt e Janriê Rodrigues Reck

BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação Civil Pública nº


70049971815 (N° CNJ: 0303773-53.2012.8.21.7000). Relator Des. Miguel Ângelo.
Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/112967664/apelacao-
e-reexame-necessario-reex-70049971815-rs/inteiro-teor-112967673?ref=serp.
Acesso 02 de julho de 2018.
CARVALHO FILHO, J. dos S. Ação Civil Pública. 4. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.
DIDIER JR, Fredie (Org.). Ações constitucionais. 6ª Ed. Salvador:
Jusdium, 2013.
DIMOULIS, Dimitri. Curso de processo constitucional: controle de
constitucionalidade e remédios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral. Justificação
e aplicação. Tradução de Claudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Instituto Piaget:
Lisboa, [s.d.].
HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I.
HABERMAS, Jürgen. Justification and Application: Remarks on
Discourse Ethics. Cambridge: Mit press, 2001.
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa, I. Madrid:
Taurus, 1999.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro
Ferreira. Lisboa: Edições 70, 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,
Daniel. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
STERN, Klaus. Derecho Del Estado da República Federal da Alemanha. Madrid:
Madrid, 1987.

220
A IMPROBIDADE DOS MUNICÍPIOS
EM MATÉRIA DE SAÚDE PÚBLICA

Ricardo Hermany1
Betieli da Rosa Sauzem Machado2

INTRODUÇÃO

O Brasil passa por uma das mais severas crises política e financeira, onde em
linhas gerais pessoas egoístas através de determinadas ações buscam a promoção
de seus objetivos individuais sem se preocupar com a coletividade. Tal crise afeta
significativamente a saúde pública, pois por meio de atos ímprobos se executam
as políticas públicas de forma ineficiente e precária, pondo em risco a vida de
muitos indivíduos, resultando, também, em intermináveis filas para a realização
de cirurgias e exames, bem como para se conseguir os medicamentos adequados,
ou seja, tais atos consequentemente acabam gerando um colapso e um possível

1 – Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003) e Doutor em Doutorado sanduíche
pela Universidade de Lisboa (2003); Pós-Doutor na Universidade de Lisboa (2011); Professor da graduação
e do Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado da Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC; Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1999); Coordenador do grupo de
estudos Gestão Local e Políticas Públicas – UNISC. E-mail: hermany@unisc.br
2 – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da Universidade
de Santa Cruz do Sul - UNISC, com bolsa CAPES/PROSUP, modalidade II. Graduada em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2016). Advogada. E-mail: betielisauzem@yahoo.
com.br
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

conflito entre os poderes da república, surgindo com isso a judicialização da


saúde. Nesse sentido, o modelo de Estado democrático é considerado como ponto
essencial para a busca da boa aplicação dos recursos públicos de saúde e a punição
para os indivíduos que desvirtuam e desviam estes recursos, deixando a população
a sua própria sorte.
Dito isso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) passa a ser
visto como um mecanismo na busca para se frear e combater as condutas ímprobas
nos governos locais. Desse modo, a pesquisa tem como objetivo a análise de
acórdãos referentes a atos de improbidade municipais em saúde pública. Assim, se
questiona: a) quais os atos e condutas se configuram como improbidade em matéria
de saúde? B) O TJ/RS, diante de um suposto caso de improbidade administrativa
em saúde, tende a se posicionar de que forma?
Visando responder ao problema da pesquisa dividiu-se a investigação em três
momentos. Primeiramente, far-se-á uma abordagem do papel dos municípios na
saúde pública, analisando-se a divisão de competências entre os entes, com enfoque
no que compete aos municípios, sob a lógica do princípio da subsidiariedade e do
federalismo cooperativo, bem como a previsão de financiamento da saúde pública.
No segundo, abordar-se-á o conceito de atos de improbidade, suas espécies e
sanções previstas na lei 8.429 de 1992, e, ainda, as possíveis consequências para a
saúde pública. Por fim, serão analisados acórdãos do TJ/RS vinculados a atos de
improbidade municipais na saúde.
Os acórdãos analisados foram coletados no sítio eletrônico “www.tjrs.jus.
br”, no espaço Jurisprudência, por meio da guia Pesquisa de Jurisprudência.
Utilizou-se a ferramenta “busca avançada” para delimitar o lapso temporal da
pesquisa em cinco anos, tendo sido selecionados, desta forma, acórdãos julgados
entre 15/06/2013 e 15/06/2018. Assim, ilustradamente, o preenchimento dos
campos para pesquisa quantitativa na área de busca avançada utilizou-seos termos
da seguinte forma: Busca: ato de improbidade municipais em saúde; Tribunal:
Tribunal de Justiça do RS; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; Ementa3;

3 – Eis que, se fosse utilizado a alternativa de busca “inteiro teor” filtraria acórdão com referência a
temática apenas, com busca na esfera cível.

222
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

Seção: Cível4; Tipo de processo: Todos5; Número:Nenhum; Comarca de Origem:


Nenhuma; Tipo de Decisão: Acordão; Data de Julgamento: 15/06/2013 até
15/06/2018; Data de Publicação: Nenhum; Procurar resultados: nenhum;
Classificar: por data decrescente.
O presente artigo se justifica pela busca em verificar como o TJ/RS vem
se posicionando diante de possíveis atos de improbidade em matéria de saúde
pública, visando a punição dos gestores e a boa aplicação dos recursos públicos. A
pesquisa foi elaborada por meio da técnica de pesquisa bibliográfica, com consulta
em diplomas legais e periódicos sobre a temática. A metodologia se desenvolveu
em dois momentos: no primeiro, uma dimensão quantitativa, e o segundo, em
dimensão qualitativa, realizando-se uma tiragem das decisões, buscando casos que
envolvam atos de improbidade municipais em saúde. Sendo utilizado o método de
investigação hipotético-dedutivo.

O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA GESTÃO DA SAÚDE PÚBLICA

Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988,


a Democracia foi restaurada, conforme disposto no seu artigo primeiro, surgindo,
assim, os municípios como entes integrantes da federação. Na Constituição
Federal buscou-se a estruturação do Brasil na forma federativa, em uma tentativa
de descentralização estrutural com o intuito de se permitir maior autonomia para
os entes.6 Consequentemente, na Constituição não se estabeleceu a federação
decentralizada em um todo, mas sim uma descentralização em partes, passando
a existir três ordens de poder, sendo elas: uma ordem total – à União -, as ordens
regionais – composta pelos estados-membros -, e as ordens locais – os municípios.7

4 – Se fosse utilizado o filtro do TJ/RS selecionando também a seção criminal o mecanismo de busca
reportaria, também, para os crimes de corrupção passiva e ativa, sendo que estes não fazem parte do
objeto da presente investigação.
5 – Porque ao ser selecionado um tipo de processo em específico, a busca não corresponderia com o
número real de ações.
6 – BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado Federal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004.
7 – CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição Direito
Constitucional Positivo. 15 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

223
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

Desse modo, à ordem total ao mesmo tempo em que prevê e reconhece


os estados-membros e os municípios, concede-lhes competências e rendas8. Nesse
diapasão, é importante destacar que se torna uma singularidade do Estado brasileiro
os municípios serem reconhecidos como entes federados dotados de autonomia,
pois os demais Estados não outorgam para os seus entes locais as competências de
autogoverno, autoadministração e auto legislação.9
Nesse sentido, conforme Tavares10, a Constituição Federal expressa que os
municípios compõem a federação e são dotados de autonomia de acordo com os
artigos 1°, 18 e 34. Assim, o artigo 1° expressa que a República brasileira é formada
pela união indissolúvel dos estados-membros, municípios e Distrito Federal. Já o
artigo 18 dispõe que a organização político-administrativa brasileira é composta
pela União, pelos estados-membros, Distrito Federal e municípios. E o artigo 34
assegura e reconhece a autonomia municipal.
Consequentemente, a autonomia municipal se consagra com o processo
de descentralização – política, financeira e administrativa -, compartilhada
entre os entes da federação (União, estados-membros e municípios).11 Desta
forma, a autonomia municipal se caracteriza através da tríplice capacidade,
citada anteriormente, isto é: capacidade de auto-organização, a qual inclui a
autolegislação; a autoadministração; e o autogoverno.12
  A Constituição Federal de 1988 passou a externar um federalismo
cooperativo e de equilíbrio.13 Estabelecendo competências comuns e concorrentes
à União, aos estados-membros, ao Distrito Federal e aos municípios, conforme
os artigos 23 e 24 da Constituição. Eis que nas competências comuns, todos os
entes federativos buscam o exercício de ações cooperativas com relação à certas
matérias, tendo como princípio basilar o princípio da predominância do interesse,
pois cabe a União resolver questões e matérias que sejam referentes ao interesse
geral, aos estados-membros refere-se as matérias ligadas ao interesse regional e

8 – Idem
9 – MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
10 – TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
11 – ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2005.
12 – TAVARES, André Ramos, Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
13 – ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2000.

224
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

para os municípios pertence a resolução de assuntos em âmbito local (MORAES,


2011)14.
  A Constituição estabeleceu um rol de competências municipais nos seus
artigos. 29 a 31, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, com a enumeração destas competências os municípios
tornam-se entes federados e dotados de autonomia, onde passaram a ter o poder de
elaborar suas próprias Leis Orgânicas, as quais são elaboradas pelo Executivo ou
Legislativo, sem que sofram interferência dos estados-membros ou da União.
Portanto, é importante verificar que o princípio da subsidiariedade se
articula em conjunto com o federalismo cooperativo, onde o desempenho das
responsabilidades públicas deve ser atribuído, preferencialmente, às autoridades
que estejam mais próximas dos cidadãos, ao passo que para ser realizada a
atribuição de responsabilidade de uma autoridade para outra é necessário que
se leve em conta a amplitude e a natureza da tarefa, bem como as exigências de
eficácia e economia.15 Assim, Baracho16 ensina que, o princípio da subsidiariedade
indica duas dimensões, sendo elas: uma horizontal, que se enquadra no espaço
local próprio distribuindo o poder entre sociedade e governo; e apresenta outra
dimensão vertical, eis que nessa dimensão permeasse o máximo de competências
aos entes menores.
Por consequência, Krell17 leciona que o princípio da subsidiariedade auxilia
para o federalismo cooperativo, o qual estabelece um modelo ideal, para relação
entre os governos, fundado na divisão de tarefas, existindo uma mistura entre
as atribuições dos entes federados, fazendo-se necessário a existência de alguns
mecanismos que tragam viabilidade para as ações conjuntas nas políticas e que
garantam, assim, a participação e a representação de todos os atores da federação.
Desse modo, o sistema de cooperação entre os governos começa através do
reconhecimento de que cada uma das unidades têm o dever de contribuir com
as demais, visando a orientação, controle e coordenação do processo político-
administrativo.18

14 – MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed., rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2011. 
15 – MARTINS, Margarida Slema D’ Oliveira. O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-
política. Coimbra: Coimbra, 2003.
16 – BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 1997.
17 – KRELL, Joachim Andreas. Leis de normas gerais, regulamentação do Poder Executivo e cooperação
intergovernamental em tempos de Reforma Federativa. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
18 – Idem

225
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

Desta forma, o federalismo cooperativo se efetiva através da repartição de


competências verticais, respaldando-se no fato de que o governo central, regional
e local tem como propósito o desempenho da atividade estatal que beneficie o
cidadão. Ao passo que o federalismo necessita encarregar-se de uma cooperação
subsidiária que fortaleça o auxílio aos entes menores, quando estes não alcancem
a realização das tarefas sozinhos.19
Quanto à competência administrativa, referente à saúde, é comum a
todos os entes federados, onde as atribuições para a prestação do referido direito
encontram-se elencadas no artigo 23, inciso II da Constituição.20 Neste sentido, o
direito à saúde foi concebido pela Constituição de 1988 como direito fundamental
social, uma vez que assim está disposto no Capítulo II, o qual aborda os direitos
sociais, conforme o rol do artigo 6º da Constituição.21 Desse modo, Silva22 refere
que a evolução do direito a saúde conduziu a Constituição de 1988 a declarar tal
direito como um direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido através
de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e demais
agravos, bem como o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
proteção, promoção e recuperação; e ações e serviços de relevância pública, de
acordo com os artigos 196 e 197 da Constituição.
Por serem os serviços e ações de saúde de relevância pública, a vista disso
ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, controle e fiscalização do poder
público, nos termos da lei, os quais podem ser executados através de terceiros ou
diretamente, por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Desta forma, se
a Constituição outorga ao poder público o controle dos serviços e das ações de
saúde, significa que este detém integralmente o poder de dominação – no sentido
de controle, quando este estiver associado a fiscalização.23

19 – Idem
20 – Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
(BRASIL, 1988, < http://www.planalto.gov.br>).
21 – Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988, < http://www.planalto.gov.br>, grifos
nossos).
22 – SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed., rev. e atual., São Paulo:
Malheiros Editores Ltda., 2005.
23 – Idem

226
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

A Constituição Federal reforçou a essencialidade e relevância dos serviços


de saúde, no capítulo específico sobre – Título VIII da ordem social, capítulo II,
seção II da saúde -, ou seja, este capítulo aduz que as diretrizes do serviço público
de saúde, devem ser prestados na forma de um Sistema Único de Saúde (SUS)24,
que orientem os meios para o seu financiamento, conforme está disposto no artigo
198 da Constituição.25 Nessa perspectiva, como leciona Pivetta26, à normativa
constitucional transformou a forma do Estado intervir na saúde, dado que passou
de um modelo com caráter excludente e privatista para um sistema de acesso
universal e público, o qual detém diretrizes expressas que visam orientar a atuação
do administrador público e do legislador infraconstitucional.
A Carta Constitucional quanto ao serviço geral de saúde fez previsão
expressa em seus artigos 30, inciso VII e 198, inciso I, onde indica a prestação
hierarquizada e descentralizada diretamente pelos municípios e indiretamente –
cooperação financeira e técnica - pelos estados-membros e pela União, consagrando
o princípio da eficiência, por questões estruturais, organizacionais e de eficiência.
Vale referir ainda que a lei 8.080/90 traz as atribuições de cada ente federativo no
Sistema Único de Saúde (SUS), sendo previsto no artigo 18 da referida norma as
atribuições dos entes locais na execução direta dos serviços de saúde.
Desse modo, compreende-se que os serviços de saúde são de responsabilidade
de todos os entes federativos, de forma direta ou indireta. Nesse sentido, pela
leitura dos dispositivos supracitados, percebe-se que a descentralização equivale
na prestação direta pelos entes locais, por estarem mais próximos à população,
assim sendo mais capazes na identificação de como, onde e quais os serviços de
saúde urbana devem ser prestados. Pela ciência de que os serviços de saúde são

24 – Nos entes locais o SUS é composto mediante as secretarias de saúde e dos fundos municipais de
saúde.
25 – Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada
e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização,
com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. § 1º
O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da
seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
(BRASIL, 1988, < http://www.planalto.gov.br>).
26 – PIVETTA, Saulo Lindorfer. Direito fundamental à saúde: Regime jurídico-constitucional, políticas
públicas e controle judicial. 2013. 270f. (Dissertação Mestre em Direito do Estado - Ciências Jurídicas),
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.

227
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

numerosos, onerosos e de que os recursos municipais são limitados, designou-


se competência para os estados-membros e para União prestarem cooperação
financeira e técnica, isto é, por intermédio da prestação indireta do serviço.
O indivíduo que necessitar de atendimento no SUS se localiza no município,
eis que este sistema envolve aspectos federativos de cooperação entre os entes. Por
esse motivo reforça-se que o princípio da subsidiariedade merece ser interpretado em
consonância com o federalismo, onde se busca descentralizar, sem se desconectar da
essência das atividades descentralizadas, isto é, o ente que delega a outra entidade ou
esfera não deve se ausentar. Eis que, no federalismo, o princípio da subsidiariedade
consubstancia-se em dever auxiliar a criação de novos meios – notadamente
de financiamento - que auxiliem e estimulem os interesses locais e regionais,
representados, respectivamente, pelos municípios e pelos estados-membros.27
A Constituição Federal expressa uma preocupação com o financiamento
da saúde, tanto que no artigo 195, em sua redação originária, trazia previsão de
financiamento à seguridade social – que abarca saúde, assistência social e previdência.
No entanto, não existia uma previsão de recursos minimamente suficientes para à
saúde. Com o advento da Emenda Constitucional (EC) 29 passaram a ser previstos
percentuais mínimos de aplicação de recursos orçamentários. Logo, antes da EC
29 a saúde era financiada com recursos da seguridade social, isto é, por meio de
contribuições das sociais e, a partir dessa Emenda, a saúde passou a ser financiada,
também, com recursos dos impostos. 28 Inicialmente, conforme previsto no artigo
198, em seu parágrafo segundo e incisos29, o mesmo não anteviu os índices mínimos

27 – ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2005.
28 – BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê Rodrigues Democracia deliberativa, teoria da
decisão e suas repercussões no controle social das despesas em saúde. Revista de Direito Econômico e
Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 1, p. 121-147, jan./abr. 2017.
29 – Art. 198: § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em
ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados
sobre: I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo
ser inferior a 15% (quinze por cento); II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso
I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no
caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art.
156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. (BRASIL, 1988, <http://
www.planalto.gov.br>).

228
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

de repasse, em razão de que apenas fez previsão, em seu parágrafo primeiro, que
o SUS deveria ser financiado com os recursos da seguridade social, da União, dos
estados-membro, do Distrito Federal e dos municípios.
No entanto, coube ao poder constituinte derivado reformador, realizar a
fixação de tais índices. Dessa maneira a fixação dos percentuais mínimos se deu
mediante a aprovação da emenda constitucional nº 29/2000, acrescentando, assim,
o artigo 77, caput e inciso II ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT). Em consequência, foi estabelecido que até o exercício financeiro de 2004
os recursos mínimos que deveriam ser executados nas ações e serviços públicos de
saúde seriam correspondentes no caso dos estados-membros e do Distrito Federal,
a 12% do produto da arrecadação dos impostos no que se refere o artigo 155 e dos
recursos dispostos nos artigos 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzindo,
assim, as parcelas que fossem transferidas aos municípios.
Ainda, adicionou o inciso III ao mesmo artigo, o qual definiu que no caso
dos municípios e do Distrito Federal o percentual que deveria ser executado seria
o equivalente a 15% do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o
artigo 156 e também dos recursos previstos nos artigos 158 e 159, inciso I, alínea b
e parágrafo 3º da Constituição.
Em decorrência disso, em meados de 2012, com a advento da Lei
Complementar 141/2012, foi reafirmado o dever dos estados-membros e do Distrito
Federal aplicarem o percentual mínimo de 12% da arrecadação dos impostos em
ações e serviços de saúde, com fundamento no artigo 6° da norma em comento.30
Além disso, a Lei complementar confirmou para os municípios e o Distrito Federal
a aplicação do percentual mínimo de 15%, conforme artigo 7° desta lei.31
A partir destas premissas, passa-se, no próximo tópico, ao exame da
conceituação dos atos de improbidade, um breve estudo da lei 8.429/1992 e suas

30 – Art. 6o  Os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de
saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos
recursos de que tratam o  art. 157, a  alínea “a” do inciso I  e o  inciso II do caput do art. 159, todos
da Constituição Federal, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios.
(BRASIL, 2012, < http:// www.planalto.gov.br>).
31 – Art. 7o  Os Municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente em ações e serviços públicos
de saúde, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e
dos recursos de que tratam o art. 158 e a alínea “b” do inciso I do caput e o § 3º do art. 159, todos da
Constituição Federal. (BRASIL, 2012, < http:// www.planalto.gov.br>).

229
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

respectivas sanções quando configurado o ato ímprobo, e ainda, as possíveis


consequências para a saúde pública.

OS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E OS


RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS PARA SAÚDE PÚBLICA

A corrupção subtrai verbas imprescindíveis para a saúde pública, pois com


essas práticas corruptivas compromete-se o bem-estar dos indivíduos indiretamente,
eis que acaba impedindo-os de ter acesso à prevenção de doenças que poderiam ser
erradicadas, ou seja, existe o impedimento ao tratamento de males que poderiam
ser curados facilmente ou de sofrimentos que poderiam ser suavizados. Com tal
prática delitiva, da corrupção na saúde pública, muitas vidas podem ser encurtadas,
injustamente, condenando indivíduos, acometidos de doenças a terem uma morte
precoce. Por isso, a corrupção não deve ser aceita na vida social.32
Todavia, buscando-se responder o problema da pesquisa, é importante o
estudo do ato de improbidade, mas vale ressaltar que existe uma certa confusão
entre os termos “improbidade administrativa” e “corrupção passiva”. Nesse
sentido, Lucas33 ensina que, a corrupção passiva é uma modalidade delituosa
exercida contra a administração pública por um funcionário público, isto é, este
para configurar a conduta delitiva deve solicitar, aceitar ou receber vantagens
indevidas, de qualquer natureza, em razão de sua função. Desse modo, pode-se
dizer que a corrupção passiva e o ato de improbidade administrativa detêm uma
relação de gênero e espécie, onde toda corrupção passiva é ato de improbidade
administrativa, contudo nem todo ato de improbidade administrativa é configurado
como corrupção passiva.
Assim, os atos de improbidade administrativa devem ser investigados
através de ação própria – ação civil pública –, sendo que, conforme o artigo 17 da
Lei 8.429, o Ministério Público é o legitimado para propor a ação de improbidade
administrativa; ou devem ser investigados por meio de processos administrativos
no âmbito do órgão que pertence o acusado. Nesse sentido, Pezzaglini Filho

32 – AMARRIBO, Amigos Associados de Ribeirão Bonito. O Combate à corrupção nas prefeituras do


Brasil. 5. ed. São Paulo: 24X7 Cultural, 2012.
33 – LUCAS, Ana Cláudia. Corrupção, como ilícito penal versus Improbidade Administrativa, ilícito de natureza
diversa, 2011.

230
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

et. al.34 explanam que a corrupção administrativa possibilita o desvirtuamento


da administração pública e ofende os princípios da ordem jurídica – o Estado de
Direito, Democrático e Republicano. Sendo que a improbidade administrativa é
mais do que a atuação em desconformidade com o que diz a lei, mas é caracterizada
como a conduta denotativa de subversão as finalidades da administração pública,
podendo se configurar por intermédio do uso ilegal e imoral do poder público, pela
omissão indevida na atuação funcional e pela inobservância culposa ou dolosa das
normas legais.
Nessa perspectiva, a improbidade administrativa se desvela como uma ação
ou omissão que descumpre o dever constitucional de moralidade no desempenho da
função pública, ocasionando a imposição de sanções civis, administrativas e penais,
de maneira cumulativa ou não, como estabelecido em lei. Com relação ao ato de
improbidade, o artigo 37, §4° da Constituição35 prevê que os ato de improbidade
administrativa podem acarretar a suspensão de direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário, sem que com isso
haja o prejuízo da ação penal cabível. Sendo tal matéria regulamentada pela Lei
8.429 de 06 de junho de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA).36
Existe a quebra do dever de probidade administrativa quando o indivíduo
age com desonestidade, assim, segundo Calil37, o ímprobo pode ser caracterizado
como aquele que não cumpre as regras morais, costumeiras e sociais, atuando
sempre contra estes princípios, sendo que todo indivíduo ímprobo é privado de
idoneidade.
A lei supracitada, foi promulgada para regulamentar devidamente o artigo
37, § 4º da Constituição, por isso é previsto na norma em comento os seguintes

34 – PAZZAGLINI Filho; et. al. Improbidade Administrativa: aspectos jurídicos da defesa do patrimônio
público. São Paulo: Atlas, 1999.
35 – Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 4º Os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens
e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
(BRASIL, 1988, < http:// www.planalto.gov.br>).
36 – JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo.  12. ed., rev., atual. eampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016.
37 – SIMÃO, Calil. Improbidade Administrativa: teoria e prática. 2. ed. Leme-SP: Editora Distribuidora
JHMIZUNO, 2014.

231
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

conteúdos: os sujeitos ativos e passivos do ato e improbidade; a tipologia da


improbidade, isto é, quais são os atos de improbidade administrativa; as sanções; e,
os procedimentos administrativos e judiciais.38 Assim a improbidade administrativa
considerada como uma conduta abusiva praticada por agentes estatais, isto é,
por sujeitos que manifesta ou forma a vontade estatal. Assim, o artigo 2° da lei
8.429/1992 apoia uma ampla qualificação para agente estatal. Já o artigo 3°, da
lei 8.429/1992, sujeita ao sancionamento àquele que, mesmo que não atue como
agente estatal, tenha concorrido para o benefício ou consumação dos atos de
improbidade.39
Consequentemente, a norma caracteriza como improbidade administrativa
os atos que resultam em enriquecimento ilícito – artigo 9°; que geram prejuízo ao
erário – artigo 10; ao passo que a referida norma qualifica também os atos que
atentam contra os princípios da administração pública – artigo 11, considerados
como por exemplo: retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício
– inciso II ; negar publicidade aos atos oficiais – inciso IV; frustrar a licitude de
concurso público – inciso V ; deixar de prestar contas quando seja obrigado a fazê-
lo – inciso VI.40 Desse modo, quanto aos atos de improbidade que geram prejuízos
ao erário, existe uma divergência e discussão com relação a conduta ser culposa
ou não, sendo necessário o efetivo dano à coletividade em decorrência do dano
ao erário. Ademais, o descumprimento dos princípios da administração pública
é aplicado de maneira subsidiária, ou seja, quando não houver o enquadramento
nos artigos 9° e 10, eis que as três previsões da lei 8.429/1992 violam os princípios
citados, todavia o artigo 11 será aplicado quando não possuir o enriquecimento
ilícito ou prejuízo ao erário.41
Osório42 leciona que existe um amplo rol de condutas ímprobas e destaca
as principais: subornos e propinas; e a dispensa indevida de concursos públicos e

38 – DONIZETTI, Elpídio; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de processo coletivo. São Paulo:
Atlas, 2010.
39 – JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo.  12. ed., rev., atual. eampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016.
40 – MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 18. ed., rev., atual. e ampl. São aulo: Revista
dos Tribunais, 2014.
41 SIMÃO, Calil. Improbidade Administrativa: teoria e prática. 2. ed. Leme: Editora Distribuidora
JHMIZUNO, 2014.
42 – OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: Má gestão pública, corrupção, ineficiência.
3. ed. rev. atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

232
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

licitatórios. Logo, a proibição de receber propina ou suborno no âmbito público


são considerados como os principais meios para se frear as condutas ímprobas
e corruptas. Assim, a dispensa indevida de concursos públicos é outra conduta
ímproba, onde mesmo que não exista o enriquecimento ilícito do gestor público,
configura-se como uma forma de violação ao princípio isonômico de acesso a cargo
público, pois fomenta a criação de patrimonialismo e feudos no setor público.
Ademais, um dos maiores meios de desvio de recursos públicos, apontado
pelo autor, são os processos licitatórios, eis que nas compras públicas não são
analisadas somente a legalidade, mas, também, a falta de probidade que existe antes
de sua ocorrência. Nesse sentido, Osório43 explana que os processos licitatórios
têm servido como um veículo para os atos ímprobos no setor público, pois os
procedimentos licitatórios transformaram-se em escudos para a prática desse
delito, sendo comumente praticado nos processos que envolvem inexigibilidade ou
dispensa de licitação.
Desta forma, o artigo 37, § 4º da Constituição, também, determina os
parâmetros de punibilidade aos agentes infratores, bem como estabelece as balizas
para as sanções constitucionais. Em consequência, o artigo 12 da lei 8.429/1992
aborda as penalizações aplicadas aos responsáveis pelos atos de improbidade.
Nesse sentido, destaca-se que é dever do poder público efetivar o direito a
saúde, o qual é um direito fundamental, cuja garantia é imposta como um dever
de todo os entes da administração pública44. Portanto, os atos de improbidade
administrativa em conjunto com outros meios de desvio de verbas públicas,
acarretam múltiplas consequências, como por exemplo: a judicialização da saúde,
que traz impactos em todo o Sistema Único de Saúde.45 Desse modo, Leal e Ritt46
evidenciam diversos casos que configuram atos ímprobos em matéria de saúde,
sendo inúmeras as circunstâncias em que estão presentes as chamadas “máfias
da saúde”, que superfaturam cirurgias, garantidas e cobertas pelo SUS, e, ainda,

43 – Idem
44 – SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed., rev. e atual., São Paulo:
Malheiros Editores Ltda., 2005.
45 – MAGALHÃES, Jaqueline Silva; ALCARÁ, Marcos. Reflexos da Improbidade Administrativa na
Saúde Pública. In: Revista Jurídica Direito, Sociedade e Justiça/RJDSJ. ISSN - 2318-7034. v. 5. n. 1. Nov-
Dez/2017. p. 156-174.
46 – LEAL, Rogério Gesta; RITT, Caroline Fockink. A Judicialização da Saúde e as Práticas Corruptivas.
Revista Colóquio de Ética, Filosofia Política e Direito. Santa cruz do Sul: Editora da Universidade de Santa
Cruz do Sul, ISSN 2447- 4614. 2015.

233
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

manipulam preços de medicações e remédios. Existindo também a “máfia dos


laboratórios”, que colocam medicamentos experimentais no mercado, por meio
da judicialização, apontando ainda os autores as licitações de medicamentos
executadas de forma fraudulenta.
Assim, outro ponto preocupante que decorre dos atos de improbidade na
saúde pública é o aumento quantitativo de ações judiciais contra o poder público
com o intuito de se ter a concessão de medicamentos, cirurgias e outros tratamentos
médicos, ações judiciais que são causadas por conta da má gestão dos recursos e
dos atos ímprobos praticados47.
A partir desta contextualização de realidade, passa-se a análise de julgados
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, buscando-se verificar como este
Tribunal vem se posicionando - nos últimos cinco anos - em ações que tenham
como temática os “atos de improbidade municipal em saúde”.

ANÁLISE DE JULGADOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO


GRANDE DO SUL REFERENTES A ATOS DE IMPROBIDADE EM
MATÉRIAS DE SAÚDE NA ESFERA LOCAL

Os acórdãos analisados foram coletados no sítio eletrônico “www.tjrs.jus.


br”, no espaço Jurisprudência, por meio da guia Pesquisa de Jurisprudência.
Utilizou-se a ferramenta “busca avançada” para delimitar o lapso temporal da
pesquisa em cinco anos, tendo sido selecionados, desta forma, acórdãos julgados
entre 15/06/2013 e 15/06/2018.
Nesse sentido, ilustradamente, o preenchimento dos campos para pesquisa
quantitativa da área de busca avançada utilizou-seos termos da seguinte forma:
Busca: ato de improbidade municipais em saúde; Tribunal: Tribunal de Justiça
do RS; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; Ementa; Seção: Cível; Tipo
de processo: Todos; Número: Nenhum; Comarca de Origem: Nenhuma; Tipo
de Decisão: Acordão; Data de Julgamento: 15/06/2013 até 15/06/2018; Data
de Publicação: Nenhum; Procurar resultados: nenhum; Classificar: por data
decrescente.

47 – MAGALHÃES, Jaqueline Silva; ALCARÁ, Marcos. Reflexos da Improbidade Administrativa na


Saúde Pública. In: Revista Jurídica Direito, Sociedade e Justiça/RJDSJ, ISSN - 2318-7034, v. 5, n. 1,
Nov-Dez/2017, p. 156-174.

234
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

Desse modo, a metodologia empregada desenvolveu-se em dois momentos:


no primeiro, em sentido quantitativo, no qual foram selecionados os acórdãos
julgados pelo TJ/RS, conforme supracitado; no segundo momento, em sentido
qualitativo, o qual consistiu na análise das decisões, realizando-se uma triagem,
buscando-se apelações cíveis em sede de ações civis públicas, com a temática
que envolvesse “atos de improbidade municipais em saúde”, bem como por
meio da pesquisa quantitativa. Com o objetivo de responder o problema de
pesquisa, analisaram-se, assim, quais as espécies e os tipos de atos de improbidade
administrativa têm sido mais recorrente em condenações e, ainda, as decisões de
absolvição e seus respectivos argumentos.
Assim, das ferramentas de pesquisa utilizadas, transcritas acima, obteve-se
o resultado de 37 (trinta e sete) acórdãos. Destes 37 (trinta e sete), observam-se 32
(trinta e dois) municípios gaúchos envolvidos e 01 (um) estado-membro, a saber: Santa
Cruz do Sul, Chuvisca, Casca, Guaporé, Sinimbu, São Francisco de Paula, Palmeira
das Missões, Alvorada, Arvorezinha, Passo Fundo, Pinheiro do Vale, Santa Maria,
Cidreira, Bom Progresso, Restinga Seca, Santa Bárbara, São Leopoldo, Vacaria,
Lavras do Sul, Westfália, Porto Alegre, Rio Grande, Piratini, Santana do Livramento,
Mariano Moro, São Pedro do Sul, Uruguaiana, Almirante Tamandaré, Tramandaí,
São Nicolau, Barracão, Santo das Missões e Estado do Rio Grande do Sul.
Desse número, destaca-se que 14 (doze) acórdãos não tinham relação com o
objeto da pesquisa. Isso porque um acórdão se tratava de uma ação rescisória48, a
qual não tinha relação com o objeto da pesquisa, outros 04 (quatro) acórdãos, eram
agravos de instrumento49, os quais igualmente não se relacionavam com o objeto
de estudo. Ainda, outro acórdão referia-se a embargo infringente50, porém, não foi
analisado, por não ter relação com a pesquisa, além de um recurso inominado51,
igualmente sem relação com o presente estudo.

48 – Sob n° 70077010866, interposta contra atos do gestor do município de Chuvisca.


49 – Sob n° 70072724669, interposto contra atos ímprobos praticados supostamente pelo gestor do
município de Arvorezinha, porém os atos não eram referentes a saúde. Sob n°700069604056, sem
relação com ato de improbidade em matéria de saúde, atos praticados no município de Pinheiro
Machado. Sob n°70060394012, atos praticados no município de São Leopoldo, apesar de tratar de
atos de improbidade em saúde, na pesquisa forma analisados apenas apelações cíveis. E ainda, sob n°
70062887872, sem relação com o objeto da pesquisa, referente a atos praticados no município de Rio
Grande.
50 – Sob n° 70057923039, no município de Lavras do Sul.
51 – Sob n° 7006323877, no município de Passo Fundo.

235
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

Vale referir ainda outro acórdão - uma apelação cível52 de uma ação civil
pública contra atos ímprobos realizados no município de Mariano Moro, quanto a
um suposto favorecimento de pessoas, as quais detinham renda de até um salário
mínimo, na doação de materiais de construção para reforma de casas - sem relação,
no entanto, com o problema de pesquisa.
Outros dois acórdãos referentes a apelações cíveis53, de ações civis públicas,
foram desconsiderados como partes do problema da pesquisa por se tratarem de
contratação de pessoas para atuarem em uma creche, sem a realização de concurso
público, por intermédio do ex-secretário da saúde; e a suposto ato de improbidade
praticado por ex-secretário da saúde, sem que tais atos tenham relação com a
matéria saúde pública.
E ainda, foi identificada outra decisão de apelação cível54, de uma ação de
responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa, porém, tal acórdão
se tratava de uma apelação interposta por um espólio, sendo que o de cujus causou
prejuízos ao erário ao Caixa de Prestação de Assistência e Serviços de Saúde dos
Servidores Municipais de Passo Fundo, desse modo, sem relação com o problema
de pesquisa.
Identificou-se outra apelação cível55, de uma ação civil pública, interposta
por conta do pagamento de licença saúde para servidor que estava trabalhando
durante o afastamento, no município de São Pedro do Sul. Ainda, outra apelação
cível56, de uma ação civil pública, por conta de pagamento de horas extras a
servidor municipal, de Santana do Livramento, que estava em licença saúde,
caracterizando recebimento em duplicidade, ambas, portanto, desconectadas do
objeto da pesquisa. Por fim, quanto aos acórdãos que não tinham relação com o
estudo presente, foi identificado embargos de declaração57, referente a supostos
atos ímprobos praticados no município de Piratini.
Desse modo, de todos os acórdãos analisados, identificou-se que 23 (vinte
e três) eram apelações cíveis58, referentes a ações civis públicas, quanto a atos de

52 – Sob n° 70039657697.
53 – Sob n° 7005133314, no município de Santa Cruz do Sul. E o outro acórdão sob n° 70064862832,
no município de Casca.
54 – Sob n° 70069604056.
55 – Sob n° 70039657697.
56 – Sob n° 70064371628.
57 – Sob n° 70065842452.
58 – Dos 37 acórdãos identificados nessa pesquisa, 25 possuem vinculo ao objeto da pesquisa e,

236
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

improbidade municipais em saúde, as quais envolviam 22 (vinte e dois) municípios


gaúchos e 01 (um) Estado-Membro, sendo eles: Casca, Guaporé, Sinimbu, São
Francisco de Paula, Palmeira das Missões, Alvorada, Santa Maria, Cidreira, Bom
Progresso, Restinga Seca, Santa Bárbara, Vacaria, Westfália, Porto Alegre, Piratini,
Santana do Livramento, Uruguaiana, Almirante Tamandaré, Tramandaí, São
Nicolau, Barracão, Santo das Missões e Estado do Rio Grande do Sul. E destas 23
apelações cíveis - com vinculo ao objeto da pesquisa - constataram-se 16 (dezesseis)59
casos em que foram configurados como atos ímprobos e outros 07 (sete)60 que não
foram caracterizados como atos de improbidade em matéria de saúde.
Em síntese dos acórdãos, verifica-se que as apelações que resultaram
em condenações de atos ímprobos tinham como partes: os gestores públicos;
os secretários de saúde e terceiros. Também foi constatada nos julgados a
ocorrência das três espécies de atos de improbidade administrativas, presentes na
lei 8.429/1992: os atos que resultam em enriquecimento ilícito (artigo 9°); que
geram prejuízo ao erário (artigo 10); e os atos que atentam contra os princípios da
administração pública (artigo 11).
As situações mais recorrentes verificadas durante a pesquisa de improbidade
administrativa, em matéria de saúde, são: contratação de profissionais na área
da saúde sem concurso público; médicos vinculados ao SUS que realizavam a
cobrança de valores para efetuar procedimentos cirúrgicos, em especial partos;
aquisição de medicamentos sem licitação; casos de dispensa ou inexigibilidade
de licitação de forma irregular; contratação de profissionais da saúde de forma

respectivamente, os seguintes números processuais junto ao TJ/RS: 1º) 7005133314; 2º) 70076423912;
3º) 70067999151; 4º) 70072791825; 5º) 70073782062; 6º) 70070397799; 7º) 70071875322; 8º)
70063382096; 9º) 70065336687; 10º) 70065534604; 11º) 70064862832; 12º) 70050751262; 13º)
70064163975; 14º) 70061137808; 15º) 70062010632; 16º) 70053874285; 17º) 70062842927; 18º)
70060707460; 19º) 70065202228; 20º) 70056612583; 21º) 70051582351; 22º) 70037763901; 23º)
70053608303; 24º) 70058890468; 25º) 70054839949. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, http://www.tjrs.jus.br).
59 – 1º) 70076423912; 2º) 70067999151; 3º) 70072791825; 4º) 70073782062; 5º) 70070397799;
6º) 70065336687; 7º) 70050751262; 8º) 70064163975; 9º) 70061137808; 10º) 70062010632; 11º)
70053874285; 12º) 70060707460; 13º) 70065202228; 14º) 70051582351; 15º) 70053608303; 16º)
70054839949. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, http://
www.tjrs.jus.br).
60 – 1º) 70071875322; 2º) 70063382096; 3º) 70065534604; 4º) 70062842927; 5º) 70056612583; 6º)
70037763901; 7º) 70058890468. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, http://www.tjrs.jus.br).

237
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

irregular, com contratos superiores a 180 dias; expedição de alvarás sanitários


para estabelecimento que não preenchia os requisitos; medicamentos vencidos
armazenados, descartados ou distribuídos irregularmente; e venda de medicamentos
para angariar votos e promover campanha eleitoral para reeleição.
Já as sanções aplicadas aos atos ímprobos verificados envolvem
praticamente integralidade das hipóteses legislativas: ressarcimento integral dos
danos; suspensão dos direitos políticos (de três a dez anos); multas cíveis (variando
de duas vezes a 6 vezes o valor do prejuízo causado ao erário ou a remuneração
percebida pelo servidor público); perda da função pública; custas processuais (as
quais variavam entre o valor de cinquenta por cento ou cem por cento); e/ou a
proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos
fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário (pelo prazo variando de três a dez anos).
Ainda, nos acórdãos com viés condenatório, foram constatados quatro
tipos de decisões: a reforma parcial da sentença condenatória em favor do réu,
o que se identificou em 4 (quatro) acórdãos. Tais reformas se referem a aumento
de prazo para realização de concurso; redução das penas referentes a suspensão
dos direitos políticos; e da proibição de contratar com o poder público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário. Pode-se
citar a exemplo a Apelação Cível n° 70077010866, onde o ato de improbidade
constatado se refere à contratação irregular de agentes comunitários de saúde,
configurando atentado contra os princípios da administração pública. A sentença
condenatória determinou a realização de concurso público no prazo de 100 (cem)
dias e a exoneração dos irregulares. Todavia, em sede de segundo grau, o TJ/RS,
reformou parcialmente a sentença condenatória, estendendo com isso o prazo para
a realização do concurso para até 360 (trezentos e sessenta) dias, por considerar
que o prazo estipulado na sentença não teria como ser cumprido no plano fático e
dadas as etapas indispensáveis para a realização de concurso público.
Outros 09 (nove) acórdãos confirmaram as sentenças condenatórias de
primeiro grau, sendo que foram emitidos: 04 (quatro) pela 1ª Câmara Cível; 03
(três) pela 21ª Câmara Cível; 01 (um) pela 2ª Câmara Cível; e 01 (um) pela 22ª
Câmara Cível. Os atos de improbidades apontados nos acórdãos se relacionam
com: contratação de profissionais da saúde sem a realização de concurso público;
aquisição de medicamentos sem licitação; venda de medicamentos para angariar
votos e patrocinar reeleição de candidata à prefeitura; irregular dispensa e

238
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

inexigibilidade de licitação; cobrança de valores por médico do SUS para realizar


partos; desvio de finalidade de convenio destinado ao programa Saúde da Família.
Cita-se como exemplo a Apelação Cível n° 70051582351, em que os atos
de improbidade administrativa são referentes à compra de medicamentos para
Farmácia da Prefeitura sem licitação, os quais foram comprados e posteriormente
desviados para uma farmácia particular - única farmácia na cidade - revendê-
los. Após denúncia anônima, foi feita uma busca e apreensão na farmácia, onde
foram encontrados os lotes dos medicamentos que seriam revendidos para se obter
valores e com isso angariar votos na campanha eleitoral de reeleição. Em primeiro
grau os réus foram condenados por lesão ao erário e abuso de poder econômico/
político/autoridade, bem como atentado aos princípios da administração pública.
Ainda condenados ao ressarcimento integral do dano, com a devolução do valor
de R$ 53.004,03 (cinquenta e três mil, quatro reais com três centavos), acrescido de
juros e correção monetária, de forma solidária, além da perda da função pública,
se estiver sendo exercida no momento em que for proferida a sentença, e de outros
cargos ou funções vinculados a entidade estatal diversa que não o Município
diverso do ocorrido o fato, visto que a legislação não restringe a punição à função
pública que exercia à época do ato de improbidade, bem assim porque referida
medida é decorrência também da suspensão dos direitos políticos; a suspensão dos
direitos políticos, pelo prazo de cinco a oito anos; o pagamento de multa civil de
até três vezes o valor do prejuízo sofrido pelo Erário; a proibição de contratar com
o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de dez anos. Desse modo, de forma unânime a 21ª Câmara
Cível confirmou a decisão.
Também foram analisados 02 (dois) acórdãos em que houve a reforma
integral da sentença absolutória de primeiro grau. Tais decisões emitidas pela 2ª
Câmara Cível, tendo como apontamento os seguintes atos ímprobos: médico do
SUS que cobrava valores para realizar cirurgias e compra de medicamentos fora
da lista dos fornecidos pela Farmácia Básica do município, para fins estéticos, com
verba pública da saúde. Utiliza-se como exemplo de reforma integral da sentença
absolutória de primeiro grau, a Apelação Cível n° 70072791825. Em primeiro grau
a ação foi julgada improcedente na primeira Vara Cível da Comarca de Santa Cruz
do Sul. Todavia, em recurso interposto pelo Ministério Público, destacou-se que
o réu, médico do SUS em cidade vizinha, efetuava cobrança de pacientes para
realizar procedimentos cirúrgicos, sendo o valor estipulado em R$ 2.000,00 (dois

239
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

mil reais). Em sede de segundo grau, o TJ/RS, confirmou o atentado aos princípios
da administração pública, condenando o réu, de forma unânime: a perda da função
pública, ou seja, a perda da condição de profissional credenciado junto ao Sistema
Único de Saúde (SUS); proibição de contratar com o poder público ou receber
benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que
por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três
anos; suspensão dos direitos políticos por três anos; e multa ao SUS no valor de dez
vezes a remuneração percebida pelo réu como agente público.
Ainda, foi constatada na pesquisa a reforma parcial da sentença de primeiro
grau para majoração da condenação, na Apelação Cível n° 70050751262, sendo
em primeiro grau absolvidos os réus proprietários da farmácia e condenado o
secretário de saúde e do meio ambiente e gerente comercial da farmácia. O ato
de improbidade constatado é de que o secretário da saúde havia expedido alvará
sanitário para o estabelecimento comercial que administrava, mesmo sem o
preenchimento dos requisitos, bem como descartou medicamentos vencidos de
forma irregular. Em segundo grau, o TJ/RS, manteve a absolvição dos proprietários
da farmácia e mantiveram a condenação do secretário da saúde e afirmaram que
era possível verificar nos autos que o corréu secretário da saúde agiu com intenção
de se beneficiar enquanto no exercício do cargo de Secretário da Saúde e do Meio
Ambiente do Município, majorando a multa aplicada para 03 (três) vezes o valor
do acréscimo patrimonial obtido pelo réu.
Quanto aos nove acórdãos, com referência ao problema da pesquisa, mas que
não foram configurados como atos ímprobos, pode-se listar em síntese os seguintes
atos: aquisição de medicamentos sem licitação e irregular dispensa; o não repasse
para o fundo municipal de saúde do percentual mínimo; dispensa de licitação para
contratar empresa para realizar o transporte de pacientes para hospitais na capital;
aquisição, gerenciamento e distribuição de medicamentos vencidos; utilização
de ônibus da secretaria da saúde para viagem ao litoral catarinense de prefeito,
servidores públicos e familiares destes.
Sendo que destes 09 (nove) acórdãos, 05 (cinco) confirmaram a sentença
absolutória de primeiro grau, tendo como Câmaras Cíveis de julgamento em: 02
(dois) acórdãos a 2ª Câmara Cível; 01 (um) acórdão a 3ª Câmara Cível; 01 (um)
acórdão a 4ª Câmara Cível; e 01 (um) acórdão a 21ª Câmara Cível. Em 02 (dois)
acórdãos foi reformada a sentença no sentido de absolver os réus, sendo 01 (um)
acórdão da 2ª Câmara Cível e 01 (um) acórdão da 22ª Câmara Cível.

240
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

Com referência aos atos não configurados como ímprobos em matéria


de saúde, percebesse, em síntese, como fundamentação utilizada pelos
desembargadores do TJ/RS, as seguintes: não existiam nos autos provas do agir,
doloso ou até mesmo culposo dos réus, tampouco provas da conduta desonesta
ou da má-fé, que configurassem ato de improbidade administrativa; em caso de
suposto ato de improbidade por dispensa de licitação, o argumento utilizado
para absolvição foi no sentido de que as provas indicavam que se tratava, de fato
e corretamente, de hipótese de dispensa de licitação; não se configuraria ato de
improbidade administrativa, pois tais atos se justificavam pela inaptidão e/
ou desconhecimento legal do gestor público ou do secretário da saúde; em caso
de inaplicação dos percentuais mínimos para gastos com saúde, utilizou-se o
argumento de que o percentual atingido era satisfatório.

CONCLUSÃO

A pesquisa teve como objetivo analisar acórdãos do Tribunal de Justiça do


Estado do Rio Grande do Sul, referentes a atos de improbidade municipal na área
da saúde. No decorrer do estudo verificou-se que os municípios, pela lógica do
federalismo cooperativo e sob a ótica do princípio da subsidiariedade na forma
vertical, por ser o ente local mais próximo aos cidadãos, têm melhores formas
para desempenhar suas atividades estatais, principalmente na saúde pública, em
benefício dos indivíduos. Assim, a competência administrativa, quanto à saúde,
é comum para todos os entes, sendo um direito de todos e um dever do Estado a
garantia deste por meio de políticas sociais e econômicas, que viabilizem à redução
do risco de doenças, devendo ter acesso universal e igualitário.
Contudo, o exercício destas atribuições na esfera mais próxima do cidadão
enfrenta as restrições decorrentes do déficit de financiamento das políticas
públicas locais além de inúmeras hipóteses de condutas inseridas nas hipóteses de
improbidade administrativa.
Em relação aos atos de improbidade administrativa, verificou-se que
estes são compreendidos como uma ação ou omissão que descumpre o dever
constitucional de moralidade no desempenho das funções públicas, ocasionando
a imposição de sanções civis, administrativas e penais, de maneira cumulativa
ou não, como estabelecido em lei. Tendo como norma regulamentadora a Lei
8.429 de 06 de junho de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), sendo

241
Ricardo Hermany e Betieli da Rosa Sauzem Machado

a norma caracteriza como improbidade administrativa os atos que resultam em


enriquecimento ilícito (artigo 9°); que geram prejuízo ao erário (artigo 10); ao
passo que a referida lei qualifica também os atos que atentam contra os princípios
da administração pública (artigo 11); e, ainda, o artigo 12 da referida lei aborda as
penalizações aplicadas.
Ante o exposto, buscando responder ao problema da pesquisa, a qual se
centrou em verificar dos acórdãos do TJ/RS referentes a atos de improbidade em
saúde, quais os atos e condutas se configuraram como improbidade em matéria de
saúde e, ainda, qual o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, diante das situações de improbidade administrativa em saúde.
Das 23 apelações cíveis, com vinculo ao objeto da pesquisa, identificaram-se
16 (dezesseis) casos configurados como atos de improbidade administrativa, com a
ocorrência das três espécies de atos ímprobos, presentes na lei 8.429/1992: os atos
que resultam em enriquecimento ilícito (artigo 9°); que geram prejuízo ao erário
(artigo 10); e os atos que atentam contra os princípios da administração pública
(artigo 11).
As situações de improbidade administrativa, em matéria de saúde, mais
recorrentes nestes julgados foram: contratação de profissionais na área da saúde
sem concurso público; médicos vinculados ao SUS que realizavam a cobrança de
valores para efetuar procedimentos cirúrgicos e partos; aquisição de medicamentos
sem licitação; casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação de forma irregular;
contratação de profissionais da saúde de forma irregular, com contratos superiores
a 180 dias; expedição de alvarás sanitários para estabelecimento que não preenchia
os requisitos; medicamentos vencidos armazenados, descartados ou distribuídos
irregularmente; venda de medicamentos para angariar votos e promover campanha
eleitora para reeleição.
Nesse sentido, foi possível constatar que, diante de um caso de improbidade
administrativa, o TJ/RS vem se posicionando no sentido de condenar os responsáveis
pelos atos ímprobos aplicando as sanções de ressarcimento integral dos danos;
suspensão dos direitos políticos (de três a dez anos); multas cíveis (variando de duas
a seis vezes o valor do prejuízo causado ao erário ou a remuneração percebida pelo
servidor público); perda da função pública; custas processuais (as quais variavam
entre o valor de cinquenta ou cem por cento); e/ou, a proibição de contratar com
o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário (pelo prazo variando de três a dez anos).

242
A improbidade dos municípios em matéria de saúde pública

Evidente, no entanto, que ainda é fundamental a evolução probatória


nestes casos envolvendo a saúde pública, notadamente nas hipóteses em que a
configuração da conduta improba está condicionada a comprovação da conduta
dolosa do agente. Neste sentido, ainda se observam diversas situações de violação
aos princípios da administração pública que merecem uma evolução na instrução
probatória dos atores do processo, registrando sempre o necessário respeito aos
princípios constitucionais processuais.

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245
CONCESSÃO DE MEDICAMENTOS DE ALTO
CUSTO NÃO PREVISTOS NA RELAÇÃO NACIONAL
DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS, LIMITES
ADMINISTRATIVOS E ORÇAMENTÁRIOS: COMO
DECIDE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL?

Caroline Andressa Rech1


Lara Santos Zangerolame Taroco2

1 INTRODUÇÃO

A promulgação da Constituição Federal de 1988 reafirmou o direito


fundamental à saúde, explicitando-o mais precisamente no artigo 169, caput, o qual
o cristalizou como direito de todos e um dever do Estado, devendo ser promovido
por meio de políticas econômicas e sociais, de forma cooperativa pelos entes

1 – Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz. Bolsista da Pesquisa e Extensão


pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, da FAPERGS, no projeto do professor
e Doutor Rogério Gesta Leal intitulado “sociedade de riscos e democracia radical: a formatação
de políticas públicas a partir de decisões judiciais”. Membro dos grupos de estudos de “Estado,
Administração, Política e Sociedade”.
2 – Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Membro do Grupo de Pesquisa
Teoria Crítica do Constitucionalismo do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito de
Vitória. Membro do Grupo de Pesquisa “Estado, Administração, Política e Sociedade”. Advogada.
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

federativos. Dessa previsão constitucional decorrem não só políticas públicas,


formatadas pelo Poder Executivo e voltadas para viabilizar o exercício deste direito
fundamental, mas também uma série impasses, levados com frequência ao Poder
Judiciário que é então instado a decidir.
A atualidade do tema se constata pela recente definição de critérios pelo
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Foi em 25 de abril de 2018, que a Primeira Seção
do STJ fixou requisitos para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de
medicamentos não previstos na mencionada lista, após concluir o julgamento de
recurso repetitivo, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves. De todo modo, em
virtude da modulação dos efeitos, os critérios estabelecidos – a serem explorados
neste estudo –, só serão exigidos nos processos judiciais que forem distribuídos a
partir desta decisão.
Em que pese esta recente decisão do STJ, não se pode deixar de mencionar a
discussão do tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente mediante
o reconhecimento da Repercussão Geral da matéria pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), no RE 566.471, sendo que tais julgamentos ainda não foram encerrados.
Assim sendo, é considerando esta problemática, que o recorte a ser explorado por
esta pesquisa se volta justamente para a divergência instaurada quando está em
discussão a requisição de medicamentos de alto custo não previstos na Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais.
O presente artigo parte da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, para investigar como este Tribunal decide nas
ações judiciais que pleiteiam o fornecimento de medicamentos de alto custo,
não previstos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), do
Sistema Único de Saúde (SUS). Isso com o objetivo de verificar: I) se nos processos
selecionados há deferimento ou indeferimento desses pedidos; II) se nos casos
de deferimento, há menção do ente federativo responsável pelo fornecimento
e a indicação da origem da verba orçamentária necessária para viabilizar o
fornecimento do medicamento requisitado; III) se foi reafirmada a eficácia das
normas administrativas que orientam a concretização da política pública, ou se
foram descartadas para concretizar o direito fundamental.
Como substrato da pesquisa utilizou-se 43 decisões em recursos de apelação,
proferidas tanto em colegiado quanto monocraticamente pelo Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, as quais foram analisadas individualmente e,
posteriormente, comparadas entre si, de modo que objetivou-se tecer a posição do
Tribunal sobre o tema.

248
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

Tais decisões foram coletadas da seguinte maneira: ao abrir o explorador


de internet, no campo de pesquisa digitamos o site http://www.tjrs.jus.br/site/
e pressionamos enter. Ao abrir a página inicial de tal site, no menu encontrado
no canto esquerdo da tela selecionamos a opção jurisprudência. Com tal seleção,
abriu-se novo rol de opções logo abaixo do termo “jurisprudência”, dentre as quais
selecionamos pesquisa de jurisprudência, abrindo assim uma série de campos nos
quais é possível filtrar e localizar decisões sobre os mais vastos temas.
A seguir, prosseguimos com a pesquisa quantitativa, selecionando
alguns filtros e, para tanto, seguimos alguns passos: no campo superior, de busca
avançada, digitamos o termo medicamentos de alto custo;logo abaixo selecionamos a
opção inteiro teor; no campo Tribunal, selecionamos a opção todos; no campo Órgão
Julgador selecionamos a opção todos; no campo Relator/Redator, selecionamos a
opção todos; no campo Tipo de Processo, selecionamos a opção todos; no campo
Classe CNJ, selecionamos a opção Apelação, vez que trata-se do recurso à sentença
de primeiro grau, meio pelo qual o tema chega à segunda instância; nos campos
assuntos CNJ, Referência Legislativa, Jurisprudência e Comarca de Origem,
nada foi selecionado; no campo Assunto, digitamos fornecimento de medicamentos;
nos campos Data de Julgamento, Data de Publicação, Número, Seção, Tipo de
Decisão, Com a Expressão, Com Qualquer Uma das Palavras, nada foi digitado;
por fim, no campo Sem as Palavras, digitamos plano de saúde, com o objetivo de
excluir por meio de filtro as decisões que impõe a obrigação dos planos de saúde
concederem medicamentos de alto custo, remanescendo apenas as ações contra os
entes públicos.
Desta forma, a metodologia da pesquisa subdividiu-se em duas partes.
Inicialmente foi efetuada a pesquisa de jurisprudências, ou seja, a dimensão
quantitativa do processo, onde filtramos a busca e obtivemos um conjunto de 43
decisões. Posteriormente, foi feita a análise destas, mediante alguns parâmetros,
conforme supracitado, com o fim de determinar qual a posição do Tribunal sobre
o tema, sendo esta a dimensão qualitativa do processo.
Mediante tais critérios, é essencial estabelecer algumas balizas teóricas que
introduzam o tema e permitam a análise das decisões obtidas. Destarte, o segundo
capítulo deste estudo explora a seara da Política Nacional de Medicamentos, a qual
instituiu a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais como baliza orientadora
da concretização do direito fundamental à saúde, configurando-se como mecanismo
para promover o acesso e uso seguro e racional de medicamentos.

249
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

O terceiro capítulo visa abordar a questão orçamentária atinente à matéria


de medicamentos de alto custo, elencando a divisão de tal competência entre
os entes estatais para legislar sobre o tema, adquirir e dispersar tal categoria de
medicamentos. Por fim, o capítulo quarto, visa analisar as decisões do Tribunal
de Justiça selecionadas sobre o tema, a partir dos filtros mencionados, realizando
um comparativo entre o que é normatizado e serve de baliza para a realização da
política pública em relação ao que o Poder Judiciário vem decidindo como meio de
concretização do direito à saúde.

2 A RELAÇÃO NACIONAL DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS


(RENAME) NO CONTEXTO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

O direito fundamental à saúde é compreendido como dever prestacional do


Estado, isto é, direito que se concretiza através de um agir positivo, por meio de
políticas públicas e a estruturação do poder público em órgãos distintos3. Assim
sendo, como ocorre com a generalidade dos direitos fundamentais sociais, é o
Estado o sujeito passivo principal. O direito à seguridade social se insere nesse
escopo constitucional, visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência
e à assistência social.
Este, pode ser compreendido como o conjunto de princípios e instituições
destinado a estabelecer um “sistema de proteção social aos indivíduos contra
contingências que os impeça de prover as suas necessidades pessoais básicas
e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da
sociedade”4. Em relação a garantia do direito à saúde, o Sistema Único de Saúde
(SUS) constitui o principal meio de materialização desse direito fundamental,
assumindo na ordem jurídico-constitucional brasileira a condição de “autêntica
garantia institucional fundamental”5. Isso porque, sua relevância enquanto
instituição essencial para garantir o direito à saúde fundamenta o que Ingo Sarlet

3 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o


Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.128.
4 – MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p.44.
5 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o
Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.128.

250
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

denomina de “extensão da proteção jusfundamental”6, para resguardar o núcleo


essencial dessa garantia institucional, “contra a atuação erosiva por parte do
legislador ordinário e do poder público em geral”.
Os princípios e os objetivos a que o Sistema Único de Saúde deve atender
se encontram previsto no artigo 198 da Constituição Federal e suas diretrizes são:
I) a atuação descentralizada, com direção única em cada esfera do governo; II)
atendimento integral, priorizando sempre as atividades preventivas, mas sem
prejuízo às assistenciais; III) participação da comunidade. Tais balizas norteadoras
reafirmam a ideia propugnada pela Organização Mundial da Saúde, de que o
direito à saúde não se limita apenas às atividades de cura e tratamento de problemas
e doenças já desenvolvidos, mas também as políticas de prevenção, o que faz com
que integre o ramo da Seguridade Social, em conjunto com a previdência e a
assistência social7.
Nesse sentido, o direito a saúde é também influenciado por outras
políticas como sanitárias, de desenvolvimento humano, meio ambiente, moradia,
alimentação, trabalho, renda, educação, atividade física, transporte, lazer e acesso
a bens e serviços essenciais. Além dessas, também se relaciona com muitas outras
que asseguram, em última instância, uma vida digna e permitam o desenvolvimento
saudável do indivíduo, em uma acepção voltada para a promoção da qualidade de
vida, através da melhora nas condições de vida e saúde das pessoas8.
Partindo dessas balizas, o SUS foi criado pela Constituição de 1988 e
disciplinado pela Lei Orgânica da Saúde, nº 8.080/90 e Lei 8142/90, que definem,
entre outras questões, as competências em nível municipal, estadual e da União,
temática a ser aprofundada no terceiro capítulo deste estudo, e essencial para o
enfretamento do problema de pesquisa proposto. Nesse contexto, as premissas do
acesso universal e igualitário norteiam a concretização das políticas públicas de
saúde através do SUS.
O caráter universal do acesso se refere ao campo de incidência de suas
ações, isto é, a quem elas irão atingir, devendo, portanto, atingir a toda população,

6 – SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9. ed., rev., atual. eampl., p. 165.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p.12.
7 – RAEFFRAY, A. P. O. de. Direito da Saúde de acordo com a Constituição Federal. p. 260. São
Paulo: QuartierLatin, 2005, p.23.
8 – SCHWARTZ, G. A. D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. p. 27. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.34.

251
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

partindo-se do pressuposto de que que o direito à saúde é reconhecido a todos,


vez que todos são pessoas, isto é, sujeitos de direitos, no caso, titulares do direito
fundamental à saúde, repercutindo na premissa da igualdade e da gratuidade na
prestação do serviço.
Não se pode confundir, todavia, a titularidade universal do direito
fundamental com a universalidade do acesso ao SUS, especialmente no que
concerne à assistência pública à saúde, aspecto que poderá eventualmente sofrer
objeções diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo se tiverem por
escopo a garantia de equidade do sistema como um todo – ou seja, a concretização
do princípio da igualdade em sua dimensão material, justificando, a final,
discriminações positivas em prol da diminuição das desigualdades regionais e
sociais, ou da justiça social, por exemplo. 9
Dentre os princípios e diretrizes estabelecidos pelos artigos 198 a 200 da
Constituição, cabe destacar o princípio da unidade, que preceitua que o SUS é um
sistema único e unificado, sendo que “os serviços e as ações de saúde, públicos ou
privados, devem pautar-se e de desenvolver sob as mesmas políticas, diretrizes e
comando”10, ao passo que se trata de um só sistema. O princípio da integralidade
de atendimento, por sua vez, se relaciona diretamente com o caráter universal,
igualitário e gratuito anteriormente mencionado. Este determina que o serviço
oferecido pelo SUS deve ser o mais amplo possível, o que não afasta, como bem
ressalta Sarlet e Figueiredo, “a existência de certos limites, sobretudo técnicos”11.
Dentre suas atribuições encontra-se a execução de uma ampla gama de
ações, desde políticas de promoção da saúde até prerrogativas como vigilância
sanitária, vigilância epidemiológica, saúde do trabalhador e assistência terapêutica
e farmacêutica de forma integral, conforme artigos 5 e 6 da Lei 8.080/90.
Inegavelmente a assistência farmacêutica é um dos principais eixos norteadores da
política pública voltada à promoção da saúde desenvolvida no Brasil, e uma das
principais consequências de tal cobertura foi a aprovação da Política Nacional de
Medicamentos (PNM), através da portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998.

9 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o


Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.129.
10 – FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia
e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.86.
11 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o
Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.130.

252
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

Garantir a segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, ao menor


custo possível, assegurar o acesso da população aos medicamentos e, por fim, a
promoção do seu uso racional, são os principais objetivos dessa política. Para o
presente estudo, essa temática assume especial relevância, na medida em que se
objetiva analisar justamente como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul quando incitado a decidir sobre a concessão de medicamentos
não constantes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME),
adotada a partir da vigência da Política Nacional de Medicamentos (PNM).
Dentre os principais desdobramentos e condicionantes para a correta e eficaz
concretização da Política Nacional de Medicamentos (PNM) resta estabelecidas
algumas orientações. A adoção de uma Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais (RENAME), a qual elenca produtos considerados básicos e
indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população no
âmbito do SUS, os quais devem permanecer continuamente disponíveis a quem
deles necessitarem, tanto a nível nacional quanto estatal e municipal.
Além disso, tal rol serve de direcionamento para a produção farmacêutica
e desenvolvimento cientifico e tecnológico nacional, bem como base para a
produção de listas semelhantes nas esferas estaduais e municipais, reiterando
a forma descentralizada do Sistema Único de Saúde12. Neste sentido,
inegavelmente constituiu-se como uma baliza orientadora da concretização do
direito fundamental à saúde através de políticas públicas, zelando pelo acesso da
população aos medicamentos essenciais, mas também considerando os limites do
poder prestacional do Estado, elencando apenas medicamentos com segurança,
registro na ANVISA, qualidade e eficácia comprovada13, evitando a dispersão de
medicamentos, bem como gastos do poder público, de forma infrutífera.
Em concomitante, a reorientação da assistência farmacêutica14 configura-se
como diretriz da PNM, de modo que seja assegurada a distribuição e aquisição

12 – Conforme Portaria nº 3.916 de 30 de outubro de 1998, do Ministério da Saúde, responsável por


instituir a política Nacional de Medicamentos (PNM) e, consequentemente, a Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais (RENAME). Está elencada nas diretrizes da PNM, tópico 3, subseção 3.1
13 – Conforme Portaria nº 3.916 de 30 de outubro de 1998, do Ministério da Saúde. Está elencada nas
prioridades da PNM, tópico 4, subseção 4.1
14 – Conforme Portaria nº 3.916 de 30 de outubro de 1998, do Ministério da Saúde. Está elencada nas
diretrizes da PNM, tópico 3, subseção 3.3

253
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

(neste caso, através de políticas de redução de preços) de medicamentos, como


forma de promoção do acesso da população aos medicamentos essenciais. É por
meio do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas15, desenvolvido no âmbito
ambulatorial à luz do caso concreto, que se estabelece critérios de diagnóstico
de doenças correlacionando-as com o respectivo tratamento, servindo estes de
orientação para a RENAME, e consequentemente como baliza à assistência
farmacêutica pelo poder público.
Cabe salientar que a portaria impôs a obrigação de revisão e atualização
periódica da lista, de forma que sua vigência se perpetue, bem como sua eficácia.
Nesta senda, trata-se de atribuição do Ministério da Saúde a publicação da nova
lista, a nível nacional, possuindo, portanto, um caráter normativo geral, entrando
em vigor via portaria do Ministro da Saúde. É fruto de análises e estudos da
Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Rename (COMARE),
comissão esta formada por gestores do SUS, faculdades e entidades de representação
dos profissionais da saúde, instituída pela Portaria GM no. 1.254/2005, a quem
é submetida a aprovação da referida lista. Já nas esferas estaduais e municipais,
compete aos respectivos gestores a definição da Relação no seu âmbito de atuação,
de acordo com as especificidades locais16.
O artigo 26 do Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011 aduz que a tanto
a lista quanto o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas devem ter publicadas
suas atualizações a cada dois anos. Embora decorra de imposição normativa,
ocorre que, na prática, a revisão e atualização passou a ser mais recorrente apenas
nos últimos anos, transcorridos vários anos sem qualquer modificação, o que é
evidenciado na própria introdução da RENAME do ano de 200017. Esta passou a
ser adotada decorridos 16 anos sem qualquer atualização da lista a nível nacional,
substituindo a antecessora do ano de 1983, sendo, posteriormente, atualizada
periodicamente, mas não anualmente.

15 – BRASIL, Ministério da Saúde. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Brasília: Ministério da


Saúde, v. 2, p. 6, 2010.
16 – Conforme Portaria nº 3.916 de 30 de outubro de 1998, do Ministério da Saúde. Está elencada nas
responsabilidades das esferas de governo no âmbito do SUS, em ralação à PNM,, tópico 5, subseções
5.2 - n, 5.3- l e 5.4- h.
17 – BRASIL. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: RENAME 2000.
Brasília: Ministério da Saúde. p.7.

254
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

A desatualização da lista não lesa apenas o cidadão, que pode deixar de


ter sua necessidade atendida em função do aparecimento de novas doenças ou
se doenças já existentes passarem a ser recorrentes, o que demanda a dispersão
de novos fármacos, mas prejudica também o poder público, vez que a lista deixa
de abarcar os avanços tecnológicos no setor farmacológicos, seja incluindo
medicamentos de melhor qualidade e segurança ao cidadão, com valores mais
baixos, como genéricos ou novas medicações decorrentes do desenvolvimento
tecnológico.
A relação de medicamentos foi subdividida de acordo com a especificidade
do tratamento em: medicamentos do componente básico de assistência (programas
de saúde específicos, destinando-se ao tratamento das enfermidades mais comuns)18;
do componente estratégico da assistência farmacêutica (dirige-se ao cuidado das
doenças endêmicas e retrovirais)19; do componente especializado da assistência
farmacêutica (tratamento de enfermidades de alta complexidade ou que demandam
medicamentos de alto custo, aqueles chamados excepcionais, adquiridos mediante
demanda específica)20; relação nacional de insumos farmacêuticos (produtos de
saúde e produtos para diagnóstico, auxiliando na identificação de doenças)21; e por
fim, a relação nacional de medicamentos de uso hospitalar.
Considerando a relevância da assistência farmacêutica no cenário das
políticas públicas de saúde e a consequente repercussão da intervenção do Poder
Judiciário nesta seara, no dia 25 de abril de 2018, a Primeira Seção do Superior
Tribunal de Justiça manifestou-se sobre o tema, em julgamento do Recurso
Especial 1657156/RJ, com caráter repetitivo, de relatoria do Ministro Benedito
Gonçalves, afirmando que é obrigação do poder público conceder tal categoria
de medicamentos indispensáveis, mesmo se fora da RENAME. Para isto, impôs
alguns requisitos, são eles: a) comprovação pelo autor da ação, mediante laudo
fundamentado pelo médico que o assiste, quanto à imprescindibilidade do
medicamento em comparação aos garantidos pelo SUS; b) demonstração da

18 – BRASIL. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. RENAME 2017.


Brasília: Ministério da Saúde, 2017. p. 16.
19 – BRASIL. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. RENAME 2017.
Brasília: Ministério da Saúde, 2017. p. 32.
20 – BRASIL. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. RENAME 2017.
Brasília: Ministério da Saúde, 2017. p. 44.
21 – BRASIL, Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. RENAME 2017.
Brasília: Ministério da Saúde, 2017. p. 55.5z

255
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

incapacidade financeira do demandante de arcar com os custos do medicamento;


c) registro do medicamento na Anvisa.
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal vem sendo constantemente
instado a decidir sobre o tema. Em suas decisões tem fixando critérios para a
concessão medicamentos fora da RENAME, no RE 566.471/RN, por exemplo,
discute-se a possibilidade de dispersar medicamentos de alto custo não abarcados
pela PNM à pessoa que não possui recursos para arcar com o tratamento. Para
o relator, Ministro Marco Aurélio Melo, tal fornecimento é imprescindível
quando viola o mínimo existencial, desde que contemplados os critérios de
imprescindibilidade do fármaco e incapacidade financeira do enfermo. O Ministro
Luís Roberto Barroso, por sua vez, acrescenta a estes os seguintes critérios:

b) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não


resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; c) a inexistência
de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; d) a prova da eficácia do
medicamento pleiteado com base na assim chamada medicina baseada
em evidências; e e) a propositura da demanda necessariamente em face
da União, já que a ela cabe a decisão final sobre a incorporação ou não
de medicamentos ao SUS22

Embora não uníssono na jurisprudência pátria, os critérios elencados pelo


ministro Barroso proporcionam um diálogo interdisciplinar entre áreas sobre as
quais interferem uma decisão judicial impositiva do fornecimento de tal categoria
de fármacos, fora da política pública. Parte de critérios mínimos de razoabilidade,
vez que preconiza a dispersão desde que não haja negativa expressa do órgão que
elaborou a listagem, ressaltando a competência deste sobre o tema. Ademais,
impõe a necessidade de acionar a União no polo passivo da demanda, vez que é o
ente central da política em questão.
Nesta seara, no julgamento do RE 855178 RG / SE, ainda não concluído
e com caráter de repercussão geral, parte dos ministros que apresentaram seus
votos, reafirmaram a responsabilidade solidária dos entes federados na prestação
de assistência à saúde, sendo razoável o debate levantado pelo ministro Barroso
no que tange a necessidade de inclusão da União na demanda. Diante de tal

22 – BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo STF, n.841. Disponível em: http://
www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo841.htm. Acesso em: 29 jun. 2018

256
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

conjuntura, o que preliminarmente se constata é uma interferência reiterada do


Poder Judiciário tanto na atuação do Sistema Único de Saúde em suas três esferas,
quanto, no orçamento dos entes que o financiam.
Esse fenômeno se denomina judicilização da saúde, que no âmbito dos
medicamentos pode se manifestar pela requisição, junto ao Poder Judiciário, de
medicamentos de alto custo, não previstos na RENAME, comumente denominada
de “lista do SUS”. É exatamente esse o recorte proposto pelo presente estudo, que
objetiva analisar como decide o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quando
instado sobre essa matéria.
Antes, porém, de adentrar a análise dos dados coletados no site do
mencionado Tribunal, cabe melhor compreender as questões orçamentárias
envoltas nesta discussão. Não se pode perder de vista, que este estudo também
pretende destacar como as decisões coletadas se manifestam em relação ao ente
responsável pelo fornecimento dos medicamentos pleiteados, e também em
relação ao orçamento público. Tanto por isso, cabe abordar no capítulo seguinte as
competências dos municípios, Estados e União na garantia do direito à saúde, bem
como as repercussões para o orçamento desses entes federativos.

3 OS ENTES FEDERATIVOS E A GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE:


ENTRE O FINANCIAMENTO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA E A
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA

A concretização do direito à saúde no cenário constitucional pós-1988


se relaciona e depende diretamente da distribuição de competências entre os
entes da federação – Estados, União e Municípios –, e do consequente repasse de
recursos públicos para manutenção e garantia deste direito fundamental23. No que
concerne ao que se tem designado de judicialização da saúde, também se constata a
centralidade dessa temática, em especial quando o que está em questão é a concessão
de medicamentos de alto custo não previstos na Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais (RENAME), abordada no segundo capítulo deste estudo.
Tomando por base esse contexto, cumpre destacar que a Constituição
define, no art. 23, inciso II, a competência comum dos entes federados para “cuidar

23 – WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2004. p.81.

257
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

da saúde”, cabendo a União e aos Estado legislar concorrentemente sobre a


proteção e defesa da saúde, conforme prevê o art. 24, inciso XII. No que concerne
à competência comum, se constata que o critério adotado para a estabelecer foi a
predominância de interesses24, sendo cada ente competente para atuar dentro da
sua esfera de poder, previsão esta que decorre da relevância do tema elencado, no
caso do direito à saúde.
Não se trata, portanto, de sobrepor a atuação dos entes federativos, mas
sim de promover a cooperação na execução dos preceitos elencados no art. 23, da
Constituição Federal, a fim de ressaltar sua importância e assegurar sua efetivação.
Mais especificamente em relação ao direito à saúde e a competência comum, como
observa Weichert:

(..) o esquema básico de repartição de competências adotado pela


Constituição brasileira em 1988 conduziria ao seguinte dilema: (a) ou se
previa a competência de saúde no ente federal, provocando os males do
centralismo gigantesco, (b) ou se remetia essa atribuição aos Municípios
ou aos Estados, que não teriam condições de, sozinhos, suportarem
os ônus dos serviços, (c) ou se remetia a questão para a competência
comum, assumindo-se o risco de adoção de políticas incongruentes e
de desperdício de esforços e recursos, (d) ou chegavase ao meio termo
disso tudo: todos trabalhavam, mas dentro de um sistema unificado.
Evidentemente, constitucionalizou-se essa última solução.25

Por sua vez, como disciplina o art. 30, inciso VII, do texto constitucional,
compete aos Municípios prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e
do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. Trata-se de dispositivo
que dialoga diretamente com a previsão do art. 198, inciso I, da Constituição,
que estabelece que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, que considera a
descentralização, com direção única em cada esfera de governo.

24 – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2008. p.478.
25 – WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004. p.209

258
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

Deste último dispositivo se depreende o princípio da descentralização e


regionalização, como informadores do sistema único consagrado a partir de 1988.
São esses os parâmetros que informam a distribuição de competência e, portanto,
se relacionam e reafirmam o que consta no mencionado art. 30, inciso VII. Com
a descentralização e a regionalização, o SUS direciona a execução das ações e
serviços públicos de saúde para os entes locais, estes que “próximos da população,
possuem a melhor condição de avaliar as necessidade mais prementes e desenvolver
as condutas mais eficazes de prevenção”26.
É dessa previsão que também decorre a característica da subsidiariedade, que se
apoia na descentralização e na regionalização para estabelecer que o fornecimento de
bens materiais cumpre “precipuamente aos Municípios e aos Estado, em detrimento
da União, que atua em caráter supletivo e subsidiário”27, o que não exclui, como
pontua Sarlet e Figueiredo, a atuação “direta do ente central em algumas situações,
o que acontece exatamente em função da harmonização prática entre os princípios
da eficiência, da subsidiariedade e da integridade do atendimento”28.
Após sua instituição, o SUS foi disciplinado pela Lei Orgânica da Saúde, n.
8.080/90, responsável por repartir a competência dos entes federados, organizando
a promoção e execução dos serviços e ações em saúde. O art. 4º da referida lei,
estabelece que o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e
instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta
e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constituiu o então
denominado sistema único, previsto pela Constituição.
São os artigos 16, 17, 18 e 19, da Lei n. 8.080/90, que tratam com mais
precisão da competência de cada um dos entes, fixando as atribuições da direção
nacional, estadual, municipal e do Distrito Federal, respectivamente. Tais
dispositivo refletem a estrutura hierarquizada e descentralizada do órgão, sendo
o direito à saúde prestado nas três esferas estatais, qual seja, União, Estados e
Municípios, de forma solidária e cooperativa entre eles e com auxílio de muitas

26 – WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2004. p.166.
27 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o
Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.13.
28 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas Considerações sobre o
Direito Fundamental à Proteção e Promoção da Saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988.
Revista de Direito do Consumidor, n. 67, p. 11, jul./set. 2008, p.13.

259
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

outras pessoas de direito público e privado. Isso para assegurar de maneira conjunta
tanto a responsabilidade comum, quanto para evitar a superposição de esforços, de
agentes públicos, desorganização do sistema e desperdício de verbas públicas29.
É função precípua da União e dos Estados normatizar, financiar, organizar e
formular as políticas de prestação de tal serviço pelo Estado, sendo que a execução
de suas diretrizes ocorre, sobretudo, a nível municipal, conforme a complexidade e
especificidade do tratamento, sendo de sua competência o atendimento primário e
básico das demandas, como destacado. Desse modo, todos os entes federados são
responsáveis pela garantia do direito à saúde, na forma do art. 196, da Constituição,
tendo este texto delineado as atribuições de cada um dos entes, para permitir sua
atuação integrada, de modo a garantir a assistência a todos os cidadãos, sendo essa
organização fundamental para a política pública de saúde30.
A assistência farmacêutica no âmbito do SUS também é incluída nessa
sistemática de repartição de competências, tendo sido regulada por portarias do
Ministério da Saúde, em virtude da previsão do art. 16, da Lei n. 8.080/90, que
estabelece que a direção nacional do SUS compete a União. Dessa forma, a cada
esfera de gestão cabe um rol de atribuições distintas, sendo que o financiamento se
dá de forma comum. No que concerne ao financiamento, desde o final da década
de 1990, os Municípios passaram a gerir a aquisição de medicamentos essenciais,
seguindo a sistemática constitucional da descentralização, cabendo a esfera estadual
e federal a aquisição de outros medicamentos referentes a programas específicos31.
A Portaria GM n. 176/9932 estabeleceu o Incentivo à Assistência
Farmacêutica Básica e determinou que a alocação de recursos federais se daria

29 – SCHWARTZ, G. A. D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. p. 27. Porto


Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 34.
30 – VIEIRA, Alessandra. Cooperação e Compromisso Constitucional nos Estados Compostos: Estudo
sobre a teoria do federalismo e a organização jurídica dos sistemas federativos. Coimbra: Almedina,
2007, p.137.
31 – OLIVEIRA, L. C; ASSIS, M. M.; BARBONI, A. R. Assistência Farmacêutica no Sistema Único
de Saúde: da Política Nacional de Medicamentos à Atenção Básica à Saúde. Revista Ciência e Saúde
Coletiva; Rio de Janeiro, v. 15, supl. 3, p. 3561-3567, Nov. 2010 . Disponível em: http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S1413-81232010000900031&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 jul. 2018
32 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 176/99. Estabelece critérios e requisitos para a
qualificação dos municípios e estados ao incentivo à Assistência Farmacêutica Básica e define valores a
serem transferidos. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm179/gm.htm. Acesso em:
15 jul. 2018.

260
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

através de repasse fundo a fundo, isto é, do fundo federal para os fundos estaduais
e municipais de saúde. Nesse contexto, o gestor municipal passou a assumir
mais responsabilidades, como: coordenar e executar a assistência farmacêutica
no seu respectivo âmbito; associar-se a outros municípios por intermédio de
organização de consórcios, tendo em vista a sua execução; promover o uso
racional de medicamentos junto à população, aos prescritores e aos dispensadores;
assegurar a dispensação adequada de medicamentos; definir a relação municipal
de medicamentos essenciais com base na RENAME e no perfil epidemiológico da
população; assegurar o suprimento dos medicamentos destinados à atenção básica;
investir na infraestrutura das centrais farmacêuticas e das farmácias dos serviços de
saúde, visando assegurar a qualidade dos medicamentos33.
Foi a Portaria GM 698/201634, que instituiu o bloco de financiamento
para assistência farmacêutica, então formado por quatro componentes, aqueles
supramencionados e que igualmente dividem a Relação Nacional de Medicamentos,
são eles: Componente Básico de Assistência Farmacêutica; Componente Estratégico
da Assistência Farmacêutica; Componente Medicamentos de Dispensação
Excepcional e Componente de Organização da Assistência Farmacêutica – sendo
que este último foi revogado pela Portaria n. 204/200735.
Assim sendo, quanto às formas de sua aquisição, em linhas gerais,
conforme prevê o art. 3º, segundo a alteração feita pela Portaria nº 2.001, de 03
de agosto de 201736, que modificou a redação da anterior Portaria nº 1.555 de 30

33 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 176/99. Estabelece critérios e requisitos para a


qualificação dos municípios e estados ao incentivo à Assistência Farmacêutica Básica e define valores a
serem transferidos. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm179/gm.htm. Acesso em:
15 jul. 2018.
34 – BRASIL. Portaria nº 698, de 30 de março de 2006. Define que o custeio das ações de saúde é de
responsabilidade das três esferas de gestão do SUS, observando o disposto na Constituição Federal e na
Lei. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm698/gm.htm. Acesso em: 16 jul. 2018.
35 – BRASIL. Portaria nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Regulamenta o financiamento e a transferência
dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde, na forma de blocos de financiamento, com
o respectivo monitoramento e controle. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm207/
gm.htm. Acesso em: 15 jul. 2018.
36 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.001, de 03 de agosto de 2017. Altera a Portaria n.
1.555/GM/MS, de 30 de julho de 2013, que dispõe sobre as normas de financiamento e de execução
do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2001_15_08_2017.html.
Acesso em: 23 jul. 2018.

261
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

de julho de 201337, o Componente Básico da Assistência Farmacêutica destina-se


à aquisição de medicamentos e insumos no âmbito da Atenção Básica em saúde,
com financiamento tripartite, isto é, das três esferas de gestão do SUS, com base em
valores per capta, gerenciamos pelo gestor municipal.
Na forma disposta nos incisos do art. 3º, da Portaria em questão38, no
contexto do Componente Básico da Assistência Farmacêutica, cabe a União a
destinação de R$ 5,58 por habitante/ano, aos Estados e Municípios a destinação
de R$ 2,36 por habitante/ano e os Distrito Federal, aplicar-se-á, no mínimo, o
somatório dos valores dos Estados e Municípios, por habitante/ano. A execução
desse Componente deve ocorrer de forma descentralizada, segundo o art. 8,
sendo de responsabilidade dos Municípios, do Distrito Federal e dos Estados,
a organização dos serviços e a execução das atividades farmacêuticas, entre as
quais se inclui a seleção, programação, aquisição, armazenamento, distribuição e
dispensação dos medicamentos e insumos.
Os medicamentos do Componente Estratégico são adquiridos de
forma centralizada pelo Ministério da Saúde, e então repassados aos Estados e
Municípios. As ações farmacêuticas e programas de saúde incluídas neste rol estão
previstas nos incisos do art. 26 da Portaria GM/MS n. 204/200739. Já quanto ao
Componente Especializado da Assistência Farmacêutica – anterior “Componente
de Medicamentos de Dispensação Excepcional (CMDE) –, como prevê o art. 2°, da
Portaria 1.554/2013, a política direciona-se pelo financiamento de medicamentos

37 – BRASI., Ministério da Saúde. Portaria nº 1.555 de 30 de julho de 2013. Dispõe sobre as normas
de financiamento e de execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/
prt1555_30_07_2013.html. Acesso em: 23 jul. 2018.
38 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.001, de 03 de agosto de 2017. Altera a Portaria n.
1.555/GM/MS, de 30 de julho de 2013, que dispõe sobre as normas de financiamento e de execução
do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2001_15_08_2017.html.
Acesso em: 23 jul. 2018.
39 – BRASIL. Portaria nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Regulamenta o financiamento e a transferência
dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde, na forma de blocos de financiamento, com
o respectivo monitoramento e controle. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm207/
gm.htm. Acesso em: 15 jul. 2018.

262
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

que estão divididos em três grupos, com características, responsabilidades e formas


de organização distintas, conforme art. 3°, Portaria n. 1.554/201340.
Nesse mesmo dispositivo são previstos quais medicamentos são de
responsabilidade de financiamento da União, dos Estados e dos Municípios, sendo
que os critérios para determinação dessa divisão consideram a complexidade
do tratamento da doença, a garantia da integridade do tratamento da doença
no âmbito da linha de cuidado e a manutenção do equilíbrio financeiro entre as
esferas de gestão do SUS. Além desses parâmetros, também são utilizados critérios
específicos para cada grupo, dentre eles cabe mencionar o “elevado impacto
financeiro”. Os artigos 7° e 8°, da Portaria n. 1.554/201341, estabelecem a conexão
e preveem a responsabilidade de financiamento dos medicamentos da RENAME,
objeto de análise do capítulo primeiro deste estudo.
Essa sistematização, organizada a partir da atribuição de responsabilidades
específicas para cada ente, caracteriza as políticas públicas – também as direcionadas
à saúde –, enquanto ações governamentais que exigem do poder público estratégias
para sua realização. Como aduz Bucci, a política pública é definida como um
“programa ou quadro de ação governamental, porque consiste em um conjunto de
medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar
a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou,
na ótica dos juristas, concretizar um direito”42.
A amplitude da atuação estatal no âmbito em questão já evidencia os
desafios para concretização do direito fundamental à saúde, principalmente no que
diz respeito ao orçamento a ele destinado, ao passo que suas múltiplas facetas
abrangem desde a prevenção, passando pelo atendimento médico, até chegar a
assistência ambulatorial e farmacêutica, objeto deste estudo.

40 – BRASIL. Portaria n° 1.554, de 30 de julho de 2013. Dispõe sobre as regras de financiamento


e execução do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/
prt1554_30_07_2013.html. Acesso em 15 jul. 2018.
41 – BRASIL. Portaria n° 1.554, de 30 de julho de 2013. Dispõe sobre as regras de financiamento
e execução do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/
prt1554_30_07_2013.html. Acesso em 15 jul. 2018.
42 – BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula
Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p.14.

263
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

Assim sendo, a ação governamental é estrategicamente organizada,


mediante a adoção de medidas legislativas e diversas outras manejadas pelo Poder
Executivo e Legislativo – inclusive, em termos de financiamento público, como se
pretendeu demonstrar neste capítulo –
com vistas a assegurar a coletividade a realização gradual e progressiva dos
direitos sociais43.
Embora as políticas públicas sejam guiadas pela ideia de coletividade, o
que implica na obrigação do poder público realizar programas que garantam sua
eficácia, é reconhecido também o caráter individual destes direitos, que podem ser
exigidos individualmente, o que se opera quando acionado o Poder Judiciário44.
A atuação jurisdicional em sede de políticas públicas, principalmente aquelas
discutidas nesta pesquisa, qual seja, a assistência farmacêutica, implica não só
em reflexões sobre procedência ou improcedência do pedido de concessão de
medicamentos, mas também afeta toda estrutura de financiamento apresentada no
presente capítulo. São essas as questões chave para análise das decisões coletadas no
âmbito da pesquisa quantitativa desenvolvida por este estudo, então aprofundadas
no capítulo seguinte.

4 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO RIO GRANDE DO SUL NO QUE SE REFERE À CONCESSÃO DE
MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO

Devido ao amplo teor dos acórdãos, cuja fundamentação passa por uma
série de fatores precípuos à concretização do direito fundamental da saúde através
da assistência farmacêutica, abordaremos cada faceta destes de forma ordenada.
Inicialmente, a partir dos filtros selecionados, foram encontradas 43 decisões. Neste
ponto, cabe rememorar que estas decisões foram coletadas no site do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul –http://www.tjrs.jus.br/site.
A pesquisa quantitativa – pautada no levantamento das decisões – se
desenvolveu a partir da metodologia descrita na introdução deste estudo, sendo
que por meio desta foi possível levantar 43 decisões. Com base nesses dados, foi

43 – CARA, Juan Carlos Gavara de. La dimensión objetiva de losderechossociales. Barcelona: Librería
Bosch, S.L., 2010, p.76.
44 – BITENCOURT, Caroline Muller. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. Porto Alegre:
Núria Fabris, 2013, p. 367.

264
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

possível depreender que o Tribunal possui um entendimento firmado favorável


à concessão de medicamentos, como se pretende abordar no presente capítulo.
Cumpre destacar que do conjunto dos 43 acórdãos encontrados, três foram
excluídos, por não apresentarem pertinência temática com o recorte proposto neste
estudo, especificamente as apelações cíveis números 70069999746, 70037026291 e
70029603149.
Embora a temática destes três versasse sobre o pleito da assistência
farmacêutica, especificamente nesses três processos excluídos, o Tribunal não foi
instado a decidir sobre a manutenção ou reforma da decisão de primeira instância
que concedeu ou negou medicamento de alto custo. Os acórdãos escolhidos
dizem respeito a recursos de apelação que tratam de questões processuais, como
condenação ao pagamento de custas, ou de situações em que o medicamento
requisitado se tornou dispensável, não havendo, portanto, posicionamento do
Tribunal nesse sentido.
Dos 40 acórdãos restantes, 95% determinaram a concessão pelo ente
demandado, se opondo às 5% que foram contrárias a este posicionamento, sendo as
fundamentações de ambos os grupos abordadas ao longo deste capítulo. Em termos
quantitativos, apenas duas dentre as 40 decisões negou provimento ao recurso de
apelação, mantendo a decisão de primeiro grau, e não concedendo o medicamento
pleiteado. Todas as outras 38 são favoráveis a concessão de medicamentos.
Importante mencionar que todas as demandas visam a concretização
do direito fundamental à saúde, e o mencionam em suas fundamentações para
sustentar seus argumentos. Nas decisões, os desembargadores reafirmaram que
a concretização de tal direito se dá, em regra, por meio de políticas públicas
elaboradas e ordenadas pelo Executivo, o qual detêm a competência e o dever de
fazê-lo nas suas três esferas de poder.
Nestas, há a frequente menção aos estudos de Ingo Sarlet45, segundo o
qual trata-se de norma definidora de um direito, possuindo, portanto, uma dupla
dimensão. Por um lado, gera um direito subjetivo ao seu titular, que pode pleiteá-
lo, por outro, gera um dever de concretização ao Estado. Reafirmam, portanto,
o caráter de norma de eficácia plena e imediata, qual seja, autoaplicável, que
dispensa normatização para que o titular detenha tal direito, constituindo-se como
um “superdireito” em detrimento dos demais.

45 – SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9. ed., rev., atual. eampl., p. 165.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

265
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

Quando o cidadão, titular do direito à saúde, se vê dele privado em função da


insuficiência da política pública à luz do caso concreto, opta por demandar o Poder
Judiciário para que este, com base no direito de quem pleiteia, conceda o fármaco
essencial. Nesta senda, o sujeito ativo da demanda, conforme entendimento do
Tribunal em questão, em congruência com os Tribunais Superiores, deve provar
três fatores que condicionam a concessão ou não: a imprescindibilidade, a
hipossuficiência e a efetividade.
A imprescindibilidade se refere à capacidade que detém o fármaco
de reestabelecer a saúde do paciente, ou, não podendo essa ser plenamente
reestabelecida, provar que este proporciona melhoras no quadro clínico e,
consequentemente, nas condições de saúde e de vida do paciente, fato que não
será possível sem o seu uso. A atividade probatória quanto a tal condição se dá
através de laudos assinados pelo médico que vem acompanhando o paciente, sendo
dispensável sua confirmação através dos laudos desenvolvidos dentro do processo
pelo ente demandado, por intermédio dos médicos da rede pública.
Trata-se de um argumento frequentemente utilizado pelo Poder Público na
sua defesa processual, entendendo este que muito mais do que haver laudo que
configure a patologia e a necessidade do fármaco, deve haver a comprovação pelos
médicos do Estado do mesmo quadro clínico, acrescido à esta, a correspondência
entre o fármaco e a doença no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT),
vez que esta é a finalidade de tal norma administrativa. Sobre o tema, embora
Estado e Municípios insistam haver cerceamento de defesa nestes casos, o Tribunal
é pacifico ao afirmar que, basta laudo médico daquele que acompanha a paciente
para que se configure a necessidade do tratamento, independentemente de tal
laudo ser reafirmado pelos médicos públicos, bem como pelo PCDT.
O segundo requisito refere-se à hipossuficiência, qual seja, incapacidade do
demandante de arcar com tratamento por conta própria, sem prejuízos ao próprio
sustento e de sua família. Este critério vem adstrito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, e conforme explicitado, não exige condições como miserabilidade
ou carência, mas que o custeio do tratamento por conta própria inviabilize que
arque com seus demais custos de vida essenciais. Tal condição resta provada pela
juntada de documento que comprove os rendimentos da parte relacionando-os ao
custo do tratamento, acrescendo a este também por fatores exógenos, como a parte
demandar através da Defensoria Pública ou o encaminhamento e laudos terem
sido produzidos por médicos da Rede Pública de Saúde, quando se presume a
hipossuficiência desta.

266
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

Foi com base nesse critério, que o Tribunal sustentou um dos dois
casos de não concessão encontrado a partir do recorte proposto. Na apelação n.
70035667369, este critério não só foi mencionado, mas também foi adotado para
fundamentar a negativa do medicamento de alto custo solicitado, como se vê:

Como sabido, é dever do Estado, em todas as suas esferas, garantir,


especialmente, à criança ou adolescente, o custeio de medicamentos,
insumos ou tratamentos médicos, desde que a família não tenha
condições financeiras de arcar com o tratamento. É o que prevê o art. 1º
da Lei Estadual n.º 9908/93: “O Estado deve fornecer, de forma gratuita,
medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as
despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recursos
indispensáveis ao próprio sustento e de sua família”. Não é o que
acontece no presente caso, em que, por mais que provada a necessidade
dos medicamentos, bem assim seu alto custo, a família da infante possui
condições financeiras de adquiri-lo (grifo nosso).

Por fim, é ainda essencial a prova da eficácia do fármaco ao quadro clínico


do paciente, de forma que o Poder Público não seja condenado à gastos em função
de medicamentos com efetividade duvidosa que igualmente não cumprirão
a função de garantir o reestabelecimento da saúde do paciente. Entretanto,
quanto a eficácia do medicamento, cabe ressaltar o entendimento que considera
a prevalência da prescrição efetuada pelo médico, que acompanha o paciente.
Nesse ponto, cabe mencionar que a segunda decisão que determinou que o
medicamento não fosse concedido – apelação cível n. 70069999746 –, tinha por
fundamento o descumprimento de tal requisito. Tal critério, novamente, independe
da correspondência prevista no PCDT, bastando a comprovação médica de que o
resultado é efetivo e favorável ao quadro do paciente, à luz do caso concreto.
Nesse sentido, trecho da apelação cível n. 70033461542, destacado abaixo,
ilustra muito bem a prevalência da prescrição médica e a desnecessidade do
medicamento ter seus efeitos comprovados para que seja fornecido. Como se vê:

Sendo assim,adoto como razões de decidir o parecer do Ministério Público


neste grau de jurisdição de lavra do Procurador de Justiça de fls. 257/261:
Então, ainda que o fármaco não se encontre nas listas de medicamentos,
substâncias ou tratamentos custeados pelo Estado, considerando que

267
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

a prova juntada ao grampo dos autos demonstra a necessidade de sua


utilização no tratamento da paciente, bem como a ausência de condições
da família em adquiri-los e a solidariedade dos entes estatais, a decisão
hostilizada não merece qualquer reparo. Além do mais, pouco importa
que o medicamento (vacina SYNAGIS) se encontre com registro vencido,
na ANVISA, desde março de 2009. Conforme já se decidiu, em julgado
análogo, abaixo transcrito, o que importa é que este foi o tratamento
prescrito pelo médico como adequado, ainda que desconhecidos seus
efeitos. Razão pela qual, se o ESTADO não comprovou, no caso dos
autos, a inadequação do respectivo fármaco, deve ser esse o fornecido.

Essa temática se relaciona diretamente com a possibilidade ou não


de concessão, pela via judicial, de medicamentos não registrados pela Anvisa.
Inclusive, esta questão é mencionada no julgado supracitado. De todo modo, não
é este o recorte proposto pelo presente estudo, embora neste ponto, em especial,
estes dois temas se cruzem. Em outra ponta, cumpre salientar que, conforme
explicitado nas decisões, não é necessário que a parte esgote a esfera administrativa
para que ingresse judicialmente com o pedido de tutela que visa a concessão de
medicamentos essenciais à manutenção da vida e da saúde. Tal argumento tem
por base o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, segundo não se pode excluir
da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça à direito, o que evidentemente resta
configurado neste caso.
Tal demanda tem por sujeito passivo qualquer um dos entes federativos,
com base na divisão de competências estabelecida no art. 23, II da CF. Deste
dispositivo, o Tribunal em foco, em consonância com os Tribunais Superiores,
firmou o entendimento de que entes possuem responsabilidade solidária no que
tange a assistência à saúde. Desta forma, será responsável por fornecer o fármaco
pleiteado o ente que for demandado pelo titular do direito subjetivo, tendo este
o poder de escolha de quem deverá cumprir a obrigação, podendo fazê-lo em
conjunto ou separadamente, independentemente de regionalização e hierarquia
que estruturam a prestação do serviço público de saúde, tratando-se, portanto, de
um litisconsórcio facultativo.
Na prática, verificou-se que, embora tanto a União, quanto os Estado e os
Municípios possam configurar o polo passivo da demanda, em 57% das decisões
analisadas, foram demandados o Estado do Rio Grande do Sul e o Município
de residência do demandante conjuntamente; em 40% das decisões analisadas foi

268
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

demandado isoladamente o Estado do Rio Grande do Sul; por fim, em 3% das


decisões foi demandado isoladamente o Município no qual residia o demandante.
Nesta senda, surgem alguns elementos trazidos nas defesas de Estado
e Municípios, analisados pelos acórdãos, as quais são atinentes a este estudo.
Alegam estes que, embora o texto constitucional, em seu artigo 23, II, determine
a competência comum dos entes para cuidarem da saúde, existe uma organização
administrativa que orienta a forma como o Poder Público irá concretizar tal
direito fundamental. Inicialmente, há uma divisão articulada de competências aos
três níveis de gestão, segundo a qual cada ente é responsável por uma classe de
fármacos, de acordo com critérios como a complexidade e os custos, conforme já
mencionado.
Logo, quanto aos medicamentos de alta complexidade, o ente demandado
deveria, necessariamente, ser a União, os de média o Estado e os do componente
básico o Município. Além disso, reafirma que existem normas administrativas que
orientam a política pública de saúde, como por exemplo a RENAME e o PCDT,
os quais igualmente dividem a competência dos entes em relação a cada classe de
fármacos e associando a doença com o respectivo tratamento, devendo estes serem
respeitados no que tange à concessão judicial dos medicamentos, vez que são as
balizas de tal prestação pública.
No entanto, o tema é pacífico nas decisões analisadas. Adota-se o
entendimento de que a solidariedade dos entes em tal matéria faz com que qualquer
um deles possa ser demandado, independentemente da estrutura administrativa
adotada no âmbito do Executivo para a materialização do direito. Não tem
acolhimento a alegação de que, com base na divisão de competência que orienta
a prestação, somente o ente que tem a responsabilidade de fornecer determinada
classe de fármacos possa ser demandado para fazê-lo. Muito pelo contrário,
inclusive o ente que, administrativamente não é responsável por fazê-lo, poderá
ser demandado a critério de quem ajuizar o pedido, podendo o ente condenado ao
fornecimento pleitear o posterior ressarcimento pelo que seria competente.
Dessa forma, parte-se do pressuposto de que tais normas que estipulam
a divisão, conforme mencionado, servem para orientar a ação do próprio poder
público. Neste sentido, transcreve-se um trecho da apelação cível nº 70060168317,
de relatoria do Desembargador Leonel Pires Ohlweiler:

Conforme já decidido nesta Corte (Apelação e Reexame Necessário nº


70050901958, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Almir Porto da Rocha

269
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

Filho, julgado em 27/03/2013), verifica-se que foram “instituídos diversos


requisitos para a dispensação de medicamentos e produtos pelos entes
públicos. Segundo tais regras, é imprescindível na esfera administrativa
a observância dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e, na falta
destes, das competências estabelecidas na própria lei”. Da leitura dos
citados dispositivos, fica claro que as disposições são “direcionadas aos
próprios entes estatais, cabendo a eles fazer acerto administrativamente
dos regramentos estabelecidos”. Ademais, na esteira do aludido julgado,
não se configura “ofensa ao disposto no artigo 196 da CF, mas mera
normatização a ser seguida por aqueles”.

Da mesma forma, no que se refere à Relação Nacional de Medicamentos


Essenciais, que determina a classe de fármaco que deverá ser fornecida por cada
uma das três esferas de governo, segundo os acórdãos, esta não pode se sobrepor ao
direito constitucionalmente assegurado. Conforme alegação dos entes demandados,
condenar um deles a fornecer medicamento que não é de sua responsabilidade e
sim de outro, significa ir contra todos os dispositivos estruturam tal prestação.
Segundo o Tribunal, “a distribuição de competência no Sistema Único de
Saúde (Lei n. 8.080/90) não tem o condão de afastar a responsabilidade solidária
dos entes públicos”, exatamente por isso que tal Relação, bem como o PCDT,
não podem limitar o direito à saúde. Para este, o fato do texto constitucional
assegurar o direito à saúde e impor ao poder público o dever de concretizá-lo
tem como consequência inafastável a obrigação deste conceder o medicamento,
independentemente de ser albergado pela RENAME, se de acordo com PCDT, ou
qualquer outra normatização administrativa que orienta a política.
Neste contexto, inegavelmente a decisão que concede tal categoria de
fármacos o faz pelo caminho oposto ao adotado para as demais prestações de saúde
em forma de política pública. Esta se dá através da estruturação administrativa,
articulação dos órgãos e normatização do âmbito de atuação de cada um dos
entes, de forma a prestar um serviço universal, igualitário e gratuito a toda a
população. Enquanto que aquela se concretiza a partir de uma decisão judicial
de órgão jurisdicional provocado por um titular de direito subjetivo à saúde, que
o não vê materializado plenamente. Portanto, embora seja de competência do
Executivo a materialização da saúde, o Judiciário vem desempenhando um papel
de coadjuvante neste cenário.

270
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

É nesse ponto que se sucedem uma gama de argumentos utilizados pelos


entes públicos ao recorrerem das sentenças de primeiro grau, levando a apreciação
da lide ao Tribunal. Embora o Judiciário detenha competência constitucional para
reparar lesão e ameaça à direito, como no caso em tela, quando o faz, interfere
diretamente no orçamento do ente que condena, sobretudo no dos Estados e
Municípios, os quais configuram-se como os principais demandados. O primeiro
argumento utilizado na defesa dos entes consiste no Princípio da Reserva do
Possível, segundo o qual condiciona-se a concretização dos direitos sociais à
existência de condições materiais e financeiras para fazê-lo, se referindo ao que é
chamado de “dimensão econômica dos direitos prestacionais”46.
Significa dizer que, estes possuem um orçamento fixo para gastos com saúde
da população como um todo, devendo despender parte deste para o cumprimento
das decisões judiciais de tutela individual. Seja pela imprevisibilidade ou pelo
custo do tratamento que o ente deverá suportar, este sustenta que se trata de
interferência de outro poder no seu âmbito de competência, bem como nos seus
gastos. O Tribunal, por sua vez, ao analisar tal fundamento justifica que, embora
seja essencial a possibilidade orçamentária de concessão do fármaco, meio pela
qual se concretizará o direito à saúde, tal princípio não deve consolidar-se como
impedimento à sua efetivação através do Judiciário, vez que não possui caráter
absoluto, devendo ser ponderado à luz do caso concreto.
Desta forma, embora reconhece a existência e validade de tal princípio como
fundamento, afirma que este não pode ser invocado com o objetivo de inviabilizar
a implementação de direito constitucionalmente assegurado, inclusive pelo seu
caráter essencial, adstrito ao direito à vida, dignidade da pessoa humana e garantia
do mínimo existencial, os quais necessariamente impõe o dever prestacional do
Estado como forma de garantir condições adequadas de uma existência digna.
Portanto, com base na jurisprudência firmada, tal argumento só será
acolhido caso haja a comprovação de que “os recursos arrecadados estão sendo
disponibilizados de forma proporcional aos problemas encontrados, e de modo
progressivo a fim de que os impedimentos ao pleno exercício das capacidades
sejam sanados no menor tempo possível”47. Significa então que, somente não

46 – CARA, Juan Carlos Gavara de. La dimensión objetiva de losderechossociales. Barcelona: Librería
Bosch, S.L., 2010, p.43.
47 – SCAFF, Fernando. Reserva do possível, Mínimo Existencial e Direito Humanos. Interesse público,
v.32, jul./ago., 2005, p.215.

271
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

será concedido o medicamento em função de incapacidade financeira se o poder


público demonstrar que está cumprindo com seu papel, de forma que este consiga,
por meios próprios e em tempo compatível, fornecer o fármaco através da própria
política pública.
Igual entendimento recai sobre o argumento dos entes sobre a inexistência
de estoques do fármaco pleiteado na rede pública, não podendo este constituir um
óbice à concretização de direito fundamental. Neste contexto, preconiza que dever-se-á
adquiri-lo em prazo coaduno à necessidade do paciente, ainda que o faça sem licitação
em estabelecimento particular, às expensas do ente condenado. Logo, inegavelmente,
é entendimento do Tribunal que a concretização do direito à saúde prevalece aos
princípios orçamentários. A interferência do Judiciário no âmbito de atuação do
Executivo traz aos autos analisados o debate acerca da Separação de Poderes.
Por um lado, os entes federativos prelecionam que não poderia um Poder
exógeno determinar como estes devem usar seu orçamento ou como devem se
estruturar para cumprir seus deveres constitucionalmente impostos, sendo que
tais decisões interferem na execução das políticas por estes de forma que parte de
suas verbas impositivamente devam ser direcionadas ao cumprimento de decisões.
Por outro, ao analisar os acórdãos foi possível depreender que a postura de tal
órgão jurisdicional se legitima na competência para apreciar as lesões e ameaças de
direito, conforme supracitado, que decorrem da ineficiência ou omissão do poder
público em cumprir o que lhe compete. Pelo fato de que a suposta interferência
decorre de um dever constitucionalmente imposto, não há que se falar em afronta à
independência dos poderes, vez que seus atos são legalmente previstos constituindo-
se como dever de agir.
Acrescenta-se a este, o argumento recorrente dos entes demandados de
que a concessão de uma tutela individual, à luz do caso concreto pelo Judiciário,
que culmina na condenação do poder público a fornecer um fármaco através do
Sistema Único de Saúde, violaria seus princípios orientadores, qual seja, prestação
igualitária e universal. Afirmam que a finalidade do SUS é o atendimento da
população como um todo, com o objetivo de concretizar o direito à saúde, por meio
do tratamento gratuito e integral, como já abordado. Em contraponto, transcreve-
se manifestação em acórdão que julga a apelação cível nº 70060653631, a qual
elucida a posição do Tribunal sobre o tema:

Incumbe ao Poder Judiciário determinar o cumprimento das prestações


contidas nas políticas públicas que garantam acesso universal e igualitário

272
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

aos serviços criados para atender ao dever do Estado e, também, realizar


o exame da suficiência da política pública para assegurar o conteúdo
mínimo de proteção que o princípio constante no direito fundamental
de acesso à saúde exige. Assim, nos casos em que a política pública se
demonstra insuficiente ou ineficaz aos seus fins, é possível a sua revisão
judicial com a concessão de medicação, exame ou procedimento não
previsto. Com tais medidas, não se privilegia um interesse subjetivo,
porque o interesse social é de que a política seja suficiente e eficaz.
Também não há ofensa ao princípio da pessoalidade, porque a causa da
revisão judicial é a insuficiência da terapêutica adotada pelo protocolo.
Tampouco há ofensa ao princípio da divisão de Poderes, pois a revisão
dos atos administrativos é função judicial típica, bem assim às normas
orçamentárias ou ao princípio da reserva do possível, porque a colisão
entre princípios não admite raciocínios de tudo ou nada, exigindo antes
a compatibilização, de forma a obter a máxima otimização de ambos.

Sendo assim, firmou-se o entendimento de que o Judiciário atua quando


o Executivo deixa de cumprir o dever que lhe é legalmente imposto, não sendo
possível se referir às decisões concessivas como afrontas ao princípio da reserva
do possível, da separação de poderes ou da isonomia. Pelo fato de que as políticas
públicas devem ser estruturadas de forma que sua execução proporcione a proteção
suficiente ao direito alvo, a sua interferência dar-se-á quando legalmente legitimada,
limitando-se ao âmbito do não cumprimento da obrigação estatal.
Ante o exposto, tem-se, resumidamente que: trata-se da demanda do
titular de direito fundamental que o vê lesado, contra os entes federativos que têm
a competência e o dever de concretizá-los mediante políticas públicas. Quando
não o fazem, o Judiciário é instado a decidir e, levando em conta a natureza do
direito pleiteado aduz que este não pode ter óbices como, por exemplo, as normas
administrativas que estruturam a execução da política. Como a atuação do Judiciário
é constitucionalmente respaldada, não há que se falar em quebra da separação de
poderes. As decisões são, em sua grande maioria, concessivas, independentemente
do medicamento estar de acordo com a RENAME, correspondência entre ele e a
doença no PCDT ou o fornecimento ser de competência do ente demandado.
Por fim, no que se refere à decisão do acórdão, a condenação dos entes ao
fornecimento, obedecidos os critérios e fundamentos esmiuçados neste capítulo,
quando concessivas não determinam como se dará o cumprimento da obrigação

273
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

imposta. Quando o demandado é, isoladamente, o Município ou o Estado, não há


maiores dificuldades, vez que este deverá fornecer o fármaco da maneira que lhe
aprouver.
Mas, quando ambos são demandados, a decisão não especifica como se
dará tal cumprimento, se haverá rateio da obrigação, dividindo os custos, se haverá
transferência de valores de um ente ao outro, ou qualquer outra forma. Partem,
portanto, do pressuposto de que existe uma organização administrativa que irá
coordenar a forma de cumprimento da decisão, um dos poucos momentos em que
foi possível depreender a validade desta quanto às lides levadas à apreciação do
Judiciário, no recorte abordado.
Cabe ressaltar um posicionamento que por diversas vezes apareceu nas
decisões analisadas, qual seja: a possibilidade de ressarcimento do ente condenado
ao fornecimento do fármaco que não era de sua competência de acordo com a
organização administrativa, já supramencionada. Tal possibilidade não fora
apontada em todos os acórdãos analisados, mas em 8 deles, sendo 7 de relatoria
do Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, transcreve-se,
especificamente, da apelação cível nº 70059954073:

Esclareço, no entanto, que cabe a cada ente público buscar o ressarcimento


cabível dentro do próprio sistema público de saúde. Ou seja, se os
protocolos apontam que o fornecimento de determinado serviço,
medicamento ou alimento especial é de responsabilidade de outro ente
público, que não está sendo demandado, cabe ao demandado buscar o
repasse dos valores gastos ou, então, promover a cobrança administrativa
(ou mesmo judicial) junto ao ente público obrigado, consoante os
convênios e protocolos que orientam o sistema público de atendimento à
saúde, que é o SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE.

Observando o histórico dos acórdãos, foi possível identificar que esse


posicionamento aparece pela primeira vez na apelação cível n. 70028658201,
também de relatoria do Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos
Chaves, na qual o Estado pleiteia pelo reconhecimento de sua ilegitimidade
passiva, tendo em vista ser do Município a responsabilidade pelo fornecimento.
Na oportunidade, o relator pondera justamente sobre a importância da repartição
de competências para a concretização dos princípios que norteiam o Sistema
Único de Saúde (SUS),

274
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

É que as normas que regulam o funcionamento do Sistema Único de


Saúde – SUS – (NOB – SUS/96) Publicada no (D.O.U. de 6/11/1996)
- estabelecem clara divisão de competência, definindo quais os serviços
e quais os medicamentos que devem ser fornecidos pelos entes públicos
que integram o sistema, assegurando a efetividade das políticas públicas
na área da saúde, visando atender toda a população. Dessa forma torna-
se possível garantir a melhor utilização dos recursos públicos e evita-
se a oneração indevida de um ente público, quando o fornecimento de
determinado serviço ou de determinado fármaco for atribuição de outro,
a partir da competência preestabelecida. E com isso, fica assegurada a
efetividade das políticas públicas na área da saúde, visando atender
toda a população. É, pois a única forma de tornar possível a desejada
universalidade do atendimento. Por essa razão, para tornar possível e
saudável o sistema de saúde pública é que se impõe respeito aos critérios
estabelecidos, pois a partir deles evidentemente é que são elaborados os
orçamentos e são feitas as previsões de recursos para o fornecimento
dos serviços e para o abastecimento das farmácias públicas. E estudos
criteriosos estabeleceram o farto arsenal terapêutico disponibilizado.

É com base nestes fundamentos que o relator reconheceu a procedência


do pleito feito pelo Estado, para então reconhecer sua ilegitimidade passiva
e reconhecer a competência do Município de Porto Alegre para fornecer o
medicamento solicitado. Entretanto, o revisor abriu divergência, destacando
justamente a responsabilidade solidária entre os entes e reconhecendo a igual
responsabilidade no Estado no fornecimento do fármaco, posicionamento que
terminou sustentado pela jurisprudência do STJ e STF, e sagrou-se prevalecente
também na apelação cível em comento.
São esses os resultados encontrados a partir do levantamento dos dados
proposto. A análise dos acórdãos selecionados pode ensejar distintas abordagens e
reflexões críticas, porém, para os fins do presente estudo, a análise dos fundamentos
extraídos das decisões, sejam estes argumentos dos entes demandados ou dos
membros do Judiciário em suas decisões, voltou-se especificamente para verificar
como se dá o enfrentamento dos limites administrativos e orçamentários, quando
há concessão do medicamento solicitado. Isso, como se pretendeu demonstrar no
presente capítulo, para verificar como decide o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, quando provocado em matéria de medicamentos de alto custo.

275
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A judicialização da saúde é fenômeno que resulta de um processo marcado


pela constante demanda pela intervenção judicial no âmbito das políticas públicas,
voltada para garantir o direito à saúde. Conforme demonstra o relatório Justiça
em Números de 2017, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesse
ano tramitavam 1.346.931 demandas judiciais de natureza diversa relacionadas ao
direito à saúde48. Nesse mesmo sentido, não se pode deixar de mencionar, que
conforme dados divulgados pelo Observatório de Análise de Políticas em Saúde
(OAPS), a União aumentou em 727%, entre 2010 e final de 2016, os gastos com
ações judiciais direcionadas para a prestação de saúde49 (OAPS, 2017).
Estes dados indicam a relevância da temática da judicialização da saúde,
seu impacto para os cofres públicos e, consequentemente, para a formatação das
políticas públicas relacionadas à saúde. Dentre os muitos temas envoltos nesse
contexto, há que se destacar a divergência em relação a obrigatoriedade de o poder
público fornecer medicamentos de alto custo não previstos na Relação Nacional
de Medicamentos Essenciais (Rename), do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse
contexto, é a assistência farmacêutica uma das principais formas de realização e
garantia do direito à saúde (e, sobretudo, à vida) e aquela que consome um grande
percentual do orçamento a elas destinado.
Não apenas por preconizar a dispersão de medicamentos de forma gratuita
e universal, mediante alguns requisitos, mas pelo fato de que, quando não o faz,
suscita constantes interferências do Poder Judiciário nas políticas elaboradas e
desenvolvidas pelo Executivo neste setor. Como se pretendeu demonstrar no presente
estudo, este tema enseja tanto a compreensão da organização administrativa,
apresentada no segundo capítulo, quanto a análise da competência dos entes,
quanto aos limites orçamentários, impostos frente a gestão dos escassos recursos
públicos. Esses fatores conjugados dão, de plano, a complexidade da discussão
submetida ao crivo do Poder Judiciário, mais especificamente, ao Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como propõe o recorte deste estudo.

48 – BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números. Brasília: CNJ, 2017.
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em: 27 jul.
2018.
49 – OBSERVATÓRIO DE ANÁLISE DE POLÍTICAS EM SAÚDE (OAPS). Disponível em: http://
www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/. Acesso em: 20 jul. 2018.

276
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

Como visto, em que pese a supramencionada organização administrativa,


pautada em uma forma federativa de cooperação entre os entes, este modelo parece
fragilizado quando a jurisprudência, inclusive pautada em decisões do Supremo
Tribunal Federal (STF)50, vale-se do princípio da solidariedade para afirmar a
competência comum dos entes na garantia da assistência farmacêutica. Isso porque,
ao assegurar a possibilidade do administrado receber a prestação de qualquer dos
três entes, esse entendimento jurisprudencial dominante cria, do ponto de vista
prático, dificuldades em relação aos limites administrativos e grande dispêndio de
recursos, principalmente porque, já em juízo, três estruturas passam a funcionar
para atuarem na defesa da Fazenda Pública51.
Em outra ponta, o que se tem é o risco da superposição de esforços, de
agentes públicos e desorganização da estrutura administrativa e orçamentária,
então apresentada neste estudo, vez que o entendimento da solidariedade dos
entes, tal como postulado pela jurisprudência dominante, parece ir de encontro a
divisão de competência do modelo federativo52. Ressaltar esses efeitos colaterais
das decisões concessivas, pautadas no princípio da solidariedade, não é sobrepor
a organização administrativa ao direito à saúde, constitucionalmente assegurado.
Até mesmo porque, enquanto direito fundamental, este deve ter sempre assegurada
sua prevalência.
Ao contrário, objetiva-se ensejar reflexões críticas que também considerem
que toda estrutura administrativa, pautada na cooperação e repartição das
competências dos entes federativos, também é voltada para a concretização do
direito fundamental à saúde, em sua dimensão coletiva. E, se esta resta prejudicada
para satisfação de demandas individuais, não se pode deixar de considerar as
consequências para a coletividade, destinatária das políticas públicas de saúde,
como a assistência farmacêutica.

50 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 195192/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 31/03/2000.
Disponível: portal.stf.jus.br. Acesso em: jul. 2018; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. REsp 674803,
Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 06/03/2007. Disponível: portal.stf.jus.br. Acesso em: jul. 2018.
51 – BARROSO, L. R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento
gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”. In: Interesse Público, n. 46, nov.-
dez./2007, p.59.
52 – BARROSO, L. R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento
gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”. In: Interesse Público, n. 46, nov.-
dez./2007, p.58.

277
Caroline Andressa Rech e Lara Santos Zangerolame Taroco

Enquanto não houver manifestação definitiva do Supremo Tribunal Federal,


no RE 566.471/RN, ainda pendente de julgamento, cuja repercussão geral já
foi admitida, a questão segue em aberto. No entanto, como se pode verificar a
partir dos dados apresentados no terceiro capítulo, para efeitos práticos – ante a
jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, o Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul admite a solidariedade entre União,
Estados e Municípios nas demandas que dizem respeito ao atendimento à saúde,
inclusive nas que pleiteiam assistência farmacêutica.
Assim, a partir da análise das decisões do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, o que se constata é o conflito de interesses, posto em segunda
instância por intermédio do recurso de apelação, que leva ao Poder Judiciário
elementos que, normalmente, não compõem seu escopo decisório, como a eleição
de prioridades de atuação em situações de múltiplas demandas e recursos escassos.
Há, portanto, risco de prejuízos às políticas públicas em vigor e também
de converter decisões judiciais em singela retórica53, frente a impossibilidade de
o Poder Judiciário suprir a necessidade de ampla atuação exigida pelas políticas
públicas de saúde e frente aos limitados recursos públicos. São esses riscos que
parecem ser ainda mais agravados quando o que está em jogo é a concessão de
medicamentos não previstos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
(RENAME), como propõe o recorte desta pesquisa, em função da possibilidade de
comprometer tanto limites administrativos, quanto orçamentários.
Ao ponderar os argumentos encontrados nas 43 decisões do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a principal reflexão que pode ser extraída,
são justamente alguns questionamentos, para indagar qual deve ser a finalidade
da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)? É tão somente
um parâmetro para elaboração de políticas públicas voltadas para a assistência
farmacêutica? Não deveria ser conferida a este importante documento para
formatação de políticas públicas maior relevância, ou então promovida sua revisão
e atualização? Já em relação ao princípio da solidariedade dos entes da federação
em garantir o direito à saúde, não poderia ser direcionada a responsabilidade
de fornecimento diretamente para o ente competente, segundo as normas
administrativas?

53 – BITENCOURT, Caroline Muller. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. Porto Alegre:


Núria Fabris, 2013, p. 368.

278
Concessão de medicamentos de alto custo não previstos na relação nacional de medicamentos essenciais,
limites administrativos e orçamentários: como decide o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul?

São estes alguns questionamentos que fomentam a reflexão crítica, objetivo


do presente estudo, que tem por intuito principal contribuir para as discussões em
relação a judicialização das políticas públicas, sobretudo, no tange a assistência
farmacêutica. Isso, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, e especificamente em relação aos medicamentos de alto custo.
Tratam-se, portanto, de pontos a serem destacados, principalmente quando o que
está em jogo são os limites administrativos e orçamentários, essenciais para assegurar
a garantia do direito à saúde a todos, vez que, a imposição de gastos ao Executivo
desconsiderando toda a estrutura administrativa destinada a concretização dos
direitos fundamentais faz com que todo o esforço organizacional de tal poder caia
por terra.
Depreende-se das análises das decisões que, no âmbito do Judiciário, tais
normativas são vistas como óbices à concretização dos direitos, ainda que estas,
de fato, tenham o objetivo de orientar a prestação estatal da forma mais ampla e
eficaz possível. Por fim, cumpriu-se o objetivo de analisar como decide o Tribunal
em foco, e, a partir de tal posição, foi possível reafirmar que a organização e
emparelhamento do Executivo não deve ser vista como fato impeditivo do direito,
mas levada em consideração nas decisões como orientação do cumprimento
das obrigações por ela imposta, da forma mais efetiva e baseada nos princípios
orientadores tanto da política quanto do sistema jurídico brasileiro.

REFERÊNCIAS

BARROSO, L. R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito


à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação
judicial”. In: Interesse Público, n. 46, nov.-dez./2007, p. 31-61.
BITENCOURT, Caroline Muller. Controle jurisdicional de políticas
públicas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2013.
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Brasília: Ministério da Saúde, v. 2, p. 6, 2010.
______. Ministério da Saúde. Relação Nacional de Medicamentos
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Acesso em: 29 jun. 2018.

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financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços
de saúde, na forma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento
e controle. Disponível em: http//www.saude.gov.br/doc/portariagm207/gm.htm.
Acesso em: 15 jul. 2018.
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______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.001/17. Altera a Portaria n. 1.555/
GM/MS, de 30 de julho de 2013, que dispõe sobre as normas de financiamento e de
execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
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______. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.554/13. Dispõe sobre as regras
de financiamento e execução do Componente Especializado da Assistência
Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1554_30_07_2013.html. Acesso
em 15 jul. 2018.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.555/13. Dispõe sobre as normas
de financiamento e de execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica
no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.
gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1555_
30_07_2013.html. Acesso em: 23 jul. 2018.
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Acesso em: 29 jun. 2018.

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281
JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E A QUESTÃO
DA FALTA DE VAGAS EM LEITOS HOSPITALARES:
ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Sabrina Santos Lima1


Grégora Beatriz Hoffmann2

RESUMO

No contexto pós Constituição Federal de 1988, onde verifica-se o real


compromisso do Constituinte em ver-se garantidos os direitos fundamentais,
incluídos, nesse tópico, os direitos sociais, sobressaem debates que tocam o direito
à saúde, especificamente. É dever do Estado garantir a todos o direito à saúde,
que se consubstancia, ao fim e ao cabo, no próprio direito à vida, ocorre que nem
sempre essa garantia é eficaz, tendo em vista o não fornecimento de determinados
medicamentos, o atraso nas consultas médicas e exames, a não marcação de
cirurgias, bem como a falta de vagas em leitos hospitalares. É nesse momento,
portanto, que se vê em evidência a atuação do Poder Judiciário, não pouco

1 – Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Sociais e Políticas Públicas


da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (Santa Cruz do Sul, RS, Brasil), na linha de pesquisa
Constitucionalismo Contemporâneo. Bolsista PROSUC/CAPES, modalidade I. Graduada em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. E-mail: <sa._94@hotmail.com>.
2 – Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Funcionária pública
municipal. E-mail: <gregora.hoffmann@gmail.com>.
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

criticado por, teoricamente, invadir a esfera de competência dos demais Poderes


(Legislativo e Executivo), haja vista o grande número de demandas judiciais que
buscam, então, a garantia do direito à saúde, em razão da negativa ou inércia do
Poder Público. A partir dessa questão surge a problemática a ser trabalhada ao
longo do artigo, qual seja: como se manifesta o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul nos casos de judicialização da saúde que envolvam a falta de vagas em leitos
hospitalares? Assim, pretendendo responder o problema suscitado, utilizar-se-á o
método dedutivo, através de pesquisa doutrinária e jurisprudencial. Desse modo,
num primeiro momento pretende-se abordar a evolução e a contextualização do
direito à saúde no Brasil, para, então, verificar como se dá a judicialização dos
direitos sociais no cenário constitucional atual e, por fim, analisar as decisões que
envolvam a busca pelo direito à saúde no Rio Grande do Sul, especificamente as
que se referem à falta de vagas em leitos hospitalares, a fim de se verificar qual a
posição do Tribunal sobre o tema, e quais os principais argumentos utilizados para
o deferimento, ou não, das demandas.
Palavras-chave: direito à saúde; judicialização; leitos hospitalares; Rio
Grande do Sul.

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde consiste em um direito social fundamental garantido pela


Constituição Federal de 1988, a qual atribuiu-lhe grande importância por estar
previsto, justamente, no Título que prevê o rol de direitos e garantias fundamentais
(Título II, da Constituição Federal de 1988), sendo, assim, considerado um direito
fundamental que deve ser cumprido pelo Estado brasileiro da forma mais eficiente
possível. Ocorre que essa prestação vem apresentando inúmeras falhas, na medida
em que se verificam situações de não fornecimento de medicamentos (de alto e
baixo custo), atraso nas consultas médicas e exames, não marcação de cirurgias,
falta de vagas em leitos hospitalares, dentre outras questões que são de competência
do Poder Público, através do Sistema Único de Saúde (SUS), mas que não se veem
concretizadas.
Diante desse contexto, em que o direito à saúde se vê violado de forma
constante, repercutindo, muitas vezes, no próprio direito à vida, verifica-se uma
forte tendência em recorrer ao Poder Judiciário para que se façam cumprir as
garantias constitucionais, momento a partir do qual passa-se a falar no fenômeno

284
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

da judicialização, nesse caso, mais especificamente, da judicialização do direito à


saúde. Assim, mostra-se relevante a análise da questão da judicialização da saúde
no estado do Rio Grande do Sul, a qual se caracteriza, justamente, na busca da
proteção do direito junto ao Judiciário, que desenvolve um papel protagonista no
cenário brasileiro atual.
A partir daí, então, exsurge a problemática a ser trabalhada ao longo deste
artigo, calcada no seguinte questionamento: como se manifesta o Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul nos casos de judicialização da saúde que envolvam a falta
de vagas em leitos hospitalares? Pretendendo responder ao problema, utilizar-se-á
o método dedutivo, partindo-se de uma perspectiva geral para a particular, através
da pesquisa bibliográfica e análise jurisprudencial. Esse tema merece reflexão em
razão da necessidade de ver-se garantido o direito à saúde, bem como da utilidade
em ter-se claro quais as justificativas e argumentos utilizados pelo Tribunal para
deferir ou negar as demandas que envolvam um assunto tão caro como é a questão
da falta de vagas em leitos hospitalares.
Dessa forma, para alcançar o objetivo pretendido, qual seja, averiguar como
se manifesta o Tribunal do Rio Grande do Sul, no que toca à questão da falta de
vagas em leitos hospitalares, abordar-se-á, num primeiro momento, a evolução e a
contextualização do direito à saúde no Brasil. Após essa análise inicial, procurar-
se-á apresentar breves apontamentos referentes à judicialização dos direitos sociais
no cenário constitucional atual, e, num momento final, analisar-se-á as decisões
proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS), abarcando
um período de cinco anos, que se referem à questão da falta de vagas em leitos
hospitalares, com o fim de verificar a forma como se manifesta o Tribunal no que
toca esse ponto, bem como quais os principais argumentos utilizados.

2 A EVOLUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE


NO BRASIL

A saúde pública no Brasil passou por significativas mudanças desde a


colonização portuguesa até a democratização do Estado. Se inicialmente os poucos
serviços e ações de saúde eram destinados à elite colonial, a Constituição Federal
de 1988, baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, consolidou a saúde
como direito fundamental de todos, e dever do Estado, e antecedeu a criação do
Sistema Único de Saúde, SUS, pela Lei nº 8.080 de 1990. A partir de então, todos

285
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

os atos da Administração Pública, e aqui inclui-se o SUS, deverão necessariamente


observar os princípios constitucionais na concretização dos interesses coletivos.
(AGUIAR, 2011).
A evolução do sistema de saúde brasileiro acompanhou as tendências
políticas e econômicas do país em cada momento histórico, sob a ideologia
capitalista nacional e internacional. Outrossim, cada período histórico é marcado
por alguma dificuldade específica, estritamente relacionada ao contexto econômico
e político do Poder Público.
No período colonial/imperial, inexistia política de saúde. Os poucos
atendimentos médicos, realizados por profissionais estrangeiros, limitavam-
se às classes dominantes. Tratavam-se de atendimentos destinados a reduzir os
problemas de saúde pública que poderiam desestabilizar a produção econômica
ou prejudicar o comércio exterior. Na medida em que os problemas pontuais
eram resolvidos, as intervenções responsáveis pelo controle dos surtos logo eram
abandonadas. O restante da população utilizava-se apenas de recursos da medicina
popular (ervas medicinais indígenas) e sangria (retirada de sangue para tratamento
de doenças). (AGUIAR, 2011).
A primeira Constituição brasileira, de 1824, embora tenha previsão acerca do
direito à liberdade, igualdade, segurança individual e propriedade, não deu espaço
para desenvolver o direito à saúde, vez que teve como principal objetivo concentrar
e manter o poder nas mãos do Imperador em meio às grandes desigualdades sociais
existentes no Brasil. Visava sobretudo manter os interesses das classes privilegiadas,
até porque há que se lembrar que ainda existia escravidão no país. (SOUSA, 2015).
Nessa perspectiva, inicialmente a política de saúde não se constituía como
prioridade do Estado. Durante o período da República Velha, a partir de 1889, a
saúde pública era tratada com as mesmas medidas adotadas no período colonial.
Somente em momentos de enfrentamento de surtos de doenças endêmicas e
epidêmicas que, se não devidamente controladas poderiam desestabilizar a
economia capitalista, o governo voltava sua atenção à saúde pública (AGUIAR,
2011). Tal postura, denominada pela doutrina como sanitarista “campanhista”
permeou até aproximadamente 1930.
Sendo assim, percebe-se que à época não existia qualquer incentivo
às ações promocionais de saúde ligadas a prevenção ou conscientização da
população por parte do Estado. Todo trabalho realizado visava apenas “a
cura imediata”, de maneira a não permitir alastramento maior das doenças,
e de forma repressiva e autoritária as pessoas eram submetidas a tratamentos,

286
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

principalmente campanhas de vacinação, sem compreender as reais intenções


de tais medidas. (PIVETTA, 2014).
Somente no governo de Getúlio Vargas que foi criado o Ministério da Saúde
e da Educação. Outrossim, a Constituição de 1934, terceira na linha cronológica
do Brasil, foi a primeira Carta Magna a falar em saúde, além de afirmar os direitos
sociais, econômicos e culturais. (SOUSA, 2015).
Mesmo após a Segunda Guerra Mundial, com a derrota dos regimes
fascistas e nazistas, e de Vargas no Brasil, a Constituição de 1946 não tratou
diretamente do direito à saúde. Contudo, diante do processo de redemocratização
no país, tal Constituição foi responsável por importantes avanços na área da saúde.
Isso porque estabeleceu à União a competência de legislar acerca de normas
gerais pela defesa e proteção da saúde, além de ter dado privilégio às liberdades
individuais, ao princípio da Justiça, do trabalho digno e da solidariedade humana.
(SOUSA, 2015).
Somente em julho de 1953 o Ministério da Saúde e Educação foi desmembrado,
surgindo então o Ministério da Saúde independente, com direito apenas a um terço
dos recursos destinados ao antigo Ministério. A escassez de recursos tornava o novo
Ministério pouco eficaz, e por conseguinte a saúde pública brasileira permanecia
estagnada no sistema tradicional do “sanitarismocampanhista”. (AGUIAR, 2011).
Ao longo dos anos 70 e 80, vários segmentos da sociedade brasileira, tais
como trabalhadores, sindicatos, parlamentares de esquerda, estudantes e várias
associações, uniram-se na luta pela Reforma Sanitarista Brasileira. Tal projeto
buscava reformular o sistema de saúde em vigor, principalmente, no período do
governo militar, de alto custo, pouco resolutivo e excludente (AGUIAR, 2011).
Em síntese,

o projeto de reforma sanitária preconizava a criação de um sistema único


de saúde, acabando com o duplo comando do Ministério da Saúde e do
INAMPS que executavam ações de saúde em perspectivas antagônicas.
[...] Todos em luta contra as condições precárias de vida da população,
contra as iniquidades do sistema de saúde e pelo reconhecimento da
saúde como direito social a ser garantido pelo Estado. Esse projeto, cujo
desenho e conteúdo consolidaram-se gradativamente ao longo do tempo,
preconizava a transformação da relação entre Estado e sociedade, com
clara defesa da participação social de forma institucionalizada nos rumos
da política de saúde e pela construção da cidadania. Tinha como ambição

287
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

a universalização do direito à saúde, compreendida como qualidade de


vida e um modelo de atenção com ênfase na integralidade. (AGUIAR,
2011, p. 36).

A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, em Brasília,


reunindo aproximadamente 5.000 mil pessoas, difundiu o projeto de reforma
sanitarista. Tal evento contou com a participação de vários atores sociais, e a partir
dele foi instituída a Comissão Nacional de Reforma Sanitária a fim de organizar o
arcabouço principiológico e jurídico do que posteriormente ficou conhecido como
Sistema Único de Saúde (SUS). (PIVETTA, 2014).
Mas é com a Constituição de 1988 que pela primeira vez a saúde é tratada
como um direito inerente a todo o cidadão e dever do Estado segundo previsão em
seu artigo 6º e 196, rompendo com tradição liberal negativa do Estado (SOUSA,
2015). Ademais, a participação ativa do Movimento pela Reforma Sanitária
participou na Assembleia Nacional Constituinte garantiu a previsão constitucional
do SUS em seu artigo 198. (PIVETTA, 2014).
Por conseguinte, a criação do SUS em 1990, com a Lei nº 8.080 veio
regulamentar a maioria das propostas, princípios e diretrizes da Reforma Sanitária,
atribuindo funções, competências e atividades tanto para a União, como para os
estados e municípios. Finalmente o panorama de saúde pública começa a ser
alterado no Brasil. A partir de então, todos os cidadãos tem direito a saúde, dever
do Estado, independentemente das condições pessoais, financeiras, de estarem
contribuindo para órgão previdenciário, ou estarem trabalhando com carteira
assinada. A todo e qualquer cidadão brasileiro, ou mesmo estrangeiro, é garantido
o direito de acesso aos serviços do SUS. (AGUIAR, 2011).
No que se refere ao cenário constitucional atual, tem-se que o direito
fundamental à saúde, consagrado pelo Constituição de 1988, primeira na história
do Brasil a considerá-lo direito inerente a todo e qualquer ser humano, é assunto
recorrente na atualidade. Isso porque além de ser motivo de reinvindicação por
diversos grupos sociais, também é motivo de preocupação para a Administração
Pública, cada vez mais exigida a colocar à disposição dos indivíduos serviços de
saúde e assistência que supram a demanda existente, mesmo diante da escassez
de recursos financeiros. O artigo 196 da Constituição Federal dispõe (BRASIL,
1988,www.planalto.gov.br):

288
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.

Dessa forma, tem-se que o direito fundamental implica necessariamente


uma postura ativa do Estado diante do seu dever de prestá-lo a todos os cidadãos,
mediante políticas públicas preventivas, que reduzam os riscos de doenças, sem
deixar de considerar o princípio da impessoalidade, que norteia o acesso universal
e igualitário a todos.
Outrossim, caberá à Administração Pública a promoção de ações que
alcancem a proteção e a recuperação da saúde, buscando as melhores alternativas
de implementação e manutenção de políticas públicas. A eficácia social desse
direito fundamental está estritamente relacionada a execução administrativa das
políticas públicas, sua organização e seus procedimentos. (SOUSA, 2015).
Por vezes a falta de planejamento e gestão, aqui principalmente de setores de
regulação e auditoria devidamente capacitados, culmina na intervenção do Poder
Judiciário quando a Administração Pública não cumpre a norma constitucional
em apreço. A postura concessiva deliberada do judiciário frente às demandas
judiciais relacionadas à proteção da saúde, bem como, seus impactos econômicos e
suas consequências negativas à gestão pública será motivo de análise mais adiante.
A dignidade da pessoa humana, um dos pilares da Carta Magna de 1988,
vem ao encontro do processo denominado “constitucionalização do Direito”. E,
assim como as demais áreas do Direito que foram influenciadas por tal processo,
com a Administração Pública não poderia ser diferente. (PIVETTA, 2014).
A Constituição de 1988 influenciou o Direito Administrativo Brasileiro
vez que disciplinou novas noções de políticas públicas sob a óptica constitucional,
estabeleceu diretrizes à atividade de políticas sanitárias, vinculando o agir
estatal. Embora a Carta Magna tenha destinado um capítulo específico para a
Administração Pública, descrevendo seus princípios, legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, percebe-se que a partir do momento em que
tal matéria foi elevada ao status de relevância constitucional, consequentemente
também passou a ser vinculada ao Direito Constitucional, reflexo do processo de
“constitucionalização do Direito”. (PIVETTA, 2014).
Ou seja, a partir de tal vinculação das duas áreas do Direito, todos os
institutos e diretrizes até então convencionados ao Direito Administrativo deverão

289
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

ser interpretados e aplicados em consonância com os princípios e regras da


Constituição. Tal fato se deve à mudança na percepção jurídica da Constituição
Federal em um Estado Democrático de Direito. Se antes esta não passava de
mero documento político em um Estado Liberal no qual a Administração Pública
trabalhava apenas para evitar qualquer tipo de lesão ao direito à liberdade, a partir
de então ela passa a ter caráter vinculativo e obrigatório, alcançando o topo da
hierarquia normativa.
Com relação à forma de implementação das políticas públicas frente a
concretização do direito à saúde pelo Estado, convém a este avaliar as necessidades
e as possibilidades conforme determinado caso concreto. Todavia, isso não significa
que o gestor público goze de ampla liberdade na escolha de suas condutas. Embora
não tenha vinculado rigorosamente as condutas do ente estatal, o próprio texto
constitucional prevê algumas situações de competência vinculada e discricionária.
(SOUSA, 2015).
Primeiramente, há que se relembrar que por estar estritamente ligada
à Constituição, não cabe à Administração Pública optar se realiza ou não a
determinação constitucional. O direito à saúde, direito social elevado ao status
fundamental frente à sua consagração no plano do direito constitucional, deve
ser concretizado, conforme previsão do já trabalhado artigo 196, da Constituição
Federal de 1988.
Cabe ao Estado, inserido nesta perspectiva como ator ativo do direito
fundamental à saúde, formular e executar políticas públicas, tanto de caráter
negativo, de defesa, como positivo, de prestação. Nesse sentido, Sarlet e Figueiredo
(2010, p. 39) explicam que:

na condição de direito de defesa, o direito à saúde assume a condição


de um direito à proteção da saúde e, em primeira linha, resguarda o
titular contra ingerências e agressões que constituam interferências na e
ameaças à sua saúde, sejam oriundas do Estado, sejam provenientes de
atores privados. Já como direito a prestações, o direito à saúde pressupõe
a realização de atividades por parte do destinatário (o Estado ou mesmo
particulares) que assegurem a fruição do direito.

Outrossim, outras leis ordinárias e atos normativos vem restringir a


liberdade do gestor público. Dentre elas, no que diz respeito à regulamentação
da saúde, destacam-se a Lei nº 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para

290
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento


dos serviços correspondentes, e a Lei nº 8.142/1990, que trata da participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. Ambas as leis citadas
vinculam toda a Administração Pública. (PIVETTA, 2014).
Desse modo, conclui-se que conquanto seja conferido ao Estado apreciar,
conforme situações concretas, quais medidas são as mais adequadas ao interesse
público, principalmente se considerarmos que por vezes a legislação não
acompanha o desenvolvimento tecnológico, o âmbito de discricionariedade de
atuação da Administração Pública na realização dos direitos sociais é mínimo.
Todas as condutas, ainda que não especificadamente previstas pelo legislador, são
vinculadas ao Direito Constitucional e à sua finalidade de viabilizar acesso ao
direito previsto na norma.
No que tange aos artigos 194, 196 e 198 da Constituição Federal de 1988, que
tratam do direito fundamental à saúde, através sua leitura conjunta é possível concluir
que cabe ao Estado implementar políticas públicas adequadas para a saúde, seguindo
os seguintes princípios: universalidade, caráter democrático, descentralização da
administração, atendimento integral e regionalização e hierarquização.
Tem-se, então, que o direito à saúde é direito coletivo, e como tal deve ser
assegurado a todos o acesso universal e igualitário, sendo alcançado mediante
políticas públicas adequadas nos três níveis da federação, União, estados e
municípios através do Sistema Único de Saúde. Sob essa perspectiva, segundo
explica Silva (2005), citado por Sousa (2015, p.117),

o sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e


hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui meio pelo qual o
Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde, que tem o
polo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção
e à proteção de saúde é também um direito coletivo. O sistema único
de saúde implica ações e serviços federais, estaduais e distritais (DF) e
municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção
única de cada esfera de governo, do atendimento integral, com prioridade
para as ações preventivas e da participação da comunidade, que confirma
seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social
coletivo, de outro.

291
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

Ainda que a atuação das políticas públicas ligadas ao direito à saúde tenha
evoluído bastante nos últimos anos, e tenha contribuído consideravelmente na
melhoria da qualidade de vida da população brasileira, há muito que evoluir. O
maior problema ainda reside quanto aos recursos limitados destinados à saúde pelo
Estado, incompatíveis com a demanda crescente. Embora a legislação promova a
descentralização e a consequente municipalização, na prática os governos federal e
estadual não investem em saúde de maneira eficiente. (SOUSA, 2015).
Frente a isso, cabe aos gestores o planejamento das políticas púbicas de
saúde, buscando otimizar o limitado aporte financeiro. Para tanto, inicialmente,
deve ficar claro qual o grau de abrangência do dever da Administração Pública
para com a população a fim de que seja possível, de certa forma, delimitando o
exercício do direito fundamental à saúde, com base nas disposições constitucionais.
Convém salientar que integralidade não consiste necessariamente em todo e
qualquer serviço assistencial que integre a saúde. Significa dizer que deve o Estado
prever e garantir assistência mental, física e social em todas as fases da doença,
articulando serviços preventivos e curativos, tanto individuais quanto coletivos, sem
deixar de observar os princípios da universalidade e da equidade. (AGUIAR, 2011).
O princípio da descentralização previsto também na Lei nº 8.080/90, lei
de implementação do SUS, enfatiza a municipalização da saúde, combinada com
a regionalização e hierarquização de rede de serviços. Isso implica não só na
redistribuição de responsabilidade entre os três níveis de governo, como também
na transferência do poder decisório e recursos financeiros, antes concentrados
exclusivamente na esfera federal, aos municípios. Nesse cenário, o efetivo repasse
financeiro aos municípios faz-se imprescindível, caso contrário fica inviável que
os gestores municipais atuem com autonomia e de forma plena na coordenação,
planejamento e avaliação de ações de saúde em seu território. (PIVETTA, 2014).
Outrossim, a efetividade de um programa governamental e a eficácia de
políticas públicas no campo dos direitos sociais, aqui especificamente quanto à
saúde, está estritamente relacionada ao grau de articulação entre os agentes
públicos envolvidos e o conhecimento do objeto da política pública. Sendo assim,
partindo do pressuposto que a realidade local é determinante na escolha de políticas
públicas, e que os gestores municipais estão cientes das necessidades e realidades
locais, os municípios passam a figurar como principais responsáveis pela gestão
dos serviços públicos de saúde. (AGUIAR, 2011).
A devida organização dos serviços públicos evita a duplicidade de meios
para fins idênticos e otimiza os recursos financeiros, tecnológicos, materiais e

292
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

humanos dispensados. Ademais, como dito anteriormente, a descentralização


político-administrativa não finda na municipalização, devendo ser combinada
de uma organização regionalizada e hierarquizada para maior integração de
rede de serviços. Por rede regionalizada ou “Regiões de Saúde” propõe-se a
descentralização a partir da construção de redes de atenção em espaços geográficos
contínuos capazes de atender a demanda de municípios (referência intermunicipal)
ou estados (referência interestadual) próximos que possuem identidades culturais,
econômicas e sociais similares.
Quanto ao princípio da hierarquização do SUS, pretendeu-se estabelecer um
fluxo nos atendimentos dos usuários, iniciando pelos serviços de atenção básica,
voltados às campanhas de reeducação e prevenção, e, se houver necessidade,
seguido pelo encaminhamento do paciente a outros níveis de atenção com serviços
de maior complexidade e custo. (AGUIAR, 2011).
Além da descentralização e do atendimento integral, o artigo 198 da
Constituição refere que as ações e serviços públicos de saúde deverão seguir
a diretriz da participação da comunidade. Conforme a Lei nº 8.142/90 a
participação popular se dará através das Conferências de Saúde e Conselhos de
Saúde. As Conferências devem ocorrer a cada quatro anos com a participação
dos representantes de vários segmentos, tais como dos usuários, trabalhadores e
prestadores de serviço, por exemplo.
Já os Conselhos de Saúde, existentes em âmbito municipal, estadual e
federal, constituem órgãos de participação popular de caráter permanente e
deliberativo sobre os rumos das políticas públicas de saúde. O sucesso de qualquer
política pública depende do prévio processo administrativo responsável pela sua
elaboração.
Trata-se de procedimento também político diante da necessária
legitimidade popular e do amadurecimento da participação democrática dos
cidadãos, principalmente após a Constituição de 1988, frente a finalidade primeira
da Administração: alcançar o interesse público, visto que ela existe essencialmente
para atendê-los. Os resultados positivos da política pública, ademais, servirão como
instrumento de desenvolvimento do país e legitimarão não só as políticas públicas,
como os gestores públicos eleitos. (SOUSA, 2015).
Entretanto, ainda que o Estado tenha por principal interesse alcançar o
interesse público, por vezes os cidadãos brasileiros não tem seus direitos sociais
atendidos administrativamente, principalmente na área da saúde. Diante disso, no

293
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

cenário atual o Poder Judiciário tem assumido papel importante na concretização


dos direitos fundamentais sociais, visto que a população tem se socorrido de
decisões judiciais concessivas para terem suas demandas atendidas, situação essa
que será analisada no tópico seguinte.

3 A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO CENÁRIO


CONSTITUCIONAL ATUAL: BREVES APONTAMENTOS

No âmbito das discussões relacionadas as políticas públicas de saúde no


Brasil, o Poder Judiciário, sob o argumento de aplicar preceitos da Constituição,
vem mostrando-se bastante receptivo às demandas judiciais individuais postuladas
contra os entes públicos. A fim de resguardar o direito fundamental a vida e à saúde,
os juízes vem concedendo os mais variados tratamentos e medicamentos, por vezes
nem contemplados na tabela de procedimentos e medicamentos do Sistema Único
de Saúde, ou mesmo ainda não registrados no Brasil, desviando vultosos recursos
financeiros para o custeio de suas deliberações. (PIVETTA, 2014).
Tal situação retrata a atuação por vezes ineficiente do Poder Público, na
gestão da saúde pública. Ainda que os recursos financeiros sejam insuficientes, em
parte também são desperdiçados em procedimentos burocráticos, no campo do
planejamento e da formulação de estratégias, sem que em seguida haja uma boa
execução dessas políticas.
Dessa forma, as adversidades no campo do direito à saúde no Brasil se
dariam mais na execução das políticas públicas, ou na sua inexecução por parte dos
entes federativos do que na própria inexistência das mesmas. Em outras palavras,
a falta de efetividade e eficácia da saúde, que tem abarrotado o Poder Judiciário de
demandas nessa área é consequência da inoperância dos gestores nas três esferas
de governo. (PIVETTA, 2014).
Contudo, ainda que a Administração Pública apresente problemas
estruturais e necessite de reformas para se tornar mais eficiente, também há que
se estabelecer critérios que balizem as decisões judiciais a fim de que estas não
tenham efeito devastador sobre o sistema de saúde e dificultem ainda mais a gestão
dos poucos recursos públicos. (CAÚLA, 2012).
Embora para doutrina e jurisprudência o entendimento seja
predominantemente favorável às práticas judiciais concessivas, diversos estudos
questionam os prejuízos que tais práticas judiciais causam à gestão pública. A

294
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

judicialização da saúde da forma como vem sendo conduzida em síntese promoveria


a desorganização do sistema de saúde, promoveria um déficit de recurso financeiro
diante das limitações orçamentarias e dificuldades operacionais, desrespeito a
separação de poderes, e principalmente o desrespeito ao princípio constitucional
da igualdade, eficiência e universalidade de acesso as prestações de saúde.
As políticas públicas de saúde devem ser direcionadas à redução das
desigualdades econômicas e sociais. Todavia, a partir do momento em que os juízes
assumem o papel de protagonistas na efetivação de tais políticas, normalmente
beneficiam a classe média, que possui acesso qualificado à justiça, em detrimento
dos mais pobres.
Outrossim, ainda que o judiciário tenha o poder de advertir a inexistência
ou insuficiência de política pública, não cabe a ele formular programas a serem
implementados, no lugar do administrador. Essa atitude caracterizaria afronta ao
princípio constitucional da separação de poderes, não bastasse a falta de competência
do julgador para tanto bem como a repercussão financeira das decisões concessivas.
Pelo que determina a Constituição, cabe ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo
a formulação e execução de políticas públicas. (PIVETTA, 2014).
Muito embora se fundem na falsa percepção de serem precursoras da dignidade
da pessoa humana, as ações judiciais desestabilizam a gestão das secretarias de saúde.
Isso porque em regra os tratamentos e medicamentos concedidos, sem critério por
vezes, são de altíssimo valor, conquanto nem sempre sejam mais eficazes que outros
de baixo custo indicados para a mesma doença. Tal fato denota no risco de retrocesso
em termos de controle. O Judiciário dificulta a implementação de políticas públicas
de saúde, vez que compromete o planejamento e a execução dos serviços públicos
em saúde quando baseado em laudos médicos, sem o devido estudo científico estatal,
autoriza situações não previstas. (PIVETTA, 2014).
Por outro lado, importante observar que ainda que não da maneira ideal, no
cenário atual e em situações pontuais, os cidadãos brasileiros somente conseguem
socorrer-se ao Poder Judiciário para que seja possível a tutela do direito à saúde,
justamente em razão da omissão ou inércia do poder público no que se refere às
políticas públicas de saúde. Assim, em determinados casos é através do Poder
Judiciário que se vê possível a garantia do direito à saúde, quando em verdade
essa proteção deveria ser foco dos Poderes Legislativo e Executivo, por meio da
implementação e aperfeiçoamento de políticas públicas, as quais alcançam um
número infinitamente maior de pessoas, ao passo que a tutela individual contempla
apenas um cidadão.

295
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

O artigo 198 da Constituição Federal prevê que as ações e serviços públicos


de saúde organizam-se de acordo com a diretriz do “atendimento integral”, tendo
como prioridade as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
Tem-se por atendimento integral a disponibilização de atendimento médico em
todas as etapas de um tratamento. Nesse sentido, tal expressão corriqueiramente
vem sendo indevidamente empregada em decisões judiciais quem determinam o
fornecimento de medicamentos e produtos.
O fato do legislador prever rol de prestações de proteção à saúde oferecidas
pelo Sistema Único de Saúde, não exclui a possibilidade do usuário ter sua demanda
examinada judicialmente. Para tanto, devem existir critérios. A fim de que se possa
demandar judicialmente o fornecimento de tratamento devem, no mínimo, estar
configuradas uma das seguintes situações: a doença não estar prevista nas tabelas
e protocolos previamente editados ou o tratamento indicado não estar surtindo o
efeito esperado.
Fica claro que as decisões judiciais concessivas de tratamentos individuais
na área das prestações de serviços de saúde, na medida em que beneficia alguns
privilegiados e gera dificuldades orçamentárias em detrimento dos demais cidadãos
que não vão a juízo demandar igual ação pode configurar afronta ao princípio
constitucional da igualdade. O Poder Judiciário deve garantir que os direitos
fundamentais sociais sejam cumpridos, conquanto deve ser criterioso afim de que
não afronte o princípio da separação de poderes ou traga prejuízos ao orçamento
da Administração Pública. (PIVETTA, 2014).
Apenas após análise técnica sobre as diretrizes e protocolos estabelecidos
para o tratamento demandado, ou no caso de não haver previsão, pautando-se
racionalmente na comprovação de sua eficácia, segurança, efetividade e custo-
efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde é
que o Poder Judiciário poderá ter condições de determinar o cumprimento da
obrigação.
Porém, ainda que o controle judicial seja indispensável na concretização
do direito constitucional à saúde, tal medida deveria ser a última a ser tomada
pelos cidadãos quando decidem reclamar por seus direitos. Considerando que o
Brasil é um país no qual o acesso à Justiça não foi completamente democratizado,
as ações individuais acabam por privilegiar quem dispõe de mais instrução em
detrimento das classes menos abastadas e intensificam ainda mais a desigualdade.
Diante disso, é crível que o Estado institua mecanismos que excluam a necessidade
de reclamação junto ao Poder Judiciário. (PIVETTA, 2014).

296
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Inicialmente, em prol da supremacia do interesse público, deverá a Administração


Pública estabelecer instrumentos administrativos prévios às demandas judiciais. No
campo mais específico do direito à saúde, os casos de pedidos de tratamentos ou
medicamentos não previstos na Tabela de procedimentos e medicamentos do SUS,
a própria Administração Pública tem o dever de avaliar a procedência do pedido da
mesma forma que agem os magistrados. Os protocolos e diretrizes que balizarão as
decisões são amplamente disponibilizados pelo Ministério da Saúde, e dessa forma
qualquer cidadão poderá pleitear tratamento não disponibilizado na rede sem que para
isso deva necessariamente de plano recorrer ao judiciário.
Ademais, a partir disso o ente estatal poderá verificar quais as áreas de saúde
em que as políticas públicas estão insuficientes, se existentes, apontando equívocos
e acertos da gestão, com o propósito de corrigir as falhas e promover as mudanças
necessárias. Tais questões passam a ser discutidas junto à Administração Pública,
responsável pela execução dos serviços de saúde e deixam de ser prioritariamente
analisadas no gabinete dos magistrados. (PEREIRA, 1998).
Junto a isso, faz-se necessária maior articulação entre os principais entes
envolvidos na concretização do direito à saúde, tais como Ministério Público,
Defensoria Pública e Administração Pública. Todos os entes devem conhecer
os protocolos e diretrizes do SUS, e mais do que isso, aplicá-los a fim de que,
devidamente estruturados, seus serviços tenham credibilidade junto aos cidadãos.
Além disso, em conformidade com as propostas da reforma gerencial na
saúde, dentre as alternativas ao controle judicial ressaltam-se duas: o controle
de resultados externo, feito pelo Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal de
Contas, de acordo com a competência constitucionalmente prevista nos artigos
70 e 71 da Constituição, e o controle social, essencial em um Estado Democrático
de Direito, inclusive porque ninguém melhor para avaliar a eficiência dos serviços
públicos do que o seu principal interessado: o cidadão. Tratam-se de medidas
adequadas não apenas para o controle da Administração Pública, como também à
democratização do Estado brasileiro. (PIVETTA, 2014).
Transparência e cobrança de resultados, accountability, além de uma gestão
participativa dos cidadãos. Somente através do diálogo democrático entre o Estado
e a sociedade é que se pode definir as prioridades a que o Governo deve ater-
se na construção de um país mais próspero e justo. Tudo isso permitirá maior
racionalização da utilização dos recursos públicos, a fim de melhorar a prestação
dos serviços públicos e contornar o sistêmico processo da judicialização da saúde
no Brasil (PEREIRA, 1998).

297
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

A partir do que aqui foi abordado, após ter clara a evolução do direito à
saúde no Brasil, bem como a forma como se situa a questão da judicialização
da saúde no cenário constitucional atual, partir-se-á para a análise de decisões
que envolvam a questão da busca pela proteção do direito à saúde, por meio das
demandas judiciais, no que tange, especificamente, a falta de vagas nos leitos
hospitalares, no contexto do Estado do Rio Grande do Sul.

4 A QUESTÃO DA FALTA DE VAGAS EM LEITOS HOSPITALARES:


ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO
GRANDE DO SUL (TJ/RS)

Este tópico tem como objetivo averiguar e compreender como se manifesta


e quais são os principais argumentos utilizados pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul (TJ/RS) para deferir, ou não, as demandas que envolvam a falta
de vagas em leitos hospitalares, face aos entes públicos (Estado, Município e/ou
União). Especificamente procurar-se-á analisar quais esferas do Poder Público
são condenadas, quais os critérios utilizados para definir essa condenação, se há
análise da questão da hierarquização do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como
quais as justificativas apontadas pelo Tribunal para definir esses casos judiciais.
A pesquisa foi realizada no sítio eletrônico do TJ/RS, www.tjrs.jus.br, acessando-
se o item “pesquisa de jurisprudência”, campo em que digitou-se o termo “leito
hospitalar” (com aspas). No espaço “filtrar resultado por” unicamente foi colocada
a data a ser pesquisada, a qual abrange um período de cinco anos, acreditando-se
que esse ínterim, ao mesmo tempo em que é considerado atual, também é capaz de
refletir o real posicionamento adotado pelo Tribunal, assim, o período pesquisado
se deu entre 01 de agosto de 2013 a 01 de agosto de 2018.
Através dessa pesquisa foram encontradas cinquenta decisões. A partir de
uma análise prévia foram excluídas da análise vinte e uma decisões, tendo em
vista não estarem relacionadas como o tema (falta de vagas em leitos hospitalares),
mas sim com aspectos referentes, por exemplo, ao pagamento de taxa judicial pelo
poder público; responsabilidade de hospitais; redução de honorários advocatícios;
queda de paciente internado; dentre outros pontos aleatórios. Portanto, ao todo
foram analisadas vinte e nove decisões, as quais serão apresentadas a seguir.

298
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Primeiramente, ao examinar as sentenças pode-se perceber um certo padrão


na forma de decidir, que inclusive se manteve regular desde o ano de 2013 até o
presente ano (2018). No que se refere às esferas condenadas: Estados, Municípios
ou União, tem-se que o fator principal calca-se na escolha do próprio autor da
demanda em contra quem demandar, pois, como sustentado na maior parte das
decisões pelo Tribunal, o cidadão pode escolher contra qual dos entes pretende
intentar a ação, haja vista operar a responsabilidade solidária entre eles. É dever de
todos e do Estado garantir o direito à saúde previsto constitucionalmente, assim, nas
ações em que questionou-se a ilegitimidade passiva de algum dos entes, o Tribunal
não acatou, justamente em razão da responsabilidade solidária que circunda esse
direito fundamental. Especificamente, das vinte e nove sentenças, 22 condenaram
o estado e o município solidariamente, 2 apenas o município e 5 apenas o estado3.
Essa questão reflete, portanto, na ideia de hierarquização do Sistema
Único de Saúde, trazida pela Lei nº 8.080/1990, argumento muito abordado
pelos entes federados quando da alegação da ilegitimidade passiva. Assim, a
título exemplificativo, municípios demandados para prestar e concretizar o
direito fundamental à saúde alegam, não raras vezes, que os tratamentos de alta
complexidade são de competência da União ou do Estado, argumento que não
vem logrando êxito perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual,
conforme se verá, não analisa o grau de complexidade do direito pretendido, em
razão da responsabilidade solidária e competência comum entre os entes federados.
No que tange às decisões analisadas, serão abordadas aqui apenas três
decisões, tendo em vista que elas refletem os argumentos constantes nos demais
acórdãos, resumindo o entendimento adotado pelo Tribunal. São elas a Apelação
nº 70055531404; nº 70054107297 e nº 70068785039.
A primeira decisão analisada trata-se da Apelação nº 70055531404, julgada
no dia 11 de setembro de 2013, em que foram partes Debora Milena Brum
Pegorara (apelada) e o Estado do Rio Grande do Sul (apelante). No caso em
tela, Debora ajuizou ação em face do Município de Cachoeirinha e do Estado do
Rio Grande do Sul, requerendo vaga em leito hospitalar em Unidade de Terapia
Intensiva (UTI) neonatal, em razão de gravidez prematura, com antecipação de

3 – Atenta-se que não se fala em condenação da União nesse cenário, tendo em vista que o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, por integrar a Justiça Estadual, não detém competência para julgar casos
que tenham a União como autora ou ré, cabendo isso à Justiça Federal, conforme disposto no artigo
109, inciso I, da Constituição Federal de 1988. (BRASIL, 1988).

299
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

tutela, o que foi deferido pelo juízo de primeiro grau, haja vista a comprovação
da necessidade por meio de laudos médicos e também pela demonstração da falta
de recursos da autora para custear os custos do leito hospitalar. O Estado, em suas
razões recursais, alega que não é da sua alçada fornecer o leito pleiteado, tendo
em vista que a legislação do Sistema Único de Saúde estabelece competências e
atribuições entre os entes federados, que devem ser seguidas. Também sustenta que
haveria ofensa ao princípio da universalidade, vez que seria necessário dispender
um grande número de recursos públicos para atender apenas uma única pessoa.
(BRASIL, 2013).
O Tribunal, por sua vez, não acatou a alegação da ilegitimidade passiva,
explicando que a Constituição Federal de 1988 (artigo 198, parágrafo único)
estabelece que que o Sistema Único de Saúde contará com recursos tanto da União,
quando dos Estados, como dos Municípios, podendo o cidadão escolher qual
ente demandar. Além disso, há entendimento firmado pelo Tribunal que aponta
a solidariedade dos entes nos fornecimento de medicamentos, procedimentos
cirúrgicos e outras demandas urgentes, como é o caso em análise. Indo além, a
Corte ainda definiu o direito à saúde como sendo norma de caráter programático
(embora entendamos que se trata, em verdade, de norma de eficácia imediata, por
ser justamente um direito fundamental), entretanto apontou que o mesmo deve
ser garantido, sendo inafastável a obrigação estatal em prestar o serviço requerido,
qual seja, vaga em leito hospitalar. Desse modo, o recurso interposto pelo Estado
restou desprovido e a sentença proferida em sede de primeiro grau foi mantida.
(BRASIL, 2013).
O próximo julgado trata-se da Apelação nº 70054107297, julgada no dia 23
de outubro de 2013. Foram partes Carlos Alberto Lancanova de Souza (apelado) e
o Estado do Rio Grande do Sul (apelante). O apelado, em sede de primeiro grau,
ajuizou ação contra o Município de Canoas e contra o Estado do Rio Grande
do Sul, postulando a transferência do autor para leito hospitalar particular,
preferencialmente para o Hospital Santa Casa ou para o Hospital de Clínicas,
para realização de cirurgia de angioplastia, postulação que foi deferida pelo juízo.
O Estado, nas razões recursais, primeiramente alegou a ilegitimidade passiva,
colocando que a prestação pretendida é de competência municipal, e não estadual,
em razão da divisão de competências prevista na Lei do Sistema Único de Saúde.
Além disso, sustentou que deve-se operar a descentralização dos serviços e que
não pode-se impor ao Estado todas as demandas referentes ao direito à saúde, sem
respeitar essa hierarquização do Sistema Único de Saúde, pois isso sobrecarregá-lo-

300
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

ia. Por fim, colocou que o dever do Estado centra-se na prestação do direito à saúde
de forma coletiva, e não de prestações individuais. (BRASIL, 2013).
No que toca esse aspecto, o Tribunal afastou a tese da ilegitimidade passiva
e asseverou que

o Estado é responsável, solidariamente ao Município e à União, ao


fornecimento de medicamentos/tratamento médico, eis que incumbe ao
Poder Público, em todas as esferas de poder político, a proteção, defesa e
cuidado com a saúde. (BRASIL, 2013, p. 4).

Quer-se dizer, pois, que não há que falar em ilegitimidade passiva, tendo em
vista que o direito à saúde é um direito constitucional assegurado pelo art. 6º, da
Constituição Federal de 1988, sendo obrigação de todos os entes (União, Estados
e Municípios) assegurá-lo solidariamente. Por esse motivo, destaca-se, não merece
prosperar a alegação de que deve-se seguir os moldes de hierarquização do Sistema
Único de Saúde, com o intuito de livrar-se de uma obrigação constitucionalmente
imposta. (BRASIL, 2013).
Outro ponto que merece destaque é que, diferentemente da decisão anterior,
nesse julgamento o Tribunal analisou o direito à saúde como sendo um direito
fundamental que repercute, frisa-se, no próprio direito à vida, motivo pelo qual
detém eficácia plena e aplicabilidade imediata, e não meramente programática.
Por fim, o Tribunal analisou também a questão orçamentária, sustentando que

é obrigação do Poder Público a destinação de verbas orçamentárias à


saúde, razão pela qual não há falar em programas não incluídos na lei
orçamentária anual e transposição ou transferência de recursos de uma
categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem
prévia autorização legislativa. Uma vez cumpridas as determinações
constitucionais orçamentárias, não haverá prejuízo à totalidade, em
detrimento do autor, bem como aos demais pleitos relacionados à saúde.
(BRASIL, 2013, p. 9-10).

Assim sendo, restou indeferido o recurso do apelante (Estado do Rio


Grande do Sul) pelos motivos expostos, notadamente em razão de não prosperar
a tese da ilegitimidade passiva, bem como por tratar-se de um direito fundamental
com aplicabilidade imediata, como é o direito à saúde, e que, portanto, deve ser

301
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

garantido pelo Poder Público, e, por fim, por também não prosperar a alegada
violação à lei orçamentária. (BRASIL, 2013).
A sentença seguinte, última a ser tratada aqui, refere-se à Apelação nº
70068785039, julgada no dia 20 de julho de 2016, em que foram partes Guilherme
Antônio Weber (apelado) e o Estado do Rio Grande do Sul (apelante). O autor da
demanda ajuizou a ação com a pretensão de conseguir vaga em leito na Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) e transporte intermunicipal, haja vista ser portador de
diversas doenças como Diabetes Mellitus, HAS, Hipertireoidismo, ICC e IPB. O
Estado, por sua vez, em sede de apelação, tem como principais argumentos os
seguintes pontos: ilegitimidade passiva; ofensa aos princípio da universalidade
e igualdade (tendo em vista que o direito à saúde deve ser garantido por meio
de políticas públicas gerais, que contemplem a todos); alega não ser de sua
competência o cumprimento da prestação, em razão das divisões de atribuições
estabelecidas na Administração pública; coloca também que a Lei nº 8.080/90
não confere caráter ilimitado e absoluto ao direito à saúde; e, por fim, sustenta que
o transporte intermunicipal é de competência dos municípios, e não do Estado.
(BRASIL, 2016).
O Tribunal de imediato traz à tona a questão da responsabilidade solidária
que vigora entre os entes – União, Estados e Municípios – asseverando que o
demandante pode intentar a ação contra qualquer um deles, e que o condenado
poderá, posteriormente, requerer o ressarcimento dos demais, por meio de ação
regressiva, nos casos em que o procedimento solicitado for diverso daqueles
contemplados em lei. E complementa:

compete, de forma solidária, à União, aos Estados-Membros e aos


Municípios o funcionamento do Sistema Único de Saúde, possuindo
qualquer destes entes legitimidade ad causam para figurar no polo passivo
de demanda que objetiva a garantia do acesso a tratamento médico-
hospitalar para pessoas desprovidas de recursos financeiros. (BRASIL,
2016, p. 5).

Nesse mesmo sentido, o Tribunal reporta-se para o artigo 23, inciso II e


artigo 196, ambos da Constituição Federal de 1988, como também para o artigo
241, da Constituição Estadual. O primeiro estabelece a competência comum e
responsabilidade solidária entre os entes federados para tratar do direito à saúde, o
segundo coloca que é dever do Estado (lato sensu) implementar políticas públicas de

302
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

promoção, prevenção e proteção da saúde, garantindo o acesso universal e igualitário


a todos os cidadãos. Por último, a Constituição Estadual determina que “a saúde é
direito de todos e dever do Estado e do Município”. (BRASIL, 2016, p. 7).
Nesse contexto, a Corte verificou que ficou comprovada a necessidade do
autor em ser internado na UTI de leito hospitalar, e também que o mesmo não
possuía condições financeiras para custear a internação e o tratamento. Sustentou,
por fim, que não merece prosperar a apelação interposta pelo Estado do Rio
Grande do Sul, por todos os motivos expostos, bem como porque a divisão de
competências da Administração Pública não pode ser óbice para a tutela do direito
pretendido, que trata-se de um direito fundamental, com reflexos no próprio direito
à vida. E finalizada colocando que o Poder Judiciário, infelizmente, deve atuar nos
casos em que se veem violados direitos fundamentais, como o direito à saúde, em
razão da inércia ou omissão dos demais Poderes, que obriga o cidadão a buscar a
tutela do seu direito através de demandas judiciais.
A partir dessa análise, portanto, verifica-se que os principais entes condenados
no que tange o direito à saúde, notadamente nas questões de vagas em leitos
hospitalares, são o Estado e o Município, de forma solidária. Há entendimento
pacificado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de que todos os entes
federados podem figurar no polo passivo das ações que pleiteiam o direito à saúde,
tanto em razão de dispositivos da Constituição Federal, como da Constituição
Estadual, motivo pelo qual pode o demandante intentar a demanda judicial contra
qualquer um dos entes4. O ente demandado, por sua vez, em momento posterior
pode requerer o ressarcimento perante os demais. Dessa forma, em todas as decisões
analisadas o argumento da ilegitimidade passiva foi afastado, mostrando que não
há a preocupação, por parte do Judiciário, em seguir o sistema de hierarquização
do Sistema Único de Saúde, no momento de condenar determinado ente.
Ademais, no que se refere aos argumentos abordados pelo Tribunal para
conceder as demandas judiciais que pleiteiam vaga em leito hospitalar (direito
à saúde), é abordado, de forma recorrente, a responsabilidade solidária entre os
entes federados, conforme já referido; bem como a fundamentalidade do direito à
saúde que repercute, em última análise, no próprio direito à vida; a não aceitação
do argumento de que haveria falta de previsão orçamentária; e a afirmação de
que o Poder Judiciário, embora não de forma ideal, é competente para determinar

4 – Pode, inclusive, intentar contra a União, quando assim entender cabível, entretanto, nesse caso, a
interposição da ação deverá ser feita junto à Justiça Federal, conforme já mencionado.

303
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

que se cumpram essas prestações, quando da omissão e inércia do Poder Público,


pois está se falando de um dos direitos mais caros, fundamental e amparado pela
Constituição Federal de 1988.

5 CONCLUSÃO

Inicialmente tratou-se da evolução e contextualização do direito à saúde


no Brasil, onde verificou-se que num momento inicial nem mesmo se falava em
proteção ao direito à saúde, tema que só foi inserido nas Constituições Brasileiras,
passando a se tornar um dever do Estado, com a Constituição de 1934. Entretanto,
nessa época ainda era mínima a proteção e garantia do direito à saúde, por meio
do Poder Público, sendo que tal situação só veio a se concretizar, de fato, com a
Constituição Federal de 1988, que deu total amparo a esse direito, conferindo-lhe
status de norma fundamental, bem como estabelecendo deveres, competências e
atribuições ao ente estatal, para que o direito à saúde seja garantido a todos, de
forma universal e igualitária.
Após essa análise, conclui-se ainda que a Administração Pública brasileira
precisa de reformas estruturais que permitam que o Estado consiga realizar na
prática os direitos sociais fundamentais previstos na Constituição de 1988. Essa
atribuiu ao Estado o dever de garantir a saúde a todos os cidadãos, e como
consequência do processo de “constitucionalização do Direito”, o agir estatal
passou a ser vinculado aos princípios e regras da Carta Magna, isto é, todos os
institutos do Direito Administrativo não mais podem ser aplicados isoladamente.
A partir de então deverão ser interpretados e aplicados em consonância com os
princípios constitucionais.
Nesse cenário, verifica-se que muito embora haja a previsão da garantia ao
direito à saúde, a atuação da Administração Pública mostra-se, recorrentemente,
falha e ineficaz, e isso pode-se perceber através da análise do grande volume de
demandas judiciais intentadas com o objetivo de ver-se o direito à saúde garantido,
seja em razão da negativa no fornecimento de medicamentos, na demora na
marcação de cirurgias, na negativa ou inércia na aplicação de determinado
tratamento médico, ou até mesmo na falta de vagas em leitos hospitalares. A partir
disso, pois, passou-se a falar na questão da judicialização da saúde, que, conforme
trabalhado ao longo do artigo, não seria a forma ideal de assegurar o direito em
pauta, em razão da alegada ofensa ao princípio da separação dos poderes e do

304
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

acesso universal e igualitário, por exemplo. Ocorre que, ainda que não da forma
ideal, é por meio desse fenômeno, isto é, através da atuação do Poder Judiciário,
que se vê possível a garantia do direito à saúde, em razão, justamente, da inércia ou
omissão do Poder Público.
Por fim, respondendo a problemática suscitada inicialmente, qual seja: como
se manifesta o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nos casos de judicialização
da saúde que envolvam a falta de vagas em leitos hospitalares? Tem-se que, através
da análise da jurisprudência do TJ/RS (29 decisões), foi possível perceber a postura
firme do Tribunal em conceder as demandas referentes ao requerimento de vagas
em leitos hospitalares, sendo que as condenações se dão principalmente de forma
solidária entre Estado e Município. O argumento utilizado para tanto, isto é, o
critério utilizado pela Corte, centra-se na ideia da responsabilidade solidária que
opera entre os entes federados (Estado, Município e União), no que se refere à
garantia do direito à saúde, motivo pelo qual o Tribunal, na esmagadora maioria
das decisões, sustentou que pode o autor da demanda escolher contra quem
demandar.
No mesmo sentido, quando se fala em ilegitimidade passiva de um dos entes,
o Tribunal de pronto afasta a alegação, em razão, também, da responsabilidade
solidária, não abordando, dessa forma, a questão da hierarquização do Sistema
Único de Saúde (SUS), colocando apenas que pode o ente condenado solicitar,
posteriormente, o ressarcimento dos valores aos demais entes federados. Também
aponta-se que o Tribunal reconhece, nas suas sentenças, a fundamentalidade do
direito à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988, ainda que por vezes
estabeleça que trata-se de uma norma programática e, por vezes coloque que trata-
se de norma de eficácia plena e com aplicabilidade imediata.
E, de forma complementar, verifica-se também, ao longo dos julgados,
que o Tribunal defende que não há ofensa aos princípios da universalidade e
acesso igualitário, haja vista ser obrigação, dever do Estado implementar políticas
públicas efetivas, capazes de assegurar o direito à saúde a todos os indivíduos. Na
mesma linha, entende que não há que se falar em interferência indevida do Poder
Judiciário no âmbito da Administração Pública, pois está se falando da proteção
de um direito fundamental não garantido frente à inércia ou omissão do Estado,
sendo o Judiciário, desse modo, competente para determinar o cumprimento de
um direito fundamental social assegurado pela Constituição Federal de 1988. Há
que se atentar ainda, que não verifica-se apontamentos nas decisões que tratem
da questão orçamentária, da falta de recursos e como a condenação individual

305
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

poderia afetar um grande número de pessoas, as quais seriam contempladas se


houvesse políticas públicas efetivas e eficazes relativas ao direito à saúde.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Zenaide Neto. SUS: Sistema Único de Saúde – antecedentes,


percurso, perspectivas e desafios. São Paulo: Martinari, 2011.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
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______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação nº 70055531404.
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do%20Jacu%C3%AD&dtJulg=18/08/2016&relator=Leonel%20Pires%20O-
hlweiler&aba=juris>. Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação
nº 70070072087. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/
search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta /consulta_
p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a % 3 D Tr i b u n a l % 2 B d e % 2 B Ju s t i % 2 5
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312
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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8&numProcesso=70070072087&comarca=Comarca%20de%20Restinga%20Sec
a&dtJulg=30/08/2016&relator=Ricardo%20Torres%20Hermann&aba=juris>.
Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação
nº 70071549877. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/
search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/ consulta_
p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a % 3 D Tr i b u n a l % 2 B d e % 2 B Ju s t i % 2 5
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8&numProcesso=70071549877&comarca=Comarca%20de%20Os%C3%B3rio
&dtJulg=23/11/2016&relator=Marcelo%20Bandeira%20Pereira&aba=juris>.
Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação
nº 70064548605. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/
search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta /consulta_
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8&numProcesso=70064548605&comarca=Comarca%20de%20Porto%20Alegre
&dtJulg=23/12/2016&relator=Ricardo%20Bernd&aba=juris>. Acesso em: 1 ago.
2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso
Inominado nº 71006362206. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/
busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/ consulta/consulta_
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313
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

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ulg=07/03/2017&relator=Mauro%20Caum%20Gon%C3%A7alves&aba=juris>.
Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo
Interno nº 70071230130. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/
busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/ consulta/consulta_
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8&numProcesso=70071230130&comarca=Comarca%20de%20Canela&dtJulg=3
0/03/2017&relator=Ricardo%20Bernd&aba=juris>. Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação
nº 70064020522. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/
search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta /consulta_
p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a % 3 D Tr i b u n a l % 2 B d e % 2 B Ju s t i % 2 5
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olis&dtJulg=28/09/2017&relator=Ricardo%20Bernd&aba=juris>. Acesso em: 1
ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação
nº 70075874974. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/
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314
Judicialização do direito à saúde e a questão da falta de vagas em leitos hospitalares: análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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ia&dtJulg=13/12/2017&relator=Newton%20Lu%C3%ADs%20Medeiros%20
Fabr%C3%ADcio&aba=juris>. Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de
Instrumento nº 70076546258. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/
busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/ consulta/consulta_
p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a % 3 D Tr i b u n a l % 2 B d e % 2 B Ju s t i % 2 5
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rveira&aba=juris>. Acesso em: 1 ago. 2018.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de
Instrumento nº 71007654494. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/
busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/ consulta/consulta_
p r o c e s s o. p h p % 3 F n o m e _ c o m a r c a % 3 D Tr i b u n a l % 2 B d e % 2 B Ju s t i % 2 5
E 7 a % 2 6 ve r s a o % 3 D % 2 6 ve r s a o _ f o n e t i c a % 3 D 1 % 2 6 t i p o % 3 D 1 % 2 6 i d _
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8&numProcesso=71007654494&comarca=Comarca%20de%20S%C3%A3o%20
Leopoldo&dtJulg=08/05/2018&relator=Laura%20de%20Borba%20Maciel%20
Fleck&aba=juris>. Acesso em: 1 ago. 2018.
CAÚLA, César. Judicialização da saúde - o que deve mudar em face da
Lei no 12.401/2011. In: NETTO, L. C. P.; BITENCOURT NETO, E. Direito
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PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma
gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: Editora34, 1998.

315
Sabrina Santos Lima e Grégora Beatriz Hoffmann

PIVETTA, Saulo Lindorfer. Direito fundamental à saúde: regime jurídico,


políticas públicas e controle judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F. Reserva do possível, mínimo


existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, I. W.; TIMM,
L. B. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.

SOUSA, Simone Letícia Severo e. Direito à saúde e políticas públicas: do


ressarcimento entre gestores públicos e privados de saúde. Belo Horizonte: Del
Rey, 2015.

316
DIREITO À SAÚDE: A ATUAÇÃO DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA GAÚCHO NA CONCESSÃO DE AÇÕES E
SERVIÇOS HOME CARE DE SAÚDE

Fernanda Tavares Sonda1

Resumo:O tema desta pesquisa envolve o direito à saúde e traz para o debate
aspectos sobre o dever do Estado em oferecer ações e serviços home care, a partir da
análise das decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, publicadas
no ano de 2017 e no primeiro semestre do ano de 2018. O questionamento que se
busca enfrentar é se existe um limite à exigência ao Estado para com essa prestação
de saúde, a partir da argumentação da jurisprudência do TJ RS? O objetivo do artigo
é identificar os limites da responsabilidade estatal na tarefa que envolve a prestação
de ações e serviços home care. Sem dúvida, trata-se de um tema atual e relevante face
ao expressivo crescimento do número de demandas relacionadas ao tema. A partir
dessa análise será possível concluir que o entendimento predominante no TJ RS, nestes
casos, é de que a intervenção jurisdicional pode causar o desequilíbrio orçamentário,
refletindo em desatendimento, em grande escala, de outros tantos pacientes.
Palavras-chave: Saúde. Ações e serviços home care. Responsabilidade estatal.

1 – Fernanda Tavares Sonda é mestranda do PPGD – Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade


de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do grupo de pesquisa TRANSPARÊNCIA E ACESSO À
INFORMAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE SOCIAL: um estudo dos portais transparência dos
municípios do Rio Grande do Sul com enfoque aos serviços públicos e políticas públicas de saúde e educação –
coordenado pela Dra. Caroline Muller Bitencourt. Farmacêutica e advogada. Contato: ftsonda@gmail.
com.
Fernanda Tavares Sonda

1 INTRODUÇÃO

Judicialização da saúde é um tema contemporâneo, relevante e pertinente,


relacionado a práticas que buscam garantir o direito à saúde, face a obrigatoriedade
do Estado em sua prestação plena.
O aumento do número de demandas judiciais onde o Estado compõe o polo
passivo da relação processual é um fato que tem marcado a sociedade atual. Essa
discussão é importante na medida em que permite a evolução de ideias, a partir da
análise da dimensão social da ciência jurídica, do Estado e do bem social.
A problemática desta análise consiste em apurar os fundamentos expressos
nos argumentos do Poder Judiciário para conceder ou não os pedidos voltados ao
atendimento home care custeado pelo poder público enquanto ações e serviços de
saúde. Nesse sentido, questiona-se se existe um limite à exigência ao Estado para a
prestação de ações e serviços home care?
O estudo foi estruturado em três capítulos. O primeiro discorrerá acerca
do direito à saúde e as principais controvérsias de sua judicialização. O segundo
abordará aspectos sobre serviços públicos de saúde no contexto home care e a sua
regulamentação pelo Sistema Único de Saúde. E o terceiro e último capítulo
abordará, a partir das análises dos acórdãos selecionados aspectos sobre a
interferência do poder judiciário na efetivação do direito à saúde, a atuação do TJ
RS nas demandas de concessão de ações e serviços home care. frente ao dever do
Estado em assegurar tais serviços.
Para desenvolver o presente estudo foi realizada pesquisa teórica, através
de análise qualitativa de dados e finalidade exploratório-descritiva. Na sequência
foi realizada a análise de acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
que versam sobre pedido de tratamentos home care face ao Estado, no período
compreendido entre 01/01/2017 à 30/06/2018 destacando os argumentos
recorrentes que embasam as decisões. A pesquisa foi coletada no dia 10 de julho
de 2018 no website www.tjrs. jus.br, no espaço Jurisprudência, por meio da
guia Pesquisa de Jurisprudência. Utilizou-se a ferramenta busca avançada, para
delimitar o espaço temporal de interesse, selecionando os acórdãos proferidos no
período de 01 de janeiro de 2017 a 30 de junho de 2018.
Os filtros utilizados para a pesquisa foram: Tribunal: Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, Órgão Julgador: todos, Relator/Redator: todos, Tipo de
Processo: todos, Classe CNJ: todos, Assunto CNJ: todos, Referência Legislativa: nada,
Jurisprudência: nada, Comarca de Origem: nada, Assunto: nada, Data de Julgamento:

318
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

01/01/2017 à 30/06/2018, Número: nada, Seção: nada, Tipo de Decisão: Acórdão,


Procurar resultados com a expressão: home care, dever, Estado (sem aspas).
A pesquisa retornou 19 acórdãos neste período com as expressões acima
referidas, deste total sendo 02 (dois) da Oitava Câmara Cível, 01 (um) da Primeira
Câmara Cível, 03 (três) da Segunda Câmara Cível, 01 (um) da Sexta Câmara Cível,
01 (um) da Sétima Câmara Cível, 03 (três) da Terceira Câmara Cível , 01 (um) da
Terceira Turma Recursal da Fazenda Pública, 04 (quatro) da Vigésima Primeira
Câmara Cível e 03 (três) da Vigésima Segunda Câmara Cível.
A partir dos acórdãos estudados, busca-se analisar se é considerada a
viabilidade orçamentária de concessões de ações e serviços home care pelo ente
público.

2 O DIREITO À SAÚDE E AS PRINCIPAIS CONTROVÉRSIAS DE


SUA JUDICIALIZAÇÃO

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado e deve ser compreendido


de forma ampla:

O direito à saúde, de que trata o texto constitucional brasileiro, implica


não apenas no oferecimento da medicina curativa, mas também na
medicina preventiva, dependente, por sua vez, de uma política social e
econômica adequadas. Assim, o direito à saúde compreende a saúde física
e mental, iniciando pela medicina preventiva, esclarecendo e educando
a população, higiene, saneamento básico, condições dignas de moradia
e de trabalho, lazer, alimentação saudável na quantidade necessária,
campanhas de vacinação, dentre outras2.

Embora o tema relacionado à saúde, não era de todo estranho ao nosso


Direito Constitucional anterior a 1988, a competência atribuída à União sobre
legislar em prol da defesa e proteção da saúde, detinha um sentido de organização
administrativa de combate a epidemias e endemias3.

2 – CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 11 ed. Belo


Horizonte: Del Rey, 2005. p. 816-817.
3 – SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
p. 308-309.

319
Fernanda Tavares Sonda

Indiscutível o fato de que a Constituição de 1988 foi à constituição brasileira


mais generosa em termos de reconhecimento de direitos fundamentais. Tal
generosidade, entretanto, impacta em geração de custos, face a necessidade de
atuação positiva do Estado4.
No Brasil, o texto da CF/88 contempla inúmeros dispositivos que tratam
expressamente da saúde. Entretanto, evidencia-se o tratamento constitucional
dessa temática, a partir de duas características principais: a sua inclusão enquanto
direito fundamental e o estabelecimento das regras gerais e dos princípios que
devem conduzir as políticas públicas nessa área.
Quanto à primeira característica, é o artigo 6°, caput, da CF/88 que
reconhece a saúde enquanto direito fundamental. Os direitos fundamentais
– sociais, individuais e coletivos – gozam de aplicabilidade direta e imediata,
conforme disposto no artigo 5°, §2°, da Constituição. Assim, o Estado deve
encontrar alternativas que harmonizem o caráter prestacional dos direitos sociais,
a partir de implementação em políticas públicas efetivas.
Assim, o objeto dos deveres fundamentais decorrentes do direito à saúde
guarda relação com as diferentes formas pelas quais tal direito fundamental é
efetivado, podendo desde logo identificar uma dimensão defensiva no dever de
proteção da saúde5.
Ainda, nesse contexto, observa-se que os deveres fundamentais que
apresentam relação com o direito à saúde, dependendo do seu objeto, podem
impor obrigações de caráter originário, a exemplo de políticas de implementação
do Sistema Único de Saúde (SUS), da aplicação mínima dos recursos em saúde
e do dever geral de respeito à saúde, ou obrigações do tipo derivado, sempre que
forem dependentes da superveniência de legislação infraconstitucional reguladora6.
Quando pensamos na segunda característica que norteia o direito à saúde
na CF/88, deparamo-nos com um arcabouço de princípios que devem reger as
políticas públicas na área da saúde.
A partir de uma leitura sistematizada dos artigos, 194, 196 e 198 da CF,
destacam-se algumas considerações relevantes, sobre esses princípios, senão

4 – BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. p. 72.
5 – SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Algumas considerações sobre o direito
fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Revista de Direito do
Consumidor n. 67, 2008. p. 06.
6 – Ibid., p. 07.

320
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

vejamos: 1) a saúde é um direito de todos, logo, não exige nenhum tipo de


requisito para sua total fruição, devendo o Estado garantir o seu acesso universal
aos diferentes serviços de saúde existentes (artigo 194, I c/c artigo 196, caput);
2) o caráter democrático e descentralizado da administração, com participação
quadripartite – trabalhadores, empregadores, aposentados e Governo - nos órgãos
colegiados (artigo 194, VII c/c artigo 198, I e III); 3) as ações e os serviços de saúde
públicos devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, que responde por
um maior controle dos serviços do sistema e favorece um melhor atendimento da
população (artigo 198, caput) e 4) atendimento integral, priorizando as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (artigo 198, II).
O direito à saúde, enquanto direito fundamental social subjetivo, é passível
de ser tutelado judicialmente, caso, evidentemente, o Estado não promova as
prestações materiais necessárias à sua completa realização. Assim, a intenção
de se atribuir a determinados direitos a qualificação de fundamentais extrapola
à satisfação de objetivos exclusivamente acadêmicos, preocupando-se com as
consequências práticas.
Nesse sentido, todo direito fundamental é uma norma de caráter
principiológico, dotada de força normativa, e cuja aplicação não fica adstrita a
casos pontuais e específicos, estando apta à promoção da máxima eficácia dos
valores garantidos pela Constituição Federal.
Na lição de Barroso:

[...] qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas


atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer
consequência jurídica. Pelo contrário, conforme se verá ao longo deste
estudo, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento
formal e material de sua força normativa, com inúmeras consequências
práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui
considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a
realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a
aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e
o ser da realidade social7.

7 – BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades
da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996. p. 83.

321
Fernanda Tavares Sonda

O direito à saúde passa a exigir do Estado prestações positivas no sentido de


garantir sua efetividade, sob pena de ineficácia de tal direito8.
Num contexto onde reiteradamente as políticas de saúde não contemplam
de forma universal e igualitária toda coletividade, observa-se o crescimento da
busca pelo Poder Judiciário no intuito de garantir a efetivação do direito à saúde.
Essa busca para garantir esse direito expressa o exercício democrático de cidadania
assegurado pela própria Constituição e permite, pelo menos teoricamente, alcançar
a efetividade dos direitos inerentes a ela.
Reitera-se que o direito à saúde é um direito subjetivo em sentido pleno,
que comporta tutela judicial específica, por meio de ações constitucionais e
infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. Nessa seara, o Poder
Judiciário, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição9.
Na lição de Streck:

[...] é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, em face


do caráter compromissário dos textos constitucionais e da noção de força
normativa da Constituição, ocorre, por vezes, um sensível deslocamento
do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da
jurisdição constitucional. Isto porque, se com o advento do Estado Social
e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão
passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há (ou
deveria haver) uma modificação desse perfil. Inércias do Poder Executivo
e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser supridas pela atuação
do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos
previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de
Direito10.

8 – KEINERT, Tânia Margarete Mezzomo. Direitos fundamentais, direito à saúde e papel do executivo,
legislativo e judiciário: fundamentos de direito constitucional e administrativo. In: KEINERT, Tânia
Margarete Mezzomoet. al., (Orgs.). As ações judiciais no SUS e sua promoção do direito à saúde. São
Paulo: Instituto de Saúde, 2009. p. 91.
9 – BARROSO, Luís Roberto.Da falta de efetividade à judicialização efetiva: direito à saúde, fornecimento
gratuito de medicamentos, e parâmetros para a atuação judicial. Revista de Direito Social, Rio de
Janeiro, n. 34. 2007. p. 06.
10 – STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2. ed.
rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 19-20.

322
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Evidente que o Poder Judiciário não pode deixar de tutelar direitos


fundamentais, que dependem de sua atuação para serem efetivados, entretanto
também não pode ser o centro de realização e implementação de políticas,
promovendo os direitos de uns e causando grave lesão a direitos da mesma natureza
de outros tantos11.
Uma das polêmicas que cercam a Judicialização da Saúde é relativa a uma
suposta substituição das atribuições e discricionariedade do Poder Executivo pelo
Poder Judiciário.
Segundo Dallari:

[...] a separação de poderes foi concebida num momento histórico em que


se pretendia limitar o poder do Estado e reduzir ao mínimo sua atuação.
Mas a evolução da sociedade criou exigências novas, que atingiram
profundamente o Estado. Este passou a ser cada vez mais solicitado a agir,
ampliando sua esfera de ação e intensificando sua participação nas áreas
tradicionais. Tudo isso impôs a necessidade de uma legislação muito mais
numerosa e mais técnica, incompatível com os modelos da separação de
poderes. O legislativo não tem condições para fixar regras gerais sem ter
conhecimento do que já foi ou está sendo feito pelo executivo e sem saber
de que meios este dispõe para atuar. O executivo, por seu lado, não pode
ficar à mercê de um lento processo de elaboração legislativa, nem sempre
adequadamente concluído, para só então responder às exigências sociais,
muitas vezes graves e urgentes12.

Não se ignora que existe reserva de lei sempre que a Constituição prescreve
que o regime jurídico de determinada matéria deva ser regulado por lei e apenas
por lei, com exclusão de outras fontes normativas. Entretanto, vale destacar que
a implementação de políticas públicas por determinação judicial não representa
invasão de poderes ou ofensa à Constituição Federal, desde que realizada dentro das
peculiaridades do caso concreto e lastreada na dignidade da pessoa humana. Além
disso, é preciso reconhecer que a atividade implementadora do Poder Judiciário
não lhe autoriza criar políticas públicas, mas apenas implementar as já existentes.

11 – BARROSO, 2007, op. cit., p. 04.


12 – DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 221.

323
Fernanda Tavares Sonda

Essa atuação do Poder Judiciário, por mais paradoxal que possa parecer, confirma
a regra da separação dos poderes, pois no sistema de “freios e contrapesos” que
essa regra encerra, é cabível ao judiciário controlar os abusos dos demais poderes
no exercício de suas competências13
Ainda, interpretar a Constituição de modo proativo e expansivo permite
potencializar o sentido e alcance de suas normas para ir além do legislador ordinário.
Trata-se de um mecanismo que transpassa o processo político majoritário quando
ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso14.
Nesse sentido questiona-se se a intervenção do judiciário seria causa de
iniquidade, uma vez que subtrai rotinas de fixação de prioridade, privilegiando
alguns em detrimento da grande maioria da população que não tem acesso à
justiça15.
Indiscutível que o atendimento individual das demandas de saúde, muitas
sem padrões ou critérios técnicos definidos, afastam os princípios de universalidade,
equidade e integralidade e permitem uma diferenciação do demandante para com
o restante da coletividade, alguns, inclusive com o mesmo problema de saúde, mas
que por uma razão qualquer não pleiteou ação judicial. Uma visão explícita desta
contradição, corrobora com a percepção de que o SUS não funciona, o que acaba
por estimular ainda mais ações.
É evidente que não se trata de um problema com solução objetiva, onde
basta uma negação ou positivação, haja vista, por inúmeras vezes extrapolar o
direito à saúde e tratar-se do direito à vida. Nesse sentido, a lição de Barroso traz a
seguinte ponderação sobre tal debate:

Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante


de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o
direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios
orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais

13 – GANDINI. João Agnaldo Donizeti; BARIONE. Samantha Ferreira; SOUZA. André Evangelista
de. A efetivação dos direitos sociais à saúde e à moradia por meio da atividade conciliadora do Poder Judiciário. In:
SANTOS, Lenir (Org.). Direito da Saúde no Brasil. Campinas: Saberes Editora, 2010. p. 76-77.
14 – BARROSO, Luís Roberto.Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. [Syn]Thesis,
Rio de Janeiro, vol.5, nº 1, 2012, p.31.
15 – WEICHERT, Marlon Alberto. O Direito à Saúde e o Princípio da Integralidade. Em: SANTOS, L (org).
Direito da Saúde no Brasil. Campinas, SP: Saberes Editora, 2010.

324
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada,


é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de
outros. Portanto, não há solução judicialmente fácil nem moralmente
simples nessa questão16.

De fato, a excessiva judicialização sem critérios termina por inviabilizar a


realização de ações de cunho coletivo na área da saúde, uma vez que o recurso
que seria alocado em determinado serviço teria que ser realocado para acatar tais
decisões.
Mesmo que a saúde seja um direito fundamental social, questiona-se
sobre o problema da exigibilidade individual e coletiva desse direito. Não se
trata de uma opção preferencial pela exigibilidade individual dos direitos sociais
perante o Judiciário, mas sim de se otimizar a proteção e a efetivação dos direitos
constitucionalmente garantidos. Nesse sentido, a exigibilidade coletiva desses
direitos através de uma tutela coletiva, alargando assim a proteção judicial e a
própria efetividade dos direitos sociais para um número maior de pessoas seria o
mais adequado17.
Nesse aspecto, importante considerar na tomada de decisões políticas,
questões sobre a conciliação entre as necessidades dos indivíduos e as da
coletividade. Reconhecendo o indivíduo como o valor mais alto, em função da
sociedade e do Estado, pode parecer natural dar-lhe preferência. Entretanto,
é preciso considerar que o indivíduo não existe isolado e que a coletividade é a
soma dos indivíduos. Assim, não se há de anular o indivíduo dando precedência
sistemática à coletividade, mas também será inadequada a preponderância
automática do individual, pois ela poderá levar à satisfação de um indivíduo ou
de apenas alguns, em detrimento das necessidades de muitos ou de quase todos,
externadas sob a forma de interesse coletivo18
Os direitos sociais são concomitantemente individuais e coletivos, não
podendo o individualismo ferir a coletividade e vice-versa. Os direitos sociais, na
medida em que estão preocupados com o indivíduo como pessoa, se importam
com a relação da pessoa e comunidade. Portanto, nesses direitos, o que se destaca

16 – BARROSO, 2007, op. cit., p. 04.


17 – MAZZA, Fábio Ferreira; MENDES, Áquilas Nogueira. Decisões judiciais e orçamento: um olhar
sobre a saúde pública. R. Dir. Sanitário, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 42-65, nov. 2013/fev. 2014. p. 46-47.
18 – DALLARI, op. cit., p. 131.

325
Fernanda Tavares Sonda

é a ideia de grupo social, com a coletividade assumindo a titularidade de sujeito do


direito fundamental. Nesse sentido, os direitos sociais apresentam uma dualidade
dimensional, são individuais e também coletivos, por protegerem bens jurídicos
cuja incidência é simultaneamente individualizada e coletiva19.
De fato, a solução para este problema está muito longe de ser equacionada,
haja vista a baixa efetividade por parte do Estado em promover o direito à saúde de
forma satisfatória. Essa omissão estatal acabou por fomentar o fenômeno chamado
judicialização do direito à saúde. Destaca-se, entretanto, que tal fenômeno não
possui vinculo exclusivo com o direito à saúde, ao contrário, o que se verifica na
atualidade é uma verdadeira judicialização dos direitos sociais em âmbito geral.
Judicialização da saúde é o termo utilizado para se referir às ações judiciais,
individuais e coletivas, interpostas com vistas a assegurar a prestação de um
determinado serviço de saúde. Trata-se de um fenômeno que pode ser resumido
como uma forma de concretizar o atendimento às necessidades de saúde através
de decisões judiciais, que ordenam que uma instituição pública ou privada atende
ao direito subjetivo postulado pelo autor da ação judicial20.
Importante destacar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou,
em estudo realizado em 2015, a predominância da litigância individual, reforçando
a ideia de que a microlitigação é um dado em saúde e que o acúmulo dessas ações
individuais gera desafios para as partes, para o Poder judiciário e para a própria
gestão em saúde21.
Entretanto, a crescente busca pelo Poder Judiciário a fim de que este
estabeleça a realização de determinadas políticas públicas para a concretização
de direitos sociais constitucionalmente previstos, encontra limites de toda ordem,
especialmente no contexto orçamentário.
Orçamento público é o ato pelo qual o Poder Legislativo autoriza o Poder
Executivo, por período certo e, em pormenor, discriminar as despesas destinadas
ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política

19 – MAZZA e MENDES, op. cit., p. 47.


20 – BRITO, Patrícia Ribeiro. Judicialização da saúde e desarticulação governamental: uma análise a partir
da audiência pública da saúde. Judicialização da Saúde: a visão do Poder Executivo. Coord. por Maria
Paula Dallari Bucci e Clarice Seixas Duarte. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 203.
21 – ASENSI, Felipe Dutra. PINHEIRO, Roseni. Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência.
Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. p. 43.

326
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em


Lei22.
Nesse sentido, não se trata de opor frieza, tampouco racionalidade econômica
frente a uma causa sensível e emotiva, nem buscar caracterizar-se da mesma
maneira, mas de destacar algumas ambiguidades causadas pela Judicialização no
contexto do orçamento público:

[...] é preciso olhar não só para quem ganha, mas também para quem
perde com determinada forma de alocar recursos. Luiz Roberto Barradas
Barata, então Secretário de Saúde do Estado de São Paulo em 2005,
afirmou que a geração de gastos não previstos no orçamento, pelo Poder
Judiciário, obrigava-o a, entre outras coisas, deixar de incrementar o
Programa de Saúde da Família, uma política voltada para atenção
básica da população mais carente. Ainda que essa afirmação seja de
difícil comprovação, não é irrazoável afirmar que a grande quantidade
de recursos da saúde gasta para cumprir as decisões judiciais não pode
ser alocada sem afetar outras políticas de saúde que, por sua vez, também
protegem o que seria o mínimo existencial de outros cidadãos23.

É fato que as decisões judiciais contra o Estado para o fornecimento de


ações e serviços de saúde impactam na gestão pública comprometendo a realização
das ações de políticas públicas desenvolvidas para coletividade. Afinal, os serviços
de saúde no SUS demandam uma série de atividades, estruturas, bens e serviços,
todos eles custeados pelo Estado.
Outra questão pertinente, se deve ao fato de que a maioria das liminares
concedidas estabelece um curto prazo para a concessão efetiva da ação ou serviço
de saúde pleiteado, o que torna a operação ainda mais dispendiosa devido a
completa ausência de uma logística preparada para tal atividade. Talvez isso
ocorra devido à falta de entendimento por parte dos magistrados com relação ao
funcionamento do SUS e sua planilha orçamentária. Não que isso acabaria com

22 – BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 15ª ed. rev. e atual. porDejalma de
Campos. Rio de Janeiro. Forense, 2002. p. 387.
23 – WANG, Daniel WeiLiang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações. Revista da USP. 2009. p. 308-318.

327
Fernanda Tavares Sonda

as decisões desfavoráveis ao Estado, mas melhoraria os fundamentos em que os


magistrados se baseiam para a tomada de decisão.
Outro contraponto enfrentado pela judicialização da saúde destaca a
necessidade de previsão orçamentária. Essa é sem dúvida, a principal justificativa
reproduzida pelo Estado, para evitar condenações ou mesmo suspender liminares
já deferidas em ações que pleiteiam obrigação de fazer frente ao ente público.
Contudo esse argumento sobre a necessária previsão orçamentária e disponibilidade
material de recursos para a efetivação de políticas públicas de cunho social parece
não sensibilizar mais os tribunais, para quem as normas de caráter programático
não podem converter-se em promessas constitucionais inconsequentes.
Nesse sentido, assevera Mello:

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política


– que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no
plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não
pode convertê-la em promessa constitucional inconsequente, sob pena
de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas
pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de
seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado24.

Indiscutível que cabe ao Poder Público a obrigação de efetivar as prestações


de saúde, incumbindo-lhe assim, promover medidas preventivas e de recuperação
em prol da população, que asseguradas através de políticas públicas atendam ao
objetivo precípuo de concretizar o disposto no artigo 196 da CF/88.
Nesse sentido, destaca-se que a limitação orçamentária, não pode servir de
óbice a concretização do direito fundamental à saúde pelo Judiciário. Assim, ao
sopesar proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde contra um interesse
financeiro e secundário do Estado, sempre deverá privilegiar o respeito indeclinável
à vida e à saúde do ser humano.
Inequívoco o fato de estarmos diante de normas de colisão, cujos textos
envolvem aspectos que implicam diretamente sobre a utilização financeira pelo
Estado para garantir a melhoria da qualidade de vida da coletividade.

24 – RE 393.175-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 12.09.2000.

328
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

3 SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE NO CONTEXTO HOME CARE E


A REGULAMENTAÇÃO PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

A Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre a ordem econômica e


financeira do Estado, mais especificamente dos princípios gerais da atividade
econômica, determina expressamente que os serviços públicos devem ser prestados
pelo Poder Público, de forma direta, ou por particulares, por meio do regime de
concessão ou permissão, nestes casos sempre precedidos de licitação pública
(artigo 175).
Apesar de apontar a titularidade e as formas de sua prestação, nem a
Constituição, nem as leis ordinárias, apresentam um conceito, por mais simplista
que seja, do que vem a ser serviço público.
Na doutrina administrativa, encontramos diversos conceitos de serviços
públicos. Alguns autores são mais amplos ao conceituar o serviço público,
abrangendo toda a atividade exercida pelo Estado incluindo a atividade legiferante,
a atividade judicante, o poder de polícia, de fomento e intervenção. Outros autores,
entretanto, restringem o conceito à atividade administrativa do Estado.
O tema que contorna o serviço público é palpitante na doutrina e nos
tribunais, de modo que considerar algo como serviço público/não serviço público
implica em repercussões nos direitos do cidadão25.
De fato, não há uma disposição específica no ordenamento jurídico pátrio
que defina textualmente o que é serviço público. A explicação sobre o significado de
tal atividade desenvolvida pelo Estado pode ser realizada a partir da conjugação de
seus aspectos materiais (traços intrínsecos à própria atividade) e jurídicos (regime
de princípios e regras sobre ela incidentes)26.
O serviço público é toda atividade que o Estado exerce, direta ou
indiretamente, para a satisfação do interesse público, mediante procedimento de
direito público27.

25 – RECK, Janriê Rodrigues. Observação pragmático-sistêmica do silogismo jurídico e sua incapacidade em


resolver o problema da definição do serviço público. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, jan. 2012. p. 48.
26 – HACHEM, Daniel Wunder. Direito fundamental ao serviço público adequado e capacidade econômica do
cidadão: repensando a universalidade do acesso à luz da igualdade material. A&C – Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 55, jan./mar. 2014. p. 125.
27 – CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 18ª edição. Forense, 2012. p. 409.

329
Fernanda Tavares Sonda

Para Di Pietro, por exemplo, serviço público inclui as atividades dos


Poderes Legislativo e Judiciário. Nesse sentido, serviço público enquanto
capítulo do direito administrativo, representa à atividade realizada no âmbito das
atribuições da Administração, inseridas no Executivo28.
Aqui, destaca-se a atividade prestacional, na qual o poder público
proporciona algo necessário à vida coletiva, a exemplo da saúde pública.
A noção de serviço público é essencialmente evolutiva, condicionada
à época e meio social e, assim como todo instituto, só pode ser compreendida
através do estudo de sua história e tendências sociais de nossa época. É indiscutível
que o regime de alguns serviços públicos passou a assumir uma nova postura
face as inovações trazidas com a reforma do Estado, especialmente diante da
compatibilidade ou não das políticas que levam à fragilização na prestação do
serviço público pelo Estado com o texto constitucional29.
Nesse sentido:

Serviço Público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou


comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral,
mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume
como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe
faça as vezes, sob um regime de Direito Público, portanto, consagrador
de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais, instituído em
favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo30.

Assim serviço público é caracterizado como atividade destinada a


satisfazer a coletividade em geral e, por sua importância, o Estado possui o dever
de assunção, mesmo que sem exclusividade.
O Estado define, por meio de lei, as atividades que serão consideraras
como serviço público, as quais poderão variar ao longo do tempo e do espaço,
considerando a dependência da legislação vigente, podendo dispor de maior ou
menor abrangência.

28 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28ª edição. São Paulo: Atlas, 2015.
p. 136.
29 – GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 148.
30 – MELLO, Celso Antônio Bandeira de.  Curso de Direito Administrativo. 32ªedição. São Paulo:
Malheiros Editores, 2015. p. 695.

330
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Destaca-se que o serviço público é definido a partir de três elementos: o


subjetivo, o objetivo e o formal. O elemento subjetivo consiste na titularidade do
Estado, a quem cabe assegurar a continuidade de sua prestação, fornecendo-os
diretamente ou através de sujeitos privados por via da concessão ou da permissão.
O elemento objetivo (ou material), que diz respeito ao fato de se tratar de uma
atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material, ou seja, de
prestações fáticas destinadas à satisfação de relevantes necessidades dos seres
humanos, direta ou indiretamente ligadas à garantia e promoção de sua dignidade.
E o elemento formal (ou jurídico) se refere ao regime jurídico especial ao qual a
oferta de tais atividades se submete, composto por princípios e regras de Direito
Público, que têm por objetivo garantir a sua prestação adequada, com qualidade e
acessibilidade a todos os que deles necessitem31e32.
Podemos interpretar o serviço público como instrumento de satisfação
direta e imediata dos direitos fundamentas, a exemplo da dignidade da pessoa
humana. Em concreto, os serviços públicos existem, pois, os direitos fundamentais
não podem deixar de serem realizados.
Nesse sentido, Justen Filho assevera:

Sempre que uma certa necessidade humana for qualificável como


manifestação direta e imediata da dignidade inerente ao ser humano, sua
satisfação tenderá a produzir um serviço público. Nesses casos, configura-
se a obrigatoriedade da satisfação de certa necessidade. Portanto, as
atividades materiais necessárias ao suprimento dessa necessidade e
a titularidade da competência para desempenho serão atribuídas ao
Estado33.

Os serviços públicos traduzem-se como instrumentos de políticas públicas,


voltados à garantia dos direitos sociais. Nesse sentido, seguindo a tradição das
Constitucionais anteriores, a CF/88, também não traz uma definição precisa do
instituto do serviço público. Entretanto, com o objetivo de concretizar valores

31 – HACHEM, op. cit., p. 127-128.


32 – SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Serviço Público: garantia fundamental e cláusula de proibição de
retrocesso social. Curitiba: Ithala, 2016. p. 65.
33 – JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 2003.
p. 20.

331
Fernanda Tavares Sonda

de um Estado Social Democrático de Direito, o constituinte originário fornece


referenciais que permitem identificar a noção de serviço público pretendida para
a sociedade brasileira34.
Os serviços públicos são de titularidade do Estado, fato este, que gerencia
toda uma polêmica acerca da existência de um delineamento constitucional para o
serviço público e a liberdade do legislador ordinário em regulamentá-lo35.
A incumbência de satisfazer as necessidades humanas impõem uma
obrigação por parte do Estado em assegurar o seu fornecimento continuo sob a
égide dos princípios do direto público. Desse contexto, deduz-se a relação que
se faz com os direitos fundamentais sociais, onde a satisfação de tais direitos
depende diretamente de ações estatais efetivando a sua fruição pelos indivíduos.
Fato que revela o serviço público como o principal mecanismo de que dispõe a
Administração para a realização dos direitos fundamentais sociais36
Após notas introdutórias contextualizando o serviço público, passamos a
abordar o serviço público destinado ao direito fundamental à saúde, em especial
àquele destinado a ações e serviços home care no contexto de saúde pública.
A prestação do serviço público de saúde é realizada de forma descentralizada,
de maneira que cada ente possua as mesmas competências em seu respectivo
território, integrando uma rede regionalizada e hierarquizada através de um
sistema único de saúde conforme estabelecido pelo artigo 198 da CF/88.
O serviço público de saúde será organizado com um sistema único, ou seja,
não mais haverá a difusa administração da matéria na esfera da União, nem a
dispersão e superposição de órgãos e atribuições em esfera estadual e municipal.
Assim, sendo único, o sistema deverá possuir um específico modelo de relações
entre o todo, o que dá unidade ao conjunto de órgãos, sujeitos a atribuições, e as
partes que o integram37.
A União, os Estados e os Municípios respondem igualmente pelas ações e
serviços de saúde, de modo que a Constituição prevê um regime de cooperação entre
a União, os Estados e os Municípios, os quais devem concorrer para incrementar o
atendimento à saúde da população38.

34 – SCHIER, op. cit., p. 60-61.


35 – RECK, op. cit., p. 48.
36 – HACHEM, op. cit., p. 128.
37 – CARVALHO, op. cit., p. 817.
38 – Ibid., p. 817.

332
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Cada uma dessas esferas de governo, deve agir em concurso e de forma


solidária, uma suplementando a outra. A competência administrativa está
estabelecida na Lei nº 8.080/90.
Para tornar o serviço público de saúde eficiente e eficaz no cumprimento
de sua finalidade é essencial organizar a distribuição das competências para a
sua execução, de forma proporcional, de modo que a cada ente corresponda uma
parcela de poder que efetivamente possa ser exercido.
Em verdade, embora sejam fixadas porcentagens mínimas do orçamento
para o financiamento do serviço público da saúde, nos termos na Lei Complementar
n° 141, especialmente no caso dos Municípios, o montante por vezes será irrisório
em relação às necessidades reais daquele serviço.
Passamos a analisar aspectos administrativos e jurídicos para o
desenvolvimento do home care no contexto brasileiro de saúde pública.
O debate sobre aspectos relacionados a humanização da saúde e a redução
dos custos operacionais de assistência na rede convencional se depara diretamente
com iniciativas como o home care (atendimento domiciliar) como uma tendência
mundial, não apenas devido ao aumento da longevidade da população, mas
também pela necessidade de se desospitalizar a atenção à saúde da população.
Assim, em busca de uma melhor assistência à população, um maior
delineamento de fluxo para todos os níveis de atenção à saúde, associado a uma
redução dos custos para o sistema de saúde, buscou-se adaptar o atendimento
domiciliar em saúde ao contexto brasileiro.
O serviço de saúde home care está inserido na moderna concepção de saúde,
onde o paciente deixa o âmbito hospitalar e é tratado em seu domicilio, trazendo,
para a saúde, o ideal de humanização para aqueles que estão em fase de tratamento,
mostrando a sua maior eficiência frente ao mecanismo de internação.
A atenção domiciliar foi definida pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), na Resolução da Diretoria Colegiada 11, de 26 de janeiro de
2006, como “termo genérico que envolve ações de promoção à saúde, prevenção,
tratamento de doenças e reabilitação desenvolvida em domicílio”.
Nesse sentido, entende-se que a atenção domiciliar à saúde engloba o
atendimento domiciliar, a visita e a internação domiciliares, as quais possibilitam
a realização e a implementação do serviço home care, de modo que todas as ações
possam vir a influenciar o processo de saúde-doença dos indivíduos39.

39 – LACERDA, et. al.Atenção à Saúde no Domicílio: modalidades que fundamentam sua prática. Saúde e

333
Fernanda Tavares Sonda

Dessa forma, esse serviço surge como uma prática alternativa ao cuidado
intra-hospitalar cuja finalidade principal é integralizar a assistência tornando o
domicílio espaço para a produção de cuidado40.
Como resposta ao avanço nas tecnologias da área médica, inúmeras
doenças podem ser tratadas em casa. Esse fenômeno de desospitalização contribui
diminuindo diretamente a média de permanência dos doentes em ambiente
hospitalar, o que consequentemente, implica em redução de custos e riscos em
hospitais, sem prejuízo aos pacientes.
Referimo-nos aqui a internação domiciliar propriamente dita, enquanto
cuidado intensivo e multidisciplinar em casa. Envolve ações de saúde que requerem
o deslocamento de parte da estrutura hospitalar ao domicílio de doentes com
complexidade moderada ou alta, equiparada a assistência “hospital em casa”41.
Tal modalidade de prestação de serviço existe tanto no setor privado
quanto no público, fazendo parte da pauta de discussão das políticas de saúde que,
pressionadas pelos altos custos das internações hospitalares, buscam saídas para
uma melhor utilização dos recursos financeiros42
Os objetivos do home care são:

[...] contribuir para a otimização dos leitos hospitalares e do atendimento


ambulatorial, visando a redução de custos; reintegrar o paciente em
seu núcleo familiar e de apoio; proporcionar assistência humanizada e
integral, por meio de uma maior aproximação da equipe de saúde com
a família; estimular uma maior participação do paciente e de sua família
no tratamento proposto; promover educação em saúde; ser um campo de
ensino e pesquisa43.

Sociedade, São Paulo, v.15, n.2, maio-ago. 2006. p. 90.


40 – FEUERWERKER, Laura; MERHY, Emerson Elias. A contribuição da atenção domiciliar para
a configuração das redes substitutivas de saúde: desinstitucionalização e transformação de práticas. Rev.
Panam Salud Pública. México, v. 24, n. 3. 2008. p. 182.
41 – TAVOLARI, Carlos Eduardo Lodovoci; FERNANDES, Fernando; MEDINA Patrícia. O
desenvolvimento do “Home Health Care” no Brasil. Revista de Administração em Saúde, v.3, n.9, São Paulo:
out/dez, 2000. p. 16.
42 – FLORIANI, Ciro Augusto; SHRAMM, Fermin Roland. Atendimento domiciliar ao idoso: problema
ou solução? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, jul/ago, 2004. p. 986.
43 – Ibid., p. 987.

334
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Vale ressaltar que o home care corresponde a prestação de serviços equiparados


aos hospitalares, promovendo ações de atenção domiciliar aos  usuários que
necessitam de cuidados específicos. É desenvolvido por meio de um plano de
atenção, com a atuação de uma equipe multidisciplinar e de ações assistenciais de
caráter intensivo, no intuito de atingir o equilíbrio da condição de saúde de seus
pacientes e minimizar o elevado índice de consultas e internações desnecessárias
em hospitais e pronto atendimentos.
Além da humanização do atendimento, a preocupação com os custos em
saúde foi um dos grandes fatores que impulsionaram o crescimento do home careno
Brasil e no mundo. A redução dos custos proporcionados pelo serviço de home care
é da ordem de 52% quando comparada ao tratamento hospitalar44.
O atendimento home care à saúde traz em sua configuração a necessidade
de novos saberes e novas ações das equipes de saúde, de modo a valorizar as
características do trabalho voltadas para a integralidade, intersubjetividade e o
cuidado centrado nos indivíduos, na família e no contexto das residências.
Nesse sentido, podemos elencar como benefícios do atendimento domiciliar:
a diminuição das reinternações e dos custos hospitalares, a redução do risco de
infecção hospitalar, a manutenção do paciente no núcleo familiar e o aumento da
qualidade de vida do paciente e de seus familiares45.
Busca-se com o home care, mais uma alternativa para proporcionar efetividade
à garantia fundamental à saúde pública dos brasileiros, previsto no artigo 196 da
CF/88. No entanto, para alcançar um modelo que colabore para desafogar o
sistema de saúde no Brasil, sem deixar de lado à atenção ao paciente, ainda precisa
de um longo caminho a percorrer.
No Brasil, a transformação dos modos de organizar a atenção à saúde vem
sendo considerada indispensável para a consolidação do Sistema Único de Saúde
(SUS) por pelo menos dois grandes motivos: 1) pela necessidade de qualificar
o cuidado por meio de inovações produtoras de integralidade da atenção, da
diversificação das tecnologias de saúde e da articulação da prática dos diferentes
profissionais e esferas da assistência e 2) pela necessidade de adotar modos mais
eficientes de utilizar os escassos recursos, considerando que o modelo hegemônico
de atenção à saúde (centrado em procedimentos) implica custos crescentes,
particularmente em função do envelhecimento da população, da transição

44 – TAVOLARI, FERNANDES e MEDINA, op. cit., p. 17.


45 – FLORIANI e SHRAMM, op. cit., p. 987.

335
Fernanda Tavares Sonda

epidemiológica e, sobretudo, da incorporação tecnológica orientada pela lógica do


mercado, não sendo capaz de responder às necessidades de saúde da população46.
O governo federal, frente às vantagens do serviço de saúde home care, institui
em 2011 a portaria que regulamentava a Atenção Domiciliar, proporcionando a
criação do Programa Melhor em Casa.
A Portaria n° 963, de 27 de Maio de 2013, instituiu o Programa “Melhor em
Casa” cujo principal fundamento é a desospitalização do paciente. Esse programa
baseou-se na comprovada viabilidade econômica e social da continuidade do
tratamento hospitalar no domicilio do paciente, definindo esta modalidade com
aplicação ao instrumento da política de saúde brasileira, o SUS.
Atualmente é a Portaria n° 825 de abril de 2016 que define aspectos da
atenção domiciliar no aspecto do SUS, de modo que:

Atenção Domiciliar (AD): modalidade de atenção à saúde integrada às


Rede de Atenção à Saúde (RAS), caracterizada por um conjunto de ações
de prevenção e tratamento de doenças, reabilitação, paliação e promoção
à saúde, prestadas em domicílio, garantindo continuidade de cuidados47.

Assim, o serviço de home care extrapola mera assistência médica em casa, e


inclui aspectos de prevenção de doenças e a reabilitação de enfermos. Tal prática
exige presença de profissionais de diversas áreas como fator preponderante. Com
abordagens diferenciadas, esse tipo de serviço está disponível no Sistema Único
de Saúde (SUS). Considerando a necessidade do paciente, esse cuidado em
casa pode ser realizado por diferentes equipes. Quando o paciente precisa ser
visitado com uma frequência menor, este cuidado pode ser realizado pela equipe
de Saúde da Família/Atenção Básica de sua referência. Já os casos de maior
complexidade são acompanhados pelas equipes multiprofissional de atenção
domiciliar (EMAD) e de apoio (EMAP), do Serviços de Atenção Domiciliar
(SAD) do Programa Melhor em Casa48.
O serviço de home care não deixa de estar vinculado à Atenção Básica de
Saúde oferecida pelo Estado, dessa forma baseia-se nos princípios de universalidade,

46 – FEUERWERKER e MERHY, op. cit., p. 180-181.


47 – BRASIL, 2016.
48 – Ministério da Saúde, http://portalms.saude.gov.br/acoes-e-programas/melhor-em-casa-servico-
de-atencao-domiciliar/atencao-domiciliar)

336
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

acessibilidade ao programa, continuidade, integralidade, responsabilização,


humanização, vínculo, equidade e participação social. Assim, reitera-se que a
atenção domiciliar deve ser dirigida a todas as pessoas, continuamente, de forma a
completar o tratamento no âmbito da sua casa e do convívio familiar49.
O home carecomo proposta do Governo Federal deve ser regida a fim de
proporcionar o acesso a saúde domiciliar ao maior número de situações possíveis
a todos que se encaixam nas modalidades de atenção domiciliar, garantindo dessa
forma, por força de lei, o acesso da população ao programa “Melhor em Casa” sem
interrupções do Estado ou de qualquer ente particular.
O serviço de home care busca concretizar além de princípios institucionais,
princípios sociais de humanização do tratamento do paciente, onde este com o
auxílio e convívio familiar garante maior chance de recuperação do doente, além
de uma expressiva economia financeira. Com efeito, as despesas com atendimento
domiciliar de um paciente chegam a ser 60% menores se comparadas às despesas
com uma internação hospitalar50.

4 A ATUAÇÃO DO TJ RS NAS DEMANDAS DE CONCESSÃO DE


AÇÕES E SERVIÇOS HOME CARE

O crescimento das demandas judiciais na saúde é tema atual e relevante


tanto para o sistema de saúde, quanto para o sistema de justiça. Dessa forma, de
um lado, os gestores tentam equilibrar orçamentos, muitas vezes comprometidos
por decisões judiciais que envolvem cifras altas e, de outro, a justiça tenta se inteirar
do que é relativo à saúde e peculiar ao SUS para decidir com mais fundamento as
demandas por ações e de serviços de saúde solicitados via judicial51.
Assim, o que se tem observado é que a inexorável aproximação entre o
Executivo e o Judiciário é um dos caminhos mais palpáveis para minimizar os
impactos da judicialização da saúde52.

49 – Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Caderno de


atenção domiciliar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção
Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
50 – BRANDÃO, Luciano Correia Bueno. Considerações sobre a cobertura do sistema de Home Care pelos
planos de saúde.
51 – CRUZ, Adriane. O direito à saúde exigido na justiça. Consensus Revista do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde. Ano V, número 15 abril, maio e junho de 2015. p. 20.
52 – Ibid., p. 20.

337
Fernanda Tavares Sonda

A Constituição Federal não pode ser considerada ornamental, tampouco


arcabouço de ideias e princípios. A lei maior exige uma efetividade real de suas
normas. Nesse sentido, quando consideramos o direito à saúde, inserido no artigo
196 da CF/88 e o princípio da igualdade, descrito no artigo 5º, caput da mesma,
delimita-se que o Estado é o responsável pela garantia dos direitos fundamentais
em nossa sociedade.
De fato, o direito à saúde deve ser efetivado por meio de políticas públicas, que
propiciem acesso universal e igualitário ao usuário, oferecendo o tratamento mais
adequado e eficaz, apto a possibilitar a cura ou melhora da qualidade de vida desse
usuário, independentemente de custo do insumo ou procedimento médico indicado.
Em se tratando de políticas públicas, há muito foi abandonada a ideia de
que os direitos previstos na Constituição são puramente programáticos, não sendo
viável sua exigência de imediato. Vale destacar que, em um primeiro momento,
o STF cedia ao argumento de que a Constituição estabelecera um programa de
direitos e que estes seriam aplicados a partir da implementação das políticas
públicas. Talvez pelo transcorrer dos anos e o amadurecimento da Constituição
vigente, diante da inação do legislador infraconstitucional e do administrador
público, a Suprema Corte alterou seu entendimento, passando à interpretação de
que os direitos são de exigência imediata53.
Por óbvio, o acesso à justiça é consentâneo com um Estado Democrático, de
modo que o acesso à justiça pode ser encarado como requisito fundamental de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir os direitos de todos54.
Nesse sentido:

O direito de acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como


sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais,
uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência
de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode,
portanto, ser encarado como requisito fundamental - o mais básico dos
direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que
pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos55.

53 – PEREIRA, Wilson Medeiros. Atuação do Poder Judiciário no tocante às Políticas Públicas de


Saúde. Revista da AJURIS – v. 40 – n. 132 – Dezembro 2013. p. 390.
54 – Ibid., p. 391.
55 – REIS JUNIOR, Paulo Bianchi. A judicialização do acesso a medicamentos: a perspectiva da

338
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Este capítulo busca averiguar e compreender quais são os principais


argumentos utilizados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para
justificar, ou não, a intervenção do Poder Judiciário nas concessões de ações e
serviços públicos de saúde home care como garantidor do direito à saúde.
Essa pesquisa trata-se de uma análise exemplificativa e foi realizada no dia
10 de julho de 2018, no site do TJ/RS (www.tjrs.jus.br), sendo que a procura foi
definida a partir dos seguintes termos: home care, dever e Estado (sem aspas). A
busca se deu no campo “pesquisa de jurisprudência”, abrangendo o período de
01/01/2017 a 10/07/2018. Foram encontradas 19 (dezenove) decisões.
As normas constitucionais asseguram à população, por parte do Poder
Público, a assistência integral à saúde, através da efetivação de políticas sociais
públicas que lhe permita o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência e, àqueles que necessitarem, os meios necessários ao seu
tratamento, habilitação ou reabilitação.
Dentre as 19 decisões analisadas, foram selecionados 03 (três) decisões
(Agravo Interno n° 0130220-52.2018.8.21.7000, Agravo de Instrumento n° 0006494-
41.2018.8.21.7000 e Agravo de Instrumento nº 0246583-59.2017.8.21.7000) uma
vez que refletem os argumentos constantes nos demais acórdãos, resumindo o
entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Inicialmente, destaca-se o Agravo Interno nº 0130220-52.2018.8.21.7000
da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de relatoria
da Des.ª LiselenaSchifino Robles Ribeiro que expressa o entendimento adotado
a respeito da solidariedade dos entes federativos na concessão de serviços de
home care.
Ademais, trata-se de entendimento pacífico o fato de que a responsabilidade
dos entes federativos é solidária, por se tratar de obrigação constitucional, prevista
expressamente no artigo 23, II, da Constituição Federal. Esta estabelece que a
saúde é direito de todos e dever do Estado, lato sensu (artigo 196 CF/88). Tal direito
é corolário da inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º CF/88). Ainda, a Carta
Política também prevê, no artigo 6º, o direito à saúde.
Assim, tais direitos, que são direitos e garantias fundamentais, são de
aplicação imediata e eficácia plena, não dependendo, a sua fruição, de lei ou

Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Administração Pública.


Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2008. p. 08.

339
Fernanda Tavares Sonda

outra norma subalterna, editada por quem quer que seja, para serem aplicados e
obedecidos por todos. De fato, os argumentos apresentados são preponderantes
nas decisões deste egrégio Tribunal de Justiça e evidenciam um poder judiciário
que busca dar efetividade aos preceitos constitucionais pela via do controle
jurisdicional das políticas públicas.
Assim, o Poder Judiciário estaria agindo no uso de suas atribuições ao
suprir a lacuna deixada pelo poder público ao não abranger parte da população
carecedora e detentora do direito pleiteado pela via judicial.
O direito à saúde é um direito fundamental do ser humano, corolário do
direito à vida. As disposições constitucionais nesse sentido são autoaplicáveis,
dada a importância dos referidos direitos. Não há como afastar a responsabilidade
dos entes públicos para com o problema da saúde.
Destaca-se que compete à União, aos Estados e aos Municípios resguardar
os direitos fundamentais relativos à saúde e à vida dos cidadãos, conforme regra
expressa do artigo 196 da CF/88. Nesse mesmo sentido, dispõe a Constituição
Estadual, em seu artigo 241, que a saúde é direito de todos e dever do Estado e dos
Municípios.
Reitera-se que a responsabilidade dos entes é solidária, permitindo que
o cidadão exija, em conjunto ou separadamente, o cumprimento da obrigação
por qualquer desses entes públicos, independentemente da regionalização e
hierarquização do serviço público de saúde.
A proteção à inviolabilidade do direito à vida, bem fundamental para o qual
deve o Poder Público direcionar suas ações, deve prevalecer em relação a qualquer
outro interesse, uma vez que sem ele os demais interesses socialmente reconhecidos
não possuem o menor significado ou proveito.
Destaca-se, que embora o Agravo de Instrumento n° 0006494-
41.2018.8.21.7000, de relatoria da Des.ª Matilde Chabar Maia reconheça que a
responsabilidade da União, Estados e Municípios é integral e conjunta, decorrendo
diretamente do artigo 23, II, da Magna Carta e do artigo 241 da CERS/89, na
esfera judicial, a prestação do atendimento ou tratamento médico diretamente
pelo Estado deve observar sempre o caráter de subsidiariedade, isto é, deve ser
determinada apenas quando não houver a possibilidade de o paciente alcançá-
la de outra forma. Reitera-se que o atendimento home care constitui expediente
de alto custo, de modo que o seu fornecimento pelo Estado impede a destinação
dessas verbas para o atendimento à saúde da população em geral. Todavia, tal
encargo não exime o prevalente dever assistencial da família, consoante preconiza

340
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

de modo expresso, o parágrafo único do artigo 241 da Constituição Estadual.


Assim sendo, a imposição do fornecimento gratuito de ações e serviços de saúde,
pelo Poder Público, pressupõe a comprovação de hipossuficiência econômica tanto
do beneficiário quanto do seu núcleo familiar, a teor do disposto no artigo 2º,
parágrafo único, da Lei Estadual nº 9.908/83.
O conflito entre limitações orçamentárias e obrigação de realizar prestações
positivas de direitos é objeto de estudo do próximo caso analisado.
As exigências sociais são enormes e infindáveis, enquanto os recursos
públicos são finitos e insuficientes ao custeio de todas as necessidades56.
Em relação aos efeitos orçamentários, ao considerarmos as inúmeras decisões
do judiciário brasileiro concedendo ao cidadão a efetivação de seu direito no caso
concreto pela criação de soluções que representam uma atuação de gerenciamento
do orçamento público, quando desloca valores destinados a projetos e ações que
atenderiam a coletividade para a satisfação de direito individual, é indiscutível
que as decisões judiciais afrontam o princípio da dotação orçamentária prévia e
o princípio constitucional da legalidade orçamentária, considerando que há um
planejamento prévio que a priori deveria ser respeitado.
Deve-se considerar que a interferência judicial desordenada gera
consequências graves, como: a desorganização administrativa (pois os recursos
precisam ser desviados do seu orçamento e de sua execução natural para o
cumprimento das ordens judiciais), a ineficiência alocativa (a exemplo das compras
em pequena escala) e a seletividade (as soluções providas em decisões judiciais
beneficiam apenas as partes na ação, sem que sejam universalizadas).
A partir dessas considerações, seria possível pensar que o fornecimento
de ações ou serviços de home care desequilibraria o sistema público de saúde? Em
determinados contextos sim, o fato de obrigar que o Estado forneça tratamento em
domicílio pode desequilibrar o sistema de saúde, uma vez que pode representar a
falta de atendimento a outros tantos pacientes, sobretudo se não houver garantia de
eficácia do tratamento ou de seu custo. 
Nesse sentido, salienta-se o julgado de Agravo de Instrumento nº 0246583-
59.2017.8.21.7000 da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, de relatoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Foi esse o entendimento
adotado, em maioria, para negar o provimento do respectivo agravo. A controvérsia
reside no fato da viabilidade da concessão do tratamento home care a uma criança

56 – PEREIRA, op. cit., p. 385.

341
Fernanda Tavares Sonda

que sofre de paralisia cerebral. Nesse sentido, as provas dos autos não deixam
dúvidas de que o agravante necessita de cuidados especiais permanentes e os laudos
médicos juntados aos autos indicam a necessidade de atendimento multidisciplinar
a domicílio, com equipe de enfermagem, médico pediatra, fonoaudiólogo,
fisioterapeuta e nutricionista, além de cuidados 24 horas, com suporte ventilatório,
aspirações frequentes, administração de dieta e medicamentos.
Embora se compreenda a aflição e o sofrimento do paciente e da família,
foi negado o atendimento postulado, sob o argumento de que há de se ter cautela
na concessão desse tipo de liminar, especialmente quando não se conhece o
valor do custo do atendimento/tratamento pleiteado, que poderá representar
o desatendimento, em grande escala, de outros tantos pacientes que também
necessitam de assistência médica. Ainda, há de se considerar que não há garantia de
evolução clínica do paciente, tendo presente um quadro de provável irreversibilidade
da situação. Considerou-se ainda, que de acordo com parecer técnico acostado pelo
Estado, e elaborado por médica especialista, consultora da Secretaria Estadual de
Saúde, que o cuidado domiciliar apresenta riscos aumentados, face a necessidade
de atendimento de urgência em possíveis intercorrências, e considerando o caso
em tela, o risco de piora súbita no quadro clínico do paciente existe e deve ser
levado em consideração, devendo a família estar ciente tanto dos riscos quanto dos
benefícios do sistema de atendimento domiciliar, antes de decidir pela retirada do
paciente do hospital. Nesse contexto, não há qualquer garantia de que a concessão
do serviço de home care represente a diferença entre a vida e a morte do paciente.
Nesse sentido, observa-se que a pratica corriqueira de conceder medidas
satisfativas na área da saúde, tem obrigado o poder público a realocar verbas já
destinadas a outros pacientes, os quais certamente morrerão, anonimamente, à
falta de assistência médica adequada57.
Silva defende ainda que:

O Poder Judiciário tem adotado, de uma maneira geral, uma postura


ativista, sob o influxo de densificar princípios inscritos de forma abstrata
na Constituição Federal de 1988. Deste modo, concretiza direitos sociais

57 – SILVA, Leny Pereira da. Direito à Saúde e o Princípio da Reserva do Possível. Monografia
(Especialização em Direito Público). Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/DIREITO_A_
SAUDE_por_Leny.pdf.. p. 57.

342
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

como o direito à saúde e o direito à educação, fazendo derivar do artigo


6º da Constituição obrigações concretas desfavoráveis à administração
pública, a qual está atrelada à Lei Orçamentária Anual aprovada pelo
Congresso Nacional no ano anterior e, no caso do Distrito Federal, à lei
Orçamentária local, aprovada pela Câmara Legislativa58.

Evidentemente que excessos e inconsistências põem em risco a continuidade


das políticas de saúde pública, podendo impedir que políticas coletivas e universais
sejam devidamente implementadas. Quanto ao argumento de que não haveria
recursos suficientes para atender à demanda das decisões judiciais e continuar
o atendimento das demais políticas públicas, deve-se acentuar que o direito
fundamental à saúde deve ser prioritário, uma vez que garante o atendimento aos
direitos fundamentais à vida e à dignidade da pessoa humana.
Obviamente que as decisões judiciais que fazem concessões na área da
saúde atingem o orçamento público, causando desequilíbrio nas despesas fixadas,
o que acaba por interferir nos direitos individuais de outros cidadãos que tem
seus atendimentos preteridos pela falta do recurso na via administrativa, recurso
este, que foi desviado por sentença, para satisfazer um caso concreto impondo a
manutenção das graves desigualdades existentes na sociedade brasileira59.
Nesse interim, reitera-se a necessidade de o Judiciário utilizar-se de
argumentos orçamentários em sua análise, quanto às decisões que envolvem
questões com repercussão financeira, como condição para a eficácia dos direitos
sociais60.
Aduz-se que se o julgador não dispor de instrumentos técnicos e/ou
informações suficientes sobre a amplitude estatal, a falta de domínio sobre a
matéria de políticas públicas, por envolver uma visão ampliada do sistema político
e governamental, podem embasar decisões restritas a uma visão micro do sistema,
desencadeando amplas distorções no sistema de políticas públicas globais61.

58 – Ibid., p. 57.
59 – HACHEM, Daniel Wunder. Vinculação da Administração Pública aos precedentes administrativo e
judiciais: mecanismo de tutela igualitária dos direitos sociais. In: BLANCHET, Luiz Alberto; HACHEM,
Daniel Wunder; SANTANO, Ana Claudia (Coord.). Estado, Direito e Políticas Públicas: Homenagem
ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Curitiba: Íthala, 2014. p. 218.
60 – LEITE, Harrison Ferreira. Autoridade da lei orçamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2011. p. 174.
61 – BARROSO, 2007, op. cit., p. 28.

343
Fernanda Tavares Sonda

Essa circunstância transcorre do fato de o juiz não dispor de elementos para


avaliar a realidade da ação estatal como um todo, uma vez que o julgador estaria
preocupado com a solução dos casos concretos62.
A partir do argumento da limitação orçamentária da Administração Pública,
considerado um dos mais fortes argumentos defendidos pelo Poder Público e,
principal fonte de contendas entre as funções administrativa e jurisdicional, não
é de se desconsiderar que os recursos públicos sejam insuficientes para atender
todas as necessidades sociais, além do fato de os altos custos dos serviços de saúde
implicarem em um desequilíbrio no planejamento estatal.
Em março de 2009, o STF convocou a realização de audiência pública a
fim de esclarecer questões presentes nas decisões judiciais que envolvessem casos
de saúde. Nessa audiência, foi chamada a atenção para a amplitude e importância
do tema, visto que toda sociedade, de certa forma, é afetada pelas decisões que
buscam a efetividade do direito à saúde. No contexto brasileiro, com o aumento
da expectativa de vida, expansão dos recursos terapêuticos, multiplicação das
doenças e recursos escassos, as discussões que envolvem a saúde representam um
dos principais desafios à efetividade dos direitos fundamentais63.
A argumentação desenvolvida pelo STF em diversos julgados, a exemplo
da decisão na suspensão de tutela antecipada 268-9 (Rio Grande do Sul, Rel.
Min. Gilmar Mendes, proferida em 22.10.2008), percebe-se a coexistência tanto
individual quanto coletiva do direito à saúde, a depender da relação jurídica em
questão. Em sua dimensão individual, a proteção da saúde não pode ser aplicada a
todos sem qualquer distinção, faz necessário observar as necessidades individuais
e as peculiaridades do caso concreto. Nessa situação, a saúde deve ser relacionada
às características (físicas, psicológicas e genéticas) de cada indivíduo e ao ambiente
(social, político ou econômico) em que ele está inserido. Ainda, além dessa
perspectiva, deve ser considerada outra que convive com aquela e guarda relação
com o princípio isonômico: a perspectiva comunitária desse direito64.

62 – Ibid., p. 28.
63 – MORAES, Polyana Santana. Direito à saúde: o problema da eficácia das normas constitucionais e
da exigibilidade judicial dos direitos sociais. Caderno Virtual, Instituto Brasiliense de Direito Público,
São Paulo, v. 24, n. 1, jul./dez. 2011. p. 24.
64 – SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. eampl. 2. tir. Porto Alegre: Livr. do
Advogado, 2010. p. 215.

344
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

Assim, o grande desafio de harmonizar essas duas perspectivas, sem que


ocorra a supressão de alguma delas, diz respeito ao perigo de que o exercício
individual possa acarretar dano ou impossibilitar o exercício coletivo. Ao juiz
do Estado Democrático de Direito cabe identificar, conforme cada caso, onde se
encontra o abuso por um dos que reivindicam para si o exercício de um direito65.
Muito embora o STF adote um entendimento, em grande parte de seus
julgados, que o direito à saúde é um direito individual e que pode ser gozado
diretamente por cada indivíduo, aceitar que somente uma única pessoa ou um
determinado grupo tenha direito à saúde pelo fato de tê-lo alcançado por vias
jurídicas, não concretiza a implementação do direito social à saúde conforme
descrito na Constituição66.
Em sentido contrário, agindo dessa forma atribui-se o direito requerido
exclusivamente aqueles que tiveram acesso ao Judiciário e aquela decisão. Nesse
caso, confunde-se o sentido de direito social, tratando-o somente de forma individual
ou coletiva, e não pelo conjunto dos cidadãos que dele necessitem. Nesse sentido se
aprisiona o interesse social e concede-se realce ao direito individual67.
Uma vez provocado, o Judiciário tem dado as respostas processuais que
lhe cabe, interferindo na gestão de recursos públicos e na priorização de políticas
públicas. Não se trata de crítica, nem resultado que se pretende alcançar com este
trabalho, mas de constatação da doutrina.
Entretanto, é necessário que haja racionalidade na concessão de medidas
judiciais em saúde, sendo as diretrizes do SUS estabelecidas na Constituição
Federal, na Lei Orgânica da Saúde e demais atos normativos, importantes marcos
para a concretização do direito à saúde, para, diante da sua complexidade e
multiplicidade de prestações, especificar o âmbito de abrangência do direito, ou
pelo menos, aquilo que ele não comporta68.

65 – MORAES, op. cit., p. 24.


66 – MAZZA e MENDES, op. cit., p. 48.
67 – SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In: SARLET, Ingo
Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”.
2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livr. Advogado, 2010. p. 146.
68 – RAMOS, Edith Maria Barbosa; DINIZ, Isadora Moraes. Direito à Saúde e Judicialização: um estudo
sobre a eficácia do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde. Revista de Política Judiciária, Gestão e
Administração da Justiça. Curitiba, v. 2, n. 2, Jul/Dez. 2016. p. 46.

345
Fernanda Tavares Sonda

Sem dúvida árdua a tarefa de julgar, uma vez que a atividade judicial
deve guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de
opções legislativas e administrativas formuladas acerca da matéria pelos órgãos
institucionais competentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A concretização dos direitos sociais previstos na CF/88 tem sido uma


dificuldade que persiste em todas as esferas de Poderes, seja o Legislativo, o
Executivo ou o Judiciário.
O direito à saúde está consagrado constitucionalmente como um direito de
todos e um dever do Estado. Nesse sentido é inegável, que absolutamente todos os
indivíduos dispõem de prerrogativas para recorrer ao Poder Público para garantir
tal direito.
Originariamente, cabe ao ente estatal o dever de administrar e definir as
políticas públicas destinadas à concretização dos direitos sociais, o que é feito através
de uma análise de oportunidade e conveniência do planejamento orçamentário,
nos limites dos gastos públicos previstos na lei orçamentária.
Considerando a reiteração da inefetividade do Estado, que não consegue
suprir todas as demandas sociais, haja vista os recursos serem limitados e
insuficientes para garantir com celeridade e eficiência todos os direitos que são
pleiteados, surge o fenômeno de judicialização da saúde, cabendo ao Judiciário
fazer cumprir as garantias previstas no texto constitucional.
Essa frequente demanda à via jurisdicional gerou um excesso de ingerência do
Judiciário no Executivo, ao proferir decisões que interferem na discricionariedade
em matéria de políticas públicas e no planejamento estatal. Assim, pensar numa
excessiva judicialização, especialmente em matéria de políticas públicas de
saúde, realizaram-se, no ano de 2009, no intuito de amenizar as controvérsias
existentes entre os poderes, audiências públicas no STF, as quais contribuíram,
principalmente, com o desenvolvimento de um método objetivo que auxilie os
magistrados ao apreciarem o caso concreto. A finalidade foi justamente coibir a
ingerência excessiva do Judiciário nas políticas públicas que possam conturbar o
sistema orçamentário estatal.
Indiscutível o fato de que se o Executivo gerenciasse e administrasse, de
forma célere e eficaz, as políticas públicas de saúde o pleito judicial desse direito

346
Direito à saúde: a atuação do Tribunal de Justiça gaúcho na concessão de ações e serviços home care de saúde

seria muito menor e o Judiciário seria responsável apenas, por apreciar casos onde
a Administração agisse com abuso de poder ou violação da legalidade.
Descabe falarmos em interferência indevida na discricionariedade estatal,
tampouco em invasão das competências do Poder Executivo, isso porque, em se
falando de saúde pública, a função do Poder Judiciário encontra-se atrelada ao
cumprimento das regras constitucionais, aplicando-se a lei como garantidora da
tutela e o acesso ao direito à saúde. Logo, o grande desafio em matéria de política
pública de saúde é saber em que circunstâncias o Judiciário poderá intervir e quais
os limites dessa intervenção. Restando evidente que no caso de descumprimento
das regras vigentes no sistema a judicialização é inevitável e necessária. Porém, faz-
se mister ao Poder Judiciário decidir e avaliar o efeito sistêmico de suas decisões.
É de extrema relevância estimular o debate sobre o direito à saúde e políticas
públicas em momento prévio ao da elaboração do orçamento, tomando como
exemplo as audiências públicas e congressos sobre a judicialização da saúde.
De fato, o Judiciário deve reconhecer como parte passiva legítima nas
ações envolvendo o direito à saúde o ente estatal que possui o dever de fornecer o
bem jurídico postulado. Reitera-se por fim que, ações e serviços que não estejam
previstos no sistema podem ser providos, contudo, devem envolver mecanismos
processuais mais sofisticados. Não se busca impedir, peremptoriamente, decisões
judiciais individuais, entretanto os magistrados devem provocar a instauração de
demandas coletivas que possibilitem ao poder público justificar políticas públicas
na matéria, bem como fomentar uma maior transparência aos critérios de decisão.
Embora legítima a discussão em torno dos impactos orçamentários que o
fenômeno da judicialização provoca, não se pode admitir que esse argumento,
única e exclusivamente impeça o Poder Judiciário de fazer valer as normas
constitucionais, destacando a saúde, de maneira acertada, como um dos cânones
do direito à vida e considerando-a como um dos conteúdos que compõem a
dignidade da pessoa humana.

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SOB JUDICE O TRANSPORTE ESCOLAR: UMA ANÁLISE
DO DIREITO FUNDAMENTAL A EDUCAÇÃO POR
MEIO DA GARANTIA DO TRANSPORTE A PARTIR DOS
JULGADOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

André Inacio Silva Lopes1


João Felipe Lehmen2

RESUMO

De a muito se evidencia que atender a educação básica não significa apenas


disponibilizar escolas, profissionais com formação adequada e material didático.
Ao longo dos anos, percebe-se que a concretização do direito fundamental a
educação básica sofre constante evolução e não se consubstancia mais apenas

1 – Acadêmico do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Iniciação Cientifica
pela Fapergs, orientando da Prof. Caroline Müller Bitencourt no projeto intitulado transparência e
acesso à informação para o exercício do controle social: um estudo dos portais da transparência dos
municípios do Rio Grande do Sul com enfoque aos serviços públicos e políticas públicas de saúde e
educação. E-mail: andre.lps@hotmail.com E-mail: andre.lps@hotmail.com
2 – Mestrando do PPGD – Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC/RS, bolsista PROSUC/CAPES Modalidade II. Advogado e consultor na Delegação
de Prefeituras Municipais – DPM. Ex - assessor jurídico Municipal. Membro do Instituto Gaúcho de
Direito Eleitoral – IGADE e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RS. Especialista em Direito
Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET e pós-graduando em Direito Público.
Contato:joao@borbapuseperin.adv.br
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

nestes pressupostos. Ainda que eles sejam fundamentais, inúmeros outros fatores,
como é possível citar, a alimentação para os estudantes, plano político pedagógico e
o próprio transporte escolar têm se mostrado como elementos imprescindíveis para
atingir-se a plenitude do direito encartado na Constituição Federal. Neste sentido,
o presente estudo tem por objetivo analisar criticamente, a partir de julgados do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e dos conteúdos de direito
administrativo e constitucional como tem se posicionado o órgão máximo do Poder
Judiciário Estadual com relação ao tema, especialmente no que tange a observância
a autonomia dos Municípios e sua responsabilidade. O problema de pesquisa
consiste no seguinte questionamento: como tem se posicionado o Tribunal de Justiça
com relação a autonomia dos Municípios na concretização do direito fundamental
a educação a partir do fornecimento do transporte escolar? O trabalho tem como
recorte as decisões tomadas pelo Tribunal no ano de 2018, cuja publicação tenha
ocorrido no período que medeia 01.01.2018 e 05.07.2018. Para a análise, utilizou-
se como critérios de pesquisa no site do referido órgão, as seguintes palavras
entre aspas: “educação” “direito fundamental” “transporte escolar”, ocasião em
que foram obtidos 37 (trinta e sete) retornos. A verificação dar-se-á por meio do
método hipotético-dedutivo, iniciando-se definição e contextualização do direito
fundamental a educação básica, passando pela verificação da responsabilidade dos
entes federativos com relação ao transporte escolar, bem como pela análise crítica
das decisões do Tribunal para a garantia deste direito fundamental e o respeito a
autonomia dos Municípios. Como resultado da pesquisa, evidencia-se que o acesso
à educação básica não está apenas plasmado no oferecimento de vagas nas escolas,
mas sim mediante a garantia para que os cidadãos possam efetivamente acessar o
serviço público por meio de transporte ofertado também pelo Estado. Por outro
lado, evidencia-se que a garantir não é irrestrita, visto que existem limites para
os indivíduos frente ao Estado, o que nem sempre tem sido objeto de análise pela
Corte Estadual de Justiça.
Palavras-chave: Direito fundamental. Educação. Transporte escolar.
Decisões. Tribunal de Justiça.

1 INTRODUÇÃO

O atendimento à educação a partir da Constituição de 1988 e de lá pra cá


sofreu inúmeras mutações não apenas relativamente a novas perspectivas jurídicas

354
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

extraídas pela interpretação de um texto ainda pouco conhecido, mas também sob
o ponto de vista dos meios necessário a implementação do direito fundamental.
Em 30 (trinta) anos de existência da Constituição, foi possível perceber uma
modificação naquilo que visa concretizar o direito fundamental a educação. É
possível citar como exemplo, não necessariamente nessa ordem cronológica, que em
um primeiro momento se buscou garantir escolas e recursos, mediante programas e
projetos com essa finalidade, após houve a qualificação dos profissionais, o que pôde
ser percebido com a comumente denominada década da educação, valorização dos
profissionais diante da necessidade de planos de carreira específicos com níveis de
formação, piso para a categoria do magistério, alimentação escolar, atendimento
com inserção para portadores de necessidades especiais, transporte escolar, entre
outros.
Desse contexto se percebe que não basta para atingir o direito fundamental
à educação que os responsáveis venham garantir acesso a escolas públicas, mas que
conciliado a isso estejam agregados inúmeros outros pressupostos tão importantes
quanto o primeiro. É bom lembrar que não se está querendo dizer que o acesso a
escola não busca tal finalidade, antes pelo contrário, a pretensão é indicar que essa
necessidade está atrelada com um outro rol de obrigações tão importante quanto
para que haja a concretização desse direito.
Sob essa perspectiva, o presente estudo visa analisar criticamente a partir
dos julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como tem
sido enfrentada a questão da garantia do direito fundamental a educação por meio
do transporte escolar.
Temporalmente o trabalho se delimita a verificar decisões tomadas pelo
Tribunal no ano de 2018, especialmente no período de 01.01.2018 a 05.07.2018.
Para selecionar os julgados que foram utilizados e examinados, valeu-se a pesquisa
do sistema informatizado, por meio do link de consulta a jurisprudências (aba
jurisprudência), cujos termos de busca, em conjunto, foram: “educação” “direito
fundamental” “transporte escolar”.
O trabalho foi dividido em três capítulos que buscam primeiro
contextualizar o direito a educação como direito fundamental, segundo verificar
a responsabilidade dos entes federativos para com o transporte escolar e por fim
como tem se manifestado o Tribunal frente as questões que o envolvem.
Como hipótese a ser confirmada ou refutada pela pesquisa, se evidencia
que o transporte escolar resta apresentado no atual cenário como uma obrigação
acessória ao ensino, de tal sorte que o Tribunal de Justiça vem se manifestando

355
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

nesse sentido. Surpreende, por outro lado, que as decisões proferidas seguem um
padrão muito específico, o que denota a falta de análise da situação particular
dos autos, sobretudo na determinação dos responsáveis segundo a repartição de
competências da Constituição e eventuais limitações desse direito.

2 O DIREITO À EDUCAÇÃO: CONCRETIZANDO UM DIREITO


FUNDAMENTAL

Direitos fundamentais são considerados direitos inerentes aos seres


humanos e, segundo Garcia3, trazem como pressupostos a universalidade, a
imprescritibilidade, irrenunciabilidade e a inalienabilidade, sendo obrigações
individuais que o cidadão teria em face do Estado.
Conforme Gomes4, os direitos fundamentais podem ser estabelecidos em
pelo menos 5 (cinco) grupos, quais sejam: vida, liberdade, igualdade, segurança e
propriedade.
A visão de Gomes, entretanto, não pode ser destorcida ao ponto de se
pressupor que direitos fundamentais são apenas aqueles que foram referidos. Antes
pelo contrário, a ideia é justamente agrupar uma série de direitos que estão ligados
a cada um desses grandes grupos, ou seja, no que concerne à vida, por exemplo,
inúmeros outros direitos fundamentais nascem ou decorrem dela. Tentando
explicar melhor, os grupos apresentados pelo autor são gênero do quais são espécie
um número considerável de direitos fundamentais decorrentes dele.
Nessa conjuntura, é possível dizer que todos os pressupostos que tenham
relação direta com esses direitos fundamentais divididos no grande grupo, seriam
também fundamentais e, uma vez que a educação está intrinsecamente ligada à
vida, a liberdade e a igualdade, que ela, a educação, pode e deve ser considerada
como um direito fundamental.
A conexão entre a educação, a vida, a liberdade e a igualdade, possui bases
profundas. Garcia aponta que no art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal,
“que o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes”5, mas

3 – GARCIA, Maria. Mas, Quais São Os Direitos Fundamentais? In: Revista de Direito Constitucional e
Internacional nº 39. São Paulo: Revista dos Tribunais.
4 – GOMES, Sérgio Alves. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito
Fundamental à Educação. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional. Ano 13. Abr/jun 2005, nº51.
5 – BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

356
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

que de nada adianta a possibilidade de o povo exercer a democracia representativa se


este mesmo povo, cidadão nos termos da Constituição, não possui o discernimento
necessários para tal mister. Desta feita, somente a educação, devidamente
concretizada é que teria a capacidade de emancipar o indivíduo, de tal forma que
ele possa obter as informações necessárias e fazer os julgamentos segundo seus
critérios para definir os rumos em uma democracia representativa.
O direito à educação é assegurado na Constituição Federal de 1988, e
tem por bases centrais a inclusão do cidadão na sociedade, atrelando-se como
direito fundamental por estar intimamente coligado aos princípios fundamentais
da República Federativa do Brasil, principalmente com a dignidade da pessoa
humana. Tessmann6 destaca que o ensino priorizaria um pleno desenvolvimento
da personalidade humana construindo assim uma das maiores características da
própria cidadania.
Logo, a educação traria o esclarecimento necessário para ser um cidadão ativo
não só na capacidade de escolher seus representantes, mas também de selecionar
aquilo que nos seus critérios estabelecidos inconscientemente é concebido como o
rumo acertado, além é claro de poder desenvolver as atividades de participação no
processo democrático que não se resume ao voto.
Para Clève7 a educação além de ser uma forma de constituir a cidadania
ainda é o instrumento que possui o pleno desenvolvimento para o individuo e a
qualificação para o trabalho, o autor ressalta o vínculo que existe entre as premissas
do desenvolvimento, da educação e do trabalho.
A educação recebe uma garantia tão importante como direito fundamental
e direito social inerente ao ser humano, porque está integralmente relacionada ao
quadro da dignidade da pessoa humana. Tessmann8 elucida que a educação é um
dos princípios basilares para que possa ser erigido uma sociedade justa, livre e

Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 09. Jul.2018
6 – TESSMANN, Erotides Kniphoff. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade frente às
normas constitucionais vigentes no Brasil. In: Clovis Gorczevski. Direito e Educação: a questão da
educação com enfoque jurídico. Porto Alegre: UFRGS gráfica, 2006.
7 – CLÈVE, Clemerson Merlin. Direito Constitucional Brasileiro: Teoria das Constituições e Direitos
Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.
8 – TESSMANN, Erotides Kniphoff. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade frente às
normas constitucionais vigentes no Brasil. In: Clovis Gorczevski. Direito e Educação: a questão da
educação com enfoque jurídico. Porto Alegre: UFRGS gráfica, 2006, p. 83.

357
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

solidária. Além disso, é requisito essencial para que se possa cogitar a erradicação
da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a diminuição da marginalidade.
Ainda, a conjuntura da educação como direito fundamental é defendida
por Silva9 no conjunto do artigo 6º, que elenca a saúde, alimentação, trabalho e
a moradia como direitos sociais e no art. 205, que transcreve a educação como
direito de todos e dever do Estado e da família, ambos elencados na Constituição
Federal, o que evidencia a importância que se pretendeu dar ao tema da educação
no Brasil.
A universalidade da educação, por sua vez, consoante Duarte10 necessita
determinada escolha quanto aos alvos ou grupos a serem atingidos, já que a
busca por educação é um direito social e desta forma possui o intuito de corrigir
desigualdades que existem na sociedade, aproximando os grupos que são
marginalizados.
Nesta senda, Silva compreende que o Estado precisa estar apto a fornecer
a todos, serviços de ensino em concordância com os preceitos estipulados na
Constituição, no sentido de que as normas e as ações sejam pautadas pela completa
eficiência, de tal forma que se o Estado não possuir o comprometimento necessário
e este direito for realizado de forma insuficiente, poderá ser exigido judicialmente.
Na tentativa de dar essa concretude necessária para o direito fundamental
à educação foi editada a Lei 9.934/96, denominada de Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LBD), a qual, em seu art. 5º11, traz o preceito citado, ou
seja, que não havendo a prestação da educação qualquer membro da comunidade
poderá acionar o Poder Judiciário para exigir o cumprimento da demanda, uma vez
que o acesso a educação encontra-se como direito público subjetivo do indivíduo.
Reforçando essa importância do direito à educação, o legislador também
achou por bem designar um mínimo de verba para os dispêndios com educação.
No art. 212 da Constituição Federal é estabelecido patamares mínimos a serem
observados pelos entes públicos quando do atendimento do direito a educação se

9 – SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005,
p. 313.
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358
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

implementando um regime de colaboração nas seguintes condições: nunca menos


que 18% para a União e 25% para os Estados, Distrito Federal e Municípios da
receita resultante de impostos que deverão serem alocados na Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino (MDE). O atendimento desses postulados financeiros
pelos entes federativos assume tamanha relevância que não sendo cumpridos,
poderá ocorrer a suspensão do repasse de recursos federais.
No entanto consoante enaltece Piovesan12, o efetivo direito a educação
é uma construção que depende da atuação de forma “responsável dos Poderes
Executivos, Legislativo e da fiscalização e intervenção do Poder Judiciário,
tornando esse direito acessível para toda a sociedade”. Da parceria social que seria
o conjunto dos poderes com os entes da Administração Pública e a família é que
deve advir a efetiva construção da educação que é necessária ao Brasil para que se
alcance uma sociedade plural e justa tal qual é disciplinado na Constituição.
Para o alcance deste direito fundamental a educação, portanto, se faz
necessário uma série de mecanismos e instrumentos e uma força conjunta da
sociedade, família e estado para a execução de políticas públicas voltadas ao seu
atendimento.
Nessa constante, na tentativa de evidenciar alguns desses instrumentos e
mecanismos, na proposta do presente estudo, cabe verificar, no próximo capítulo,
se o transporte escolar se apresenta como um desses elementos que se prestam a
atingir o direito fundamental à educação, assim como as competências dos entes
no que tange a ao financiamento do transporte escolar público.

3 TRANSPORTE ESCOLAR: INSTRUMENTOS PARA VIABILIZAR


O DIREITO À EDUCAÇÃO

O Brasil, enquanto território, possui dimensões continentais, tanto


é verdade que inúmeros dos seus estados membros são maiores em matéria de
dimensão territorial que muitos países do globo terrestre.
A partir dessa perspectiva já é possível, pela via lógica, perceber que
o transporte no seu amplo sentido, assume uma importância significativa e
relevante. No caso do transporte escolar, tal assertiva não destoa da mesma linha,

12 – PIOVESAN, Fúlvio Machado. As patologias corruptivas e seu tratamento na perspectiva sistêmica da


contratação de serviço público de transporte escolar: uma análise da realidade no estado do Rio Grande do Sul.
2016, fl. 120. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Santa Cruz do Sul, 2014, p. 44.

359
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

especialmente porque não parece lógico ofertar o ensino em localidades longínquas,


por exemplo, sem o correspondente oferecimento de condições mediante as quais o
indivíduo possa acessá-lo.
Na atualidade o transporte escolar, assim como a alimentação e os
materiais didáticos são elementos que são obrigatórios a serem financiados
pelo Estado conforme descrito na Constituição e contemplam a efetividade e
a eficácia do ensino, diminuindo o índice de evasão escolar dos alunos (Silva e
Yamahista).13
Portanto, o mero oferecimento de ofertas de vagas para os alunos de forma
gratuita na rede pública não se mostra como política pública adequada para
a eficácia desse direito e o atendimento das suas finalidades. Aliás, pressupor o
contrário corresponderia a dizer que o estado não cumpre com a igualdade, de
forma que nem todos os indivíduos tem as mesmas condições para acessar o
ensino. Nessa perspectiva, a Constituição não deixa margem para dúvidas de que
a educação não é somente atendida pelo oferecimento de vagas, mas sim com a
conjugação de outros fatores:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a


garantia de:
[...]
VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica,
por meio de programas suplementares de material didáticoescolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. 
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
(grifo nosso)14

Além de destacar que esse direito fundamental previsto não tem eficácia
apenas quando se oferta a vaga para o indivíduo, a Constituição também se encarrega

13 – SILVA, Alan Ricardo da; YAMASHITA, Yaeko. Modelo de distribuição de recursos para o
transporte escolar rural a partir dos princípios da igualdade e da equidade. Transportes, São Carlos,
v. XVIII, n. 3, p. 88-96, set. 2010. Disponível em: <http://revistatransportes.org.br/anpet/article/
view/455/362>. Acesso em: 13 mar. 2013.
14 – BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 09. Jul.2018

360
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

de dividir as competências para cada um dos entes federativos, destacando que ao


Município é reservada a etapa do ensino fundamental e educação infantil:

Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios


organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.
§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na
educação infantil.15

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação também se encarregou de dar


amparo jurídico na questão do transporte escolar em seus arts. 10 e 11, a partir de
2003, ocasião em que foi dada nova redação a LDB por meio da Lei 10.709/2003.
Nesse contexto normativo, os municípios teriam competência prioritária
sobre o ensino fundamental e o ensino básico, embora apresenta a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação em seu art. 11, que os municípios não estariam adstritos
apenas a esta área prioritária, possibilitando atuarem nos setores do ensino médio
e superior desde que seja comprovado a aplicação mínima dos recursos já referidos
no art. 212 nas áreas base de sua competência. Logo, os Municípios devem atuar
de forma prioritária nas etapas do ensino fundamental e educação infantil, de
modo que somente atendendo plenamente os encargos dessas etapas de ensino é
que podem atuar nas demais.
No tocante ao Estado, sua competência para com o ensino público encontra-
se prevista na Constituição de 1988, no art. 211, § 3, “Os Estados e o Distrito Federal
atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio” 16. Não se pode esquecer
que, da mesma forma que aos Municípios, a efetividade dessas etapas de ensino
que são atribuídas constitucionalmente ao Estado não retiram a responsabilidade
acessória no que diz respeito ao transporte. Segundo Alves Nunes17 o art. 208
expressa outras competências de responsabilidade do Estado, inclusive no que
toca o direito de quem não conseguiu estudar na idade apropriada também ter
a prerrogativa de acessar o ensino quando adquirirem idade mais avança, sendo

15 – Ibid.
16 – BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 09. Jul.2018
17 – NUNES JÚNIOR, Flávio Martin Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora dos
Tribunais, 2017.

361
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

assegurado o transporte neste caso. Ou seja, não se pode balizar a responsabilidade


do transporte escolar pela idade, especialmente porque se existe a possibilidade
de estudar quando se alcança uma idade mais avançada, deve ser assegurado da
mesma forma o transporte para a concretização desse direito.
O art. 10, VI da LDB, por sua vez, não deixa margem para dúvidas com
relação a competência do Estado e o transporte, de tal sorte que é seu dever o
transporte escolar aos alunos da rede estadual.
Por fim, a União se apresenta no art. 211, inc. I e possui como prioridade
de atendimento a função supletiva e redistributiva, na consecução de promover a
assistência técnica e os repasses financeiros aos Estados e municípios. A autora
Pergher enaltece algumas medidas e procedimentos utilizados pela União para a
realização do seu fim constitucional, como a criação do Fundo de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), a qual é a autarquia coligada ao Ministério da Educação
(MEC), que é responsável pela execução financeira das atividades do MEC.
Essas atividades possibilitaram a criação de importantes programas para
assistência na rede estadual e municipal, como o Programa Nacional do Livro
Didático ou o ProInfo, ambos programas para distribuição de matérias para o
auxílio da educação nas redes públicas. Todavia, a União, bem como os demais
entes federativos, necessitam dar suporte ao transporte escolar e assim houve a
criação do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate).
Assim, se tem um regime de tripartição de competências com relação
a educação e consequentemente a respeito do transporte que é necessário para
alcançar tal serviço público, o que resta mais evidente quando se está diante de
municípios e estados dada as suas obrigações para com o ensino fundamental e
médio.
Porém, Piovesan adverte que esse sistema tripartite necessita ser atualizado
e regulamentado de forma mais específica, sobretudo porque ocorreu uma
municipalização desde os meados de 1990 quando os estados propuseram que
os alunos da rede estadual se utilizassem do transporte escolar municipal e por
sua vez, o ente responsável, no caso o próprio estado fizesse o aporte de recursos
necessário. Entretanto estes valores acabaram não restando suficiente, ocorrendo o
fenômeno da municipalização com as prefeituras financiando o transporte escolar
de forma majoritária.
Esse sistema de governo que é aplicado, o qual utiliza recursos financeiros de
três esferas governamentais diferentes, comporta uma conjuntura de competência

362
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

dos entes de forma muito complexa, e de acordo com a UNICEF18, isso se deve “as
desigualdades regionais marcantes, em termos geográficos, sociais e econômicos
que influenciam nas redes de ensino e precisam ser vencidos”.
Na busca pela igualdade a Constituição Federal disciplina que o ensino será
ministrado conforme se atém do art. 206: “O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola”.19
Acerca da igualdade de condições é necessário referir a dificuldade que
determinados alunos possuem para ir à escola e sentarem-se nos bancos escolares.
Antagônico a situação dos alunos que residem na cidade, ou nos grandes centros,
que possuem, de regra, inúmeras possibilidades de transporte para se locomoverem
até a escola, é o caso dos alunos que vivem em regiões rurais, que habitam em
locais de difícil acesso e longínquo da área urbana consoante explanam Prestes e
Pozzerati.20
Pergher discorre que a universalização do transporte escolar possui uma
das maiores prerrogativas para efetivar o direito a educação. Corroborando
esta afirmação o Ministério da Educação dispõe que em torno de 6,7 milhões
de estudantes habitam ou estudam em áreas rurais, e 70% destes necessitam do
transporte escolar para chegarem às escolas.21
O quadro de necessidade do transporte escolar para zonas rurais é muito
mais implícito do que para as cidades, no entanto o transporte escolar torna-se
imprescindível para ambas, uma vez que o que torna “uma escola acessível, não é
a quantidade de vagas, mas a possibilidades de as crianças chegarem à mesma”. 22

18 – UNICEF. Iniciativa Global pelas Crianças Fora da Escola, 2012, p. 22. Disponível em: https://
www.unicef.org/brazil/pt/br_oosc_ago12.pdf. Acesso em 18. Jul.2018.
19 – BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 09. Jul.2018
20 – PRESTES, Fernando; POZZERATI, Valmir César. O princípio da eficiência e a efetiva
prestação do transporte escolar nas zonas rurais de Manaus/AM. Revista de Direitos
Humanos e Efetividade, v. 3, nº 1, p. 60-79, jun. 2017. Disponível em: <http://www.
indexlaw.org/index.php/revistadhe/issue/view/158> Acesso em: 18.Jul. 2018.
21 – Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira. Portal Inep. Disponível
em: <http://inep.gov.br/> Acesso em 19.Jul.2018.
22 – PRESTES, Fernando; POZZERATI, Valmir César. O princípio da eficiência e a efetiva prestação
do transporte escolar nas zonas rurais de Manaus/AM. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, v.

363
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

O serviço público de transporte escolar é assim um dos maiores fomentos


a educação, visto que é o instrumento utilizado para que haja a conexão física da
escola com a efetiva possibilidade de acesso do aluno. Se tornando a ponte para
que a educação alcance patamares elevados e universais.
O fornecimento do transporte escolar, com responsabilidade tripartite
dos entes federativos, portanto, é um mecanismo assecuratório para o exercício
do direito fundamental a educação, sobretudo pela dificuldade, tendo em conta as
dimensões continentais do Brasil de acesso aos educandários, fundamentalmente
nas áreas rurais.
O transporte se presta, nesse sentido, a universalizar o ensino, propiciar
igualdade de condições para o acesso a educação, bem como combater a evasão
escolar. Ao lado de outros tantos elementos, se confirma a sua essencialidade para
que a educação seja entendida com a relevância que foi dada pela Constituição.
Compreendida a educação como direito fundamental e a necessidade de
fornecimento de transporte escolar para sua concretização, no próximo capítulo se
busca por meio da análise de julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul conhecer do posicionamento da Corte nas questões atinentes aos serviços
públicos de transporte escolar, nos quesitos de competência e financiamentos, além
de, obviamente evidenciarem-se questões que não são objeto dos julgados.

4 O TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A GARANTIA DA EDUCAÇÃO


POR MEIO DO TRANSPORTE ESCOLAR

Conforme visto anteriormente, a educação como direito fundamental


que é, não consiste apenas em franquear vagas em escolas, antes pelo contrário,
significa propiciar uma série de mecanismos para que efetivamente esse direito seja
assegurado aos cidadãos e ele acima de tudo seja eficaz no seu sentido pretendido.
Quando, entretanto, esses mecanismos não são fornecidos espontaneamente
pela Administração Pública, especialmente pelo Poder Executivo, responsável pela
implementação e garantia desse direito na sua função típica, qualquer cidadão ou
até mesmo os órgãos de fiscalização estão legitimados a buscar a concretização
desse direito, acionando, inclusive, o Poder Judiciário.

3, nº 1, p. 60-79, jun. 2017. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/revistadhe/issue/


view/158> Acesso em: 18.Jul. 2018.

364
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

Vale dizer que o Poder Judiciário, ainda que não detenha como função
típica a prestação do serviço público de educação e seus mecanismos essenciais,
desempenha um papel extremamente relevante, atuando como órgão encarregado
de obrigar os responsáveis legalmente a fazê-lo.
Em um estado de que tem como obrigação segundo o censo de 2016 o
transporte de 89.902 mil alunos23, as dificuldades enfrentadas pelos Municípios
para custear essas políticas são infindáveis, desta forma o trabalho em questão
passa a uma análise de como se sucede as nuances no que tange ao transporte
escolar, procurando conhecer como o TJ/RS está respondendo a uma necessidade
a qual deveria ser garantida por meio do Poder Executivo.
Nesse interim buscou-se no sítio do Tribunal do Rio Grande do Sul, coletar
os acórdãos referente ao tema do transporte escolar, por meio da guia “Pesquisa
de Jurisprudência”, tendo como período de pesquisa datado entre 01.01.2018
a 05.07.2018, utilizando-se como ferramenta de buscas os critérios entre aspas:
“educação” “direito fundamental” “transporte escolar”, ocasião em que, no
período, foram retornados 37 (trinta e sete) acórdãos.
De forma ilustrativa a pesquisa se sucedeu da seguinte forma: Tribunal:
Tribunal de Justiça do RS; Órgão Julgador: Todos; Seção: Cível; Tipo de processo:
Todos; Número: Nenhum; Comarca de Origem: Nenhuma; Tipo de Decisão:
Acórdão; Data de Julgamento: Nenhuma; Data de Publicação: 01.01.2018 a
05.07.2018; Procurar resultados: “educação” “direito fundamental” “transporte
escolar”; Com a expressão: Nada; Com qualquer uma das palavras: nada; Sem
as palavras: nada. Encontrando-se 37 acórdãos, sendo que todos se referem ao
julgamento do tema proposto do transporte escolar.
Preliminarmente, é necessário apontar que a maioria dos julgados
concederam o transporte escolar, não obstante a situação encontrada no caso fático.
A principal argumentação refere-se ao transporte ser uma demanda constitucional
e sua importância para dar concretude ao direito fundamental de educação.
Nesse entorno, a maioria dos acordãos cita a AI de nº 70048485080 de 2012,
julgado que indica que o não oferecimento de transporte escolar a uma criança
necessitada, em um bairro distante da escola, seria a mesma opção que negar a
vaga, refletindo no direito que é assegurado por meio da Constituição Federal.

23 – Dado disponível em: < http://servicos.educacao.rs.gov.br/pse/html/rel_mun.jsp?ACAO=acao2>.


Acesso em: 21.07.18

365
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

Da mesma forma, todas as decisões selecionadas, ainda que reconhecendo


de certa maneira as justificativas dos entes responsáveis pela garantia do transporte
escolar, entenderam que a par disso, não se pode olvidar que ele, o transporte, é
instrumento essencial para a garantia do acesso à educação, mecanismo sem o qual
pode tornar-se inócua a pretensão do ente federativo em apenas disponibilizar a
vaga.
Destaca-se entre as decisões também, que basicamente o ente federativo
demandado no período de análise diz respeito aos Municípios, visto que dos
acórdãos, apenas em um destes o Estado compõe solidariamente o polo passivo
da ação.
Sobressai entre os argumentos utilizados pelos Municípios na tentativa de
afastar a responsabilidade os preceitos da legalidade, isonomia, igualmente, mas
especialmente se tenta justificar a falta ou escassez de recursos públicos para dar
suporte a demanda pretendida.
Dessa argumentação, percebeu-se que o Poder Judiciário decide não deixando
de alertar para a sua atividade institucional, não desconhecendo, portanto que sua
tarefa não diz respeito a implementação de políticas públicas, mas que também lhe
e dada a garantia pela Constituição da República de tornar efetivas e eficientes as
nuances que foram dadas na Carta Constitucional aos cidadãos, de modo que a
ausência de transporte escolar deve ser concretizada pelo ente responsável, o que
fica mais evidente na Apelação de nº 70076059724.
Em síntese a fundamentação para dar provimento as demandas possuem
como premissas a legalidade, ou seja, havendo responsabilidade do ente federativo,
acaso não cumprido, o Poder Judiciário tem a missão institucional de garanti-lo ao
cidadão por meio de suas decisões.
Por outro lado, se evidencia que o Tribunal de Justiça no âmbito das
decisões analisadas, tem imposto um limite mínimo de distância, qual seja, 2 Km
(dois quilômetros) da residência até a escola. Ou seja, se a residência do aluno
se situar em distância inferior a essa, não deve o ente público ser condenado no
fornecimento de transporte escolar.
O que surpreende, entretanto, não é o fato do Tribunal impor esse limite de
distância, mas sim fazê-lo sem que exista previsão legislativa dos entes federativos
responsáveis nesse sentido. Em outras palavras, o Poder Judiciário impõe esse
limite apenas considerando os seus precedentes aparentemente, já que a ausência
de Lei para esse limite não é destacada em nenhum dos 37 (trinta e sete) julgados
analisados.

366
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

Outra questão importante que foi observada nos julgados diz respeito ao
direito da família e do estudante, o qual não é irrestrito. Em verdade, conforme
denotou-se dos julgamentos existe um direito, mas esse não é dado de acordo com a
vontade individual do estudante e/ou sua família. No acórdão de nº 70075965087,
evidenciou-se a situação de uma família que dispunha de educandário para a filha
em escola que dista apenas 450 m (quatrocentos e cinquenta metros) da residência.
Entretanto, a família resolveu, matricular a criança em outro local, requerendo que
lhe fosse assegurado o direito ao transporte.
Nesse particular, entendeu o Tribunal de Justiça que o direito a vaga para
a criança era na escola mais próxima de sua residência, não se devendo operar a
inversão do interesse particular sobre o interesse público. Logo, se a família optou
por matricular a criança em escola mais distante da sua residência, não deveria ser
forçado que o ente público garantisse a ela o transporte para tanto. Essa foi uma
opção particular da família, a qual não se sobrepõe ao interesse público.
Desta forma, descabe a pretensão do órgão público em fazer um orçamento
para políticas públicas, alocando os alunos conforme é necessário e remanejando
quando não houver necessidade de transporte escolar, uma vez que este é um
dispêndio não previsto para o ente, e deverás desnecessário, que ocorreu apenas
pela pretensão da vontade da família da estudante. A alegação de um direito
fundamental quando não for como o próprio nome sugere de “fundamental”
importância não é cabível, visto que a prestação estava sendo realizada.
Por fim, da análise dos julgados, percebe-se que os precedentes têm especial
importância na questão do transporte escolar, fundamentalmente quando os
acórdãos em sua maioria possuem a mesma fundamentação e até mesmo a idêntica
redação.
Resta evidente a partir dessa constatação anterior que infelizmente o direito
a educação e a necessidade de transporte escolar para concretizá-la não tem sido
assegurado sem maiores objeções pelos entes públicos responsáveis, sobretudo
quando os próprios julgamentos da instância máxima do Poder Judiciário do
Estado, o Tribunal de Justiça Gaúcho, tem adotado postura de julgamentos em
massa para os casos que chegam. Ou seja, muito ainda há que se efetivar para
que os postulados da Constituição no que se refere ao direito à educação sejam
garantidos tal como previsto nela.

367
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

5 CONCLUSÃO

Conforme restou comprovado, o direito a educação vem ao longo do tempo


sofrendo mutações e o simples fornecimento de vagas em escolas não é suficiente
para se concretizar o primado desse direito que recebeu um tratamento especial na
Constituição da República.
O direito fundamental a educação exige dos entes federativos responsáveis
uma série de mecanismos e instrumentos para que seja efetivamente atendido.
Nesse espaço, o transporte escolar, em um país como o Brasil, cujas
dimensões são continentais, assumiu e assume uma importância inigualável, a tal
ponto que vaga em escola sem o respectivo transporte escolar não é sinônimo de
prestação do serviço público de forma efetiva.
Como resposta ao problema de pesquisa, se evidenciou que o Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – TJ/RS entende que o transporte escolar
é um dos mecanismos necessários para que seja atendido o direito fundamental.
Entende o órgão máximo do Poder Judiciário do Estado que o transporte
escolar é uma obrigação acessória ao ensino, de modo que o ente responsável
por prestar aquela etapa do ensino, também é encarregado de franquear o acesso
aos estudantes ao transporte escolar de forma gratuita. Ou seja, se o Município é
responsável pelo ensino fundamental, também será responsável pelo transporte aos
alunos dessa etapa de ensino.
Destaca-se além disso, que o direito dos cidadãos ao transporte escolar não é
irrestrito, de modo que não são as famílias que escolhem a escola pública para os seus
filhos e que isso corresponda a exata equação para o fornecimento do transporte.
Em verdade, como se está diante do interesse público, o direito corresponde a escola
mais próxima da residência do estudante, sendo assegurado o transporte para lá.
Via de consequência, se a família optar por outro educandário, deverá responder
também pelo transporte, sem exigir do ente público essa responsabilidade.
De igual sorte, verifica-se que existe uma distância mínima para que o
transporte escolar seja assegurado aos estudantes, o que vem estampado na grande
maioria das decisões do Tribunal de Justiça no período analisado, sem que isso
corresponda a uma exata previsão legal - lei, mas sim como uma construção da
jurisprudência.
Por fim, restou comprovado que o Tribunal de Justiça, como órgão do
Poder Judiciário tem um importante papel na concretização da educação, dando
especial atenção ao transporte escolar em seus julgados, tudo como forma de dar

368
Sob judice o transporte escolar: uma análise do direito fundamental a educação por meio da garantia do
transporte a partir dos julgados do Tribunal de Justiça

efetividade a esse direito (educação) que se mostra como alternativa para modificar
a dura realidade do país.
O transporte escolar é, sem dúvida alguma um dos mecanismos que busca
atingir a efetividade dos postulados da educação, sem ele muitos alunos não
acessam o ensino, sem ensino não se tem pretensões de mudar a realidade do povo,
ou seja, sem ele não se tem esperança para mudar os rumos de uma nação, já que
não se concretiza o direito fundamental à educação.

REFERÊNCIAS

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369
André Inacio Silva Lopes e João Felipe Lehmen

PERGHER, Calinca Jordânia. Política de Transporte escolar rural no Rio Grande


do Sul: configuração de competências e de relações (inter)governamentais na oferta e no
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perspectiva sistêmica da contratação de serviço público de transporte escolar: uma análise
da realidade no estado do Rio Grande do Sul. 2016, fl. 120. Dissertação (Mestrado em
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PRESTES, Fernando; POZZERATI, Valmir César. O princípio da eficiência
e a efetiva prestação do transporte escolar nas zonas rurais de Manaus/AM. Revista de
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TESSMANN, Erotides Kniphoff. O direito à educação e suas perspectivas
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https://www.unicef.org/brazil/pt/br_oosc_ago12.pdf. Acesso em 18. Jul.2018.

370
A CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE
PROFESSORES E OS SERVIÇOS
PÚBLICOS DE EDUCAÇÃO: O QUE
PENSA O TRIBUNAL DE JUSTIÇA?

Adriano Gonçalves Paulo1


Arthur Feltrin Milami2

RESUMO

O presente artigo tem por escopo analisar o instituto da Contratação


Temporária, prevista no artigo 37, IX da CF/88, excepcionador da regra
constitucional do Concurso Público para o provimento dos cargos e empregos
públicos, prescrita no artigo 37, II. Com o processo de ampliação do número
de contratações temporárias de docentes na rede pública de ensino no Brasil, o
número de ações judiciais tem aumentado de maneira expressiva nos últimos
anos. Nesse contexto, partindo da concepção de que o conhecimento e a análise
da aplicação do direito na área educacional merecem integrar a compreensão do
fenômeno educacional contemporâneo e, diante da realidade citada, objetiva-se

1 – Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Contato: adriano.g.paulo@


gmail.com
2 – Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Contato: arthurfeltrinmilani@
gmail.com
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

nesse artigo investigar e analisar o posicionamento e a interpretação desenvolvidos


pelo Poder Judiciário, especificamente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, em demandas referentes à contratação temporária de docentes na rede pública
de ensino no âmbito da educação, no período compreendido entre 13.07.2015 a
13.07.2018, isto é, quais são os requisitos a serem preenchidos no ato. E é nesse
viés que o presente trabalho debruça seus esforços, isto é, i) o que pensa Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul a respeito da contratação temporária de professores e
os serviços públicos de educação, ii) quais os prazos para a contratação temporária,
iii) evidenciar os argumentos utilizados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul nas decisões. O caminho consiste em, um primeiro mormento, realizar o
levantamento de dados junto ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
desenvolvendo uma metodologia própria para se chegar ao resultado de acórdãos
e, a partir daí fazer a seleção dos documentos pertinentes a temática. Num segundo
momento, aborda-se os prazos para a contratação temporária não através de
uma descrição pura e simples, mas sim se a transitoriedade está correlacionada
à necessidade excepcional das atividades atendida pela Administração, de modo
que o contrato perpetuará o tempo imprescindível para atender à necessidade
momentânea que lhe deu causa, de acordo com cada hipótese de contratação
temporária. Num terceiro momento, faz-se a análise quantitativa dos acórdãos
e decisões monocráticas selecionados. Neste ponto, analisa-se, de forma geral,
quantas são desfavoráveis, favoráveis e parcialmente favoráveis. Ao final, tendo em
vista que o contrato temporário, ato discricionário da administração pública, não
cria nenhum vínculo entre o contratado e a Administração, a qual pode, a qualquer
momento, num juízo de conveniência e oportunidade, extinguir o contrato
temporário firmado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem decidido que
por tratar-se de relação jurídica de natureza administrativa, mostra-se inaplicável
a Consolidação das Leis do Trabalho e, por consequência, não são devidas as
verbas trabalhistas postuladas: aviso prévio, FGTS e multa do art. 477, § 8º, da
CLT. No entanto, relativamente às verbas rescisórias (férias, terço constitucional e
gratificação natalina), merece parcial acolhimento o pedido.
Palavras-chave: administração pública, análise jurisprudencial, contratação
temporária, professor, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

372
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

REGIME DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA

Para o exercício de função administrativa, bem como possuindo vínculo


com o Estado, tando com a Administração Direta como com a Administração
Indireta (sociedades de economia mista, fundações governamentais, fundações
governamentais, consórcios públicos e autarquias), tem-se os servidores públicos,
estes atuam de forma não eventual, mediante remuneração e o vínculo empregatício
com a Administração Pública é de dependência.3 No sentido amplo, o que se
considera é o regime de emprego (estatutário ou contratual) e o exercício de cargo,
emprego ou função. Ao se analisar sob o prisma do sentindo amplo, pode-se dizer
que são agentes administrativos: os servidores estatutários, os empregados públicos
e os servidores temporários.4
Agora, ao se analisar o servidor estatal sob óptica do sentido restrito, tem-se
que é servidor apenas aquele servidor estatutário com ocupação em cargo público.
Outrossim, somente na União, nos Estados, no Distrito Federal, nos Municípios e
nas autarquias atuam os servidores públicos.5
O Estado auferiu com a Emenda Constitucional nº 19/98 a potestade
de convencionar desprendidamente no que tange ao vínculo com os servidores
públicos, podendo assim gerar tanto empregos públicos como cargos públicos,
com exceção dos membros da Polícia Militar, da Magistratura, do Tribunal de
Contas, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia Pública, pois
de acordo com o texto constitucional são sujeitos a legislação própria.6
Preambularmente se enfatiza que tanto o regime estatuário como o regime
celetista independentemente de possuírem legislações particulares, necessitam os
servidores para a investidura a aprovação prévia em ou em concurso público de
provas ou em concurso público de provas e títulos. Entretanto, encontram-se três
ressalvas no Direito Administrativo no que toca a indispensabilidade de concurso,

3 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 774.
4 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense,
2017, pag. 566.
5 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício. Administração pública e servidores públicos.
1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
6 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 248.

373
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

que são: cargos públicos em comissão, cargos públicos em comissão e contratação


por tempo determinado7.8

REGIME ESTATUTÁRIO

Os servidores estatutários possuem uma relação ininterrupta com o Estado,


de caráter profissional, com período indefinível, para a realização de ofícios
incessantes de relevância para a Administração Pública. O regime é cognominado
estatutário uma vez que a vida funcional do servidor situa-se na lei, a qual denomina-
se estatuto, quer dizer, se associam à Administração Pública sem a confecção de
contrato de emprego – inexistindo um vínculo distinto com o Estado –, e sim com
uma relação resultante rigorosamente da norma jurídica, o que, teoricamente,
proporciona mais prerrogativas aos servidores.9
O estatuto prediz as atribuições, as carreiras, os cargos, os direitos, as
remunerações, bem como as incumbências dos servidores. Este obriga-se a
avassalar-se ao estatuto, em razão de o vínculo jurídico com a Administração
Pública ser pautada exclusivamente por ele. Inexiste para os servidores estatutários
o contrato de trabalho, acordo ou convenção coletiva dos trabalhadores celetistas
da iniciativa privada, consequentemente, tais servidores não podem dispor de seus
salários, direitos e deveres por meio de tais recursos. Outrossim, as modificações do
regime dos servidores imprescindivelmente se realizarão pela mudança do atinente
estatuto.10
Devido a existência de uma lei na regulamentação do vínculo do servidor
com a Administração Pública, será capaz o Estado, com uma medida unilateral,
alterar o catálogo de benefícios e deveres, dada a sua competência para redigir leis,
uma vez que sejam respeitados os direitos adquiridos do servidor, inexistindo a
possibilidade de haver um acordo de vontades sobre a relação de trabalho.11

7 – Art. 37, inc. IX, CF/88 “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;”
8 – GOMES, Fábio Bellote. Elementos de Direito administrativo. Barueri: Manole, 2006, p. 166.
9 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense,
2017, pag. 566.
10 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 786.
11 – MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 275.

374
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

REGIME CELETISTA OU DE EMPREGO PÚBLICO

O vocábulo empregado público é dessa forma disposto para denominar a


pessoa física admitida pela Administração Pública Direta – União, pelos Estados,
pelo Distrito Federal ou pelos Municípios –, tal como pela Administração Pública
Indireta – autarquia, fundação pública, agência estatal ou sociedades de economia
mista –, através de contrato de trabalho. É pertinente salientar que, consoante o 173,
§ 1º, CF/8812, o regime celetista é compulsório para as empresas que desempenham
função econômica.13
Empregado público é o sujeito que exerce o emprego público, possuindo
suas garantias e obrigações orientados, fundamentalmente, por leis trabalhistas.
Logo, a CLT, via de regra, disciplina a ligação contratual entre Administração
Pública Direta e Indireta, na condição de empregador, e a pessoa física admitida,
na condição de empregado, com as singularidades concernentes ao regime jurídico
de Direito Público. No que refere-se aos empregados públicos federais, tem-se que
não serão disciplinados unicamente pela legislação trabalhista, uma vez que na
esfera federal, a normatização dos empregos públicos sucedeu com a edição da
Lei nº 9.962, de 22 de fevereiro de 200014. Entretanto, os empregados públicos
dos Estados, Municípios e Distrito Federal, que preferiram não adotar regime
único estatuário, permanecerão avassalados totalmente à legislação trabalhista, em
virtude de não possuírem a competência para legislar sobre direito do trabalho15.16
De um modo símile a que se verifica com os servidores estatutários,
os servidores celetistas da mesma forma se obtemperam a algumas condições
empregues aos primeiros, a título de exemplo: é vedado aos empregados públicos
acumularem seus empregos com outros cargos ou empregos públicos17; as ações

12 – II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e
obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;
13 – HACK, Érico. Noçoes preliminares de direito administrativo e direito tributário. Curitiba:
InterSaberes, 2013, p. 177.
14 – Disciplina o regime de emprego público do pessoal da Administração federal direta, autárquica e
fundacional, e dá outras providências
15 – Art. 22, CF/88. “Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal,
processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”
16 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense,
2017, pag. 566-567.
17 – Salvo as exceções previstas no art. 37, XVI, VF/88 “a) a de dois cargos de professor; b) a de

375
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

dos empregados públicos, por meio dos remédios constitucionais – habeas corpus;
habeas data; mandado de segurança; mandado de injunção, ação popular e ação
civil pública. –, podem vir a ser alvos de correção e controle judicial; os empregados
públicos, obrigatoriamente, devem-se submeter a concurso público de provas ou de
provas e títulos, de acordo a natureza e a complexidade do emprego18; os salários
dos empregados públicos estão sujeitos à baliza da Lei Maior empregado aos
servidores públicos na generalidade19; subordinando-se ao artigo 48, inciso X da
Carta Magna, o emprego público terá que ser criado por lei.20

REGIME DE CONTRATO POR TEMPO DETERMINADO

Segundo Nedauar, são servidores temporários aqueles instituídos no art. 37,


IX, da Carta Magna21, tais servidores podem, sem a necessidade de um concurso,
ser contratados por tempo determinado, a propósito, o vínculo estabelecido com a
Administração Públicos se configura de forma diversa a da que sucede nos regimes
trabalhistas e estatutários, nestes o período do vínculo de trabalho é indeterminado.

um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de
profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;”
18 – Art. 37, II, CF/88 “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em
concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo
ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em
lei de livre nomeação e exoneração”
19 – Art. 37, II, CF/88 “a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos
públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e
dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos
cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão
exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como
limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal
do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no
âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a
noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros
do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do
Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos”
20 – MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 276.
21 – “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público”

376
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

São contratados para cumprir funções em caráter temporário, por meio regime
jurídico especial a ser estabelecido em lei de cada unidade da federação. No
entanto, se constata que constitui em notória subterfúgio a celebração de contratos
de locação de serviços como expediente para convocar servidores, conquanto,
esteja de acordo com o interesse de empresas públicas e sociedade de economia
mista22.
O citado inciso IX do art. 37 da Lei Básico prescreve a ressalva pela qual
pode transcorrer contratação por prazo determinado, não obstante, para tal, impõe
que se constatem, no caso específico, duas condições: a previsão expressa em lei; e
para satisfazer a necessidade temporária de excepcional interesse público, podendo
ser empreendidas pelos órgãos da Administração direta, pelas autarquias e pelas
fundações públicas. Buscando uma clara leitura da dimensão do instituto jurídico
previsto no mencionado inciso, se faz necessário a análise há que se examinar
minuciosamente de cada uma das duas imposições23.
Somente com uma lei regulamentadora prévia determinado ente da federação
poderá realizar a contratação temporária sem a imprescindibilidade de concurso
público. Em âmbito federal, essa lei já foi editada, Lei nº 8.745, de 9 de dezembro
de 1993, a qual designa os exatos critérios para a consumação de contratação
temporária, impondo, entre outras exigências, áreas pré-definidas, duração
abalizada e indispensabilidade de processo seletivo simplificado24. Posteriormente,
dispomos do requisito da temporariedade da função, uma vez que, tais serviços
devem, imprescindibilidade, serem temporários, pois se a necessidade é contínua,
o Estado deve realiza o recrutamento de servidores por meio de outros regimes.
Consequentemente, fica afastada a admissão de servidores temporários para o
desempenho de funções permanentes, mas se semelhante circunstância suceder,
entender-se-á que houve uma simulação, vindo a admissão ser completamente
inválida25.

22 – MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 276.
23 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 775.Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da
Constituição Federal, e dá outras providências.
24 – GOMES, Fábio Bellote. Elementos de Direito administrativo. Barueri: Manole, 2006, p. 191.
25 – MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 276.

377
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

Os chefes do executivo fazem o uso irregular de servidores públicos, uma


vez que os temporários não obtêm estabilidade, por conseguinte, é mais simples a
sua exoneração; além de ser, visivelmente, descomplicada a contratação, em razão
da Magna Carta não impor concurso para a contratação de tais servidores, sendo
comum, meramente, a efetuação de procedimento simplificado para assegurar a
impessoalidade da seleção dos servidores26.
Contanto que respeitem os mandamentos da Lei Maior da excepcionalidade
e transitoriedade, cada ente federado detém competência para legislar sobre os
cenários e imposições compulsórias à contratação temporária. Em nível federal, a
Lei nº 8.745, de 9.12.199327, delibera sobre a contratação de servidores temporários,
até mesmo precisando, no art. 11, a aplicação de várias regras do Estatuto Federal
aos contratados. A Administração Pública realiza, anteriormente à contratação de
servidores temporários, processos seletivos simplificados, temos, por exemplo, a
mencionada Lei Federal nº 8.745/1993, que, no seu art. 3º, prevê o recrutamento
por meio de processo seletivo simplificado sujeito à ampla divulgação, desobrigado
de processo seletivo a contratação nos casos de calamidade pública, emergência
ambiental e emergências em saúde pública (art. 3º, §1º, da Lei nº 8.745/1993)28.
A apreciação de ações advindas dos servidores temporários, embora sejam
contratados pela Administração Pública, ao invés de serem julgadas pela Justiça
do Trabalho serão pela justiça comum, tanto em âmbito federal como em estadual,
pois este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal. O entendimento de que
a Justiça do Trabalho não detém a competência para apreciar as relações entre
os servidores temporários e os entes públicos fora deflagrado na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3395-6 – Distrito Federal29. Assim sendo, em razão

26 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 775-776.
27 – Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, e dá outras
providências.
28 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 243.
29 – EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho.
Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que
não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência
da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes.
Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da

378
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

da ADIN nº 3395-6/DF, a competência da justiça trabalhista para apreciar as ações


entre o Poder Público e seus servidores fora afastada, na ocasião em que a relação
entre os dois for constituída em um liame exclusivamente jurídico-administrativa. Em
diversos entes administrativos são realizados contratos, por intermédio de concurso
ou seleção pública, que não se emolduram na hipótese do art. 37, IX, nem são regidos
pela Consolidação das Leis do Trabalho, por conseguinte, são regulados os direitos
e deveres desses contratados, usualmente, por regras do estatuto correspondente. Os
servidores temporários contribuem com o regime do Instituto Nacional do Seguro
Social para previdência, destarte, e ao contrário dos servidores estatutários, inexiste
a prerrogativa à aposentadoria e à pensão30.

MODALIDADES DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA

É necessário que a admissão de servidores na carreira pública oriente-


se pelos princípios presentes na Lei Maior que guiam a atividade estatal, e não
deve, em nenhuma hipótese, emanar de predileções de particulares, tencionando
o privilégio de indivíduos específicos, em prejuízo a comunidade em geral. Na
forma da lei, os estrangeiros e os brasileiros têm acesso aos empregos públicos
e aos cargos31, ou seja, se os entes editarem leis discriminando quais os cargos e
empregos os estrangeiros podem assumir, estes torna-se aptos a tais carreiras
públicas, inexistindo tal lei ficam inaptos os estrangeiros32.
No que tange a acessibilidade para os brasileiros natos e naturalizados, a Carta
Cidadã concebe a estes o ingresso aos cargos e empregos públicos, porém devem os
requisitos previstos em lei serem atingidos. De acordo com o art. 12, § 1º, da CF/88,
no que concerne aos portugueses equiparados são reservados todos os direitos
inerentes aos brasileiros, desde que haja reciprocidade em prol de brasileiros33.

República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado
por relação jurídico-estatutária.
30 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 776.
31 – Art. 37, I, CF/88 - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que
preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
32 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 794.
33 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 794.

379
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

Para os concursos públicos, de acordo com o art. 37, III, da CF/88, é


estabelecido no máximo dois anos o prazo de validade, podendo se prorrogado
pelo mesmo ínterim uma única vez, desde que esta prorrogação esteja presente
no instrumento convocatório. Para não haver a decadência do direito à vaga,
deve o candidato aprovado ser nomeado dentro do prazo de validade, porém,
mesmo depois de caducado o prazo de validade, pode a posse e o exercício
ocorrerem34.
Para a Carta Cidadã, em seu artigo 37, inciso II, a imposição elementar
para salvaguarda de impessoalidade, moralidade e isonomia na admissão a cargos
públicos é a prática de promoção do concurso público, de provas ou de provas
e títulos, em virtude de os parâmetros de distinção são objetivos, afastando com
isso apadrinhamento ou preconceito35. Tendo como norte atingir os princípios
constitucionais que tangem a Administração Pública, tem-se que apenas examinará
apenas o mérito da postulante a carreira pública, sendo que a dificuldade do exame
estará sempre de acordo com a carreira pretendida36.
Via de regra, a análise da observância do cumprimento da exigência de
idade, tanto quanto o diploma ou habilitação legal para desempenhar as atividades
na carreira pública deve se dar na ocasião da posse. No que diz respeito ao exame
psicotécnico, a determinação deve estar mencionada em lei e no edital. No que
concerne, os exames físicos, além da previsão em lei e no edital, se faz necessário
um liame entre as atividades do cargo e os exames físicos. A Lei Maior, em seu
artigo 37, inciso VIII, designa que a lei concederá uma porcentagem das carreiras
públicas para os indivíduos portadores de deficiência37.
É inaceitável que um servidor seja investido em cargo dessemelhante ao
qual fora investido mediante concurso. Também é inaceitável que servidores da
ativa possam vir a assumir cargos em nova carreira, oriunda de lei, dessemelhante

34 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 251
35 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 795-796.
36 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 249.
37 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 255.

380
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

com a carreira em que o servidor prestou concurso, ou seja, segundo Carvalho, é


inconcebível um concurso interno38.
Baltar Neto leciona que as funções de confiança, obrigatoriamente, terão de
vir a ser atribuídas aos servidores ocupantes de cargo efetivo, entretanto, para os
cargos em comissão, para as atribuições de direção, chefia e assessoramento, serão
atribuídos aos servidores de carreira nas circunstâncias, requisitos e percentuais
mínimos determinados em lei39.
A obrigatoriedade do concurso públicos inexiste para a contratação de
servidores temporários, sendo uma circunstância atípica, transitória e para prover a
Administração Pública de servidores em uma ocasião de emergência. A lei 11.350/06
em concórdia com a Carta Magna em seu art. 198, § 4º40, estabelece que os agentes
comunitários de saúde e agentes de combate a endemias poderão ser contratados via
processo seletivo público diferenciado, de provas ou de provas e títulos.
Agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias: consoante
previsão no art. 198, §4° da Carta Magna e já analisado em tópico anterior deste capfrulo,
por se tratar de situação excepcional. De fato, a lei 11.350/06 prevê a realização de um
processo seletivo público diferenciado, de provas ou de provas e títulos, em respeito
aos princípios constitucionais. Este processo tem regulamentação específica, devendo
respeitar as atribuições do cargo para definição do nível de exigência, e não se confunde
com o concurso público para provimento de cargos efetivos41.
De acordo com a Lei 12.425/11, poderá haver a contratação de professor
substituto para suprir a falta de professor efetivo em razão de: vacância do cargo;
afastamento ou licença, na forma do regulamento; ou nomeação para ocupar cargo
de direção de reitor, vice reitor, pró-reitor e diretor de campus. O art. 3º da mesma
lei determina que prescinde-se de concurso público para contratação de servidor
temporário, pois é suficiente o processo seletivo simplificado42.

38 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 796-797.
39 – BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de. Direito Administrativo.
Salvador: 2016, 6º ed., p. 250.
40 – Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e
agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e
complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.
41 – CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl. e atual. Salvador:
JusPODIVM, 2017, pag. 797.
42 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense,
2017, pag. 578-579.

381
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

A CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE PROFESSORES: O QUE


PENSA O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Esta análise foi feita no site do TJRS43, levantamento feito no dia 15/07/2018,
realizada na aba “pesquisa de jurisprudência”, na caixa “com qualquer uma das
palavras”, com o termo “contratação temporária de professores”, no período dos
últimos 3 anos, sendo então as decisões julgadas em 15/07/2015 à 15/07/2018 e
publicadas em 17/07/2015 à 17/07/2018, no qual foram encontradas 88 decisões44.
Dentre essas 3 foram excluídas da análise pois não se tratavam de contratação
temporária de professores, restando assim 85 decisões.
Após o levantamento das pode-se constatar que:

43 – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/>. Acesso


em: 15 jul. 2018.
44 – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Jurisprudência. Disponível em: <http://www.tjrs.
jus.br/busca/search?q=contrata%C3%A7%C3%A3o+tempor%C3%A1ria+de+professores&ent
sp=a__politica-site&wc=200&wc_mc=1&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&proxystylesheet=tjrs_
index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&
as_qj=contrata%C3%A7%C3%A3o+tempor%C3%A1ria+de+professores&site=ementario&
as_epq=&as_oq=&as_eq=&requiredfields=ct%3A3&partialfields=%28s%3Acivel%29&as_
q=inmeta%3Adj%3Adaterange%3A2015-07-15..2018-07-15+inmeta%3Adp%3Adaterange%3A2015-
07-17..2018-07-17#main_res_juris>. Acesso em: 15 jul. 2018.

382
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

Ou seja, dessas 85, 60 foram desfavoráveis, 15 foram favoráveis e 10


parcialmente favoráveis, prevalecendo na maioria dos casos o mantimento da
sentença em 1ª instância.
Isso se evidencia, pela falta de provas em provar direito líquido e certo
como também pelo menor amparo de direitos que os professores contratados
temporariamente encontram.
Seguindo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, a Corte tem
mantido o entendimento de que quando a Administração contrata e mantém,
temporariamente, servidores, preterindo aqueles aprovados no concurso público,
dentro do prazo de validade do certame, comprova que há necessidade de
preenchimento da vaga, transformando a mera expectativa de direito em direito
líquido e certo.
Ainda que se leve em consideração o entendimento sufragado pelo STJ
(RMS 31.611/SP; RMS 23.331/RO, RMS 21.323/SP; AgRg no RMS 30.308/
MS; AgRg no REsp 615.459/SC), que passou a ser adotado por este Colegiado
(APC 70034692384 ; APC 70036997989; APC 70036473395) de que deve ser
reconhecido o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado dentro das
vagas disponibilizadas pelo edital do concurso, sendo assim indispensável para
uma decisão favorável, o que na maioria das decisões analisadas não se conseguiu
provar o número de vagas disponibilizadas.
Outro ponto fundamental são as decisões envolvendo verbas trabalhistas e
gratificações extras.
O contrato temporário, sendo ato discricionário da administração pública,
não cria nenhum vínculo entre o contratado e a Administração, a qual pode, a
qualquer momento, num juízo de conveniência e oportunidade, extinguir o
contrato temporário firmado. Assim, não há estabilidade ao cargo titulado, bem
como nos contratos emergenciais não geram direitos senão aqueles expressamente
previstos na legislação de regência.
Tratando-se de relação jurídica de natureza administrativa, mostra-se
inaplicável a Consolidação das Leis do Trabalho e, por consequência, o regime do
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Nesse mesmo sentido encontra-se precedentes na Corte:

383
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO. CONTRATAÇÃO


EMERGENCIAL. AUXILIAR DE SERVIÇOS RURAIS. VÍNCULO
TEMPORÁRIO. VERBAS TRABALHISTAS. Nomeado o servidor para
o exercício de cargo público, com vínculo de natureza administrativa,
descabido o adimplemento de verbas trabalhistas. Jurisprudência do TJ/
RS e deste Órgão fracionário. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº
70048535769, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Eduardo Delgado, Julgado em 14/08/2014)
SERVIDOR PÚBLICO. SECRETARIA DA AGRICULTURA.
AUXILIAR DE SERVIÇOS RURAIS. CONTRATAÇÃO
TEMPORÁRIA. NATUREZA INSTITUCIONAL DO VÍNCULO.
CONTRAPRESTAÇÃO E REGIME DE TRABALHO AQUELES
EXPRESSAMENTE PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO DE
REGÊNCIA, NOS TERMOS DO ART. 37, IX, DA CF-88. 1. A
contratação temporária para atender necessidade excepcional do serviço
público subordina-se à legislação estadual de regência. Princípio da
legalidade considerado. Vínculo de natureza
institucional que decorre diretamente do inciso IX do art. 37 da CF-88.
Verbas rescisórias previstas na CLT indevidas. 2. Pagamento de horas
extras, diferenças vencimentais por exercício de tarefas em desvio de
função e reajustes previstos no art. 13, IV e V, da Lei-RS nº 10.395/95,
indevidos, à luz da contratação temporária e do regime jurídico de
natureza institucional. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº
70038581344, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 24/04/2014)

Dessa forma, conforme o entendimento do TJRS, não são devidas as verbas


trabalhistas postuladas: aviso prévio, FGTS e multa do art. 477, § 8º, da CLT.
Relativamente às verbas rescisórias (férias, terço constitucional e gratificação
natalina), o Tribunal entende que podem ser acolhidas.

384
A contratação temporária de professores e os serviços públicos de educação: o que pensa o Tribunal de Justiça?

Além dos fatos apresentados anteriormente, o elevado número de apelações


cíveis desfavoráveis se deve pelas prorrogações sucessivas mediante autorização
prevista em Leis Estaduais, tais como: nº 10.696/96, 10.924/97, 11.098/98,
11.281/98, 11.339/99, 11.434/00, 11.568/00, 11.714/01, 11.878/02, 12.043/03,
12.193/04, 12.417/05 e 12.684/06, o que acaba criando situações em que um
professor, que laborou na condição de contratado temporário de 1998 a 2007.
Desse modo, muitos professores contratados de forma temporária acabam
atuando por tempo indeterminado e desamparado dos direitos e garantias.

REFERÊNCIAS

BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de.


Direito Administrativo. Salvador: 2016, 6º ed.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro
de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicaocompilado.htm>.

385
Adriano Gonçalves Paulo e Arthur Feltrin Milami

CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 4 ed. Rev. Ampl.


e atual. Salvador: JusPODIVM, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30 ed. Rev. Rio
de Janeiro: Forense, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício. Administração
pública e servidores públicos. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
GOMES, Fábio Bellote. Elementos de Direito administrativo. Barueri:
Manole, 2006.
HACK, Érico. Noçoes preliminares de direito administrativo e direito
tributário. Curitiba: InterSaberes, 2013.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21 ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2018.

386
AÇÕES COLETIVAS PARA O
ENFRENTAMENTO DOS PROBLEMAS
DE FALTA DE VAGAS NO SERVIÇO
PÚBLICO DE EDUCAÇÃO INFANTIL:
EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO VIÁVEL

Julia Rohers Rauber1


Nathan Ritzel dos Santos2

INTRODUÇÃO

“A auxiliar de serviços gerais Bruna [...] está a procura de uma vaga para o
filho Pedro há quase dois anos, mas sem sucesso. Ela começou a busca pela vaga
quando ainda estava grávida”3. O caso é sintomático e mais presente na vida dos
brasileiros do que se possa, prima facie, perceber.
Nos últimos anos, o número de demandas judiciais postulando o fornecimento
de vaga em creche tem crescido exponencialmente no Estado do Grande do Sul,

1 – Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.


2 – Especialista em Direito Tributário pelo Centro Univesitário Leonardo da Vinci e graduado em
Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogado.
3 – PERACHI, 2017.
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

sendo uma das ações com maior índice de ajuizamento na Defensoria Pública e no
Ministério Público em matéria de Direito da Criança e do Adolescente.
As razões são razoavelmente simples, entre elas podendo-se mencionar
o crescimento do número de mulheres dedicando-se a atividades laborativas e
conquistando seus próprios espaços, fugindo à figura da “mãe” o cuidado exclusivo
dos filhos (como era costumeiro há alguns anos).
Todavia, isso traz alguns problemas, mais facilmente verificável nas camadas
menos favorecidas da sociedade, posto que as mulheres mais pobres necessitam
voltar às suas ocupações habituais para conseguir sustentar a prole (o que se dá de
maneira solitária em diversos núcleos familiares, isto devido ao grande número de
abandonos pelos pais), sob pena de dificuldades financeiras, fome, problemas de
saúde e marginalização. Porém, não se pode trabalhar normalmente sem que se
tenha o auxílio de terceiros com relação aos filhos, “o que leva ao desemprego uma
importante parcela da força de trabalho feminina”4.
Segundo um estudo recente do Internacional Finance Corporation (IFC),
uma ramificação do Banco Mundial para o desenvolvimento do setor privado, sem
um estabelecimento adequado de ensino, “essas crianças podem ficar presas em um
ciclo intergeracional de pobreza, do qual é praticamente impossível se libertar”5.
Muitas são as explicações dadas pelos administradores para a oferta de
poucas vagas em estabelecimentos de educação infantil, desde problemas com
processos licitatórios até falta de verba pública para investir neste setor, havendo
questões regionais e de infraestrutura usadas para justificar a questão – existindo,
por outro lado, um número inversamente proporcional de projetos efetivos para a
solução da problemática.
Em outubro de 2016, somente no Município de Porto Alegre – RS
havia um déficit de 19.307 vagas para crianças na faixa etária de 0 a 3 anos em
estabelecimentos públicos de educação, havendo casos em que a espera chegou à
casa dos 2 anos desde a solicitação ao poder público municipal.
Segundo os dados do relatório Educationat a Glance, elaborado pela
Organisation for EconomicCo-operationandDevelopment(OECD), no Brasil, só 37% das
crianças de 2 anos de idade e 60% das de 3 anos estão matriculadas em creches,
percentual abaixo das médias de 39% e 78% de países da organização. Destas, 36%

4 – MACHADO, NETO, 2017, tradução nossa.


5 – INTERNATIONAL FINANCE CORPORATION, 2017, p. 82, tradução nossa.

388
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

estão matriculadas em creches privadas, quantidade também abaixo da média de


55% dos países da OECD.
O relatório também indica que o Brasil, em comparação com a média
mundial, investe menos em creches e educação infantil, destinando somente
0,6% de seu produto interno bruto nesta esfera, ao passo que a média é de 0,8%.
Em dados mais palpáveis, enquanto o custo por aluno nas instituições públicas
brasileiras é de U$ 3,8 mil por ano, a média mundial é de U$ 8,9 mil – muito desta
diferença relacionando-se com os baixos vencimentos de professores no Brasil em
comparação com a remuneração de professores no exterior. A OECD ressalva,
porém, que sua categoria “privado” abrange tanto os estabelecimentos privados
propriamente ditos quanto os privados que recebem metade ou mais de sua receita
diretamente do Poder Público.
A partir disto, identificou-se a necessidade de se compreender qual é o
entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul
no julgamento de ações coletivas para o enfrentamento desta problemática, de
modo a evidenciar como tem decidido o Tribunal de Justiça e quais são as medidas
efetivamente adotadas para sanar o déficit de vagas.
Assim, preferiu-se estruturar a pesquisa em etapas distintas, sendo elas:
busca por uma decisão ideal, segundo critérios de busca pré-estabelecidos; leitura
e síntese do conteúdo decisório, anotando-se as determinações judiciais impostas
à parte sucumbente; análise dos argumentos para o julgamento da demanda e seus
fundamentos de direito; estudo dos institutos e normas pertinentes à matéria.
Para tanto, a pesquisa assume cunho qualitativo, adentrando na qualidade
dos argumentos da decisão estudada, partindo-se do caso concreto para o estudo
teórico dos temas invocados na decisão (abordagem indutiva). Além disso, o
estudo, em termos de construção, baseia-se em procedimento de estudo de caso,
valendo-se de técnica de pesquisa documental e bibliográfica.
Optou-se por trabalhar com um julgado bastante recente em ação civil
pública encontrado em pesquisas junto ao sítio virtual do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul, isto com vias a analisar decisão ainda atual e
compreender as nuances da problemática verificada.
A fim de possibilitar a localização da decisão-alvo ideal, foram estabelecidos
os seguintes critérios: o julgado deveria ter sido proferido pelo colegiado, em
Câmara especializada; a decisão deveria ter no máximo cinco anos de existência,
a fim de se preservar sua atualidade; a ação em que foi prolatado o decisum deveria
versar sobre tutela coletiva de direitos, excluindo-se ações que tratassem de direitos

389
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

individuais puros (e também aquelas em que o Ministério Público ou a Defensoria


Pública atuaram como substitutos processuais, por não buscarem a tutela coletiva
dos direitos invocados); a causa de pedir deveria calcar-se, ao menos na parte
principal, na negativa de fornecimento de vagas em estabelecimentos públicos de
ensino.
Para tanto, foi visitado o endereço eletrônico www.tjrs.jus.br/site e acessada,
no menu lateral esquerdo, a opção “Jurisprudência” e, nela, o item “Pesquisa de
Jurisprudência”. Nenhuma opção padrão do mecanismo de busca foi alterada,
sendo somente digitados, na barra de busca, os termos “ação civil pública”, “ACP”,
“vaga em creche”, “vaga”, “educação”, “fornecimento”, “estabelecimento de
ensino”, “ensino” em diversas ordens e em diferentes combinações distintas.
Foi encontrado, contudo, um grande número de ações judiciais promovidas
por crianças, representadas por seus genitores, requerendo habilitação em/ou
pedidos de cumprimento de sentenças proferidas em ações coletivas ajuizadas pelo
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul em diferentes municípios.
Acessando os julgados mais recentes mencionados nestas ações, percebeu-se
a existência, nos últimos cinco anos, de decisões em ações coletivas ajuizadas nas
comarcas de Osório, São Leopoldo e Sapucaia do Sul (nesta última não se obtendo
sucesso em localizar o acórdão, posto que remete a julgado de outra ação em que
o Ministério Público atuou como substituto processual), julgadas procedentes em
primeiro grau e com sentenças confirmadas em segundo grau.
Dos julgados nas ações mencionadas, o que atende a todos os critérios
propostos, servindo ao propósito a que se destina esta pesquisa, é o da ação civil
pública n.º 059/5.13.0000080-3, que tramitou junto à Comarca de Osório e,
com apresentação de recurso de apelação e remessa ao Tribunal de Justiça para
seu julgamento, e também de reexame necessário (ainda na égide do Código de
Processo Civil de 1973), recebeu o número 70062170121.
Neste panorama, passa-se à síntese da ação em tela.

1. BREVE APORTE DO CASE

O Ministério Público intentou ação civil pública contra o Município de


Osório, argumentando sobre a falta de oferta de vaga em estabelecimentos públicos
de educação infantil naquele município, pedindo a tutela jurisdicional no sentido
de determinar-se a ampliação do número de vagas nas escolas de educação infantil,

390
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

de forma a tender todos os infantes relacionados em listagem de espera e as demais


que vierem a inscreverem-se, sob pena de multa diária por descumprimento.
Deferindo a medida antecipatória, o juízo determinou ao Município de
Osório que ampliasse o número de vagas, devendo providenciar, inicialmente, 200
novas vagas até o final do primeiro semestre de 2013 e as demais até o final daquele
ano, alertando para a realização de medida de bloqueio de valores nas contas
mantidas pelo ente público no caso de descumprimento, a fim de efetivar a medida.
Interposto agravo de instrumento da decisão, esta restou mantida.
Em sentença, o juízo julgou procedente a ação, confirmando a medida
antecipatória e determinando a realização das medidas necessárias para ampliação
do número de vagas ofertadas nas Escolas Municipais de Educação Infantil, de
modo a contemplar todas as crianças ainda em lista de espera, bem como as que,
posteriormente, solicitassem inscrição, mantendo-se as penalidades para o caso
de descumprimento, tal como sequestro de valores para manutenção dos infantes
em estabelecimento particular e a realocação nas instituições públicas em local
próximo à sua residência. Por fim, foi concedido prazo de 30 dias para concessão
de vagas para todas as crianças inscritas na central de inscrições.
Sujeita ao reexame necessário, e diante de interposição de recurso de
apelação, a sentença foi reapreciada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, através de sua Oitava Câmara Cível.
O recurso foi apresentado pelo Município de Osório, que argumentou ter
empreendido esforços para atender a demanda existente, bem como que estaria
cumprindo as metas e estratégias do Plano Nacional de Educação, havendo
tendência de aumento nas vagas nos próximos anos. Além disso, sustentou
que a central de vagas do município teria otimizado as listagens de todas as
escolas, o que teria diminuído a lista de espera, bem assim que, apesar das
ações adotadas, não teria condições de atender a todos os pedidos de vagas
por não deter capacidade física ou estrutural para tanto. Por fim, alegou que a
decisão afrontava a previsão orçamentária municipal e o princípio da separação
dos poderes, pedindo a reforma da decisão ou, em caso de procedência, que
a condenação fosse restrita ao cumprimento das metas estipuladas pelo Plano
Nacional de Educação.
No julgamento, foi feita uma construção a respeito do direito à educação
infantil como direito fundamental social, através do manejo do art. 208, IV
da CF e do que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente. Foi suscitada
a autoaplicabilidade do art. 208, IV da CF e a competência comum dos entes

391
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

federativos em proporcionar acesso à tal direito, assinalando seus aspectos gratuitos


e obrigatórios.
Elaborou considerações a respeito da educação básica e o que se tem
estabelecido em lei. Levantou o disposto no art. 4º, IV, da Lei de Diretrizes Básicas
da Educação Nacional, no tocante ao dever do Estado de proporcionar acesso ao
ensino público fundamental e o que dispõe na Emenda Constitucional 53/2006,
em relação a adequação do texto constitucional à referida lei. Retomando aspectos
da LDB, o julgado considerou as finalidades da educação, quais sejam, desenvolver
estudante como forma de fornecer os meios para progressão do trabalho e em
estudos posteriores. Além disso, apontou patamares estabelecidos na lei no tocante
aos estabelecimentos, e idade das crianças a serem atendidas.
Com tais considerações, o julgado foi conduzido à conclusão de o
ordenamento pátrio garante às crianças, o acesso à creches e pré-escolas de maneira
indistinta e absoluta, até os cinco anos de idade, e que o Município de Osório teria
de providenciar medidas, imediatamente para garantir a efetividade do referido
acesso.
Na sequência, o julgado afastou as alegações no tocante ao desrespeito da
autonomia do poder executivo pela via judiciária e a falta de previsão orçamentária.
Considerou a existência de uma função estatal em face da outra, sobretudo no
que toca a função jurisdicional em relação à função executiva mal exercida ou
não exercida. Ponderou ainda que as normas protetivas à Fazenda Pública não
podem ser sobrepostas às garantias fundamentais previstas na Constituição e que
a limitação orçamentária não tem condão de afastar a obrigação do Município.
Em fechamento de tais considerações, o julgado aparta a inexistência de direito
subjetivo à educação com amparo na própria Constituição e no ECA.
Antes do dispositivo de desprovimento do recurso, o acórdão se reporta à
Sentença, transcrevendo sua fundamentação.

2. O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO NO


ORDENAMENTO JURÍDICO

A Constituição Federal de 1988 reconheceu expressamente o direito à


educação no seio do artigo 6º, integrando-o ao rol de direitos fundamentais e
colocando-lhe sob a égide de um regime jurídico reforçado, eis que a ele foi dado
aplicação imediata (de acordo com o artigo 5º, §1º, do diploma constitucional),

392
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

sendo também vedadas propostas de emenda constitucional tendente a aboli-lo


(vide o artigo 60, §4º, inciso IV, da Constituição Federal).
É digno de nota que a educação foi parte do texto da Carta Imperial de 1824,
em seu artigo 179, inciso XXXII, que garantia “a Instrucção primaria, e gratuita a
todos os Cidadãos”. E inobstante a posterior supressão do direito fundamental em
tela no texto constitucional em 1891, a educação passou novamente a ter destaque,
de forma contínua e progressiva, a partir de 1934.
Internacionalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
previu em seu artigo 26 o direito à educação, considera os direitos humanos em
sua unidade, posto que os direitos sociais, e também os econômicos e culturais,
não seriam direitos de segunda classe, mas “mais do que isso, o direito à educação
ou à alimentação é considerado um pré-requisito para a percepção dos direitos
políticos”6, não se podendo separa-los dos direitos humanos.
Inclusive, a Emenda Constitucional n.º 53 de 2006 alterou o artigo 7º
da Constituição Federal, nele incluindo a vaga em creche como direito dos
trabalhadores urbanos e rurais, acrescentando também o inciso IV ao artigo 208,
garantindo educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos
de idade.
No ponto, a cogência deste inciso já foi reconhecida em julgados do
Supremo Tribunal Federal, em especial nos recursos extraordinários n.º 956475-
RJ e 384201-SP, nos quais a corte constitucional afirmou que “cumpre ao Estado
[...] proporcionar a creche e a pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade,
observando a norma cogente do artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal”7.
E segue dizendo que a educação infantil é prerrogativa constitucional deferida
às crianças, assegurando a elas, “para efeito de seu desenvolvimento integral, e
como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e,
também, o acesso à pré-escola”8.
Ademais, o artigo 227 da Constituição Federal impõe o dever fundamental
de a família, a sociedade e o Estado assegurar à criança e ao adolescente a
observância de seus direitos fundamentais, sendo esta norma reproduzida no artigo
4º do Estatuto da Criança e do Adolescente com texto semelhante.
Peces-Barba traz os deveres fundamentais como sendo

6 – BRASIL, 2009, p. 28.


7 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006.
8 – Idem, 2016.

393
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

aquellosdeberes jurídicos que se refieren a dimensiones básicas de la vida


delhombreensociedad, a bienes de primordial importancia, a lasatisfacción
de necesidades básicas o que afectan a sectores especialmente importantes
para laorganización y elfuncionamiento de lasInstituciones públicas,
o al ejercicio de derechosfundamentales, generalmenteenelámbito
constitucional9.

O doutrinador espanhol defende que o exercício de um dever fundamental


não traz benefícios tão somente ao seu titular (quando há um), mas a toda uma
dimensão de utilidade geral, colocando sob seu pálio todo um conjunto de titulares.
Diferenciam-se, assim, dos direitos fundamentais na medida em que os últimos
tem uma “raiz ética previa (la moralidade de losderechosfundamentales)”10 evidente,
enquanto os primeiros são fruto da convenção e exercício do poder soberano
(titular da produção normativa).
Ademais, para José Afonso da Silva a inserção destes deveres fundamentais
no texto constitucional seria fruto da reclamação de “constituintes conservadores”
e algo despiciendo, não havendo razões lógicas para prever expressamente uma
declaração de deveres fundamentais, pois estes decorrem dos direitos fundamentais
“na medida em que em que cada titular de direitos individuais tem o dever de
reconhecer e respeitar o direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas
relações inter-humanas, com postura democrática”11, entendendo que a dignidade
do próximo deve ser exaltada e homenageada como a sua própria.
Entretanto, esta posição não é majoritária na doutrina. Canotilho, por
exemplo, refuta a existência desta correlação, colocando os deveres fundamentais
em local próprio, “como uma categoria autónoma”12.
Em uníssono, Jorge Miranda traz os deveres fundamentais como “situações
jurídicas de necessidade ou de adstrição constitucionalmente estabelecidas, impostas
às pessoas frente ao poder político ou [...] a certas pessoas perante outras”13, sendo
inadequado afirmar que estas normas prescritivas de deveres são simétricas a
normas permissivas de intervenção do Estado, mesmo que acarretem, de forma

9 – MARTINEZ, 1987, p. 9.
10 – Ibidem, p. 9.
11 – SILVA, 2006, p. 196.
12 – CANOTILHO, 2003, p. 532-533.
13 – MIRANDA, [entre 2009 e 2018], p. 14.

394
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

ou outra, limites e restrições de direitos, portanto não podendo a sua interpretação


e aplicação “fazer-se em termos idênticos aos da interpretação e da aplicação das
normas de direitos fundamentais”14, reclamando cuidados particulares.
E, de fato, respeitados os posicionamentos divergentes, não se vislumbra
motivos para não se inserir os deveres fundamentais em categoria própria, afinal,
deles nem sempre decorrem direitos fundamentais. Um exemplo claro seria o caso
do dever da sociedade de pôr a salvo as crianças e os adolescentes de qualquer
forma de negligência, em que não se percebe nenhum direito atribuído à sociedade,
mas tão somente o dever fundamental – aqui a dimensão dos deveres transborda o
“círculo de direitos”.
O que é pacífico, contudo, é que os deveres fundamentais possuem natureza
política ou homóloga de direitos políticos e são, por vezes, imposições ligadas à
vida econômica, cultural e social, assumindo especial relevância constitucional
“por, sem o seu cumprimento, se frustrarem a efectivação de direitos fundamentais
ou de interesses difusos e as correspondentes incumbências do Estado”15, que deve
atuar de modo a preservar os direitos subjetivos dos indivíduos ou de outros grupos
que estes integrem.
Pode-se sinalar, dentre os deveres fundamentais do Estado, os de natureza
positiva, que supõem o “cumprimento de prestações exigíveis pelos titulares
de direitos [...] frente a estes poderes públicos (direito à sanidade, à seguridade
social, à educação, etc)”16. Daí exsurge o dever fundamental do Estado de, com
competências bem distribuídas na esfera constitucional e por meio de normas
infraconstitucionais, implementar políticas públicas voltadas diretamente à criança
e ao adolescente, entre elas as relacionadas com o direito fundamental à educação,
mormente franqueando o acesso à educação em todos os níveis.

3. POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À EDUCAÇÃO E O


CONTROLE PELOS ÓRGÃOS JURISDICIONAIS

A fim de viabilizar o cumprimento, pelo Estado, de seus deveres


fundamentais, a Constituição Federal estabelece, entre outros dispositivos, em seu
artigo 23, as chamadas “competências comuns” dos entes federados, sendo aquelas

14 – Ibidem, p. 14.
15 – Ibidem, p. 14.
16 – MARTINEZ, op. cit., p. 14.

395
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

que podem/devem “ser exercidas concomitantemente pela União, pelos Estados,


pelo Distrito Federal e pelos Municípios, [...] objetivando a cooperação e sinergia
entre os entes federativos”17.
O exercício destas competências administrativas foi assim previsto para
garantir abrangente e certeira cobertura pelo Estado, sem brechas, mediante
políticas públicas e ações em determinadas e diversas áreas.
Entre elas está a do inciso V, que estabelece a competência (e, assim, prestigia
dever fundamental) dos entes federados proporcionarem “os meios de acesso [...]
à educação”18. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o Estado
possui obrigação constitucional de

criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor


das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF 208 IV), o efetivo acesso e
atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-
se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por
inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal
que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.19

O exercício destas competências administrativas foi assim previsto para


garantir abrangente e certeira cobertura pelo Estado, sem brechas, mediante
políticas públicas e ações em determinadas e diversas áreas.
Todavia, há muitas problemáticas envolvidas na temática da implementação
e controle das políticas públicas, mormente o argumento da chamada “cláusula da
reserva do possível”, que vem com dupla face: de limitadora dos cofres estatais, a
fim de evitar seu falecimento; e de artifício imoral utilizado para o pouco caso dos
administradores.
No Brasil, esta teoria possui característica limitadora das normas
constitucionais, principalmente as normas chamadas de “programáticas”, que
“veiculam programas a serem implementados pelo Estado, visando à realização de
fins sociais”, isto é, normas imbuídas do interesse constitucional de desenvolvimento
de políticas públicas assecuratórias de direitos fundamentais. É o caso do direito
à educação, e posto que inexiste uma implementação obrigatória ou imediata das

17 – SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p. 1005.


18 – BRASIL, 1988.
19 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2016.

396
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

finalidades concretas e abstratas destas normas no mundo dos fatos (o que acaba
gerando expectativas de direitos), sua realização fica atrelada a uma série de fatores
que não podem sofrer controle somente partindo-se do texto normativo – exigindo,
como já dito, políticas públicas para tanto.
Alguns doutrinadores defendem, inclusive, que a aplicação da reserva
do possível esvaziaria o conteúdo da norma constitucional ao afirmar que seu
descumprimento deve se dar caso o Poder Público não reúna aparentes condições
financeiras para tanto, contradizendo a própria finalidade dos direitos e deveres ali
estabelecidos, como se percebe do ensinamento de Anderson Costa Vaz:

Ademais, é preciso entender que o Estado de Direito possui como


pressuposto essencial à realização de um Estado Orçamentário. Significa
que o equilíbrio entre receitas e despesas são normatizados pela própria
Constituição, sendo o orçamento o instrumento de concretização desse
balanço. Se o Estado alega falta de recursos para a efetivação dos direitos
econômicos, sociais e culturais o erro é duplo: desrespeito aos direitos
humanos e desrespeitos às normas constitucionais de planejamento
orçamentários20.

Neste sentido, “a reserva do possível funcionou muitas vezes como um


mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço
na sindicabilidade dos direitos sociais”21, hoje sendo encarada com maus olhos e
afastada em ações judiciais quando em detrimento de direitos fundamentais.
A importância do direito à educação, atribuída pelo constituinte e pelo
legislador derivado, se dá de forma tal que consegue mitigar a aplicação da cláusula
da reserva do possível, ensinando Canotilho que compete ao legislador, dentro das
reservas orçamentárias do Poder Público, “dos planos económicos e financeiros,
das condições sociais e económicas do país, garantir as prestações integradoras dos
direitos sociais, económicos e culturais”22, de modo que figura como inconcebível
tal mitigação de forma antagônica.
É cristalino que a ação estatal demanda (e depende) do orçamento disponível:

20 – VAZ, 2009, p. 27.


21 – BARCELLOS, 2008, p. 237.
22 – CANOTILHO, 1982, p. 369

397
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

No Estado Social e Democrático de Direito, o orçamento instrumentaliza


as políticas públicas e define o grau de concretização dos valores
fundamentais constantes do texto constitucional. Dele depende a
concretização dos direitos fundamentais. Neste cenário, a Constituição
de 1988 alçou o orçamento público a importante instrumento de governo
tanto para o desenvolvimento econômico quanto para o desenvolvimento
social e político. Para tanto, estabeleceu um encadeamento de três leis que
se sucedem e se complementam: a Lei do Plano Plurianual (PPA), a Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).
Nesse sistema, todos os planos e programas governamentais devem estar
em harmonia com o plano plurianual, nos termos do art. 165, § 4º da
Constituição Federal, e a LDO deverá estar em harmonia com o PPA,
nos termos do art. 166, § 4º da Constituição.23

Porém, o texto constitucional traz a legalidade como princípio norteador


do orçamento, implicando em verdadeira vinculação dos atos do administrador ao
orçamento base, cominando a lei inclusive sanções para o desrespeito à limitação
legal orçamentária.
E é justamente nessa limitação que o Poder Público se utiliza da reserva
do possível como carta branca para definir o que é “financeiramente possível”, de
acordo com o que a própria legislação orçamentária já definiu, existindo também
argumentos no sentido de que estas decisões estariam abrigadas de reparos por
conta da separação de poderes adotada pelo Estado Democrático de Direito – o
que não é correto, haja vista que ao Poder Judiciário incumbe controlar o respeito
às leis e a adoção de medidas imprescindíveis à concretização de políticas públicas.
Ao contrário do defendido pela Fazenda Pública quando em juízo, esta
atuação do Poder Judiciário não invade a competência do Poder Executivo nem
transborda sua própria, na medida em que vem para eliminar discrepâncias que
comprometam os interesses dos jurisdicionados enquanto sujeitos de direitos,
atacando as decisões administrativas que “criar obstáculo artificial que revele o
ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar
o estabelecimento e a preservação [...] de condições materiais mínimas de
existência”24.

23 – MÂNICA, 2007, p. 03.


24 – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004.

398
Ações coletivas para o enfrentamento dos problemas de falta de vagas no serviço público de educação infantil:
em busca de uma solução viável

CONCLUSÃO

Do exposto, é possível concluir que a norma constitucional e a legislação


que a regulamentou atribuiu ao direito à educação o devido status de direito
fundamental, preocupando-se em preocupou-se em abranger todas as dimensões
de sua importância e estruturando sua base considerando seus papeis sociais
mediato e imediato. O direito à educação encontra-se com status basilar a ponto
de transcender os empecilhos impostos pelo Estado, seja na forma burocrática, seja
na falta de recursos.
Assim, a decisão em apreço encontra-se em consonância com o conjunto
normativo e jurisprudencial no tocante ao direito à educação, mesmo que de forma
tácita, valendo lembrar, ainda, que o artigo 227 da Constituição Federal determina
que o dever fundamental do Estado de assegurar o direito à educação a crianças e
adolescentes deve ser realizado com “absoluta prioridade”, entendendo-se, na bela
lição de Wilson Liberati, que

na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos


de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas
moradias e trabalho, não se deveriam asfaltar ruas, construir praças,
sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar,
a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto
que ficam para demonstrar o poder do governante25.

Todavia, não basta que se positive o direito fundamental à educação e a ele dê


aplicação imediata, sendo necessário também armá-lo com meios capazes de dar-
lhe efetividade no ordenamento jurídico, evitando as constantes e desavergonhadas
violações praticadas pelas mais diversas autoridades públicas.
Neste diapasão, Norberto Bobbio ensina que os direitos fundamentais tem
estrada desconhecida e, “[...] além do mais, numa estrada pela qual trafegam, na
maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza mas
têm os pés presos, e os que poderiam ter os pés livres mas têm os olhos vendados”26,
levando à conclusão da imprescindibilidade destes direitos não ficarem ao alvedrio
dos administradores públicos.

25 – LIBERATI, 2008, p. 14.


26 – BOBBIO, 1992, p. 37.

399
Julia Rohers Rauber e Nathan Ritzel dos Santos

A pena para isto é clara: o direito à educação não irá alcançar sua finalidade
precípua se não agraciado com mecanismos capazes de combater a inação estatal.
Não é por outro motivo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao
dispor sobre os direitos da criança e do adolescente, traz o Ministério Público como
fiscalizador e verdadeiro mecanismo de exigibilidade, tendo atribuição para, entre
outras medidas, promover ações judiciais visando compelir o Poder Público ao
cumprimento de seu dever fundamental.
Assim, o Poder Judiciário, provocado, vem como verdadeiro auxiliar na
concretização do direito fundamental à educação, mas mesmo assim a prática
dos entes públicos desborda dos comandos sentenciais – por eles praticamente
ignorados –, pois não raro os municípios condenados em ações civis públicas
ao fornecimento de vagas em estabelecimentos públicos de ensino preferem,
por motivos variados e particulares a cada ente, ver acumulada multa diária por
descumprimento do que efetivamente ampliar a estrutura de creches e escolas e
melhorar sua infraestrutura, tudo a permitir que a educação deixe de ser texto de
norma, mas realidade social.

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403
A NECESSIDADE DO DOLO ESPECÍFICO
E DO PREJUÍZO AO ERÁRIO PARA A
CARACTERIZAÇÃO DO CRIME
DO ART. 89 DA LEI DE LICITAÇÕES

Carolina da Silva Ruppenthal Weyh1

RESUMO

Pretende-se, com este artigo analisar o dolo específico e a tipificação


penal especial, considerando-se a configuração do crime previsto no artigo 89
da Lei nº 8.666/1993. Referido dispositivo é objeto de divergências doutrinária e
jurisprudencial acerca da necessidade da comprovação do dolo específico do agente
em causar prejuízo ao erário, como elemento subjetivo especial do tipo, e da efetiva
necessidade desse dano para a configuração do tipo penal. Assim, será realizada
a análise acerca das características da conduta do art. 89 da Lei de Licitações.
Para então, se observar os elementos subjetivos do tipo penal, o dolo específico

1 – Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado


da Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada; Pós-graduada em Direito Previdenciário, pela
Universidade Anhanguera; Graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul; Integrante do grupo
de estudos Estado, Administração Pública e Sociedade. Endereço eletrônico: carol.rupp@hotmail.com
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

do agente e o prejuízo ao erário na configuração do tipo penal especial. E ainda,


verificar quais os posicionamentos que tem sido adotado nos acórdãos do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, será utilizado o método
dedutivo. Apresentado a presente pesquisa uma observação acerca dos conceitos
e abordagens acerca do assunto. Será adotado ainda, a pesquisa bibliográfica em
livros e artigos científicos pertinentes ao tema.
Palavras chave: Tipo penal. Dolo. Licitações. Agente Público. Prejuízo

ABSTRAT

The purpose of this article is to analyze the specific malice and the special
penal classification, considering the configuration of the crime provided for in
article 89 of Law 8.666/1993. This device is object of doctrinal and jurisprudential
divergences about the necessity of proving the specific intent of the agent to cause
damage to the treasury, as a special subjective element of the type, and of the
effective necessity of this damage for the configuration of the criminal type. Thus,
the analysis about the characteristics of the conduct of art. 89 of the Law of
Tenders. For that, if we observe the subjective elements of the criminal type, the
specific fraud of the agent and the damage to the treasury in the configuration of the
special criminal type. Also, check what position has been adopted in the judgments
of the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul. For that, the deductive
method will be used. Presented this research an observation about the concepts and
approaches about the subject. It will also be adopted, the bibliographical research
in books and scientific articles pertinent to the theme.
Keywords: Criminal type. Dolo. Tenders. Public Agent. Loss

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a necessidade do dolo específico


e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime previsto no artigo 89 da Lei
de Licitações. Lei esta que inovou ao prever os crimes contra a Administração
Pública, os quais reprovam as condutas de agentes públicos e particulares quando
da elaboração do processo licitatório e nos casos de sua dispensa/inexigibilidade,
sendo considerados como uma inovação para o Direito Penal especial e puníveis
com sanções consideravelmente elevadas.

406
A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime do art. 89 da Lei de
Licitações

Contudo, o artigo 89 de referida lei é tema de divergências doutrinária e


jurisprudencial acerca da necessidade do dolo específico do agente em causar
prejuízo ao erário, como elemento subjetivo do tipo, e da efetiva comprovação
deste para a configuração do tipo penal em discussão.
Apresentando-se de suma importância analisar se a necessidade da
comprovação do dolo específico e o efetivo prejuízo ao erário, considerando-se a
configuração do crime previsto no artigo 89 da Lei de Licitações. A partir de uma
análise dos entendimentos doutrinários e jurisprudencial do Tribunal do Estado do
Rio Grande do Sul.
O método de abordagem empregado foi o dedutivo e o método de
procedimento utilizado foi o monográfico. A temática foi desenvolvida por
meio da técnica de documentação indireta, abrangendo a pesquisa bibliográfica,
documental e jurisprudencial. Trabalhou-se com o elemento subjetivo especial
do tipo penal. Igualmente foram utilizados seus conhecimentos no que toca à
tipificação penal especial, vislumbrando-se a conduta descrita no art. 89 da Lei de
Licitações enquanto pertencente à legislação penal especial.

1. AS CARACTERÍSTICAS DA CONDUTA DO ARTIGO 89 DA LEI


DE LICITAÇÕES

Primeiramente, importante analisar a forma como a Constituição Federal


de 1988 (CF) se refere a questão da contratação de obras, serviços, compras e
alienações pela Administração Pública, tendo em vista o processo de licitação
pública enquanto obrigatoriedade, e as suas exceções, descritas em lei, nos casos
em que se poderá dispensar ou inexigida a licitação (BRASIL, 1988; DELMANTO
et al., 2010).
O procedimento licitatório, visa a garantir a igualdade de condições a
todos os concorrentes, possibilitando a contratação da proposta mais vantajosa,
ao respeitar os princípios que regem a Administração Pública, quais sejam da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, dentre outros.
Nesse contexto, a Lei n. 8.666/1993 estabelece normas gerais sobre licitações
e contratos administrativos no que refere a obras, serviços, compras, alienações e
locações com a Administração Pública, no âmbito dos Poderes da União, Estados
e Distrito Federal e Municípios. Estabelecendo o artigo 2º da Lei de Licitações
(BRASIL, 1993), a obrigatoriedade da licitação para a Administração Pública.

407
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

Ademais, no artigo 3º, da mesma lei, se pode observar o propósito do


legislador em garantir igualdade de oportunidades entre os possíveis interessados
em celebrar um contrato com a Administração Pública e, ao mesmo tempo,
permitir que esta realize uma escolha objetiva da proposta mais vantajosa e que
atenda às necessidades do Poder Público.
Seguindo na análise da lei 8.666/1993, em sua seção que trata dos crimes e
das penas imputadas aos agentes infratores, se inicia no artigo 89, o qual criminaliza
a dispensa / inexigibilidade de licitação por parte de agente público, nos casos não
previstos em lei para a não realização do certame, ou por deixar de observar as
formalidades para não licitar.
Assim, o artigo 89 de referida lei, é o ponto principal de análise deste artigo,
o qual trata, especificamente da configuração do tipo penal cometido pelo agente
público ao dispensar ou inexigir a licitação e pelo tipo penal cometido por aquele
que concorreu para a celebração do contrato com a Administração Pública.
Com o intuito de regulamentar o artigo 37, inciso XXI, da CF, foi criada
a Lei nº 8.666/1993, que tratou de regular a questão envolvendo as licitações e
contratos públicos, inclusive introduziu responsabilidade no âmbito do Direito
Penal (BRASIL, 1993). Mas uma das mais destacadas inovações da Lei nº
8.666/1993 foi a consagração de uma tutela penal específica e ampla para licitação
e contratação administrativa (JUSTEN FILHO, 2014).
De forma que as regras penais prescritas em referida Lei de Licitações devem
examinar os dados que evidenciam a reprovabilidade da conduta e que são o único
fundamento que autoriza a punição. Portanto, não deve apenas ficar vinculado
à construção dos tipos legais e dos diversos elementos do delito. Não se pode
conceber que os crimes previstas em referida lei, se relacionam somente a dados
materiais, fenômenos externos, padrões objetivos de conduta, pois a punição legal
depende da existência da conduta gravemente infringente aos valores consagrados
pela sociedade (JUSTEN FILHO, 2010, p. 899).
A Lei de Licitações visa em tese proteger a moralidade administrativa, a
lisura nas licitações e impedir que as hipóteses de dispensa e inexigibilidade sejam
alargadas (GASPARINI, 2004).
Apesar da Lei 8.666/1993 ter prescrito de espécies penais distintas,
todas possuem em comum a objetividade jurídica. E em todos esses tipos
penais, o legislador pretendeu resguardar a moralidade administrativa, o bom
funcionamento da Administração Pública, a lisura dos procedimentos licitatórios,
além da idoneidade das contratações firmadas pela Administração Pública, além

408
A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime do art. 89 da Lei de
Licitações

de intentar tutelar outros bens jurídicos, como o princípio da igualdade entre os


concorrentes, o da competitividade da licitação, o patrimônio público, dentre
outros (FREITAS, 2013).

2. O DOLO ESPECÍFICO DO AGENTE E O PREJUÍZO AO ERÁRIO


NA CONFIGURAÇÃO DO TIPO PENAL ESPECIAL DO ARTIGO 89 DA
LEI DE LICITAÇÕES

Ao analisar o dispositivo penal contido no artigo 89 da Lei de Licitações,


podemos considerar que o elemento subjetivo do tipo previsto no art. 89, caput,
enquanto dolo genérico, se configurava o crime com a vontade livre e consciente de
incorrer nas condutas descritas.
Nesse sentido o artigo 89, caput, da Lei 8.666/1993 age como mecanismo
de responsabilização penal do administrador que se nega a cumprir o princípio
da obrigatoriedade de licitação. Pois, o que pretende a norma é punir não apenas
o administrador que causa dano ao erário com a dispensa/ inexigibilidade da
licitação, mas todo aquele agente público que, com seu ato doloso, não cumpre
com os princípios básicos de impessoalidade, isonomia e moralidade no trato
da coisa pública. Não se limitando o dolo desse tipo penal a somente a vontade
de dispensar/inexigir a licitação, não havendo a necessidade de dolo específico
(MENDES JÙNIOR, 2014).

É o dolo genérico, consubstanciado na vontade livre e consciente de


dispensar ou inexigir a licitação ou de deixar de observar as formalidades
pertinentes, quando se cuidar de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
Nas duas situações o agente há de ter consciência da ilicitude de seu
comportamento. O dolo será eventual se o sujeito da infração, tendo
dúvida quanto à legalidade de sua conduta, assume o risco de a cometer
(GASPARINI, 2004, p. 97-98).
Não se vislumbra nas elementares objetivas e subjetivas constantes do
caput do art. 89 a exigência do denominado elemento subjetivo especial do
tipo ou do injusto (segundo a terminologia dominante) (BITENCOURT,
2012, p. 162).

409
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

Portanto, o crime previsto no artigo 89 da Lei nº 8.666/1993 é formal, já


que as modalidades de dispensar ou inexigir a realização de licitação, somente se
consuma com a efetiva celebração do contrato, mesmo antes da execução do ato,
mas não com a realização de um ou outro administrativo, que caracterizam apenas
atos preparatórios e, por isso, impuníveis.
Contudo, quando nos referimos ao tipo penal previsto no caput do artigo 89
da Lei de Licitações, ele é igualmente material o crime configurado no parágrafo
único do referido artigo, pois só será consumado o delito se houver contratação
ilegal do objeto da licitação, pelo agente para cuja ilegalidade tenha concorrido.

Essa contratação ilegal constitui a vantagem expressamente exigida pelo


tipo penal, sem a obtenção da qual esse crime não se consuma: somente
assim o agente beneficia-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal para
celebrar contrato com o Poder Público (BITENCOURT, 2012, p. 179-180).

Assim, com relação ao tipo penal previsto no parágrafo único do artigo em


comento, por usa vez, é necessário o dolo específico para a configuração do ilícito
penal, já que existe uma finalidade específica, a de contratar com o Poder Público,
concorrendo para a consumação da dispensa ou da inexigibilidade ilegal.
Portanto, há a necessidade de que o agente tenha consciência de que obtém
uma vantagem em virtude da adjudicação do objeto da licitação, sem as quais, a
conduta será atípica.
Contudo, há necessidade de que o agente tenha consciência de que obtém
uma vantagem em virtude de adjudicação do objeto da licitação, sem as quais
(consciência e ou vantagem), a conduta será atípica. Ainda, salienta que não
há previsão de modalidade culposa em dita infração penal, mesmo que os fatos
tenham de fato ocorrido e, inclusive, tendo resultado em concreta vantagem, já que
a ausência de dolo afasta a adequação típica, pela falta de previsão da modalidade
culposa (BITENCOURT, 2012).
De forma, que deve haver o efetivo prejuízo ao erário para que seja
caracterizado o crime previsto no art. 89, caput, da Lei de Licitações. Podendo ser
considerado como um crime de perigo abstrato, pois o crime se caracteriza, pela
não realização do certame, que por si só, causa prejuízo à competição e aos demais
possíveis competidores, independente de resultar em agravo ao erário, pois, há o
risco de efetivo prejuízo ao Poder Público.

410
A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime do art. 89 da Lei de
Licitações

cuida-se de crime de perigo abstrato, pois não se questiona sobre eventual


prejuízo sofrido pela Administração Pública em função do contrato
celebrado ou a ser ajustado”. O autor destaca, ainda, que “o que se
quer genericamente proteger é a moralidade administrativa, a lisura nas
licitações. Especificamente, o dispositivo visa impedir que as hipóteses de
dispensa e inexigibilidade sejam alargadas (GASPARINI, 2004, p. 95-96).

Portanto, o referido crime não se consuma no momento da dispensa da


licitação, mesmo que o contrato não tenha sido celebrado, mas se consuma a partir
do ato administrativo que autoriza a Administração Pública a realizar esse tipo de
certame, independentemente da celebração do contrato, ou seja, o crime já está
consumado, mesmo antes do contrato ser formalizado.
De forma, que na doutrina encontraremos vários argumentos nesse sentido,
de que o dolo específico e o prejuízo ao erário podem ser considerados como
elementos do tipo do artigo 89, caput, da Lei 8.666/1993.

3. POSICIONAMENTOS EM DECISÕES JUDICIAIS: ESTUDOS


DE CASO A PARTIR DE DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Como analisado nas linhas acima, o entendimento dominante da doutrina,


é no sentido de que é o caráter formal do crime previsto no artigo 89 da Lei de
Licitações e, por tanto, não há necessidade de que se concretize o efetivo prejuízo
ao erário para sua configuração.

Quanto à primeira parte do artigo, consuma-se a infração com a prática


do ato administrativo de dispensa ou declaração de inexigibilidade,
independente da realização do contrato daí decorrente. Quanto à segunda
parte, consuma-se com a dispensa ou declaração de inexigibilidade sem
o procedimento legalmente previsto ou no dia seguinte do decurso do
prazo de três dias para a comunicação à autoridade superior. [...]
Quanto ao parágrafo único, consuma-se a infração com o benefício da
dispensa ou inexigibilidade, benefício esse que somente ocorre para o
particular ao celebrar o contrato. A proposição ‘para celebrar contrato
com o Poder Público’ é elemento subjetivo do tipo, finalidade que

411
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

deve estar presente no momento da conduta (concorrer para a prática


da dispensa ou inexigibilidade ilegal), mas pertence ao tipo também o
beneficiar-se da dispensa, o que somente ocorre se o contrato é assinado
(GRECO FILHO, 1994, p. 11-13).

Mesmo entendimento pode ser encontrado no discurso de José Geraldo


da Silva, Wilson Lavorenti e Fabiano Genofre, que afirmam que o tipo é subjetivo,
ou seja, é o dolo, a vontade consciente e livre do agente público de dispensar ou
inexigir licitação ou, ainda, ao deixar de observar as formalidades pertinentes à
dispensa/inexigibilidade. Os autores advogam, também, que não há previsão para
a modalidade culposa. Ainda, reportam que a consumação do delito se dá com a
própria prática do ato administrativo de dispensa ou declaração de inexigibilidade,
independente de efetivação do contrato dele decorrente. Na terceira conduta, o
delito se consuma com a omissão em observar as formalidades pertinentes ao ato
de dispensa ou inexigibilidade, quando a Lei determina (SILVA et al., 2005).
Percebe-se, que não há uma pacificação na doutrina com relação ao
entendimento no que diz respeito à configuração do crime previsto no artigo 89 da
Lei de Licitações. E essa falta de consenso, se reflete na jurisprudência, a qual tem
apresentado ampla divergência na tomada de decisões.
Quanto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, tem-
se diversos casos, nos quais se julgou estar ausente o dolo específico e o efetivo
prejuízo ao erário, como podemos observar a partir de algumas ementas abaixo
colacionadas.

APELAÇÃO-CRIME, DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS


HIPÓTESES LEGAIS. ORIENTAÇÃO ATUAL DO STJ. AUDÊNCIA
DE PROVA DE DOLO ESPECÍFICO E PREJUÍZO AO ERÁRIO.
Reconstituição probatória insuficiente à imposição de condenação
criminal. Ausente dolo específico e efetivo prejuízo ao erário, elementos
necessários à configuração do delito previsto no art. 89, caput, da Lei
nº 8.666/1993, de acordo com a orientação atual do Superior Tribunal
de Justiça. Absolvição mantida. Apelo improvido. Unânime. (Apelação
Crime Nº 70068332386, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Redator, Julgado
em 31/03/2016)

412
A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime do art. 89 da Lei de
Licitações

APELAÇÃO-CRIME. CRIME LICITATÓRIO. ARTIGO 89, CAPUT,


DA LEI Nº 8.666/93. DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS
HIPÓTESES LEGAIS. DOLO ESPECÍFICO NÃO DEMONSTRADO.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO IMPOSITIVA.
RECURSOS DEFENSIVOS PROVIDOS. (Apelação Crime Nº
70067077644, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Newton Brasil de Leão, Redator: , Julgado em 05/05/2016)

A partir da leitura de referidos acórdãos se pode perceber que o Tribunal de


Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), tem adotado o posicionamento
do Superior Tribunal de Justiça, no entendimento acerca do crime configurado no
artigo 89 da Lei de Licitações.
A lei 8.666/93 trouxe então a tutela penal específica, prevendo condutas
típicas específicas, para aqueles que ofenderem a moralidade administrativa e
outros bens jurídicos ligados diretamente com a matéria licitatória7. Condutas
típicas possíveis de serem aplicadas desde o início da licitação até a sua finalização.
Tal representou uma grande inovação e avanço na disciplina penal das contratações
da Administração Pública. (FREITAS, 2010).
E se pode verificar que são severas as sanções penais no caso do cometimento
dos delitos, bem mais severas, aliás, do que as previstas em tipos idênticos de leis
penais anteriores. Outro aspecto a ser considerado consiste na aplicação do direito
intertemporal. De fato, alguns dos tipos penais previstos no Estatuto constavam
do Código Penal e de leis extravagantes. Estes tipos foram revogados pela nova lei.
Mas o Estatuto caracteriza-se como lei especial, de modo que continuam vigentes
as normas penais de caráter gerais, não absorvidas nos tipos relacionados naquele
diploma. (CARVALHO FILHO, 2014).
E a contratação pública, quando desrespeita o que está estabelecido na Lei
de Licitações é facilitador para que ocorram comportamentos corruptivos, o qual
está muito presente em nossa realizada social (LEAL, 2013, p. 33).
No procedimento licitatório, várias são as ilegalidades passíveis de serem
cometidas. Algumas delas espelham infrações administravas, indicando a violação
de normas internas da Administração, ao passo que outras, de maior gravidade,
configuram-se como crimes, sujeitos às normas de Direito Penal. Nesse aspecto,
nunca é demais destacar que a aplicação de uma não afasta a outra, ou seja, pode o
infrator ser punido por ambas as sanções cumulativamente. (CARVALHO FILHO,
2014).

413
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

De forma que, TJRS tem apresentado sua jurisprudência no sentido


da necessidade de prova da ocorrência de efetivo dano ao erário, ou seja, a
comprovação de comprovado dolo específico de prejudicar a Administração
Pública e da caracterização do concreto prejuízo ao erário. Acarretando na
absolvição de diversos agentes públicos, e criando precedentes para que novos atos
sejam praticados.
A partir de uma análise ao entendimento adotado pelo TJRS, pode-se
perceber que os julgadores, se limitam a analisar apenas a questão da dimensão que
aquele “prejuízo” provocado pelo agente público, acarretou para a Administração
Pública, ou seja, se aquele ato praticado, apesar de se enquadrar no tipo penal
prescrito no art. 89 da Lei de Licitações, gerou um dano de grande monta para essa
Administração.
E a partir dessa análise o Tribunal, acaba flexibilizando o seu entendimento
e considerando que apesar de não ter sido obedecida a norma em concreto, aquele
ato pode minimizado, pois analisando outras circunstancias, o ato poderia ser
considerado como de necessidade.
Como por exemplo, podemos citar o caso envolvendo o acórdão nº
70067077644 (Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Newton Brasil de Leão, Redator. Julgado em 05/05/2016). Em referido caso
o Prefeito Municipal dispensou a realização de licitação, para locação de 05
impressoras, pelo período de seis meses. Contudo, ocorre que o valor de locação
dessas impressoras, superava o valor para aquisição pela municipalidade de tais
bens. Ou seja, além de realizar um procedimento licitatório, este foi dispensado, em
virtude do valor do material, preencher os requisitos legais, e foi paga pela locação
um valor superior, caso essas impressoras fossem adquiridas, para integrarem os
bens da municipalidade.
Ao final os acusados foram absolvidos, pois se considerou que os agentes
públicos seguiram aos tramites legais de contratação direita, e no caso não restou
demonstrado o efetivo dano ao erário, pois a Administração Pública, se utilizou do
seu poder discricionário para locar os equipamentos.
Todavia, apesar de estar em discussão, muitas das vezes, pequenos atos
administrativos, devemos considerar que tais, podem até mesmo ter obedecido a
todos os trâmites para a realização de uma contratação direta. Porém, Administração
Pública, por intermédio de seus agentes públicos, deve analisar minuciosamente os
limites e possibilidades daquela contratação.

414
A necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a caracterização do crime do art. 89 da Lei de
Licitações

Muitas das vezes, tais agentes somente analisam as questões práticas


momentâneas, deixando de observar o reflexo daquele ato a longo prazo, ou seja,
somente se analisa o agora, o que se apresenta como necessário naquele momento,
e não se pensa em ações, que podemos chamar de reflexivas, que possam ser
aproveitadas futuramente.
Dessa forma, é que se apresenta de extrema importância a implementação de
políticas públicas, por meio da criação de um Conselho Municipal, o qual auxiliaria
o controle interno da Administração Pública, a analisar tais pontos, e a necessidade
de uma contratação direta ao invés de um procedimento licitatório. Tornando os atos
administrativos mais transparentes, além de assegurar o interesse público.
Portanto, a maioria dos julgados do TJRS, acaba por absolver a maioria
dos acusados, sob o entendimento de que deve haver um efetivo prejuízo ao
erário, tornando possível a flexibilização dos atos administrativos praticados pelos
agentes, os quais possuíam a intenção de violar as regras licitatórias, mas acabam
sendo absolvidos, pois a prova produzida nos processos, carece de demonstração
do efetivo prejuízo ao erário.

CONCLUSÃO

Diante todo o exposto no decorrer do presente artigo, podemos considerar


que a redação do artigo 89 da Lei de Licitações, deixa clara a questão que diz
respeito à caracterização do dolo e do efetivo prejuízo ao erário para a configuração
e consumação do crime licitatório.
Apenas desse entendimento ainda não estar pacificado na doutrina, no que
se refere a questão da comprovação do dolo específico na configuração do crime
previsto no art. 89, da Lei de Licitações, e da demonstração do efetivo prejuízo ao
erário. E essa falta de pacificação, acaba refletindo na jurisprudência dos diversos
níveis jurídicos.
Por fim, após a análise do tema, podemos concluir que o correto combate
a essa corrupção, deve ocorrer de forma preventiva, como sugerimos por meio
da criação de Conselhos municipais, que auxiliem o controle interno, na tomada
desse tipo de decisões, e não depois de já efetivado o dano, e as atitudes apenas se
transformem de amparo. Devendo o agente público agir com boa-fé na prática de
seus atos e estar ciente da sua responsabilidade no cuidado com o bem público,
além de sua responsabilização pelos atos ilícitos que venha a praticar.

415
Carolina da Silva Ruppenthal Weyh

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, C. R. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília 1988.
______. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e
dá outras providências. Brasília: Diário Oficial [da] União 1993.
______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível
em: http://www.tjrs.jus.br/site/. Acesso em: 20 de julho de 2018.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São
Paulo: Atlas, 2014.
DELMANTO, C. et al. Código Penal comentado: acompanhado de comentários,
jurisprudência, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
FREITAS, A. G. T. D. Crime na Lei de licitações. 3. ed. Niterói: Impetus, 2013.
GASPARINI, D. Crimes na licitação. 3. ed. São Paulo: Editora NDJ, 2004.
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JUSTEN FILHO, M. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos.
9. ed. São Paulo: Dialética, 2002.
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LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações ente Estado,
administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do
Sul: EDUNISC, 2013.
MENDES JÚNIOR, J. F. S. Desnecessidade de efetivo prejuízo ao erário e dolo
específico para configuração do crime do art. 89, caput, da Lei 8.666/93. 2014. Disponível
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Acesso em: 22 de julho de 2018.
SILVA, J. G. D.; LAVORENTI, W.; GENOFRE, F. Leis penais especiais
anotadas. 8. ed. Campinas: Millennium, 2005.

416
O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO PARA PRESERVAÇÃO
DO INTERESSE PÚBLICO SOB A PERSPECTIVA DA
DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Roberta de Moura Ertel1

RESUMO

A partir da metade do século XX, dentro de contexto democrático, ganhou


força o modelo de democracia deliberativa, o qual será abordado no presente artigo
sob o viés da teoria habermasiana. Este modelo conta com maior participação
cidadã na tomada de decisões e proporciona o debate sobre temas de interesse
público. Neste aspecto, sendo a deliberação pública a protagonista deste modelo
proposto, objetiva-se analisar o conceito de interesse público a partir desta
perspectiva, bem como, qual o papel do Poder Judiciário para preservação deste.
Como problema de pesquisa, apresenta-se: dentro de uma perspectiva democrático
deliberativa, qual o papel do Poder Judiciário para preservação da supremacia
do interesse público? Já a metodologia utilizada será a hipotético-dedutiva, com
a utilização da técnica de pesquisa bibliográfica. Como resultados, obtêm-se que
a Poder Judiciário pode utilizar-se de uma arena deliberativa, já que a ele cabe
levar em consideração as opiniões e interesses comuns da sociedade debatidos em
uma esfera pública, pois decide sobre questões que influenciam diretamente em
políticas públicas, sugerindo-se a criação de um conselho que possa ser consultado
sobre as principais demandas locais, a fim de se determinar a reversão de valores
indenizatórios ou condenatórios os agentes ou da Administração Pública.

1 – Advogada, aluna do Mestrado da Unisc.


Roberta de Moura Ertel

Palavras-chave: Administração Pública. Democracia Deliberativa.


Habermas. Interesse público. Poder Judiciário.

I - INTRODUÇÃO

A sociedade está em constante modificação e evolução. Como consequência


disto, é necessário acompanhar essas transformações, e, em um contexto
democrático, não se justifica que este permaneça inalterado em sua interpretação
e forma de existir.
Assim, justifica-se o estudo acerca da democracia deliberativa, analisada
pelo viés da teoria habermasiana, diante do entendimento que esta seria ideal para
o contexto vivido atualmente.
Como esse modelo fomenta a participação cidadã na tomada de decisões,
justifica-se que aquilo que se entende por interesse público seja deliberado e
legitimado por uma decisão da maioria. Após, passar-se a analisar qual o papel do
Poder Judiciário para proteção do interesse público, este considerado legitimado
dentro de uma discussão pública.
Assim, tem-se como problema de pesquisa: dentro de uma perspectiva
democrático deliberativa, qual o papel do Poder Judiciário para preservação
da supremacia do interesse público? A hipótese é no sentido que cabe ao Poder
Judiciário propiciar uma arena de debate, isto é, uma arena deliberativa com a
participação cidadão, atentando ao que é considerado pela sociedade um interesse
coletivo.
Já a metodologia utilizada será a hipotético-dedutiva, com a utilização da
técnica de pesquisa bibliográfica.

II - A DEMOCRACIA DELIBERATIVA A PARTIR DA TEORIA


HABERMASIANA

O modelo de democracia deliberativa surge nos anos oitenta, como uma


nova opção às democracias até então predominantes (principalmente o modelo
representativo), as quais se restringiam a um processo de reunião de interesses
privados com o objetivo de eleger representantes. A democracia deliberativa,
assim, vem trazer o entendimento de que o processo democrático não pode ser
restringido ao momento decisório, ou seja, ao voto. O modelo deliberativo traz a

418
O papel do Poder Judiciário para preservação do interesse público sob a perspectiva da democracia deliberativa

ideia de se debater sobre os assuntos a serem decididos, incluindo um momento


especialmente dedicado à deliberação (SOUZA NETO, 2006).
Este novo modelo surge com certas características em comum com a
democracia participativa, mas busca maior atuação dos cidadãos, os quais são
chamados ao discurso, aos debates e à verdadeira deliberação das matérias que
versem sobre os seus interesses. Ou seja, esse chamamento é voltado para a real
participação de uma decisão coletiva (SÉRVIO, 2010).
Conforme Swarowsky (2011), Habermas propõe uma democracia que
ocorra no centro da arena pública livre, aberta e igualitária, tendo por objetivo
chegar a um consenso social, por meio do diálogo argumentativo, no qual os
envolvidos reconhecem suas diferenças, mas procuram um mínimo comum através
de concessões mútuas, em prol do interesse geral.
Apesar da democracia deliberativa também ser representativa (pois
os cidadãos permanecem elegendo seus representantes), aos indivíduos é
proporcionado o debate, apresentando-se argumentos e deliberações; ou seja, a
participação do indivíduo não se resume tão somente ao voto, deixando este de
ser inerte (SÉRVIO, 2010). Para Swarowsky, “o modelo deliberativo não exclui o
modelo representativo, funcionando como ferramenta complementar a ele” (2011,
p. 67).
A democracia deliberativa impõe que as decisões públicas sejam justificadas
sob um viés moral, impondo que elas sejam aceitas não somente por aqueles que
praticaram o exercício de votar, mas também por todos aqueles atingidos por
determinada decisão. Ou seja, os argumentos usados pelos governantes devem ser
aderidos não somente por aqueles que o elegerem, possibilitando a mudança de
opiniões através de uma interação comunicativa (SOUZA NETO, 2006).
Neste contexto, o sistema político se relaciona com o espaço público e com a
sociedade civil através da atividade dos partidos políticos e da atividade eleitoral dos
cidadãos, devendo permanecer sempre sensível às influências da opinião pública.
Ademais, as estruturas de comunicação do âmbito público estão muito interligadas
aos domínios da vida privada, fazendo com que a sociedade civil tenha maior
sensibilidade para com os novos dilemas e obstáculos, conseguindo percebê-los e
identificá-los antes que os centros da política. A partir daí, esses novos problemas
identificados pelo povo tornam-se pautas em associações interessadas, clubes,
centros de ensino, academias, e afins, onde irão encontrar tribunas e diversos tipos
de plataformas, transformando-se em núcleos de movimentos sociais de novas
subculturas (HABERMAS 2003).

419
Roberta de Moura Ertel

Portanto, o espaço público pode ser traduzido como uma rede ideal para a
comunicação de assuntos e de tomadas de opiniões em que o fluxo de comunicação
é selecionado e resumido, até que se detenha em uma opinião pública sobre assuntos
específicos (HABERMAS, 2003). Justifica-se, por fim, que esse agir comunicativo
proposto por Habermas seja o tipo ideal de comunicação, já que este defende o
racionalismo para fundamentar a viabilidade dos entendimentos e acordos entre
os cidadãos (LEAL, 2011).
Ou seja, denota-se que a participação pública nas deliberações é fundamental
para a tomada de decisão e para fortalecimento do contexto democrático, já que os
governantes não devem ficar alheios aos anseios do povo. O mesmo pode-se dizer
sobre aquilo que se entende por interesse público dentro de um espaço comum para
debate.

III - A NECESSIDADE DE UM DEBATE PÚBLICO A FIM DE


DEFINIR O INTERESSE PÚBLICO

Para Souza Neto (2006), a vontade popular não pode ser entendida como
uma junção de vontades particulares, mas sim como uma vontade comunitária
caracterizada e que tem por finalidade o interesse público. Essa diferenciação
também foi formulada por Rousseau, quando este opõe os conceitos de “vontade
geral” e “vontade de todos”: o último significa uma soma das vontades particulares,
e o primeiro indica a vontade do povo conduzida à realização do bem comum.
Neste sentido, a soberania popular deve ser manifestada por meio do
primeiro conceito, isto é, pela vontade geral, sendo esta que deve guiar o conteúdo
das leis. Assim, dentro de um debate público, os argumentos que foram aceitos pela
maioria são os que possuem maior força legitimadora.
Atualmente, a tendência da democracia é de valorizar o momento
comunicativo instaurado quando os governantes e a população buscam
fundamentar perspectivas próprias acerca das questões de interesse público,
já que o modelo deliberativo possibilita o debate sobre a melhor decisão a ser
tomada, legitimando as decisões do Estado. Assim, os que participam de interação
democrática-deliberativa promovem os motivos de determinada decisão, alegando
de forma fundamentada que esta seria a melhor conduta a empreender o bem
comum (SOUZA NETO, 2006).

420
O papel do Poder Judiciário para preservação do interesse público sob a perspectiva da democracia deliberativa

Doutro modo, conforme observa Leal (2011) a contemporaneidade criou no


decorrer do tempo uma espécie de cidadania apática, que se preocupa mais com
os interesses pessoais do que com os coletivos, tendo dificuldade de conferir parte
deste tempo ao interesse público, sendo inclusive a cidadania ativa considerada
como um desvalor, já que representa uma ameaça às estruturas de poder já
constituídas. Nesse sentido,

[...] Habermas conclui que quando a soberania comunicativamente


diluída dos cidadãos se faz valer no poder dos discursos públicos que
resultam de esferas públicas autônomas e procedem democraticamente,
tomando forma em resoluções de corporações legislativas politicamente
responsáveis, não se sufoca o pluralismo das convicções e interesses, o
qual é liberado e reconhecido em compromissos e decisões da maioria
(LEAL, 2011, p. 37)

A própria concepção do conceito de interesse público impõe uma ação


coletiva entre os diversos setores e atores da sociedade, o que torna o processo do
debate, ou de uma criação de uma política pública, por exemplo, um verdadeiro
espaço de interação e diálogo entre o Estado e a sociedade civil, no qual essa troca
pode se dar em um meio acessível a todos os interessados, os quais podem vir a
atuar como interlocutores (BITENCOURT, 2011). A partir desse debate aberto,
com colocações voltadas ao interesse público, é que se deve pensar na finalidade
das ações.
Num contexto democrático-deliberativo, a democracia contempla, além
do voto, a possibilidade de se deliberar de forma pública acerca de questões de
interesse comum:

A tendência contemporânea da teoria democrática é a de valorizar o


momento comunicativo e dialógico que se instaura quando governantes
e cidadãos procuram justificar seus pontos de vista sobre as questões
de interesse público. O fundamental para a perspectiva democrático-
deliberativa é compreender a democracia além da prerrogativa majoritária
de tomar decisões políticas. A democracia deliberativa implica igualmente
a possibilidade de se debater acerca de qual é a melhor decisão a ser
tomada. A legitimidade das decisões estatais decorre não só de terem sido
aprovadas pela maioria, mas também de terem resultado de um amplo

421
Roberta de Moura Ertel

debate público em que foram fornecidas razões para decidir. É nesse


debate que as diversas posições, defendidas pelas mais variadas doutrinas
filosóficas, morais e religiosas, se confrontam, e, na sua busca por uma
adesão que vá além de seu círculo de adeptos, procuram se sustentar em
argumentos centrados no campo do que é amplamente compartilhado. O
debate público possui, por isso, um potencial legitimador e racionalizador
(SOUZA NETO, 2006, p. 86).

Ou seja, ao debater propostas dentro de uma perspectiva deliberativa,


proporciona-se uma maior fidelidade ao interesse público, pois se chega a este
último através da comunicação entre Estado e sociedade, aproximando-se o termo
de forma mais concreta à vontade geral, já que o cidadão, dentro do espaço público
concedido ao debate, reconhece e legitima o seu direito e dever de contribuir com
o processo de deliberação acerca dos interesses públicos em sociedade. Neste
contexto, portanto, é que se faz oportuno analisar qual o papel do Poder Judiciário
quando chamado a atuar em questões que dizem respeito ao interesse público, a
partir da perspectiva democrático-deliberativa.

IV - O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO PARA PRESERVAÇÃO DO


INTERESSE PÚBLICO

Primeiramente, oportuno considerar que se deve pensar na contribuição da


democracia deliberativa no âmbito institucionalizado da tomada de decisões por
parte do Poder Judiciário, já que este, ao decidir acerca de questões que influenciam
diretamente em políticas públicas, a fim de manter sua legitimidade, deve levar em
consideração as opiniões, preferências e interesses comuns dos cidadãos debatida
em um espaço público (BITENCOURT, 2011). O mesmo se aplica quando se fala
em interesse público, o qual deve ser levado em consideração quando das decisões
que envolvem Administração Pública e sua discricionariedade.
Neste contexto, importante ressaltar que a observação ao melhor
atendimento ao interesse público não pode ser afastado na tomada de decisão na
esfera judicial, ao julgar um agente público, por exemplo. Assim, para Carvalhaes,
o Poder Judiciário deve ser utilizado como uma arena deliberativa,

422
O papel do Poder Judiciário para preservação do interesse público sob a perspectiva da democracia deliberativa

[...] onde atores sociais e políticos debatem e deliberam suas razões


públicas de forma substantiva e procedimental, na busca de soluções mais
adequadas para formulação de políticas públicas. Neste passo, os novos
valores sociais serão absorvidos pelo interesse público, gerando uma
legitimidade consubstanciada em valores democráticos (CARVALHAES,
2014, p. 151).

Justamente neste sentido, cabe trazer decisão proferida pelo Tribunal


de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em sede de Apelação Criminal, de
nº 70061106498, em que ocorreu a denúncia de um agente público municipal
como incurso nas sanções do art. 89, caput, da Lei Federal nº 8.666/93, por ter
dispensado o processo licitatório ao conceder o uso de um bem público a um
Grupo Tradicionalista local. Da análise dos autos, foi verificado que houve a
concessão de uso de bem público autorizada por lei municipal, pelo prazo de dez
anos, prorrogados por igual prazo, por meio de um novo termo de permissão de
uso de bem público.
Quando do julgamento, o bem em questão foi considerado um bem
dominical, o qual, por definição, integra o patrimônio disponível da Administração,
podendo ser utilizado para qualquer fim, inclusive podendo ser alienado, exigindo-
se apenas que a utilização por particulares seja autorizada por lei (o que foi feito
no caso em concreto).
Ocorre que, na decisão, não se entendeu que o bem referido possuísse
alguma utilidade pública, ou que fosse imprescindível para atender outros interesses
coletivos, por isso se justificou a desnecessidade de licitação, já que não foi afastada
a possibilidade da Administração rever o bem, se necessário. Ainda, considerou-
se que ocorreram outras permissões de uso de bem públicos a outros grupos
tradicionalistas do mesmo município, com o crivo da Procuradoria Municipal.
Assim, não tendo ocorrido dolo específico para causar dano ao erário, foi o agente
público absolvido.
Após o referido exemplo trazido, é que se faz de suma importância a análise
da decisão: o Tribunal de Justiça respectivo não teve como objeto de analisar de
fato o interesse público envolvido no presente feito. Tal decisão afeta a democracia
a partir do momento que deixa a encargo da discricionariedade da Administração
Pública a utilização de bens públicos por longos lapsos temporais (neste caso, vinte
anos), sob o pretexto de que não haveria outra utilização para este bem. Justamente
aqui entra a importância do debate público, a deliberação entre sociedade e órgãos

423
Roberta de Moura Ertel

governamentais a fim de que os cidadãos participem de uma decisão que os


aproxime da gestão municipal. Durante o largo lapso temporal ora analisado, os
interesses da sociedade se modificam e se renovam, por isso de suma importância
a consulta, a abertura ao debate.
Isto é, haveria a possibilidade de ser discutido qual o interesse público na
utilização deste bem, por tantos anos sendo concedido ao mesmo e específico grupo
de pessoas. O que este bem poderia proporcionar à coletividade? Considerando que
fosse a decisão da maioria manter o bem sob uso do grupo tradicionalista, aí sim
estaria legitimada a finalidade, estando então a decisão corroborada. Conforme
dito anteriormente, a deliberação dentro de um espaço público que culmina numa
decisão da maioria, possui maior força legitimadora.
Ao Poder Judiciário, por sua vez, cabe atentar à finalidade do interesse
público quando questionada a utilização dos bens, mais ainda quando ausente o
processo licitatório. Ou seja, propõe-se que o papel do Judiciário seja analisado
por meio de uma política de redes em que os seus atores se interliguem através de
um processo democrático deliberativo para criação e consonância de interesses
particulares e públicos dentro de uma comunidade (CARVALHAES, 2014).
Ou seja, os tribunais possuem um papel importante na defesa da supremacia
do interesse público, dentro de uma perspectiva deliberativa, podendo reconectar
os interesses dos cidadãos com as instituições que os representam, firmando os
efeitos da deliberação dentro da sociedade. Para tanto, o interesse público precisa
ser permear as decisões tomadas, sendo observado principalmente em julgamentos
que envolvam a Administração Pública, conforme trazido pelo julgamento que
serviu de exemplo supra, sendo que este interesse público, por sua vez, dentro de
uma perspectiva deliberativa, é definido por um debate público.

V - CONCLUSÃO

A democracia deliberativa, a partir da teoria habermasiana, pode ser


considerada um modelo ideal de democracia, no qual a deliberação pública é
favorecida e legitima as decisões ao incluir os cidadãos em um debate livre, aberto
e igualitário. Por mais que esta não abandone o modelo representativo, já que os
cidadãos permanecem elegendo seus representantes por meio do voto, o modelo
deliberativo propõe maior participação do cidadão quando chamado ao debate
público, por meio de um agir comunicativo.

424
O papel do Poder Judiciário para preservação do interesse público sob a perspectiva da democracia deliberativa

A deliberação pública proposta, ao fomentar um ambiente para discussão


entre os cidadãos, acaba por propiciar um consenso sobre o que se entende por
interesse público, já que legitima uma decisão da maioria, devidamente debatida,
que leve em consideração o bem comum de interesse geral.
Ao partir-se para a esfera do Judiciário, a este cabe proteger o interesse
público em suas decisões. No exemplo fático trazido no presente artigo, poderia
ter sido trazido à tona a destinação do bem público em questão, observado possível
interesse público neste, a fim de não haver um distanciamento ou desinteresse para
com os anseios populares.
Inclusive, neste viés, sugere-se como política pública a criação de um conselho
consultivo que propicie o debate sobre as principais necessidades e reinvindicações
da população local (em uma esfera municipal), que possa ser consultado pelo Poder
Judiciário em caso de condenação da Administração Pública ou de um agente
político/público por algum crime de responsabilidade, por exemplo, revertendo os
valores indenizatórios na aplicação daquelas principais demandas locais.
O debate dentro desses conselhos propiciaria uma maior fidelidade ao
interesse público, aproximando-se o termo à vontade geral, já que o cidadão, dentro
deste, legitima o seu direito e dever de contribuir com o processo deliberativo acerca
dos interesses públicos em sociedade. Com uma possível implementação de um
espaço público que propicie à Administração Pública ou ao agente público reverter
eventuais condenações ou restituições de valores àquelas demandas debatidas e
escolhidas pela sociedade, legitima-se o interesse público, contribuindo o Judiciário
para com o alcance dos interesses coletivos locais, fortalecendo a participação
democrática.

REFERÊNCIAS

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deliberativa e suas contribuições à problemática da legitimidade judicial nas
decisões sobre políticas públicas sociais. In: LEAL, R. G. (Org.). A democracia
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uma investigação juspolítica do interesse público no estado democrático de direito.
2014. 169f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado) –

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Deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a
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implementação e execução de políticas públicas: um estudo a partir da atuação do
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democrática deliberativa. 2011. 259 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação
em Direito - Mestrado) - Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul,
2011.

426
AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA E O PAPEL DO
JUDICIÁRIO DIANTE DE ATOS ATENTÓRIOS
CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: REFLEXÕES
QUANTO AOS MECANISMOS DE CONTROLE

Ianaiê Simonelli da Silva1

RESUMO:

O presente artigo tem por finalidade analisar algumas falhas/disfuncionalidades


pontuais vivenciadas no modelo da democracia representativa trazendo ao contexto
a situação da sociedade de risco vivenciada atualmente, bem como abordar de que
modo os mecanismos de deliberação podem ser importantes no desenvolvimento de
meios de controle como suplemento e melhoramento da democracia representativa,
além de apontar, a partir da Constituição Federal, o papel do Poder Judiciário na
democracia contemporânea. Para tanto será utilizado material bibliográfico acerca
do assunto, bem como a referência e análise de casos específicos tratando de atos
atentatórios à lei de licitações. Como resultado conclusivo será apresentada uma
proposta de política público no contexto deliberativo como meio de controle social.
Palavras-chave: Democracia Representativa, Deliberação, Controle Social,
Poder Judiciário.

1 – Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. E-mail: <ianaie.
simonelli@gmail.com>
Ianaiê Simonelli da Silva

Abstract: The purpose of this article is to analyze some specific failures


/ dysfunctionalities experienced in the model of representative democracy,
bringing to the context the situation of the society of risk currently experienced,
as well as to discuss how the mechanisms of deliberation can be important
in the development of means of control as supplement and improvement of
representative democracy, besides pointing out, from the Federal Constitution,
the role of the Judiciary in contemporary democracy. For this purpose,
bibliographical material on the subject will be used, as well as the reference and
analysis of specific cases dealing with acts that violate the law of bidding. As a
conclusive result will be presented a proposal of public policy in the deliberative
context as a means of social control.
Key-words: Representative Democracy, Deliberation, Social Control,
Judiciary.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Brasil vive um período de incertezas e inseguranças o que se conduz à


chamada sociedade de risco. Esse período coincide seu início com a instauração
da Operação Lava-Jato. Após inúmeras pesquisas apresenta-se nesse artigo uma
proposta de análise da democracia representativa e suas fragilidades ressaltadas
na primeira parte do presente texto. Nesse capítulo inicial traz-se algumas
disfuncionalidades proporcionadas pelo modelo da democracia representativa e
a situação atual da sociedade de modo geral. Ademais, importa destacar que são
apontados os mecanismos de deliberação.
No segundo capítulo aborda-se o papel do judiciário face aos atos contra
a administração pública, especificamente, nos artigos 89 e 90 da Lei de Licitações,
bem como, contextualiza-se a função do Judiciário na democracia representativa
com espaços de deliberação.
Por fim, traz-se à baila a abordagem dos mecanismos de controle social
passíveis de serem aplicados na democracia representativa com espaços de
deliberação pública.

428
As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos atentórios contra a
Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle

DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E SUAS FRAGILIDADES

Desde as DIRETAS JÁ em 1985, o Brasil dispõe de um modelo de


democracia representativa em que a sociedade transmite a um representante
o direito de representá-lo, bem como de adotar as decisões que melhor defenda
os interesses da sociedade como um todo. Com o passar dos anos esse sistema
representativo começou a receber diversas críticas, que se confirmam pela
quantidade de denúncias de atos corruptivos relacionados à administração pública,
que embora tenha como objetivo precípuo o interesse público, atua em prol de
interesse próprio ou de pequenos grupos.
Conforme o ensinamento de Manfredini (2008), o país passa pela crise do
modelo representativo, uma vez que os representantes não mais representam o
povo e, o povo deixou de se interessar pelos assuntos políticos da nação. O que
se apresenta é uma série de novos partidos, entretanto as ideologias continuam
as mesmas, quando se tem, além de o poder legislativo ainda não ter logrado sua
independência, permanece a atuar com dominação do executivo.
Com o número de casos antidemocráticos aumentando consideravelmente,
com o descaso político, com os constantes atos corruptivos vindo à tona e a
indiferença da sociedade com o cenário, a democracia representativa tornou-se
alvo de diversas críticas.
  Para Manfredini (2008) a vontade popular é intrínseca à vontade
representativa na qual baseia-se a democracia representativa, assim, o povo transmite
parte de sua soberania aos representantes eleitos, para legislarem em seu nome,
acatando o seu anseio, por conseguinte, dever-se-ia presumir a vivência de uma
relação de confiança entre representantes e representados, o que de fato não há.
De tal modo, o modelo representativo apresenta-se como um poder delegado
a um representante tendo o papel de trabalhar em prol da população como um todo.
Assim, o voto revela-se como um importante instrumento da participação popular,
contudo, pela deficiência de comprometimento de governantes e governados, vem
corrompendo a credibilidade de boa parcela da população, malgrado esse ainda
seja o meio adequado para modificar a realidade social e política do país.
De acordo com Hirst (1992, p. 30) existem determinados limites da
democracia representativa, entretanto, inicialmente, destaca que conforme seu
entendimento “a democracia representativa é uma ferramenta tão poderosa de
legitimação das ações do governo que nenhum político sério, mesmo que tenha
acabado de perder uma eleição, a interrogaria.” Com isso, importante trazer à baila

429
Ianaiê Simonelli da Silva

o questionamento acerca de como seria possível pensar em uma participação de


amplas massas da população a respeito de seus destinos?
Segundo o entendimento de Bobbio (1997), apenas em pequenas
comunidades haveria possibilidade de perpetrar a democracia direta, situação
em que, tão-somente restaria acolher a existência de limites na democracia
representativa, consequentemente, tais limites ecoariam no sistema eleitoral do
país, fragilizando esse modelo democrático como um todo.
Hirst (1992, p. 36) preceitua, que os limites da democracia representativa
podem ser analisados quando, “com ou sem representação proporcional, os eleitores
jamais poderão escolher decisões ou políticas, só pessoas e partidos.” Outrossim,
no entendimento do referido autor, a democracia moderna modificar-se, em um
costume de poder desempenhado por políticos profissionais e funcionários públicos
sobre o povo, havendo exclusivamente a troca periódica desses governantes pelo
mecanismo de eleição.
Conforme o ensinamento de Melo (2008) vale destacar que o eleitor pode
escolher o representante que apresentar as propostas em conformidade com os
seus próprios interesses, transferindo a tal candidato a tarefa e responsabilidade
de representá-lo. Destarte, os interesses e as pretensões dos cidadãos estariam
decodificados no processo decisório de alteração de votos na eleição de seus
representantes na ocupação de cargos de governo, tanto no Executivo quanto no
Legislativo.
Nesse diapasão, Bobbio (1997, p. 46) considera que uma vez não havendo um
mandato imperativo, os parlamentares são livres em suas decisões, desvinculando-
os de seus representados. Em que pese, o problema discutido por Hirst (1992) está
inserido nas limitações proporcionadas pelo sistema de representativo aos cidadãos,
que mesmo sendo falho ainda é preferível a um governo autocrático.
Dessa forma, a democracia não é só mais uma forma de governo popular,
sendo que “ela só pode ser um conjunto de mecanismos políticos destinados a
assegurar os benefícios da disputa política e da influência e escrutínio público”
(HIRST, 1992, p. 36).
A partir dessas ponderações percebe-se que a Democracia Representativa
vai perdendo sua força e eficácia, dando espaço para outra forma de democracia,
a Participativa, esta, por sua vez, surge com alguns déficits, que Leal (2013a, p. 12)
aclara como sendo deficiências na “forma, quantidade e qualidade da participação,
haja vista os níveis de cooptação ideológica, burocrática e econômica dos atores
participantes em relação a interesses mais privados do que públicos”.

430
As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos atentórios contra a
Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle

Diante desses modelos delicados de democracia, representativa e


participativa, o autor abaliza “o surgimento da matriz da Democracia Deliberativa,
que começa a ser mais bem teorizada a partir da década de 1980, com pressupostos
epistêmicos e metodológicos diferenciados” (LEAL, 2013a, p. 12).
Melo (2008, p. 373) destaca outro ponto relevante acerca do ao afirmar que,
“as democracias contemporâneas são arranjos representativos”, de forma que a
representação foi a “solução encontrada” para compor a democracia nas sociedades,
entretanto, considerando o grau de complexidade da sociedade contemporânea, a
participação de todos os cidadãos das decisões coletivas é algo inviável.
Para Holanda (1995, p. 18) “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável
mal-entendido”. Para o autor, o padrão protestante se amoldaria melhor no país,
uma vez que para ele a ética protestante ou “espírito protestante”2 traria bons frutos
e não a degradação encontrada em muitas regiões do Brasil.
Essas fragilidades da democracia representativa refletindo diretamente no
sistema eleitoral brasileiro apresenta problemas desde sua constituição. Tanto é
assim que para Wolkmer (1999, p. 57) “a crise da representação vem acompanhada
de uma crise maior da própria política expressa pela perda de eficácia e
confiabilidade nos partidos políticos, na administração estatal, no legislativo e no
poder judiciário.”

O PAPEL DO JUDICIÁRIO FACE AOS ATOS CONTRA A


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Para a elaboração do presente artigo foram avaliados seis acórdãos


do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os casos analisados tratam de

2 – HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo. Companhia das Letras, 26ª ed. 1995.
Capítulo 6 - NOVOS TEMPOS (pp. 153-167) Então o autor explica o termo: [...] Podem-se acolher
com reservas as tendências, de que não se acha imune o grande sociólogo, para acentuar em demasia,
na explanação de determinados fenômenos, o significado das influências puramente morais ou
intelectuais em detrimento de outros fatores porventura mais decisivos. No caso, o da influência do
"espírito protestante" na formação da mentalidade capitalista em prejuízo de movimentos econômicos,
cujo efeito se fez sentir em particular nos países nórdicos onde vingaria a predicação protestante,
principalmente calvinista.

431
Ianaiê Simonelli da Silva

julgamentos dos tipos penais elencados nos artigos 893 e 904 da Lei nº 8.666/93, a
Lei de Licitações e, artigo 1º5, inciso I do Decreto-Lei nº 201/67.
No primeiro caso6, o Tribunal absolveu os réus da imputação de prática
dos delitos previstos no artigo 90 da Lei n.º 8.666/93, e no artigo 1º, inciso I, do
Decreto-Lei n.º 201/67, ademais, a Turma entendeu, por maioria, condenar os
empresários pela prática descrita no artigo 90, da lei nº 8.666/93, e absolver o
prefeito municipal da imputação do artigo 1º, inciso I, do Decreto-Lei n.º 201/67,
bem como os funcionários ligados ao setor de licitação da prefeitura.
Noutro caso7 que tratou de prática delitiva com incurso no artigo 89 da
Lei de Licitações a Turma entendeu, por maioria, absolveu o réu, com fulcro no
artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal, sob o argumento de que com o

3 – Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as
formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a
consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato
com o Poder Público.
4 – Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter
competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem
decorrente da adjudicação do objeto da licitação:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
5 – Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder
Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio; [...]
6 – APELAÇÃO-CRIME. ART. 90, DA LEI Nº 8.666/93. FRAUDE OU FRUSTRAÇÃO DO
CARÁTER COMPETITIVO DE CERTAME LICITATÓRIO. Prévio ajuste, entre empresas de
fachada, mas do mesmo grupo familiar, para fraudar as licitações de saneamento urbano. APELO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARCIALMENTE PROVIDO. POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº
70063136089, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão,
Redator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 06/08/2015)
7 – APELAÇÃO-CRIME. DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS.
ORIENTAÇÃO ATUAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. POSIÇÃO DESTA CÂMARA.
AUSÊNCIA DE PROVA DO DOLO ESPECÍFICO E PREJUÍZO AO ERÁRIO. Conclusão de obra
de ciclovia sem a realização de procedimento licitatório. Dispensa de licitação fora das hipóteses
legais. Reconstituição probatória que aponta mais para negligência da administração no atendimento
das formalidades da licitação ou de sua dispensa, do que propriamente a conduta típica prevista no
art. 89 da Lei nº 8.666/93. Ausente dolo específico e efetivo prejuízo ao erário. Impositiva a solução
absolutória. Apelo provido, por maioria. (Apelação Crime Nº 70065870040, Quarta Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 12/11/2015)

432
As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos atentórios contra a
Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle

julgamento da Ação Penal n° 480/MG, o STJ, acolheu a tese de ser imprescindível


a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a demonstração de efetivo
prejuízo para a tipificação do delito, o que neste caso não restou demonstrado pelo
conjunto probatório existente nos autos.
O que se constatou a partir dos julgados foi que naqueles casos que
envolveram o artigo 89 da Lei de Licitações, a 4ª Turma do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul aplicou a tese utilizada na AC 480/MG – STJ. Já nos casos
que trataram do delito tipificado no artigo 90 da Lei de Licitações a maioria das
decisões da referida Turma foram no sentido de absolver fulcro no artigo 386, inciso
VII, do Código de Processo Penal, uma vez que ausente prova contundente de que
tenham os acusados agido dolosamente, fraudando, mediante ajuste e simulação,
o caráter competitivo dos procedimentos licitatórios, fins de obter para as empresas
vencedoras vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Dessa forma, o Poder Judiciário, como instituição de um Estado democrático,
deve ser estruturado a cargo das exigências desse modelo estatal. Adverte-se, não
obstante, que, diversamente dos demais poderes públicos, o Judiciário proporciona
uma notável peculiaridade. Ainda que ele seja, por conceituação, a principal
garantia do respeito absoluto aos direitos humanos, na maioria dos países os
magistrados, resguardando algumas exceções, não são escolhidos pelo voto popular
(COMPARATO, 2004).
Na realidade, o elemento que coaduna o Poder Judiciário com o espírito
da democracia é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes causam
na sociedade, ou pelo menos causavam. Já, essa particularidade dos magistrados,
em uma democracia, edifica-se fundamentalmente na independência e na
responsabilidade com que o conjunto do aparato estatal, bem como os agentes
públicos individualmente considerados, desempenham as funções políticas que a
Constituição lhes conferiu (COMPARATO, 2004).
Assim, o Estado passou a produzir mecanismos para intervir na prática de
condutas delituosas e, em meio a estes figuram alguns instrumentos que a sociedade
pode utilizar para promover o controle social junto aos atos da Administração
Pública, e que oferecem amparo legal para promover o que for imprescindível para
a defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, que
em outros tempos permaneciam à margem da apreciação do Judiciário.
Ademais, importa salientar que a participação popular jurídico-política
também é abrangida por meio dos instrumentos processuais inseridos na
Constituição com intuito de concretização de seu texto. Dentre esses mecanismos

433
Ianaiê Simonelli da Silva

e remédios processuais, pode-se destacar, o mandado de segurança coletivo,


o mandado de injunção, a ação popular, a ação civil pública e os incidentes de
inconstitucionalidade.
Conforme ensina Leal (2010) apesar do que se observa atualmente, na
realidade, existe uma miscigenação das famílias e sistemas jurídicos no Ocidente,
sendo possível verificar um processo crescente de codificação e normatização
formal de atos, fatos e negócios jurídicos.
Assim, para Comparato (2004) se pode considerar democrático o regime
político repousado na soberania popular, cujo objetivo último constitui-se no
respeito absoluto aos direitos fundamentais da pessoa humana. Dessa forma, a
soberania do popular, não orientada à efetivação dos direitos humanos, conduzindo
necessariamente ao arbítrio da maioria.
Para Hirst (1992) ao mesmo passo que ressalta a importância da democracia
traz à baila a crítica de que não se trata de um ataque frontal à democracia
representativa, entretanto, um questionamento quanto à capacidade de desempenhar
a tarefa que lhe foi atribuída, qual seja, de supervisionar, limitar e controlar o grande
governo. Nessa perspectiva, salienta “que mecanismos corporativos de consulta e
negociação são um suplemento vital para a democracia representativa na era do
grande governo e dos interesses sociais organizados” (HIRST, 1992, p. 30).
Portanto, segundo o ensinamento do autor vai no sentido de adotar
tais mecanismos corporativos semi-institucionalizados proferidos ao Estado
gradualmente pluralista (produto da crescente diversidade social e de maior
deliberação): a representação corporativa dos interesses organizados pode fortalecer
a democracia, com desígnio de aumentar a influência popular sobre o governo.

MECANISMOS DE CONTROLE SOCIAL: BREVES REFLEXÕES

Inicialmente, vale destacar que o cidadão foi o objetivo principal na


Constituição de 1988, possibilitando a integração dos direitos sociais e coletivos
em seu texto bem como o reconhecimento sólido da cidadania, da dignidade da
pessoa humana e aprovisionando meios para tanto.
Segundo Hirst (1992) como o controle e a fiscalização pública sobre o
governo permanecem adstritos ao século XIX bem como o grande governo não
pode ser dirigido em nosso nome, se faz necessário repensar a doutrina e a estrutura
da democracia.

434
As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos atentórios contra a
Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle

Não obstante, para o autor tal fato não deveria se superestimar como
forma de controle, uma porque o sistema coloca os líderes no apogeu da
máquina administrativa totalmente hierarquizada, ainda que sua competência de
controle inclusive seja limitada. Outra, porque os partidos podem fazer uso de
suas colocações no governo em troca de poder, conservando-se por anos em tais
posições, propondo políticas que os mantém em seus cargos.
Destarte, a centralização estatal atrapalha a prestação de contas para o
cidadão ao concentrar informações e poder administrativo bem como ao estabelecer
barreiras à intervenção social nas decisões políticas. Uma forma de enfraquecer
esse tipo de ação, seria alterar o desempenho do governo central e o volume de
assuntos em jogo nas eleições nacionais. De tal modo, tem-se que a delegação
de papéis à sociedade civil organizada, completa o processo anterior transferindo
afazeres de organização social e econômica para associações autogovernadas e
associações voluntárias de cidadãos.
Anastasia e Santana (2008) explanam que todas as vezes que as regras do
jogo não estabelecerem condições necessárias à prática da responsividade e da
responsabilidade política o exercício do poder público restaria ameaçado, traçam
uma relação entre a responsividade e a responsabilidade com as capacidades dos
distintos atores políticos inteirados nas democracias representativas.
As doutrinadoras trazem as seguintes capacidades:

Capacidades dos cidadãos de vocalizarem suas demandas e de a


inscreverem na agenda pública; Capacidades dos representantes eleitos
de traduzirem tais demandas em políticas públicas; Capacidades da
burocracia pública8 de traduzir tais políticas em resultados concretos;
Capacidade dos governados de reconstituir a cadeia causal que liga
demandas a políticas e essas aos resultados e de atribuir responsabilidades
aos governantes por seus atos e por suas omissões Anastasia e Santana
(2008, p. 365).

8 – A possibilidade de autonomização das burocracias públicas, facultando-lhes agir em nome de


seus próprios interesses, é um dos fatores que propicia a prática da corrupção. A superposição de
responsabilidades em diferentes organismos do governo, regras obscuras e falta de coordenação política
e gerencial do Estado levam a uma grande discricionariedade dos funcionários públicos. (ANASTASIA;
SANTANA, 2008, p. 365).

435
Ianaiê Simonelli da Silva

Para Leal (2013a) há uma ponderação referente às condições e probabilidades


da Democracia contemporânea, envolvendo, sobretudo, os aspectos político e
jurídico trabalhados por Dworkin (2002), observando com isso, em que medida
esses elementos podem ser aplicados à realidade brasileira atual.
Portanto, segundo entendimento de Leal (2013), o modelo de Democracia
Representativa fortificado na Idade Moderna com instâncias estatais e político-
partidárias, foi perdendo sua tônica de veiculação das demandas sociais na seara
das políticas públicas; sopesando que os partidos políticos no desempenho de sua
finalidade precípua, de representação, deveriam administrar os interesses públicos
diante do Poder Executivo. Entretanto, o que se percebe cada vez mais definido
é um legislativo legislando os interesses de poucos, quando não os seus próprios
interesses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do presente estudo foi possível verificar que há diversas maneiras


de se fraudar o processo licitatório, evidenciando que, sem embargo, de modo
eminente formal, a lei 8.666/93 é deveras frágil. Não obstante o rigor apresentado,
essa fragilidade demonstra que a formalidade do texto legal não é sinônimo de
eficiência. Ademais, aferiu-se que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
consiste em um mecanismo coibidor imprescindível de tais práticas ilícitas, em
razão de julgar com respeitabilidade e meticulosidade.
Em que pese a democracia representativa apresente inúmeras
disfuncionalidades, para um país como o Brasil, ainda é a melhor indicada,
entretanto é necessário que se crie efetivos mecanismos de controle da sociedade
civil sob a administração pública, não se reduzindo o papel democrático apenas
ao voto, mas também estendendo a democracia para a esfera social. A democracia
deliberativa é considerada como um modelo ou ideal de justificação do exercício
do poder político pautado no debate público entre cidadãos livres e em condições
iguais de participação.

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As fragilidades da democracia representativa e o papel do Judiciário diante de atos atentórios contra a
Administração Pública: reflexões quanto aos mecanismos de controle

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437
POLÍTICAS DE PREVENÇÃO E PUNIÇÃO
A CORRUPÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A
PARTIR DE CASOS JULGADOS NO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Lucas Reckziegel Weschenfelder1

INTRODUÇÃO

O trabalho realizado cumpre com a expectativa de se estudar continuamente


as relações corruptivas nos meandros da administração pública, a fim de
arquitetar-se políticas preventivas e punitivas aperfeiçoadas a tais relações. Para
isso, na primeira parte do trabalho teve-se a intenção de discutir-se sobre teorias
da democracia, ao mesmo tempo inserindo-se na temática da “atuação” do poder
judiciário na contemporaneidade, com o que se denomina de constitucionalismo
contemporâneo. No segundo capítulo, mediante análise qualitativa de quatro casos
envolvendo crimes contra a administração pública previstos na Lei de Licitações,
julgados no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, intentou-se articular,
a partir deles, se a dogmática jurídica empregada dialogou satisfatoriamente com
o ideário republicano da referida Lei e, ademais, com as averiguações dos casos
concretos em mente, a possibilidade de avistar-se indicativos para de incremento
ou formação das aludidas políticas (preventivas e punitivas), uma vez que isto é
de alta relevância para o projeto político-social do Estado Democrático de Direito
brasileiro.

1 – Advogado, aluno do Mestrado da Unisc.


Lucas Reckziegel Weschenfelder

1 TEORIAS DA DEMOCRACIA E O PODER JUDICIÁRIO NA


REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Pretende-se, por claro sem exaurir qualquer temática, tecer diretivas


sobre teorias da democracia, relacionando este assunto à república, ao Estado
Democrático de Direito e a administração pública inauguradas com a Constituição
Federal de 1988, focalizando-se, como locução de sentido pré-constituída, o papel
do poder judiciário nesse cenário, particularmente quando em julgamentos voltados
para crimes contra a administração, isolados ou conexos à Lei de Licitação, para,
com isso, poder-se, ao fim do trabalho, indicar políticas de prevenção/punição aos
“contextos” previstos nos tipos ora tratados.

1.1 A democracia que a República Federativa do Brasil reclama

Sabe-se que a Carta Política de 1988 inaugurou, institucionalmente, um


projeto político-social de transformação, intitulado de Estado Democrático de
Direito. Há, em sua consistência, uma atribuição teleológica que se soma à ideia
de Estado de Direito e a de Estado de Bem-Estar, a qual confere à atividade estatal
o fim utópico de alterar o status quo (desigual) de seu legitimador, tal qual, o povo
(STRECK; MORAIS, 2001). A república brasileira, pois, é ordenada com este
arranjo político compromissório, que se expressa com o que se chama de Estado
Constitucional, tendo como fundamentos a dignidade da pessoa humana e o
pluralismo político, encontrando-se em seus objetivos fundamentais o construir
de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e
promovendo o bem de todos (BRASIL, 1988).
A democracia adotada no Brasil, como um regime de governo que
estipula que o poder é do povo, o qual, por motivos “teóricos e práticos”, exerce-o
diretamente ou mediante representantes, reforça a ideia de legitimidade do poder2,
porque deriva de um comprometimento justificado aos interesses e direitos de seus
titulares. O grau de legitimidade que este poder alcançará procederá do seu alcance
às reivindicações e orientações que o povo delimitar, dentro de parâmetros abertos
democraticamente eleitos, de meios e fins (Constituição). A questão, grosso modo,

2 – Parece ser semelhante a perspectiva de Mota (2017) quando diz que o constitucionalismo democrático
latino-americano traz de volta um ingrediente que, em eras de século XIX independentista, faltou à
construção dos “Estados sólidos”, tal qual, a reflexão sobre sua legitimidade.

440
Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

complexifica-se: as decisões das instituições democráticas serão inevitavelmente


tomadas, porém, em um país erguido na desigualdade, elas precisam, em sua
matéria, vincular, de fato, seus destinatários (Muller (2003): “todos que vivem aqui!”).
A inclusão, dessa forma, surge como pressuposto, e é exatamente isto que o Estado
Democrático Brasileiro e a sua democracia, têm como missão, não apenas abrindo as
instituições e seus ambientes decisórios, mas também fomentando, de uma forma
global, via respeito e promoção de direitos individuais e sociais, a igualdade e a
liberdade, para, assim, todos possuírem voz e adequarem suas vidas, “individuais e
coletivas” da melhor forma possível.
Alia-se, com isto, à Held (1987), quando este expõe que as democracias
contemporâneas (incluindo-se a brasileira), ao lidar com as acepções de direitos
humanos e fundamentais, em dimensões subjetivas e objetivas, possuem o
propósito (ético) de concretizar o que o autor denomina de princípio da autonomia
(PA). Este princípio forma-se da dicotomia igualdade e liberdade não somente
formal, porém, material entre as pessoas3. Defende-se esta posição atrevendo-se
a compactuar que a república brasileira reclama uma democracia ampla, em que
os modelos de democracia4, por exemplo, de Mill (1986), clássica/liberal, Pateman
(1992), participativa e Habermas (2007), deliberativa, devem se imbricar, para evitar/
transformar a sua realidade, de acordo com o diagnóstico de O’Donnell (1994), de
“democracia delegativa”, restringida à instituições democráticas vazias, planos a
curto prazo, centralização “de poder” ao executivo (o herói), em meios de transição-
redemocratização de um país sem tradição político-democráticas, que cresceu por
vias autoritárias (instrumental), patrimonialistas, clientelistas e corruptas.
Estas defesas derivam de perspectivas atentas às complexas relações
sociais da contemporaneidade. A mera representatividade, instrumento de vigor
para uma democracia, não consegue, satisfatoriamente, atingir níveis altos de
legitimidade, quando em ambientes societais de industrialismo capitalista global
de países de modernidade tardia, como o Brasil. Há-se a necessidade de interligar
os governantes ao povo de uma melhor forma, de “preencher” o hiato entre as

3 – Held (1987) defende a i) igualdade de votos; ii) participação efetiva; iii) compreensão qualificada das
matérias debatidas; iv) controle final da agenda pelo povo; v) incorporação de todos os cidadãos ao
processo, alimentando direitos “individuais” e sociais” para um mesmo fim.
4 – Utiliza-se somente estes autores devido à necessidade espacial-temporal-intelectual de congregar
ideias gerais sobre suas teorias e construir o discurso de forma minimamente criteriosa, sem adentrar em
seus aspectos filosóficos/epistemológicos.

441
Lucas Reckziegel Weschenfelder

práticas sociais e suas ideias de boa vida aos poderes públicos. A participação,
tanto nas estruturas governamentais, como fora delas, é vista como um pressuposto
mínimo nesse cenário, de forma a desenvolver qualidades psicológicas (sentimento
de eficiência política) inter-cívicas nas pessoas, ao passo que estas descobrem coisas
em comum e influenciam as decisões que atingem suas vidas, desde formas, por
exemplo, de organizar seu ambiente de trabalho, até as esferas estatais, regionais
e/para nacionais. As decisões institucionais, na verdade, necessitam buscar, em
suas estruturas de racionalidade, “conteúdos de validade universal” acertados
com a ideia de uma sociedade democrática. A igualdade e a liberdade surgem
como organismos potencializadores, em que os constructos usados por Habermas,
de razão/agir comunicativo, mundo da vida, esfera pública e intersubjetividade,
trabalhados com os postulados da filosofia da linguagem (sujeito-sujeito), atentam
a confluir, nas decisões, um real e consciente compartilhamento de valores,
construídos mediante uma ética discursiva de consensos sobre eles (respeitando a
alteridade de cada qual). O poder comunicativo, erigido com estes mandamentos,
é, ao cabo, agente de infiltração no (nos sistemas) poder administrativo do Estado-
governo, quando transforma-se em legislação/políticas públicas com maior
escopo democrático, universalizável, não como substratos prontos e acabados,
mas discutidos historicamente, temporalmente e perenemente, abarcando temas
socialmente relevantes, dirigentes e comprometidos com o ideário de direitos
fundamentais sociais e individuais (MILL, 1987; PATEMAN, 1992; HABERMAS,
2007; LEAL, 2011).
Une-se, com Gabardo (2009), à relevância da república enquanto tal para a/
na democracia, de incorporar a liberdade e a igualdade à realidade política, por uma
isonomia que parte de sua neutralidade, esta sendo possível mediante a existência
de um “a priori” constituinte, que é o interesse público, norteador tal como um
princípio ético-jurídico de todo o sistema político e jurídico-administrativo, nesta
esfera atuando de sua soberania. Especificando à administração pública, é por isso
que em todas as suas relações há a normatização pelos princípios (deon) atrelados
ao art. 37, caput, da Constituição Federal, devendo esta instituição caminhar por
um mundo ético e moral (re)público e democrático, havendo como característica
“intrínseca” de sua (re)formação constitucional o que se intitula de accountability,
envolvendo um conceito amplo de prestação de contas, horizontal e vertical, de
uma atuação ética, transparente, eficiente e responsável. Como diz Peruzzotti
(2012), este conceito atua em duas dimensões, no da “política” e na “legal”, que se
entrecruzam. Insere-se, pois, a punição, como grau último aos corruptores de seu

442
Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

ideário (momento em que, teoricamente, o dano já se concretizou), no Brasil sendo


no setor administrativo (funcional), civil-administrativo (improbidade) e penal.
Desponta-se, com àquelas precondições, a relevância de se pensar os
enquadramentos punitivos na “melhor dogmática jurídica possível” quando no
tratamento de tais casos, saindo das premissas de Muller (2003), “do ciclo de atos
de legitimação (que envolvem todos os poderes e o povo)”, que não podem ser
interrompidos, comprometidos com a democracia. O direito, no caso, o “penal”,
na qualidade de representação institucional das decisões do povo, precisa adequar-
se à sua funcionalidade de coerção legítima enquanto instituto do e de construção
do poder público democrático. Sua “natureza social” de sanção negativa exige
congruência máxima com o sistema jurídico-político constitucional em que está
inserto, ao tempo de amoldar-se às expectativas subjetivas e objetivas e guiar as
relações sociais da comunidade, não apenas entre o lícito e ilícito/bem e mal,
mas apontando, criticamente e discursivamente, a conduta do agente público
e “privado” que será aceita ou não, de acordo com os sentidos universalizáveis
previamente constituídos e que desenvolvem-se no tempo (HABERMAS, 1997),
particularmente, os que estão direcionados à administração pública, no artigo 37,
da Carta de 1988.

1.2 O poder judiciário na democracia brasileira pós-88

O protagonismo contemporâneo do poder judiciário no ocidente, enquanto


“interlocutor político”, originado no pós-segunda guerra, com as constituições
compromissórias aos direitos humanos e fundamentais, atravessou o oceano
atlântico e chegou ao Brasil. A sua função, como a de todos os poderes públicos,
foi atingida para lidar com estas novas projeções. De um poder privado do capitão-
donatário à um poder público, vinculado à constituição e à jurisdição constitucional
democrática, trabalhando com os sentidos da democracia e desestabilizando a
construção liberal-formal da separação montesquiana dos poderes. Os desafios são
muitos e por isso há-se os estudos sobre judicialização, ativismo, discricionariedade,
intervenção, diálogo institucional entre poderes, legitimidade, jurisdição processual
ou substancial e tantos outros temas.
A tarefa, de todos estes estudos, é tentar tecer justificativas para as
formas e aos espaços de atuação, inerentemente dinâmicas nas democracias
atuais. Tem-se esta preocupação, sucintamente, porque com o constitucionalismo
contemporâneo, o direito “politiza-se” e os Estados e seus constituintes, com

443
Lucas Reckziegel Weschenfelder

isso, abandonam sua aparente neutralidade (do tradicional-liberal), assumindo


conteúdos políticos, passando a englobar princípios de legitimação do poder,
deixando-se de ser “instrumentos” de mera organização estatal, para abranger
toda a sociedade, tomando para si a responsabilidade de transformá-la e ser
transformado. As legislações e políticas públicas, dessa forma, passam a ser
vinculadas aos sentidos constitucionais, em principal reordenadas na harmonização
do individual ao social. As “divisões sociais”5 entre direito civil, administrativo, penal
etc. acabam por demonstrar uma necessidade de atribuir conteúdo “constitucional”
ao seus postulados, de modo a convergi-los, formal e materialmente, para um todo
“coerencial jurídico (e político)”. Em extrema síntese, dessa forma, quando se fala em
posições processualistas (a exemplo, Ely e Habermas) ou substancialistas (Dworkin,
Tribe e outros) ao que se refere à jurisdição constitucional (nas Cortes e também
nas instâncias inferiores), há a intenção de se estabelecer um papel à jurisdição e ao
poder judiciário que se transforma em uma dicotomia, em regra, de opostos, entre i)
controle dos procedimentos democráticos e ii) atribuição de conteúdo à constituição
(e ao aparato infra). Faz-se a ressalva, todavia, ao que se observa, que esta dicotomia
não precisa ser conflitante, pode buscar ser (é) harmônica e interdependente, uma
vez que a legitimidade do poder judiciário “está aí”, no Estado Democrático de
Direito, não passando por uma ou por outra opção, mas entre e com elas, em um
aprimoramento necessário e contínuo com os cidadãos e os poderes legislativo e
executivo (LEAL, 2007).
Mormente à pretensão da segunda parte do trabalho, que envolve quatro
cases relacionados a crimes contra a administração pública, isolados ou conexos
à Lei de Licitação, e uma leitura sobre a “dogmática jurídica” empregada para
julgá-los, tentar-se-á avaliar se esta “dogmática”, no caso, penal, é adequada aos
termos até aqui discutidos, e ademais, se, a partir deles, pode-se pensar políticas
de prevenção-punição “ótimas”, ligadas à um sistema coerente de sentidos ético-
jurídicos que abrange a administração pública, seus agentes e eventuais partícipes
civis.

5 – Fazendo-se a asserção de que não há diferença “metafísica” ou “natural” entre estes assuntos, apenas
construções socialmente trabalhadas que as “diferenciam”.

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Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2 QUATRO CASOS JULGADOS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO


ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E OS INDÍCIOS TRANSMITIDOS
PARA A CRIAÇÃO DE POLÍTICAS DE PREVENÇÃO E PUNIÇÃO ÁS
RESPECTIVAS CONDUTAS

Intenta-se estudar, qualitativamente, quatro casos sobre crimes contra a


administração pública, isolados ou conexos aos tipificados na Lei de Licitação,
julgados no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Enfatiza-
se que estes casos servirão como indicadores, a partir da dogmática empregada
(realizando-se criticas a elas) à circunstância narrada, para a criação de políticas de
prevenção e punição às condutas objeto de tais processos, levando em consideração
que é imprescindível haver um diálogo entre os mecanismos punitivos e políticas
estritamente preventivas, para ter-se um satisfatório impacto coordenado entre eles.

2.1 Estudo de três casos envolvendo crime licitatório de dispensa de


licitação fora das hipóteses legais (art. 89, caput, Lei de Licitações)

Antes de tudo, deve-se ressaltar que os fundamentos defendidos no primeiro


caso se alastrarão aos outros dois casos. Caso 1.6 Imputa-se ao réu o cometimento do
crime previsto no art. 89, caput, da lei n. 8.666/93: dispensar ou inexigir licitação fora
das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes
à dispensa ou a inexibilidade. De sua locução apreende-se a previsão de duas
condutas comissivas e uma omissiva. De sua literalidade, assimila-se tal qual o que
se denomina de crime formal, de mera conduta, que se interliga com os preceitos
do art. 17, incisos I e II, 24 e 25 da mesma legislação. Não obstante isto, observa-
se, no acórdão, o posicionamento consentâneo aos atuais posicionamentos das
Cortes superiores, Superior Tribunal de Justiça (STJ), este a partir da Ação Penal
480/MG, e Supremo Tribunal Federal (STF), nos Inquéritos 2.482/MG e 2.616/SP.
Estas jurisprudências criam a norma no sentido de haver, para a configuração do
tipo, além do dolo genérico (vontade consciente de dispensar ou inexigir licitação
fora das hipóteses legais), um dolo específico, “vil”, com o intuito de lesar o erário e,
“finalisticamente”, causar dano ao patrimônio público.7 Em termos gerais, diz-se que

6 – Nº 70069719813 (CNJ: 0182175-93.2016.8.21.7000).


7 – Há, todavia, no STF, movimentos já contrários para a caracterização do tipo, conforme vê-se na

445
Lucas Reckziegel Weschenfelder

se pretende diferenciar o administrador corrupto do ineficiente, de forma a melhor


atribuir sentido à criminalização das condutas.8
No caso em tela, o réu, confesso, incorreu no crime por vinte e nove
vezes, alegando, em geral, que agiu de tal forma para corresponder à situação
emergencial envolvendo o transporte público, dispensando processo licitatório e/
ou promovendo adendos contratuais de acordo com a legislação vigente (art. 57,
Lei de Licitações) e com as cláusulas contratuais constantes, inclusive dizendo que
houve prévia aprovação de sua consultoria jurídica e da Secretaria do Planejamento,
acrescendo, ademais, a ocorrência de processo licitatório anterior às contratações
diretas, entretanto, ficando este suspenso depois de um dos concorrentes ter
falsificado documentos, o que adicionou subsídios ao contexto emergencial etc.
Disse, ainda, que as contratações se deram pelo valor de mercado, sem causar
prejuízos econômicos à administração pública e que se “tivesse obtido informação
de que as contratações tinham alguma ilegalidade, não firmaria os contratos (CD
da fl. 1.085). No voto absolutório discorre-se os seguintes critérios: o ilícito previsto
no artigo 89, caput, da Lei nº 8.666/93, é típico e punível não apenas quando há indevida
contratação direta, mas também quando há o intento doloso para a produção de um resultado
final doloso. Se por acaso a contratação direta, ainda que indevidamente realizada, gerou um
contrato vantajoso para a Administração, não existirá crime, visto que não se pune o”deixar
de fazer uso da licitação”, ainda que reprovável. O que se pune é a instrumentalização da
contratação direta para gerar lesão ao erário. Há a “transmutação jurisprudencial” do
tipo previsto no art. 89, caput, de formal, para material.
Sai-se do pressuposto contrário à ambos os posicionamentos, dos
Tribunais superiores, como também o utilizado no presente caso. A Lei 8.666/93
é um mecanismo jurídico-político republicano, de transformação societal
característico do Estado Democrático de Direito. Os tipos previstos estão de
acordo com a Constituição Federal e o seu direcionamento ético e moral “público”
à administração. A “mera conduta” de não realizar concurso, fora das hipóteses

Ação Penal 580/SP, onde mantém-se a necessidade de perceber-se um dolo específico somado à um
dolo genérico, porém, não trazendo como elemento caracterizador o dano econômico à administração
pública.
8 – Veja-se que não há discordância sobre haver uma real busca de diferenciá-los, levando em conta
a “realidade” brasileira (ausência de especialização etc.). Diverge-se, entretanto, que isto deva ser
realizado mediante uma “conversão” do tipo, devido, do mesmo modo, à “outra realidade”, a corrupta, do
pensamento/agir estratégico em direção ao “público”, em seus meandros muitas vezes imperceptíveis
que levam à sua deturpação (não apenas econômica, mas simbólica, ética-moral etc.)

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Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

legais, termina por subverter o sistema jurídico que endossa, institucionalmente, os


valores, princípios e demais normativas constitucionais. O critério para absolvição
(CPP: art. 386, III, “não constituir o fato infração penal”) empregado perfaz,
indiretamente, uma desestabilização dos demais artigos da Lei que relacionam-
se de perto com o tipo previsto, (17, 24, 25 26 e, no caso, 57) e com o dever de
accountability da administração pública constitucional. Enquanto administrador,
é dever do agente público traçar o seus caminhos documentalmente justificando-
os, havendo inclusive assistência para fazê-lo. No caso, parece-se mais adequado
focalizar nas provas documentais e testemunhais corroborantes à tese de que o
ex-prefeito teve de agir em circunstância emergencial, agindo de acordo com a
exceção normativa que consta na Lei, mantendo-se um entendimento coerente
com o texto da norma (crime formal e “dolo genérico”, exceto nas ressalvas
previstas). Ora, esta posição atual que pretende transmutar um tipo formal para
material pode causar, em seus critérios, circunstâncias perigosas. Um critério deve
ser universal, e por isso não se associa ao já criticado, devido às suas possibilidades
restritivas, tendo em vista que o tipo descrito no art. 89, caput, da Lei de Licitações,
busca proteger uma série variada de bens jurídicos “além do patrimônio público,
tais como a moralidade administrativa, a legalidade, a impessoalidade e, também,
o respeito ao direito subjetivo dos licitantes ao procedimento formal previsto em
lei”.9
Caso 2.10 Neste segundo case, acha-se incontroverso o fato de que o apelado
efetivamente dispensou o procedimento licitatório para a aquisição de suprimentos
de informática, serviços de manutenção de veículo e compra de materiais de
construção. Os critérios para a configuração do tipo são os mesmos do 1) caso: dolo
genérico + dolo específico + para produção de um resultado final danoso ao erário.
Com estes critérios, encontram-se indícios maiores de seu esvaziamento de uma
perspectiva “lógica-jurídica-constitucional” já defendida. Síntese: pelo que se vê do
cotejo dos autos, não há nenhuma dúvida quanto à real existência da dispensa de
licitação pelo réu. Salta aos olhos a irregularidade na dispensa de licitação por não
terem sido observadas estritamente as hipóteses dos artigos 24 da Lei nº 8.666/93
e tampouco o procedimento previsto no artigo 26, parágrafo único, do referido
diploma legal. [...] Dessa forma, os valores dispensados vão além do valor máximo
retro estipulado pela lei, configurando-se, assim, a desconformidade com o

9 – REsp 1.073.676/MG.
10 – Nº 70070699798 (CNJ: 0280173-61.2016.8.21.7000).

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Lucas Reckziegel Weschenfelder

diploma legal retro mencionado. Outrossim, embora o réu alegue que tais compras
ocorreram em virtude de sanar urgência, tal argüição não restou devidamente
comprovada, visto que, como referido na denúncia, os produtos adquiridos sem
licitação são materiais de uso comum, os quais são usados ordinariamente pelo
Município, motivo pelo qual cuidava de despesa perfeitamente previsível, a obrigar
a realização de procedimento licitatório. Saliente-se que a dispensa/inexigibilidade
de licitação só pode ser realizada nos estreitos limites concedidos pela Lei de
Licitação, obedecendo-se ao procedimento correto e aos valores nela estipulados,
o que não foi observado pelo réu. Não houve dano econômico ao erário, devido
ao fato dos preços dos produtos e serviços serem, teoricamente, compatíveis ao
do mercado. Deve-se evidenciar um ponto elementar do caso: as dispensas foram
executadas a partir do comum fracionamento de compras, a fim de não realizar
procedimento licitatório (o que foi corroborado por depoimentos e documentos de
auditorias acostados aos autos) de produtos e serviços comuns e que poderiam/
deveriam ter sido adquiridos a partir de um só volume, mediante licitação.
A absolvição do réu foi reafirmada.11 Não é possível concordar com
os critérios utilizados. O fracionamento estratégico, frequentemente operado,
representa o dolo do agente público em não cumprir com os preceitos republicanos
da Lei de Licitação. Ademais, em vezes, os preços ultrapassaram os limites legais
de dispensa de licitação previstos na mesma legislação. Não há, do mesmo modo,
indícios de prova documental ou testemunhal que ligue a conduta do réu às
exceções que envolvem contextos de emergência, os quais justificariam, em geral,
os seus atos. Esta alegação de emergência, que o réu perfaz, por acaso, acaba por
retirar do mesmo qualquer justificativa de desconhecimento legal/ingerência etc.
uma vez verificando-se que o mesmo, implicitamente, transmite reconhecer, de um
mínimo, os postulados da Lei. Condicionar a configuração do tipo do art. 89, caput,
ao dolo específico e ao efetivo prejuízo ao erário (anteriormente já debatido), revela-
se inapropriado ao projeto político-social que o Brasil vem conduzindo. Neste caso
isto fica ainda mais patente.
Caso 3.12 Narrativa: justificando a dispensa de licitação, o ex-prefeito alegou

11 – Na fundamentação: “Aliás, como referido pelo auditor fiscal do Tribunal de Contas Marcos Antônio
Feltrin, a auditoria realizada abordou apenas a ilegalidade quanto ao procedimento para adquirir os
materiais”. Ou seja, não se apurou a efetiva existência de prejuízo ao erário com a não realização da
licitação”.
12 – Nº 70066861592 (CNJ: 0371537-51.2015.8.21.7000)

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Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

situação emergencial de atividade ininterrupta de caráter essencial à secretaria de


saúde, conforme parecer da assessoria jurídica, datado de 30.03.2006, dispensando
a licitação com base no art. 24, inciso IV, da Lei de Licitações, ratificando tal dispensa
no dia 31.03.2015. Em mesma data firmou-se contrato administrativo, de prestação
de serviços de motoristas para as ambulâncias municipais, entre a empresa
contratada e a administração pública. O motivo informado pela administração seria
a situação de emergência que consistiu na insuficiência de servidores motoristas de
ambulância, em face de concessões de licença saúde e prêmio nos três meses de
abril, maio e junho. Alguns apontamentos relevantes: i) a ausência/falta de servidores
era de conhecimento do ex-prefeito, inclusive havendo, na época, concurso válido
homologado há dois anos, para tais funções, com vencimentos em R$ 604,49. Houve
nomeação meses após o contrato direto, aludindo o ex-prefeito, ao tempo do fato
típico, que a demora ao nomear – de 30 a 90 dias - era justificativa suficiente para
não fazê-lo naquele momento (e não, por daí, realizar a contratação que dispensou
licitação etc.); ii) a contratação direta, para a prestação do serviço já referido, para um
período de três meses, custou, mensalmente, R$ 5.500,00, totalizando R$ 16.500,00;
iii) ademais, como relatado pelo titular “fictício” da empresa prestadora de serviço,
seu nome e sua “firma” serviram apenas de fachada, pois a real intenção do ex-
prefeito era contratar outra pessoa, o que não era possível, em virtude do óbice
legal previsto no art. 9º, inciso III, da Lei de Licitações, por já ter sido funcionário da
administração.
Resultado: absolvição, por maioria, de ambos os apelantes, com
fundamento no art. 386, III, do CPP (atipicidade). Vencido o relator, que deu
parcial provimento para absolver o réu, secretário da saúde, nos termos do inciso
VII, do CPP (não existir prova suficiente), e manteve a condenação do ex-prefeito.
Ora, em que pese ao secretário, o mesmo é citado, nos depoimentos, somente em
uma oportunidade, não existindo outras provas para respaldar possível sentença
condenatória. Já quanto ao ex-prefeito exsurge-se o que quer de incongruências.
O mesmo admite que agiu de tal forma, havendo documentos corroborando seus
atos. No depoimento, tanto do titular da empresa intermediária, até para o “real”
destinatário da contratação direta, há constatação de uma variada formulação
para dispensar a licitação e preferir determinada pessoa.13O prefeito escolheu não

13 – A testemunha Carlos Henrique Azi de Araújo disse que na época soube pela Secretaria da Saúde que
havia dificuldade de serviço de ambulância, no município, procurando a Prefeitura para habilitar-se para
uma “tomada de preço”. Referiu ter trabalhado com Paulo Ricardo Antônio Fraga, ficando com a parte da

449
Lucas Reckziegel Weschenfelder

nomear os servidores com concurso já homologado. Os preços pela contratação


terminam por lesar o erário, devido ao “tempo contratado” e os R$ 16.500,00
acordados. Ou seja: forja-se situação fictícia de urgência (hipótese legal) para a
justificação de contratação direta. Os votos divergentes, pressupostos com os
critérios de dolo específico + dano ao erário + demonstração de efetivo prejuízo
para a tipificação do fato, terminam por absolver o ex-prefeito por atipicidade,
parecendo, na verdade, desvinculados à relação social-jurídica em tela. Mesmo
se não houvesse prejuízo ao erário, o ex-prefeito atua, estrategicamente, para a
realização de contratação direta, dissimulando contexto emergencial. Reafirma-
se a necessidade de se rever tal entendimento. Observação: nos votos de todos os
casos não há (ao menos na leitura realizada), um enquadramento “analítico” (de
separação ou complementação) de avaliação de qual espécie de conduta, comissiva
ou omissiva, os agentes praticaram.
Nos casos expostos, vê-se centralizado o problema: a criação de situações
emergenciais fictícias para burlar o sistema jurídico-político republicano da Lei de
Licitações e poder “atuar” nas hipóteses legais de exceção à concorrência. Algumas
propostas: i) punitiva: coerência rigorosa entre os tribunais de conta, “judiciário” e
direito (no caso, penal, mantendo-se a disposição “original” do tipo, dolo genérico
etc.), porque sabe-se que quando a averiguação faz-se em ação penal, em vezes o
dano já materializou-se há tempos. Por isso, o tipo discutido deve ser compreendido
do modo defendido, pois a sua força normativa é ampliada, infiltrando-se nas relações
sociojurídicas de forma mais contundente, vinculando-se nos mesmos termos
com as políticas intrínsecamente preventivas14; ii) preventiva: obrigatoriedade de
avaliação anual (dialogando-se com a questão orçamentária) prévia e minuciosa das
condições contratuais (de pessoas jurídicas e agentes) de todos os setores do serviço
público: prazos, preços, adendos. Publicidade, transparência e detalhamento, de

organização do serviço. Referiu que eram prestadores de serviços, dirigindo ambulâncias, pelo período
de três meses, ele, Ari e Ciro. Aduziu que Paulo Ricardo foi contratado pelo município, através de uma
microempresa, terceirizando os serviços para ele e outro colega. Narrou que sabendo que não poderia
contratar com a municipalidade em razão de ser sócio e servidor do INSS, procurou a empresa de Paulo
Ricardo para “pegar” o contrato de três meses, ficando responsável pelo serviço [...].
14 – Em algumas oportunidades, percebe-se, nos diálogos auferidos via interceptação telefônica, o agir
estratégico dos réus, com base em estudos jurisprudenciais, de enquadramento da “forma de conduzir”
os atos corruptivos, consoante as decisões (majoritárias) dos tribunais, para, se em eventual ação penal,
obter sentença absolutória. Explicitamente encontra-se isso no caso relacionado à operação gabarito (Nº
70070170386 – CNJ: 0227232-37.2016.8.21.7000).

450
Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

modo acessível e padronizado, sob pena de responsabilização, para ter-se base, “um
trajeto documental e justificado”, para apreciar iii) concomitantemente, mediante
entrecruzamento de informações, nos “contextos emergenciais”, as contratações
diretas e, do mesmo modo, qual serviço público será destinatário da contratação,
particularizando-se o seu peso no “interesse público (local)”. Mescla-se, pois, uma
normatização preventiva e punitiva, necessariamente sistematizada e coordenada
para uma moral e ética pública. Enfim, o “ideal”: sistema nacional informatizado
padronizado, englobando todas as esferas, “aberto” e compatível com sistemas de
outras instituições, como a dos tribunais de conta.

2.2 Quebra da ordem cronológica dos pagamentos (art. 92, Lei de


Licitações)

Caso15: ex-prefeito, confesso, na incumbência de sua função executiva,


efetuou pagamentos fora da ordem cronológica dos mesmos em continuidade,
em seis oportunidades, preterindo contratos, em serviços semelhantes, com outras
sociedades empresariais, onde as prejudicadas, pois, representaram ao Ministério
Público, resultando investigação e detecção de autoria e materialidade do crime,
ocorrendo, entretanto, declaração de extinção de punibilidade, pela prescrição. Da
instrução, observou-se a inexistência de justificativas técnicas e minuciosas, como
também documentação corroborante para a efetuação, dentro das hipóteses legais
(art. 5º), da quebra da ordem cronológica dos pagamentos. Ademais, a própria
comunicação entre o ente federado e os contratados preteridos era nebulosa,
conforme os respectivos depoimentos pessoais, que são coerentes com a via
documental. A saber, quando na reivindicação, pelos lesados, para o adimplemento
contratual, a resposta era lacônica: falta de recursos, enquanto, todavia, pagava-se
outras sociedades empresariais, quebrando-se a ordem cronológica, sem respaldo
com a normativa prevista no art. 5º, caput, in fine, da Lei de Licitações (relevantes
razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente,
devidamente publicada).
Duas questões consideradas relevantes, a partir do caso-exemplo. Dogmática
jurídica: i) o tipo foi “interpretado-criado-aplicado” coerentemente aos propósitos
republicanos, como crime próprio (apenas pode ser cometido por agente público) e
formal (não exige a configuração de resultado naturalístico para a consumação); ii)

15 – Nº 70057463176 (Nº CNJ: 0470944-98.2013.8.21.7000)

451
Lucas Reckziegel Weschenfelder

fica exposta a fragilidade da dogmática atual, no que diz respeito ao enquadramento


dos atos como “vinculados” ou “discricionários”. Apesar de tal “redução
fenomenológica” ser sofisticada, a liberdade/discricionariedade/arbitrariedade do
agente para a atuação é ainda enormemente possível, dentro dos “parâmetros/
conceitos” abertos/indetermináveis, seja o ato classificado como “vinculado” ou
“discricionário”, como bem observado na relatoria, particularmente em relação ao
texto do art. 5º, parte final, da Lei de Licitações, considerado “vinculado”. A partir
disso, uma política de prevenção à tais condutas, que violam a moralidade e a
ética pública, deve ser compartilhada às ideias dos casos anteriores: é imperativo o
estabelecimento de sistemas informatizados comuns, entre administração, controle
interno e externo, que reforce a imprescindibilidade de justificação e corroboração
documental escorreita para a validação da quebra da ordem cronológica de
pagamento, havendo, portanto, uma necessária comunicação institucional coerente
entre as partes, além de haver obrigatoriedade de participação das sociedades
contratadas pela administração, quando em tais ocasiões, com notificação, abertura
e envio de documentos e fundamentações atreladas aos atos, dando-se margem,
a partir da transparência e acessibilidade, a contestações ou/e reformulações para
ajustamentos.16

CONCLUSÃO

É possível aferir que a normatização da Lei de Licitações está estritamente


ligada à noção de ética e moral pública, característica da república brasileira
exposta na Carta Política de 1988. Os tipos previstos ora estudados, portanto,
devem ser enquadrados de tal forma, não sendo “criados-interpretados-aplicados”
por vias economicistas, mas em suas amplitudes diretas ao que o art. 37, caput, da
Carta, por acaso, prescreve, ao tratar da administração pública. As políticas, tanto
“exclusivamente” de prevenção, como as de punição, ao que se conclui, precisam

16 – Cita-se, apenas para exemplificação, a nova versão, de 2018, do Sistema de Informações para
Auditoria e Prestação de Contas (SIAPC) para envio de remessa de dados e informações, referente ao
TCE-RS. Uma importante alteração está na necessidade de “melhorar a qualidade da informação que
está sendo remetida ao Tribunal”, em que, primeiramente, as validações serão incluídas como avisos.
Entretanto, aponta-se que, ao futuro, as informações deverão ser acompanhadas de justificativas ou o
próprio sistema enquadrará, no ato da remessa, um impedimento (“erro”) para o envio das respectivas
informações.

452
Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

estar em harmonia, verificando-se que são interdependentes, para a condução dos


assuntos relacionados à administração pública. O poder judiciário, interlocutor
político legítimo dos Estados e democracias contemporâneas, cumpre com a sua
atribuição ao auxiliar as demais instituições do Estado, e a própria sociedade, a
construir indicadores para políticas de tratamento à contextos corruptivos que
acabam por violar os mandamentos democráticos e republicanos que fazem parte
do sistema político e jurídico do país.
Por conseguinte, a partir dos casos eleitos, de modo a averiguar direções
para a constituição de políticas preventivas e punitivas, foi possível atentar para
uma necessidade patente: a elaboração de mecanismos (legislação e políticas) a
partir de um primado ético-público, que, por claro, deve se constituir no tempo,
aprimorando-se continuamente, fazendo-se referência, portanto, ao trabalho de
Bitencourt e Reck (2018), que desenvolvem um escopo teórico, a partir da matriz
pragmático-sistêmica, para a construção arrazoada de sistemas coerentes, que
surgem como subsídios para a formação de políticas ao acoplarem de forma
ótima e aberta as operações da Política e do Direito. Enfim, vê-se que muitas
das “direções” tecidas neste singelo trabalho já se encontram institucionalizadas,
contudo, é necessário ressaltar que as dinâmicas entre elas devem ser radicalmente
incrementadas, e a obrigatoriedade de implementação de um sistema nacional
informatizado e padronizado – no sentido de ser acessível a todas as esferas e às
suas particularidades - facilitador das trocas de informações surge como norteador
do que foi defendido. O controle social, apesar de não ter sido citado no corpo
do texto das seções anteriores também não deixa de ser essencial: além da
informatização, diálogos entre as instituições de controle e um Direito estimulador
destas relações, os cidadãos precisam agir civicamente, inclusive a administração
atuando no fomento para tal.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Caroline Müller; RECK, Janriê Rodrigues. Políticas


públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do direito
administrativo no Brasil. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

453
Lucas Reckziegel Weschenfelder

____. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso


XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 10 jul. 2018.
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criminal nº 70069719813. Relator: Newton Brasil de Leão. Data de julgamento:
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____.____. Apelação criminal nº 70070699798. Relator: Newton Brasil de
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Bruxel. Data de julgamento: 27/06/2017.
____.____. Apelação criminal nº 70066861592. Relator: Ivan Leomar
Bruxel. Data de julgamento: 27/06/2017.
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454
Políticas de prevenção e punição a corrupção na Administração Pública a partir de casos julgados no Tribunal de
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Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

455
A FUNÇÃO DO JUIZ A PARTIR DA DEMOCRACIA
DELIBERATIVA

Bruna Emmanouilidis1

1 INTRODUÇÃO

O trabalho apresenta como tema a função do juiz a partir da Democracia


Deliberativa. O problema em análise é: qual a função do juiz a partir da democracia
deliberativa? Dessa forma, o objetivo desse trabalho é estudar os limites do Poder
Judiciário em relação aos demais poderes, Executivo e Legislativo. A importância
desse estudo decorre da relação entre os poderes sob o viés da democracia
deliberativa.
Utiliza-se o método de abordagem dedutivo para estudar a distinção entre
a democracia deliberativa e a participativa. Quanto ao procedimento, será o
analítico, pois se analisará a teoria da Ação Comunicativa de Habermas. Quanto à
técnica de pesquisa, emprega-se a bibliográfica, com a consulta em jurisprudência,
livros e periódicos.
Dessa forma, no primeiro capítulo estudar-se-á a distinção entre a democracia
deliberativa e a participativa e a teoria da Ação Comunicativa de Habermas. No

1 – Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da


Universidade de Santa Cruz do Sul, com taxa PROSUP/CAPES Capes. Graduada Universidade de
Santa Cruz do Sul - campus Sobradinho/RS. Integrante do grupo de estudos Estado, Sociedade e
Administração Pública. E-mail: brunaemman@gmail.com
Bruna Emmanouilidis

segundo capítulo, analisar-se-á os limites do Poder Judiciário em relação ao outros


Poderes, sob o viés do ativismo judicial.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA DEMOCRACIA


DELIBERATIVA

Antes de adentrar no estudo da teoria da Ação Comunicativa de Habermas


é necessário estudar as diferenças entre a democracia deliberativa e participativa.
Com efeito, tanto a democracia deliberativa quanto a democracia participativa
tentam desenvolver uma ferramenta efetiva que aproxime a participação dos
indivíduos nos processos de decisões públicas em todos os âmbitos. Assim, cabe
ao Estado proporcionar a deliberação com termos regulados de fala, estimular
o diálogo político entre Estado-indivíduo. Sua finalidade é a aproximação dos
indivíduos nos processos de decisões públicas em todos os âmbitos (LEAL, 2011).

Em outras palavras, se a Democracia Representativa se afigura como


modelo de gestão pública que institucionaliza mecanismos de repartição
de competências e funções entre Estado e Sociedade Civil (Poder
Executivo, Poder Legislativo – sufrágio, Partidos Políticos, Processo
Legislativo, etc. -, e Poder Judiciário); e a Democracia Participativa
amplia ainda mais estes espaços institucionais de relações (Conselhos
Federais, Estaduais e Municipais de Gestão Pública, Parcerias Público-
Privadas, Ações de Voluntariado, etc.); a Democracia Deliberativa se
ocupa, para além disto, dos elementos procedimentais e principiológicos
que viabilizam materialmente tais relações, radicalizando o envolvimento
Social em todas as instâncias de constituição do espaço público, pré e
pós-decisionais (LEAL, 2013, p. 15).

Com efeito, não se confunde a deliberação e a participação, porquanto a


democracia participativa não se confunde com a democracia deliberativa, mas
ambas estudam formas de inserir o indivíduo junto aos processos de decisões
públicas. Nesse sentido, a deliberação e a participação se diferenciam, uma vez que
a primeira se refere aos “complexos conjuntos teóricos, com conotações fortemente
normativas, enquanto que a participação implica aspectos sobretudos aplicativos”
(LEAL, 2011, p. 15).

458
A função do juiz a partir da democracia deliberativa

A democracia deliberativa traz a necessidade do agir comunicativo, através


de argumentos racionais, que se chegará ao consenso, por meio dos pressupostos
ideais de fala. Assim, os discursos racionais nas esferas públicas ampliam a
participação dos cidadãos como forma de prevenção de ações que chegam ao
Poder Judiciário.
De forma, visto as distinções entre as democracias, passa-se ao estudo
da teoria do Discurso, Habermas concentra sua ideia no “procedimento e
pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade
os quais funcionam como importantes escoadouros da racionalização discursiva
das decisões de um governo e administração vinculados ao direito e à lei”
(HABERMAS, 2002, p. 282).
Assim, esclarece Leal (2013, p. 14) que “o acento diferenciador da matriz
deliberativa é justamente o processo decisional que decorre dela [...] demanda, para
ser legítima, consensos racionais dentre os que são potencialmente interessados
no objeto da deliberação capazes de gerar entendimentos sustentáveis”. A tese
da ação comunicativa de Habermas fundamenta-se numa perspectiva dialógica
da comunicação tendo como pressuposto “a análise da pragmática da fala e dos
seus falantes/ouvintes, pressupondo que todos estão orientados para uma mútua
compreensão voltada ao entendimento (situação ideal de fala) ” (LEAL, 2011, p. 16).
Partindo da Teoria da Ação Comunicativa, Habermas irá aplicar a teoria do
discurso na política contemporânea

Ele irá operacionalizar tal aplicação através da percepção de que o


problema da legitimidade na política não está ligado apenas, tal como
supôs Rousseau, ao problema da vontade da maioria no processo de
formação da vontade geral, mas também estaria ligada a um processo de
deliberação coletiva que contasse com a participação racional de todos os
indivíduos possivelmente interessados ou afetados por decisões políticas.
A elaboração dessa posição leva Habermas à elaboração do assim
chamado princípio D: “Somente são válidas aquelas norma-ações com
as quais todas as pessoas possivelmente afetadas possam concordar como
participante de um discurso racional”. Duas características do princípio
D merecem ser destacadas [...] não é a contagem de votos o que muda a
relação entre maioria e minoria. Não é suficientemente dizer à minoria
que ela possui menos votos. O que é preciso chegar a uma posição racional
no debate político que a satisfaça. Em segundo lugar, existe uma mudança

459
Bruna Emmanouilidis

no conceito de preferência [...] a teoria habermasiana do discurso sustenta


a concepção de que “a política deliberativa deve ser concebida como uma
síndrome que depende de uma rede de processos de barganha regulados
de forma justa e de várias formas de argumentação, incluindo discursos
pragmáticos, éticos e morais, cada um deles apoiado em diferentes
pressupostos e procedimentos comunicativos” (HABERMAS, 1994, p. 5
apud AVRITZER, 2000, p. 39).

Dessa forma, a ideia de Habermas é questionar de que forma/como


decidimos, qual o procedimento utilizado, denominado “política deliberativa”
para que o procedimento ideal de fala resulte na descentralização do ego, gerando
a conciliação dos interesses próprios e dos outros. É através da racionalidade
comunicativa, através de argumentos racionais, que se chegará ao consenso, por
meio dos pressupostos ideias de fala.
Nesse sentido, os participantes (ouvintes e falantes) possuem um acordo
semântico da linguagem, baseado em um procedimento adequado para se atingir o
resultado, através da razão comunicativa, assim “a linguagem enquanto expressão
das representações e pensamentos humanos permite perceber qual a estrutura
dos mesmos, ou seja, descobrir certas estruturas de racionalidade que nela se
manifestam – daí poder-se se afirmar a existência de uma “razão comunicativa”
(LEAL, 2011, p. 17).
Além disso, os ouvintes e falantes do diálogo deverão “a exercer a virtude
cognitiva da empatia em relação às diferenças recíprocas na percepção de uma
mesma situação” (LEAL, 2011, p. 23). Isso, pois se trata de interesses coletivos
sendo que durante os acordos racionais a negociação evoluirá até chegar ao
consenso.
No procedimento para tomada de decisões é importante destacar a lógica da
argumentação, pois os participantes teriam as informações completas e atuariam de
forma racional a fim de chegar a acordar a resposta correta. Isso gera um resultado
comum desenvolvido pela lógica da negociação (MARMOL, 2001).
Além disso, a tese da ação comunicativa pressupõe que o consenso seja
racional, por isso que “posturas comunicativas sem esse compromisso não podem
gerar entendimentos e consensos duradouros e legítimos (LEAL, 2011, p. 19). Para
se chegar ao consenso racional são necessárias as condições ideais de fala, somente
através das condições ideias de fala desenvolve-se o entendimento e as críticas das
relações que resultam em um possível consenso mútuo (LEAL, 2011).

460
A função do juiz a partir da democracia deliberativa

A democracia deliberativa, no sentido normativo, pode ser denominada como


“uma condição necessária para se obter legitimidade e racionalidade com relação
à tomada de decisão coletiva” (BENHABIB, 1996, p. 69 apud CUNNINGHAM,
2009, p. 163).
As pré-condições da deliberação democrática devem ser alcançadas para que
seja possível a deliberação (MARTÍ, 2006). Assim para que se efetive a democracia
deliberativa são necessários alguns parâmetros e procedimentos em decisões
obrigatórias, são eles: “a) a inclusão de todas as pessoas envolvidas; b) chances reais
de participação no processo político, repartidas equitativamente; c) igual direito a
voto nas decisões; d) o mesmo direito para a escolha dos temas e para o controle da
agenda; e) uma situação na qual todos os participantes, tendo à mão informações
suficientes e bons argumentos, possam formar uma compreensão articulada acerca
das matérias a serem regulamentadas e dos interesses controversos” (LEAL 2011,
p. 44).
Como princípio estrutural da democracia deliberativa, o princípio da
publicidade ainda traz outras perspectivas. Primeira: somente as questões públicas
podem ser objeto de consenso entre os indivíduos; Segunda: a publicidade dos
motivos amplia o viés moral e político almejado pela deliberação. Terceira: somente
pelas razões públicas/publicadas é que se respeite, se esclareça e compreenda as
opiniões divergentes dos outros indivíduos, a fim de alcançar a deliberação; Quarta:
função autocorretiva da deliberação, qual se rechaça as propostas políticas caso as
razões não sejam amplamente divulgadas e discutidas (MARTÍN, 2006).
Outro ponto trazido por Habermas (1994) citado por Avritzer (2000) é a
terceira ideia, além das duas acima vistas – contagem de votos e o significado de
preferência

Habermas opõe uma terceira, que é baseada na ideia de deliberação


argumentativa. Essa concepção passa a atribuir à esfera pública o papel
de se tornas o local de uma deliberação comunicativa no qual as diferentes
concepções morais e as diferentes identidades culturais se colocariam
em contato, gerando uma rede de procedimentos comunicativos
que, na concepção do autor de Entre Fatos e Normas se aproximaria da
realização do princípio (D). De acordo com essa concepção a deliberação
democrática envolveria “uma soberania popular procedimentalizada
e um sistema político ligadas a redes periféricas de uma esfera pública
política (HABERMAS, 1994, p. 7 apud AVRITZER, 2000, p. 40).

461
Bruna Emmanouilidis

Dessa forma, Leal esclarece que Habermas ao defender a relação “de uma
esfera pública fundada na sociedade civil com a formação da opinião e vontade
institucionalizada nos corpos parlamentares e nos tribunais fornece perspectiva
melhor para traduzir em termos sociológicos o conceito de política deliberativa”
(LEAL, 2011, p. 49)
Estudado a teoria da ação comunicativa, estudar-se-á no capítulo seguinte
os limites de atuação do Poder Judiciário frente à democracia contemporânea e o
ativismo judicial.

3 OS LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA


DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

No presente capítulo, será estudado os limites de atuação do Poder


Judiciário na Democracia Contemporânea, notadamente, a democracia liberativa
estudada acima. Ressalta-se que se pretende analisar a relação entre os poderes,
mas além disso, trazer mecanismos que auxiliam na diminuição de ilícitos
cometidos na Administração Pública. Do mesmo modo, identificar a fragilidade
do procedimento licitatório e a recorrência de falhas durante tal procedimento.
Assim, serão identificados, exemplificadamente, condenações e absolvições de
crimes contra Administração Pública, julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul.
Com efeito, qualquer mudança que se pretenda ter na atuação do Poder
Judiciário deve iniciar por meio da democracia. Ocorre que às vezes, os cidadãos
consideram a função do Poder Judiciário, ou dos magistrados, ser a responsável por
transformar a sociedade. Nesse contexto, Antonie Garapon (2001, p. 13), afirma que

A mudança do papel do juiz dependerá da transformação da própria


democracia. Para explicar o que aparece, primeiramente, como uma
inflação do judiciário é preciso recorrer às causas da crise de legitimidade
do Estado. E reportar-se à esfera do próprio imaginário democrático,
no íntimo da consciência do cidadão, onde a autoridade da instituição
política é reconhecida.

Assim, as crises democráticas surgem, quando no íntimo da consciência


do cidadão não se reconhece mais a legitimidade do Estado, no sentido de

462
A função do juiz a partir da democracia deliberativa

representação do cidadão, e transfere ao Poder Judiciário a incumbência de, através


dos seus julgamentos, ser o representante da sociedade.
Os prejuízos da falta de consciência dos cidadãos são vistos na apatia política,
na falta de cidadania ativa que se preocupa com a fiscalização e a transparência das
informações e atos públicos do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Do mesmo
modo, antes de os gestores públicos serem administradores são cidadãos e quando
assumem seu mandato acabam por utilizar a máquina pública para seus próprios
interesses.
O exemplo encontrado é o julgamento, realizado pelo Tribunal de Justiça
Gaúcho, do acordão n.º 70069579522, em que o Engenheiro Civil e o Prefeito
Municipal foram de foram denunciados pela prática do crime do art. 90 da Lei n.º
8.666/912. No acordão, os Desembargadores declararam extinta a punibilidade do
Engenheiro e negaram provimento à apelação do Prefeito (RIO GRANDE DO
SUL, 2016, 70069579522). O crime ocorreu pelo fato do Engenheiro da Prefeitura
ser também o proprietário da empresa que venceu a licitação. Assim, salientaram
os Desembargadores:

Leandro era não só o proprietário da empresa Coronetti Engenharia


e Construção Ltda., mas também o único engenheiro da Prefeitura
e também aquele que era responsável por elaborar o projeto, orçar e
fiscalizar a obra. A circunstância como apontou o Tribunal de Contas
do Estado, é gravíssima, tendo em conta que “o próprio servidor
municipal assina todos os documentos do processo e sua empresa vence
a licitação”, inclusive evidenciando “manipulação do processo por quem
detinha a informação sobre o custo da obra”, no caso, o próprio Leandro
Coronetti. Trata-se de violação direta ao que dispõe o art. 9º, I, c/c §3º
da Lei 8.666/93” (RIO GRANDE DO SUL, 2016, 70069579522, p. 14).

Quanto à conduta dolosa do Prefeito Municipal, essa restou configurada


por dono da empresa vencedora e o engenheiro da Prefeitura possuir o mesmo
nome. Além disso, por se tratar de município pequeno e com poucos engenheiros

2 – Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter
competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem
decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa
(BRASIL, 1993, <http://www.planalto.gov.br>).

463
Bruna Emmanouilidis

configura a articulação entre o prefeito e o engenheiro. Destaca-se, quando o


prefeito soube da contratação irregular não anulou o certame. Restou configurado,
conforme o entendimento do STJ “a quebra de caráter competitivo entre os
licitantes interessados em contratar, ocasionada com a frustração ou com a fraude
no procedimento licitatório” (RIO GRANDE DO SUL, 2016, 70069579522, p.
19), dispensando-se o efetivo prejuízo ao erário.
Nas relações entre o Poder Judiciário e a sociedade, vem a triangulação dos
debates entre justiça e política. E, mais uma vez, o Poder Judiciário “é empurrado
para a linha de frente por instituições políticas em vias de decomposição, e
confrontado com uma tarefa impossível: [...] proporcionar o surgimento do novo”
(GARAPON, 2001, p. 16).
Dessa forma, para que se corrija os erros da sociedade, é necessário criar
atuações democráticas perante a Administração Pública, isto é inserir o cidadão
nas instituições públicas, nos órgãos públicos, nos poderes, a fim de desenvolver
a cultura da transparência para que casos como o do acórdão n.º 70069984433,
julgado pelo TJRS não voltem a ocorrer, pois a fiscalização dos atos públicos deve
ser exercida pelos cidadãos.
No acórdão n.º 70069984433 julgado pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, os Desembargadores rejeitaram as preliminares,
negaram provimento ao apelo ministerial e proveram parcialmente apelos
das defesas para alterar as penas dos réus. Os acusados foram denunciados
pela prática dos crimes previstos no art. 90 da Lei n.º 8.666/933, três vezes,

3 – Para a configuração da fraude ao procedimento licitatório, art. 90 da Lei n.º 8.666/93, requer
“o efetivo prejuízo para a Administração Pública e a obtenção de vantagem para o particular” (RIO
GRANDE DO SUL, 2016, 70069984433, p. 34).
No mesmo sentido, o acordão n.º 70070171673, os Desembargadores negaram provimento à apelação
interposta pelo Ministério Público contra Secretário da Administração do Município e o Prefeito
Municipal. Os Desembargadores aplicaram o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em que
para configuração do crime previsto no art. 89, caput, da Lei n.º 8.666/93, é necessária “a presença
do dolo específico de causar danos ao erário e a demonstração de efetivo prejuízo para a tipificação
do delito” (RIO GRANDE DO SUL, 2016, 70070171673, p. 13). No caso, restou-se comprovado
apenas o dolo genérico, através da não benefício das empresas contratadas ou escolhidas, mesmo que
inobservados a Lei de Licitações. Quanto à comprovação do efetivo prejuízo, tendo em vista que as
aquisições realizadas, sem a devida licitação, os acusados dispensaram a licitação, foram corrigidas com
novas licitações posteriores. Destaca-se que dos Desembargadores presentes no julgamento esclareceu
que aplica a jurisprudência consolida do STJ, no entanto, não concorda com seus fundamentos (RIO
GRANDE DO SUL, 2016, 70070171673).

464
A função do juiz a partir da democracia deliberativa

art. 3334, parágrafo único, do Código Penal (31 vezes) e art. 3175, caput, ambos do
Código Penal (31 vezes) (RIO GRANDE DO SUL, 2016).
O Prefeito Municipal e cinco pessoas da mesma família fraudaram três
processos licitatórios, através de três empresas laranjas, para o recolhimento e
destinação final do lixo. A corrupção ativa foi tipificada pela promessa e oferta de
vantagem indevida ao Prefeito Municipal, no valor de 12.200,00 mais 200,00, com
o objetivo de receber convites para as licitações. Além disso, o Prefeito homologou
o certame fraudulento. Por sua vez, a corrupção passiva restou tipificada pela
solicitação e recebimento dos valores acima mencionados, pagos pelos empresários
da mesma família. Assim, o Prefeito Municipal

valendo-se do cargo que exercia, solicitou e recebeu dos demais réus,


vantagem indevida, consistente no pagamento de trinta parcelas mensais
no valor de R$ 400,00 e uma parcela de R$ 200,00 para assegurar que
as empresas dos demais réus restassem vitoriosas nas licitações do
Município, configurando assim os delitos previstos nos artigos 317,
caput, e 333, caput, ambos do Código Penal” (RIO GRANDE DO SUL,
2016, 70069984433, p. 39).

Assim, a família utilizava-se de nomes de terceiros, para criação de


empresas, com a finalidade de participar dos procedimentos licitatórios em diversos
municípios. O Desembargador-Relator esclareceu

que a família demonstrava verdadeira organização criminosa onde


se alternavam, para assegurar a inexistência de qualquer competição
acerca do valor da contratação, bem como para garantir que somente as
pertencentes ao grupo fossem contratadas, utilizando-se da modalidade

4 – Corrupção ativa – Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos,
e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa,
o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional (BRASIL, 1940,
<http://www.planalto.gov.br>).
5 – Corrupção passiva – Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar
promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa (BRASIL, 1940,
<http://www.planalto.gov.br>).

465
Bruna Emmanouilidis

carta-convite. Ou seja, para dar ares de legalidade aos certames, com


o conhecimento do burgomestre e, a partir de um ajuste prévio, foram
convidadas aquelas empresas com propostas forjadas, para que uma delas
saísse vencedora” (RIO GRANDE DO SUL, 2016, 70069984433, p. 35).

A comprovação de que a administração das empresas era realizada pelo


mesmo grupo familiar restou evidenciada através das procurações firmadas em
nome dos integrantes da família, assim as três empresas laranjas eram administradas
por quatro integrantes da família (RIO GRANDE DO SUL, 2016, 70069984433).
Dessa forma, vistos alguns exemplos de crimes cometidos contra a
Administração Pública, através dos julgamentos do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul entende-se que as transformações necessárias perpassam
o âmbito dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, no entanto, apenas
possuem legitimidade democrática se iniciar na sociedade, entre os cidadãos e
posteriormente, na abertura das instituições públicas e inserção dos cidadãos.

4 CONCLUSÃO

A democracia deliberativa traz a necessidade do agir comunicativo, através


de argumentos racionais, que se chegará ao consenso, por meio dos pressupostos
ideias de fala. Assim, os discursos racionais nas esferas públicas ampliam a
participação dos cidadãos como forma de prevenção de ações que chegam ao
Poder Judiciário. A democracia deliberativa estudada acima pode ser exercida
pelos cidadãos quando ocorrer uma mais abertura das instituições públicas e
dessa forma, diminuir, ainda que minimamente, a ocorrência dos crimes contra os
interesses públicos.

BIBLIOGRAFIA

AVRITZER, Leonardo. Teoria democrática e deliberação pública. Revista Lua


Nova, n.º 49, 2000.
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848 de 7 de dezembro 1940. Institui o Código
Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
Del2848compilado.htm>. Acesso em 27 de julho de 2018.

466
A função do juiz a partir da democracia deliberativa

BRASIL. Lei n.º 8.666 de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso
XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública e dá outras providências. Disponível em <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666compilado.htm>. Acesso em 27 de julho
de 2018.
CUNNINGHAM, Frank. Teorias da democracia: uma introdução crítica.
Tradução de Delmar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2009.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução
de Maria Luiza de Carvalho, 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber e
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
LEAL, Rogério Gesta. Demarcações conceituais preliminares da democracia
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nova matriz de gestão pública: alguns estudos de casos [recurso eletrônico]. Santa Cruz do
Sul: EDUNISC, 2011.
LEAL, Rogério Gesta. Qual democracia: a necessidade premente de romper com a
univocidade identitária artificial e casuística do fenômeno político. Revista do Direito, Santa
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MÁRMOL, José Luis Martí. Democracia y deliberación. una reconstrucción del
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Madrid: MARCIAL PONS, 2006.
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n.º 70069984433. Desembargador Relator Aristides Pedroso de Albuquerque Neto.
Julgado em 15 de dezembro de 2016.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Acordão n.º 70069579522. Desembargador Relator Julio Cesar Finger. Julgado em
15 de dezembro de 2016.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acordão
n.º 70070171673. Desembargador Relator Aristides Pedroso de Albuquerque Neto.
Julgado em 10 de novembro de 2016.

467
DEMOCRACIA, JUDICIÁRIO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
FRENTE A JURISPRUDÊNCIA DA
4ª CÂMARA CRIMINAL DO TJRS

Flávio Barboza de Castro1

1 INTRODUÇÃO

Vive-se nos últimos tempos no Brasil um período marcado pelas frequentes


revelações de atos de corrupção na Administração Pública. Não por acaso
que, no ranking que avalia a percepção de corrupção no mundo publicado pela
Transparência Internacional, o Brasil2 ocupa a 96ª posição, ao lado de países como
Zâmbia e Indonésia.
Verifica-se a existência de grande descaso dos administradores públicos
com as verbas da coletividade. Este descompromisso com a população representa,
por evidente, inevitável violação aos princípios basilares do Estado Democrático de
Direito, devendo ser coibido por todos os Poderes, pelos demais órgãos de combate
e pela própria sociedade, seja no exercício de controle interno, seja pelo controle
externo.

1 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, da


linha de pesquisa de Políticas Públicas de Inclusão Social. Integrante do Grupo de Pesquisa “Sociedade
de riscos e democracia radical: a formatação de políticas públicas a partir de decisões judiciais”,
coordenado pelo Professor Pós-doutor Rogério Gesta Leal. Pós-Graduado em Direito Ambiental pela
Uniasselvi. Advogado. E-mail: flaviobarbozadecastro@gmail.com.
2 – TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. 2017. Disponível em: <https://transparenciainternacional.
org.br>. Acesso em: 16 jun. 2018
Flávio Barboza de Castro

Os atos ilícitos praticados pelo gestor público, inclusive com maltrato da


coisa pública, merecem ser reprimidos com rigor. Para tanto, é preciso se questionar
qual modelo de democracia que se pretende, qual o papel do judiciário e dos órgãos
de controle interno frente a estas ilegalidades, bem como quais as políticas públicas
decorrentes de tais ações em desfavor do bem público, o que será realizado através
da análise da jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul referente a condutas ilícitas praticadas pelos chefes dos poderes
executivos municipais.

2 OS LIMITES E AS FUNÇÕES DO PODER JUDICIÁRIO NO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Os atos ilícitos praticados contra a Administração Pública por pessoas que,


deveras vezes, gozam de elevados status social e razoável poder econômico chocam
a todos na sociedade, trazendo, inclusive, questionamentos sobre o atual modelo
de democracia prevalente.
Por certo que o modelo de democracia meramente participativa tem
se mostrado insuficiente para atender aos anseios de participação nos atos da
Administração Pública e de justiça.
Sob este aspecto, trazendo luz, no campo teórico, sobre a participação
política efetiva da sociedade para consecução de seus próprios interesses como
comunidade, verifica-se outra espécie de democracia, irmã siamesa da democracia
participativa, porém alicerçada em complexos conjuntos teóricos e com conotações
fortemente normativas3. É a chamada democracia deliberativa.
Dessa maneira, quanto maior for o papel da população atribuído ao
raciocínio, à reflexão e ao espírito crítico na regulação de seus assuntos públicos,
tanto maior será o espírito democrático desta sociedade4.
Assim, em um cenário de ineficácia dos órgãos de repressão destas condutas
e perpetuação de atos ilícitos, aliados à constante interação comunicativa entre o

3 – LEAL, Rogério Gesta. Demarcações conceituais preliminares da democracia deliberativa: matrizes


habermasianas. In: ______ (Org.) A democracia deliberativa como nova matriz de gestão pública:
alguns estudos de caso. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011.
4 – LEAL, Rogério Gesta. Demarcações conceituais preliminares da democracia deliberativa: matrizes
habermasianas. In: ______ (Org.) A democracia deliberativa como nova matriz de gestão pública:
alguns estudos de caso. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011.

470
Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

seleto grupo de pessoas que ocupam os altos cargos na Administração Pública, a


criminalidade encontraria terreno altamente fértil.
Com efeito, ainda que no imaginário geral da população se possa pensar
em corrupção na Administração Pública como atos distantes somente ocorrentes
na longínqua Brasília, é fato que grande parte das condutas ilícitas praticadas
por administradores públicos acontecem nas cidades, sejam pequenas, médias ou
grandes, próximas, portanto, dos olhos da população.
Outro caminho para controle dos atos da Administração Pública passa
pelo Poder Judiciário, no exercício das funções jurisdicionais de maneira proativa,
expandindo os conceitos legais já existentes para que melhor preencham os
princípios emoldurados na Constituição Federal de 1988, de forma a privilegiar
direitos fundamentais sociais.
Nesse sentido, o protagonismo do Poder Judiciário vem estimulando, não
só no Brasil, um acervo de pesquisas que procuram a explicação desse fenômeno,
devendo-se levar em consideração a complexa relação entre os três Poderes. Em
resumo, todas essas inquietações sinalizam para um acentuado protagonismo do
Poder Judiciário no contexto político atual.
Os altos níveis de corrupção e ilicitudes provocadas pelo e no Poder
Legislativo e Executivo, bem como a própria crise de legitimidade gerada em
face desses e outros atos, faz com que o Poder Judiciário tenha uma presença
demasiadamente ativa nesses cenários, o que retoma a discussão referente a
separação de Poderes e os limites e a autonomia de cada Poder Estatal. Nesse
caminho, o Poder Judiciário torna-se como a primeira e a última medida para
suprir o “vazio” deixado pelos demais Poderes5.
E, como consequência, sobre o Poder Judiciário recai a acusação de um
ativismo judicial, que é conceituado e caracterizado pela intensificação e ampliação
da atuação do Judiciário, principalmente desempenhando funções e tomando
decisões que não seriam propriamente suas, como é no caso da destinação de verbas
públicas6. Ademais, uma vez provocado, o Poder Judiciário precisa decidir; assim,

5 – RUIZ, Juan Cámara. Judicialización y activismo judicial en España. In: LEAL, Rogério Gesta.;
LEAL, Mônia Clarissa Hennig Leal. (Orgs.). Ativismo judicial e déficits democráticos: algumas experiências
latino-americanas e europeias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
6 – LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A jurisdição entre a judicialização e o ativismo judicial. In: COSTA,
Marli Marlene Moraes da; ______. (Orgs.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos.
Tomo 13. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013, p. 217-247.

471
Flávio Barboza de Castro

quando instado pela inércia e pela omissão dos Poderes Públicos, pela ineficácia de
políticas públicas ou por um crime contra a Administração Pública, a sua função
não é de ficar inerte, a sociedade clama por uma resposta, por uma punição aos
infratores.
Importante é trazer, que o papel do Poder Judiciário nos sistemas jurídicos
e políticos contemporâneos tem imenso significado social. Tanto pela inflação
legislativa, gerando conflitos entre normas (como se verá nos acórdãos em seguida,
tratando-se da Lei de Licitações), como também, em face do incumprimento destas
mesmas normas associadas a cultura belicosa dos indivíduos e das instituições,
da corrupção instalada nos Poderes Públicos, o que vem aumentar a provocação
jurisdicional7.
Nestas condiçoes, analisa-se os acórdãos julgados pela 4ª Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, observando a atuação do Poder
Judiciário nos casos envolvendo atos corruptivos.

3 ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS JULGADOS PELA 4ª


CÂMARA CRIMINAL DO TJRS8

Os temas tratados nos acórdãos referendados dizem respeito à violação


das regras norteadoras do processo de licitação pública e à tutela do patrimônio
da Administração Pública municipal. Como sabido, o processo de licitação
pública é o instrumento hábil para contratações de compras, serviços e obras da
Administração Pública.
A própria Constituição Federal traz no artigo 37, inciso XXI, o princípio
da obrigatoriedade de realização do processo de licitação pública para obras,
serviços compras e alienações da Administração Pública, elencando seus princípios
norteadores e permitindo ao legislador infraconstitucional trazer exceções a esta
regra.
Tem-se, pois, no processo de licitação pública uma ferramenta disposta a
garantir a transparência das contratações e a assegurar a igualdade de condições
a todos concorrentes. Outrossim, como reflexo do tratamento dispensado pela

7 – LEAL, Rogério Gesta. Riscos dos déficits democráticos à sustentabilidade dos equilíbrios
institucionais entre os poderes do Estado de Direito.
8 – Os presentes acórdãos estão disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
<https:www.tjrs.jus.br>.

472
Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

Constituição Federal à Administração Pública direta e indireta em geral, por certo


que o processo licitatório deverá prestar obediência aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
De toda forma, o agente público, ao incorrer no delito do artigo 89, da
Lei 8.666/1993, pela conduta de realizar contratações – a Administração Pública
– sem o devido processo licitatório e não se enquadrando nas exceções legais,
deturpa o Estado Democrático de Direito, ferindo gravemente direito isonômico
de participação de todos, impedindo a liberdade de escolha do contratado pela
decisão pessoal do agente público administrador.
Ora, um dos esteios básicos do Estado Democrático de Direito é a
igualdade de todos perante a lei, igualdade esta dita material e não formal. Assim,
não possibilitada a isonomia de todos que atendam às reais capacidades pretendidas
pelo processo de licitação pública para contratação de obras, serviços e compras,
restam feridas as regras da democracia nos moldes elegidos pela Constituição
Federal.
Nesse caminho, volta-se os olhos para os acórdãos trazidos para exame, a
fim de verificar o papel do Poder Judiciário frente aos mesmos e a importância da
democracia deliberativa nesse toar.
O primeiro a ser analisado, acórdão nº 70056377872, trata de apelação
interposta pelo Ministério Público Estadual contra decisão de 1º grau que absolveu
Mariovane Gottfried Weis do delito do artigo 89, da Lei 8666/93, uma vez que
Mariovane, na condição de prefeito municipal de São Borja dispensou licitação,
fora das hipóteses previstas nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93, ao celebrar
contrato de concessão de transporte coletivo urbano.
Em rudimentar síntese, observou-se que o então prefeito do município de
São Borja realizou sucessivas prorrogações de contrato de concessão de transporte
coletivo urbano, em desacordo com o regramento licitatório. Alegou, dentre outros
argumentos, que agiu amparado em parecer da consultoria jurídica do município e
que a prorrogação do contrato não trouxe prejuízos ao erário.
Em que pese a decisão de primeira instância tenha absolvido o então
prefeito Mariovane, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na decisão
em epicentro neste momento, o condenou como incurso nas sanções do artigo
89, caput, da Lei n.° 8.666/93, fixando a pena em 3 (três) anos de detenção,
possibilitando a substituição desta pena pela de restritiva de direitos.
O argumento utilizado pelo voto guia foi o de que o delito imputado
ao então prefeito de São Borja é de natureza formal com dolo genérico, isto é,

473
Flávio Barboza de Castro

consuma-se com a mera conduta prevista no tipo penal, independente da ocorrência


de resultado naturalístico, qual seja, a obtenção efetiva de vantagem patrimonial
ou mesmo de prejuízo aos cofres públicos. De igual forma, o tipo penal clama pelo
dolo genérico de burlar a isonomia do processo licitatório, não se exigindo, por
consequência, o dolo específico de causar prejuízo à Administração Pública.
Da decisão acima, observa-se, em uma análise perfunctória e ordinária dos
fatos levados a juízo, que talvez a não ocorrência de prejuízo ou enriquecimento
ilegal de nenhuma das partes envolvidas possa ter confundido os personagens
enredados na trama criminosa. No entanto, os desembargadores da Quarta Câmara
Criminal não deixaram passar despercebida a gravidade que a quebra da isonomia
no processo licitatório ocasiona.
Muito mais do que violar uma lei federal, a contratação escusa de
determinado concessionário de serviço público sem a observação das regras
vigentes representa uma violência aos princípios constitucionais que norteiam a
Administração Pública, grifando-se a legalidade, a moralidade e a transparência,
embora tantos outros possam ser invocados.
Prosseguindo, na decisão proferida por ocasião do acórdão de nº
70058540972 condenou-se o réu Jaime Guedes Silveira como incurso no delito
previsto no artigo 1º, inciso XI, do Decreto Lei nº 201/67, uma vez que, na
condição de prefeito municipal de Charqueadas, realizou a aquisição de bens para
a Administração Pública sem a realização de concorrência, consistente na compra
de diversos pneus em avultosa quantia, bem como de triciclos agrícolas.
Em razão de tais condutas, Jaime foi condenado a uma pena privativa de
liberdade de seis meses de detenção, substituída por restritiva de direitos, como,
ainda, foi decretada a inabilitação do condenado pelo período de cinco anos para o
exercício de cargo ou função pública. Por fim, diante do decurso do lapso temporal,
restou reconhecida e declarada a extinção da punibilidade.
Nesta decisão, entendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que
a conduta do então prefeito de Charqueadas desatendeu de forma consciente a
lei que regulamenta o processo licitatório, realizando compras de forma não
planejada e direta, sem observar a concorrência, a isonomia e a transparência,
impossibilitando a participação ampla de outros munícipes no fornecimento de
bens ao município.
Ainda que não demonstrado efetivo dano aos cofres públicos, entendeu,
de forma escorreita, a Quarta Câmara Criminal que o delito imputado ao então
prefeito de Charqueadas é de mera conduta, restando configurado com a simples

474
Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

aquisição de bens, ou serviços e obras, sem a concorrência prevista em lei.


Desta forma, a Quarta Câmara Criminal condenou Jaime à pena privativa
de liberdade de seis meses de detenção, em regime aberto, pena esta que foi
substituída por restritiva de direitos.
O acórdão de nº 70057564171 trata de situação envolvendo o município
de São Borja, na qual foi realizado o processo licitatório de tomada de preço.
No entanto, a concorrência da licitação teria sido burlada – conforme denúncia
do Ministério Público – pelo fato de que os contratos apresentados estavam
superfaturados.
Assim sendo, os envolvidos na suposta fraude foram denunciados pelo
desvio de rendas públicas, em proveito das empresas privadas, por meio de contratos
superfaturados, tudo isso na forma tentada, uma vez que por circunstâncias alheias
à vontade dos réus, o delito não se consumou.
O juiz de primeiro grau, em julgamento ao caso, absolveu os envolvidos
na falcatrua, sendo que o Ministério Público interpôs recurso, levando o caso a
julgamento no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Em análise ao caso, os desembargadores da Quarta Câmara Criminal
referendaram a decisão de primeira instância e entenderam ausentes os elementos
necessários para um juízo condenatório.
Neste caso ora em apreço, é premente a situação de burla à concorrência do
certame licitatório. Veja-se que as empresas envolvidas no caso apresentam valores
alternados para os serviços de pavimentação e drenagem das ruas, separadas nos
lotes 01 e 02.
Na medida em que a Administração Municipal licitou de forma apartada
os lotes 01 e 02, foi possível que as empresas apresentassem propostas para os dois
lotes, onde, sem surpresas, a empresa que apresentou o menor preço para o lote
01, apresentou o maior preço para o lote 02 e vice-versa. Ora, ainda que embasado
em pareceres técnicos, parece cristalina a existência de prévia combinação de
preços para os serviços licitados, de forma que as duas empresas envolvidas fossem
agraciadas com generosos contratos.
Com efeito, ausente qualquer elemento de prova produzido na fase judicial
acerca deste inescrupuloso concerto, não podendo imperar outra decisão senão a
absolutória.
No acórdão 70055573406, Evandro Antonio Damian, ex-prefeito de
Marcelino Ramos, foi condenado em 1º grau por frustrar, mediante ajuste e
combinação, o caráter competitivo do procedimento licitatório (artigo 90, Lei

475
Flávio Barboza de Castro

8666/93). A pena foi de 03 anos e 02 meses de detenção, em regime inicial semi-


aberto, e 50 dias-multa, à razão de 1/15 do salário mínimo nacional.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a condenação, mas
analisando as circunstâncias judiciais do artigo 59, do Código Penal, fixou a pena
em 02 anos e 06 meses de detenção, bem como alterou a multa para 20 dias, no
valor de 1/15 do salário mínimo nacional. Ademais, entendeu que, por estarem
presentes os requisitos legais do art. 44 do Código Penal, deveria ser substituída a
pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, consistentes em
prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.
Nota-se que, apesar de o autor do crime ter realizado grave atentado contra
o processo licitatório, na medida em que inscreveu duas empresas com mesma
participação societária no certame, aumentando suas chances de ser agraciado
com um contrato público e quebrando a concorrência e isonomia da licitação,
foi condenado a penas mínimas, consistentes em restritivas de direitos. Isto é, a
impressão que permanece após todos os fatos apurados é a de que este tipo de
crime compensa.
No acórdão nº 70058986746, Cleimar da Rosa é o apelante foi condenado
em 1º grau por ter desviado e aplicado indevidamente verbas públicas no município
de Mariano Moro.
No município de Mariano Moro há um projeto social voltado à área de
habitação para atender famílias em situação de risco e vulnerabilidade social e
pessoal. O então prefeito Cleimar da Rosa em sua legislatura, concedeu este
benefício municipal a pessoas que não se enquadravam neste grupo, enquanto
outros, que de fato necessitavam de socorro, não foram contemplados.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a condenação de 1º
grau do réu como incurso nas sanções do art. 1º, inciso III, art. 1º, inc. V, ambos do
Decreto-Lei nº 201/67, e do art. 89, da Lei n º 8.666/93, às penas, respectivamente,
de 02 (dois) anos de detenção, 01 (um) ano e 06 (seis) meses de detenção e a 04
(quatro) anos de detenção, totalizando, na forma do art. 69, caput, do CP, 07 (sete)
anos e 06 (seis) meses de detenção, em regime semiaberto, bem como multa de 40
(quarenta) dias-multa no valor unitário de 1/30 (um trigésimo) do salário-mínimo
vigente à época do fato.
Neste caso em específico, diante da gravidade dos fatos, a pena privativa
de liberdade se aproxima dos moldes de justiça esperados para estes casos. No
entanto, apesar de o Decreto-Lei nº 201/67 prever como pena secundária da
condenação a inabilitação para o cargo ou função pública pelo período de cinco

476
Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

anos, esta reprimenda legal não foi expressamente aplicada ao réu Cleomar da
Rosa.
Observa-se que somente surge para o Poder Judiciário espaço para atuação
no momento em que há uma violação à norma, seja pelo Poder Legislativo, seja
pelo Poder Executivo, como é o caso dos acórdãos ora examinados.
Diante da constatação da existência de um crime, valendo-se do devido
processo legal e à luz dos princípios norteadores do contraditório, ampla defesa e
dignidade da pessoa humana, compete ao Poder Judiciário analisar e julgar os fatos
tidos como ilícitos, na forma da Constituição e da lei; restando comprovada a prática
do ato ilícito, cumpre ao julgador aplicar as sanções penais cabíveis, atendendo às
circunstâncias judiciais e demais parâmetros previstos no ordenamento jurídico.
Neste ponto, a função do Poder Judiciário, é de fundamental importância
para o cumprimento da lei estabelecida, reprimindo erros e apontando acertos, a
fim de iluminar o caminho dos administradores de bens públicos, que, de forma
invigilante, deturpam e defraudam os cofres públicos em detrimento de interesses
pessoais. A democracia legítima, com instituições sólidas, com deferência a lei e
com atuação eficiente de funcionários públicos, consolida a atuação do Judiciário
para reprimir tais abusos.
Em face dessa conjuntura, o modelo de democracia deliberativa ganha
destaque. No atual estado da arte, em que as informações circulam de maneira
mais rápida perante a população e tendo em mente a transparência exigida para a
realização dos atos públicos, é clarividente que o papel da sociedade civil não pode
ficar adstrito apenas à participação do processo eleitoral.
Ora, é necessária uma participação mais direta dos indivíduos no domínio
da esfera pública, em um processo contínuo de discussão e crítica reflexiva das
normas e valores sociais. Não se pode perder de vista que a esfera pública é um local
destinado à deliberação comunicativa, um espaço onde os indivíduos interagem
uns com os outros, debatem as decisões tomadas por autoridades políticas, gerando
uma rede de procedimento comunicativos.

5 POLÍTICAS PÚBLICAS DECORRENTES

Entretanto, da análise dos acórdãos trazidos ao debate, verifica-se, em


linhas gerais, que as penas propostas pelo legislador brasileiro são ínfimas em
relação ao crime praticado. Ainda que os julgadores (em instância inicial e final)

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Flávio Barboza de Castro

reconheçam a gravidade dos fatos e a sanha em lesar os cofres públicos por parte
dos administradores municipais, ficam de mãos amarradas, pois não lhes restam
outra alternativa senão aplicar as brandas leis que tratam sobre o tema.
Além do mais, deve-se observar que a natureza das penas previstas para
os crimes julgados nos acórdãos referendados permite que as penas privativas
de liberdade sejam substituídas pelas restritivas de direitos, igualmente aplicadas
em parâmetros mínimos, não representando, ao fim e ao cabo, uma verdadeira
punição. Isto é a pena ao final aplicada não guarda qualquer identidade com a
onerosidade do fato típico descrito no tipo penal.
Há, ainda, discussão sobre os fatos analisados nos acórdãos trazidos a
debate no que se refere ao conflito aparente entre a Lei 8.666/93 e o Decreto-Lei
201/67. Veja-se que há dispositivos previstos no Decreto-Lei 201/67 que tratam de
igual tema proposto pela Lei 8.666/93, tangentes às formas de contratação de bens,
serviços ou obras pela Administração Pública.
Em que pese as penas previstas da Lei 8.666/93 sejam, em geral, mais
severas que as do Decreto-Lei 201/67, impõe consignar que no Decreto-Lei 201/67
é prevista a pena secundária de perda ou inabilitação do cargo ou função pública
pelo prazo de cinco anos, pena esta muito mais coerente com os anseios públicos.
Nesse sentido, o que se verifica é um conflito aparente entre as normas, pois, há
a utilização da Lei de Licitações por ela ser mais nova e específica, em face do
Decreto-Lei que, por sua vez, contempla a inabilitação do cargo ou função pública,
o que se comporta de forma mais adequada quando da ocorrência dessas infrações.
Apesar da Lei da Ficha Limpa alterar a Lei Complementar no  64, de 18
de maio de 1990, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a
probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, prevendo no
artigo 1º, inciso I, alínea c, a inelegibilidade ao “Governador e o Vice-Governador
de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus
cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual,  da Lei
Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições
que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes
ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos”.
Com esse olhar, é de se afirmar que a legislação deve ser modificada, para
não dar espaço a interpretações errôneas que possam beneficiar o agente público
que comete ato ilícito contra a Administração Pública. O aprimoramento da
legislação é o ponto inicial ao combate à corrupção.

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Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

O Poder Legislativo é o lócus ideal de discussão e deliberação sobre os


parâmetros de convívio social, senão o primeiro, principalmente de vedação de
condutas, nesse toar, principalmente no combate à corrupção9.
, precisa-se uma estrutura preparada para julgar crimes contra a
Administração Pública, disposta para enfrentar os casos envolvendo atos de
corrompimento. Faz-se Mas, além de uma legislação em consonância e um Poder
Judiciário no combate à corrupção necessária a criação no Poder Judiciário de
varas especializadas a esse fim e em todo território nacional, a corrupção não
ocorre apenas em grandes capitais, mas em municípios pequenos, ao lado de casa.
Ainda, o próprio Poder Executivo e Legislativo devem possuir mecanismos
internos de combate à corrupção. Um exemplo, nesse sentido, pode-se mencionar a
ação do Ministério Público em Santa Catarina, que através do Programa "Unindo
Forças - Fortalecimento dos Controles Internos Municipais" visa diagnosticar e
reforçar as estruturas de controle interno nas prefeituras municipais para prevenir
e combater a corrupção. O principal foco consiste em que cada município possua
Controladorias autônomas e eficientes para apurar e punir desvios administrativos,
tornando-se importantes aliadas do Ministério Público no enfrentamento à
improbidade administrativa10.
É preciso uma ação conjunta! O combate à corrupção não se dá apenas
por um órgão especializado, por um Poder Judiciário proativo ou pelo Ministério
Público, isoladamente, o combate deve vir de forma dialogada, cooperativa, entre
todos os envolvidos na teia corruptiva, e aqui fala-se da própria sociedade. Dessa
maneira, apenas uma democracia deliberativa poderá ser mais um instrumento de
combate a corrupção.
Tendo em mente a necessidade de uma ação coletiva responsável e do papel
do cidadão como ator político nas discussões envolvendo os conceitos de cidadania
e de comunidade, ergue-se a democracia deliberativa capaz de fazer vingar os
debates sobre maior responsabilidade dos governantes com a coisa pública.
Neste ponto, são as ações comunicativas originadas da sociedade civil
com um propósito determinado que podem, por exemplo, fazer ressurgir o debate

9 – LEAL, Rogério Gesta. Riscos dos déficits democráticos à sustentabilidade dos equilíbrios
institucionais entre os poderes do Estado de Direito.
10 – SANTA CATARINA. Ministério Público. MPSC lança programa para fortalecer o controle
interno dos municípios. MPSC, 2015. Disponível em:< https://www.mpsc.mp.br/noticias/mpsc-
lanca-programa-para-fortalecer-o-controle-interno-dos-municipios>. Acesso em: 23 jul. 2018.

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Flávio Barboza de Castro

da penalização mais severa daqueles que maltratam os cofres públicos, assim como
daqueles que auferem ilícitos lucros, em detrimento das finanças públicas.

6 CONCLUSÃO

Está-se diante de um tema que interliga, de um lado, crimes praticados por


agentes públicos, que se expressam por enfermidade da consciência e, de outro, o
lado “negro da força” destinado a erradicá-lo. Imperativo, portanto, a intervenção
do Poder Judiciário, pilar da democracia, reparando condutas e apontando o
controle de normas e sanções mais rígidas para minimizar a problemática da
corrupção.
Nota-se, portanto, nos acórdãos ora examinados, ainda que os órgãos
de controle e o Judiciário tenham dado efetividade para reprimir tais ações
pelos gestores públicos, à exemplo do rigor da 4ª Câmara Criminal do TJRS,
indubitalvelmente, o cenário continua sendo de expropriar o bem público sem
qualquer despudor, revelando-se a relação de promiscuidade entre o público e o
particular.
Parece cristalino, portanto, que o descompromisso com a res pública advém
também de um ato de vontade consciente do agente público, gerando um resultado
danoso previsível no manejo das contas públicas, impulsionando os órgãos de
fiscalização ao um controle mais minudente, consequentemente, a desenvolver
políticas públicas eficientes, como referido alhures, no Estado de Santa Catarina.
Nesse contexto, é importante sublinhar que a responsabilidade do gestor
público transita pela ação preventiva, através do fortalecimento do Controle Social
e da efetiva participação da sociedade civil no governo, de outro, sensibiliza o
cidadão de que a gestão pública deve ser monitorada e compartilhada por aqueles
que dela dependem. Nestas condições, a sociedade é responsável pela invigilância
dos governos que selecionam quando deles não participam efetivamente.
Frente ao todo exposto, entende-se que as práticas corruptivas nascem
junto com o país, o qual enfrenta um desafio no combate a esta chaga, todavia,
conta com instituições propostas a esse fim. No entanto, a união de forças é a
maior arma, não sendo uma ou outra instituição responsável só por essa tarefa. A
corrupção passa de assunto velado a publicizado, a criticado e a combatido

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Democracia, Judiciário e Administração Pública frente a jurisprudência da 4ª Câmara Criminal do TJRS

REFERÊNCIAS

LEAL, Mônia Clarrisa Hennig. A jurisdição entre a judicialização e o


ativismo judicial. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; ______. (Orgs.). Direitos
sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 13. Santa Cruz do Sul:
Edunisc, 2013, p. 217-247.
LEAL, Rogério Gesta. Demarcações conceituais preliminares da democracia
deliberativa: matrizes habermasianas. In: ______ (Org.) A democracia deliberativa
como nova matriz de gestão pública: alguns estudos de caso. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2011.
______. Riscos dos déficits democráticos à sustentabilidade dos equilíbrios
institucionais entre os poderes do Estado de Direito.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://
www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 16 jul. 2018.
RUIZ, Juan Cámara. Judicialización y activismo judicial en España. In:
LEAL, Rogério Gesta.; LEAL, Mônia Clarissa Hennig Leal. (Orgs.). Ativismo
judicial e déficits democráticos: algumas experiências latino-americanas e europeias.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SANTA CATARINA. Ministério Público. MPSC lança programa para
fortalecer o controle interno dos municípios. MPSC, 2015. Disponível em:<
https://www.mpsc.mp.br/noticias/mpsc-lanca-programa-para-fortalecer-o-
controle-interno-dos-municipios>. Acesso em: 23 jul. 2018.
TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. 2017. Disponível em <https://
transparenciainternacional.org.br>. Acesso em: 16 jun. 2018

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