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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

MÚSICA VIVA:
NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A PRÁTICA DA IMPROVISAÇÃO MUSICAL

LUÍS LEITE

Rio de Janeiro, 2015


MÚSICA VIVA:
NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE A PRÁTICA DA IMPROVISAÇÃO MUSICAL

por

LUÍS LEITE

Tese submetida ao Programa de


Pós-Graduação em Música do
Centro de Letras e Artes da
UNIRIO, como requisito parcial
para obtenção do grau de
Doutor, sob a orientação da
Profa. Dra. Laura Tausz Ronai.

Rio de Janeiro, 2015


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

REITOR
Luiz Pedro San Gil Jutuca

VICE-REITOR
José da Costa Filho

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Ricardo Cardoso

DECANA DO CENTRO DE LETRAS E ARTES


Carole Gubernikoff

COORDENADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA


Mônica de Almeida Duarte
Marcelo Carneiro de Lima

Leite, Luís.

L533 Música viva : novas perspectivas sobre a prática da


improvisação

musical / Luís Leite, 2015.

viii, 159 f. ; 30 cm

Orientadora: Laura Tausz Ronai.

Autorizo a cópia da minha tese “Música Viva: Novas perspectivas sobre a prática da
improvisação musical” para fins didáticos.
AGRADECIMENTOS

À minha esposa Erika Ribeiro, meu grande amor e parceira de todas as horas.

Ao brilhante Nelson Veras, pela grande inspiração artística e participação neste


trabalho.

Aos amigos e parceiros musicais Sérgio Krakowski, Ivo Senra e Lúcio Vieira
pelas contribuições essenciais a esse trabalho e por compartilhar do ideal de
perseguir um eterno amadurecimento enquanto artista.

Aos meus pais Marisa Palacios e José Leite, pelo apoio incondicional, assim
como Sérgio Rego e Suzete Leite, pelo incentivo de sempre. À Thereza Palacios,
Zito e Otilia Leite, minha gratidão por seus ensinamentos e estímulos à minha
carreira de músico.

A Robert Anthony e Marcela Cavalari, pelos indispensáveis apoios técnicos e


aos demais alunos da UFJF, pelo entusiasmo contagiante na busca pelo
conhecimento.

Aos meus mestres formais no violão: Alvaro Pierri, Nicolas de Souza Barros e
Carlos Alberto de Carvalho, e aos informais também: Nelson Veras, Antal Pusztai e
Guinga.

Aos professores André Pires (UFJF), Humberto Amorim (UFRJ), Luis Carlos
Justi (UNIRIO) e Thaís Nicodemo (UNICAMP) pela leitura dedicada e compromisso
acadêmico; e Nicolas de Souza Barros, Clayton Vetromilla e Marco Túlio Pinto pelas
considerações pertinentes por ocasião das bancas que compuseram ao longo do
curso.

A Rafael Vernet e Bernardo Ramos pelas valiosas conversas ao longo deste


processo. A Zé Paulo Becker e Elodie Bouny, pelo apoio.

À UFJF pela bolsa Proquali durante o tempo de meus estudos. Ao Sr. Aristides
e aos demais funcionários do PPGM, assim como seus coordenadores.

Um agradecimento especial à minha orientadora Profa. Laura Ronai pela


generosa acolhida, inesgotável paciência, valiosa orientação e por acreditar no valor
deste trabalho.
LEITE, Luis C. Música Viva: Novas perspectivas sobre a prática da
improvisação musical. 2015. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-
Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta tese busca discutir questões intrínsecas ao processo criativo da improvisação


musical, assim como mecanismos inerentes à sua prática. São expostos aspectos
históricos que demonstram sua presença ao longo da história da música, assim
como sua importância na construção de estilos e linguagens musicais hoje inseridos
no repertório da música de concerto. A partir do estudo de leis que regem os
princípios básicos da improvisação, é elaborada uma proposta de desenvolvimento
nesta área a partir de referências didáticas e teóricas da atualidade e de
conhecimentos que constituem o universo da música popular. São também
analisadas novas tendências da improvisação através do estudo sistemático de
materiais como os modos de transposição limitada de Olivier Messiaen, uso de
ostinatos e compassos mistos, levando em consideração a maneira como
instrumentistas estabelecem novos paradigmas através da construção e
desenvolvimento de linguagens de improvisação originais. De modo a exemplificar
de que forma o músico da nova geração está ao mesmo tempo em contato com os
pilares da improvisação e com novas vertentes atuais, é realizada uma entrevista e
análise de transcrições de solos improvisados do violonista Nelson Veras, um dos
expoentes da vanguarda da improvisação contemporânea. Como resultado final, é
apresentado um produto fonográfico fruto da imersão e experimentação artística
com o material estudado ao longo desta pesquisa.

Palavras-chave: Improvisação. Música instrumental brasileira. Jazz. Violão


Contemporâneo. Nelson Veras. Modos de Messiaen.
LEITE, Luis C. Música Viva: New perspectives about Musical Improvisation
practice. 2015. PhD Thesis (Doutorado em Música) – Programa de Pós-
Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

The main objective of this thesis is to discuss intrinsic issues related to the creative
process of musical improvisation, as well as the multiple aspects that define its
practice. Historical elements that demonstrate its presence throughout music history
are brought to light, as well as its importance to the development of musical styles
that are part of today’s Western art music repertoire. Based on the study of the laws
that apply to the fundamental principles of improvisation, a development proposition
was elaborated taking into consideration didactic and theoretical references of our
time and knowledge from popular music practice. New trends of improvisation are
also analyzed with the help of modern theoretical components such as Olivier
Messiaen’s modes of limited transposition, solos over ostinatos and odd measures,
considering the way musicians set new paradigms by building and developing
original improvisation languages. In order to show how the new generation is in
contact with both tradition and new approaches of musical improvisation, an interview
was conducted with Nelson Veras, one of the leading exponents in contemporary
improvisation. Transcriptions of his improvised solos were analyzed as well. The final
product is presented in the form of a CD, which is the result of the immersion and
artistic experimentation with the material studied during this research.

Keywords: Improvisation. Brazilian Instrumental Music. Jazz. Contemporary Guitar.


Nelson Veras. Messiaen Modes.
LEITE, Luis C. Música Viva: Neue Perspektiven an die musikalische
Improvisationspraxis. 2015. Dissertation (Doktoratstudium) – Programa de Pós-
Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

ZUSAMMENFASSUNG

Diese Dissertation zielt darauf ab, Probleme bezüglich des kreativen Prozesses der
musikalischen Improvisation und ihrer Mechanismen in der Praxis zu diskutieren. Es
werden historische Aspekte und ihre Präsenz in der Musikgeschichte sowie ihre
Bedeutung bei der Konstruktion von musikalischen Stilen und Sprachen des
klassischen Musikrepertoires vorgestellt. Aus dem Studium der Gesetze, die die
Grundlagen der Improvisation regeln, wurde ein Vorschlag für die Entwicklung in
diesem Bereich aus didaktischen und theoretischen Referenzen unserer Zeit und
unserer Kenntnisse verarbeitet. Neue Trends der Improvisation werden durch das
Studium der neuen ästhetischen Tendenzen wie Olivier Messiaens Modi mit
begrenzten Transpositionsmöglichkeiten, Ostinati, und ungerade Takten analisiert,
unter Berücksichtigung der Art und Weise, wie Musiker neue Paradigmen durch die
Entwicklung originaler Improvisationssprachen behandeln. Um zu zeigen, wie die
neue Musikergeneration gleichzeitig mit der Tradition sowie mit aktuellen Aspekten
der Improvisation in Kontakt ist, wurde ein Interview und eine Analyse von
Transkriptionen der improvisierten Soli des Gitarristen Nelson Veras – einer der
Vertreter der zeitgenössischen Improvisation – durchgeführt. Am Ende wird ein
phonographisches Produkt vorgestellt, das durch die Beschäftigung mit dem Thema
und dem Durchführen künstlerischer Experimente elaboriert wurde.

Stichworte: Improvisation. Brasilianischer Jazz. Zeitgenössische Gitarre. Nelson


Veras. Messiaen
Lista de figuras

Figura 1: Partitura típica de jazz: Take Five .............................................................. 39


Figura 2: Modos gregos............................................................................................. 41
Figura 3: Campo harmônico de Dó Maior ................................................................. 42
Figura 4: Escala menor melódica .............................................................................. 43
Figura 5: Modos da menor melódica ......................................................................... 44
Figura 6: Campo harmônico da menor melódica ...................................................... 45
Figura 7: Quadro de Tensões dos modos da escala maior....................................... 48
Figura 8: Demonstração de nota evitada .................................................................. 48
Figura 9: Desenho vertical......................................................................................... 49
Figura 10: Desenho horizontal .................................................................................. 50
Figura 11: Escala de Fá Maior .................................................................................. 50
Figura 12: Escala de Fá♯ Maior................................................................................. 50
Figura 13: Escala de Sol Maior ................................................................................. 51
Figura 14: Desenho Fá maior .................................................................................... 52
Figura 15: Desenho Dó menor melódica ................................................................... 52
Figura 16: Desenhos de Dó maior............................................................................. 53
Figura 17: Desenhos de Dó menor melódica ............................................................ 54
Figura 18: Dó Maior no braço do violão .................................................................... 54
Figura 19: Notas-alvo ................................................................................................ 56
Figura 20: Frase acompanhando o discurso harmônico ........................................... 57
Figura 21: Diferentes nomenclaturas e escalas para o mesmo acorde .................... 60
Figura 22: J.S: Bach – Fuga BWV 998 para alaúde solo .......................................... 63
Figura 23: J. S. Bach – Preludio BWV 881 (Cravo bem temperado Vol. II) .............. 64
Figura 24: J.S. Bach – Matthäus-Passion; Aria ‘Blute nur du liebes Herz’ ................ 64
Figura 25: W. A. Mozart – Concerto para Piano n. 17 K453 em Sol M (1° Mov.) ..... 65
Figura 26: W. A. Mozart – Sonata para violino e piano K454 em Sib Maior ............. 65
Figura 27: Diferentes solos de Charlie Parker........................................................... 66
Figura 28: Frase de Blues ......................................................................................... 67
Figura 29: Estrutura triádica sob o desenho vertical (VERAS).................................. 87
Figura 30: Exemplo de aplicação da menor melódica (VERAS) ............................... 87
Figura 31: Mesma relação sobre a harmonia (VERAS) ............................................ 88
Figura 32: Compasso 11 do solo de St John (VERAS) ............................................. 88
Figura 33: Simulação das relações de tensão e relaxamento (VERAS) ................... 88
Figura 34: Exemplo de prioridade melódica em vamp (VERAS)............................... 89
Figura 35: Arpejos (VERAS) ...................................................................................... 90
Figura 36: Utilização de figuras de 7 em ‘Wave’ (VERAS)....................................... 91
Figura 37: Saltos na improvisaçãoo ao violão (VERAS) ........................................... 91
Figura 38: Repetição motívica (VERAS) ................................................................... 93
Figura 39: Os sete modos de transposição limitada, de Olivier Messiaen ................ 98
Figura 40: Modo M3 .................................................................................................. 99
Figura 41: Sensação de politonalidade ..................................................................... 99
Figura 42: Possibilidades harmônicas no modo M3 ................................................ 102
Figura 43: Possibilidades harmônicas no modo M4 ................................................ 102
Figura 44: Possibilidades harmônicas no modo M6 ................................................ 103
Figura 45: Solo de Bo van der Werf na peça Calcutta ............................................ 105
Figura 46: M4 e os graus 1-♭9-9-4 transpostos para seu trítono ............................ 107
Figura 47: Tema A de Berçário de Nuvens ............................................................. 107
Figura 48: Tema B de Berçário de Nuvens ............................................................. 108
Figura 49: Frase de saída do solo de violão ........................................................... 109
Figura 50: Frase de saída do solo de Wurlitzer....................................................... 109
Figura 51: M6 e os graus 1-2-3-4 transpostos para seu trítono .............................. 111
Figura 52: Tema de Partida (NOMAD) .................................................................... 112
Figura 53: Ostinato de wurlitzer............................................................................... 113
Figura 54: Ostinato de violão................................................................................... 113
Figura 55: Exemplo de Ostinato .............................................................................. 115
Figura 56: Exemplos de compassos mistos ............................................................ 116
Figura 57: Ostinatos + compassos mistos (NEMESIS) ........................................... 117
Figura 58: Ostinato em 11/8 (NEMESIS) ................................................................ 118
Figura 59: Diálogo de frases atonais (NEMESIS) ................................................... 119
Figura 60: Ostinato em 9/8 (NEMESIS) .................................................................. 120
Figura 61: Ostinato Mirante (NEMESIS) ................................................................. 121
Figura 62: Linha do baixo (NEMESIS) .................................................................... 121
Figura 63: Tema de Mirante feito pela guitarra (NEMESIS) .................................... 122
Figura 64: Solo de bateria (NEMESIS).................................................................... 123
Figura 65: Tema de Minguante (NEMESIS) ............................................................ 124
Figura 66: Ostinato em 4/4 (NEMESIS) .................................................................. 125
Figura 67: Ostinato em 3/4 (NEMESIS) .................................................................. 125
Figura 68: Motivo inicial Olho de Boi (NEMESIS) ................................................... 126
Figura 69: Frase de saída do solo de guitarra (NEMESIS) ..................................... 127
Figura 70: Ostinato em 7/8 (NEMESIS) .................................................................. 128
Figura 71: Tema principal (NEMESIS) .................................................................... 129
Figura 72: Ostinato de guitarra ................................................................................ 130
Figura 73: Ostinato em 10/8 (NEMESIS) ................................................................ 130
Lista de exemplos musicais

Exemplo Musical 1: “Take five”, Dave Brubeck Trio.................................................. 40


Exemplo Musical 2: “Take five”, George Benson ...................................................... 40
Exemplo Musical 3: Demonstração de nota evitada ................................................. 49
Exemplo Musical 4: Notas-Alvo ................................................................................. 56
Exemplo Musical 5: Frase acompanhando o discurso harmônico ............................ 57
Exemplo Musical 6: Diferentes escalas para o mesmo acorde ................................. 60
Exemplo Musical 7: Fuga BWV 998 .......................................................................... 63
Exemplo Musical 8: J. S. Bach – Preludio BWV 881................................................. 64
Exemplo Musical 9: J.S. Bach – Matthäus-Passion .................................................. 64
Exemplo Musical 10: “The Lick” ................................................................................ 67
Exemplo Musical 11: Possibilidades harmônicas no modo M3 ............................... 102
Exemplo Musical 12: Possibilidades harmônicas no modo M4 ............................... 102
Exemplo Musical 13: Possibilidades harmônicas no modo M6 ............................... 103
Exemplo Musical 14: Octurn – Calcutta .................................................................. 103
Exemplo Musical 15: Berçário de Nuvens ............................................................... 106
Exemplo Musical 16: Berçário de Nuvens – Ao vivo ............................................... 110
Exemplo Musical 17: Partida ................................................................................... 111
Exemplo Musical 18: Metrópole (NEMESIS) ........................................................... 117
Exemplo Musical 19: Mirante (NEMESIS) ............................................................... 120
Exemplo Musical 20: Minguante (NEMESIS) .......................................................... 123
Exemplo Musical 21: Olho de Boi (NEMESIS) ........................................................ 126
Exemplo Musical 22: Fênix (NEMESIS) .................................................................. 128
QR-Code

Para melhor compreensão dos temas abordados, serão incluídos ao longo do


trabalho exemplos musicais acessados através do código de barras QR Code 1.
Esses códigos são utilizados para armazenar endereços na internet que
consequentemente irão direcionar o leitor para um site, vídeo, etc., e podem ser
facilmente escaneados por qualquer celular smartphone ou tablet com a ajuda de
aplicativos específicos, os quais tem a capacidade de ler o link e abrir o respectivo
conteúdo rapidamente. A utilização do QR Code tornou-se popular juntamente com
o uso da internet em celulares, e atualmente qualquer smartphone possui esse tipo
de tecnologia disponível.

Há inúmeros aplicativos destinados à leitura de QR Codes, como o QR


Reader (disponível para iOs), QR Code Reader e Barcode Scanner (disponíveis
para Windows Phone, Android e Blackberry), entre muitos outros. Todos estes
podem ser adquiridos gratuitamente através da loja de aplicativos (app store) do
sistema operacional utilizado.

Através do uso dessa nova tecnologia, torna-se então possível não apenas ler
a tese, mas ouví-la.

De maneira a assegurar que o material musical apresentado esteja acessível


a todos, os exemplos também foram disponibilizados na internet, e encontram-se
online no site:

www.soundcloud.com/doutoradoluisleite/sets/exemplosmusicais

1
Sigla para Quick-Response Code, ou ‘código de resposta rápida’ em português.
Sumário

Introdução.................................................................................................................... 1

Capítulo 1: Panorama histórico da improvisação ........................................................ 6

1.1. Considerações Iniciais ............................................................................. 6

1.2. A Presença da Improvisação na Música de Concerto ........................... 10

1.3. O Declínio da Improvisação ................................................................... 18

1.4. O Choro e o Jazz: Surgimento de uma Música Improvisada ................. 21

Capítulo 2: Os três pilares da Improvisação.............................................................. 30

2.1 Fundamentos .......................................................................................... 35

2.2 Vocabulário.............................................................................................. 61

2.3 Flexibilidade............................................................................................. 73

Capítulo 3: Novas tendências da improvisação ........................................................ 81

3.1 Nelson Veras ........................................................................................... 84

3.2 Modos de Messiaen ................................................................................ 97

3.3 Proposta de Criação Sonora: Nemesis ................................................. 114

Conclusão................................................................................................................ 131

Referências Bibliográficas ....................................................................................... 136


INTRODUÇÃO

Eu costumava pensar: Como músicos de jazz escolhem suas notas


assim, do nada? Eu não tinha ideia do conhecimento que era
necessário. Era como mágica pra mim – Calvin Hill (BERLINER, 1994,
Kindle Edition pos. 356).2

Embora o gesto de criar melodias em tempo real possa parecer algo mágico
ou incompreensível para o leigo, os processos cognitivos que compreendem tal
habilidade são regidos por parâmetros próprios. Não é de forma randômica nem ‘por
acaso’ que o músico toca uma nota ou outra durante sua execução. Suas escolhas
se baseiam em conhecimentos teóricos específicos, necessários, por exemplo, para
determinar o uso das notas e do material musical empregado.

Mas como desenvolver a habilidade de improvisar? Não seria ‘estudar o


inesperado’, ou ‘se preparar para o espontâneo’ profundas contradições em si?

A presente tese tem como objetivo discutir os aspectos intrínsecos ao


processo criativo da improvisação, com o intuito de ajudar a esclarecer os
mecanismos inerentes à sua prática.

Entende-se que um dos papéis da academia seja o de interagir com a


produção de seu tempo e refletir sobre tendências da atualidade, estudando e
compreendendo o passado ao mesmo tempo em que projeta perspectivas de
desdobramentos futuros. Embora a improvisação musical seja uma disciplina de
grande relevância para o fazer musical de todas as culturas e épocas da história da
música, ainda é um tema carente de produções acadêmicas no Brasil. A confecção
de trabalhos que apresentem propostas objetivas para o desenvolvimento das
habilidades de improvisação nos dias de hoje se revela, portanto, como algo de

2
I used to think: How could jazz musicians pick notes out of thin air? I had no idea of the
knowledge it took. It was like magic to me – Calvin Hill.
2

grande contribuição para a desmistificação progressiva desta prática e para situá-la


como paradigma legítimo de um músico da atualidade.

Esta tese visa justamente à articulação entre o rigor formal que rege a
academia e os saberes que constituem o universo popular, sem perder de vista a
colaboração de ambas as vertentes para os estudos musicais. Contribuições ao
campo de produção dessa área sem dúvida fomentam intercâmbios de ideias e
promovem dinâmicas de interação com quem compõe e desenvolve linguagens de
improvisação hoje em dia.

Sob tal perspectiva é que se propõe uma abordagem crítica sobre a


improvisação com o intuito de problematizar desmistificando, ou desmistificar
problematizando, aspectos relacionados à sua técnica e execução. Do ponto de
vista pedagógico, a improvisação se constitui como relevante ferramenta no
desenvolvimento do potencial criativo do músico em formação. Em função do
investimento na liberdade de manipulação do texto, sua prática expande a
intimidade com todo tipo de material musical, inclusive pressupostos tipicamente
associados ao estudo da interpretação, tais como: fraseado, agógica, respiração, e
ritmo. Também impulsiona a inventividade na medida em que presume uma reflexão
sobre a escolha das notas e seu subsequente impacto na condução da
expressividade do discurso musical.

Com isso em mente, serão apresentados conceitos a respeito da


improvisação, perpassando aspectos pertinentes à concepção ‘presente, passado e
futuro’ na expectativa de instigar à reflexão e uma maior compreensão do gesto de
improvisar.

O primeiro capítulo tratará de identificar a presença da improvisação na


história da música, investigando seu comportamento no decorrer dos séculos, tendo
como foco principal a compreensão do papel que desempenhou através do tempo.

Para tanto, buscar-se-á delimitar conceitualmente essa prática definindo como


ponto de partida seu referencial histórico e, neste primeiro momento, a música de
concerto europeia como recorte principal – a qual representa a mais vasta parcela
3

do repertório estudado nos conservatórios e corpo substancial do que se faz no


ambiente da música de concerto atualmente.

Em seguida, será discutido o processo de declínio da improvisação na música


de concerto através da configuração de novos paradigmas surgidos a partir do final
do século XIX. Será visto também o nascimento de dois estilos irmãos marcados
desde o início pela forte presença da improvisação: o choro e o jazz.

Assim, enquanto o primeiro capítulo tratará do ‘passado’, o segundo se


ocupará do ‘presente’, demonstrando os princípios básicos da improvisação na
atualidade. Será apresentada uma proposta original de compreensão conceitual da
improvisação baseada em referências didáticas e teóricas. Nela estarão contidas
sugestões de estudo e desenvolvimento musical tomando sua prática como
possibilidade de criação dentro do cenário da música e abordando os diferentes
aspectos concernentes ao processo criativo da improvisação musical no jazz e na
música instrumental brasileira3. Estes elementos são organizados em três pilares:
Fundamentos, Vocabulário e Flexibilidade.

Pretende-se pensar de que maneira a improvisação se utiliza de


componentes retóricos de forma a potencializar a expressão musical, uma vez que
ela almeja, em última instância, a comunicação, a transmissão de experiências
emotivas e a instalação de estados emocionais no decorrer de seu acontecimento. A
improvisação parte, portanto, de uma perspectiva interpretativa quando opta por este
ou aquele caminho em sua execução.

Serão apresentadas também questões a respeito da improvisação enquanto


ferramenta de estudo e criação, assim como paralelos entre sua prática na música
popular e alguns conceitos de harmonia estabelecidos na atualidade.

No terceiro capítulo apresentam-se alguns dos novos conceitos pertinentes à


prática da improvisação, como a proposta de integração de diferentes vertentes,

3
Por música instrumental entenda-se a vertente que normalmente se associa à expressão
musical influenciada pelo jazz e que se utiliza de elementos organizados através de
conceitos relacionados à prática da improvisação.
4

novos materiais harmônicos e melódicos e ostinatos rítmicos. Buscando exemplificar


o perfil de músico da nova geração, optou-se por entrevistar e analisar transcrições
de solos improvisados do violonista Nelson Veras por se acreditar que ele, além de
ser considerado um dos expoentes do violão atual, representa uma espécie de
síntese da cena contemporânea em termos de improvisação.

A entrevista foi organizada abordando a discussão sobre suas criações


conceituais, discutindo o panorama atual da música improvisada e verificando as
diretrizes e parâmetros que regem a estética de sua prática na atualidade. Ela se
justifica na medida em que acredita-se que, a partir de sua análise, seja possível
estabelecer uma reflexão e uma compreensão sobre o gesto de improvisar na
contemporaneidade, que, subsequentemente, produzam um aprendizado profícuo a
respeito desse tema.

A tese também propõe um viés prático. Inserida na linha de pesquisa de


Práticas Interpretativas do Programa de Pós-graduação em Música da UNIRIO
(PPGM), apresentará, em paralelo às formulações teóricas, propostas musicais
concretas, demonstrando a aplicação direta dos elementos discutidos. Por acreditar
que a academia deva também produzir resultados tangíveis na área de música,
nada mais coerente que o objeto sonoro. De forma a oferecer uma interpretação a
respeito dos desdobramentos das discussões apresentadas, foi idealizada uma
proposta de utilidade prática: um produto musical, fruto da profunda imersão e
experimentação artística com o material estudado. Luis Leite: Nemesis4 é o nome do
disco-produto resultante deste processo e explora a formação de trio (guitarra
elétrica: Luís Leite, sintetizadores: Ivo Senra e bateria: Lucio Vieira).

Toda argumentação teórica adquire uma outra profundidade ao ser vivenciada


na prática, principalmente na música: experimentar o que soa bem, como aplicar as
sonoridades, quais intervalos funcionam melhor, etc. traz, em qualquer situação,
uma riqueza indiscutível ao processo de aprendizado musical. Durante os quatro

4
Nemesis aqui se refere ao sentido de antagonista, a outra face, o outro lado da moeda. Foi
o título escolhido por ser um projeto todo realizado com guitarra elétrica, a perfeita nemesis
do violão, instrumento original do autor.
5

anos de duração do curso de doutorado foi possível pesquisar não apenas os


aspectos técnicos e teóricos dos novos materiais estéticos, como sua poética e
dramaturgia, explorando o aspecto lírico das linguagens mais modernas de
improvisação da atualidade.

A intenção ao envolver uma concepção prática dos novos materiais dentre os


objetivos da tese é, portanto, criar um substrato tangível para a real exploração do
tema, procurando vivenciar a experiência artística profundamente. Entende-se que,
dessa maneira, a tese ganha não apenas uma dimensão concreta na arte que a
define – a música – como também representa uma declaração sonora a respeito das
questões aqui levantadas.
6

CAPÍTULO 1: PANORAMA HISTÓRICO DA IMPROVISAÇÃO

1.1. Considerações Iniciais

Improvisação é uma palavra frequentemente associada aos conceitos de


espontaneidade e aleatoriedade. Improvisar, no senso comum, é um verbo que
carrega consigo o significado do imprevisto, ou impensado, do súbito e repentino.
Também é possível observar o emprego desse termo no cotidiano, quando alguém
se vê diante de uma situação inesperada e ‘improvisa’.

Se considerada através de um viés semântico, improvisação é uma


expressão que remete à premissa da incerteza e uma das questões que
imediatamente se apresentam é o fato de seu significado linguístico sugerir a
presença de um coeficiente de risco. Aplicado à música, seria o risco de tocar uma
nota inadequada, de conduzir um discurso incoerente ou de ser pobre na
preparação de uma intenção musical. Por outro lado, esse risco pode se converter
na possibilidade da produção de algo original e surpreendente. Em outras palavras,
o significado de improvisar está associado a algo que está além do controle e da
certeza, independentemente da qualidade do resultado.

Na música, a palavra improvisação se estabeleceu como uma expressão


referente a uma habilidade específica, ligada à ideia de criação espontânea,
normalmente associada a um discurso musical idiomático. Ainda que em grande
parte de suas manifestações a improvisação musical pouco tenha de completamente
aleatório, não deixa de ser interessante contemplar a ideia de risco contida em sua
própria essência conceitual.

Em Musical Improvisation: Art, Education and Society, Bruno Nettl5 afirma que
o termo improvisação na verdade nunca deveria ter sido adotado para a expressão

5
Bruno Nettl é um reconhecido estudioso da improvisação. Foi o pesquisador responsável
por escrever o verbete ‘Improvisação’ no Dicionário Grove de Música.
7

de tal prática musical (NETTL, 2009, p. ix). É verdade que um ouvinte desavisado
poderia pensar que a improvisação musical aconteceria no momento em que um
músico esquece a partitura em casa e, já no palco, se vê obrigado a improvisar
notas como alguém improvisa um jantar em cinco minutos com as sobras do dia
anterior.

Essa questão fica ainda mais evidente ao se observar que a palavra


improvisação não é comumente usada por músicos que improvisam. Ao comentar
sua prática, os músicos relatam apenas que ‘tocam flamenco’, ‘tocam jazz’ ou
‘simplesmente tocam’ (BAILEY, 1980). Para o improvisador idiomático6, sua prática
não é impensada, nem súbita, nem repentina. É uma linguagem natural,
incorporada, assim como a fala. Informalmente, a palavra improvisação pode estar
ocasionalmente associada à ideia de falta de preparo, como algo carente de
estrutura e metodologia. E isso é tudo que uma improvisação musical idiomática não
é.

Segundo o etnomusicólogo Gerard Béhague, improvisação musical é “uma


liberdade relativa para escolher elementos dentro de normas estilísticas ou regras
próprias de uma cultura específica” (BÉHAGUE, 1980, p.118).7 A improvisação, em
música, está intimamente ligada ao conceito de linguagem musical8, de idiomatismo,
e, portanto, associada a um recorte cultural específico.

Também segundo o Dicionário Grove de Música [Oxford Music Online],


improvisação se refere à “criação de uma obra musical, ou sua forma final, à medida
que está sendo executada. Pode envolver a composição imediata da obra pelos

6
Um músico que toca dentro de um estilo específico e domina a expressão desse ‘idioma’.

7
Improvisation implies a relative freedom to choose elements within stylistic norms or rules
proper to a given culture.

8
No decorrer desta tese se entenderá por linguagem musical o conjunto de elementos
musicais que, compreendidos dentro de uma coerência estética, caracterizam um estilo
específico. Embora seja também possível o uso desta expressão para localizar toda a
música como uma linguagem de expressão do ser humano, no recorte desta tese linguagem
musical será compreendida como o conjunto de elementos musicais que, organizados de
maneira específica, representam um estilo reconhecível por seus pares (COOKE, 1990).
8

executantes, a elaboração ou ajuste da moldura de uma obra já existente, ou


qualquer coisa entre isso” (NETTL, 2015). 9 Essa definição, embora bastante
genérica, comporta as diferentes manifestações de improvisação observadas nas
mais diversas culturas ao longo da história da música ocidental. De fato, alguns
estilos priorizavam ornamentar a melodia original, sem alterar sua essência, outros
fazer versões mais velozes e virtuosísticas de uma melodia apresentada, outros
ainda criar novas melodias com base na progressão harmônica sugerida.

De acordo com o Webster’s New World Dictionary: “Improvisar é compor, ou


simultaneamente compor e executar, no momento e sem nenhuma preparação”
(WEBSTER’S, 1995). 10 A improvisação se dá justamente nesta interseção de
atividades: criação e execução, podendo ser definida como uma composição em
tempo real.

Mas nem sempre a improvisação teve esse esse nome ao longo da história
da música. Ao analisar sua nomenclatura no decorrer dos séculos, é possível
observar que diversos exemplos de gestos musicais atualmente classificados como
improvisação eram conhecidos por outras expressões em suas respectivas épocas:
Divisão, Diminuição, Ornamentação, Grace, Agréments, Florere, Passagi, Redobles,
Diferencia, Fantasia.

O mais interessante é constatar que o emprego dessas diversas palavras


representava atributos conceituais. Divisão ou Diminuição – imediatamente remetem
à expectativa de que o tempo seja dividido, se referindo à diminuição das figuras
rítmicas. A Ornamentação prevê a adição de adereços decorativos sem alterar o
caráter original. A expressão inglesa Grace Note significa literalmente ‘graça’, no
sentido de tornar graciosa uma passagem. A francesa Agréments quer deixar
agradável, e Florere, florir. Os Passagi italianos indicam um movimento melódico. Os

9
The creation of a musical work, or the final form of a musical work, as it is being performed.
It may involve the work’s immediate composition by its performers, or the elaboration or
adjustment of an existing framework, or anything in between.

10
To improvise is to compose, or simultaneously compose and perform, on the spur of the
moment and without any preparation.
9

Redobles propõem a ideia de dobrar o tempo, e as Diferencias, de criar um material


diferente do que foi apresentado. Por sua vez a palavra Fantasia sugere uma
contribuição relacionada ao aspecto mais imaginativo da improvisação.

Incontáveis expressões ao longo da história da música representaram a


mesma coisa: o fazer musical espontâneo. De acordo com o musicólogo húngaro
Ernst T. Ferand (1887-1972) – um dos pioneiros e até hoje um dos mais
reconhecidos estudiosos no campo da improvisação – toda expressão musical teve
sua origem em algum lugar de experimentação:

Não existe praticamente nenhum campo na música que não tenha


sido afetado pela improvisação, nenhuma técnica musical ou forma
composicional que não tenha se originado numa prática de
improvisação ou que não tenha sido influenciada por ela. Toda a
história do desenvolvimento da música é acompanhada de
11
manifestações do impulso de improvisar (FERAND, 1961, p. 5).

A presença da improvisação em manifestações geográfica- e temporalmente


tão distantes, demonstra o quanto ela sempre foi uma prática profundamente
conectada à essência da música. Tal constatação sugere que o fazer musical,
quando considerado dentro de sua natureza espontânea, pressupõe uma constante
coexistência da improvisação, que age fornecendo elementos de variação do
discurso e incrementando o interesse narrativo de uma execução musical.

11
There is scarcely a single field in music that has remained unaffected by improvisation,
scarcely a musical technique or form of composition that did not originate in improvisatory
performance or was not essentially influenced by it. The whole history of the development of
music is accompanied by manifestations of the drive to improvise.
10

1.2. A Presença da Improvisação na Música de Concerto

É difícil imaginar que, em suas origens, música foi qualquer coisa


diferente de uma arte totalmente improvisada. Os primeiros músicos
primitivos foram eles mesmos compositores, intérpretes, e sem dúvida,
12
seu próprio público (KINKELDEY, 1957, p.557).

Reconhecendo a recorrência da improvisação, ainda que conhecida por


outros nomes, fica evidente que sua prática sempre esteve intimamente presente na
musical ocidental, sendo possível observá-la em diversos períodos: da música
eclesiástica antiga, passando pelo estilo fauxbourdon no século XV, pelo
Renascimento e Barroco, até chegar a nossos dias, tendo lugar importante no jazz e
em alguns campos da música contemporânea no século XX (WEGMAN, 2015).

Segundo Scheyder (2006), desde a antiguidade são encontrados registros da


presença da improvisação na prática musical:

Os gregos possuíam um sistema de notação musical mais ou menos


desenvolvido e o utilizavam principalmente como uma ajuda à
memória. O compositor e intérprete eram geralmente uma única e
mesma pessoa. Por causa disso, as melodias, que se transmitiam de
geração em geração, sem escrita prévia, sofriam diversas
transformações segundo o critério do intérprete. As variantes eram
ligadas a diversos processos de ornamentação (SCHEYDER, 2006, p.
13
63).

Na música eclesiástica antiga, a criação musical espontânea (improvisação)


consistia no ato de acrescentar novas linhas a um canto litúrgico, respeitando a

12
It is difficult to imagine that, in its origins, music was anything else than a wholly
improvised art. The earliest primitive musicians were their own composers, their own
performers, and often, doubtless their own audiences.

13
Les Grecs possédaient un système plus ou moins developpé de notation musicale et
l’utilisaient principalement comme un aide-mémoire. Le compositeur et l’interprète étaient
généralement une seule et même personne. De ce fait, les mélodies, qui se transmettaient
de génération en génération, sans écriture préalable, subissaient diverses transformations
selon le gré de l’interprète. Les variantes étaient liées à divers processus d’ornamentation.
11

sonoridade quartal do Organum14. No período que a história chama de Alta Idade


Média (séc. V – X), os cantos de aleluia eram particularmente cheios de floreios e
inventividade musical. O próprio canto gregoriano é baseado em improvisações
posteriormente escritas. No século IX, é possível encontrar exemplos de registros
acerca de improvisação, como no tratado Musica Enchiriadis, que discute polifonia
vocal improvisada (BERKOWITZ, 2014, p.18).

No período chamado por historiadores de Baixa Idade Média (séc. XI – XV),


começam a despontar algumas questões relevantes à prática da improvisação:

A improvisação e a composição irão coexistir se enriquecendo


mutuamente de cada uma de suas técnicas. Uma improvisação a
quatro vozes sobre uma melodia de cantochão, com quintas e oitavas
é descrita pelo clérigo francês Elias Salomon em 1274. Em 1351, o
monge franciscano inglês Simon Tunstede descreve uma combinação
de organum paralelo improvisado em quintas e oitavas, com
ornamentação melódica que se chamava frangere ou florere
15
(SCHEYDER, 2006, p. 64).

Durante os séculos seguintes, séc. XVI e XVII, começam a aparecer registros


sobre a improvisação instrumental, diferenciando-a da improvisação vocal
anteriormente evidenciada nos tratados. Neste novo contexto, os músicos tratavam
as notas escritas como um ponto de partida, improvisando uma decoração
elaborada para as notas escritas de referência. Durante este período, a principal
forma de ornamentação era conhecida por Divisão, ou Diminuição, que, como visto
anteriormente, se baseava em realizar versões mais rápidas, ou com a figura rítmica
mais ‘dividida’, ou ‘diminuída’. Se referia a um tipo de ornamentação envolvendo o
fracionamento de certo número de notas longas em um número maior de notas
curtas (WEGMAN, 2015).

14
Desenvolvido na idade média, se refere a uma melodia cantada com ao menos uma outra
voz adicionada a ela, normalmente em quartas ou quintas perfeitas.

15
l'improvisation et la composition vont désormais coexister tout en s'enrichissant de leurs
techniques réciproques. Une improvisation à quatre voix sur une mélodie de plainchant, avec
quintes et octaves, est décrite par le clerc français Elias Salomon en 1274. En 1351, le
moine franciscain anglais Simon Tunstede décrit une combination d’organum paralléle
improvisé en quintes et octaves, avec ornamentation mélodique s’appelait frangere ou
florere.
12

Um exemplo da real presença desta prática no cotidiano musical da época é o


fato de inúmeros tratados cobrirem o tema de improvisação. A lista a seguir enumera
aqueles que trataram especificamente de improvisação:

Vihuela:16

• Luys Milán: El Maestro. Valencia, 1536.


• Alfonso Mudarra: Tres Libros de Músic. Sevilha, 1546.
• Luys de Narváez: Los Seis Libros del Delphin de Música. Valladolid
1538.
• Enriquez de Valderrábano: Silva de Serenas. Valladolid, 1547.
• Diego Pisador: El libro de Música de Vihuela. Salamanca, 1552.
• Miguel de Fuenllana: Orphenica Lyra. Sevilha, 1554.

Flauta doce:

• Sylvestro Ganassi dal Fontego: Opera Intitulata Fontegara. Veneza,


1535.

Órgão:

• Girolamo Diruta: Il transilvano dialogo sopra il vero modo di sonar organi,


et istromenti da penna. Veneza, 1593.

Ornamentação vocal:

• Giovanni Luca Conforti: Breve et facile maniera d'essercitarsi ad ogni


scolaro. Roma, 1593.

Teoria Musical:

• Adrianus Petit Coclico: Compendium musices. Nürenberg, 1552.

16
Instrumento de corda dedilhada de 5 ou 6 ordens de cordas duplas pertencente à prática
musical dos séculos XV e XVI. Seu uso ocorreu predominentemente na Espanha, mas
houveram expressões relevantes em Portugal e na Itália.
13

• Juan Bermudo: El libro llamado Declaración de Instrumentos Musicales.


Osuna, 1555.
• Hermann Finck: Prattica Musica. Wittenberg, 1556.
• Giovanni Camillo Maffei: Delle lettere del Signor Gio. Camillo Maffei da
Solofra, Libri Due. Naples, 1562 e Arte de tañer fantasía. Valladolid,
1565.
• Lodovico Zacconi: Prattica di Musica. Veneza, 1592.

Na música barroca (séc. XVII e XVIII), embora fossem praticadas variações


de estilo de ornamentação dependendo do país – como por exemplo a nítida
diferença da ornamentação francesa (mais rápida e picotada) para a italiana (mais
lírica e melódica) –, o princípio de se improvisar a ornamentação era comum a todas
as práticas.

Dificilmente uma forma de música vocal ou instrumental dessa época


é concebível sem algum grau de ornamentação, às vezes notada, mas
com muito mais frequência adicionada na execução: as passagi dos
italianos, os agréments dos franceses, as graces do Inglês e as glosas
17
dos espanhóis (BAILEY, 1992, p.19).

O maior nome da música barroca, J.S. Bach (1685-1750), por exemplo, foi
muito mais reconhecido em vida por suas habilidades como virtuoso do teclado e
improvisador do que como compositor (WOLFF, 2015). Em 1737, suas
improvisações foram duramente criticadas na imprensa da época por Johann
Scheibe, um antigo aluno, por seu “estilo rígido e confuso”, no qual ele “obscurece a
beleza por um excesso de arte”, sendo sua ornamentação tão eloquente que “não
apenas retira de suas peças a beleza da harmonia, como cobre completamente a
melodia o tempo todo”. Scheibe afirma ainda que sua dificuldade, artificialidade,
caráter sombrio, labor oneroso e esforço são “empregados em vão, já que conflitam
com a natureza”. (WOLFF, 1999. p. 338).

17
Hardly a single form of vocal or instrumental music of that time is conceivable without
some degree of ornamentation, sometimes written down but much more usually added in
performance: the passagi of the italians, the agréments of the french, the graces of the
English and the glosas of the Spaniards.
14

A arte da improvisação – naquela época inseparavelmente conectada


com a prática do instrumento – iria no mínimo preparar o terreno para
sua obra como compositor. Essa reciprocidade entre execução e
composição é refletida nos elementos rebeldes de virtuosismo e de
improvisação presentes nas primeiras obras de Bach (WOLFF,
18
2015).

É evidente o quanto a improvisação estava presente no cotidiano musical


dessa época quando Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), o bem-sucedido filho
de Johann Sebastian, dedica o último capítulo de seu tratado Versuch über die
wahre Art das Clavier zu spielen (1753: Parte I; 1762: Parte II) à arte da
Improvisação (Fantasieren). Nesta oportunidade, Carl Philipp escreve:

Uma improvisação é chamada de livre quando não possui unidade de


tempo mensurável [...] ou é inventada de improviso. [...] Uma
improvisação livre consiste de frases harmônicas alternadas, as quais
podem ser executadas usando todos os recursos de Figuras e
Divisões. Neste contexto é necessário definir uma tonalidade, com a
19
qual se começa e se termina (BACH, 1762, p. 325-326).

Enquanto no século XVI a maioria dos tratados sobre improvisação dizia


respeito à vihuela, o século XVIII verá um grande acréscimo na quantidade de livros
didáticos para teclado. Com exceção das obras dos flautistas Johann Joachim
Quantz (Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen) e Jacques-Martin
Hotteterre (L’ Art de Préluder sur la Flûte Traversiere) e do violinista Leopold Mozart
(Versuch einer gründlichen Violinschule), os principais tratados que se ocuparam do
tema improvisação visavam a educação musical nestes instrumentos.

18
The art of improvisation – in those days inseparably bound up with practice on the
instrument – would at the very least prepare the ground for his work as a composer. This
reciprocity between performing and composing is reflected in the unruly virtuoso and
improvisatory elements in Bach’s early works.

19
Eine Fantasie nennet man Frey, wenn sie keine abgemessene Tacteinheitung enthält [...],
oder aus dem Stegreif erfunden werden. [...] Eine freye Fantasie bestehet aus
abwechselnden harmonischen Sätzen, welche in allerhand Figuren und Zergliederungen
ausgeführet werden können. Man muß hierbey eine Tonart festsetzen, mit welcher man
anfänget und endiget.
15

Durante o século XVIII e início do XIX, além de C.P.E. Bach, destacados


músicos publicaram livros inteiramente dedicados à improvisação ou com
importantes capítulos a respeito, como, por exemplo:

• Johann Gottlob Türk: Klavierschule, oder Anweisungen zum Klavierspielen für


Lehrer und Lernende. Leipzig, 1789.
• August F. C. Kollmann: An Introduction to the Art of Preluding and
Extemporizing20 in Six Lessons for the Harpsichord or Harp. London, 1792.
• Johann Gottfried Vierling: Versuch einer Anleitung zum Präludieren für
Ungeübtere mit Beyspielen. Leipzig, 1794.
• André G. M. Grétry: Methode Simple pour Apprendre à Preluder. Paris, 1801.
• James Hewitt: Il Introductione di Preludio. New York, 1810.
• Philip Antony Corri: Original System of Preluding. London, 1810.

No século XIX, diversos pedagogos publicaram livros didáticos sobre


improvisação. Autor de diversos métodos para teclado usados até os dias de hoje, o
vienense Carl Czerny (1791-1857) foi um dos mais reconhecidos pianistas e
professores de piano de sua época. Principal discípulo de Ludwig van Beethoven, se
tornou rapidamente íntimo de seu mestre, com o qual conviveu por longo período,
conhecendo profundamente seu estilo. A confiança de Beethoven em seu mais
talentoso aluno era tanta que indicou Czerny para substituí-lo (em função de sua
surdez já avançada) na estreia de seu Concerto para Piano e Orquestra n. 5 em Mi♭
Maior ‘Imperador’ op. 73 (ROSENBLUM, 1988, p. 29 e 30). É portanto relevante
destacar que Czerny, um pianista virtuose, compositor e pedagogo [foi professor de
Liszt e de vários outros virtuoses], inserido na mais alta cena musical de sua época,
escreveu em 1829 um livro didático sobre improvisação: ‘Indicações Sistemáticas
para a Improvisação ao Pianoforte’ [Systematische Anleitung zum Fantasieren auf
dem Pianoforte]. Isso comprova que a prática da improvisação ocupava um lugar de

20
Aqui observa-se principalmente a utilização do verbo ‘Preluder’ (francês), ou
‘Extemporize’ (inglês) para denotar improvisação. Interessante notar como o uso dessa
expressão, originada do latim praeludere (prae, “pré”; “anterior” + ludere, “tocar”) já havia
assumido o sentido de criação espontânea de material musical, estando associada não
necessariamente a um tipo de peça introdutória (como normalmente se pensa hoje em dia)
mas à improvisação.
16

destaque entre as habilidades musicais relevantes para a formação do músico dessa


época. Czerny define Improvisação (aqui usando o termo ‘Fantasieren’) como:

O talento e a arte de improvisar consistem em transformar, durante a


execução, ‘de supetão’ e sem preparação especial imediata, cada
ideia original (ou de outros) em uma espécie de composição, a qual,
ainda que de forma muito mais livre que uma peça escrita, deve ter
uma estrutura tão organizada quanto for necessário, de maneira a
21
permanecer compreensível e interessante (CZERNY, 1829, p. 3).

Em outro registro, dez anos depois, em uma série de cartas que chamou de
‘Cartas sobre o ensino do Pianoforte, dos rudimentos até a formação’ [Briefe über
den Unterricht auf dem Pianoforte vom Anfange bis zur Ausbildung], Czerny escreve
novamente preciosas informações (que surpreendem por sua atualidade – poderiam
ter sido escritas por um improvisador de jazz do século XXI), que definem com
precisão a mentalidade do ambiente musical deste período e sua relação com a
improvisação:

A senhora sabe que a música em certas medidas é um tipo de


linguagem através da qual sensibilidades e sentimentos podem ser
expressados que preenchem ou movem a mente. Também é sabido
pela senhora que é possível fazer muitas coisas com um instrumento
musical, especialmente com o Fortepiano, que não estão escritas nem
foram estudadas ou preparadas previamente, mas que são
meramente fruto de uma inspiração momentânea e acidental. A isso é
22
chamado de: Fantasiar, ou Improvisar (CZERNY, 1839, p.78).

Outro importante instrumentista e pedagogo dessa época que também


publicou um compêndio sobre Improvisação foi Friedrich Kalkbrenner (1785-1849).
Nascido na Alemanha, mas baseado em Paris durante a maior parte de sua vida

21
Demnach besteht das Talent und die Kunst des Fantasierens darin, aus dem Stegreif,
ohne besondere unmittelbare Vorbereitung, jede eigene oder auch fremde Idee, während
dem Spielen selbst, zu einer Art von musikalischer Composition auszuspinnen, welche,
obschon in viel freyeren Formen, als eine geschriebene, doch in soweit ein geordnetes
Ganzes bilden muss, als nöthig ist, um verständlich und Interessant zu bleiben

22
Sie wissen, dass die Musik gewissermassen eine Art Sprache ist, durch welche die
Empfindungen und Gefühle ausgedrückt werden können, welche das Gemüth erfüllen oder
bewegen. Eben so ist Ihnen bekannt, dass man auf einem musikalischen Instrumente, und
vorzüglich auf dem Fortepiano, Vieles ausführen kann, was weder vorher aufgeschrieben,
noch einstudiert und vorbereitet worden, sondern was blos die Frucht einer augenblicklichen
und zufälligen Eingebung ist. Man nennt dieses: Fantasieren, oder Improvisieren.
17

adulta, Kalkbrenner alcançou grande reputação como pianista, a ponto de Frédéric


Chopin ter afirmado que, mesmo tendo ouvido vários virtuoses do piano à época
(incluíndo Liszt), “nenhum deles era nada comparado a Kalkbrenner” (JASINSKÁ,
2011, p. 84). A admiração de Chopin era notória, e por pouco o jovem pianista
polonês não se tornou discípulo do mestre alemão23.

Em 1849, Kalkbrenner publicou um tratado se ocupando especificamente da


questão da improvisação: o Traité d'harmonie du pianiste: principes rationnels de la
modulation pour apprender à preluder et à improviser. No capítulo introdutório, o
autor deixa claro que deseja que o livro seja usado como ferramenta para o
desenvolvimento da capacidade de improvisar, e seus comentários também refletem
dilemas enfrentados por músicos até hoje:

Existe um vício na maneira de ensinar composição, que faz com que o


aluno ainda que aprenda a conhecer os acordes e suas inversões,
frequentemente não saiba como empregá-las. É esta lacuna que
tentamos completar, apoiando o máximo possível nossos exemplos,
24
em regras de cifras (KALKBRENNER, 1849, p. 1).

Através deste breve panorama fica patente o quanto a improvisação estava


enraizada de forma íntima e natural ao fazer musical da atualmente chamada
música de concerto25 até meados do séc. XIX.

23
Kalbrenner impôs a Chopin que permanecesse como seu pupilo por 3 anos ininterruptos,
o que Chopin não aceitou, por julgar ser tempo demais (JASINSKÁ, 2011).

24
Il existe un vice dans la manière d’enseigner la composition, qui fait que l’élève tout en
apprenant à connaître les accords et leurs renversements, ne sait souvent comment les
employer. C’est cette lacune que nous avons cherché à combler, en appuyant le plus
possible nos exemples, sur des règles de chiffres.

25
Em inglês, Western Art Music.
18

1.3. O Declínio da Improvisação

Muitos foram os fatores que levaram ao surgimento de uma nova mentalidade


na cena musical do século XIX, e que prevalece até hoje nos ambientes de
execução da música de concerto. Embora sejam vários os aspectos que levaram a
essa mudança, cabe aqui ressaltar alguns pontos relevantes de caráter social,
político e filosófico. Robert Moore propõe como determinantes:

[...] o efeito do desenvolvimento tecnológico e da industrialização


sobre a estética da arte acadêmica desde o final do século XVIII. [...] o
efeito de notação e do letramento no desenvolvimento de toda a
música ocidental. [...] o desaparecimento de contextos sociais originais
para a música de concerto; a falta de exposição à música clássica na
vida diária de artistas modernos; a natureza experimentalista de boa
parte da composição contemporânea; interesse na prática musical
historicamente informada; e reverência pela música de concerto; todos
esses parecem fatores significativos que contribuíram para o declínio
26
da improvisação (MOORE, 1992, p. 80).

É interessante notar que a forma de apresentação do instrumentista e sua


relação com o público mudou bastante nesse período: Concertos públicos, como
vistos hoje, eram ainda praticamente inexistentes no final do século XVIII (KEYS,
1980), e mesmo na primeira metade do século XIX renomados pianistas como
Beethoven, Chopin e Liszt se viam na necessidade de trabalhar como professores e
músicos contratados, servindo música ambiente à elite (MOORE, 1992).

O ofício de produzir música de fundo para os mais abastados – embora se


constituísse numa situação longe da desejada para qualquer artista –, produzia por
outro lado um ambiente propício à improvisação. Músicos dessa época conviviam
com um ambiente profissional muito diferente do que se vê atualmente na música de
concerto.

26
[...] the effect of technological development and industrialization on the aesthetics of
academic art since the late 18th century. [...] the effect of notation and literacy on the
development of all Western music. [...] the disappearance of original social contexts for art
music; the lack of exposure in daily life to classical music on the part of modern performers;
the experimentalist nature of much contemporary composition; interest in historically
accurate performance practice; and reverence for art music; all seem to be significant factors
contributing to the decline of improvisation.
19

Na música de concerto atual, a formalidade das salas e teatros pode produzir


um ambiente relativamente inóspito para a improvisação, uma vez que,
hierarquicamente, a prioridade está em outros aspectos, como na perfeição da
execução e na ourivesaria dos mais diversos acabamentos. Houve portanto uma
mudança no âmbito do ‘campo de teste’: onde anteriormente era possível ter uma
relação com a execução que incorporasse naturalmente a possibilidade de
experimentação e o coeficiente de risco, a sala de concerto estabeleceu uma
relação diferente, valorizando outros parâmetros e de certa forma inibindo a
improvisação.

Outro fator que contribuiu para o declínio da improvisação no cenário da


música de concerto foi o advento da tecnologia de gravação e reprodução sonora no
final do século XIX, que passou a impôr gradativamente à classe musical uma
reconfiguração de vários paradigmas. O surgimento da tecnologia de gravação
produziu uma infinidade de reverberações na cena musical: desde a possibilidade de
se cristalizar uma performance, proporcionando uma comparação direta (e menos
abstrata) entre instrumentistas, até a gradual implementação de gramofones no
ambiente doméstico, o que mudaria por completo o mercado de trabalho da classe
musical.

Com o estabelecimento da burguesia como classe dominante aparece


também um novo conceito: a ideia de que uma obra artística do passado passa a ser
uma relíquia intocável. O historiador Jack Talbott, em entrevista a Robert Moore, faz
uma interessante conexão entre o declínio da improvisação e o crescimento do
número de museus para atender ao estabelecimento de uma nova mentalidade
proveniente da classe média:

Eu me pergunto se o declínio da improvisação compartilha alguma


coisa em comum com a aparição dos museus como um passatempo
da classe média? Ambos demandam atitudes de reverência para com
artefatos do passado. Assim como não se deve desenhar um bigode
na Monalisa, não se deve ornamentar uma peça de Mozart (MOORE,
1992, p. 79).27

27
I wonder whether the decline of improvisation in classical music shares some things in
common with the rise of the museum as a middle class pastime? Both demand reverential
20

Surgia o conceito de relíquia em música e nas demais artes. Em seu livro ‘The
Age of Revolution: 1789 – 1848’, Eric Hobsbawm afirma:

Os museus e galerias de arte fundadas ou abertas ao público neste


período (por exemplo, o Louvre e a British National Gallery foram
fundados em 1826) exibiam arte do passado e não do presente
28
(HOBSBAWM, 1962, p. 257).

Um outro aspecto a ser considerado é que a exploração de novas


possibilidades sonoras através do aparecimento de diversas correntes estéticas
concomitantes estimulou a ampliação dos recursos instrumentais, intensificando a
complexidade das composições. O caminho encontrado foi o de uma maior
especialização instrumental que pudesse atender às exigências de uma nova
configuração de mercado. Essa busca pela especialização foi respaldada pela
expansão do ensino musical compartimentado, característico dos conservatórios em
ascensão.

O século XIX como um todo trouxe inúmeras transformações para a


sociedade europeia, a começar pela Revolução Industrial, que permeou a metade
deste século estabelecendo novas regras de mercado e mudando a postura dos
artistas com suas perspectivas de carreira (HOBSBAWM, 1962).

Com tudo isso, a partir do final do século XIX estabeleceu-se paulatinamente


na música de concerto uma configuração heterogênea entre duas classes de
profissionais: de um lado o compositor per se, que, embora muitas vezes pudesse
ser um excelente instrumentista, em geral não se expunha como tal; e do outro, o
intérprete, concentrando suas energias na perfeição da execução de modo a atender
as exigências de um mercado emergente.

attitudes toward artifacts of the past. Just as a moustache is not to be drawn on the Mona
Lisa, so Mozart is not to be embellished.

28
The museums and art galleries which were founded or opened to the public in this period
(e.g. the Louvre and the British National Gallery, founded in 1826) displayed the art of the
past rather than the present.
21

Moore, ao afirmar que “ninguém nega que a música de concerto é tocada hoje
de forma diferente do que quando foi composta” 29 , se refere a algo além da
impossibilidade de se construir uma imagem sonora perfeita a respeito da intenção
de compositores como Mozart ou Beethoven (pela ausência de gravações originais
ou distância temporal). Grande parte das obras compostas entre os séculos XVI e
XIX, no momento de sua concepção, pertenciam a uma linguagem musical que
permitia um alto grau de flexibilidade, e consequentemente, de improvisação.
Instrumentistas foram perdendo essa relação durante a execução dessas peças, em
função das mudanças que se instauraram na Europa a partir da metade do século
XIX.

Essa nova configuração de mentalidade permanece em parte até os dias de


hoje e certamente foi responsável por um grande desenvolvimento técnico e
instrumental durante o século XX. Entretanto, é possível observar atualmente um
grande movimento que busca incorporar a improvisação de forma mais integrada ao
fazer musical como um todo. Isso produz uma repercussão prática, em função do
que o gesto de integrar a improvisação à realidade musical traz consigo: a relação
de intimidade com a linguagem, espontaneidade e desprendimento – o que, por
outro lado, comporta também o risco da imperfeição. A performance historicamente
informada vem crescendo ao longo dos anos, ao ponto de já ser possível observar
uma cobrança do próprio mercado: certamente provocaria estranheza algum grande
intérprete da atualidade registrar obras do século XVII e XVIII sem ornamentações.
E já está atingindo o século XIX, como o caso de Robert Levin, que improvisa
cadências de Beethoven em suas apresentações.

1.4. O Choro e o Jazz: Surgimento de uma Música Improvisada

Enquanto no final do século XIX a prática da improvisação gradativamente


diminuía na música de concerto europeia e dava lugar a uma nova configuração, em
outros lugares do Ocidente fermentavam caldeirões de multiculturalidades. Neste

29
No one denies that art music is played today differently than when it was first composed.
22

período começaram a ocorrer movimentos no Brasil e nos Estados Unidos que


viriam a criar relevantes estilos de música no que tange à ênfase na improvisação: o
choro e o jazz, respectivamente.

No Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, Joaquim da Silva Callado


(1848-1880), considerado um dos patriarcas do choro, criou o conjunto Choro
Carioca por volta de 1870. Era o início deste estilo caracterizado pela fusão de
melodias europeias com ritmos mais sincopados, fruto da influência africana
presente no ambiente de miscigenação cultural que marcava o fim do século XIX na
capital brasileira. O choro aparecia desde seu nascimento como uma música
marcada pela improvisação. Começou como uma forma ‘mais apimentada’ de se
tocar as músicas de salão europeias que chegavam ao Brasil, e pouco a pouco foi
ganhando personalidade própria.

O aparecimento do choro, ainda não como gênero musical, mas como


forma de tocar, pode ser situado por volta de 1870, e tem sua origem
no estilo de interpretação que os músicos populares do Rio de Janeiro
imprimiam à execução das polcas, que desde 1844 figuravam como o
tipo de música de dança mais apaixonante introduzido no Brasil
(TINHORÃO, 1991, p. 103).

A improvisação no choro não se dava apenas nos solos (através de novas


melodias ou ornamentações), mas também nos acompanhamentos. Existia na
mentalidade corrente uma grande valorização da habilidade de tocar de ouvido e
reagir às informações musicais com velocidade30:

[...] os acompanhamentos eram improvisados, até porque os


tocadores de instrumentos de cordas na maioria não conheciam
música. Mesmo os músicos de instrumentos de sopro que dominavam
a leitura musical, acompanhavam quase sempre de ouvido, como o
Barata, que “não só conhecia com proficiência a música, como
também acompanhava o choro de ouvido, de fazer êxtase, tal a sua
mestria no oficleide”. Pixinguinha, que dominava a leitura e escrita
musical, quando foi trabalhar no Teatro Rio Branco, por volta de 1910,
fez sucesso principalmente “pelas bossas que inventava por fora,
acostumado que estava a improvisar nas rodas de choro”. Nessas

30
Essa tradição hierárquica permanece até os dias de hoje. Ser capaz de compreender
uma harmonia rapidamente é praticamente uma condição para a inserção do músico na
cena musical do choro.
23

rodas, o que mais se exigia e o que mais se apreciava nos


acompanhadores, sobretudo de violão e cavaquinho, era o ouvido,
aptidão consagrada na expressão “tocar de ouvido”. Gonçalves Pinto
quase que em cada página de sua obra menciona o fato: “Ventura
Careca, violão de fama, … não admitia que lhe dessem o tom, tal a
confiança que ele tinha em seu ouvido”. Quando o acompanhador não
conseguia atinar com a harmonia do solista, dizia-se que tinha caído.
Essa expressão foi tão vulgarizada, que aparecia freqüentemente no
título de polcas como Caiu, não disse, de Viriato e Não caio noutra, de
Ernesto Nazareth (TABORDA, 2010, p. 138).

Simultaneamente, no estado de Louisiana, nos Estados Unidos, também


começou a se consolidar um movimento musical que iria incluir africanos,
hispânicos, norte-americanos mestiços e europeus como protagonistas na
confecção de um capítulo importante da história da música improvisada: a criação
do Jazz. Nova Orleans seria o principal centro norte-americano de intercâmbios
musicais que aconteciam marginalmente, fruto dos encontros entre diferentes etnias
e suas culturas durante todo o século XIX:

Só em 1808, pelo menos seis mil refugiados fugindo da revolução


haitiana chegaram à cidade [de Nova Orleans], após terem sido
forçados a deixar Cuba. O amálgama resultante – uma mistura de
elementos europeus, caribenhos, africanos e americanos sem
precedentes – transformou Louisiana no provavelmente mais
fervilhante caldeirão de diversidade étnica que o século XIX seria
31
capaz de produzir (GIOIA, 2011, p. 17).

Em Nova Orleans começava a borbulhar a pré-história do Jazz, que também


nasce fruto de encontros de diferentes culturas: dos cantos de escravos e das
igrejas, do ritmo do ragtime, da cadência do blues rural e de uma busca por uma
sonoridade mais sensual (Nova Orleans era conhecida por seu distrito de
prostituição – Storyville, que funcionou entre 1897 e 1917, quando foi fechado pela
Marinha, com inúmeros bordéis e intensa vida noturna).32

31
In 1808 alone, as many as six thousand refugees fleeing the Haitian revolution arrived in
the city, after being forced to leave Cuba. The resulting amalgam – an unprecedent mixture
of European, Caribbean, African and American elements – made Louisiana into perhaps the
most seething ethnic melting pot that the nineteenth-century world could produce.

32
Aqui vale notar que tanto o jazz como o choro tem em sua origem a busca pelo
incremento da paixão, da vivacidade e sensualidade de seu ritmo. A grosso modo, os dois
24

O principal nome associado ao nascimento do Jazz é o de Buddy Bolden


(1877 -1931), tido por muitos como o primeiro músico deste estilo. Bolden sem
dúvida representou um movimento existente na cidade na virada do século, e
embora não existam gravações de sua execução, era reconhecido por suas
improvisações e por seu som particular. Foi uma grande influência para músicos de
gerações seguintes, como Louis Armstrong. O Jazz nasce, portanto, como um estilo
de música onde a improvisação esteve presente desde o início, se configurando
como parte estrutural, intrínseca ao próprio estilo.

Muitos músicos – em sua maioria negros, mas também [mestiços] e


brancos – estavam experimentando com as síncopes do Ragtime e a
tonalidade do Blues e aplicando estes dispositivos rítmicos e
melódicos em uma ampla gama de composições. Inicialmente,
técnicas de improvisação foram provavelmente utilizadas apenas para
ornamentar melodias compostas, mas em algum momento essas
elaborações devem ter evoluído para solos de forma mais livre. O que
começou como experimentação acabou desembocando numa prática
formalizada. Reconstruir esses eventos com precisão é impossível – a
terminologia para descrever essa música não existiria ainda por
bastante tempo, e as primeiras gravações desse novo estilo levariam
pelo menos vinte anos para serem feitas. Se Bolden foi a figura
decisiva ou meramente um entre muitos que estimularam essa
transformação continua a ser uma questão de especulação. De
qualquer forma, toda a nossa pesquisa indica que por volta do final do
século XIX, uma crescente quantidade de músicos em Nova Orleans
estava tocando um tipo de música que, em retrospecto, só pode ser
33
descrito como jazz (GIOIA, 2011, p. 35).

se caracterizam por uma combinação de melodias (e harmonias) europeias com o ritmo


pulsante proveniente da experiência musical africana que foi trazida pelos escravos para
ambos os continentes.

33
Many musicians— mostly black, but also Creole and white— were experimenting with the
syncopations of ragtime and the blues tonality and applying these rhythmic and melodic
devices to a wide range of compositions. At first, improvisational techniques were probably
used merely to ornament composed melodies, but at some point these elaborations must
have evolved into more free- form solos. What began as experimentation eventually led to
formalized practice. Reconstructing these events with any precision is all but impossible— a
terminology for describing this music would not exist for quite some time, and the first
recordings of this new style would not be made for at least twenty years. Whether Bolden
was the decisive figure or merely one among many to spur this transformation remains a
matter for speculation. In any event, all our research indicates that sometime around the end
of the nineteenth century, a growing body of musicians in New Orleans were playing a type
of music that, with benefit of hindsight, can only be described as jazz.
25

Rapidamente o New Orleans Jazz, também conhecido como Dixieland se


espalhou e tomou as grandes cidades dos Estados Unidos como música de baile.
Nessa época já se sentia profundamente os ecos da Revolução Industrial. Assim
como na música de concerto, o advento das gravações provocou um grande impacto
na cena musical e na mentalidade dos artistas dessa música, e a possibilidade de
registro sonoro representou uma grande mudança de paradigma. A partir daquele
momento seria possível transcender o caráter efêmero de uma execução e congelá-
la para a eternidade. O estabelecimento desse novo status quo foi de suma
importância tanto para o choro como para o jazz. A demanda por gravações de
música de baile para animar as casas através dos novos aparelhos fonográficos
impulsionou ambos os estilos.

Mas nem todos os músicos reagiriam da mesma maneira quanto ao impacto


do aparecimento da tecnologia de gravação no métier musical. Freddie Keppard
(1889-1933), músico importante da cena de Nova Orleans e pertencente aos
primeiros movimentos musicais do jazz, exemplifica o ambiente instável e
desconhecido provocado pela então nova possibilidade de registro sonoro:

Em dezembro de 1915 a gravadora “Victor Talking Machine” ofereceu


gravar [Freddie] Keppard e sua banda. Jazz ainda não havia sido
gravado, e ninguém sabia se iria vender. Era a grande chance de
Keppard. Mas, inesperadamente, ele recusou. Diz-se que ele teria se
preocupado que outros músicos iriam comprar seus discos apenas
para roubar suas ideias. Freddie Keppard perdeu a oportunidade de
ser o primeiro músico de jazz a gravar um disco (The New Orleans
Style of Jazz – Part 1: 1914 to 1935
34
www.youtube.com/watch?v=GE7k9D5I5a0) .

Em 1917 foi realizada a primeira gravação de Jazz pelo conjunto “Original


Dixieland Jass Band”, com o álbum Livery Stable Blues. Com o sucesso dessa

34
In December of 1915 the Victor Talking Machine Company offered to record Keppard and
his band. Jazz was yet to be recorded and no one knew if it would sell. It was Keppard’s big
chance. But unexpectedly, he turned them down. He was said to have been frightened that
other musicians would buy his records just to steal his stuff. Freddie Keppard passed up the
opportunity to be the first jazz musician to make a record.
26

iniciativa, gravações se tornaram um importante pilar de desenvolvimento do jazz e


da improvisação35.

No Brasil, os primeiros registros fonográficos de choro são ainda anteriores.


Existem registros de 1904, como o dos Irmãos Eymard, que gravaram Flor Amorosa
de Joaquim Callado para a recém inaugurada Casa Edison, de Patápio Silva e
tantos outros. Pixinguinha demonstrava seu talento e naturalidade em gravações de
1911:

Uma rápida passagem pela sua vida e sua obra seria suficiente para
verificar que ele é responsável por façanhas surpreendentes, como a
de estrear no disco aos 13 anos de idade revolucionando a
interpretação do choro. É que naquela época (1911) a gravação de
disco ainda estava em sua primeira fase no Brasil e os instrumentistas,
mesmo alguns ases do choro, pareciam intimidados com a novidade e
tocavam como se estivessem pisando em ovos, com medo de errar.
Pixinguinha começou com segurança total e improvisou na flauta com
a mesma tranqüilidade com que tocava nas rodas de choro ao lado do
pai e dos irmãos, também músicos, e dos muitos instrumentistas que
formavam a elite musical do início do século XX (CABRAL, 2015).

De Nova Orleans e seu estilo Dixieland veio Louis Armstrong, o primeiro


personagem iconoclástico da história do jazz, que trouxe substanciais contribuições
ao estilo já nas décadas de 1920 e 1930. Armstrong foi pioneiro estabelecendo o
foco na performance individual do artista, destacando-se da prática de improvisação
coletiva, como era anteriormente de praxe. Foi uma influência decisiva para Charlie
Parker e Dizzy Gillespie, responsáveis pela grande revolução estilística na
improvisação do jazz na década de 1940: o Bebop – gênero extremamente
virtuosístico de improvisação que expandiu as fronteiras criativas dessa arte. Parker
e Gillespie foram por sua vez determinantes para formação de Miles Davis [Miles
substituiu seu mentor Gillespie no quinteto de Charlie Parker]. John Coltrane, outro
nome que trouxe grande contribuição estética para a linguagem do jazz, tocou por
anos no quinteto de Miles.

É possível perceber portanto a ligação entre todos esses grandes ícones,


como se um passasse o bastão para outro da geração seguinte, provando ser uma

35
The New Orleans Style of Jazz – Part 1: 1914 to 1935:
www.youtube.com/watch?v=GE7k9D5I5a0.
27

expressão artística com fortes ligações com o processo de transmissão oral do


conhecimento. O mesmo acontece no choro: Jacob do Bandolim frequentava a casa
de Pixinguinha, que por sua vez cresceu no meio de grandes nomes da música
brasileira, como Donga e João da Baiana. Disso é possível concluir que, para
prosperar, a improvisação não pode se privar da experiência real. É no ambiente da
vivência prática de sua realização que essa arte – intrinsicamente ligada à
elaboração de novas propostas de linguagens e padrões estéticos – se desenvolve.

Olhando por esses aspectos, o choro e o jazz de fato produziram diversos


processos similares na sua forma de concepção e desenvolvimento inicial. Estes
dois mundos se mostravam predestinados a se cruzar, e o século XX assistiu a
diversos encontros entre os dois universos, linguagens que são verdadeiras almas-
gêmeas na sua origem. Mas embora várias colaborações tenham realmente existido,
o que observou-se durante o século XX foi uma maior experimentação conceitual no
jazz, que não foi vivida na mesma intensidade pelo choro. A começar que a palavra
jazz rompeu seu significado inicial, de uma música específica (Dixieland), de ritmo e
estética fechada, para tornar-se uma grande representação de música instrumental,
e transformar-se em sinônimo de música improvisada. Hoje é um grande guarda-
chuva que comporta inúmeras traduções estilísticas do mundo todo. O choro, por
outro lado, se manteve como um estilo musical.

Por força de diversas situações específicas da época, o que aconteceu na


primeira metade do século XX foi mais uma importação estética do que uma troca
real:

Nas primeiras décadas do século vinte, ocorreu um encontro


importante [do choro] com a música e dança dos Estados Unidos. Seja
pela transmissão direta ou pelo contato indireto através dos
desenvolvimentos culturais em Paris, músicos brasileiros conheceram
ragtime, “one” e “two-steps”, “foxtrots”, e o jazz da época. Com a
chegada e crescimento da indústria fonográfica e do rádio, este
processo se acelerou; já no começo dos anos vinte surgiram grupos
brasileiros usando o nome jazzband [...]. Nas décadas de trinta e
quarenta, “swing”, “ballroom” e trilhas de Hollywood já eram bem
conhecidas nas grandes cidades do Brasil; no final dos anos quarenta
e cinqüenta surgiram o bebop, cool jazz, e hard bop. Cada uma
dessas tendências afetou o desenvolvimento do choro: algumas foram
aceitas, outras negadas por razões estéticas ou nacionalistas
(KORMAN, 2011, p. 4).
28

A partir da década de 1950, Miles Davis e John Coltrane se tornaram dois


grandes personagens na criação de novas linguagens no jazz. Ornette Coleman e
sua proposta de free jazz na década de 1960 também passa a oferecer novos
caminhos.

No Brasil, a partir da década de 1970 é possível citar dois grandes artistas


que realizaram profundas experimentações sonoras dentro do campo da
improvisação. São eles: Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti. Ambos despontaram
como os principais nomes do que é conhecido hoje como música instrumental
brasileira.

Nesse ambiente, a capacidade de improvisação se tornou um componente


criteriosamente trabalhado e seu estudo se transformou em algo de grande
importância, se configurando como uma das habilidades mais valorizadas pelos
instrumentistas e compositores.

Esse movimento ao mesmo tempo que virou referência, permanece vivo até
hoje, como afirma o pianista Cliff Korman (2011):

Atualmente existem muitos grupos participando num movimento


vibrante, feito de músicos que mostram tanto um conhecimento da
tradição como uma intenção de renovar o gênero. Esta tendência tem
sido acompanhada de um aparecimento de gravadoras independentes
dedicadas a lançar discos de choro. Por várias razões, [...] parece que
o vocabulário de improvisação está mudando. Essa fase nova do
choro inclui, em alguns praticantes, uma familiaridade com a
linguagem do jazz americano. Os resultados estão aparecendo dentro
e fora do Brasil; possivelmente estamos numa fase de transformação
(KORMAN, 2011, p. 4).

Atualmente, a prática da improvisação na música instrumental possui


incontáveis vertentes estéticas. Algumas direções apontam para estilos mais
tradicionais, outras são mais experimentais, e algumas se utilizam de conceitos
provenientes de áreas interdisciplinares, como a exploração de ruídos, interações
acústico/eletrônico, utilização de computadores, aleatoriedade etc. Uma vez que o
29

ambiente de improvisação está intimamente ligado às linguagens musicais36 que se


está utilizando, ele será mais variado ou mais contido dependendo do estilo em
questão.

Apesar da música instrumental brasileira e o jazz serem gêneros musicais


excepcionalmente amplos, com incontáveis ramificações, as vertentes tratadas
nesta tese serão as que levam em conta a improvisação idiomática, ignorando, por
força do escopo escolhido, aquelas ligadas à improvisação livre ou música aleatória,
influenciadas principalmente pela música de concerto contemporânea.

36
Uma improvisação, especialmente na atualidade, pode conter diversas referências de
linguagem provenientes de estilos diferentes. Vale portanto o reconhecimento de que um
improvisador pode lançar mão de diversos recursos expressivos conforme lhe convier para
alcançar certo objetivo estético.
30

CAPÍTULO 2: OS TRÊS PILARES DA IMPROVISAÇÃO

No século XIX, Carl Czerny – em um trecho de sua coletânea de ‘Cartas


sobre o ensino do Pianoforte, dos rudimentos até a formação’ [Briefe über den
Unterricht auf dem Pianoforte vom Anfange bis zur Ausbildung] – já destacava que a
improvisação pode ser aprendida e desenvolvida:

Embora neste caso, assim como na música em geral, um certo talento


natural seja necessário, ainda assim a improvisação pode ser
estudada, acostumada e treinada a partir de certos princípios, e estou
convencido de que qualquer um que toque pouco mais do que um
nível médio seja capaz de desenvolver a arte da improvisação, ao
37
menos até um certo grau (CZERNY, 1839, p. 79).

Compor um solo em tempo real prevê portanto a organização de uma série de


parâmetros próprios dentro de um ambiente caracterizado por especificidades que
não devem ser ignoradas.

“Jazz não é só: ‘Nossa, cara, isso é o que eu tô sentindo que eu devo
tocar’… Na verdade é algo muito estruturado, que vem de toda uma
tradição e demanda muita reflexão e estudo.” – Winton Marsalis
38
(BERLINER, 1994, Kindle Edition pos. 1600).

A improvisação se caracteriza então por uma criação que se apresenta, de


certa maneira, controlada, em oposição à premissa de total liberdade
frequentemente associada ao termo. Naturalmente, a quantidade de aspectos a
serem trabalhados por um músico interessado em se desenvolver nesta área é

37
Obwohl hiezu, wie zur Musik überhaupt, natürliches Talent gehört, so kann das
Fantasieren doch auch nach gewissen Grundsätzen studiert, angewöhnt, und geübt werden,
und ich bin überzeugt, dass Jedermann, der im Spielen eine mehr als mittelmässige Stufe
erreicht hat, auch der Kunst des Improvisierens, wenigstens bis zu einem gewissen Grade,
nicht unfähig ist.

38
“Jazz is not just, ‘Well, man, this is what I feel like playing’. It’s a very structured thing that
comes down from a tradition and requires a lot of thought and study” – Winton Marsalis.
31

vasta, mas com algum tempo de convivência com o material, o instrumentista passa
a se familiarizar com a diversidade de estruturas que compõe esse sistema.

O improvisador, ao realizar um solo, trabalha com elementos previamente


‘estudados’; o que faz sua arte poética é o uso de sua experiência e sensibilidade,
através das quais ele organiza os parâmetros de forma a promover sua expressão
em tempo real.

“Improvisação? Qualquer um que toca qualquer coisa digna de se


escutar sabe o que irá tocar, não importa se preparar um dia antes ou
uma batida de compasso antes. Há que ser com intenção” – Duke
Ellington (NETTL, 2009, p. ix).39

Jamey Aebersold, um dos principais nomes da educação musical do jazz


norte-americano, criador dos famosos play-a-longs40 faz uma declaração na abertura
de seu livro “How to play Jazz and Improvise”, buscando estimular o estudante a não
ter medo de improvisar, desmistificando a prática e reforçando que essa habilidade
está ao alcance de todos:

O objetivo final do improvisador é ser capaz de reproduzir


instantaneamente em seus instrumentos os sons que ouviram mini-
segundos antes em suas mentes. Para pessoas que apenas leem
música, isso pode parecer impossível. Nada é impossível. Essa forma
de pensar tem apenas levado ao misticismo que muitas vezes turva o

39
Improvisation? Anyone who plays anything worth hearing knows what he’s going to play,
no matter whether he prepares a day ahead or a beat ahead. It has to be with intent.

40
“Play along“, ou “toque junto“ é um tipo de produção didático-musical que se baseia em
oferecer gravações originais de acompanhamentos em formato de audio (CD, Cassete, etc.)
com o objetivo de permitir que o instrumentista possa treinar sua parte de solista sendo
acompanhado por uma faixa gravada e preparada com esta finalidade. Aebersold produziu
uma série CDs (inicialmente cassetes) com inúmeros acompanhamentos de conhecidos
temas de jazz que chamou de “Play-A-Long“, sempre usando um trio com piano: piano,
baixo e bateria. Para fins didáticos, às vezes poderiam haver versões de diferentes
velocidades da mesma música. Outra característica é que, gravado em stereo, com o
acompanhamento de piano em um canal e o baixo no outro, o ouvinte pode escolher em
ouvir apenas bateria e baixo ou bateria e piano, ou, com o panorama estereofônico no
centro, os três instrumentos: bateria, piano e baixo.
32

horizonte daqueles que tem o desejo de improvisar (AEBERSOLD,


41
1992, p.7).

O estudo sistemático da improvisação se caracteriza por buscar um


desenvolvimento cognitivo na percepção e manipulação de componentes musicais
relevantes para essa prática (escalas, intervalos, ritmos, etc.), com o objetivo de
conferir maior controle sobre esses parâmetros. Diversos métodos foram criados a
fim de compreender esses mecanismos, na intenção de realizar uma investigação
profunda a respeito dos elementos necessários ao aperfeiçoamento das habilidades
indispensáveis para a prática da improvisação.

Aebersold, por exemplo, publicou dezenas de edições temáticas de seus


“Aebersold Play-A-Longs”, cada uma dedicada a um compositor, gênero ou estudo
específico. A existência e estabelecimento dos play-a-longs como material didático
caracterizado pela ideia de se tocar simulando a realidade da performance e da
percepção de outros instrumentos é bastante reveladora quanto às hierarquias e
objetivos presentes nessa metodologia particular: O foco está em valorizar o estudo
que simule o contexto de grupo, já que uma das questões mais relevantes para o
improvisador é a consciência de seu timing42, assim como a maneira como esse
aspecto se comporta no ambiente coletivo.

Não se trata de se obter uma precisão cirúrgica no nível da subdivisão, mas


da busca pelo aprimoramento da consciência do seu discurso rítmico e sua relação
com os outros membros da banda. Muitas vezes a sensação de ‘swing’43 deriva
justamente de uma pequena relação de atraso entre alguns instrumentos de base.
Um exemplo disso é a existência da expressão, a expressão laid-back, cuja a
tradução literal do inglês seria “descontraído” ou “relaxado”, e no ambiente de jazz

41
Improvisors’ ultimate goal is to be able to reproduce instantly on their instrument the
sounds they hear mini-seconds ago in their mind. To people who only read music, this may
seem impossible. Nothing is impossible. This way of thinking has only led to the mysticism
which at times clouds the horizon for those wishing to improvise.
42
Expressão em inglês que é usada para representar a noção de tempo de um músico.

43
O sabor rítmico de um determinado estilo.
33

consiste em tocar ligeiramente depois do ataque de outro instrumentista (muitas


vezes a “base” – acompanhamento). Por isso, mais uma vez a prática através do
play-A-long se revela de grande valor.

A rotina de se praticar sempre com o acompanhamento produz uma


importante relação com o tocar – o que não substitui a experiência da apresentação
ao vivo. O estímulo de se confrontar, cotidianamente, com questões típicas que
acontecem quando se está tocando em grupo é extremamente benéfico. Pelo fato
da base ser uma gravação, pode não ser possível ouvir as nuances de cada
instrumento, porém o estudante pode igualmente se beneficiar dessas simulações
para desenvolver seu timing e sua relação com o acompanhamento instrumental.

Além de Aebersold, outro importante teórico que contribuiu para a criação de


uma metodologia sistemática para o aprendizado da improvisação foi Hal Crook, em
‘How to Improvise’. Crook é professor da renomada Escola de Música Berklee44, em
Boston, Estados Unidos, referência no ensino e na criação de propostas didáticas
para o aprendizado do jazz e da improvisação.

O autor propõe uma série de exercícios sistemáticos, buscando também a


desmistificação dos processos concernentes à improvisação.

Alguém pode observar que improvisação ‘livre’ – ou improvisar sem


restrições musicais tais como entonação, harmonia, andamento,
forma, etc. – é legítima, vale a pena, é divertido, e que é importante ter
essa experiência e tentar fazer bem [...] Entretanto, improvisar com
criatividade e musicalidade dentro da moldura de certas restrições
musicais é um desafio maior ainda, já que requer disciplina e precisão,
e é justamente por isso que acaba desenvolvendo habilidade nas
45
áreas associadas às restrições (CROOK, 1993, p. 11).

44
Berklee College of Music

45
One can observe that ‘free’ improvisation – or improvising without musical restrictions
such as intonation, chord changes, tempo, song form, etc. – is valid, worthwhile, fun to do,
and important to experience and try to do well. (...) However, improvising creatively and
musically within the framework of certain musical restrictions is a more demanding challenge
because it requires discipline and accuracy, and, because of this, develops ability in the
areas associated with the restrictions.
34

Neste livro, Crook apresenta uma divisão entre categorias de componentes a


serem estudados, que ele chama de: “Quando tocar, Como tocar e O Que tocar”
[“When to play, How to play e What to play”].

A categoria Quando Tocar lida com o controle da quantidade de notas


e pausas executadas em um solo improvisado. Isso é chamado de
pacing (distribuição dos passos) [...]

A categoria Como Tocar envolve tópicos referentes à estrutura do


solo, conteúdo e execução. Exemplos incluídos no livro são: execução
de motivos, desenvolvimento de motivos, tempo, alargamento do
tempo, articulação, fraseado, densidade rítmica [...]

A categoria O Que tocar compreende várias fontes usadas para criar


uma melodia em um solo improvisado, como: notas-guia, notas de
acorde, tensões, escalas de acordes, melodia da música, ornamentos
46
[...]

Esta abordagem busca estabelecer diretrizes e engloba diversos aspectos da


improvisação. Partindo da forma como estudar, até complexas matemáticas
combinatórias, fica evidente que Crook tem como objetivo ‘dissecar’ os processos e
etapas cognitivas que envolvem o estudo da improvisação.

A produção bibliográfica sobre improvisação no jazz é vastíssima. Outros


autores que contribuíram profundamente para o desenvolvimento da didática no
campo da improvisação foram Mark Levine (The Jazz Theory e Jazz Piano Book), e
Mick Goodrick (The Advancing Guitarist).

No Brasil, a literatura sobre improvisação ainda é consideravelmente


pequena. Alguns métodos de harmonia e improvisação disponíveis foram escritos
por proeminentes instrumentistas, como o violonista Marco Pereira (Cadernos de
harmonia) e o guitarrista Nelson Faria (A arte da improvisação). Almir Chediak,
conhecido pelas publicações de sua editora Lumiar e seus Songbooks, também

46
The category When To Play deals with controlling the quantity of playing and resting done
in an improvised solo. This is called ’pacing’. The category What to Play is comprised of
numerous sources used to derive melody in an improvised solo, such as: guide-tones, chord
tones, tensions, chod scales, song melody, melodic embelishments […] The category How to
Play involves those topics relating to solo structure, content and execution. Examples
included in the book are: motific playing, motif development, time-feel, stretching the time,
articulation, phrasing, rhythmic density […]
35

publicou um livro a respeito: “Harmonia e Improvisação vol. 1 e 2”. Outras


contribuições vieram de Wilson Curia (Manual de Improvisação) e João Castilho
(Estudando Improvisação).

Os 3 Pilares da Improvisação

Como resultado da profunda reflexão do autor a partir dos aspectos


concernentes ao aprendizado dos princípios básicos da improvisação na atualidade,
foi possível elaborar uma proposta original de desenvolvimento nesta área baseada
em 3 pilares:

I. Fundamentos
II. Vocabulário
III. Flexibilidade

Tal organização, fruto do trabalho de pesquisa realizado neste doutorado, é


uma concepção de se pensar a improvisação de forma compreensiva. Muitas
informações presentes nesta seção são parte dos conhecimentos adquiridos através
da experiência como músico trabalhando com improvisação e como docente
responsável pelo Bacharelado em Violão da UFJF47.

Vale ressaltar que os três aspectos explicados a seguir são formatados para
serem trabalhados simultaneamente, uma vez que os aprofundamentos de seus
desenvolvimentos específicos irão colaborar para maior proficiência coletiva.

2.1 Fundamentos

Os fundamentos se caracterizam pelas ferramentas básicas necessárias para


dar início à prática da improvisação, como conhecimentos de: Harmonia, Escalas,

47
Onde foi o criador de uma proposta de formação híbrida, na qual todos alunos são
levados a desenvolver habilidades de improvisação durante o curso e a abordar tanto o
repertório de música de concerto quanto o de música popular.
36

Arpejos, e demais noções básicas sobre o funcionamento da improvisação. O


domínio dos fundamentos é primordial durante o processo de aprendizagem e seu
aprimoramento permitirá ao interessado se desenvolver na prática da improvisação
com maior desenvoltura.48

As descrições a seguir visam pincelar elementos relevantes à prática da


improvisação com a intenção de localizá-la conceitualmente e demonstrar de
maneira concreta e tangível a construção de conhecimentos básicos de um
improvisador.49

Vale ressaltar que todas as propostas foram pensadas de modo a transitar


por um viés pedagógico, e de se conceber os processos relacionados à
improvisação – estudo, desenvolvimento e prática – segundo parâmetros didáticos.

Ø O Tema

O tema, na música instrumental, ou a "head", no jazz, é a melodia per se. É o


elemento de reconhecimento para o ouvinte, o que atribui unidade. Tradicionalmente
o tema serve de base para improvisos subsequentes, e é a ele que se retorna após
os solos improvisados, como um prólogo antes da conclusão da peça. É
interessante observar que essa ideia de retorno subjacente ao personagem do tema
sugere uma compreensão cíclica, que "amarra" e conduz os acontecimentos
sonoros durante a execução da música. O tema funciona também como uma
referência, pois o instrumentista pode segui-lo [ou deixar-se guiar por ele] durante a
elaboração de seu improviso.

48
Algumas das informações vinculadas ao conhecimento básico de escalas, assim como
temas correlatos, fazem parte de um conhecimento comum e difundido sobre teoria musical
e improvisação. Podem portanto ser encontradas, ainda que por vezes abordadas de outras
maneiras, em diversos métodos de teoria musical.
49
Sem dúvida é um assunto bastante amplo que envolve múltiplas interações com conceitos
de harmonia e teoria musical. Seria impossível cobrir todos os aspectos pertinentes a este
tema, portanto serão valorizadas as propostas originais de abordagem do assunto.
37

O caráter de um tema no contexto do jazz e da música improvisada confere a


univocidade do discurso em meio à multiplicidade de intérpretes quando da
execução deste. O tema é, portanto, um elemento determinante do caráter da
música a ser executada, sendo ele o responsável pelo seu engendramento
discursivo. Como já se disse, é ele que confere unidade à composição, dando-lhe
um norte que deve ser seguido na improvisação.

O retorno ao tema, assim como as referências e citações a ele durante a


improvisação, permitem ativar no ouvinte afetos da memória musical. Articular a
memória musical do ouvinte possibilita criar pontos de identificação sonoros e
ampliar sensivelmente a interação e apreciação da peça.

Para o ouvido a repetição é uma forma da acumulação, por isso se


torna um elemento-chave na própria música. A música move-se no
tempo – ainda que para frente –, no entanto, paralelo e
simultaneamente a essa progressão, o ouvido lembra-se do que já
percebeu e, por meio disso, volta ao passado ou pode até ser
consciente dele e do presente ao mesmo tempo. Não se pode ter uma
memória do som na primeira nota, mas já na segunda nos tornamos
conscientes de sua relação com a primeira, pois o ouvido se lembra
dela (BAREMBOIM, 2009, p. 32).

É relevante ressaltar que nem sempre as improvisações irão necessariamente


citar ou referendar o caráter do tema. Serão produto de uma opção consciente que
pode ser de confluência ou antagonismo, mas que sempre terá alguma relação com
o tema. Essa escolha espontânea, baseada na intuição e aliada à experiência e
vivência musical do instrumentista, é uma das bases conceituais que permeia o
universo da música improvisada.

Ø Harmonia:

É impossível dissociar os paradigmas pertinentes ao ato de improvisar da


estrutura que lhe confere senso estético: a Harmonia. Ela é o eixo cenográfico que
permite ao solista construir um universo sonoro poético com significado.
38

Através de suas proposições de tensão/relaxamento e seu ritmo harmônico, é


ela que atribui sentido estético ao trecho. Ainda que o solista opte por uma
prioridade melódica no solo, relegando a harmonia a um segundo plano, é em
função dos eventuais choques e consonâncias com o pano de fundo que o caráter
do discurso será definido.

Reconhecer essa hierarquia e sua dimensão é algo extremamente relevante,


pois o solista que consegue usar o cenário harmônico através das suas
configurações de tensão/relaxamento, certamente estará amplificando e catalisando
o potencial expressivo de um momento musical.

Os que se interessam por esse estudo também devem dominar as


progressões de acordes de cada peça como uma diretriz fundamental,
por causa de seu papel em sugerir material tonal para o tratamento da
melodia e em dar forma à inventividade em seu esquema rítmico-
50
harmônico (BERLINER, 1994, Kindle Edition pos. 1787).

Através das relações dominante-tônica, cadências, cores das tensões dos


acordes, sensação de campo gravitacional da tonalidade, e ritmo harmônico, a
harmonia se constitui no elemento mais profundo de percepção emocional durante a
audição de um trecho de improvisação. Ela opera no campo da emoção, no nível
sutil, sensorial da percepção, propondo uma cadeia de eventos que irão formar uma
estrutura sonora pictórica na mente do ouvinte. Qualquer ser humano exposto ao
sistema tonal ocidental é capaz de sentir fisicamente as forças de atração entre
dominante e tônica e a respectiva condição de tensão e relaxamento de uma
cadência harmônica.

De forma a ilustrar o quanto a harmonia é relevante para o improvisador, a


figura 1 a seguir representa uma partitura típica de jazz51. Ela consiste de apenas

50
Learners must also master the chord progression of each piece as a fundamental
guideline because of its roles in suggesting tonal material for the melody’s treatment and in
shaping invention to its harmonic-rhythmic scheme.
51
Algumas formas de cifragem de jazz são ligeiramente diferentes das usadas no Brasil.
Normalmente no jazz se abrevia um acorde menor com um sinal de ”menos“, e de 7a maior
”maj7“: major 7th. E♭- significa: Mi bemol menor, e C♭maj7 significa: Dó bemol maior com
sétima maior.
39

uma página, e embora a melodia escrita seja apresentada uma ou duas vezes, a
execução pode durar vários minutos através de criações que usam como pano de
fundo a harmonia descrita, onde cada acorde representa um verdadeiro universo de
sons. Uma página é, portanto, suficiente para dar corpo a uma obra inteira pois suas
informações servem somente como guia, descrevendo a forma e a harmonia da
peça. A partir dessa estrutura, o intérprete pode criar uma gama de variações, que
vai desde a composição de novas melodias em cima da harmonia proposta, até a
variação da mesma em múltiplas versões e até diferentes instrumentações.

Figura 1: Partitura típica de jazz: Take Five


40

Abaixo é possível ouvir dois exemplos de Take Five, em diferentes


abordagens, ilustrando quão grande é a liberdade do músico na interpretação de um
standard de jazz.

Exemplo Musical 1 “Take five”, Dave Brubeck Trio

Exemplo Musical 2: “Take five”, George Benson

***

No ambiente da música instrumental, principalmente quando se começa a


conhecer sonoridades e escalas, é muito comum se pensar nos nomes dos modos
gregos, que nada mais são do que os modos da escala maior. Ou seja, se
estivermos hipoteticamente em Dó maior, um modo respeitando os seus acidentes a
partir da nota ré será chamado de Ré dórico. Em termos práticos, levando em
consideração as notas que a compõe, trata-se apenas da escala de Dó maior
começando em ré. E assim sucessivamente. Com essa mudança de polaridade, os
modos terão organizações interválicas características e sonoridades particulares.
Em função do centro de gravidade próprio, adquirem cores e sabores sonoros que
os distinguem de forma muito peculiar.
41

Figura 2: Modos gregos

Ø Campo harmônico

O campo harmônico de uma tonalidade é o resultado da produção das


diversas de sonoridades e derivações funcionais/harmônicas que seus graus
produzem. Ele é o resultado das combinações de terças superpostas a partir de
cada grau de sua escala, respeitando os acidentes originais. Com isso produz-se,
para cada nota, um acorde com características específicas, criando portanto 7 tipos
de acordes relacionados à escala de origem.
42

Construindo acordes através da sobreposição de terças para cada uma


dessas novas fundamentais, é possível descobrir quais as tétrades que comporão o
sistema tonal de Dó maior, ou seu campo harmônico. Em uma escala maior, por
exemplo, o campo harmônico gera a seguinte sequência de acordes: I7M, IIm7,
IIIm7, IV7M, V7, VIm7, VIIm7(b5). É o universo de uma tonalidade, levando em
consideração suas forças de gravitação tonal e escalas resultantes, como mostra o
exemplo a seguir:

Figura 3: Campo harmônico de Dó Maior


43

Em termos práticos, a figura acima demonstra que a escala de Dó maior


funcionará num contexto de improvisação sobre os acordes de: C7M, Dm7, Em7,
F7M, G7(9,13), Am7 e Bm7(b5).

Além da maior, outra importante escala geradora de modos é a menor


melódica52. Vale lembrar que a teoria da escala menor melódica na improvisação é
diferente da aplicada nas salas de aula dos conservatórios de música clássica.
Enquanto a música clássica vê a escala menor melódica com 6a e 7a maiores apenas
Escala/Arpejos
no seu movimento ascendente, na improvisação ela terá sempre o mesmo
comportamento: Com a 6a e 7a maiores em qualquer situação.

Figura 4: Escala menor melódica

52
As outras escalas menores: a escala menor natural é o VI modo do campo harmônico da
escala maior, o modo eólio. A escala menor harmônica, embora também gere seus próprios
modos e produza sonoridades muito ricas, tem derivações raramente vistas no contexto da
música instrumental brasileira e do jazz [com exceção de suas vertentes mais modernas].

©
44

Abaixo vê-se a mesma construção de campo harmônico aplicada à escala


menor melódica:

Figura 5: Modos da menor melódica


45

Aplicando terças superpostas (marcadas como notas brancas na figura


abaixo), encontram-se os acordes pertencentes a esse universo:

Figura 6: Campo harmônico da menor melódica

Através desta representação, é possível constatar que a vasta maioria das


possibilidades harmônicas da harmonia tradicional do jazz (e da música instrumental
brasileira) são cobertas pelos modos derivados dessas duas escalas. Como não
46

pertencentes a uma destas duas tabelas, figuram apenas os casos de X7(b9,b13) –


coberto pela menor harmônica, e de X° e X7(b9,13) – cobertos pela escala diminuta.53

Portanto, com a adição destas duas escalas (menor harmônica e diminuta) ao


repertório de desenhos memorizados, praticamente qualquer harmonia da música
instrumental brasileira ou do jazz estará coberta por alguma das 4 escalas
apresentadas. De posse do resultado desta análise, propõe-se a seguinte
configuração e distribuição de acordes54:

Tabela 1: Distribuição de acordes nas escalas primárias

Escalas Primárias (geradoras de modos)


X7M(9), X6 Jônico
Xm7, Xm6 Dórico
Maior
Xm7(b2) Frígio
X7M(#11) Lídio
X7(9, 13) Mixolídio
Xm7(9), Xm7(b6) Eólio
(b5)
Xm7 Lócrio
Xm6, Xm7M Menor melódica
(b2, 6)
Xm7 Dórico b2
Menor Melódica (#5)
X7M Lídio Aumentado
X7(9, #11, 13) Lídio Dominante
X7(9, b13) Mixolídio b13
Xm7 (b5, 9) Lócrio #2
X7alt (b5,#5,b9,#9) Escala alterada

53
‘X’ representa qualquer letra de cifra de acorde.

54
Também podem ser usadas esporadicamente, com o objetivo de dar coloridos especiais,
a escala de tons inteiros e a escala blues
47

Tabela 2: Distribuição de acordes nas escalas secundárias

Escalas Secundárias
Menor Harmônica X7(b9, b13)
Diminuta X°, X7(b9, 13)

Ø Extensões do acorde

As chamadas ‘extensões do acorde’ são as notas da escala fora da tétrade


básica, que agregam um colorido específico quando tocadas sobre uma
determinada harmonia. Algumas tensões no contexto da improvisação são
classificadas como notas evitadas na hora do solo, pois seu ataque sobre o acorde
de base produz um resultado sonoro de estranheza. Esse conceito certamente é
questionável, pois o improvisador experiente saberá usar a nota de maneira a criar
um conteúdo expressivo coerente. Elas estão aqui marcadas entre parênteses,
enquanto as tensões, sublinhadas:
48

Figura 7: Quadro de Tensões dos modos da escala maior

O estudo das tensões e suas sonoridades, assim como do momentum


quando essas são tocadas sobre uma harmonia específica, é fundamental para
quem busca desenvolver habilidades na área da improvisação. Um exemplo de
aplicação de tensões e notas evitadas dentro de um estilo de improvisação de jazz
tradicional que esteja operando em contextos tonais genéricos (como a música
instrumental brasileira) seria: considerando o acorde de base Fmaj7 (fá - lá - dó -
mi), se o instrumento solista valorizar a nota si ♭ , o resultado sonoro será
desagradável (essas são "notas evitadas" na hora da improvisação), ao passo que
sol e ré, embora não façam parte do acorde original, serão mais consonantes.

Figura 8: Demonstração de nota evitada


49

Exemplo Musical 3: Demonstração de nota evitada

Ø Escalas e arpejos:

Outro aspecto básico da improvisação é o domínio de escalas e arpejos.


Conhecer seus dedilhados e ter fluência em sua execução constitui uma base
fundamental para desenvolver habilidades relacionadas à improvisação. Se a
construção da sonoridade é o elemento de base para o músico erudito, o domínio de
escalas e arpejos são seu correspondente na música popular. É o ponto de partida
da formação do instrumentista, uma ferramenta indispensável para a construção de
coerência idiomática no improviso.

No violão, o aprendizado das posições escalares, ou desenhos, é feito


através de abordagem vertical e se torna um aliado importante na memorização de
padrões melódicos e intervalares. Trata-se de aprender movimentos levando em
consideração sua posição no braço do violão, ou seja, o deslocamento do bloco
escalar funcionando verticalmente (da 6a para a 1a corda, ou vice-versa). O exemplo
abaixo ilustra a digitação da escala diminuta, levando em consideração um desenho
vertical, e posteriormente horizontal:

Figura 9: Desenho vertical


50

Figura 10: Desenho horizontal

De forma a oferecer exemplos que guardem relação com a execução, o violão


será o instrumento usado nesta seção para ilustrar questões de cunho prático. Seu
sistema de transposição revela-se um aliado importante quando aplicado ao
contexto da improvisação. Como todo instrumento de corda dedilhada, sua
configuração de semitons por trastes (ou casas) permite que seja necessário apenas
um pequeno número de desenhos escalares para dar conta de todo o braço. Os
recursos de transposição podem ser aplicados facilmente. Dessa forma, o desenho
de Fá Maior na primeira casa terá a mesma digitação de Fá♯ na segunda casa, de
Sol na terceira, e assim por diante.

Figura 11: Escala de Fá Maior

Figura 12: Escala de Fá♯ Maior


51

Figura 13: Escala de Sol Maior

No universo da improvisação, um princípio que se demonstra de grande


relevância e utilidade é o da aplicação de escalas em outros acordes que não
aqueles derivados da mesma fundamental. Dentro do contexto da improvisação,
importa pouco o conceito clássico de escala de se começar e terminar na
fundamental, mas sim as notas disponíveis a serem executadas sobre o contexto
harmônico em questão. Cada escala passa a representar um conjunto de notas
possíveis de serem tocadas em qualquer ordem, independentemente de sua
condução intervalar (por qual nota se começa, se o movimento é por salto ou grau
conjunto, etc.).

Por exemplo, sobre o acorde de Dm7 (Ré menor com sétima) se aplica
frequentemente durante a improvisação o modo Ré dórico (Fig. 2 e 3), o qual, do
ponto de vista digital e instrumental, possui as mesmas notas disponíveis da
escala de Dó maior. Pontanto, para improvisar sobre C7M, Dm7, Em7, F7M, G7,
Am7 ou Bm7(♭5), convém priorizar o aprendizado das digitações dos desenhos de Dó
maior, não sendo necessário criar digitações específicas para todos esses modos
(Jônio, Dórico, Frígio, Lídio, Mixolídio, Eólio e Lócrio).

Essa metodologia pode ser naturalmente aplicada para as 12 tonalidades.


Seguindo esse pensamento, e exercitando já uma pequena transposição, Fá Jônico

terá as mesmas notas de Sol Dórico, Lá Frígio, Si♭ Lídio, Dó Mixolídio, etc. Dessa

maneira, todos os seguintes acordes de seu campo harmônico: F7M, Gm7, Am7,

Bb7M, C7, Dm7 e Em7(♭5) podem usar este mesmo desenho:


52

Figura 14: Desenho Fá maior

Também de forma semelhante, aplicando o mesmo conceito à escala menor


melódica, o desenho abaixo pode ser usado para se tocar sobre os acordes
provenientes dos modos da escala Dó menor melódica: Cm7M, Dm6(♭2), E7M(#5),
F7(#11), G7(9, ♭13), Am7(♭5,9), B7alt (♭5,#5, ♭9,#9)

Figura 15: Desenho Dó menor melódica

A utilização deste recurso diminui significativamente a quantidade de material


de digitação escalar a ser memorizada. Entretanto, embora esse mecanismo vise
facilitar a memória digital dos desenhos, é indispensável, como visto anteriormente,
que o improvisador tenha consciência a respeito do cenário harmônico sobre o qual
ele está criando a melodia, uma vez que o caráter e a escolha das notas é sempre
diferente de um acorde para outro. Na hora de improvisar, terá maiores
possibilidades e recursos expressivos o improvisador que souber com clareza (e
velocidade) quais as opções de notas a serem tocadas de forma a soarem coerentes
com a harmonia – assim como as que irão provocar maior tensão.

Quanto às duas escalas primárias geradoras de modos (maior e menor


melódica), em função de seu uso recorrente, é imprescindível conhecer bem suas
digitações e localizações no braço do instrumento, uma vez que a razão principal
53

pela qual se pratica os desenhos é alcançar maior liberdade para combinar os


diversos intervalos de forma mais consciente.

Ao aprimorar a velocidade com que se acessa possíveis combinações


intervalares, associadas ao resultado sonoro produzido pelo movimento, o
improvisador caminha na direção da liberdade, já que a insistência nesta prática
amplifica a conexão entre ouvido interno e mecânica digital. Idealmente, como
sugerido por Aebersold, o que se persegue é capacidade de reproduzir
imediatamente no instrumento a linha melódica que se ouviu na mente
minisegundos antes.

Abaixo estão representados 5 desenhos para cada uma das escalas


primárias, de forma a cobrir todo o braço do instrumento:

Figura 16: Desenhos de Dó maior


54

Figura 17: Desenhos de Dó menor melódica

Ao se praticar os desenhos, convém empenhar-se em superar os limites das


casas, transcender a digitação específica, e enxergar o braço do instrumento como
um grande campo de possibilidades. É como se, na cabeça do músico, acendessem
simultaneamente pequenas lâmpadas sobre cada nota da escala em questão,
revelando os lugares “certos” a se pisar, assim como o universo de perspectivas
sonoras referentes àquele acorde. Na figura abaixo, os pontos representam as
“pequenas lâmpadas” no braço do violão – ou a escala de Dó maior, vista por esse
ângulo:

Figura 18: Dó Maior no braço do violão


55

Conhecer bem os arpejos das tétrades básicas dentro dos desenhos também
faz com que o solista possa garantir uma boa coerência entre solo e harmonia,
ampliando o leque de possibilidades expressivas. Ser capaz de localizar com
precisão as notas dos acordes sobre os quais se está solando também contribui
significativamente para a melhor adaptação do desenho escalar à harmonia em
questão, já que representam importantes pontos de apoio e consonância,
indispensáveis para orientar a direção do fraseado.

Ø Nota-alvo, prioridade harmônica e outros conceitos

A nota-alvo é a nota que conclui uma frase, ou que é articulada no tempo forte
de um compasso, produzindo um efeito particular sobre a harmonia. Ao criar uma
estrutura musical, o solista conduz o discurso de forma a concluí-lo (ou produzir
pontos de apoio) em notas que produzam um efeito específico e desejado sobre
uma determinada harmonia. Ao pensar no conceito de nota-alvo, o solista imprime
inflexão à improvisação.

O processo do desenvolvimento de um solo improvisado ocorre de maneira


muito similar à organização do discurso falado. Pensar em notas-alvo contribui para
pontuá-lo; seria como enfatizar uma sílaba ou termo, ou respirar entre frases para
dar maior importância a uma ou outra palavra. É também uma poderosa ferramenta
de educação musical para iniciar estudantes de música na prática da improvisação,
pois notas-alvo normalmente são tensões ou notas do acorde. Como visto no
exemplo abaixo, a primeira frase usa a nota-alvo ré – uma tensão (nona); as duas
seguintes notas do acorde, respectivamente as notas mi (terça maior) e si (sétima
maior):
56

Figura 19: Notas-alvo

Exemplo Musical 4: Notas-Alvo

De posse de um esqueleto dos pontos de apoio, o solista desenha o seu solo


através do uso de notas de passagem, dinâmica, cromatismos, variações rítmicas,
antevendo os encadeamentos seguintes.

Estes são conceitos que irão também nortear a abertura para a liberdade
expressiva da improvisação: através do uso de pontos de apoio o solista se vê livre
para tocar praticamente qualquer nota entre eles, desde que amparado pelos pontos
pivô. É possível dessa maneira improvisar dentro de um contexto tonal utilizando até
mesmo frases atonais, que quando amarradas por esses pontos tem a sua unidade
de discurso garantida.
57

No desenvolver de uma improvisação, o instrumentista deve estar todo o


tempo consciente do discurso harmônico. São justamente as relações de tensão e
relaxamento que impulsionam o movimento fraseológico. O princípio segue a regra
básica do sistema tonal: dissonância gera tensão e consonância, relaxamento. A
harmonia reproduz esse paradigma por meio de elementos como a resolução do
trítono na relação dominante " tônica (tensão/relaxamento), acréscimo de tensões
ao acorde dominante, etc. Partindo desse pressuposto, quando o instrumentista
constrói uma frase sobre a harmonia de um acorde dominante, suas opções de
escala, as notas de passagem, os cromatismos, por exemplo, serão direcionados a
criar tensão, usando maior dissonância para estabelecer desconforto acústico e
produzir no ouvinte a necessidade de retorno ao porto seguro da tônica (resolução).

Figura 20: Frase acompanhando o discurso harmônico

Exemplo Musical 5: Frase acompanhando o discurso harmônico

O juízo concernente à decisão de qual caminho seguir, está interligado à sua


sonoridade e impacto psicológico e emocional, associado a uma progressão
específica dentro de um momentum particular de expressão. Ou seja, como se trata
de um fenômeno acústico, suscetível de interpretação temporal, a sonoridade é
decodificada de acordo com as proposições do discurso musical. É o ouvido
harmônico que relaciona estruturas e estabelece os critérios de interpretação.
58

***

Um critério de improvisação bastante difundido é o de ‘prioridade harmônica’,


no qual se selecionam as notas-alvo baseando-se na relação dessas com o acorde
de fundo.

Quando improvisa com prioridade harmônica, o solista cria uma linha


melódica pensando primariamente na progressão de acordes e
desenha especificamente seu material melódico de acordo com ela,
identificando importantes notas-alvo e criando passagens melódicas
que posicionam esses alvos nos tempos fortes do compasso.
(NORGAARD, 2008, p. 76)55.

No momento em que se opta por este procedimento, o solista define suas


escolhas baseado na harmonia, a qual passa a ser pensada linearmente, como se
as notas estivessem dispostas horizontalmente, descortinando intervalos e tensões
melódicas resultantes das diferentes combinações possíveis.

Esse conceito se contrapõe ao de “prioridade melódica” na medida em que


este último privilegia a escolha das notas baseadas em estruturas melódicas – em
outras palavras, uma busca por um tema que tenha um sentido em si mesmo,
relegando a consonância harmônica a um segundo plano.

As estruturas harmônicas e melódicas dentro de uma forma que


oferece contexto para improvisação tonal no jazz contém estruturas de
frase pré-determinadas. Às vezes as frases de um solo improvisado se
alinham com as frases da estrutura do acorde que está por trás, mas
tensão expressiva pode ser criada ajustando deliberadamente a
estrutura da frase de modo que ela não se alinhe com as frases
sugeridas pela harmonia. (NORGAARD, 2008, p. 3)56.

55
When improvising with harmonic priority, the improviser creates a melodic line by thinking
primarily about the underlying chord progression and specifically shapes melodic material
accordingly, identifying important chord “target notes” and creating melodic passages that
place these targets on the strong beats of the measure
56
The chord and melodic structures within a chorus that provide the context for tonal jazz
improvisation contain predetermined phrase structures. At times the phrases of the
improvised solo align with the phrases of the underlying chord structure, yet expressive
tension may be created by deliberately adjusting the phrase structure of the solo so that the
structure does not align with the phrases suggested by the harmony.
59

É possível desmembrar auditivamente o universo harmônico em intervalos


melódicos. Com a prática, o improvisador ouve um acorde com notas tocadas
simultaneamente e conecta diferentes possibilidades intervalares formando em sua
mente um variado rol de opções. Através do estudo sistemático da improvisação
(que inclui diversas abordagens e experimentações), ele aprende a memorizar e
discernir as sonoridades decorrentes de cada escolha – e durante o solo, sua se
ocupa em acessar o ‘banco de dados’ e eleger os intervalos que formarão a melodia
– sempre conduzido pelo ouvido.

No jazz, o acorde é sinônimo de universo escalar, podendo não apenas o


solista mas também o acompanhador servir-se igualmente de qualquer tensão
disponível na escala para montar seu acompanhamento. A cifra, muito mais do que
dizer as notas referentes àquela cifragem específica, simboliza uma sonoridade. Por
exemplo, embora na cifra de uma tétrade apenas 4 notas estão designadas, todo o
conjunto das 7 notas que compõe aquela escala estão disponíveis para o
acompanhamento.

As inversões dos acordes apresentam menor relevância no contexto mais


amplo, sendo a cor do acorde e sua fundamental praticamente os maiores fatores de
caracterização harmônica no ato do improviso. No jazz, por exemplo, o baixo está
frequentemente caminhando enquanto o solista se preocupa em organizar seu
fraseado sobre um cenário harmônico específico, onde a harmonia representa um
universo, ou uma cor de fundo sobre a qual é possível adicionar outras cores,
realçar desenhos e recriar geometrias musicais.

Essa ideia de um baixo que percorre todo o desenho harmônico e lhe confere
sentido, mesmo que não audível, está constantemente presente no cotidiano da
improvisação. Um exercício comum e muito eficaz é o de, ao improvisar, cantar a
fundamental do acorde de maneira a conseguir entender claramente o
encadeamento e incorporar organicamente os caminhos e ritmos harmônicos
presentes na música.

Um músico de jazz possui a tendência de pensar um mesmo acorde de várias


maneiras diferentes, dependendo do perfil da sua resolução. Por exemplo o acorde
de [lá-dó-mi-fá♯] na tonalidade de Sol maior pode ser interpretado tanto como
60

subdominante II: Am6; como dominante VII na primeira inversão: F♯m7(b5)/A – ou


até mesmo D7(9) sem o D – dependendo da sequência atribuída:

Figura 21: Diferentes nomenclaturas e escalas para o mesmo acorde

Exemplo Musical 6: Diferentes escalas para o mesmo acorde

Dessa forma, a função que desempenha um determinado acorde é, de certa


forma, muito mais importante que o próprio acorde em si, sendo este um dos
parâmetros pelos quais sua sonoridade será determinada.
61

2.2 Vocabulário

Dentro do contexto de uma improvisação, vocabulário representa o conjunto


de ideias musicais conectadas por semelhanças estilísticas que compõe o tecido
estético de determinada linguagem, se aproximando, enquanto caracterização, de
seu correspondente na linguagem falada.

Assim como as crianças aprendem a falar sua língua nativa imitando


os mais velhos que já sabem falar, da mesma maneira jovens músicos
aprendem a ‘falar jazz’ imitando improvisadores experientes. Em parte,
isso envolve a aquisição de um vocabulário complexo de frases
convencionais e componentes de frase, dos quais improvisadores
lançam mão na hora de formular uma melodia de um solo de jazz.
Improvisos completos gravados também fornecem modelos
(BERLINER, 1994, Kindle Edition Pos. 2292).57

A frase é o elemento organizador da linguagem, o que a define. Na música, o


vocabulário é formado por padrões de múltiplas combinações paramétricas (o
correspondente a palavras e expressões na linguagem verbal) que através de
sucessivas reincidências e repetições ao longo do tempo estabelecem uma
determinada configuração a que se denomina estilo musical. Fazem parte desta
grande gama de possiblidades expressivas inúmeros componentes, os quais
constituem o corpo inteligível de uma frase musical. São exemplos de parâmetros
relacionados a este conceito de linguagem: intervalos melódicos, inflexão, discurso,
articulação, acentos, agógica, motivos, a relação do solo com o acompanhamento,
etc.

São estes aspectos os responsáveis por garantir que o ouvinte consiga


reconhecer um estilo, assim como situá-lo esteticamente. Através da combinação de
intervalos e ritmos próprios, músicos também são capazes de se comunicar através
de seus instrumentos e interagir coletivamente. Essa identificação auditiva que se dá

57
Just as children learn to speak their native language by imitating older competent
speakers, so young musicians learn to speak jazz by imitating seasoned improvisers. In part,
this involves acquiring a complex vocabulary of conventional phrases and phrase
components, which improvisers draw upon in formulating the melody of a jazz solo.
Complete recorded improvisations also provide models.
62

no âmbito da improvisação idiomática é o que possibilita o entrosamento imediato


dos músicos habituados a se expressar através de um mesmo estilo:

“Geralmente eu vejo as pessoas improvisarem, mesmo tocando jazz, e


você percebe quando a pessoa vem do choro, porque elas têm o
vocabulário do choro, são melodistas e melodistas maravilhosos.
Quando você toca com um instrumentista que veio do choro,
principalmente pra mim que venho do choro, fica muito fácil tocar junto
com ele.” – Toninho Ferraguti (VALENTE, 2014, p.304).

Todo o conhecimento a respeito da prática da improvisação só adquire


sentido e aplicabilidade se agregado à capacidade de escutar e reagir rapidamente a
uma informação musical. Supõe-se que tal fato deva ocorrer coletivamente, já que o
que confere sentido e emoção a um trecho é justamente o produto final resultante da
sobreposição de solo e acompanhamento. Uma vez que todos os participantes da
execução estão de alguma maneira improvisando – reagindo, conversando
musicalmente entre si –, quanto mais profunda for a conexão de todos com a matriz
de expressão do estilo em questão, mais intenso e coeso será o resultado artístico.

Um estilo musical é como um sotaque, são as pequenas idiosincrasias, seus


acentos e articulações que o distinguem e o tornam único. No choro, que assim
como o jazz teve sua origem na experimentação da improvisação, não é diferente:

O choro, como outros gêneros musicais, possui códigos próprios –


responsáveis por traços de sua personalidade – que geraram ao longo
de sua história um “vocabulário” também próprio. [...] Analisando a
música de Pixinguinha, percebe-se um estilo comum de fraseado
composto por módulos (patterns, para os jazzistas) que, agrupados e
arranjados de diferentes maneiras, caracterizam sua composição
(SÈVE, 1999, p.7).

Como a improvisação nasce da indissociabilidade entre os papéis de


compositor e instrumentista, sendo compor e executar – neste contexto – gestos
consubstanciados, uma arte acaba por influenciar a outra. Estruturas de vocabulário
tem sua gênese em situações resultantes de um processo composicional: derivam
de frases pensadas e compostas por músicos, sendo ao longo do tempo
persistentemente permutadas, aplicadas e repetidas em diferentes contextos até
adquirirem vida própria e se estabelecerem como linguagem.
63

Essa característica não é exclusiva do choro e do jazz, mas de qualquer


linguagem onde figure a espontaneidade de criação e/ou manipulação do texto
musical.

J.S. Bach e seus alunos possuíam um vocabulário de floreios e outros


gestos de ornamentação [...] as Fantasias escritas são provavelmente
meramente os sobreviventes visíveis de uma tradição de improvisação
(SCHULENBERG, 1995, p. 20 e 26).58

Este processo se torna evidente ao se perceber a recorrência temática e


motívica que percorre a obra de diversos compositores, e que acabou por constituir
o estilo de uma geração. Abaixo, é possível reconhecer o mesmo motivo melódico
usado por J.S. Bach em três obras diferentes, o que exemplifica de certa forma a
recorrência de elementos de linguagem.

a) Fugue BWV 998 para alaúde solo

Figura 22: J.S: Bach – Fuga BWV 998 para alaúde solo

Exemplo Musical 7: Fuga BWV 998

58
J. S. Bach and his students possessed a vocabulary of flourishes and other ornamental
gestures [...] notated fantasies are probably merely the visible survivors of an improvising
tradition.
64

b) Preludio BWV 881 (Cravo bem temperado Vol. II)

Figura 23: J. S. Bach – Preludio BWV 881 (Cravo bem temperado Vol. II)

Exemplo Musical 8: J. S. Bach – Preludio BWV 881

c) Matthäus-Passion; Aria ‘Blute nur du liebes Herz’

Figura 24: J.S. Bach – Matthäus-Passion; Aria ‘Blute nur du liebes Herz’

Exemplo Musical 9: J.S. Bach – Matthäus-Passion; Aria ‘Blute nur du liebes Herz’
65

De maneira similar, Mozart usa exatamente a mesma frase em situações


diferentes.

Figura 25: . W. A. Mozart – Concerto para Piano n. 17 K453 em Sol M (1° Mov.)

o
Figura 26: W. A. Mozart – Sonata para violino e piano K454 em Sib Maior (1 Mov.)

Se essa recorrência motívica é observada na música escrita, certamente


estaria também presente na improvisação cotidiana destes grandes músicos. Isso se
tornou mais fácil de ser observado no século XX, com o advento da possibilidade de
registro sonoro, e portanto, de realizar gravações de improvisos, como nesse caso
de Charlie Parker (BERLINER, 1994, Kindle Edition):
66

Figura 27: Diferentes solos de Charlie Parker

A reutilização de uma mesma frase ou motivo é um recurso de uso


reconhecível também entre diferentes compositores e intérpretes. A frase abaixo,
por exemplo, é reconhecidamente utilizada por vários músicos de Blues: David
Baker na faixa “Kentucky Oisters” no disco Stratusphunk de George Russell a usa
como elemento motívico e compõe diversas derivações da mesma ideia; também é
parte da melodia de Ornette Coleman em “Blues connotation”, e é o tema de
abertura de Midnight Blues, gravada por Count Basie (COKER, 1997):
67

Figura 28: Frase de Blues

Como o vocabulário musical representa uma linguagem, é algo que tem o


potencial de adquirir grande alcance, produzindo forte impacto na cena musical e
influenciando gerações de músicos. Algumas vertentes deixaram profunda e
inegável marca na história da música:

Para melhor ou para pior, o vocabulário do Bebop refinado por Parker


e seus contemporâneos permaneceu uma fonte explícita de
inspiração, ou, no mínimo, um ponto de referência para praticamente
todos os estilos de jazz pós-bebop durante o próximo meio século
(GIOIA, 2011, p. 215).59

A compilação no video a seguir ‘The Lick’60 mostra, de forma impressionante,


como uma mesma frase de Bebop foi incontavelmente reutilizada por inúmeros
instrumentistas, aparecendo em múltiplas configurações e em manifestações
musicais das mais diversas.

Exemplo Musical 10: “The Lick”

59
For better or worse, the bebop vocabulary refined by Parker and his contemporaries
remained either an explicit source of inspiration or, at a minimum, a reference point for
virtually all postbop jazz styles during the next half-century.
60
Lick é uma expressão em inglês frequentemente usada no ambiente de jazz para designar
uma frase ou motivo melódico marcante. Normalmente está associado a ideia de ser
repetido e aplicado em diferentes situações.
68

Aqui se apresenta a mesma pergunta do início do capítulo: como desenvolver


o vocabulário? Seria algo inato? Sem dúvida, crescer absorvendo naturalmente as
sutilezas de linguagem que a distinguem, é um fator relevante no que diz respeito à
naturalidade com que os códigos e maneirismos intrínsecos ao estilo serão
incorporados à forma de tocar do músico.

Da mesma maneira, como alguém pode aprender uma língua estrangeira e se


comunicar praticamente sem sotaque, é possível aprender e se desenvolver em uma
linguagem ainda que não se tenha nascido com ela.

Decidi que o melhor que eu poderia fazer seria transcrever os solos


para o papel nota a nota, e alinhá-las à harmonia da música,
analisando as notas de acordo com os acordes que estavam sendo
tocados. Aí eu iria aprender: ‘Ah, você pode fazer isso nessa hora,
aquilo na outra’. Era como se eu estivesse aperfeiçoando meu
vocabulário – Art Farmer (In: BERLINER, 1994, Kindle Edition pos.
2290).61

Uma opinião unânime entre improvisadores diz respeito à necessidade de se


investir na construção de um vocabulário melódico na rotina de estudos. Se não
através da transcrição (modo mais habitual), então pela composição de padrões
associados a agrupamentos rítmicos e harmônicos.

Uma vez que a lógica da construção do conhecimento nos aspectos


relacionados ao vocabulário é similar à da linguagem falada ou escrita, quanto mais
melodias, frases, agrupamentos motívicos, etc. forem memorizadas, dominadas e
variadas, melhor será a fluência da improvisação (assim como, de forma análoga,
quanto mais palavras um indivíduo conhecer, maior será sua capacidade de
comunicação e expressão em um idioma).

61
I decided the best I could do would be to write the solos down, note for note, and line them
up with the harmony of the song, analyzing the notes according to the chords that were being
played. Then I would learn, ‘Well, you can do this at this time. You can do that at that time.’ It
was like getting your vocabulary straight.
69

Abaixo, o pianista de jazz Herbie Hancock, aclamado e internacionalmente


reconhecido por suas improvisações, relata como começou a decodificar os
elementos que compõe o vocabulário de jazz:

Por causa da forma como a minha mente funciona, eu percebia


padrões. Eu tocava uma frase, anotava, e pensava: 'pera lá - ele
acabou de usar essas mesmas notas em outra frase antes na música’.
Eu não sabia como o jazz era construído, então eu tinha que descobrir
conforme eu ia fazendo. Para mim, a improvisação soava como um
fluxo de consciência. Mas ao mesmo tempo eu sabia que não podia
ser, porque era tão organizado (HANCOCK, 2014, Kindle Edition pos.
350).62

Como em toda linguagem, os parâmetros musicais necessitam ser


primeiramente decodificados para então se tornarem passíveis de manipulação. É
através do reconhecimento e aprendizado de padrões melódicos que se constrói a
habilidade de conectar diferentes modelos e arquétipos de forma que conduzam a
uma expressão poética livre e verdadeira.

Considerando que, no âmbito da improvisação, vocabulário diz respeito a


estruturas melódicas idiossincráticas passíveis de aprendizado, memorização e
replicação, surge outra questão, quanto à medida dessa unidade melódica. O
tamanho das estruturas é variável, embora pequenas células de 4 ou 5 notas se
comprovam mais maleáveis para serem recombinadas. Quando um improvisador faz
frases longas, na maior parte dos casos são combinações de estruturas menores,
uma colada na outra.

Neste contexto, uma outra pergunta que se apresenta é: uma vez que é
imperativo que essas estruturas sejam acionadas em tempo real durante o solo, qual
seria o fator primordial de identificação associativa necessário para acioná-las
rapidamente?

62
Because the way my mind works, I noticed patterns. I’d play a phrase, write it down, and
think, ‘wait a minute – he just used those same notes in another phrase earlier in the song’. I
didn’t know how jazz was constructed, so I had to figure out as I went along. To me,
improvisation sounded like a stream of consciousness. But at the same time I knew it
couldn’t be, because it was so organized.
70

Toda peça de vocabulário na improvisação idiomática parte do princípio da


necessidade de relacionar a frase melódica com um contexto harmônico. Ao
memorizar a frase, demonstra-se indispensável aplicar simultaneamente o cenário
onde ela estará potencialmente inserida, do contrário ela permanecerá sem força
expressiva, sem conexão temática. O principal gatilho que dispara a associação com
os padrões, é o ambiente harmônico e formal.

O bom improvisador está sempre consciente da forma musical sobre a qual


está realizando um solo. Como um jogador de xadrez que antevê inúmeras jogadas
à frente, ao improvisar, o músico com experiência é capaz de antever os pontos de
apoio que irão nortear a evolução de seu discurso, incorporando pequenas
estruturas como parte de sua expressão musical.

***

“O som fora do papel”

O ouvido se revela de grande importância no campo das percepções sutis


relacionadas ao vocabulário idiomático. É a audição atenta e progressivamente
treinada que permite a expansão da compreensão das minúcias inerentes aos
diferentes sotaques e suas dinâmicas específicas.

Na música popular como um todo, a representação da tradição oral63 , assim


como a transmissão do conhecimento pela experiência sonora, ocupa um espaço de
destaque na formação dos músicos. No campo do vocabulário, uma atividade que
possui um papel de grande relevância no processo de desenvolvimento das
habilidades idiomáticas é a transcrição. Transcrever (ou na linguagem coloquial
‘tirar’) um solo significa aprender a tocá-lo através de uma gravação. A assimilação
dos movimentos digitais acontece em conjunto com a incorporação orgânica de

63
O choro é um exemplo de estilo que por um século sobreviveu apenas com o sistema de
aprendizagem da tradição oral. Aprende-se frequentando as rodas, experimentando,
errando e fazendo de novo. É uma relação individualizada, onde inclusive, o ambiente
haveria de acolhê-lo. Ou seja, não era nem uma escolha do próprio interessado, havia a
necessidade de aprovação dos mais antigos para que pudesse participar das rodas,
perguntar questões musicais. A quantidade de informação compartilhada era diretamente
proporcional ao afeto ou simpatia sentida para com o novato.
71

elementos idiomáticos, já que, por meio da imitação intuitiva de seu sotaque original,
o músico consequentemente o absorve de forma natural.

Esse aprender ‘de ouvido’, diretamente pelo som e sem passar pela partitura,
resulta na construção de um ambiente onde a linguagem estilística passa a ser o
elemento primário de comunicação.64

Herbie Hancock exemplifica como foi sua experiência dessa relação do


vocabulário com o ouvido em sua juventude:

Continuei trabalhando para encontrar as frases de que eu gostava, e


então as transcrevia para a partitura. Eu não sabia disso na época,
mas também estava fazendo treinamento de percepção – estava
afiando meu ouvido relativo, ao mesmo tempo em que estava
aprendendo as frases. Eu fazia isso durante horas todos os dias,
expandindo de George Shearing para outros pianistas, como Errol
Garner e Oscar Peterson. Quanto mais eu aprendia, mais eu queria
aprender (HANCOCK, 2014, Kindle Edition pos. 350).65

Ran Blake, professor do New England Conservatory, em Boston (EUA), onde


criou o departamento de Contemporary Improvisation, e um dos mentores do
conceito de “Third Stream”66, adota em suas aulas uma pedagogia musical voltada
intensamente para o desenvolvimento das habilidades auditivas. Defensor da
filosofia que poderia ser definida pelo ditado: “Você toca o quanto você ouve”, Blake
insiste na ideia de que a formação deve ser primariamente auditiva: quem ouve
melhor, toca melhor.

64
Em casos onde esse processo não vem acompanhado de um ensino teórico, o músico
pode eventualmente nem saber o nome de um acorde, e muito menos a teoria por trás dele,
mas sabe exatamente o lugar que ele ocupa lugar dentro forma, as possibilidades de frases
que se encaixam e como fazê-lo soar idiomaticamente, como seus mestres predecessores.
65
I kept working to find the phrases I liked, and then I’d transcribe them onto music paper. I
didn’t know it at the time, but I was also doing ear training – I was sharpening my relative
pitch at the same time I was learning the phrases. I did this for hours each day, branching
beyond George Shearing into other piano players, like Errol Garner and Oscar Peterson. The
more I learned, the more I wanted to learn.
66
Termo criado em 1957 por Gunther Schuller, se propõe a descrever um gênero musical
que sintetiza a união entre a música clássica e o jazz, e trata a improvisação como aspecto
vital.
72

Solfejo é ensinado visualmente. É claro que é desejável ser capaz de


cantar uma partitura à primeira vista. Mas é apenas uma casca.
Informações musicais podem ser transmitidas, mas o processo não
altera ou extende o âmbito do que uma pessoa ouve – NÃO DEFINE A
PERSONALIDADE MUSICAL. Afirmamos, no entanto, que ouvir o que
se toca e escrever (mesmo que seja uma ferramenta profissional
extremamente importante) não vai por si só expandir a imaginação
auditiva. Agora, alguns professores de música de concerto podem
afirmar que seus alunos seriam corrompidos por aprender, por
exemplo, uma gravação de Pablo Casals de uma suíte de Bach cello
de ouvido antes de ler a partitura. Isso levanta a questão: Qual mal
possível há no fato de um estudante analisar e internalizar
auditivamente o estilo interpretativo dos grandes artistas clássicos,
antigos e atuais, como um passo no sentido de desenvolver o seu
próprio estilo interpretativo? Na tradição da música negra esta é a
norma e não a excepção. Billie Holiday se tornou a cantora mais
original de sua época, estudando as gravações de seus mentores
Louis Armstrong e Bessie Smith, em vez de estudar a notação escrita
de suas músicas (BLAKE, 1981).67

Qualquer improvisador poderia afirmar que não adianta ler uma frase na
partitura sem vivenciar a experiência estética do estilo. Isso se deve ao fato de
existirem muitos outros elementos que trabalham junto com a frase na criação da
expressão musical, como por exemplo, a relação dela com o acompanhamento, seu
comportamento quando aplicada sobre outros instrumentos de base, etc.

Charlie Parker, por exemplo, usa em seus solos uma inflexão que lembra
muito a fala. Assim, se um estudante de jazz começa a aprender apenas pela
partitura sem reconhecer o acontecimento sonoro no tempo e espaço, estará
totalmente desconectado do estilo. Especialmente na improvisação, embora se

67
Solfeggio is taught through the eye. Of course, it is desirable to be able to sight-sing a
score. But it is only a shell. Musical information can be transmitted, but the process does not
really alter or extend the scope of what a person hears - IT DOES NOT DEFINE THE
MUSICAL PERSONALITY. We contend, however, that hearing what one plays and notating
this (even though this is an extremely important professional tool) will not by itself expand
one’s aural imagination. Now some teachers of concert music performance may contend that
their students would be corrupted by learning by ear, for example, a Pablo Casals recording
of a Bach cello suite before reading the score. This raises the question: What possible harm
is there in a student scrutinizing and aurally internalizing the interpretive style of the great
classical performers, past and present, as a step towards developing his or her own
interpretive style? In the African-American tradition this is the norm rather than the exception.
Billie Holiday became the most original singer of her era by studying the recordings of her
mentors Louis Armstrong and Bessie Smith rather than studying the written notation of their
music.
73

possa pensar semelhantemente para todo tipo de musica, a partitura é nada mais
que uma guia, e o resultado sonoro o fator determinante a ser perseguido

2.3 Flexibilidade

O último pilar da proposta desenvolvida nessa tese para o aprofundamento da


prática da improvisação trata do princípio de Flexibilidade. Uma das características
primordiais desta ideia é a busca pelo desenvolvimento da capacidade com a qual o
instrumentista consegue combinar conscientemente diferentes elementos musicais,
seja ele interválico, escalar, motívico, rítmico, melódico, harmônico, etc.

Para improvisar não basta apenas saber as frases isoladas, conhecer a


harmonia e dominar arpejos, mas sobretudo, ser capaz de aplicar os conceitos
rapidamente em diferentes contextos. Isso se torna uma habilidade indispensável a
qualquer músico que se aproxima da improvisação. O estudo da flexibilidade busca
conferir maior elasticidade à capacidade de realizar diferentes combinações
paramétricas.

Um dos importantes vetores de atuação prática na área da flexibilidade para a


improvisação é a transposição. Esse conceito perpassa toda a história da prática da
improvisação, como também comprovam os escritos de Czerny, constantes de seu
manual de improvisação de 1829:

Naturalmente, deve-se transpor estes e outros exemplos semelhantes


em todas as tonalidades, alternar essas passagens com outras
também apropriadas, e saber apresentar tudo com tanta facilidade e
espontaneidade que os preludios mantenham o caráter de ideia
momentânea. Pois nada perturba mais o seu efeito do que quando se
vê que foi muito estudado (CZERNY, 1829, p.9).68

68
Natürlicherweise muss man diese und ähnliche Beyspiele in alle Tonarten übersetzen, die
Passagen mit anderen schicklichen abzuwechseln, und alles mit solcher Leichtigkeit und
Ungezwungenheit vorzutragen wissen, dass die Vorspiele den Charakter des
Augenblicklichen Einfalls erhalten. Den nichts stört mehr deren Wirkung, als wenn man ihnen
das Eingelernte ansieht.
74

Em seu livro ‘The improvising mind’, Aaron Berkowitz aponta que a


transposição é um elemento que integra o processo de desenvolvimento de
habilidades improvisativas em diversas culturas:

De forma análoga ao uso de transposição para diferentes tonalidades


no sistema tonal, como jazz e música clássica ocidental, músicos
Hindustani [música do norte da Índia] aplicam um princípio similar,
praticando realizações de fórmulas de materiais musicais em
diferentes modos e molduras rítmicas (BERKOWITZ, 2010, p. 42).69

E ressalta a importância do estudo da transposição, de modo que isso


possibilite um fluxo de criação contínua ao improvisar:

Aprender fórmulas em todos os tons até o ponto em que possam ser


executadas instantaneamente e sem planejamento prévio é um
componente essencial no aprendizado da improvisação dentro de um
estilo. Fórmulas fundamentais devem se tornar automáticas. [...] A
automatização ocorre através de ensaios repetidos, e pode ser
descrita como uma mudança de nível: de processos controlados que
dependem da memória de curto-prazo para sequências automatizadas
na memória de longo-prazo (BERKOWITZ, 2010, p. 42).70

A rotina de praticar a transposição contribui significativamente para a


formação do ouvido, assim como da intimidade com o instrumento. A necessidade
de concentração exigida para executar corretamente os intervalos entre cada nota
provoca e estimula o desenvolvimento do conhecimento íntimo das caracteristicas
de seu vocabulário: a duração de cada frase, seu contorno, a estrutura intervalar, os
acentos.

69
Analogous to the use of transposition to different keys in tonal systems such as jazz and
Western classical music, Hindustani musicians thus apply a similar principle, practicing
realizations of underlying formulaic musical materials in various modes and rhythmic
frameworks.

70
Learning formulas in all keys to the point at which they can be performed instantly and
without preplanning is an essential component of learning to improvise in a style.
Fundamental formulas must become automatic. [...] Automatization occurs through repeated
rehearsal, and can be described as a shift from controlled processes relying on short-term
memory to automatic sequences in long-term memory.
75

Além disso, a busca para ser capaz de tornar um motivo acessível a qualquer
tom, em qualquer oitava, permitirá adquirir maior maleabilidade de combinação,
permitindo que essas estruturas possam ser mais facilmente arranjadas e
conectadas de forma a construir projetos fraseológicos maiores.

Outro aspecto que assume um papel relevante no estudo da flexibilidade é a


ideia de limitar o espectro paramétrico para proporcionar o desenvolvimento
localizado: ao se concentrar em um determinado elemento e realizar variações do
mesmo, o improvisador pouco a pouco passa a ganhar maior controle sobre aquela
esfera específica. Partindo de um escopo maior para um fracionamento dos
parâmetros em menores estruturas, busca-se inicialmente ampliar a flexibilidade de
um pequeno fragmento local, para então progressivamente expandir a capacidade
de controle global.

Este é um conceito que pode ser aplicado a aspectos de qualquer natureza:


rítmica, melódica, harmônica. Por exemplo, ao invés de praticar a música
sequencialmente do início ao fim, um estudo possível seria se concentrar em apenas
um acorde; uma vez gravada a base com o acorde de fundo, passar a se ater
apenas a um desenho; neste desenho então focar em um tipo de intervalo (sextas,
por exemplo), com um tipo de figuração rítimica; após passar um tempo confortável
com estes elementos, alternar um parâmetro – outro tipo de intervalo ou desenho e
gradativamente ir adicionando camadas de maiores demandas cognitivas.

É extremamente produtivo que inicialmente se reduza a quantidade de


elementos administrados durante o estudo. Na medida em que maior confiança for
alcançada, é possível expandir o número de combinações até alcançar permutações
mais complexas.

Para desenvolver as habilidades de um grande contador de histórias71,


artistas acham essencial dedicar algum tempo de prática para
improvisar em condições que simulam eventos musicais formais,

71
Do inglês, Storyteller. É uma expressão frequentemente usada no ambiente de jazz para
designar um bom improvisador, alguém que tenha bastante ‘assunto’ e sempre ‘diga alguma
coisa’ em seus solos.
76

impondo restrições máximas sobre a execução. (BERLINER, 1994,


Kindle Edition, pos. 4703).72

A prática de exercícios de flexibilidade promove a ampliação dos estímulos


cognitivos e multiplica as conexões cerebrais. O neurologista Mauro Muszkat chama
a atenção para o efeito que atividades relacionadas à música produzem nas teias
nervosas do cérebro humano:

Treinamento musical e exposição prolongada à música [...] aumentam


a produção de neurotrofinas produzidas em nosso cérebro em
situações de desafio, podendo determinar não só aumento da
sobrevivência de neurônios como mudanças de padrões de
conectividade na chamada plasticidade cerebral (MUSZKAT, 2012, p.
68).

Ao contrário do que se pensava no século XX, a ciência moderna provou que


o cérebro é capaz de se desenvolver criando novas conexões em qualquer idade.

O cérebro é plástico por natureza. Mesmo na velhice, até em


indivíduos com doença de Alzheimer, com doenças cerebrais, temos a
possibilidade de mobilizar novas conexões (MUSZKAT, 2012, p. 76).

Durante a improvisação, o intérprete se confronta portanto com inúmeros


elementos a serem controlados e organizados rapidamente, como a escolha das
notas e a reafirmação de aspectos idiomáticos em seu discurso. No intuito de
assegurar a precisão de execução, se torna imprescindível o desenvolvimento de
técnicas que possibilitem rápido acesso ao material musical. O modelo de
agrupamentos de memória de curto-prazo apresentado por Snyder ilustra de que
forma o intérprete processa as estruturas musicais durante a improvisação. Essa
forma de armazenamento das informações assume papel fundamental no processo
de improvisação.

72
To develop the skills of expert storytellers, artists find it essential to devote some practice
time to improvising under conditions that simulate formal music events, thereby imposing
maximum constraints upon performances.
77

Uma forma de expandir consideravelmente os limites da memória de


curto-prazo é através de "agrupamentos". É importante observar que o
número de elementos diferentes que persistem à memória de curta
duração é 7. Entretanto, um elemento pode ser formado por mais de
um item. Por exemplo, para se lembrar da ordem dos números:
1776149220011984, não é necessário decorar dezesseis números
uma vez que percebemos que esses dígitos podem ser decorados
como quatro datas (anos). Esses grupos de quatro números já foram
associados entre si tantas vezes que os dezesseis dígitos se tornaram
na verdade 4 elementos. Esses elementos são chamados de
"agrupamentos". Agrupar é consolidar pequenos grupos de elementos
de memória associada. [...] Uma unidade musical coerente como uma
frase é um exemplo de agrupamento (SNYDER, 2000. p. 54). 73

A mente adota essa estratégia em diversas áreas, como no processo de


memorização de uma poesia. No célebre poema de Gonçalves Dias, não se
memoriza separadamente as palavras ‘minha’, ‘terra’, ‘tem’, ‘palmeiras’, etc. A
estrutura é memorizada na forma de agrupamentos de palavras: ‘minha terra tem
palmeiras, onde canta o sabiá’. As 8 palavras passam a ser então um elemento.

Portanto, de modo análogo, pode-se dizer que o mesmo processamento de


agrupamentos realizado por nosso cérebro para aglutinar os números (ou poesia) é
usado para organizar grupos de notas e criar microestruturas, padrões e frases. Tais
estruturas reúnem informações musicais condensadas, como: intervalos, articulação,
dinâmica, ritmo, etc. e serão – no ato da improvisação – acessadas e escolhidas
dessas prateleiras de informações musicais pré-conhecidas e pré-estudadas.

A composição melódica de um improviso, portanto, não é feita nota-a-nota,


mas através desses agrupamentos, memorizados como estruturas (também
chamadas de padrões, modelos, ou ‘patterns’), da mesma maneira que a mente
humana organiza números e palavras. A triagem e seleção que definirá qual

73
"One way in which the limits of short-term memory can be stretched considerably is
through "chunking". Note that the number of different elements that can persist as Short-
Term Memory simultaneously is on average seven. An element may, however, consist of
more than one item. For instance, in order to remember the numbers 1776149220011984 we
do not really have to remember sixteen numbers once we realize that these digits can be
remembered as four dates. These groups of four numbers have been associated with each
other so many times that these sixteen digits have actually become four elements. These
elements are called "chunks". Chunking is the consolidation of small groups of associated
memory elements. […] A coherent musical unit such as a phrase is an example of a chunk."
78

estrutura coerente deve ser acionada em um determinado momento serão


conduzidas tanto por uma combinação de associações emotivas como racionais.

A memória auditiva pode funcionar na base do subconsciente – assim


como é possível repetir mecanicamente um número de telefone que se
ouviu –, mas em outros casos está ligada a uma reflexão ou
observação racional que dá ao cérebro a certeza da lembrança. A
criação desses elementos intensificará o processo de codificação que
permite programar a memória. É claro que a música é muito mais
complexa do que um número de telefone; é necessária muita análise e
a compreensão profunda da estrutura para se desenvolver uma
lembrança sólida de uma peça completa. É a isso que me refiro como
recordação: a realização da memória auditiva por esforço racional
(BAREMBOIM, 2009, p. 32).

Pressing, ao explicar cientificamente o fenômeno da improvisação, relacionou


interessantes descobertas recentes da neurociência com a prática musical. Aqui, ele
sugere que habilidades pontuais da mente podem ser expandidas através de
estimulação direcionada:

Foi provado que treinamento específico é capaz de produzir alguns


efeitos extraordinários, driblando limitações de memória ‘universais’,
notadamente a capacidade da memória de curto prazo de 7± 2
agrupamentos (Miller, 1956). Por exemplo o sujeito ‘SF’, no teste de
Chase e Ericsson (1981), começando com a capacidade normal da
memória de curta duração de cerca de sete números, aprendeu ao
longo de cerca de 250 horas de prática a memorizar seqüências
aleatórias de oitenta dígitos de números (apresentados um por
segundo) depois de apenas uma audição. Esta habilidade de memória
estava restrita a números; sua capacidade de reter sílabas ou outros
pequenos itens permaneceu no nível normal (PRESSING, 1998, p.
54).74

De forma a ilustrar alguns dos conceitos usados por instrumentistas na


improvisação e reconhecer a estrutura que rege esse processo, serão apresentadas

74
Specific training has been shown to produce some remarkable effects, circumventing well-
established “universal” memory limitations, notably the short-term memory capacity of 7± 2
“chunks” (Miller, 1956). For example Chase and Ericsson’s (1981) subject ‘SF’, starting with
normal short-term memory capacity of about seven numbers, learned over the course of
about 250 hours of practice to memorize random eighty-digit strings of numbers (presented
one per second) after only one hearing. This memory skill was confined to numbers; his
ability to retain syllables or other small items remained at normal level.
79

a seguir algumas ideias básicas de exercícios, a partir dos quais os músicos podem
ampliar sua flexibilidade de manipulação do material musical. Por trás desses
exercícios transita a ideia de construir um banco de dados na memória, para que o
material armazenado possa ficar a serviço da criatividade com maior
desprendimento.

Algumas sugestões para praticar flexibilidade seriam:

• Praticar escalas com diferentes intervalos: por terças, quartas, quintas, sextas
e sétimas.
• Tocar sempre uma nota ou tensão específica a cada mudança de acorde. Por
exemplo: sempre tocar a terça do acorde em questão na cabeça de cada
compasso. Depois a quarta, a quinta, a sexta, a sétima e a nona.
• Trocar de desenhos em lugares não usuais, ou fazer solos usando apenas
uma corda do instrumento.
• Compor ou transcrever motivos e repetí-los sobre diferentes situações,
alterando andamento, caráter e ritmo. Por exemplo: Tocar uma frase
originalmente binária em 3/4, adequando a inflexão ao novo compasso (e
vice-versa).
• Transpor ideias e fragmentos melódicos para todos os tons.
• Executar estruturas melódicas com agrupamentos rítmicos diferentes (5, 7,
11).
• Estabelecer diferentes combinações paramétricas sempre que possível.
• Quebrar a previsibilidade sempre.
80

A Flexibilidade, portanto, mais do que uma série de exercícios específicos, é


um conceito que deve ser aplicado no cotidiano da prática instrumental e pode ser
empregado sobre qualquer material musical.

A criatividade não é baseada na memória, mas faz uso dela a partir de


características únicas e específicas de automações pré-existentes. Por
esta razão, os nossos comportamentos e ações são resultado da
realidade biológica da capacidade "produtiva" da memória e seu
funcionamento (THOMASSIN, 2003, p.70).75

75
La créativité ne se fonde pas sur la mémoire, mais fait usage d’elle à partir des
caracteristiques singulières et specifiques à des automatismes préexistants. Pour cette
raison, nos comportements et nos actions résultent d’une réalité biologique du
fonctionnement et de la capacité “productive” de la mémoire.
81

CAPÍTULO 3: NOVAS TENDÊNCIAS DA IMPROVISAÇÃO

Improvisação – estar verdadeiramente no momento – significa explorar


o que você não sabe. Significa ir até aquele quarto escuro onde você
não reconhece as coisas. Significa acionar a parte de recordação do
cérebro, um tipo de memória muscular, e permitir que suas entranhas
prevaleçam sobre seu cérebro. Isso é algo que eu ainda trabalho
todos os dias: Aprender a sair do meu próprio caminho (HANCOCK,
2014, Kindle Edition pos. 349).76

A afirmação de Herbie Hancock descreve aspectos que perpassam algumas


das ideologias encontradas no âmbito da música improvisada da atualidade77. A
expressão do indivíduo e de sua própria essência humana, enxergando o artista
como um veículo para transmissão e comunicação de emoções, se tornou, ao longo
do século XX, um dos grandes paradigmas da arte como um todo. A improvisação
não iria deixar de espelhar essa busca pela experiência da transcendência.

O terceiro e último capítulo desta tese irá apresentar e discutir novas


tendências da improvisação e a aplicação prática desses conceitos. Serão
abordadas as maneiras como novos materiais são agregados à improvisação no
intuito de incrementar e potencializar a força poética de sua comunicação. Dentre os
novos paradigmas estabelecidos nas inúmeras manifestações da vanguarda
artística, aspectos como a pluralidade, a interdisciplinaridade e a multiculturalidade
da cena contemporânea passam a definir os novos elementos incorporados às
formas de expressão vigentes.

76
Improvisation – truly being in the moment – means exploring what you don’t know.It
means going into that dark room where you don’t recognize things. It means operating on the
recall part of the brain, a sort of muscle memory, and allowing your gut to take precedence
over your brain. This is something I still work on everyday: learning to get out of my own way.
77
A expressão música instrumental da atualidade se refere à música ’popular’ improvisada
feita hoje em dia. Embora trate-se aqui de uma prática musical do século XXI, essa maneira
de pensar a experimentação sonora no jazz é vista em diversos movimentos e artistas a
partir da década de 1950, como Miles Davis, Wayne Shorter, e no Brasil com Hermeto
Pascoal e Egberto Gismonti.
82

Atualmente, o que se observa primordialmente no cenário da improvisação é


a pluralidade. A acentuada ênfase na singularidade do indivíduo incentivou a
aparição de múltiplas facetas estilísticas, onde se encontram recorrentemente
propostas baseadas na fusão ou combinação de diferentes linguagens. A
improvisação puramente idiomática, por consequência, passa a ser encontrada
apenas em focos de regionalismos, sendo a tendência predominante aquela que se
apropria das mais diversas influências. O conhecimento de vocabulário continua
sendo fundamental para o improvisador, uma vez que qualquer melodia sempre se
remeterá a componentes de linguagem, ainda que aplicados de forma inconsciente e
em diferentes contextos.

Outra questão importante é a interdisciplinaridade. A incessante busca por


novas maneiras de comunicar uma expressão artística promove, por exemplo, a
ampliação do campo de possibilidades sonoras através: da utilização de recursos
tecnológicos, do processamento de dados em tempo real, da criação de softwares
de manipulação de efeitos tímbricos e da investigação acerca de novos espectros
acústicos.

Algo que também se destaca na cena atual, contribuindo significativamente


sobretudo para a ampliação das possibilidades rítmicas é a multiculturalidade: a
música regional de diferentes países foi incorporada à improvisação, originando o
aparecimento e confluência de ritmos exóticos, de novos instrumentos, de novas
concepções de orquestração e timbres originais, assim como a expansão da forma e
a utilização de outras escalas.

Novos ritmos, assim como maneiras diferentes de se pensar compassos e


divisões passaram a ser incorporados, reorganizando estruturas métricas e
paradigmas harmônicos. O comportamento de um solo deixou, portanto, de seguir
estereótipos, podendo ser textural, minimalista, pontilista, mântrico, etc.

Uma das importantes gravadoras que investiu em novas direções da música


improvisada foi a alemã ECM. Casa de nomes como Keith Jarrett, Pat Metheny,
Egberto Gismonti, Jan Garbarek, Kenny Wheeler e Tomasz Stanko, a cria do
produtor Manfred Eicher agiu como um indispensável pilar para o desenvolvimento
de novas linguagens de improvisação a partir da década de 1970.
83

[Os artistas da ECM] procuravam nada menos do que um


alargamento das técnicas de improvisação para incluir a totalidade do
vocabulário da música escrita. Ao invés de sons do jazz tradicional
convencional – síncopes, blue notes e substituições II-V – se
encontrou uma panóplia de outros dispositivos: zumbidos, ostinatos,
vamps, harmonias impressionistas, melodias Schubertianas, arpejos
cintilantes, ritmos ondulantes, interlúdios rapsódicos, exercícios
polifônicos antigos, e chocantes explosões expressionistas (GIOIA,
2011).78

Um dos importantes músicos que personificaram essa experimentação sonora


e o conceito de liberdade de linguagem foi o pianista norte-americano Keith Jarrett.
Por possuir domínio profundo das mais diversas correntes estilísticas, Jarrett não
somente expandiu a tradição da música improvisada, mas resgatou um perfil de
músico virtuose dos séculos XVIII e XIX, personificando em uma só figura os papéis
de compositor, improvisador e intérprete de sua obra.

O mundo contemporâneo do século XXI também assistiu à revolução da


informação onde tudo passou a estar acessível a todos; os conteúdos mais diversos
se tornaram disponíveis a qualquer pessoa conectada a um computador. A virada do
milênio vivenciou particularmente a mudança radical de aspectos centrais da cena
musical mundial.

Nunca foi tão fácil reproduzir uma música. Em nenhum outro momento
da história, as pessoas tiveram tamanho acesso às gravações
sonoras. A distribuição da música nas redes digitais permitiu que
artistas desconsiderados pela indústria fonográfica pudessem expor
sua produção para milhares de pessoas, ultrapassando os limites
impostos pelos controladores do mercado de bens artístico-culturais e
pela indústria do entretenimento. Um dos fenômenos mais
impressionantes da digitalização foi a ampliação da oferta de bens
musicais na internet, resultante da crescente facilidade de gravar,
editar e divulgar um álbum a custos baixíssimos (SILVEIRA, 2009, p.
27).

78
They sought nothing less than a broadening of improvisational techniques to include the
full vocabulary of composed music. Instead of the conventional mainstream jazz sounds –
syncopations, blues notes, II-V substitutions – one found a panoply of other devices: drones,
ostinatos, vamps, impressionist harmonies, Schubertian melodies, shimmering arpeggios,
undulating rhythms, rhapsodic interludes, pristine polyphonic exercises, and jarring
expressionist explosions.
84

Essa importante transformação paradigmática impôs uma nova organização à


classe artística: testemunhou-se não apenas uma revolução nos termos da
informação, mas na forma como a música seria concebida, gravada e distribuída,
aumentando-se bruscamente sua produção a cada ano. Comparativamente, é
possível afirmar que há, atualmente, maior número de lançamentos de gravações
em um mês que do que no ano inteiro de 1950 (GIOIA, 2011).

A improvisação contemporânea assistiu então a uma profunda redefinição do


conceito de liberdade quanto ao desenvolvimento de ferramentas que permitirão a
exploração do potencial expressivo de um artista. A cena da improvisação na música
instrumental atual passa a instituir uma ordem paradigmática, lançando mão de uma
grande valorização da autonomia criativa, posicionada em um importante patamar
hierárquico.

3.1 Nelson Veras

De forma a conferir uma perspectiva prática do que foi mostrado até aqui,
representando uma confluência dos aspectos tratados durante o capítulo 2, será
tomada como referência a obra do violonista Nelson Veras – um dos mais influentes
instrumentistas de sua geração e da música instrumental improvisada.

Veras representa a evolução da linguagem de improvisação ao violão. Músico


brilhante, possui um conhecimento profundo a respeito das mais diversas linguagens
musicais, e propõe caminhos originais e criativos para a improvisação
contemporânea. Sua obra tem se tornado referência não apenas para seus pares
violonistas e guitarristas, como para músicos de todos os instrumentos. Por meio de
seu trabalho, pode-se também aumentar a compreensão de como o gesto de
improvisar se relaciona ao de compor. Ao se deter nas peças aqui apresentadas,
percebe-se de que maneira as escolhas e os caminhos percorridos desenvolvem
uma nova linguagem e uma obra original a partir da inicial.

Suas improvisações apontam para uma organização sofisticada dos


elementos cromáticos e politonais dentro da hierarquia harmônica, utilizando
padrões intervalares não usuais na composição de suas melodias. Analisar sua
85

concepção de improvisação é também interessante por ele apresentar novas


perspectivas de concepção harmônica e justaposição de sonoridades aplicadas à
música brasileira.

Nelson Veras nasceu em Salvador, Bahia e com apenas 14 anos deixou o


Brasil para morar em Paris e se dedicar à carreira musical. Com essa idade,
chamou a atenção do diretor Frank Cassenti, que fez o filme Just a Dream (1991)
sobre o então menino prodígio e o encontro com seu ídolo da época, o renomado
guitarrista Pat Metheny. Ainda adolescente possuía uma carreira de destaque,
participando de projetos musicais de grandes ícones do jazz europeu, como Michel
Petrucciani e Aldo Romano.

Veras gravou diversos discos que se tornaram referência na área de


improvisação, como: Nelson Veras; Solo Session Vol. 1; Rouge sur Blanc, Princess
Sita (com Dominique di Piazza), The Last Crooner (com Daniel Yvinek), entre outros.
O crítico de jazz Phil Di Pietro, da revista digital All about jazz o situa como sendo “a
vanguarda dos melhores violonistas do mundo” (DI PIETRO, 2008).

Em sua produção artística é possível afirmar que Veras sintetiza diversas


tendências presentes no cenário da música instrumental contemporânea, tais como:
investigação de novas sonoridades harmônicas decorrentes do uso de modos e
escalas não convencionais (como por exemplo os modos de transposição limitada
de Messiaen aplicados à improvisação – principalmente M3, M4 e M6, como será
visto adiante); organização e divisão de frases e compassos em ritmos complexos
com unidades de 5, 7, 9, 11, entre outros.

Uma vez que Veras simboliza o perfil de vanguarda do músico


contemporâneo, torna-se de grande interesse acadêmico registrar sua maneira de
conceber a improvisação. Com esse intuito, foi realizada uma entrevista durante os
dias 24 e 25 de fevereiro de 2015 em Salvador, por ocasião de uma visita do músico
ao Brasil. Gravada em áudio, foi posteriormente transcrita e se encontra disponível
na íntegra como anexo desta tese. Também com a intenção de ilustrar os conceitos
tratados anteriormente de forma prática, foram realizadas transcrições de solos
improvisados, que serão comentados juntamente com sua entrevista na seção a
seguir. Foram eles:
86

• Wave, do disco Solo Session Vol. 1 (faixa 5)


• St. John, do disco Princess Sita (faixa 3)
• Nemo, do disco Princess Sita (faixa 2)

De maneira a permitir a criação de um paralelo com as propostas


apresentadas no capítulo 2, a abordagem da entrevista e das transcrições seguirá o
modelo dos três pilares, observando como este músico organiza seus conceitos
nessas áreas.

I. Fundamentos:

Ao construir linhas melódicas na improvisação, Nelson Veras se utiliza da


técnica tradicional de violão clássico, ou seja, toca com os dedos p, i, m, a (polegar,
indicador, médio e anelar) na mão direita, usando as unhas, e na maior parte das
vezes se apresenta com um violão de cordas de nylon. Desenvolve digitações de
três dedos (p, m, i na maioria dos casos) ou com todos os quatro dedos (p, i, m, a).
É um dos poucos a optar por essa técnica, em contraste com músicos de jazz que
usam predominantemente a palheta para pinçar as cordas.79

Em relação aos desenhos e digitações, utiliza o padrão vertical de abordagem


do braço e se apropria desse aspecto como ferramenta geradora de ideias e
sonoridades. Isso fica visível já na primeira frase de seu solo em ‘St. John’. Embora
a escolha interválica seja própria de sua estética, a frase é construída com estrutura
triádica, contornando o desenho vertical do VI grau:

79
Uma das razões pelas quais a grande maioria dos instrumentistas opta por fazer linhas
improvisadas usando a palheta é a de economizar o movimento da mão direita. Para se
tocar com palheta usa-se apenas golpes para cima e para baixo e requer um gasto menor
de motricidade do que usando os quatro dedos. Essa adaptação, entretanto, permitiu a
Veras desenvolver frases não usuais e criar melodias arpejadas que não são normalmente
ouvidas nas improvisações de guitarristas de jazz.
Score
St John 87

3 3 3
3 3 3
3
4
3 3 3
Figura 29: Estrutura triádica sob o desenho vertical (VERAS)

5
7

Apesar de dizer que começou seu estudo de improvisação aprendendo as


escalas tradicionais (como a escala maior e a menor melódica, seus desenhos, etc.),
10
Veras afirma que não pensa mais a relação do solo com a harmonia dessa forma,
mas prioriza sempre a condução de vozes. Mesmo usando o material tradicional, a
3 3

13
forma como ele o aplica, despista qualquer reconhecimento de tradicionalismo.
5

No trecho abaixo de seu solo em ‘Wave’, Veras faz uso da escala menor
16 melódica através de uma maneira que, auditivamente, simula ilhas politonais. São
usadas tensões melódicas as quais, mesmo estando dentro da menor melódica,
constituem pequenos sabores 3de uma tonalidade justaposta à harmonia original.
19
Como visto na seção Fundamentos do capítulo 2 desta tese, uma das possibilidades
de escala para um acorde dominante é a aplicação da escala menor melódica meio
22 tom acima (fig. 6). Na Figura abaixo, a harmonia está em B7 e o improviso ataca as
notas presentes na escala de Dó menor melódica: ré♮, dó♮ e sol♮. Ao agrupar as
notas dessa maneira, o uso dessas alterações faz com que tenhamos a percepção

25
de um outro universo sonoro em paralelo à harmonia, como a sonoridade de
Gsus4/B7:

28

Figura 30: Exemplo de aplicação da menor melódica (VERAS)


©

De maneira similar, pouco depois, Veras aplica a mesma relação intervalar


anterior: a harmonia está em A7 e o solo dó♮ - si♭ e fá♮, ou seja usando B♭ menor
melódica sobre A7, produzindo o efeito de Fsus/A7:
88

re
St John

Figura 31: Mesma relação sobre a harmonia (VERAS)

Segundo ele, sua prioridade está na condução de vozes – e não em um


3 3 3
3
3
3
acorde ou escala – pois: “tudo depende3 de como você vai conduzir as vozes de um
3 3
acorde para o outro”. Abaixo 3é possível observar uma passagem onde a harmonia
com o vamp de Em, e ele conduz a melodia por fora da tonalidade, produzindo
5
pontos de apoio dissonantes (fá com a harmonia, mas coerentes com o movimento
de grau conjunto descendente que ele propõe):

3 3
Score
5
St John
Figura 32: compasso 11 do solo de St John (VERAS)

Outro exemplo vem logo a seguir no mesmo solo. Aqui entra também
3 a ideia
vista no capítulo 2, da dominante ser um lugar de maior liberdade da dissonância.
3 3 3
3 3 3
Em virtude do solo
3 3 ser sobre um vamp do acorde Em, não existe nesse contexto a
4
3 3 3
dominante na harmonia (que permanece em um acorde, e de tônica). Essa
‘impressão’ ou ‘tempero’ de dominante quem produz é 5o solista. Portanto, ao tocar
como
7
notas de apoio si♭ou fá ♮,(notas fora da escala) Veras pontua esse trecho
como tensão que resolverá na nona (fá ♯) no compasso seguinte, simulando as
relações
10 de tensão e relaxamento harmônicas presentes numa progressão de
acordes:
3 3

13 5

16

Figura 33: Simulação das relações de tensão e relaxamento (VERAS)

3
19

©
89

Outro conceito visto anteriormente, de prioridade melódica, é visitado


regularmente por Veras em situações de vamp.

Figura 34: Exemplo de prioridade melódica em vamp (VERAS)

Naturalmente, essa habilidade de condução outside 80 foi alcançada em


função dos muitos anos dedicados à assimilação de diversas possibilidades e
caminhos. Como sugestão para o aprimoramento desse aspecto, ele sugere
procurar notas comuns ou próximas da digitação onde se estiver – aqui novamente
se remete ao conceito e à importância de se pensar verticalmente – e experimentar
combinações a partir disso. Após haver digerido um vasto repertório de
possibilidades combinatórias de sonoridades, o músico encontrará opções de
variação e condução de vozes com maior facilidade. Segundo ele, após um certo
tempo de prática contando ainda com a ajuda do aspecto visual (que auxilia a saber
onde estão as notas disponíveis) essa habilidade se conecta com o ouvido, se
integrando ao repertório de gestos musicais do improvisador. Também chamou a
atenção para o que ele denomina de ‘fator surpresa’:

“Isso eu gosto: de às vezes arriscar tocar um acorde e ter que achar


uma solução tocando”.

Ainda sobre o tópico Fundamentos, Veras adota frequentemente o uso de


arpejos em seus solos, seja para sublinhar a harmonia ou com a ideia de construir
uma justaposição de sonoridades.

80
Outside: A tradução literal do inglês seria ’do lado de fora’. No Jazz se refere ao gesto de
tocar notas fora da escala, sem relação de consonância com sua teoria harmônica. É um
recurso usado com o intuito de criar dissonância e tensão.
90

Figura 35: Arpejos (VERAS)

No que tange o processo de assimilação dos movimentos motores, Veras


destaca a importância que o estudo lento adquire na função de conferir tempo ao
corpo para memorizar o gesto mecânico, sendo também uma estratégia útil para
decifrar e compreender estruturas rítmicas:

“Foi Coleman que me falou sobre isso, tudo bem lento, tinha uns
temas dele que me passou e que eram super difíceis e eu estudei bem
devagar, aí de uma hora para outra eu consegui tocar rápido, de uma
hora pra outra assim dois dias depois. Eu nem precisei fazer tipo
agora vai um pouquinho mais rápido, mas o fato de eu saber bem
onde é (...) você conhece tão bem o movimento que depois para tocar
rápido não é tão difícil”.

No que diz respeito ao discurso rítmico, com frequência Veras produz frases
com características acéfalas ou anacrústicas para dar movimento ao solo, e
raramente resolve a tensão melódica na cabeça do compasso. Outro recurso
utilizado é a alternância da subdivisão rítmica utilizando fórmulas não convencionais
(p. ex. 5, 7, 9). Isso implica em, mantendo o pulso, alternar as subdivisões entre
valores não convencionais para criar variedade e riqueza de articulação. Por
exemplo, com o pulso constante, o tempo pode ser dividido em 5, depois em 7, em
4, em 11 etc. construindo não apenas frases que venham a preencher a unidade de
subdivisão (p. ex. tocar 10 semicolcheias em um compasso de 2/4, dividindo a
semínima em quiálteras de 5), mas lançar mão de valores com diferentes durações
(p.ex. 1 colcheia, 2 semicolcheias, 1 colcheia pontuada, 3 semicolcheias, no mesmo
compasso de 2/4).

O exemplo abaixo de ‘Wave‘ mostra de que maneira uma figura rítmica em 7


pode ser aplicada no contexto do solo improvisado:
91

Figura 36: Utilização de figuras de 7 em ‘Wave’ (VERAS)

A abordagem técnica de Veras não se parece com nada visto anteriormente.


Quando questionado sobre suas dificuldades ao criar essa nova proposta –
rompendo com o caminho natural dos jazzista, que normalmente o fazem a partir da
guitarra elétrica –, ele responde:

“Existem coisas que às vezes a gente tem a tendência de ver como


defeito, na verdade, podem não ser. Somos educados dentro de
certos paradigmas. Aí você fala ‘ah não tô fazendo isso daquele jeito’
porque você tá ouvindo muita gente fazendo assim. Mas você tem que
fazer de algum jeito e você não se pergunta (porque às vezes não
precisa), você arranja outra maneira. Poderia ter me dito: ‘vou pegar
uma palheta, porque isso não dá para ouvir’, e aprender aquelas
escalas. Aí de repente se você não faz nada – pode ser preguiça na
verdade – aí você tem que achar outras soluções. Tem muita coisa
que você acha ruim do jeito que você está tocando, porque não está
parecendo como alguém que você admira, mas de repente tem seu
valor, é só você parar de pensar um pouco”.

O exemplo a seguir mostra sua originalidade em frases com saltos de


grandes intervalos rápidos. Texturas como esta seriam extremamente difíceis de
serem executadas na guitarra elétrica com uma palheta (devido à distância entre as
cordas). No violão, ao se utilizar facilmente outros dedos da mão direita para pulsar
a corda que se apresenta distante, tais estruturas acabam soando com maior
naturalidade.

Figura 37: Saltos na improvisaçãoo ao violão (VERAS)


92

II. Vocabulário

O cenário atual da música improvisada e do jazz comporta inúmeras formas e


vertentes. Uma vez que a busca por se encontrar uma maneira pessoal de se
expressar passa a ser um dos principais, senão o maior objetivo dos artistas
envolvidos com improvisação, isso inevitavelmente produz um ambiente rico na sua
biodiversidade, comportando todo tipo de conceito e proposta.

“O solo não precisa ser uma explosão de fogos de artifício. Você pode
fazer um solo sem fazer um solo, você pode se expressar de diversas
formas. Você pode tirar um pouco as funções, mudar a percepção
também, fazer música só baseada no timbre... Pode ser só a
expressão de uma coisa linear, você pode querer que ela seja linear,
pode querer que ela não tenha clímax. É porque é som, a gente lida
com som, então a gente tem a tendência de organizar tudo. A gente
quer dar muito sentido, o sentido que a gente acha na vida para a
música e, às vezes, a expressão já está lá, não precisa colocar muita
funcionalidade, tipo, você faz um solo e se expressa, aquela coisa
grandiloquente assim. Tudo o que você imaginar pode ser usado, na
verdade, na improvisação ou na expressão. Não tem mais “tem que
soar desse jeito”.

Segundo Veras, esse tipo de mentalidade e ideologia que valoriza a


singularidade é por um lado profundamente libertador, já que permite que cada
artista encontre sua própria maneira de lidar com os materiais musicais.

“Na verdade hoje em dia existem mil parâmetros, e parâmetros que


você pode ir sempre criando os seus e ninguém precisa saber. A
vantagem da improvisação é que você pode usar o parâmetro que
você quiser, você não é obrigado a pensar ‘II – V – I’, ou tensão –
resolução”. Isso é um modo de pensar. Ou então escrever um tema, e
depois fazer o solo. Tem muita coisa que a gente faz também que é o
hábito, mas não tem que ser. E, principalmente, acho que tem muita
coisa que a gente não tem que fazer também! Que a gente faz no
automatismo e se sente culpado se não fizer”.

Ao pensar em estruturas, Veras as concebe normalmente em medidas


menores, associadas a uma harmonia, que quando alinhadas e tocadas
sequencialmente podem formar frases complexas e longas.
93

Quanto à transcrição de vocabulário, Veras afirma que, quando jovem,


praticou muito, nunca escrevendo os solos no papel, mas os memorizando através
do ouvido. Aprendia e depois esquecia, e era esse processo de esquecer e
relembrar que tornava orgânica sua assimilação, pois quando internalizava, possuía
um viés mais definitivo. Ele vê portanto na transcrição uma importante ferramenta, e
afirma ter trabalhado bastante nessa direção, ainda que não anotasse. Um dos
desafios, segundo ele, era transpor passagens musicais feitas por outros
instrumentos e encontrar soluções no violão que soassem idiomaticamente
coerentes. Com isso confirmava que um dos fatores prioritários para fazer um solo
funcionar é seu ritmo e articulação.

“Pouco a pouco eu fui até achando que as notas que eu gostava e


queria tirar, não era o que fazia com que o solo funcionasse tanto,
acho que é muito ritmo e articulação. O fato de transcrever sem o
instrumento, me ajudou na percepção harmônica. Nunca toquei, quis
transcrever para ouvir mesmo. Às vezes eu ficava horas em um
compasso aí passava para outro. De vez em quando ao ouvir alguma
coisa, às vezes eu paro, ouço, vejo se consigo reconhecer, isso é bom
para trabalhar o ouvido, e se desenvolver, que aí você vai criando um
banco de dados de reconhecimento de intervalos”.

Uma outra ferramenta corriqueiramente utilizada para conferir maior unidade


e direção ao discurso narrativo de uma improvisação é a repetição motívica. No
trecho abaixo nota-se a exploração deste recurso, que lança mão da execução da
mesma estrutura rítmica e melódica por quatro vezes:

Figura 38: Repetição motívica (VERAS)


94

Durante a entrevista Veras também trouxe à cena um componente


circunstancial: o tamanho ou a forma como sua unha está lixada 81 interfere
diretamente no acabamento de uma frase ou determinada digitação.

“Tem muita frase que soava bem em função do fraseado. Mas o lance
da unha: às vezes eu podia tentar tocar meses com a unha curta, e
ainda assim soava muito mal. Tem umas frases que vão funcionar
com determinado tamanho ou fôrma de unha, e não com outros”.

Ao ser questionado sobre a relação de seu ouvido e a concepção camerística


na interação com outros músicos, Veras comenta como foi desenvolvendo seu
pensamento a respeito, e a evolução de sua maneira de pensar, a qual foi se
metamorfoseando ao longo do tempo:

“Primeiro era mais uma história de concentração, de atenção, de


colocar atenção ao que estava a minha volta, sem me preocupar em
reconhecer, só tocar mas ao mesmo tempo estar consciente ao que
está acontecendo. E eu achava que eu tocava um pouquinho melhor
quando eu prestava atenção ao que estava à minha volta. Depois
tentei trabalhar mais isso de reconhecer, ouvir, saber quem tocou
aquilo, aí eu passei um tempo tentando, sempre que eu tocava,
reconhecer tudo o que eu estava tocando, reconhecer mesmo, ‘ah,
aquele acorde tal’, de forma menos superficial. Hoje em dia é diferente
um pouco. Não é melhor nem pior, mas eu acho meio sistemático o
fato de você responder demais, tem várias maneiras de reagir, não é
só nota ou o ritmo, às vezes você contribui mais fazendo uma coisa
que não tem nada a ver.

Eu toco em duo com uma trompetista, ela tem ouvido absoluto, e ela
tem muita tendência a usar o ouvido absoluto quando a gente toca, eu
toco uma coisa, ela vai pegar e continuar. E a gente é só duo, eu
sempre falo pra ela, tente não me ouvir de vez em quando [risos]
senão o som vai ficar muito pequenininho, aí é interessante eu tocar
em um caminho e ela em outro, dá um resultado muito maior, eu
contando uma história aqui e ela outra ali. De qualquer maneira, a
gente está se ouvindo, mesmo que não queira, a gente sempre vai
estar se ouvindo. Às vezes mostrar demais que você está ouvindo não
é sempre benéfico, eu acho. É uma possibilidade, não é a única: ter
que ouvir e ter que responder”.

81
A unha da mão direita para um violonista representa um fator primordial de produção de
sonoridade, uma vez que são elas que pinçam as cordas e produzem o som.
95

III. Flexibilidade

Uma das maiores motivações e qualidades de Veras é buscar sempre


quebrar a previsibilidade quando está tocando, como uma atitude ideológica de
perseguir constantemente novas maneiras de expressão. É interessante também
notar o quanto que, em seu pensamento, a busca da flexibilidade possui valor
hierárquico muito superior ao da execução perfeita. Seu objetivo é sair dos padrões,
da expectativa, da repetição. É semelhante à linguagem verbal, na qual se evita
repetir as mesmas palavras circunscritas em um perímetro próximo. Ao empurrar
este limite do previamente conhecido constantemente na direção de sua expansão,
Veras amplia vastamente seu campo de combinações sonoras, ao mesmo tempo
em que constrói uma intimidade profundo sobre as possibilidades de seu
instrumento.

“Eu pego o violão e toco um negócio, aí eu já saí justamente desse


lance de escala. Depois pego um fragmento e tento transpor
justamente para criar um outro campo melódico. Eu tento integrar às
vezes até no próprio acorde, e sempre achar uma maneira de justificar
harmonicamente. Isso me ajuda a sair da escala. Eu tento mudar um
pouco as notas para não soar como patterns. Acho que é uma questão
de escolha. Eu prefiro tocar ‘mal’, mas arriscando, do que tocar bem,
mas sempre tocando o que estudei. Às vezes eu vou tocar um acorde,
eu mudo alguma coisa, uma nota”.

Segundo ele, essa abordagem, aparentemente uma estratégia para fugir da


uniformidade, produz uma coesão em si mesma, onde essa busca constante por sair
do óbvio, ou do previsível se torna uma unidade sonora em si mesma:

“E, principalmente, evitando toda vez que eu vou tocar tal coisa, eu
mudo. Eu acho que isso cria um certo som, o fato de você estar meio
que sempre desviando, isso cria um certo som global. Não é nem o
fato daquela frase sair bonita, mas é a atmosfera global fica meio
assim. Eu me concentro melhor assim também, quando eu estou
experimentando. Quanto eu estou sabendo tudo o que está
acontecendo, eu me desconcentro”.

Para a construção de flexibilidade, normalmente se imagina que o músico ao


tocar deva se dedicar intensamente à combinação de diversas estruturas e estilos.
Veras, entretanto, se declara “não muito organizado”, mas pratica com regularidade,
ainda que sem estrutura de tópicos ou sistematização direcionada entre um assunto
96

ou outro. Como a maioria dos músicos profissionais, normalmente pratica o


repertório que irá tocar proximamente. Reconhece, contudo, que durante a fase
formativa se concentrou profundamente em temas específicos e teve fases de
trabalho exaustivo em tópicos selecionados.

Atualmente, relata que dependendo do trabalho que está desenvolvendo,


investe em uma ou outra habilidade, dizendo que aprendeu novas linguagens
justamente “por necessidade de trabalhos em que estava engajado”, como quando
estudou modos de Messiaen ao atuar junto ao grupo octurn82, e se aproximou de
ritmos complexos ao tocar com Steve Coleman.

Quando perguntado sobre sua relação a diversidade de facetas expressivas e


linguagens disponíveis, afirma ter adotado recentemente uma postura mais
resignada frente às demandas de dominar esta ou aquela linguagem:

“[minha maneira] atual é mais resignada. Porque as pessoas falam


‘você tem que ter muita coragem para se expressar’, acho que é mais
resignação, tudo de coragem passou a ser o que quer que você seja.
[...] A expressão na verdade não é porque você fez aquilo bem, ou tal
peça é bonita. Acho que para ter expressividade é preciso estar em
um estado de espírito. Porque se você vai fazer um solo e está
pensando na frase número três, é isso que você vai estar
transmitindo”.

Quando ouvimos Nelson Veras, além da originalidade na construção dos


solos, é impossível deixar de notar a sofisticação de sua sonoridade e seu
refinamento ao instrumento. Enquanto alguns músicos de jazz priorizam a
composição e improvisação, Veras vai além e através de sua execução percebe-se
a construção de uma expressividade que faz uso de conhecimentos de fraseado
normalmente encontrados na música de concerto.

Veras sintetiza a identidade de seu tempo na medida em que busca na


música a expressão criativa acima de tudo. Esse movimento se dá através da

82
Liderado pelo saxofonista belga Bo van der Werf, o grupo Octurn explora diversos
materiais contemporâneos como o uso extensivo de modos de Messiaen.
97

apropriação de novas formas de manifestação e da convergência de novos materiais


sonoros em formas originais de se conceber a improvisação.

3.2 Modos de Messiaen

O compositor, organista e teórico francês Olivier Messiaen (1908-1992) foi uma


das personalidades mais importantes da música de concerto do século XX. Compôs
obras de estilo original e inspiração mística que se tornaram referências de inovação
de linguagem, como, por exemplo o Quatuor pour la fin du temps (1941) para
clarinete, piano violoncelo e violino, Vingt-regards sur l’enfant Jésus (1944) para
piano, a Sinfonia Turangalîla (1948), Chronochromie (1960) para grande orquestra,
entre muitas outras (ABREU, 2008).

Suas publicações teóricas abarcaram diversos elementos musicais,


compreendendo tanto aspectos melódicos, como rítmicos e harmônicos. Uma de
suas contribuições mais relevantes a formulação dos 7 ‘Modos de Transposição
Limitada’, também conhecidos como os ‘Modos de Messiaen’ (M1, M2, M3, M4, M5,
M6 e M7).
98

Figura 39: Os sete modos de transposição limitada, de Olivier Messiaen

O modo M1 é comumente conhecido como a escala de tons inteiros, e o


modo M2, como a escala diminuta. Apesar destas escalas terem sido utilizadas
anteriormente por diversos compositores (Claude Debussy, Paul Dukas, etc),
Messiaen as incluiu em sua sistematização por sua característica simétrica de
transposição limitada. Os demais modos, em particular M3, M4 e M6 possuem
grande riqueza de permutações que simulam uma politonalidade:
99

Figura 40: Modo M3

Além disso, algo que contribui enormemente para a sensação de


politonalidade é o fato de 6 de seus 9 graus possuírem terça maior e menor (em Dó
M3: dó, mi♭, mi♮, sol♭,sol♮ e si), formando inúmeros acordes híbridos (terça maior e
menor) em seu campo harmônico:

Figura 41: Sensação de politonalidade

Baseados no sistema cromático temperado de 12 notas, os Modos de


Messiaen são formados por grupos simétricos, sendo a última nota de cada grupo a
mesma que inicia o próximo grupo. Em função dessa simetria, possuem uma
capacidade de transposição limitada, pois a partir de determinado grau, suas notas
serão exatas repetições de transposições já realizadas previamente. Diferentemente
de outras escalas, como as escalas maior, menor melódica ou harmônica, que
podem ser transpostas para qualquer das 12 notas cromáticas com as notas
absolutas divergindo a cada transposição, os modos de Messiaen podem ser
transpostos apenas 2 vezes (modo 1), 3 vezes (modo 2) , 4 vezes (modo 3) e 6
vezes (modos 4 a 7), como mostram os quadros abaixo:
100

Tabela 3: Quadro de transposições possíveis em cada modo de Messiaen (org. Marc van der
Looverbosch).

Tabela 4: Quadro de transposições possíveis em cada modo de Messiaen (org. Marc van der
Looverbosch)
101

Na citação a seguir, extraída do livro ‘La technique de mon langage musical’


(1944), no qual Messiaen apresenta a formulação teórica dos modos, o compositor
comenta a respeito das possibilidades poéticas de sua aplicação prática:

Todos os modos de transposição limitada podem ser usados


melodicamente, e em especial, harmonicamente, com a melodia e
harmonia nunca deixando o modo. [...] Essa impossibilidade de
transposição é o que produz seu intenso charme. Eles estão, de uma
só vez, na atmosfera de diversas tonalidades, sem politonalidade,
deixando o compositor livre para dar predominância a uma das
tonalidades, ou deixar a impressão tonal incerta (MESSIAEN, 1944, p.
58).83

Essa ampla extensão de possibilidades melódicas e harmônicas despertou


um grande interesse no ambiente do jazz moderno. Isso se deve ao fato dos Modos
de Messiaen serem capaz de configurar uma nova organização de conteúdos
emocionais expressivos, assim como uma nova proposta harmônica, em função de
uma reorganização e reconfiguração da ordem de atração da progressão de
acordes. Ao mesmo tempo que o uso dos modos propõem uma alternativa ao
sistema tonal, possuem uma grande força de unidade em sua sonoridade, por terem
sido criados a partir de modelos simétricos. Na improvisação jazzística, três deles
são os mais usados: M3, M4 e M6.

Nas figuras encontram-se demonstrações de propostas harmônicas feitas


pelo próprio compositor (MESSIAEN, 1944) sobre esses 3 modos:

83
All the modes of limited transpositions can be used melodically, and especially
harmonically, melody and harmonies never leaving the notes of the mode. […] Their
impossibility of transposition makes their strong charm. They are at once in the atmosphere
of several tonalities, without polytonality, the composer being free to give predominance to
one of the tonalities or to leave the tonal impression unsettled.
102

Figura 42: Possibilidades harmônicas no modo M3

Exemplo Musical 11: Possibilidades harmônicas no modo M3

Figura 43: Possibilidades harmônicas no modo M4

Exemplo Musical 12: Possibilidades harmônicas no modo M4


103

Figura 44: Possibilidades harmônicas no modo M6

Exemplo Musical 13: Possibilidades harmônicas no modo M6

Um dos pioneiros a trabalhar com essa estética no jazz foi o saxofonista belga
Bo van der Werf. Como líder do grupo Octurn, Bo registrou diversas músicas onde
usava essencialmente material de Messiaen. Ele utiliza não apenas os modos, como
também aplica em seus improvisos diversas abordagens rítmicas e harmônicas
(clusters e voicings) derivadas das teorias do compositor francês. No exemplo
musical abaixo, é possível ouvir uma das composições de Bo, Calcutta, gravada por
seu grupo Octurn no disco ’21 emanations’,:

Exemplo Musical 14: Octurn – Calcutta

Improvisar em tempo real usando esse material como base requer uma
adaptação dos mecanismos de composição de frases à uma nova realidade. Em
Calcutta, Bo improvisa o seguinte solo a partir de [3:43]:
104
105

Figura 45: Solo de Bo van der Werf na peça Calcutta utilizando modos de Messiaen – Transcrição de
Marc van der Looverbosch (2011).
106

Nomad

Com o objetivo de explorar vanguardas de linguagem de improvisação do jazz


moderno dentro de suas possibilidades rítmicas, harmônicas, melódicas, texturais e
conceituais, os músicos Luís Leite (violão), Ivo Senra (wurlitzer) 84 e Sergio
Krakowski (pandeiro) criaram em 2012 o grupo instrumental Nomad.

A proposta inicial consistia em realizar uma leitura desses materiais de


improvisação contemporâneos aplicando a eles sotaques e ritmos brasileiros (como
poderá ser ouvido nos exemplos musicais abaixo). Cada integrante trouxe o que
estava pesquisando à época: Luís Leite a improvisação em Modos de Messiaen,
Sérgio Krakowski suas explorações de modulações métricas e Ivo Senra a aplicação
da música textural contemporânea na improvisação jazzística.

Todas as peças deste trabalho foram compostas e desenvolvidas


coletivamente. Duas delas tiveram sua estética particularmente construída com base
nos modos de Messiaen: Berçário de Nuvens e Partida. Outras composições desse
projeto exploraram Polimodalismo, Música Fractal, Escalas de Hindemith e Música
Textural.

Ø Berçário de Nuvens:

Exemplo Musical 15: Berçário de Nuvens

84
A Rudolph Wurlitzer Company foi uma empresa criada em 1853 baseada no Mississipi,
EUA. Entre 1955 e 1984 fabricou uma série de pianos elétricos com som característico.
Junto com o então concorrente Fender Rhodes, marcou a sonoridade de gerações de
músicos de jazz. Ao referir-se a esses instrumentos, usa-se normalmente o nome ‘Wurlitzer’.
107

Berçário de Nuvens é uma peça inteiramente baseada sobre o modo Mi M4.


Durante toda a música – tema, harmonia e improvisos –, foram usadas somente as 8
notas deste modo em particular (mi, fá, fá♯, lá, lá♯, si, dó, ré♯). É possível enxergar o
modo M4 como uma melodia 1 - ♭9 – 9 – 4 perfeitamente transposta a partir de seu
trítono:

Figura 46: M4 e os graus 1-♭9-9-4 transpostos para seu trítono

A música começa com a exposição do tema A ad libitum:

Figura 47: Tema A de Berçário de Nuvens

Após duas exposições do tema em 6/8, o pandeiro, sozinho, sugere os


mesmos acentos melódicos, convidando para um diálogo [0:33]. A parte que segue
é um improviso curto de violão com o objetivo de conduzir ritmicamente do 6/8 da
parte A ao 4/4 da parte B [1:08].
108

Figura 48: Tema B de Berçário de Nuvens

A segunda repetição do B emenda com o solo improvisado de violão sobre a


mesma harmonia das partes A e B, e que permeia toda a música [1:24]:

||: F7M (#11) | Am6 | B7M | F7M/A | F7/E♭ | B7(b5) :||

Todas as notas tocadas no solo pertencem a Mi M4. O desafio foi, dada a


novidade do material usado, conceber estruturas em M4 que pudessem criar um
sentido melódico expressivo.

Aproximadamente na metade do solo, a partir de [2:04], apresenta-se um


importante conteúdo musical desenvolvido pelo Nomad: uma modulação métrica.
Contribuição trazida para o trabalho pelo pandeirista Sérgio Krakowski, modulações
métricas são transições graduais entre compassos diferentes, produzidas através de
uma expansão ou contração progressiva da métrica. A partir de [2:04] o compasso,
que era de 4/4 começa dilatar-se para atingir 9/8. Por 12 segundos a métrica vai
sendo, no meio do solo, progressivamente ‘esticada’ para dar início ao novo
compasso.

A segunda parte do improviso de violão é, portanto em 9/8, a partir de [2:16].


O solo evolui até a frase de saída, que ao ser tocada pelo violão [2:47] anuncia que
o solo terminará.
109

Figura 49: Frase de saída do solo de violão

O que vem a seguir [2:50| é uma ponte de transição com mais uma
modulação métrica, dessa vez entre o 9/8 e o 7/8. A modulação também dura todo o
interlúdio, e irá se assentar em 7/8 apenas em [3:10], quando começa o solo de
wurlitzer.

O solo dura até [4:15], com a saída do solo de wurlitzer indicada pela
repetição de rápidos arpejos polirrítmicos:

Figura 50: Frase de saída do solo de Wurlitzer

Sozinho, o violão retorna ao tema A executando uma variação deste. Na coda


[4:40], a música vai pouco a pouco esvaecendo, com frases rápidas rarefeitas [5:05].

É interessante observar que, apesar da mesma progressão de acordes ser


recorrentemente repetida em diferentes momentos da música e serem tocadas
apenas notas da mesma escala, a sensação de variedade ainda assim é garantida
pela modernidade do material empregado. As modulações métricas também
contribuem para a dinâmica da peça, trazendo movimento rítmico e suavizando as
trocas de compasso ao torná-las mais naturais.

São observadas longas modulações métricas nos seguintes trechos:


110

• entre [0:44] e [1:07] (de 6/8 para 4/4)


• entre [2:04] e [2:16] (de 4/4 para 9/8)
• entre [2:52] e [3:10] (de 9/8 para 7/8)

Tal elemento se constitui de grande relevância, e a própria estrutura da peça


pode ser estabelecida levando em consideração os compassos utilizados. A forma
da música se apresenta então da seguinte maneira:

[0:00] Ad libitum
[0:40] 6/8
[1:05] 4/4
[2.16] 9/8
[3:08] 7/8

No exemplo musical abaixo é possível escutar outra versão dessa mesma


música. Embora as duas tenham sido gravadas ao vivo sem cortes ou edições, a
primeira apresenta uma interpretação mais íntima em função de seu ambiente
caseiro, enquanto na segunda é possível enxergar um outro tipo de comportamento
da improvisação, dado seu contexto particular, de grande palco.

Ouvir diferentes versões oferece um panorama de como, além da construção


de solos, a ideia da variação de interpretação está presente também na
improvisação, influenciando a própria escolha das notas utilizadas.

Exemplo Musical 16: Berçário de Nuvens – Ao vivo no Festival Vinil Brasil, Viçosa (MG), outubro de 2012.
111

Ø Partida:

Exemplo Musical 17: Partida

Em Partida85, foi também usado apenas um Modo de Messiaen por toda a


peça: Dó M6 (dó, ré, mi, fá, fá♯, sol♯, lá♯, si). Pode-se pensar o M6 como uma
melodia dos graus 1-2-3-4 da escala maior transposta para seu trítono:

Figura 51: M6 e os graus 1-2-3-4 transpostos para seu trítono

Essa construção em si já confere um caráter politonal: é como se a melodia


escalar tivesse perdido seu caminho e se repetisse em uma tonalidade paralela. A
coexistência dessas sonoridades em um mesmo universo sonoro oferece uma
ampla gama de possibilidades harmônicas.

Se analisado por um viés teórico, o modo M6 é praticamente uma escala tons


inteiros de Dó, com a adição de duas notas: si e fá. Entretanto, maior riqueza será
extraída do potencial politonal do modo se o centro gravitacional das frases e dos
pontos de apoio narrativos não estiverem baseados na sonoridade de tons inteiros,
que por si só é muito marcante e facilmente reconhecível.

O trio buscou explorar, portanto, harmonias e construções melódicas que


fujam dessa previsibilidade da escala de tons inteiros. O tema da música possui

85
Música que ganhou esse título em função da mudança do pandeirista Sérgio Krakowski
para Nova York.
112

apenas 4 acordes, mas que compõe uma progressão não usual. Também o uso das
tensões se apresenta particular através desse modo, pois já no primeiro acorde se
vê um acorde de sétima maior com duas quartas: natural e aumentada: F7M(#11, add4)

Figura 52: Tema de Partida (NOMAD)

A parte rítmica se mantém em 11 durante o solo de violão que é


acompanhado inicialmente apenas pelo pandeiro, ao qual soma-se o Wurlitzer
improvisando o acompanhamento na região grave. O solo tem duração livre, e a
saída é indicada ao tocar a melodia da música em trêmolo.

Aqui também é realizada uma modulação métrica, que ocorre na virada de


11/8 pra 4/4. É interessante notar que a lenta e gradual caminhada de 11/8 para 4/4
ao longo de 20 segundos, entre [3:37] e [3:57], produz um efeito sutil de transição,
disfarçando a real (e grande) mudança entre esses dois compassos.

A modulação métrica conduz ao solo de pandeiro, que será executado sobre


um ostinato de wurlitzer [4:42]
113

Figura 53: Ostinato de wurlitzer

O pandeiro termina com um crescendo que levará à última parte: o solo de


Wurlitzer sobre ostinato do violão, descrito no exemplo abaixo [6:12].

Figura 54: Ostinato de violão

A música termina com o retorno da introdução sobre o ostinato em 11/8.


114

3.3 Proposta de Criação Sonora: Nemesis

Nesta última parte da tese, será apresentada a realização musical resultante


da imersão no estudo sobre improvisação realizado nos últimos 4 anos, e fruto da
pesquisa de doutorado efetuada durante este período.

A partir do que foi discutido sobre sistematização no capítulo 2 (Fundamentos,


Vocabulário e Flexibilidade), foi possível construir uma proposição funcional da
aplicação dos elementos, levando em consideração perspectivas relacionadas aos
três pilares da improvisação.

Luis Leite: Nemesis foi gravado nos dias 7 e 8 de Agosto de 2014 em Nova
York. Todas as composições e arranjos foram feitas pelo autor. Gravadas ao vivo,
cada faixa acabou sendo o último take86 inteiro de cada música, sem edições ou
cortes.

A principal ideia conceitual desse projeto consiste em procurar o lírico no


contemporâneo. Ou seja, observar de que maneira a poética se revela nos materiais
modernos, os quais muitas vezes se apresentam de certa maneira áridos em um
primeiro contato.

Ao usar recursos de experimentação sonora, o projeto busca, através deles,


construir elementos expressivos. Um exemplo é o uso de Ostinatos e Compassos
Mistos, que representam uma busca por combinações rítmicas que sejam ao mesmo
tempo originais e significantes.

Um dos aspectos que sempre norteou a busca pela expansão de fronteiras


no jazz foi o ritmo. Um ostinato87, como o nome sugere, é um padrão rítmico que se

86
Em uma gravação, cada vez que se toca a música, esse material registrado representa
um take. Em um processo de edição digital, existe a opção de recortar pedaços de diversos
takes para se montar uma versão final, com os melhores pedaços de cada tentativa. No
caso da gravação de Nemesis, foram feitos alguns takes de cada música, mas apenas os
últimos takes inteiros foram usados. A razão de se optar por esse sistema é buscar a
naturalidade do discurso, onde a gravação possa, ao menos nesse quesito, refletir uma
execução ao vivo.

87
Palavra italiana cuja tradução literal significa: obstinado.
115

repete persistentemente ao longo de um trecho. No jazz é também usada a


expressão Vamp para se referir a passagens de poucos acordes que se repetem
sucessivamente, ou à manutenção de uma mesma harmonia. Portanto, em qualquer
situação que a palavra apareça, seu uso irá sugerir algum grau de estática – no que
diz respeito ao seu nível de variação.

No jazz, ostinatos, ou vamps se tornaram muito comuns por criarem


excelentes estruturas fixas de base para o improvisador. Ao estabilizar o cenário
harmônico e rítmico, é o solista que construirá o discurso de tensão e relaxamento a
partir das camadas de sobreposições sonoras que criar. Como a base rítmico-
harmônica está estática, é através das dissonâncias e consonâncias melódicas do
improviso que o discurso narrativo da improvisação será guiado.

Por não possuir ritmo nem deslocamento harmônico significativo, ao menos


no sentido tradicional, o conceito de proposição de tensão e relaxamento,
costumeiramente associado à harmonia, é de certa forma transferido para o solista.
Solar sobre um ostinato prevê a construção da evolução do discurso emocional
sobre o mesmo tecido harmônico, o que pode também ser uma grande ferramenta
expressiva.

Figura 55: Exemplo de Ostinato

Compassos mistos normalmente se referem a compassos onde existe uma


88
clave que se utiliza de múltiplas combinações de células binárias e ternárias. Por

88
Clave é um padrão rítmico repetido ao longo de um certo período. Pode ser mantida por
toda a música ou compor seções menores. Importante para definir uma clave é a
permanência de sua acentuação, que se torna responsável por sua percepção como
estrutura.
116

exemplo, um compasso de 11/8 pode ser dividido internamente 3+2+3+3, um de 9/8


como 2+2+3+2. Nesse tipo de evento musical, é importante não apenas saber o
compasso, mas sua clave, que é a forma como essa subdivisão opera. Uma outra
maneira de se pensar muito difundida é a representação em ‘curto e longo’
(short/long), onde 2 se refere a ‘curto’ e 3 a ‘longo’. O compasso de 9/8 visto abaixo
seria então: curto-curto-longo-curto, o de 10/8: longo-longo-curto-curto e o de 11/8:
longo-curto-longo-longo.

Figura 56: Exemplos de compassos mistos

Combinando os dois conceitos, ostinatos e compassos mistos, é possível


alcançar uma forte intenção rítmica, que ao mesmo tempo é moderna em sua
concepção e sonoridade e coesa em sua capacidade de comunicação da
mensagem musical. Abaixo é possível ver dois exemplos dessa associação, ambos
criados pelo autor para o projeto Nemesis:
117

Figura 57: Ostinatos + compassos mistos (NEMESIS)

A seguir serão comentadas as faixas individualmente, apresentando a sua


forma e demais aspectos relevantes. Importante para sua compreensão – e até
mesmo para que justifique sua existência – é acompanhar a leitura da seção abaixo
de posse dos exemplos musicais. Em todas as faixas serão fornecidas as
minutagens onde determinados eventos musicais ocorrem, proporcionando a
integração e correlação dos elementos visuais, intelectuais e sonoros.

Além do QRCode, também é possível acessar todas as faixas através da


internet em:

www.soundcloud.com/doutoradoluisleite/sets/exemplosmusicais

Ø Metrópole

Exemplo Musical 18: Metrópole (NEMESIS)

A faixa metrópole começa com um evento sonoro: um curto improviso livre de


guitarra solo ad libitum. Após essa curta introdução, na entrada do sintetizador – que
aqui cumpre o papel de baixo – e a bateria em [0:15]89, um solo de guitarra é
apresentado sobre um ostinato no grave em 11/8:

89
As indicações de tempo entre colchetes [ ] sempre irão se referir à minutagem onde o
trecho mencionado é encontrado na faixa do exemplo musical.
118

Figura 58: Ostinato em 11/8 (NEMESIS)

A linguagem do solo apesar de jazzística, é tonal, sendo o material usado


neste primeiro momento algumas vezes pentatônico. As frases são agrupadas em
estruturas cíclicas, o que contribui para o melhor entendimento da forma e da
criação da expectativa de reincidência motívica.

Em [1:20] o ritmo se expande, e embora o compasso de 11/8 continua como


base, sua subdivisão é dilatada através de acentos espaçados. A saída do solo (ou
cue, em inglês), é indicada pela guitarra quando ela sugere a delineação rítmica em
conjunto com o acompanhamento, dobrando seu ritmo por quatro compassos
seguidos.90 Essa é a indicação para outros instrumentistas seguirem para a próxima
seção da peça.

Neste momento, [1:20], o tema finalmente aparece, entrelaçado por frases


atonais:

90
Aqui a indicação é rítmica, podendo a melodia realizar qualquer orientação ascendente ou
descendente, assim como qualquer intervalo)
119

Figura 59: Diálogo de frases atonais (NEMESIS)

A ideia de inserir o tema na segunda parte do solo foi pensada como um


elemento de contraste de linguagem. É uma melodia tonal, lírica e melancólica, a
qual, intermediada pelos comentários atonais, funciona como um personagem
nostálgico, como um momento de reflexão. A mudança de timbres realizada pela
troca de pedais de efeito91 entre uma frase e outra reforça essa ideia.

Ao final do solo de guitarra, o piano improvisa uma parte solo inspirada na


melodia do tema [2:13]. Um arpejo intenso descendente na forma de anacruse é a
indicação do início de um novo ostinato que será a base para o solo do pianista
[2:36]:

91
Pedais de efeito são circuitos eletrônicos acionados normalmente com o pé. Sua função é alterar o
sinal de áudio que passa por ele, produzindo transformações variadas no som do instrumento.
120

Figura 60: Ostinato em 9/8 (NEMESIS)

A guitarra sai abruptamente de cena em [2:42] e tem início um diálogo livre


entre piano e bateria, o ostinato retorna pouco a pouco, assim como a inflexão
rítmica da bateria [3:03].92

O solo de piano leva à coda, que possui ritmo previamente definido pelos
instrumentistas. Na quarta repetição do motivo rítmico final, todos terminam
acentuando as duas últimas colcheias.

Ø Mirante

Exemplo Musical 19: Mirante (NEMESIS)

Mirante começa com um ostinato rítmico em 9/8. O início nos tambores da


bateria tocados com as mãos produz um efeito que sugere a imagem de uma
música que vem de longe, como uma caravana que se aproxima lentamente no
horizonte.

92
Nesse último take aconteceram alguns lugares de especial sintonia na interação da
improvisação, como, por exemplo em [4:08], onde a polirritmia entre bateria e piano criou um
resultado particularmente interessante.
121

A ideia presente na primeira parte da música é a de criar, através do ostinato


do sintetizador – com efeito estéreo e timbre carregado de ecos –, uma atmosfera
mântrica.

Figura 61: Ostinato Mirante (NEMESIS)

Nesse primeiro momento, a quantidade de compassos é livre, e após a


entrada do baixo, a forma passa a seguir o ciclo [0:20]:

Figura 62: Linha do baixo (NEMESIS)

Sob essa estrutura hipnótica a guitarra apresenta o tema da música,


ornamentando livremente [0:39]:
122

Figura 63: Tema de Mirante feito pela guitarra (NEMESIS)

A ideia por trás da composição da parte A é mostrar uma melodia que


conceda fluidez à parte, em contraponto à clave rítmica, mais rígida. A maleabilidade
é alcançada por outros meios, como a abertura gradual do filtro de timbre através de
um pedal de expressão93 que controla esses parâmetros.

93
Pedal de expressão é um mecanismo capaz de ser assignado para controlar diversos
parâmetros de um determinado equipamento com o pé. Ele em si não produz alteração
sonora, pois não possui circuito de processamento de áudio.
123

O final da primeira parte, é sinalizado pela entrada do vamp do solo de


guitarra, em 7/4, com a harmonia [1:40].

||: Gm Gm/F | Em7(♭5) E♭7M :||

O solo de guitarra, realizado aqui com um pedal oitavador que transpõe uma
oitava acima as notas tocadas, desenhou dois momentos em seu improviso:
Começa usando uma linguagem que busca uma direção melódica de linhas mais
longas [1:57], e a partir da metade do solo constrói acentuações rítmicas que
valorizam o compasso de 7/4 [2:30]. Seu material escalar apresenta confluência com
a harmonia, desenhando as progressões através de arpejos e notas de tensão dos
acordes.

A saída é definida por comunicação visual entre os músicos [3:06], e leva ao


solo de bateria sobre um ostinato rítmico executado pela guitarra e sintetizador:

Figura 64: Solo de bateria (NEMESIS)

O baterista lança mão de elementos polirrítmicos, como é possível ouvir em


[3:16], e, por sua vez, conduz ao solo de piano [3:37],

Ø Minguante

Exemplo Musical 20: Minguante (NEMESIS)


124

Composta com a intenção de produzir melodias e harmonias ao mesmo


tempo contemporâneas e líricas, Minguante apresenta sua primeira parte com um
caráter melancólico, e busca, gradativamente, ao longo das duas apresentações da
parte A, produzir uma expansão gradual da orquestração dos timbres. A repetição
do A [0:53], por exemplo, é tocada pela guitarra com um pedal de efeito que congela
a primeira nota tocada (freeze), permitindo que ela seja sustentada enquanto se
produz comentários em camadas acima.

Figura 65: Tema de Minguante (NEMESIS)


125

O caminho harmônico da primeira parte é o principal vetor de diálogo dessa


peça com o contemporâneo, e é caracterizado pela utilização de progressões de
acordes não usuais e resoluções suspensas.

A primeira parte termina com acentos súbitos que convertem para um solo
jazzístico sobre a harmonia do A [1:33]. O efeito que se buscou aqui foi o de simular
uma mudança de canal repentina que mostrasse outra paisagem após haver ficado
algum tempo na atmosfera mais lenta e melancólica da parte A. O baixo feito pelo
sintetizador e a bateria simulam o sotaque de swing.

O solo sobre swing termina em [2:06], dando início a uma parte de transição.
inicia-se um ostinato [2:18] sobre o qual o piano fará um solo:

Figura 66: Ostinato em 4/4 (NEMESIS)

O solo de piano, aqui pontilístico, atonal e composto praticamente de texturas


pinta paisagens em constante relação com a bateria. O piano constrói uma
atmosfera de expressão de efeitos até levar a uma versão do ostinato ‘quantizada’
em 3/4 [3:34]:

Figura 67: Ostinato em 3/4 (NEMESIS)


126

Após o solo de piano, a guitarra apresenta seu solo sobre a forma e harmonia
do A [3:45]. O solo começa rarefeito, e vai pouco a pouco aumentando seu
movimento. Usa linguagens aproximações e cromatismos típicas do jazz. Ao final
explora alguns elementos rítmicos [5:15] e a frase que indica a saída é uma
cromática descendente.

O tema é retomado como um poslúdio ao final, para desaparecer lentamente


em decrescendo.

Ø Olho de Boi

Exemplo Musical 21: Olho de Boi (NEMESIS)

Olho de Boi mistura em toda sua estrutura tanto ostinato como melodias
cantabiles94. Possui muito espaço para improviso, o demonstrando já a partir da
seção inicial. É prevista a interferência improvisos no próprio tema, intercalados com
o motivo rítmico inicial da guitarra [0:15]. Situações semelhantes ocorrem em [0:36],
[0:41] e [0:47].

Figura 68: Motivo inicial Olho de Boi (NEMESIS)

94
Expressão musical que, traduzida do italiano, significa literalmente “cantável“.
127

Seu B é mais suave [0:22]. Reapresentado em [0:55], é levemente melódico,


e cumpre a função de conferir espaço e arejamento à precisão rítmica do A. Em
[1:17] o sintetizador toca na região simulando um baixo, enquanto improvisa sozinho
uma preparação para o solo de guitarra através de uma ponte. Na sequencia [1:29]
entra no ostinato de base, simultaneamente com a guitarra em seu solo.

A saída do solo de guitarra é indicada pela seguinte frase abaixo, que leva a
um ostinato coletivo:

Figura 69: Frase de saída do solo de guitarra (NEMESIS)

Esse ostinato coletivo se converterá em solo de bateria, que mais uma vez irá
explorar elementos de polirritmia. [3:00]

A música retorna ao A [3:15] e permanece nessa estrutura harmônica que


servirá de base para o solo de sintetizador [3:27], finalizando com o groove inicial
sendo marcado por todos.
128

Ø Fênix

Exemplo Musical 22: Fênix (NEMESIS)

A mais intensa das composições, é dividida em três partes que representam,


respectivamente: a visceralidade, sua combustão e renascimento, produzindo por
consequência um profundo contraste entre as principais seções da obra.

A música se inicia com um ostinato frenético executado pelo sintetizador:

Figura 70: Ostinato em 7/8 (NEMESIS)

A primeira parte da música é composta sobre o Modo de Messiaen M2 e


apresenta grande intensidade:
129

Figura 71: Tema principal (NEMESIS)

Após a dupla exposição do tema, o solo de guitarra [0:59] se inicia usando


novamente o recurso do oitavador e dando continuidade à sonoridade do modo M2
de Messiaen. Com isso, há a ampliação da sensação de intensidade recursos em
passagens agudas [2:12] e cordas duplas, que, através da distorção presente no
pedal de efeito, contribuem para o aumento da tensão [2:23].

Ao final do solo de guitarra [2:41], o sintetizador ‘sobra’ e persiste


enfaticamente com o ostinato ao mesmo tempo em que, progressivamente, fecha o
filtro de timbre, retirando-se lentamente de cena [3:10].

A parte central da peça é apresentada em Half-time 95 , agora sobre um


ostinato de guitarra [3:33]:

95
Termo em inglês que no contexto musical sugere que a música seja tocada na metade do
andamento.
130

Figura 72: Ostinato de guitarra

Durante essa seção, o sintetizador cria atmosferas sonoras improvisando


longamente. A partir de [4:52] a bateria começa a construir um grande escalada de
tensão e contraste, cortando o compasso de 7/8 sustentado pela guitarra, e
atravessando de forma proposital em 2/4 [5:14]. Com isso produz uma polirritmia de
2/4 contra 7/8.

A bateria também conduz o retorno da intensidade em [5:54] no novo ostinato,


agora em 10/8. Aqui se apresenta o segundo solo de guitarra da peça.

Figura 73: Ostinato em 10/8 (NEMESIS)

O solo termina quando a guitarra dobra o ostinato de base indicando a saída


do solo. Após quatro repetições do ostinato, o tema retorna em 7/8 [7:37].

A coda, curta, propõe uma escalada de tensão. Feita a partir de um motivo


rítmico – tocado pela guitarra e bateria e caracterizado por duas colcheias – cresce
progressivamente até o final enfaticamente projetado pela repetição das duas notas.
131

CONCLUSÃO

Ao longo de três capítulos esta tese buscou explorar questões relativas à


prática da improvisação, levando em consideração aspectos concernentes a seu
passado, sua maneira de pensar na atualidade, e projeções sobre perspectivas
futuras.

Através de uma apresentação de seus aspectos históricos, foi possível


observar que a improvisação não é um movimento que teve sua aparição recente na
música, mas perpassa toda a história dessa arte a partir de diferentes vieses.

Grande parte do repertório da música de concerto europeia (da renascença


até o final do século XIX) foi composto em um ambiente de improvisação. Todos os
grandes compositores desse período eram seus próprios intérpretes; tocavam e
escreviam em linguagens que eram capazes de manipular livremente através de
seus próprios instrumentos.

Essa forma flexível de lidar com seu próprio repertório estava inserida, por
sua vez, dentro de um contexto de linguagem onde as frases representavam
estruturas maleáveis, passíveis de serem metamorfoseadas sem dificuldade pelo
compositor–intérprete. Ainda que algumas peças fossem escritas e compostas no
papel, elas eram inspiradas por uma atmosfera de improvisação.

Essa era portanto uma música viva. Uma música que fluia com a mesma
naturalidade da linguagem falada. Hierarquicamente, esse sempre foi um objetivo
comum entre os grandes: aperfeiçoar a comunicação entre inspiração e realização
digital. Se o compositor executasse a mesma peça no dia seguinte ao que a
compôs, possivelmente a tocaria de maneira diferente. O músico tinha o controle do
cenário, do pano de fundo das notas, e dominava o conjunto de possibilidades
musicais podendo combinar motivos e estruturas dentro da moldura de um limite
estabelecido pela linguagem daquele tempo.
132

Através da observação das diferentes perspectivas que a improvisação


assume em relação a seu caráter composicional, pôde-se compreender como ela
serve de ferramenta para o músico desenvolver sua linguagem pessoal, assim como
seu fraseado, suas habilidades de execução, interpretação e composição. A
improvisação congrega assim o gesto de criação e de interpretação. O músico não
apenas executa, mas também cria em conjunto ao ato de sua interpretação da
música. O processo de criação tem origem a partir de estruturas remodeladas e
reinventadas no ato da execução.

O mundo contemporâneo tem assistido progressivamente a um resgate do


perfil de compositor–instrumentista–improvisador que havia desaparecido
temporariamente da história da música durante o século XX. Tem sido testemunha
também do surgimento de um modelo de músico que se rotula atualmente como
híbrido, ou seja, alguém que domina o fraseado e o repertório da música de concerto
e, ao mesmo tempo, é capaz de improvisar e manipular o material musical
fluentemente em diferentes linguagens.

Nesse contexto, compreendendo a missão da academia de dialogar com a


arte de seu tempo, foram discutidos conceitos concernentes à prática da
improvisação musical, buscando oferecer ferramentas para desmistificá-la e torná-la
mais acessível. Através dos conceitos expostos, observou-se que, como Czerny já
apontava no século XIX, a improvisação é uma habilidade possível de ser treinada e
aperfeiçoada por qualquer músico, bastando para tal apenas interesse e dedicação.

Com isso, a proposta de organizar os processos relacionados à improvisação


em três pilares: Fundamentos, Vocabulário e Flexibilidade, apresenta um
planejamento prático com o intuito de contribuir com o entendimento a respeito de
sua lógica e funcionamento. A partir do conhecimento das engrenagens e
mecanismos que compõem a prática da improvisação, essa concepção abarca
também uma possibilidade de aplicação de viés pedagógico.96

96
Esses conceitos tem sido aplicados no curso de música da UFJF durante os últimos anos
e se comprovado extremamente eficazes.
133

Esse projeto de sistematização visa estabelecer paradigmas para que o


interessado possa ser, ele mesmo, seu próprio tutor no caminho do pleno
desenvolvimento de seu potencial. Quanto mais o músico for capaz de distinguir
suas próprias demandas, mais rápida e eficiente será sua evolução no instrumento.
Não se trata portanto de uma fórmula mágica, mas de um incentivo para o músico
alcançar maior liberdade poética como improvisador através de um aperfeiçoamento
natural que respeita sua autonomia de criação.

Praticar para ser livre; para não se deixar limitar a fazer apenas o que o dedo
permite, mas para dominar tantas combinações paramétricas quanto possíveis, de
forma que a criação em tempo real possa conter cada vez mais inspiração e menos
repetição.

Buscando exemplificar de que forma isso se aplica à contemporaneidade, o


violonista Nelson Veras aponta para o futuro da evolução de linguagem ao violão.
Sua entrevista e as transcrições de seus solos improvisados demonstram um
pensamento avançado, e um discurso de improvisação inédito até então.97 A partir
de Veras foi possível observar como se desenvolver na improvisação está
conectado a uma ideia de liberdade. Sua obsessão por não repetir padrões e buscar
sempre quebrar a previsibilidade apontam para uma abordagem moderna do
instrumento que aponta como inseparáveis os conceitos de flexibilidade e execução.

A improvisação contemporânea se revela um desafio particular. Ao mesmo


tempo em que existem incontáveis possibilidades estéticas, seu terreno é muitas
vezes árido. Modos de Messiaen, ostinatos e compassos mistos são alguns dos
exemplos de materiais usados por improvisadores na busca de uma nova
linguagem, ainda a ser inventada. Embora não vistos ainda com frequência no
cenário brasileiro do jazz, esses elementos tem sido usados tanto na cena de jazz
europeia como na nova-iorquina, no intuito de contribuir com um colorido diferente
para a improvisação moderna. O trabalho do trio Nomad serviu para exemplificar,

97
Ambos materiais encontram-se na íntegra na seção ‘apêndices’ desta tese.
134

acusticamente, essa sonoridade, oferecendo um experimento musical concreto a


respeito da teoria apresentada.

De modo a alcançar intimidade com as propostas almejadas, e vivenciar a


experiência da manipulação do texto musical em tempo real, da expansão de
barreiras estilísticas e da maleabilidade dos parâmetros envolvidos, foi necessário
‘colocar a mão na massa’. Através de um contato profundo com as possibilidades
estéticas encontradas, resultou um produto final que representa a síntese sonora do
que foi discutido na tese.

A confecção de Nemesis resgata a proposta de uma prática de improvisação


presente no cotidiano do fazer musical, experimentando o papel do músico que
compõe, transforma e manipula o material musical com o qual se relaciona. Ele
representa uma proposta cuja ambição é oferecer a possibilidade de se ouvir
efetivamente de que forma novos elementos estéticos e as estratégias de
desenvolvimento da improvisação discutidos durante a tese podem ser incorporados
ao fazer musical.

Durante o processo de confecção do CD se utilizou da estrutura dos três


pilares como base conceitual e prática para o desenvolvimento da improvisação
sobre novos materiais. Os fundamentos foram os Modos de Messiaen, os ostinatos,
as pentatônicas, as diversas formas de aplicação de escalas tradicionais e arpejos,
assim como sua relação com a harmonia. O conceito de vocabulário também está
implícito, na medida em que, na música moderna, o vocabulário se constitui a partir
de uma fusão de diversas linguagens que se conectam com a intenção de conduzir
à maior expressão possível. A flexibilidade aparece no sentido em que foi elaborada
uma dinâmica buscando desenvolver maleabilidade de combinações paramétricas
ao se trabalhar com esses materiais.

A proposta dessa gravação se caracteriza, portanto, pela materialização de


uma música viva, capaz de se transfigurar conforme a demanda expressiva,
buscando alcançar certa naturalidade na comunicação entre ideia, sentimento e
execução inspirada na linguagem verbal falada e escrita, uma mentalidade
consubstanciada ao cerne do fazer musical de todos os compositores-
instrumentistas da música de concerto até o final do século XIX.
135

O estudo da improvisação na contemporaneidade se comprova, dessa


maneira, como um objeto de grande valor poético, uma vez que se trata de uma
música em movimento, uma matriz que está sendo moldada e reconfigurada a cada
dia.

A improvisação se demonstra de grande relevância artística no âmbito da


música e da academia, e deve ser compreendida não só como meio de concepção e
criação musical, pelo potencial criativo que possui, mas também como ferramenta de
aprimoramento pessoal e pedagógico. Além disso, o desenvolvimento dessa
temática pode contribuir para a transformação do ensino e da própria maneira como
se compreende a música.

No decorrer desta pesquisa procurou-se apontar caminhos e possíveis


desdobramentos para a prática da improvisação na atualidade. Tendo em vista que
é um amplo campo de investigação, ao mesmo tempo que bastante profícuo, seu
debate não se esgota aqui, mas tem seu início lançado.
136

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