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Monsieur Nova
Uma coletânea de Rafael Nova.
Com este pequeno regalo, espero eu, sua vida se torne mais
aprazível e colorida, ao passo que o felicito pelo
_____________________________________
(insira a data comemorativa ou ocasião imaginária)
no qual só posso agradecer pela sua notável presença em
minha vida.
Monsieur Nova
À memória de Gustavo.
Que aí no céu, amigo, você possa saboreá-lo!
Obrigado por alimentar meus sonhos.
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ENTRADA
Introdução ______________________________________ 7
Oração ao leitor desconhecido. Que assim seja.
PRATOS QUENTES
Um Pássaro ____________________________________ 63
Quando um gay idoso perde seu companheiro de uma vida, vê-se tentando conseguir um
meio de se comunicar com ele. Uma doce e espiritual história onde nada parece fazer
sentido.
SOBREMESAS
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Possa tua jornada ser leve, e teu voo sobre as páginas
acolher vosso coração em alegria e boa companhia. Mas ai
daquele que dormir, levando para a cama este livro, pois sobre
ele recairá a minha cólera e seu sono será recheado de atividades
oníricas insanas e torturantes!
Sentado sobre vossas nádegas, guardai estas palavras e
proclamai esta obra a revolução do entretenimento do novo
tempo!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
A Última Oração
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
pus o olho nele... A calça apertada, unhas pintadas, franjinha
preta descendo pelo rosto, e o principal: ele era pequeno. Um
corpinho branco, liso, pequeninho e perigoso como um frasco de
veneno.
Só sei que o que magoou mesmo é que quando olhei pra
trás, eu vi que no fundo ele realmente nunca tinha gostado de
mim. E isso me apertava o peito... Eu tinha sido muito burro!
Ajeitei meu calção cinza de dormir, e me alonguei pra trás.
Soltei a fumaça, observando o movimento dela em cima de mim.
O gato miou lá na cozinha, pedindo comida. Eu devia ter confiado
nele – o gato, que era só um gato, nunca chegou nem perto do
meu “ex”.
Pelo sim e pelo não, levantei... Pedi licença a Deus como se
ele fosse um cliente parado diante da minha mesa no trabalho,
cocei o saco, e fui até o banheiro. Precisava mijar, olhar pra
minha cara de trinta e dois anos com aparência de sessenta, pro
meu cabelo já num comprimento inaceitável pedindo pra voltar a
ser raspado, e pra cor esquisita na minha pele. Um lixo humano.
Mexi na barba (é, eu esqueci de lavar a mão)... Os pelos
castanhos e claros espalhados pelo rosto, peito, pernas. Eu
costumava me achar razoável.
Voltei à rede, joguei o cigarro longe. Bastava de me sentir
assim! Eu tava sozinho já há mais de meio ano, cada vez pior. Não
ia pras boates, faltei quase todos os aniversários dos meus
amigos, comecei a deixar de treinar, e ainda por cima não podia
suportar ir a shopping e ver aquele bando de jovenzinhos quase
iguais ao “outro”. Se era pra acabar sozinho, nessa merda, ia ser
com a cabeça erguida e de banho tomado!
- Deus... – falei, sussurrando de dor, meio cortado – Se tem
algum cara legal por aí, eu nem sei. Não quero mais saber! Só
quero que você me ajude a sair dessa... Me ajuda a esquecer! Se
você me quer sozinho, tá beleza. Se me quer com alguém, me
traz alguém que vale a pena.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Porque se fosse pra ter alguém de novo... O gato ia ter que
gostar da pessoa.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Por Elise
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Em outra vida meu sonho era ser uma grande musicista.
Cheguei a dar aulas... Morava com meus pais e tinha outras
irmãs. E havia Beth, a amiga. A que andava de motocicleta e
fumava como os garotos, parecendo-se uma versão atrevida e
imortal de James Dean. Um doce de pessoa, a quem os meus
rejeitavam veementemente.
Nesta vida casei com Gerard, um contabilista. Homem
sério, afeito a suspensórios e de hábitos modestos. Um senso de
organização nato. Um tipo de homem que traz flores no
aniversário de casamento, e ainda é capaz de lembrar-se do
aniversário de namoro. O que cuida da casa, dos filhos, que troca
o carro, que dá dinheiro para as roupas e sorri. E ainda um tipo
que não se importa de não acontecer sexo entre ele e a esposa,
pelo menos na maior parte do tempo.
Em ambas as vidas já muito cedo eu sofri nos períodos que
antecediam a menstruação. Doía-me o ventre... Tive muitos
problemas ao longo dos anos. Fui acometida de síndrome do
ovário policístico. Tratamentos longos, eu cheguei a perder uma
gestação com três meses, quase quatro. Até hoje me pergunto
como seria a menina de 9 anos, a qual nem pude conhecer.
Meu ouvido dói, o sangue forma um pequeno mar
vermelho.
Espalho-me pelo chão nesta gloriosa manhã.
- Abra os olhos, Elise!
Meus olhos estão abertos.
Recordo-me um verão onde Beth e eu tocamos num
festival. Foi lindo... Ela era exímia no violino. Seu talento talvez
fosse um dos motivos pelo qual a respeitassem tanto, enquanto
outras como ela recebiam apenas os olhares de reprovação, nojo,
afastamento, da sociedade. Íamos a festas que as famílias ricas
organizavam para as celebridades locais... Ríamos, nós, o grupo.
Seu sorriso era encantador.
Mas sou injusta.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Lamento-me pela vida de agora... Queria voltar no tempo.
Tão cedo conheci Gerard, e logo do namoro veio os filhos. Beth se
afastou... Foi um alívio para todos, exceto para mim. E eu já não
podia dar conta do piano. Minha amiga foi ficando distante e
todas as coisas foram perdendo sua razão de ser... Já não me
importava tanto. Minha falecida mãe me dizia que estraguei meu
casamento e minha família porque eu simplesmente só pensava
em mim. Agora, de olhos abertos, consigo enxergar que ela tinha
absoluta razão.
Quase posso ver - paradas à sala de jantar - as imagens da
menina e de Beth. A minha filha que eu perdi, suas mãos ao
alcance dos meus cabelos. E Beth, escorada próxima ao relógio
antigo. Permanece tão jovem como na época em que a vi pela
última vez.
Se ainda tivesse meu útero, eu tentaria novamente dar
uma chance a esta menininha vir ao mundo. Isto é, se eu já não
estivesse indo de encontro a ela.
Gostaria de ser tão forte como Moisés, para abrir este Mar
Vermelho.
Passam pela minha mente os encontros de família aos
domingos. Já não reconhecia meus pais nem irmãs, nem
ninguém. Parada à beira da piscina, olhando as crianças,
limitando-me a fumar um cigarro, beber um pouco de uísque...
Ouvindo os risos de satisfação, as gargalhadas, as vozes
incessantes. Naqueles momentos, tudo o que eu desejava eram
os aplausos das salas de concerto. Quisera também sentir a mão
de minha amiga sobre a minha. Trocaria tudo por isso.
Nosso tempo foi tão curto...
O que é uma vida?
O estranho é que fui perdendo tantas coisas e partes de
mim. Você se adapta ao fim da carreira, à perda da filha, ao
inexistente útero e ovários, à amada amizade que se foi... Você
aceita como manda a Bíblia, e passa pelas provações. E no final
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
vai sobrando uma coisa, que não é mais você. Um retrato
desfigurado.
Quem teria sido Elisabeth?
Se eu tivesse a coragem de confessar a ela meu desejo, e
ela para mim, teria tido a coragem para estar com ela? Ela nunca
disse nada a mim, e eu nunca disse a ela, ainda que nossos
olhares de cumplicidade o esfregassem não apenas na cara uma
da outra, mas na cara de toda a sociedade. Nas noites com meu
marido, ele mesmo às vezes evocava a presença de Beth em
nossa cama, imaginando nós duas juntas... E eu negava, mas no
íntimo imaginava-me com ela. Sem ele. Ele teria aceitado
qualquer situação para continuar comigo.
Uma mãe assim, uma esposa assim, uma filha assim. Eu
não aceitaria.
- Abra os olhos, Elise!
Meus olhos estão abertos.
Quase posso imaginar meus dedos tocando uma sonata de
Beethoven: Moonlight. Meus lábios não se movem, mas eu estou
sorrindo. A dor em meu ouvido, essa fonte se derramando, e eu
ali pensando em mim mesma jovem, tocando. Eu poderia tocar
ainda, se quisesse. Apenas estou velha e magoada... E já não
tenho mais o que eu quero. Como disse, sou injusta; escolhi por
mim mesma o caminho da amargura.
Pensei nos acordes, meus dedos se movimentaram. A mão
de minha filha não nascida mexeu e brincou com eles... E Beth
pôs suas mãos sobre meus ombros.
- Você acordou, Elise, você acordou!
Por Beth, por Elise. Finalmente fechei meus olhos e toquei
como nunca o havia feito.
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Rafael Nova, 2013.
O Gordo Profeta
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pontudo pra baixo, no conjunto, parecia um daqueles óculos de
disfarce que vendem em loja de fantasia.
- Estou olhando pra você... Que delícia de gravata... – ele
forçou a voz pra ficar grave e rouca, imitando o telessexo que ele
com certeza muito aproveitou durante a adolescência.
- Vai se foder, já falei... – mostrei o dedo só pra ele ver.
- Olha seu e-mail, agora. E se prepara.
Balancei a cabeça em dúvida... Bom, já tava quase na hora
do almoço mesmo. Fiquei puto.
Era uma tirinha de Memes.
O gordo tava sempre com aquilo, eu até gostava, mas
porra, vinte e-mails por dia de tirinhas! Olhei pra ele com cara de
quem ia pegar o grampeador e enfiar no rabo dele (porque era
maior que os clipes). Ele fez sinal com as sobrancelhas pra eu
olhar de novo.
Assunto: “seu cu”.
Meu cu?
Nada a ver. Era um folder de festa... Uma festa gay, que ele
sabia muito bem que eu não frequentava há pelo menos um ano.
Festas que ele avacalhava porque dizia que ele não era gay.
Festas que meus outros amigos idiotas frequentavam porque
precisavam catar alguém pra comer, ou pra comer eles (no caso
do Tales), ou os dois.
Respirei fundo...
Daí eu ouvi a voz sacana soprando quase profética:
- “Open”... “Bar”...
O gordo sabia das coisas.
Eu ergui as costas como se uma força mística e misteriosa
tivesse entrado em mim e reestruturado meu corpo. Eu era o rei
do trago, desde a época da faculdade! Eu ainda tinha esse dom
em algum lugar dentro de mim, no meio de todas as batidinhas
de fruta irritantes que o meu ex me fez tomar. Com expressão de
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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vitória em meu rosto, girei a cadeira e abri os braços para ele,
saudando o mestre.
O Fábio Capetão só fez uma mesura com a cabeça e
deslizou para o elevador atrás dele, desaparecendo como
apareceu, lembrando uma versão tamanho elefante do Mestre
dos Magos.
No meio do almoço, enquanto eu ainda lutava com o bife,
ele disse:
- Você tem que dar esse rabo, Rodrigo.
- Vai se foder, capeta... Você sabe que eu nunca dei o meu
rabo, e nunca vou dar, e ainda vou comer o seu um dia.
Ele riu. As risadas do Fábio eram de dar vergonha em
qualquer um... Diz a lenda que a mãe dele colocou ele por um
ano numa fonoaudióloga quando ele tinha dezesseis, pra ver se
ele melhorava. Não funcionou, e ele ainda perdeu a virgindade
com ela.
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Garoto do Mercado
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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né, em volta pra ver o que era (tenho crédito de sobra pra
comentar a vida dos outros depois que a minha se esgotou na
boca do povo). Não tinha nada. Fiquei decepcionado.
Não sei por que cargas d’água justamente ali com o tomate
na mão eu fui querer pensar em ver ele com outros olhos. Ele não
tinha o menor jeito de gay!
Então esperei a minha vez, secando o rapazote.
Ele era o típico alemão: cabelo loiro arrepiadinho meio
moicano, pele branca e aparentemente carnuda; ele era um
tanto mais alto que eu e usava o uniforme medonho verde que
era impossível ser mais brega. Com aquelas calças de ginástica e
conjunto de camiseta, ele mostrava uma barriguinha leve e
convidativa que me chamou muito a atenção.
Todavia, na minha vez de pesar ele praticamente nem me
olhou, não disse uma só palavra, e em seguida já foi pegando as
coisas da outra pessoa na fila. De longe quando fui pegar pão,
pareceu que ele tinha olhado – só pareceu. Mas nessa hora já não
dei a menor bola e fui pro caixa, pra casa, e pro meu trabalho que
não me pagava as horas extras de escravidão fora da escola.
No dia seguinte dei as aulas das malditas sextas séries,
confiscando pelo menos seis celulares durante os períodos da
tarde. E antes de ir pra casa, exausto, fui pegar um suco ali no
“meu” mercado (me senti a atacadista agora) porque essa vida de
mestre tava acabando comigo. Encontrei umas aluninhas no
caixa, e tive que explicar pela centésima vez que o tema de casa
ia valer um ponto na prova, e finalmente fui lá nas geladeiras
catar a minha caixinha de marca. O menino não tava na fruteira
(conferi por curiosidade).
Assim que coloquei as coisas na passada pra pagar,
comecei logo a contar as moedas, pois sou quase pobre (salário
de professor né). Minha vontade seria derramar ali mesmo um
cardume de garoupas de notas de cem, mas... Na falta iam as
moedas de dez e vinte e cinco se somando até dar o valor que
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Rafael Nova, 2013.
precisava. Eu devia estar com uma cara muito horrível porque a
menina abriu um pouco a boca e até bocejou, meio desgostosa
em me ver - isso que a pequena piranha foi praticamente minha
colega de aula quando na ocasião dos meus 15 minutos de (má)
fama.
Olhei o recibo porque tenho mania de sempre ver, dobrei e
guardei na carteira, e daí vi a mão larga com dobrinhas meio
rosadas colocando minha caixinha de suco na sacola plástica
verde. Era o garoto, aquele... Por sinal tão garoto quanto eu
exceto pelo fato de eu parecer senil uma vez que cada turma de
sexta série e cada TCC te acrescentam 1 e 5 anos de
envelhecimento precoce à sua aparência, respectivamente.
Voltei pela parte da praia pra ver o sol indo embora e
depois desse momento de bucolismo despropositado entrei na
minha humilde residência. Ali eu botei minha Katy Perry pra tocar
no computador e dei graças a Deus por ter corrigido todos os
acúmulos na noite anterior. Ia poder respirar um pouco e quem
sabe usar o Facebook como sonífero.
Tomei meu banho, botei meu shortinho de ficar em casa,
minha tradicional camiseta velha de escravo, e fui levar o lixo na
rua. A noite tava linda! Todas as estrelas do mundo estavam
aparecendo por cima da figueira gigante que tinha logo em
frente. Achei graça daquilo tudo... Lá fora não tinha som de nada.
Os quatro mil habitantes já deviam estar olhando novela ou
fornicando.
Nisso, parado e sonhador (fazendo a princesa), esqueci da
vida. Quando dei por mim, o garoto do mercado tava vindo pela
rua. Estampei na cara meu descontentamento e não saí dali na
hora pra justamente não parecer o antipático que sai na hora que
alguém passa. Revirei meus olhos.
Assim que ele chegou perto da minha casa, veio na direção
da grade do portão onde eu estava escorado.
- Oi... – ele falou.
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- Oi? – eu perguntei. Tipo... “Alô? O que você quer aqui?!”.
- Você esqueceu o troco! – ele deu um sorrisinho sem
graça.
Puta que pariu, de novo! Eu devia ter recebido um diploma
extra de bacharel em esquecer coisas em lugares públicos. Isso
uma vez me custou um celular recém-comprado com fotos
comprometedoras. Sorte que foi na cidade que me formei se não
ia ter outro momento de apreciação pública por ali.
- Bah... – eu falei – Que bom que você trouxe. Como sabe
que eu moro aqui?
- Eu não sabia.
- Como não? Então... – eu quis começar a saber.
Tarde demais!
Ele me puxou pelos ombros e me deu um beijo. Um beijo
quente e molhado, sem língua. Inesperado, surpreendente, um
acontecimento digno de uma cena de filme. A respiração
ofegante varrendo meu rosto.
Naquele momento, senti dentro de mim todas as garoupas
do mundo nadando desvairadas – notas de cem se derramando
num mar de valiosidade. Não precisava de mais nada...
Eu estava rico.
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Ponte de Vidro
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Rafael Nova, 2013.
vezes eu tinha impressão que ela estava de maquiagem. Entrou
em uma aula de canto, que eu acho foi seu melhor investimento:
de fato, desde pequeno, lembro que Leandro cantava muito e
tinha um dom ali. Sua mãe batia na boca dela sempre que estava
cantando, porque o pai era um boêmio, e ela não podia vir a ser
igual ao cara que arruinou a vida dela com “um filho inútil”.
Na época em que eu perdi a virgindade e estávamos já no
fim do colégio, Leandro me visitou chorando numa noite. Contou
que na verdade o pai não era tão desaparecido assim, e um
punhado de vezes a mãe o obrigou a ir junto “visita-lo”.
Mesmo dizendo pras outras em casa que o odiava, ela dizia
que “precisava” dele e que o amava. Ele era casado agora, e se
encontravam num hotelzinho barato da cidade baixa. Leandro
cantava dentro do banheiro pra tentar não ouvir o que faziam no
quarto, com as mãos nos ouvidos, enquanto esperava aquilo
terminar. Em uma dessas vezes a mãe saiu porta a fora depois de
mais uma briga, e foi aí que o próprio pai abusou dela. Foram
cinco vezes em dias diferentes... Ela não tinha coragem de falar
pra ninguém, mas agora a mãe estava batendo nela pra tentar
obriga-la a visitar o pai de novo e ela queria sair de casa.
Aos soluços, confessou-me o que no fundo eu já imaginava:
“ele” era uma mulher por dentro. E contou que a cada ano que
passava, sentia-se como uma, e sofria porque estava no corpo
errado. Engoli a seco.
Ofereci um abraço.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
A cada visita, embora eu também estivesse morando fora,
nas poucas vezes em que pude conversar com ela naquele ano,
vi-a se transformando devagar.
Nos raros encontros entre nós, contou-me das roupas
novas, das cartelas de anticoncepcional indicada por travestis na
noite, e de como os hormônios iam ajudar ela. Falava-me
animada do curso de francês e do amor pelos livros e discos
antigos. E me doía um pouco saber que ela não entraria no curso
de música, sua paixão, porque não tinha dinheiro e nem existia
possibilidade de bolsa na época para a instituição particular - na
universidade federal que eu estudava, não tinha esta área de
artes. Mesmo assim ela sorria, um sorriso raso.
Eu confesso aqui que apesar do apoio dos meus pais e
irmãos, Leandro era a única pessoa que realmente olhava meus
projetos da faculdade com olhos de admiração. Diferente de
todos, parecia que ela via em mim coisas que as outras pessoas
não viam.
Nas ocasiões em que eu contava das minhas namoradas,
mostrava algum novo trabalho, ou até ideias de trabalho, eu via o
sorriso que na infância era fácil, reaparecer ali em meio à sua
expressão crescentemente melancólica de agora. Chegava a
apontar e dizer o que achava dos detalhes, comentar o que
julgava poderia me ajudar e inspirar, sempre sem graça por se
achar ignorante ou inferior. Eu ria, porque não via as coisas desse
modo. Minha família não comentava nada sobre o fato de eu ser
amigo da falada “bicha da rua”, e tive sorte por minhas
namoradas nunca se importaram também, pois eu não a deixaria.
Leandro me contou que seu maior sonho era viver numa
casa de praia, igual vira num filme dos anos 80 na televisão. Era
uma família que morava em um tipo de ilha ao lado da cidade,
cheia de pontes numa vila charmosa e bastante europeia. Eu dizia
que ela ia precisar de mim, do meu serviço, se quisesse construir
todas aquelas pontes cafonas.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
E enquanto eu ia às festas da turma, tomava porres,
passava noites em claro estudando, ou viajava a congressos, eu
via em minha amiga um universo parado que de certo modo me
tranquilizava. Esse pensamento egoísta gostava de saber que ela
estava sempre lá, quando eu precisasse “voltar”.
No final do curso de Engenharia Civil perdemos bastante o
contato. Só sabia que agora tinha um nome novo: “Laila”, e que
estava se apresentando como cantora em boates alternativas.
Havia ficado com uns caras, que nunca passaram de alguns. E
certa vez que tocamos neste assunto, ela me disse chorando que
não tinha direito de enganá-los. Eles esperavam que ela fosse
apenas um homem travestido que transaria com eles ou então
realmente se iludiam achando que fosse uma mulher “de
verdade”. Não era uma coisa nem outra. Pra ela, sua vida era
amaldiçoada.
Quando me formei, ela não foi à minha formatura porque
não queria estragar a festa. Porém, foi dela que recebi o cartão
mais bonito de felicidades, e o mais sincero.
Da minha parte, eu também nunca fui vê-la se apresentar.
Sobre diversos assuntos mantínhamos um silêncio
respeitoso e de entendimento mútuo. Este era um deles.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Infelizmente, em questão de meses, sua luz foi se
apagando.
Ela mantinha um pequeno apartamento no centro, que eu
não conhecia, e agora se esforçava para sustentar a casa em que
a mãe ainda vivia - aquela que a essa altura já nem saía senão
para comprar cigarros e bebidas. Do pai jamais quis ter qualquer
ajuda ou novo contato além daqueles, os quais tinham sido
suficientes para carregar marcas e decepção pelo resto da vida.
Era difícil saber que Laila não era mesmo uma mulher. Os
seios pequenos, o cabelo longo e preto bastante volumoso... Até
um pouco de quadril a natureza lhe tinha dado de nascença. E
ainda assim, por mais que tentasse, não conseguia ser feliz.
Os hormônios, as roupas, a música, não a libertaram.
Na época em que terminei meu noivado, afastei-me das
pessoas e me joguei no mundo do cálculo estrutural, da
resistência dos materiais, tipos de fundações, armaduras,
concreto armado. E só depois de semanas, meses, saindo do
mergulho total em meu serviço, lentamente comecei a pensar em
minha família, amigos, e em especial na minha amiga, notando
sua ausência... Sentia sua falta, por isso a convidei para ir comigo
ao cinema numa certa noite. Estava precisando esquecer os
problemas e relembrar os velhos tempos... Não com colegas e
conhecidos, e sim com quem realmente acompanhou minha vida
e sabia, por exemplo, que eu tinha mania de tomar café sem
açúcar, fechar a torneira duas vezes, ou tinha quebrado um galho
com meu peso e com isso ganho uma fratura no braço esquerdo.
Diferente das outras vezes que saiu comigo em público,
Laila estava usando suas roupas femininas – sempre pretas. Tinha
os olhos curiosamente molhados e, durante o filme, chorou
talvez mais do que o suficiente diante das cenas. Imerso na
história, eu não esperava que quando Laila saísse para ir ao
banheiro ela não voltaria mais. Constatei que algo estava mesmo
errado quando virei no acender da luz e em seu lugar havia um
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
pequeno pingente de vidro, o qual costumava usar preso a um
brinco – o item de “menina” que foi a primeira coisa realmente
de mulher que tinha usado na vida, aos quatorze anos.
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despedir, porém não teve coragem e deixou o pingente como
uma recordação, um presente de despedida.
Levantei seu rosto... E sem querer meu coração bateu mais
rápido. Não sei o que deu em mim, mas simplesmente limpei
suas lágrimas, como fiz algumas vezes às meninas e mulheres que
tive. Fiz menção de beijar o rosto dela, do meu melhor amigo de
infância, a mulher mais delicada que conhecera até ali. Ela,
assustada, afastou-me com força. Olhamo-nos surpresos por
alguns instantes, e depois pedi perdão. Esquecemos.
O meu coração não.
E isso começou a me perturbar nos dias seguintes.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Um dia ao sair do trabalho, parei no sinal fechado. A luz do
fim de tarde refletiu em algo no console do carro, atingindo
minha visão em cheio... Franzi a testa e logo localizei o pingente,
que eu carregava sempre comigo. Peguei-o, brilhando em minhas
mãos, e por um minuto eu não estava no trânsito e sim na nossa
vizinhança, brincando de esconder. Ouvi as buzinas reclamando e
logo acelerei de novo. Eu, que só havia chorado poucas vezes
quando era pequeno, tinha uma lágrima escorrendo pelo meu
rosto.
O mundo em meu lugar havia construído pontes para Laila,
pontes de vidro, finas demais e incapazes de suportar sem
quebrar o peso de sua vida. Em sua ilha, estava sozinha, sem ter
como sair, sem ter como alguém entrar.
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A Fantástica Lésbica de Taba-K
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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Mika foi chamada em missão ao Alfa-Ômega, a capital, e lá
lhe foi confiado sua destinação, até então desconhecida.
Intrigada, ordenaram-lhe então que partisse em direção à Terra,
um planeta no sistema solar vizinho a elas e cujos dados
indicavam abundância de material orgânico símile aos de seu
planeta – isto é, humanos. Mika ficou irritadíssima!
O planeta Terra era conhecido nas aulas de exploração
como a “lixeira da via láctea”.
Qualquer criança do setor K sabia e fazia piadas sobre isso,
e a situação dos seres da Terra era tão pouco evoluída e precária
que a Aliança da Galáxia impediu que os terráqueos pudessem se
comunicar ou visualizar quaisquer formas de vida fora de seu
mundo – inclusive nos planetas próximos. Com isso, não raro as
engenheiras de Taba se deliciavam em adulterar todas as
informações captadas pelos rudimentares equipamentos
espaciais dos terráqueos que eram lançados em órbita, tudo para
isolar “a lixeira” de qualquer recepção de sinais de via
extraterrena.
Aqui ou ali, timidamente, ainda se permitia que
recebessem visitas de reavaliação e então aconteciam
avistamentos. Normalmente sinais nas plantações eram enviados
como testes de inteligência e receptividade, todos sempre
burramente interpretados e calorosamente atestados como
fraude. Não houvesse misericórdia no Universo a Terra já teria
sido varrida. Mas se sabia que isso já estava encaminhado... Seria
mais fácil limpar a atmosfera depois do fim da civilização terrena
do que educar um bando de ignorantes.
E afinal, ordens eram ordens.
Mina ficou preocupadíssima com a partida de Mika, mas
poderiam ainda se comunicar pelos dispositivos portáteis. E
revirando os olhos, a moça de cabelos roxos embarcou em sua
nave e se dirigiu à Terra, onde localizou uma cidade apta à
descida. Preparou-se para a noite, pesquisou um pouco sobre a
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
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arquitetura local, deixou a nave oculta no céu e desceu. Tão logo
respirou o ar do planeta, sentiu o peso da poluição. Mas até que
enfim uma boa notícia: matéria orgânica abundante que
praticamente entupia o ar e as lixeiras que existiam na cidade.
Localizou um lote vago e implantou ali uma pequena
caixinha, o famoso “organizador de matéria programável”. É
claro, programado para criar uma bela casa de paredes amarelas
e um jardim viçoso. Com espantável rapidez, o aparelhinho
“imprimiu” o pedido em questão de meia hora – móveis inclusos.
A noite foi dura, com pouco tempo para estudar o
comportamento dos cidadãos. O localizador gênico foi ativado e
sua varredura confirmou a excelente investigação prévia: um
rapaz de dezessete anos, estudante do secundário. Ele era o alvo.
Na manhã seguinte, como aluna disfarçada, Mika estava
matriculada e pronta para frequentar as aulas de Gustavo.
Seguiu-o por toda parte antes do início dos períodos. Assim que o
sinal foi dado, e o professor entrou em sala, por instinto Mika se
ergueu com a mão posta para frente e fez a “Saudação à Aliança
da Galáxia”! Todos riram e ela ficou imediatamente conhecida
como nerd da turma.
O que mais provocou o ódio dela era não apenas que
ninguém conhecesse a saudação, mas a terem achado ridícula.
Teve vontade de abrir sua mochila e atirar em todos, mas ficou
quieta. Os presunçosos da Terra acreditavam mesmo que não
existia vida fora dali e isso era insuportável. Uns metidos!
O dia todo Mika procurou fazer contato com Gustavo, que
se esquivou da pessoa mais esquisita que ele já tinha visto.
Porém, com satisfação, ela começou a notar que as garotas
terráqueas eram muito bonitas. Também pôde observar de perto
dois fenômenos que só conhecera na teoria: o envelhecimento
celular, impossível de não acontecer nas condições atmosféricas
dali, e a gravidez natural – algo do qual sentiu uma absoluta
repulsa, mas parecia comum entre adolescentes incautos.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Conversando com a equipe de saúde do setor N, foi
resolvido que Mika deveria seduzir Gustavo. Porém - e sempre
havia um maldito porém - ele era apaixonado e estava prestes a
namorar com Vica, uma rapariga ruiva do último ano. Era preciso
separá-los e convencer Gustavo a participar de uma viagem para
coleta... Ou então, precisaria de um Plano B bem menos louvável
que passou por sua genial, e maliciosa, mente.
Na saída da escola, a moça espacial o esperou. Ele
concordara em conversar e ela revelou toda a história pra ele.
Coçando a cabeça (oca) de cabelos cor de amêndoa, ele riu e
perguntou se Mika fazia algum tipo de tratamento psiquiátrico ou
estava treinando para eventos de cosplay (ela teve de procurar o
termo no comunicador). Ao entender a ironia, puniu o audacioso
idiota com um belo tapa na cara. Desnecessário dizer que as
tentativas de soluções diplomáticas estavam oficialmente
encerradas ali.
Na mesma noite, Mika entrou pela janela do quarto de
Gustavo. Era madrugada... Certificou-se de trancar a porta, e
depois se dirigiu ao menino que dormia. O quarto era organizado,
mas o cheiro de homem era repugnante. Ela já havia visto
modelos deles, mas nunca um de perto, nem em outros planetas
que visitara onde existiam criaturas afins. Aquele ali, certamente
era um dos piores exemplares.
Pegou a pistola, apontou à cabeça de Gustavo e puxou o
gatilho. “Fu!”, fez a arma. Um pó azul e cintilante caiu e
imediatamente foi aspirado por ele.
Alguns minutos, e ela então retirou o cobertor e virou-o de
barriga para cima. Arriou as calças, puxou a cueca e olhou para a
parte que o sol não costuma tocar. Era com imenso desgosto que
iria fazer aquilo, mas repetiu a si mesma que era em nome da
salvação de seu planeta. Seria a masturbação que impediria toda
sua raça de ir à decadência!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Sem a luva, tocou o órgão genital movimentando-o de cima
para baixo (encontrou instruções sobre isso no Manual do
Homem, um arquivo que foi obrigada a consultar). Gustavo
gemeu e Mika revirou os olhos... Conforme foi ficando em ponto
de bala, pegou um tubo transparente que armazenaria o
esperma. Para sua surpresa, o órgão não mudou muito no
tamanho. Conforme o rapaz dopado suava e seu corpo produzia
espasmos, ele abriu a boca, a expectativa no ar, gemidos mais e
mais fortes!
- Porra! O que é isso?! – ele gritou de repente.
Deu um pontapé instintivo que jogou Mika na cadeira do
computador.
- Eu quero seu esperma! – ela gritou.
- Você tá louca, vou chamar a polícia agora! De novo com
isso! Como entrou aqui?
Ela foi até ele e apontou sua arma.
- Fica quieto... Podemos fazer isso do jeito mais difícil ou
mais fácil. O mais fácil é eu pegar seu material genético, e dar o
fora daqui. E é isso.
- Por que não podia ser um fio de cabelo, saliva? Por que tá
fazendo isso? – ele escondeu o órgão genital.
- Seu burro! Vocês são todos uns burros! Não são só
elementos químicos que compõem o melhor material para dar
origem à vida... Nesse seu esperma há elementos próprios
organizados numa vibração específica pela sua alma estúpida,
que precisa ser usado para gerar ela. Então se você preferir, faz
você mesmo logo isso nesse seu trocinho ultrapassado!
- Nunca! Sai daqui! Mãe, pai! – ele começou gritar, e
depois falou baixo e com raiva – Meu pau não é ultrapassado e
você estava gostando de mexer nele, eu vi!
- O quê?! Ora seu moleque!
Mika não se segurou, avançou e lhe deu um tapa... Gustavo
atônito com tudo aquilo devolveu o tapa e começaram uma
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
lutinha patética. As batidas na porta começaram. Pararam ao
mesmo tempo olhando na direção do som.
- Você vai se ferrar, sua louca! – ele falou baixinho,
tentando se arrastar enquanto ela o prendia pelos pés e desviava
dos chutes.
- Se você abrir a porta, eu conto que você tirou zero na
prova de inglês e levou uma assinatura falsificada para o
professor.
Bingo.
- Como sabe...
- Eu filmei, homenzinho! – ela falou e fez sinal para o órgão
genital do menino.
- Sua... – não completou a frase.
A moça se levantou, saiu correndo e pulou pela janela. Um
clarão fez com que desaparecesse dos olhos dele. Mika voltou à
nave e comunicou todo o ocorrido para suas superioras, que
lamentaram o incidente. A despeito da boa intenção dela, era
preciso que o terráqueo produzisse material genético consentido
com as oscilações energéticas próprias do prazer, ou tudo aquilo
seria em vão. Até o momento, apesar do exaustivo rastreamento,
nenhum outro planeta com humanos oferecia material específico
de que precisavam, e a Organizadora já estava ficando com o
corpo translúcido. Ademais, a burocracia era clara, portanto sem
autorização da alma terráquea doadora, não seria mesmo
possível transportar aquilo para Taba – era uma lei da Aliança e
ainda mais forte em se tratando do plano físico da Terra. O
respeito à integridade não podia ser rompido nem pela melhor
das intenções.
Mika tinha se esquecido desse detalhe no seu plano B.
Simplesmente não acreditava que isso estava acontecendo.
Ela foi pra sua casa base, deitou na cama e deu socos no
colchão. Se não era possível seduzir Gustavo, então ela seduziria
sua namorada, e aí seria mais fácil conquistar a simpatia de
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
ambos. E também, se conseguisse gerar um momento de
provocação sexual entre os três, deixaria o rapaz mais propício a
concordar e até mesmo realizar o ato por si mesmo. Quer ele a
achasse louca, ou não.
É claro, Mina aprovou a ideia em nome da continuidade de
sua nação e ficou muito animada. Então a exploradora uniria o
útil ao agradável, exceto pela parte masculina da equação.
Mas isso é uma outra e fantástica história.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Diário de Camila
Segunda-feira, 13 de fevereiro.
Querido diário! Hoje as aulas começaram e eu tive que ir
pro colégio com a falsa da Karine (eu não suporto ela)! Ela se
acha muito só porque usa calça 36. Um dia vou enforcar ela com
minha bandeira 42. Ela vai ver só! Puta! Odeio a oitava série,
odeio!
Terça-feira, 14 de fevereiro.
Não aguentava mais de vontade de escrever porque
quando cheguei no colégio dei de cara com o Bernardo, o menino
novo da turma. Ele é loirinho e parece o Justin Bieber! Fiquei
louca pra conversar com ele, mas eu nunca tenho assunto! A
Jéssica minha BFF finalmente voltou das férias na Disney e eu fiz
ela prometer que vai me ajudar. Tiramos fotos fazendo beicinho
usando o chapeuzinho com orelha do Mickey que ela trouxe pra
mim! Tô doida pra postar no Face! Todo mundo vai se rasgar de
inveja! Huahuahua!
Sexta-feira, 17 de fevereiro.
Tô tão irritada que eu podia partir esse computador no
meio. Porra, tá todo mundo me chamando de rata no colégio
agora por causa da foto no Face! Vai tomar no cu! E ainda por
cima a Karine foi fazer trabalho de dupla com o Bê! Ele não
conhece ela! Ele vai se dar muito mal eu tenho certeza! Já pedi
pra Jé abrir os olhos dele!
Quinta-feira, 23 de fevereiro.
Não tinha quase ninguém no colégio porque todo mundo
foi pro carnaval. Eu odeio carnaval! Mentira! Gosto tanto que me
pintei de têmpera antes de tomar banho e fiquei sambando pra
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
imitar a vinheta da Globeleza! Meu pai chutou a porta e me
xingou de louca. Aqui nessa casa a gente não pode fazer nada que
sempre tem um recalcado pra estragar tudo! Mas a notícia boa
foi que o Bê tava sozinho e eu tomei coragem e fui falar com ele.
A notícia ruim é que eu tava tão envergonhada que eu fiquei
vermelha e me engasguei, ele começou a bater nas minhas costas
e todo mundo riu de mim perguntando se eu tinha me entalado
com um tijolo de queijo só porque acham que eu sou gorda e
porque agora sou rata também! Saco!!!
Sábado, 25 de fevereiro.
Eu e a Jé saímos pra ir no shopping porque eu precisava
muito comprar a Capricho desse mês. Aproveitei e olhei 32 cores
de esmaltes diferentes e não comprei nenhuma. Quando a gente
tava indo pro Mac, eu vi ele! PERFEITO! Tava conversando com os
menininhos emos que devem ser amiguinhos dele. Eles tavam
tomando Coca-Cola Zero! Eu acho Zero muito ruim, mas se for
pra ficar com o Bê eu tomo até Fanta Uva!
Domingo, 26 de fevereiro.
Notícia urgente! A Jé conversou com a Karine puta pelo
Skype e ela falou que tinha ficado com o Bê. Tô super
desapontada, mas não vou deixar aquela desgraçada me ganhar.
Quarta que vem de tarde ela vai ver só na educação física. Vaca!
Quarta-feira, 29 de fevereiro.
Assinei uma advertência. Tudo porque na hora que a gente
tava jogando vôlei eu fui dar uma cortada e acabei acertando a
Karine (adoro!). Ela chorou, e eu ri tanto que acabei peidando
sem querer! Vergonha! Sorte que ninguém ouviu... Ainda fiz
questão de passar por ela e abanar a minha calça pra ela ficar
intoxicada. Tô muito poderosa! PRE-PA-RA!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Segunda-feira, 5 de março.
Na hora da saída o Bê falou comigo... Tô louca por ele!
Fiquei pensando na gente casado e eu acho que ele gosta de
mim. Ele disse que o meu esmalte cereja é o mais bonito que ele
já viu. Falou que a gente tipo precisa muito estudar junto essa
semana! Eu já tô pronta pra pegar aquele corpo! Segura peão! A
rata vai fazer a festa! No final da aula a falsa voltou comigo.
Sexta-feira, 9 de março.
Cacete, hoje na aula fizeram a gente assistir um filme idiota
porque a professora de português faltou porque de certo passou
a noite dando a pomba e esqueceu da hora! Sentei do lado do Bê
antes que a Karine sentasse e eu tivesse que sentar em cima dela
e quebrar ela toda. Odeio ela, agora todo dia ela acha de vir
comigo pro colégio. O Bê chegou a chorar vendo o filme. A Jéssica
disse que é só eu querer que ele já é meu!
Domingo, 11 de março.
Minha mãe não podia inventar reunião de parente aqui em
casa num dia pior! Era hoje que o Bê vinha aqui em casa, e agora
tenho que aguentar meus primos chatos mexendo nas minha
coisas e no meu computador. Eu juro que eu vou sair de casa e
nunca mais vou voltar, eles vão se arrepender de ter feito isso
comigo!
Terça-feira, 14 de março.
Já anunciaram o show de talentos e eu tô cheia de ideias
porque sou MUITO artística. Tô pensando de convidar o Bê pra
encenar uma cena do Crepúsculo comigo. Só não sei se quero ele
de Edward ou de Jacob! Eu sou muito a Bella, nossa! A Jéssica
disse que me ajuda porque ela conhece tudo da saga! Eu amo
ela!!!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Quarta-feira, 15 de março.
O Bê me ligou e pediu se o Roberto podia participar, ele
ficou de fora de todos os outros grupos e é o melhor amigo dele.
Eu deixei, claro! Já pensei de ajeitar ele pra Jéssica, e daí a gente
pode casar os quatro juntos. Minha madrinha hoje teve aqui em
casa e falou que eu tô comendo muito... Fiquei triste, mas depois
eu vim pro meu quarto e devorei a barra de chocolate que eu
tinha escondido na minha gaveta das calcinhas. Homem gosta é
de carne!
Sexta-feira, 17 de março.
Hoje eles vieram e a gente ensaiou. O Bê quis ser o Edward
porque ele é mais bonito e deu a ideia de usar purpurina na pele
no dia. Ele é artístico que nem eu! Já o Rô tava tímido... Ele pediu
se podia ficar sozinho com o Bê no meu quarto pra se acalmar.
Não perdi tempo e fui na locadora tirar Amanhecer pra gente
assistir junto.
Sábado, 18 de março.
Os meninos não vieram aqui em casa. Fui descer a escada
correndo e a minha calça rasgou atrás... Meu irmão ficou me
chamando de cu de canhão. Peguei uma fôrma de gelo e saí
correndo atrás e enfiei na calça dele. Ele chorou muito e meu pai
me botou de castigo. Não consigo parar de rir! Sou uma diaba!
P.S.: Fui atualizar meu relacionamento no Face pra
“amizade colorida” e vi que o Bê tava postando umas fotos dele
do book que a minha sogra deu pra ele. LINDO!
Sexta-feira, 23 de março.
Caralho! O nosso teatro foi o melhor e mesmo assim a
gente perdeu pra Karine que fez a gaiola das popozudas com as
amigas dela. O Rô disse pra mim não chorar e me deu um abraço,
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
e depois abraçou muito o Bê que não se aguentou e chorou.
Aquela putinha falsa vai ver só na próxima educação física!
Quinta-feira, 1 de abril.
Hoje é dia da mentira. Aproveitei pra falar pro Bê que eu
era a fim dele porque se ele não quisesse nada eu dizia que era
mentira porque sou esperta. O Rô chegou antes e fez a mesma
brincadeira, quase morri de rir. O Bê disse que vai pensar no que
eu falei, mas que ele tem uma coisa pra me contar amanhã.
Convidei ele pra tomar banho de piscina na minha casa!
Sexta-feira, 2 de abril.
Veio o Bê, o Rô e a Jé. O Bê me chamou no quarto e eu
achei que ele ia me beijar, mas ele ficou louco quando viu minha
Barbie Daphne do Scooby Doo. Ficamos brincando e ele pegou na
minha mão várias vezes. Depois a gente desceu pra piscina. O Rô
precisou ir no banheiro e pediu pro Bê levar ele, e a Jé me contou
que viu o pinto do Rô sem querer! Morri!
Quarta-feira, 2 de maio.
Jurei que nunca mais ia escrever! O Bê me convidou pra ir
na casa dele umas semanas atrás e começou muito mal: ele me
ofereceu Fanta Uva. Mas meu amor por ele era tão forte que eu
tomei. Depois ele me levou pro quarto e mostrou o DVD da Lady
GaGa que recém tinha chego pra ele. Eu tava curtindo tanto,
quando ele virou pra mim e disse que ele é gay. Eu fiquei muito
puta! Fui pra casa correndo e rasguei a foto dele, e depois excluí
ele do Skype e bloqueei no Face e não segui mais no Twitter e
apaguei o Instagram dele dos meus favoritos. A gente ficou sem
falar! Super NÃO CURTI isso! Daí depois de um tempo ele me
disse que era mentira da Karine que eles tinham ficado. Hoje eu
na educação física fui chutar a bola e torci o pé. Odeio educação
física! Odeio os frios, esses vampiros gays malditos!!!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Quinta-feira, 3 de maio.
Tô super feliz. Fiz as pazes com o Bê e ele saiu depois da
aula comigo e com a Jé pra ir no shopping. O Rô apareceu, e o Bê
me falou no ouvido que o Rô é super a fim de mim. Eu sempre
soube que a Bella tinha que ficar com o Jacob! No final da tarde
ele me deu um sorvete e eu falei obrigada e ele falou que queria
uma coisa em troca e me pediu um beijo!
Sexta-feira, 4 de maio.
A Karine apareceu com um moletom de pelúcia preto e a
bandida da Jéssica apelidou ela de macaca (adoro)! LOL! (6)
Sábado, 6 de maio.
Querido diário! De tardezinha eu tava comendo sorvete e
daí abri o Face e o Rô disse que tava com saudade. Oin! Ele me
confessou que é bi e quis saber se eu queria namorar com ele, e
se eu deixava o Bê namorar com a gente... Aceitei na hora!
Sempre achei que a Bella tinha mais era que aproveitar e pegar
geral, passar muito o rodo. BFF gay foi a melhor coisa que
aconteceu na minha vida! O Bê disse que a Karine macaca mora
num cabaré-árvore do Avatar! Eu AMO os gays!!!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
A Batalha de Campos
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Nandona abriu os braços como se fosse uma águia pronta
para o voo e depois num grito agudo digno da ave de fato voou e
arrebentou a porta ao meio com a destreza de uma artista
marcial. Cacos de madeira voaram por todo lado, enquanto o
esquadrão entrou chefiado por Paula, que logo berrou “que porra
é essa?!”.
A porra era Neila com cara de chapada, provavelmente de
tanto dar todas as suas partes à tutela orgástica de Vera, que
deitada de barriga pra cima, exibia sua falta de seios e o cabelo
curto suado grudado na testa, enquanto ainda gemia e usava
seus braços para fazer sua vadiazinha gemer sem sentir dor. Uma
cena digna de um belo filme ou site pornô, capaz de render
milhões de acessos, dinheiro, e inveja.
Mas aquilo era nada perto da astúcia da ousada Paula.
Os olhos arregalados das duas traidoras foram pouco perto
da fincada de salto agulha que meteu na perna estirada e
musculosa de Vera. O esguicho de sangue foi instantâneo assim
como seu curvar de corpo e o modo como jogou Neila – por
reflexo, porém merecidamente - sobre a mesinha de canto, onde
quebrou um vaso de planta e arrebentou levando ao chão
consigo a frágil peça de madeira.
- Agora você vai saber com quantos paus se faz uma canoa!
– Paula rugiu ameaçadora.
Tânia Perigo, com seu cabelo escuro trabalhado no
permanente, mascava um chiclete quando caçou Neila pelos
cabelos loiros oxigenados e lisos, e a arrastou pelo corredor
jogando-a escada abaixo diante do sorriso cínico da invejosa
Sheila (também loira). Nunca tivera apreço pela namoradinha
nova da melhor amiga, e foi ela quem ardilosamente interceptou
uma série de mensagens de celular, as quais foram explicadas de
modo objetivo, sem entrar na sordidez dos termos (o que poupou
Paula de algum sofrimento). Infelizmente, a amiga à época estava
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
ocupada demais com os executivos chineses e não tinha tempo
para pensar em acreditar que podia ser traída.
O povo na rua fez um círculo ao redor da mulher nua que
gemia no chão, tentando se levantar.
A segunda a voar foi Vera, que caiu com mais dignidade e
ares de lutadora, usando uma cueca feminina cinza. O grito atraiu
a atenção de suas comparsas as quais eram tão antipáticas que
não merecem ter seus nomes mencionados. Elas estavam de
tocaia já esperando o pior.
Nandona veio deslizando pelo ar e acertou um chute
giratório que também serviu para atingir o pasteleiro Fred, antigo
desafeto, um cara por quem nutria certo nojo sem motivo. A
banca do pastel por pouco não veio ao chão, e o povo aproveitou
para furtar uma revoada de pasteis fresquinhos de carne – o que
tapou a boca da multidão e os distraiu da ação.
Nisso, Paula foi imobilizada por duas das piranhas amigas
de Vera. Contudo, o ato durou pouco... A habilidosa Ladina fez jus
ao codinome Dedos e acertou uma dedilhada fatal na chavasca
das algozes que não a tinham visto chegar devido à extrema baixa
estatura. Enquanto apertavam as xanas de dor, Paula deu um
joelhaço aprendido na literatura do Analista de Bagé que pôs
uma delas no chão, e a outra foi derrubada pelo braço sempre
bronzeado de Claudete Trovão – admiradora eterna de Paula
Fernandes, sua musa (“vai se entregar pra mim...”).
Vera recuou, sacando um canivete...
Ouviu-se “oh!” na multidão.
Uma das piranhas de guarda veio correndo e gritando de
modo exótico (talvez oriental) para desferir um golpe em Paula,
mas não viu quando Tânia Perigo usou Neila de taco de beisebol
arremessando as duas sobre a venda de peixes. Não conseguiu
com isso descarregar sua ira (que por sinal andava tentando
manter sob controle à custa de um grupo de apoio), e aproveitou
aquele momento em que seus dois dias limpa sem violência
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
estavam mesmo ferrados para pegar o maior peixe que achou –
um bacalhau – e começar a golpeá-las, espalhando um odor
infame ao seu redor. O peixeiro estava tão atônito que
simplesmente começou a anotar apostas e ali mesmo fazer uma
fezinha, acreditando que no fim da luta arrecadaria o suficiente
para pagar sua puta preferida na casa de Tia Roma.
Na confusão as mulheres da igreja aproveitaram para
também achincalhar as mulheres da outra igreja... A puxação de
cabelo começou. Uma cotovelada errada despertou o moto boy
do Fluminense, e este achou que tinha sido acertado pelo ex de
sua namorada. Instaurou-se um verdadeiro circo e numa série de
enganos o povo caiu numa pancadaria tão profissional que faria
inveja a Kill Bill.
Vera, muito matreira, já ia lá adiante ligando de seu celular
para a imprensa, a fim de denunciar Paula – uma manobra
inteligente. Foi quando o impensável aconteceu!
Paula havia corrido por dentro da galeria e chegado antes à
esquina. Fabulosamente atirou seu salto agulha em direção à
mão calejada da inimiga, o que fez o iPhone de última geração
voar e cair no colo de um mendigo que o pegou e saiu batendo
canelas de feliz. Agora, mexer nos gadgets era tocar na ferida de
Vera! Ela franziu a cara de tal modo que se fosse pintada de
verde ficaria igual ao Incrível Hulk. Desferiu um soco que acertou
a barriga torneada de Paula, fazendo-a encolher-se... E outro em
gancho que a jogou por cima de dois meninos meio afetados.
Não satisfeita, ajoelhou-se sobre a vítima:
- Quem mandou não dar conta do recado? Macho aqui
você sabe que sou eu, sua desgraçada!
Paula cruzou os braços. Os golpes atingiam seus músculos
trabalhados com ardor na academia do prédio de alto padrão no
qual morava às vezes – quando não estava passeando no
pequeno iate pela baía.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Do nada, e muito alto, começou a tocar o som do anúncio
de alguma cantora de MPB de sexualidade duvidosa. Era a
distração perfeita! Todas as fanchas num raio de 100 metros
viraram automaticamente o rosto na direção do carro de som,
saindo todas de seus esconderijos para saber a data do show e o
horário.
Lutando contra seu instinto, Paula resistiu ao encanto, e
aproveitou para meter uma canhota na cara de Vera.
Num pulo, logo ficou em pé e emendou um chute com a
ponta do salto bico fino de metal, arrancando o piercing de
sobrancelha da inimiga. Sem se fazer de rogada, quis enfim dar o
golpe de misericórdia: agarrou sua vítima e correu com ela na
direção da lata de lixo mais próxima. Vera conheceu de perto o
significado de reaproveitamento de recursos naturais.
A fim de fechar com chave de ouro, Nandona trouxe a
bolsa Valentino da amiga de onde ela tirou um pequeno vibrador
com controle remoto e em formato oval. Paula o deixou ali na
lixeira, devidamente acoplado à sapata abatida, e deu o controle
aos moleques de rua que brincavam de carrinho. Ela disse: “quem
apertar mais ganha”, balançando uma nota de 100 reais de sua
rica carteira. A diversão foi garantida.
Cansadas de rir e fatigadas da luta, Paula, Nandona, Tânia
Perigo, Claudete Trovão e Ladina Dedos, reuniram-se no meio da
destruição no mercado público de Santos. As sirenes já soando ao
fundo... Elas se abraçaram em círculo e riram por alguns minutos.
- A cobra vai fumar, negada... – Sheila retocou o batom.
Achou por bem fechar o motel antes que algum animadinho lhe
danificasse o patrimônio.
- Como você adivinhou? – Paula piscou e tirou um isqueiro
do bolso pra acender um cigarro.
Todas riram.
À noite, no bar com música ao vivo, Paula fumegava um
gostoso charuto cubano, degustando conhaque e comendo
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
petiscos de boteco com as companheiras. Ao longe, Leninha
surgiu e foi se aproximando: ela era a fancha mais velha, no alto
da posição hierárquica. Se alguém podia dar a palavra de ordem
era ela... Com seu terno branco e os cabelos brancos tingidos de
prata besuntados de gel e colados para trás, aproximou-se da
mesa com Sheila a tiracolo (enrolada num marabu). A música
parou e todos gelaram. Ela escorou o corpo na bengala, e sua
expressão carrancuda provavelmente condenava o episódio da
tarde que arriscara o nome de toda sua comunidade na região.
Ela franziu a testa – péssimo sinal... E depois gargalhou, riu,
riu tanto que chegou a pôr a mão na barriga.
- Boa luta meninas! – ela ergueu a bengala e todas riram
erguendo copos e canecos, estalando brindes.
Mais tarde, Ladina Dedos escreveria um hino (em voz e
violão obviamente) que eternizou aquela memorável tarde: “A
Batalha de Campos”. E Paula... Bem, Paula encontraria um novo
amor. Porque antes de tudo, sua paixão era o calor da conquista
e da vitória. Levantou-se da cadeira e foi até lá, à mesa da
vergonha ao canto, e estendeu a mão e cumprimentou (o que
sobrou de) Vera. Naquele momento as duas tinham a certeza de
que outros dias de fortes emoções ainda viriam. Elas sorriram e
fizeram um brinde de tequila.
Inimigas para sempre. Amém.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Presentes Sob a Árvore
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
tarde, para o apartamento. Tinha um carro, pai e mãe, irmãos,
além de um generoso número de tios, tias, primos. Os avós ainda
vivos. No final de semana curtia as baladas, ou viajava para
alguma das praias, especialmente a Mole – sua preferida.
Namorou algumas vezes, todas sem muito sucesso.
Quando, contudo, seus olhos castanhos se encontraram
com os olhos negros do rapaz mulato, parecia que havia sofrido
um choque. Uma deliciosa sensação de atração mútua... E em
alguns gestos, cuidadosas perguntas, danças, logo a mão de Cauê
esbarrou e pegou a sua, e depois foi parar em sua cintura –
segurando-o igual segurasse um bibelô e ao mesmo tempo
estivesse marcando território. Aquele contraste entre o cara sério
e o cara divertido, aquela provocação, aquele entendimento
mútuo dos iguais e diferentes, tudo isso antes do primeiro e
incrível beijo – podia senti-lo, luminoso, até hoje.
Naquelas desculpas para continuar mais tempo perto, Luan
cedeu caronas para alguns amigos chegarem ao terminal central
de ônibus, o TICEN... E então a sós, parados quase na Praça XV,
perto da Catedral e do Mercado Público, beijaram-se de novo, e
dessa vez transbordando carinho, afeto.
- Luan!
O rapaz deu um pulo.
- Vamos, filho... Volta pra Terra e vamos pra cozinha, a mãe
tem que se arrumar ainda.
- Mãe... – ele falou enquanto caminhava com ela de mãos
dadas, passando pela árvore de Natal, o pisca-pisca, o presépio
com todos os seus personagens – Obrigado por a senhora ter
vindo. Será que a senhora não quer mesmo ir pra lá com o meu
pai, e toda família?
Ela se virou para ele, e dessa vez foi sua vez de pensar.
Diante dos olhos meio tristes de Luan, pôs a mão em seu rosto.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
- Filho, eu estou adorando vir passar o primeiro Natal aqui
contigo, na tua casinha. Mas acho que você também queria que a
gente tivesse lá, não queria? Eu te conheço, filho...
Ele baixou a cabeça.
- Queria, mãe... Mas eu tô feliz! Ano que vem quem sabe?
Márcia não sabia. O pai de Luan não aceitou a
homossexualidade do filho, e quanto menos se falasse nisso
melhor... Os irmãos também não levaram da melhor maneira
possível, e com isso só sobrou a mãe. Não que o resto da família
não soubesse, porém o ideal para eles era que não se
comentasse o assunto. Receber um estranho então, para as
Festas, e quem sabe ainda ter de testemunhar um beijo gay, isso
estava fora de cogitação.
Mas ela não podia mentir... Seu coração de mãe também
apertou diante da revelação que veio logo após a saída do filho
de casa. Não veria os netos imaginários, nem as noras... E ainda
assim, por mais que isso fosse novidade, em seu íntimo ela sabia.
Desde que ele era um menino pequeno, desde tudo... Alguma
coisa a tinha dito, só não queria pensar na hipótese, mesmo
quando os namoros não duravam com as meninas, ou mesmo
quando o jeito dele não era nem de perto parecido com o do pai
ou dos manos. Ademais, sentia medo da violência e da maldade
do mundo.
Claro que era estranho também para ela passar um
primeiro Natal longe de todos... Ainda assim, ali ela estava se
sentindo mais à vontade. Sem obrigações diante dos parentes,
que alívio! E pelas poucas vezes que viu Cauê, percebia que ele
era mesmo uma pessoa incrível, apesar de bastante fechado e
cuidadoso, e da origem diferente.
Respirou fundo. Lavaram a louça, colocaram os pratos na
mesa... Espiaram a televisão, e o tempo ia passando. E os
ponteiros foram lentamente se arrastando até que já era quase
onze e quinze.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Sentindo-se derrotado, Luan pegou um prato e se serviu.
Não conseguia parar de pensar em Cauê.
Ao pegar a colher do arroz, o interfone tocou. Num pulo
ele foi tão rápido atender que a mãe não pôde deixar de sorrir.
Em minutos, o namorado apareceu, constrangido, sorrindo
desajeitadamente... Luan o abraçou com força, e sentiu seu
perfume.
- Desculpa, amor, hoje aconteceu de tudo... – ele
confessou num sussurro.
- Tudo bem, o importante é que você chegou...
Foram à cozinha, “boa noite, Dona Márcia”.
- Boa noite, Cauê! A gente estava preocupado, mas que
bom que você veio!
- A senhora me desculpa, eu me atrasei muito. Mas isso é
pra senhora – ele retirou da mochila um pequeno arranjo de
flores com um bombom junto.
A vida de auxiliar de serviços gerais não era fácil... Saiu
super tarde do Shopping Iguatemi. O trânsito terrível... Depois
até chegar em casa, até conseguir tomar banho, tudo estava
demorando demais. Uma ligação da mãe e do pai, que não
conseguia ver há tanto tempo, ambos morando no interior de
São Paulo há dois anos. Saudade, choro, solidão. Depois o sinal
começou a falhar, nem tinha como avisar Luan que ia se atrasar –
e pelo visto, muito. Os irmãos menores, a avó paciente
arrumando a pequena mesa... Ele percebeu que estavam faltando
coisas, que ele podia ajudar: foi ao mercado, uma fila gigante.
Refrigerantes, um pote de sorvete, carrinhos pra molecada.
Ele não costumava expressar sentimentos, manifestar.
Porém, por trás de seu rosto sério, ele estava contente de estar
ali! É claro, era um pouco difícil se sentir à vontade numa
realidade tão diferente. Dona Márcia era tão linda! Ela e Luan
pareciam artistas... O apartamento tão arrumado, tão legal, que
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
ele tinha até vergonha de estar ali no meio. Gostava mais quando
Luan ia na casa dele, era mais fácil.
À meia-noite, abraçaram-se todos e comemoraram.
Márcia deu uma camiseta muito bonita, de marca, para o
genro. Para o filho ela decidiu dar uma coletânea de livros. Luan
presentou a mãe com o show da Adele, e ao namorado com um
perfume que ele um dia experimentou numa loja – uma destas
tardes preguiçosas de feriado, passeando perto do cinema. E aí,
Cauê se sentiu de novo um tanto embaraçado: seu presente para
a sogra foi só as flores mesmo. Ele também tinha avisado antes a
Luan que, se ele não se importasse, ia dar algo a ele mais adiante,
algo bom.
O namorado e a mãe não tinham o mínimo problema com
essas coisas, se importavam mais com a presença e a atenção
dele. Fizeram de tudo para fazê-lo rir, e ela até pediu ajuda para
ver uma música do show que gostava... E depois, com muito
carinho, despediu-se do casal e pegou seu carro para ir então à
festa de família para juntar-se aos demais. Como gostaria que
estivessem todos indo juntos, mas não podia forçar ninguém.
Melhor que fosse assim... Com tudo a seu tempo, quem sabe esse
dia ainda ia chegar? Quem sabe...
Cauê e Luan se beijaram próximos à Árvore de Natal.
O sorriso de Luan era sincero e feliz.
Enquanto estava no banheiro, escovando os dentes, Luan
se sentiu grato demais por tudo aquilo. Entrou no quarto e se
enfiou sob o lençol, aconchegando-se ao corpo conhecido de seu
amor – o ar condicionado despejando o inverno ao redor. As
luzes já estavam apagadas, e mesmo assim uma certa
luminosidade vinha dos postes lá embaixo, da rua, se fazendo
presente. Um novo beijo mais intenso veio, e se continuasse,
sabiam onde aquilo iria parar.
- Espera... – Cauê pediu, acendeu a luminária, levantou.
- Que foi?
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Ele sentou na cama.
- Me desculpa por não ter trazido um presente de verdade
pra tua mãe. Eu tive muito gasto nesse final de ano, ficou
apertado lá em casa também. Cê sabe, minha avó, os moleques.
- Cauê, não precisa falar nisso... A minha mãe ama flores! E
ela adorou que você veio, tolo! Ela tava super alegre aqui com a
gente, isso que foi o melhor presente pra ela.
- Eu sei, mas... – ele fez uma pausa – E... Eu trouxe algo pra
ti, que eu queria te dar faz muito tempo.
Os olhos incrédulos de Luan acompanharam o movimento
da mão de Cauê, tirando do bolso da bermuda de dormir uma
caixinha preta. Se fosse apenas uma caixinha inofensiva, nada
demais, mas era um tipo de caixinha específico. Daquelas que
guardam algumas das promessas mais bonitas e sinceras que às
vezes embalam os corações da humanidade.
- Eu já te pedi em namoro... Mas tô pedindo de novo, me
aceita? – Cauê pediu, os olhos negros um tanto quanto
apreensivos.
Tinha economizado um bocado praquilo.
Luan derramou algumas lágrimas de emoção depois do
“sim”, enquanto a aliança de prata ia morar em sua mão e na
mão do namorado. Aí então aquele beijo pôde continuar e se
prolongar na melhor noite de amor que eles haviam tido até
então.
Se isso não era celebrar o amor, não sabiam o que seria.
Mas aquela certamente era a melhor noite para isso. Com a
bênção do aniversariante da Festa e da ilha da magia.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Um Pássaro
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
domingos com um tradicional cuidado que chegava a ser
comovente. Ao menos para Eduardo, era.
Nas paredes, os quadros dele estavam pendurados por
tudo... Obras que retratavam cenas do campo ou então do
cotidiano. E enfim, quando a artrose começou a machucar as
articulações dele, um tipo de impressionismo que surgiu como
improviso, virou estilo, e renovou seu ânimo na arte... Ainda que
nas demais tarefas de casa, a doença lhe alternasse dias melhores
e piores.
Eduardo ergueu a vista às fotos emolduradas das viagens
pelo mundo: Itália, França, Alemanha, Austrália, México, Canadá,
Chile, entre outros. Nelas era possível verificar as pegadas através
do tempo, o caminho que seus pés percorreram juntos.
Adriel ia querer que em seu enterro todos tivessem usado
roupas coloridas. Ele era amante das cores.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
mundo vazio das partidas pro além poderia querer dizer alguma
coisa – que palavras pudessem florescer do puro invisível.
Afinal...
O que dizer da morte da pessoa que você amou tanto?
Que compartilhou sua cama; com quem você criou um
filho, netos; discutiu e quase se divorciou por coisas estúpidas;
teve a grandeza de perdoar sem quase pensar, quando nada além
da separação era previsível diante de um suposto caso; que te viu
nu em todas as posições possíveis, compartilhou prazer e vitórias,
amargou derrotas; esteve presente, testemunhando sua
existência como ninguém. Palavras aqui são só palavras.
O maior desejo agora era que Michel ou qualquer neto, e a
nora, não morressem antes dele. Isso seria ainda pior.
Foi por indicação de um conhecido, da época em que
cuidou da Biblioteca do Museu Municipal, que chegou a um
prédio meio descuidado e suspeito. Estacionou o carro e ajeitou o
boné azul-marinho sobre os cabelos brancos. Seus olhos azuis
estavam completamente incertos por trás das lentes dos óculos.
A mulher que atendeu no interfone e depois abriu a porta
do apartamento 309 era tão velha quanto ele: os cabelos
curtinhos e brancos, e um irritante sorrisinho constante.
- O senhor nunca fez nada disso, não é... Seu Edivaldo?
- Eduardo – ele corrigiu. Tinha agendado antecipadamente
sua hora, mas pelo visto ela não se dera o trabalho de anotar ou
verificar seu nome.
- Sim, sim... Sente-se.
Ela explicou que tentaria um contato com o espírito de
Adriel. Depois fechou os olhos, e puxou um maço de cartas
esquisitas. Eduardo teve o primeiro ímpeto de fugir dali - ele
tinha total aversão a adivinhações desse tipo. E antes que
pudesse começar sua fuga, ela puxou algumas das cartas e as
colocou viradas para cima. Depois levou um bom tempo ora
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
gemendo e balançando a cabeça, ora fechando os olhos e
respirando fundo e soltando o ar devagar.
- Você perdeu alguém há muito tempo... – ela disse, em
tom mais de dúvida do que de afirmação – E essa mulher, ela foi
muito importante na sua vida!
Segundo ímpeto de fugir, e agora o primeiro de não pagar
por nada aquilo. Velha trambiqueira!
- Você parou de atuar muito cedo...
- Chega – ok, agora tinha ultrapassado o limite da irritação.
Ele tinha trabalhado duro até depois de se aposentar, e
faltado ao serviço apenas em casos de extrema necessidade.
Tinha paixão por se ocupar, e se tivesse parado cedo, ele estaria
morto bem antes de ter perdido o marido. Sentiu seu rosto
vermelho, e se não fosse seu remédio para o controle da pressão
arterial, já teria tido um colapso nervoso. Ele não devia ter sequer
cogitado acreditar que seria possível contatar uma pessoa morta!
- A senhora me desculpe, não vou pagar por isso. Isso é
uma invenção estúpida, um desrespeito com a dor das pessoas.
Tenha uma boa tarde!
A mulher ficou visivelmente perturbada enquanto ele se
ergueu num rompante, vestiu seus sobretudo bege e disparou
porta a fora. Desceu as escadas apressado embora os joelhos lhe
doessem. Assim que chegou à rua ouviu seu nome ser chamado,
e virou-se para se deparar com a vidente. Que raios aquela louca
ainda queria dele? O dinheiro, é claro.
Começou a abrir a carteira, enquanto a figura miúda de
passos curtos se aproximava rapidamente a galope.
- Tem um homem se comunicando! – ela teve de gritar, até
que chegou ao lado dele já sem fôlego – Ele diz que você tem que
voltar a ser feliz e que se preocupa com você. E ele mostra um
pássaro guardado... Que você precisa deixar sair! Deve ser algum
bichinho – ela sorriu sem graça – pra você libertar?
Eduardo revirou os olhos.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Retirou uma quantia de notas de dinheiro acima do valor
do pagamento e pôs na mão dela.
- Adriel ia querer que eu pagasse a senhora, porque ele ia
ter pena de uma velha desonesta que ganha a vida falando
mentiras. Espero que a sua consciência esteja sempre tranquila
porque eu não ia conseguir dormir depois de ter inventado tanta
sandice. Estou pagando duas sessões, a minha e outra pra poupar
um infeliz de ter que vir até aqui para se decepcionar. Pegue sua
criatividade e escreva um livro. Passar bem!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Àquela altura, já estava prestes a fechar a venda do
apartamento. Conseguiu deixar mais ou menos esquematizada a
compra de uma casinha próxima à de Michel. Ia ter de se
habituar a uma nova vizinhança, novos bancos, novos rostos...
Deixar pra trás o mundo em que tinha vivido. Se isso não dava
uma boa ideia do que era morrer, ele não sabia o que mais daria.
Apesar da terrível experiência que lhe dera ainda mais
certeza de que nada dessas coisas de adivinhação funcionavam,
ele continuava a ter uma pontada de inveja quando ouvia alguém
se gabar de ter sentido a presença de fulano ou cicrana. Ou pior:
dizer que receberam uma mensagem. Procurava se convencer de
que isso era uma coisa do diabo, ou do que quer que exista por aí
entre mundos, além de charlatanismo misturado a muita vontade
de se enganar com pouco.
Caminhou pela calçada arborizada.
Tentava gravar consigo os detalhes de tudo, para levar.
Podia ver como se fosse ontem: seu falecido marido, ainda
vivo, com seus vinte e alguns anos, jogando folhas secas nele... Os
dias de verão em que corriam atrás da carrocinha de sorvetes. E
se forçasse um pouquinho, daria até pra sentir o cheiro de tinta
fresca na entrada do apartamento recém-comprado.
Respirou fundo, voltando à realidade no giro da maçaneta.
Passou pelo amontoado de caixas organizadas e foi para o
quarto. Queria guardar os objetos pessoais ele mesmo... O resto
ia ficar por conta do pessoal da mudança. O que o sono curto da
idade lhe liberou de tempo livre, ironicamente tirou na disposição
pra poder aproveitar. E pelo visto, na companhia também.
O sabujo entrou no quarto abanando o rabo e latindo.
- Quietinho, Neco... – pediu em tom sério – Já vou lá pôr
tua comida.
O cachorro deitou na porta e ganiu, apoiando a cabeça nas
patas.
Eduardo foi até ele e afagou sua cabeça.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
- Eu sei, eu sei... Mas a gente vai se adaptar.
Depois começou a arrumar malas, separar alguns livros de
cabeceira indispensáveis, e enfim a remexer no armário de canto
pra pegar os documentos importantes. Foi exatamente então que
sentiu uma pressão forte na cabeça, igual como se estivesse
prestes a desmaiar. Apoiou-se na parede e sentou-se depressa,
ainda trêmulo, ao banco da escrivaninha de madeira mogno.
Aos poucos a visão foi recuperando o foco e ele arfou. Sob
a dura realidade do medo sobreveio uma pergunta: quanto
tempo ainda ele poderia morar sozinho? Adriel se foi aos oitenta,
sem poder fazer muita coisa devido à sua saúde frágil perto do
fim, mas ao menos ele teve sua companhia todo o tempo.
Não se entregaria nessas divagações.
Tratou logo de afastar a ideia sombria.
E por falar nela, tinha esquecido o que estava procurando.
Olhou para o cachorro e foi à porta do roupeiro do lado
que era de Adriel, puxou seu casaco preferido e o cheirou – ainda
tinha o cheiro dele. Neco latiu novamente, talvez por ter sentido
o perfume do outro dono, e lacrimejou. Eduardo também.
Assim que pegou a caixa das fotos de viagem, não
imaginava que seria peso demais para seus braços: elas caíram
esparramando-se num jardim de imagens e com isso derrubando
também a caixa com materiais dos cursos de pintura do falecido
esposo. Um amontoado caótico de revistas e anotações surgiu, o
que fazia parecer que um furacão havia estado por ali. Levaria
uma eternidade pra arrumar aquilo tudo, lamentou.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
casaco vermelho-escuro de lã ainda jazia sobre seu colo
querendo que seu amor ali estivesse em seu lugar. Afastou
cuidadosamente a tampa e puxou o papel meio amarelado,
intitulado com seu nome, onde uma série de linhas formava um
pequeno poema:
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Subitamente, o maldito telefone toca: é Tereza, a irmã
mais velha. Ela distrai (entedia) um pouco o irmão, e depois
começa a comentar coisas alheias:
- Você se lembra quando mamãe preparava as tortas de
ação de graças? Este ano quero fazer uma parecida. No seu
primeiro dia de trabalho, nunca vou esquecer, ela fez uma
especialmente pra comemorar... Como era mesmo aquele lugar
que você trabalhou? O nome?
- O nome... – forçou a memória, tinha esquecido
completamente disso – Editora Gráfica Mundo?
- Sim... Olha só. Quem diria que depois você ia virar
historiador! Mas no fundo, mamãe sempre pensou que você ia
virar um escritor famoso. Até antes de falecer, coitada, ela
guardava suas historinhas... Eram lindas! Uma fofura! Acho que o
neto teu e do Adriel puxou mais por ti do que por ele, porque ele
também inventa coisas que são uma gracinha!
- Preciso desligar... – ele engasgou.
Mais claro, impossível!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
O fato é que Eduardo tinha encontrado o pássaro guardado
- era ele na figura do croqui, teve total certeza quando o viu, e
podia se arrepiar só de lembrar. Igualmente, na época em que
esteve ali ele não pensou além da dor da perda de seu marido,
por isso esquecera momentaneamente o quanto sofrera pela
morte de sua mãe, aquela que sempre o incentivou, e o aceitou
antes de todos, às vezes mais do que ele próprio. Assim também,
não fosse a ligação de sua irmã, nem teria recordado do maior
prazer de sua juventude: inventar histórias, o que trocou pelo
ingresso na vida profissional e posteriormente pela bem-sucedida
carreira como historiador no mundo dos adultos.
Em resumi, perdera uma mulher muito importante, deixara
de “atuar” muito cedo (na literatura), encontrara o pássaro e o
deixara sair de sua caixa, libertando-o.
A idosa fez um sinal com a mão, contendo as lágrimas.
Foi-se até o interior do apartamento e voltou com um
outro livro bem mais simples, sem fotos. Tratava-se de um relato
sobre suas experiências como psíquica. Dentro dele estava uma
mensagem de dedicatória escrita à mão para Eduardo, e as
mesmas notas de dinheiro que lhe foram entregues naquele
encontro anterior. Ele não pôde deixar de soltar uma risada
sonora, e ficar sem graça. Eles tomaram um chá, conversaram,
trocaram números de telefone e praticamente ficaram amigos.
Ao final ele agradeceu com um abraço e depois já estava se
despedindo quando ela falou, depois de olhar para o nada:
- Naquele dia... – ela tornou a fita-lo - Ele disse que deu um
tapa na sua cabeça, pra você encontrar a... Caixa.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Reencontrado Minha Cidade
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Moveu-se abrindo caminho na parede d’água entre nós, e enfim
parou diante da porta que a esta altura eu já tinha aberto.
- Anjo... – falou meu nome. Música para mim.
- André... – sorri, sem querer, sem pensar.
Ele sorriu também. Os olhos cinzentos que sempre admirei,
sob suas sobrancelhas pretas e grossas, vieram de encontro aos
meus... Azuis. Eu não poderia descrever o que meus próprios
olhos estariam manifestando, mas senti que estavam úmidos.
Em silêncio, peguei a maleta dele, de médico. Ele estava
saindo do hospital.
- Como tu conseguiu chegar sozinho aqui? – ele riu – Só
com muita chuva mesmo, né? Ultimamente ninguém te deixa
mais em paz.
Sim. Nem me fale, eu estou cansado, pensei.
Entrevistas, matérias, documentários, os militares... Em
alguns momentos eu não queria ser nada daquilo. Para o mundo
eu era o curador, o médium, o rapaz das fotos. Aquele cuja cruz
era ser visto através dos efeitos que eu nem podia controlar. Ser
pedido, suplicado... Ser perseguido. Ouvir as críticas, ficar quieto.
- Eu tava precisando vir aqui... – respondi.
Ele se aproximou e deu um beijo em minha testa, seus
lábios mornos. Demorou-se por alguns instantes. Era suficiente
para fazer meu corpo recuperar a vitalidade, tornar-se ainda mais
quente, disposto. André era minha cura. Aquilo que eu tanto
ajudava a entregar aos outros, eu encontrava na presença deste
antigo amigo. Deste antigo amor.
Ele se afastou um pouco e colocou a mão em meu rosto,
tão sério.
- Toma um banho... – pedi – Logo vai estar escuro.
Seu sorriso torto surgiu, e então ele desapareceu –
conhecia o caminho.
Eu fui para o quarto, terminando de retirar minhas roupas
da mochila... Pensando em quando fomos colegas de ensino
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
médio, em suas vitórias no time do futebol, em nossas
aventuras... Em todo tempo que se passou aqui, e quando fui
embora para Sagrado Coração... Quando a vida nos tirou pessoas
importantes... O momento que ele estava separado de sua noiva,
e eu separado de meu quase marido... Quando enfim
confessamos a nós mesmos que nos amávamos.
E ainda assim, diante de todo esse amor, era difícil. Para
ele, por ser “homem”... Para mim, por nunca ter dado chance a
esta entrega. No fundo, sempre tive medo de entregar meu
coração e meu corpo. E isso doía. Literalmente... Em meus
músculos, em meus ossos, em minha alma.
Não tinha aprendido a me deixar tocar.
Aguardei pacientemente, ouvindo as trovoadas... A
interessante presença da chuva sempre que eu e André
acabávamos muito próximos de algo importante. Era assim.
Ele voltou, com sua calça de moletom cinza, logo fazendo
peso sobre o lado direito da cama de casal... Eu sorri de novo sem
querer, olhando em sua direção. Ele deitou apoiado ao cotovelo,
e olhou para meu corpo... Enfim pôs a mão sobre minha perna e
eu sabia o que isso queria dizer: fiquei de costas e esperei. Ele
veio por trás, abraçando-me tão forte que senti seu coração bater
em minhas costas, acelerado.
- Tu faz falta nessa cidade, Anjo...
- Eu queria poder ficar mais. Mas não posso. Tenho o
trabalho.
Precisava olhar em seu rosto, e por isso apoiei a cabeça em
seu ombro. Ficamos próximos um do outro, o lençol sobre nós.
Até quando seria assim? Tão próximos, tão distantes, sempre
trocando posições como sol e lua, encontrando-se raramente.
André suspirou.
Então tão logo o fez, beijou novamente minha testa...
Depois meu rosto... Depois meus lábios. Senti um frio na barriga,
e timidamente toquei seu ombro, seu peito tão largo e bem
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
maior que o meu. A sua mão por sua vez deslizou sobre mim,
indo parar em minha cintura.
Não era suficiente, claro que não era. Não aquela noite.
Precisávamos de mais... Sempre era preciso mais e cada vez o
mais ficava insuficiente. Um passo adiante. Ele tirou o que nos
cobria, e puxou a camiseta, revelando seu tórax. Virei o rosto.
- Anjo... – ele suplicou – Me olha.
Eu olhei. Era perfeito pra mim. Os pelos sob o umbigo, o
desenho de seu corpo. Ele era tudo o que eu admirava num
homem... E ainda não entendia como depois de todas as meninas
e mulheres, que eu sabia ele havia amado, o seu amor por mim
era capaz de existir, de sobreviver, ou mesmo de ter nascido. Por
mais que ele me explicasse várias vezes, por algum defeito,
alguma parte quebrada na minha estima, era sempre preciso
ouvir de novo, confirmar que ainda era verdade.
Ele avançou em minha direção, pondo-me de joelhos
diante dele, e tirou minha camiseta. Levei logo os braços ao
peito, escondendo meu corpo... Ele balançou a cabeça.
- A gente já se viu pelado antes... Por que tem tanta
vergonha?
- Não sei... – respondi com honestidade – Eu tenho
vergonha do meu corpo. E eu não sou...
Mulher.
Ele se deitou um pouco e tirou as calças, a cueca preta.
Desviei meu olhar de novo.
- Tu também já viu isso – a voz jocosa me tranquilizou.
Sim, eu já tinha visto.
Sob o jeans, sob o calção de jogador, sob suas mãos... E
quando transamos pela primeira vez – o momento que dividimos
um com o outro, que marcou o final de nossa adolescência antes
que seguíssemos outros caminhos. Ainda assim, eu tremi. Porque
apesar de ter vivido com outro homem por anos, diante de André
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
eu me sentia um menino. Meu corpo era sempre virgem do amor
que ele podia me dar.
Ele diminuiu a luz, eu tirei o resto de minha roupa.
Começamos a nos beijar... Aquela primeira e única vez que
transamos passou pela minha mente. Dormimos juntos noutras
vezes, abraçados ali neste casarão, mas sem jamais atravessar
esse limite que estávamos prestes a cruzar de novo. O sangue
correu acelerado por minhas veias.
O toque firme e seguro de André me trouxe de novo ao
presente. Seu beijo me envolveu... Seus braços. Rolamos sobre o
colchão, deixando escapar sopros... O vento lá fora, a chuva
batendo contra as janelas. Seu rosto estampava um tipo de dor,
como se a qualquer momento eu pudesse desaparecer dali.
Como se quisesse me fazer ficar para sempre... E em mim eu
também sentia essa dor, essa ressonância.
Em pouco tempo, pela pressa, pelo desejo, ele colocou a
proteção... Veio sobre mim, entre minhas pernas, e se pôs dentro
de mim. Cada vez mais fundo. Seus olhos atentos em mim a todo
o tempo... Meus lábios abertos, e seus dedos apertando meu
mamilo. Ele beijou meu pescoço, sentiu meu cheiro, forçou mais.
Fechei meus olhos, abraçando suas costas.
E conforme moveu seus quadris e eu os meu, as sensações
tomavam conta do meu corpo, e ele – tenho certeza – sentia o
mesmo. Quisera eu durasse para sempre o prazer de tê-lo em
mim, de sentir o modo como me tocou num carinho quase
devocional, onde sou necessário por mim mesmo.
Quando tudo acabou, e enfim eu senti cada centímetro de
minha pele formigando... Comecei a chorar. Desejava que
tivéssemos tido mais... Houvéssemos percorrido um caminho
sem que tantos obstáculos nos ferissem. E ele também derramou
lágrimas.
- Eu preciso de ti... – ele falou baixo – É mais forte que eu.
Eu não sinto isso com ninguém... Eu já falei... Eu gosto de
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
mulheres, não sinto nada por outros caras, só contigo. É uma
necessidade. Tu é diferente... Eu preciso te cuidar, estar contigo.
Por que tu não vem de uma vez? Não aguento mais... Essa
ausência.
Não tinha resposta para aquilo.
Em seguida dormimos.
Na manhã seguinte quando entrei no carro, sentia como se
fosse um condenado. Era maior que eu, do que minha vontade:
eu precisava voltar a meu trabalho, a ajudar aquelas pessoas.
Seriam mais semanas assim, percorrendo a região, o mundo...
Fotos, testemunhos, palavras sem fim. Apertos de mão, hotéis e
o pôr-do-sol em tantos lugares diferentes.
Cruzei os braços sobre a direção e apoiei a cabeça.
Batidas no vidro.
Olhei e abri a porta do carro... André em sua roupa branca
se abaixou para me juntar num abraço apertado. Ele sabia que eu
não queria sair dali. Eu ainda visitaria meu pai, claro, mas logo
ganharia a estrada, partiria.
Em seus braços eu era o Anjo, aquele Anjo. O menino que
perdera a mãe no acidente de carro... O que apanhava do pai
bêbado. O que havia sido salvo por ele. Aquele que amava comer
bolo, e que era preguiçoso. O garoto que escrevia num diário, e
cuidava de seu gato Momo. O menino dos olhos que ele
comparava a lagos. O simples e bobo Anjo.
Ainda recostado em seu ombro, pude ver a cidade
despertando com uma fina garoa sobre ela. E a glória com a qual
as pessoas não sonham: poder viver em sua anônima rotina. Para
mim, isso seria tudo. Os raios de sol procurando brechas entre as
nuvens e o ar maravilhoso, úmido, exalando o perfume de
plantas e pedras.
Ele beijou minha testa.
Eu sorri. Ele sorriu.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012)
– uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Vento Triste
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
iniciantes, tivemos nossos pertences roubados, e cercados de
inimigos por todos os lados, só nos restou o deserto.
Termos colocado o pé naquela areia foi um modo
politicamente correto de concordarmos que estávamos
condenados à morte, porque até aquele momento não existiu um
ser humano que tivesse saído de lá que não fosse invenção de
histórias pra agradar crianças antes de dormir.
Lá fora uma brisa começou a soprar.
- É verdade que vocês não fodem? – eu precisava me
distrair com algo, pois ouvi um som de metal arranhando e isso
era sinal de que minha sanidade morreria antes de mim.
- O quê? – Anjo franziu os olhos.
- Os seguidores da Luz... – murmurei – Que vocês não
fodem. São virgens.
Achei que não teria resposta, mas ela veio do amontoado
de roupas brancas, manchadas de terra preta e sangue seco.
- É... – ele desviou o rosto.
- Que merda. Não tem nada como uma noite num bordel,
com muita cerveja e mulher.
- Que bom pra você, André. Eu não sinto falta de nada
disso.
- Vocês são loucos. Por que raios tu foi se meter nessa
ordem? Todo mundo sabe que não tem nada mais vergonhoso
pra um macho do que vestir o branco. Tu com certeza manchou a
honra da tua família.
Anjo encontrou forças pra erguer um pouco o corpo. Ele
estava cansado... Sem o amuleto e sem um templo ou oratório,
ele não conseguiria recuperar naturalmente a graça da Luz.
Restava-lhe bem pouco, e era possível ver em seu rosto magro as
olheiras fundas. Seus cabelos eram completamente brancos
como os de um idoso, e os olhos, quando os vi, eram violáceos.
Era bem estranho pra falar a verdade, eles eram todos assim, não
parecia natural – parecia que eram todos cópias uns dos outros.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
- Eu quase não lembro deles mais... – falou em tom de
tristeza – Quando a gente veste o branco, a gente muda. Eu não
fui sempre assim... – apontou pra si mesmo – Meu cabelo era da
cor do trigo, e meus olhos eram da cor do céu da primavera. Eu
escrevi pra não esquecer, todos escrevemos... Que eu estava ali
porque eu havia trazido desgraça à minha gente. Eu ainda sei... –
hesitou – Na verdade eu acho... Que tinha um pai, uma mãe, uma
avó, e uma irmã. Eu não sei o que eu fiz... Só sei que lembro da
palavra “diferente”. E eu tenho escrito que eu era diferente, e
tinha amaldiçoado a minha família por causa disso.
- Isso é... – eu refleti por um instante – Horrível. O que tu
fez?
- Não sei... E cada dia que passar vou lembrar menos deles,
e vou esquecer. Um dia, se eu tiver sorte, vou me esquecer do
meu nome também. Na verdade, eu não sei se Anjo é o meu
nome. Mas pra mim... Eu sempre penso que é uma sorte ter
encontrado um lugar.
Sorte, de novo. O conceito de sorte não andava muito
confiável por esses tempos.
As virgens da Luz eram as mulheres mais bonitas do
mundo, mas não podiam casar. Quem deitasse com uma,
morreria. Não se sabe se antes ou depois de consumar o ato... E
ela também. Os poderes dos homens nunca são como os das
mulheres... Eles são bem mais fracos. Portanto, se ser uma
seguidora da Luz já não era lá bom negócio, ser homem nisso...
Porra, era pra servir de chacota! Eles não eram aceitos, exceto se
fossem doados... O que quer dizer, Anjo era diferente e
vergonhoso pra família dele muito antes de ele mesmo entender
quem era.
- É um fardo lembrar de certas coisas – ele ponderou – mas
a Sacerdotisa diz que quando eu tiver cumprido meu aprendizado
a Luz vai me abençoar com o esquecimento. Meu papel vai ser
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
rasgado, junto com meu nome... – ele se encolheu – Não sei o
que fiz, só sei que dói.
Balancei a cabeça. Anjo era outro mundo.
Olhei meus braços: eu tinha cicatrizes, grandes, pequenas.
Tinha lutado pela minha vida desde cedo pra honrar meus
ancestrais. De onde eu vinha, a história e a sua vida eram os bens
mais preciosos, o maior orgulho de um homem. Esquecer,
mesmo que fosse uma tragédia, era considerado fraqueza. Não
ter uma história... Era impensável, ela era tão preciosa quanto o
ouro para nós. Mas uma coisa eu entendia: a dor de ser doado.
- Eu... – demorei algum tempo para recobrar as forças e
falar – Minha tribo me doou pro clã de guerreiros do leste.
- Por que, André? – foi a vez dele querer saber.
- Quando nasci matei meu irmão gêmeo. Um xamã previu
que eu traria a morte pra tudo que me amasse... E que eu
amasse. Então eu fui criado pra ser um guerreiro... Porque a
morte sempre ia me acompanhar. E quanto mais aprender a ser
forte, e não sentir... – demorei um novo tempo pra dizer –
Amor... Eu vou vencer ela.
Aliás, iria vencer. Agora eu ia morrer de qualquer jeito,
mesmo sem ter amado.
Por um segundo, achei que o clérigo da Luz tinha
derramado uma lágrima, mas ele passou a mão sobre o rosto
rápido demais pra que eu pudesse ter certeza. Isso era ridículo.
Eu nunca chorei, nem de dor.
- Sabe o que eu queria agora? – ele deitou e pareceu
relaxar – Uma boa comida, e um litro de vinho.
- Tu deseja pouco... – eu deitei também, ao lado – Eu
queria duas dançarinas de Tulipa, elas são as mais sensuais. Ia
tomar cerveja até vomitar... E comer elas até o fim da noite.
- Você é desprezível – a voz dele falou.
- Eu... – meu pensamento falhou.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Confesso que eu achei que tinha morrido, porque pra mim
morrer era isso: um estalo e o nada. Não acreditava muito nessas
coisas de fantasma ou de mundo dos mortos, apesar de que
depois do encontro com as criaturas da floresta eu comecei a
duvidar um pouco disso. Tudo ficou preto e abafado... E então
um estrondo forte fez tremer as pedras e um ganido agudo me
alertou. Meu corpo não respondia direito, e lá fora já era dia alto.
Eu estava suado e Anjo também. Levei a mão ao cinto e puxei a
adaga que tinha encontrado na entrada do deserto, era uma
arma de mulheres e ladrões, mas teria que servir.
- Socorro! – Anjo me assustou, ele acordou num salto.
- Quieto... – eu pedi.
- Eu tive um sonho... – ele estava aterrorizado – O mesmo
pesadelo. Eu estava no corredor de vidro e metal, com vários
tronos alinhados... Eu usava roupas diferentes, calças... E eu
estava arrependido de alguma coisa. E aí depois eu lembro do
vidro... A minha mão estendida num vidro, e do outro lado eu
não podia ver, não podia! - balbuciou – Tinha alguém lá, e eu não
conseguia tirar a mão.
Era só o que me faltava agora, mais uma vez essa droga de
história de pesadelo.
- Se acalma, é só um sonho estúpido... – disse perto dele.
- Dessa vez foi diferente...
Ele me mostrou a mão direita: ela estava vermelha,
queimada.
- Que bruxaria é essa? – me afastei cauteloso.
- Eu tenho alergia a vidro – ele parecia estar tão assustado
quanto eu, depois se tornou distante – eu não posso tocar vidros
ou espelhos. Eles queimam a minha pele. Eu acho que isso é uma
maldição e que esse sonho tem a ver com isso...
- A Luz não te cura dessas coisas? – estranhei.
Um novo estrondo e agora outro ganido alto. Fiz sinal que
ele não se movesse. A conversa teria de esperar.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Respirei fundo e me movi cautelosamente até a entrada da
caverna.
Quando vi a sombra desenhando círculos nas dunas eu
pensei que aquilo era fantástico. Em outras épocas, a visão de um
dragão de areia teria sido um fato e tanto pra contar nas rodas de
fogueira à noite. Mas a proximidade com um era perigosa, ainda
mais ali – ele devia estar tão faminto quanto nós. Seu voo circular
significava que ele já nos tinha farejado e logo desceria para nos
espreitar e devorar o quanto antes.
- André, o que foi isso? – ouvi a voz perguntar baixinho,
vinda de trás.
- Um dragão de areia – respondi, e voltei ao interior.
- O que faremos?
Eu não sabia nem como a gente continuava vivo. Eu sentei
e olhei ao redor, o furor e o reflexo de sair e caçar o dragão era
muito forte pra mim. Meus olhos estavam dilatados e eu ouvia os
ganidos com raiva. Não tínhamos uma arma decente, não tinha
outro guerreiro com quem contar pra uma estratégia. Eu tinha
comigo apenas um fracote, e uma lâmina de má qualidade que eu
nem sabia se chegaria a arranhar a pele do animal.
- Tu fica aqui, e eu vou lá fora enfrenta-lo.
Anjo pareceu inconformado... Percebi seu olhar alarmado à
procura de algo, a mesmo ação que eu tinha feito em poucos
segundos. Ele sabia que era limitado e que não ia ter como
ajudar. Meu coração já pulsava e minha mão apertava a bainha
da adaga. Que se fodesse tudo, eu ia morrer lutando, eu ia honrar
meu clã.
- Vou lutar com você. Eu tenho que te ajudar.
- Tu já ajudou. Além disso, tu está com pouca graça –
respondi.
Isso significava que qualquer bobagem de Luz que ele
tentasse poderia sugar a energia vital do corpo dele pra
funcionar. Eu não estava disposto a contar com a morte de um
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
inútil pra me ajudar, até porque não me ajudaria em nada.
Duvido muito que uma faísca ou uma oração de cura de
arranhões leves ia explodir a besta. E além disso, eu era o líder, e
o líder nunca pode sacrificar ninguém além de si mesmo.
Lembrei-me das lições do Pai Velho – nosso chefe. Dragões
de areia respondem rápido se você sibilar como cobra – eles
amam devorar serpentes do deserto, o que era um pouco irônico
porque é como comer seus primos.
Na entrada imitei o som, lento e baixo, mas o suficiente pra
alertar o inimigo. Ele abanou as longas asas e desceu
rapidamente de sua dancinha aérea. Quando o vi, majestoso,
queria logo pular nele e tentar mata-lo do jeito que fosse. Seus
olhos espertos e dourados me observaram enquanto fungava, ele
parecia sorrir (se isso fosse possível). Sem alimento ele não usaria
o sopro de areia porque estava visivelmente fraco. Sem um
escudo, e mesmo com um, um sopro de areia seria como ser
varrido por lâminas.
Tratei de correr e ele automaticamente mudou de posição,
mantendo contato visual comigo. Ele parecia um filhote porque
suas garras afiadas ainda eram curtas... Ele abriu a boca, o hálito
de pântano me nauseou no mesmo instante. Quando ele tentou
me morder, pulei sobre sua cauda, desviando do ataque e de
suas garras implacáveis me perseguindo. Por pouco seus dentes
não me fizeram perder a perna direita e eu tentava a todo custo
encontrar a abertura no peito onde eu pudesse lhe apunhalar o
coração – tarefa impossível.
Ao longe na entrada da caverna, Anjo, em sua túnica
branca curta me observava lutar. Meus cabelos pretos se
cobriram de poeira, e a falta da armadura me trouxe novos cortes
que com “sorte” iriam virar cicatrizes. Eu sentia urgência em
matar o dragão, e não sei exatamente como, mas quando ele
tentou se lançar sobre mim, eu girei no ar e enfiei metade da
adaga no peito da fera. O dragão de areia recuou e gritou, urrou –
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
isso foi apavorante - e então rapidamente ergue-se num voo para
longe, em fuga.
Exausto, revirei os olhos, arrastei os pés até a entrada da
caverna e caí de olhos fechados. Já desidratado, eu suava e
sangrava, então, isso era péssimo. Senti que a mão do clérigo se
colocou sobre meu cabelo... Meus olhos cinzentos deviam estar
sem direção, porque eu não conseguia ver direito, só ouvia o som
da voz de Anjo ao longe. Eu estava sentindo um sono diferente, e
agora sim eu simplesmente sabia que assim que ele parasse de
me chamar eu iria dormir para sempre.
Ele me balançou e eu vi como uma luz tenra passar por
mim.
Lutei comigo mesmo, abri os olhos.
Precisava ser forte mais uma vez.
- André, eles estão vindo... – Anjo estava fraco, exausto. O
desgraçado tinha usado o resto de graça pra me acordar. Eu não
queria agradecer isso, parecia errado. Quando fitei o horizonte,
foi então que visualizei uma revoada de dragões de areia,
provavelmente a família daquele a quem eu havia ferido. Ok, já
estava cansativo adivinhar qual seria o momento em que iríamos
morrer, mas isso agora era demais. Eu apenas estiquei a mão
ferida, com sangue escorrendo, formando uma mistura com a
areia.
O pequeno clérigo olhou angustiado para as sombras se
aproximando no chão à frente.
- Vamos morrer, Anjo... – murmurei - Obrigado.
- Não, André, você viverá! – ele derramou uma lágrima –
Você esqueceu que precisa dominar três armas pra ter distinção
de guerreiro chefe?
Que bobagem!
Eu não sei como ele sabia disso, mas esse era mesmo meu
sonho. Quando eu contei? Será que antes do meu pensamento
apagar na madrugada? Eu não sei... Só sei que não consegui ficar
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
em pé. E inesperadamente, Anjo me tocou e beijou meu rosto.
Em circunstâncias normais um homem teria morrido por muito
menos, mas aquilo foi diferente. Aqueles lábios... Era como se os
conhecesse, algo familiar, misterioso e errado ao mesmo tempo.
Antes de correr até o círculo de sombras, o clérigo olhou
pra trás e estava chorando e sorrindo. Quando chegou ao centro,
pôs logo as mãos sobre o peito.
Entre os sons dos dragões, ouvi sua voz bradando:
- Luz da Vida, conceda-me o Favor! Vinde a mim, pela força
da minha ordem – ergueu o braço – Seu poder a meu comando,
traga-me sua fúria...
Ele estava conjurando um Favor, ele não podia fazer isso!
Um Favor é uma das técnicas mais poderosas que um clérigo
pode usar, e todos aqueles os quais conheci e a executaram, em
situações extremas, haviam morrido. Eu não sei exatamente
como, porém eu corri, com os joelhos falhando, mesmo caindo, 4
fui em sua direção. Era meu instinto de novo.
- Anjo, não!
Ele me viu e esticou um dos braços com a mão aberta para
mim, sua força de intenção me paralisou – isso era ruim também
porque lhe exigia uma carga ainda maior de energia.
- Não, André... Se tiver que te parar não vou ter força
suficiente, fique aí!
Ele olhou pra cima, eu estava vendo que ele estava com
medo, e o círculo estava se fechando acima dele. Era insuportável
vê-lo com medo e não fazer nada, esse não era eu! Sua mão
queimada que me barrava cedeu, mas eu não consegui recuar.
Os dragões começaram a ficar revoltados e atiçados pela
presa logo abaixo. Percebi quando o maior, o líder da serpentária,
fez menção de mergulhar. Eu não ia deixar isso acontecer! Eu
corri, mesmo sabendo que nada nos salvaria... E meus joelhos de
novo falhavam. A quase cinquenta metros, era lindo e terrível
assistir os dragões de areia dançando para baixo em direção à
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
terra, à Anjo. Porém, tão logo o envolveram e eu gritei, buscando
minha adaga, um estrondo novo foi ouvido, muito maior, como
se a ponte de ferro do rio de lama tivesse sido rasgada ao meio.
Um raio vindo sabe-se lá de onde atingiu cinco deles, que
caíram espalhados. Um tornado surgiu e começou a causar
problemas às asas dos dragões – ele vinha de baixo para cima.
Trovões ressoaram, e numa explosão branca que eu sei que
nunca vou esquecer mesmo que viva até a velhice, clareou o céu
e se refletiu na areia abaixo. Se eu não tivesse tapado os olhos,
eu estaria cego. Com o estrondo, corpos de dragões despencaram
inertes... Era incrível a magia que o preço de uma vida podia
realizar em conjunto à graça.
Anjo caiu, e a poeira formou uma nuvem ao seu redor.
Fui até ele, ele não devia ter feito aquilo! Eu morreria com
ele ali, era o mínimo que eu podia fazer.
- Você vai viver... – ouvi ele soprando, a poeira ainda no ar,
branca.
Seus olhos se fecharam, e eu entendi.
Assim que ele expirou uma gota de água caiu em sua
testa... Depois outra, mais outra... E na boca semiaberta. Olhei
para cima e vi as nuvens grossas e brancas, cinzas como meu
olhar, despejando água. De tranquila, ela se tornou forte, feroz...
O céu estava chorando porque Anjo morrera. A Luz iria me
amaldiçoar por isso? Eu bebi, juntei as mãos e bebi, arfando. Eu
estava bebendo e me salvando na morte de Anjo, isso era uma
covardia brutal. Eu nem podia imaginar como seria viver
carregando essa vergonha.
E era impossível que estivesse chovendo naquele deserto.
Eu puxei Anjo, e o abracei.
Com um solavanco, coloquei-o sobre meus ombros, e
marchei para o sudoeste, sabendo que ali teríamos chance de
chegar até a cidade de onde saíramos. As forças me faltavam,
mas a chuva me acompanhava, e por ser água abençoada, estava
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
me curando. Eu honraria o sacrifício dele, ele teria o enterro de
um herói, mesmo sendo um clérigo da Luz.
Então, tardiamente, percebi que de algum modo incômodo
eu me importava com ele.
Caminhei sem parar com a ajuda da natureza. Um vento
triste se espalhou pela campina ao entardecer assim que cheguei
ao posto vazio da fronteira e ali parei... A força das águas
diminuíra e eu me sentia mais e mais cansado. Depositei o corpo
no chão e sentei a seu lado, escondendo o rosto com as mãos.
Meus olhos estavam úmidos... Por quê?
Num pulo saquei minha adaga em direção à velha que me
olhava. Ela surgira vinda do nada, e se escondia na sombra do
prédio abandonado. As tradicionais vestes negras falavam por si:
era uma necromante. Estava à espera, como um corvo.
- Eu ouvi um coração batendo na porta da morte – ela
sorriu, os dentes podres.
- Do que está falando?
- O menino da Luz ainda vive... Eu posso tirá-lo das mãos da
morte, eu tenho esse poder.
“Você está disposto a dar sua vida pela dele?” – seus olhos
brilharam, maliciosos. Olhei o rosto sem cor de Anjo. Só então,
consegui me sentir aliviado; mesmo com os dragões de areia
trucidados eu não senti o alívio que senti ali. Eu assenti com a
cabeça, sério. Um negócio com uma necromante, contudo, nunca
era o que parecia; seguidores da morte sempre querem algo de
nós. Ela entrou na sombra, e uma porta surgiu na parede. “Está
pronto para viajar?”. Eu estava.
Anjo e André são personagens do livro Cidade do Anjo (Editora Escândalo, 2012)
– uma história gay adolescente. Clique aqui e conheça!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
A Noite Histórica
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
todos os gordos desgraçados dessa cidade resolveram comer ao
mesmo tempo.
- Sossega, biba.
- Não me chama de biba!
- Bora balada de bicha. Hoje vai todo mundo. E você
também.
- Não, eu não vou! – falei com firmeza.
- Vai sim, tem esquema. Um amigo meu de São Paulo tá
aqui, ele tá louco pra te conhecer.
Aí a coisa muda de figura.
- Amigo? – perguntei, já deixando amolecer um pouco meu
vigor.
- É... Ele é advogado, sabe. Tá vindo pra cá, é gay bem do
teu tipo. Meio oriental.
É aí que eu me refiro.
- Às onze e meia tô passando aí – sentenciei.
Voltei pro quarto, ainda tinha quinze minutos de jogo antes
da sessão de filmes. Como eu ainda tinha opção de usar duas
espadas fiz uma chacina rápida, contei meus pontos de
experiência e pedi desculpa pro pessoal por encerrar ali. A
maratona do Senhor dos Anéis ia ter que ficar pra outro dia
porque naquela noite o precioso era só meu.
Tomei banho, gritei umas duas vezes fazendo a porra da
sobrancelha, passei lápis no olho e na porra da sobrancelha,
coloquei um pouco de corretivo, vesti a camiseta xadrez, uma
calça apertada (que o Rodrigo uma vez apelidou de “clausura”),
penteei a porra da sobrancelha, me lavei de perfume. Estava no
melhor possível praquele momento memorável aonde eu ia com
certeza conhecer o futuro pai dos meus filhos. Eu estava digno de
atualizar minha foto do perfil!
Cheguei na frente da casa do Fábio, buzinei uma vez. Duas.
Ansioso enfiei a mão na buzina, caralho! Ô gordo filho da puta
esse, cara!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Ele saiu sozinho e aí eu entendi: aquilo só podia ser mais
uma artimanha do obeso pra me fazer sair. Na mesma hora
pensei em Frodo e pedi perdão mentalmente. Se voltasse
naquele instante pra casa eu ainda podia ligar o computador e
passar uma bela noite jogando MMORPG.
- Tô aqui! – ele cantarolou imitando uma menininha e
depois me deu um beijinho melado no rosto que limpei com a
mão na mesma hora. Afundou com gosto o banco do carona.
- Era mentira, né? – fulminei-o.
- Bora pegar Rodrigo e o Alexandre?
- Não acredito que eles vão! Sério? – isso era histórico.
Bom... Vou pular a parte em que passamos na avenida e o
Fábio TEVE que colocar a bunda na janela.
Daí todo mundo se encontrou, aquela merda toda.
Chegamos na boate e eu, como sempre, sou o mais rejeitado. O
Fábio tirou uma travesti pra dançar que ainda passava a mão na
barriga dele como se fosse um pote de ouro. E nisso outra
travesti que parecia uma pirata com perna de pau porque tinha
uma perna mais fina que a outra, se esfregava nele e ele nem aí.
Revirei os olhos.
- Tem um cara te olhando! – o Rodrigo falou.
- Sério? Deve ser engano!
- Não é, olha ali discretamente pro lado do banheiro.
Que discretamente o quê, cacete. Se tá me olhando eu vou
ficar fazendo fita? O mar já não tá pra peixe. Olhei na cara dura e
o Rodrigo quis se enfiar pro outro lado do balcão do bar.
O “cara” era um menino que aparentava doze anos de
idade, com cabelo loiro e tão cacheado que parecia um ninho de
pombo. A calça dele era ainda mais apertada que a minha e se
alguém não fosse lá e cortasse aquilo, tenho certeza que a
circulação dele parava em questão de minutos. Fiz o carão pra ele
e o apelidei mentalmente de “mini biba”.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
- Que foi? Não gostou? – o Rodrigo ainda teve a cara de
pau de perguntar!
Fingi não ter ouvido. Peguei o celular. Twittei.
Começou a tocar a Rainha Madonna e eu fui correndo pra
pista. Na hora que toca Madonna, ou uma diva qualquer, as bicha
vira tudo amiga! Eu mesmo viro a supersociável! Até aceitei subir
no pole dance com o Fábio e a pirata. Só não topei o beijo triplo
porque isso é muito anos 2000, e Give Me All Your Luvin’ não
pede esse tipo de coisa. E do alto do meu posto, matreira como
sou, no meio da luz negra enxerguei o Alexandre, que nunca
dança, socializando com um grupinho suspeito de
pseudointelectuais que parecem aqueles estudantes de filosofia,
que sempre resolvem se enfiar sabe-se lá por qual motivo em
festas LGBT.
Fui até lá e já um pouco alto que estava de ter bebido do
copo do Fábio (inconsequência total isso), abracei o Alexandre
pela cintura e dei um oi como se estivesse chegando no auge da
animação em quadra de escola de samba. Só não ouvi os grilos
cantando porque estava tocando um remix podre, mas vi que a
conversa cessou na mesma hora.
- Ah... Esse é o Tales... – o Alexandre me apresentou.
Todos levantaram as sobrancelhas. Porém, tinha um ali
com potencial! Ele era da minha altura e tinha uma cara de
inexperiente que me seduziu!
Fazendo o tímido, voltei pra pista, e encontrei Rodrigo
voltando com um copo amigo. Virei o copo amigo na minha boca.
Ele me xingou de uma dúzia de nomes. Com raiva, peguei uma
nota de vinte e coloquei na mão dele dando um tapa em cima:
- Tá aqui, meu bem! Sou rica, tá? Vai comprar teu leite
neném. Exu! Avarento.
Aquilo tudo tava me dando uma loucura, uma vontade de
tudo!
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
De repente eu estava dançando igual Britney até o mundo
acabar, e nisso eu via os olhares cravando em mim. Eu estava
grudado na barra que separava a pista do bar, rebolando até o
chão. Foi quando meu baixinho inexperiente veio pro meu lado
sem saber dançar porra nenhuma, e eu virei pra ele e grudei ele
já no beijo.
- Ai, eu tava muito a fim de ti! – escutei.
Quando ele disse isso eu juro que nunca tinha ouvido uma
voz tão de pintosa como aquela! Na hora me deu um nojo, que
eu nem dei desculpa, só larguei fora o mais rápido que pude. Só
vi de longe o Alexandre rindo com aquela boca cheia de dentes, e
mostrei o dedo médio pra ele. Tava virando aprendiz do Fábio,
né? Deixa que o que era dele tava guardado.
Fui pro banheiro, meio tonto, e lá o gordo estava
conversando e fumando com uma rodinha de “amigas”.
- Ai, a gente não é lésbica! – uma falou.
- Que pena... – ele riu – E vocês são o quê?
- A gente estuda! Psicologia!
- Eu também!
O quê?! Eu não acreditei naquilo. Só se fosse Psicologia na
universidade do meu cu!
Tive que esperar alguém se foder dentro do banheiro e
depois sair pra eu poder usar. O vaso entupido de papel como
sempre, a porta sem trava como sempre, e eu lutando com o
zíper como sempre. E quando eu finalmente consigo mijar, a
porta abre.
- Aproveita povo, que tá 10 reais esse rabo moreno! – o
Fábio gritou.
Os caras no mictório riram de mim, e as meninas
amiguinhas dele também.
Quando eu acabei, passei e meti um soco em sua barriga
obscena. Avistei o Alexandre no bar, fui lá e roubei a bebida que
ele tava segurando.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
- Por que você tá pegando a minha? Hoje é open bar cara!
– ele respondeu já indignado.
- Ah é? – retribuí antipático.
O garçom repôs a dele então a roubei na mesma hora e saí
me sentindo a Rainha da Antipatia. Só aí lembrei que eu tinha
dado vinte na mão do puto do Rodrigo.
Eu juro que até hoje eu não entendi e nunca vi isso
acontecer outra vez: algum dos DJs deve ter se enganado, eu não
sei! Começou do nada a rolar um remix daquela, pasmem, ex-
apresentadora infantil do Xis! Aquela boate parecia que ia vir
abaixo... Eu só vi o Fábio jogando bicha pra tudo que era lado
igual pino de boliche, abrindo caminho pra chegar na pista. E até
o Alexandre veio com nós, e o Rodrigo, e a gente se abraçou e foi
um vuco vuco... Passei a mão na bunda de uns cinco caras
enquanto tava na parte do nheco-nheco, xique-xique, balancê!
Já suado, tive de recorrer à área dos fumantes onde um
pessoal muito estranho com cara de chapado estava divagando.
Fui ali, tentei me secar na frente de um ventilador, e depois
voltei. Nessa volta a mini biba vinha na minha direção pra falar
comigo, então prontamente desviei o caminho - foi quando
aconteceu. Um holofote branco veio em cima de mim e foi igual
tivessem me dado um soco na cara.
- Pessoal, meu amigo tá de aniversário hoje!
O Fábio tinha aprontado essa comigo.
Toda a boate cantou parabéns pra mim... Eu bêbado, com
o olho borrado, a cara tão suada que minha chapinha já tinha ido
pra puta que pariu, não ia dar pra ser simpático, ah não ia. E no
fim o Fábio ainda trocou o verso: “muitas felicidades / muitos
anos de passiva!”.
- Passiva, passiva, passiva! Tales! Tales! Tales!
E quem disse que eu conseguia andar depois? Todo mundo
veio me dar parabéns. E como eu ia explicar que meu aniversário
era no outro mês ainda? Ah que se fodesse. Comecei a beijar,
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
abraçar, imaginei que todo mundo era íntimo. Tirei foto, bebi do
copo da bicharada toda, e no final ainda passei pelo barman que
eu sempre achei um gato e dei um selinho na boca dele, antes de
sair correndo.
A essa altura vejo um cara que eu ficava há eras, ficando
com a mini biba! Eu sabia que o cabeça de ninho tinha uma
energia ruim, eu senti que ele era perigoso!
- A gente tava te procurando! – o Rodrigo me puxou.
- Que foi? Não me diz que você viu aquele teu ex também?
O das frutinhas? – debochei com classe.
- Ah cala boca. O Alexandre que ir embora, ele tá bêbado,
passando mal...
- Ai não, não me diz que ele tá chorando de novo.
Apertei “Esc” e fui lá. Consolamos o Alexandre e o Fábio
voltou com uma meia-calça nos ombros (don’t ask, don’t tell).
Nisso fomos pra rua. Agradeci aos deuses LGBT por voltar a
respirar ar puro. E nisso, um cara chegou perto de mim, pegando
na minha mão.
- Ei, parabéns... – ele disse – Não te dei um abraço.
- Tudo bem, amor. Meu aniversário não é hoje mesmo...
Virei: de terno preto, olhinho puxado, pouco mais alto que
eu. Só pela voz grossa já valia a pena, mas ele conseguia ser
estupidamente lindo e oriental (meu ponto fraco). Olhei pro
Fábio que fez carinha de Ursinho Pooh (ele tinha mesmo um
amigo advogado!), um sinal de positivo (curti), e na mesma hora
respondi de novo pro cara:
- Mas você pode me dar os parabéns agora, é claro!
Ele abriu um sorriso perfeito e me abraçou. E depois ele
me beijou. E depois a gente ficou enquanto o Alexandre vomitava
e o Fábio oferecia um copo de vodca pra ele, pra ele melhorar. O
Rodrigo discutia com o ex (o emo-das-frutinhas como nós o
chamávamos), e eu ali pairando nas nuvens. Fiquei imaginando se
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Rafael Nova, 2013.
no RPG o oriental advogado seria meu parceiro, desbravando
masmorras, correndo pelas montanhas.
Mais faceiro que o Gollum, tomei posse do meu precioso.
- Eu tenho que ir – ele falou, rápido demais.
- Mas já? Você não vai com nós?
- Não posso. Não sou daqui, e daqui a pouco quase pego o
avião já. Sabe como é, né?
“Sim, eu sei”. Ali naquela hora eu saberia tudo o que ele
quisesse. Imaginava nossos filhotes de olhos puxados. Imaginava
aquilo na cama, que só pela pegada devia ser um espécime ativo
perfeito. Ouvi o Alexandre regurgitar mais uma vez. Um táxi
chegou e notei que ele estava realmente com pressa.
- Anota meu número? – ele pediu.
- Capaz, vai lá, eu sou amigo do teu amigo!
- Sério? – ele fez cara de dúvida, tão fofo.
“Lógico que vou te add e curtir todas as tuas fotos”, pensei.
Ele balançou a cabeça, feliz. Me deu um último beijo e
depois entrou no carro com outro carinha que me acenou muito
simpático, e eu suspirei.
Fui até o Fábio, bebi a vodca num gole só e abracei aquela
imitação de Hagrid do Harry Potter. Ele me abraçou também e o
Rodrigo também nos abraçou chorando, dizendo que nunca mais
ia falar com o ex das frutinhas, e o Alexandre que estava sentado
na calçada só conseguiu se escorar em nós pra ser solidário. Era
um momento de regozijo, algo quase bíblico, como se o Senhor
tivesse nos dado toda a nossa merecida Vitória.
Depois do ritual do lanche cheguei em casa e dormi.
No dia seguinte minha cabeça doía, e alguns fatos eram
inexplicáveis: por que eu estava usando uma camisa branca? Por
que eu estava com três notas de dez e uma de cinco enroladas
dentro da minha cueca? E por que meu celular tinha um papel de
parede da Hannah Montana? Puro mistério.
O dia todo o puto gordo não me atendeu.
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O Delicioso Livro de Histórias Coloridas de Monsieur Nova
Rafael Nova, 2013.
Quando foi segunda-feira, subi no departamento de
publicidade e encontrei ele com os pés pra cima e a mão enfiada
dentro da calça, mexendo no saco. Ele parecia um leão marinho.
Com as mãos na cintura, avancei toda diva e dei um soco na
mesa, que ele chegou pular.
- Quero o número do teu amigo advogado. Agora! –
intimidei.
- Que amigo?
- O amigo advogado oriental, de outra cidade, que ficou
comigo, seu burro!
- O do terno preto?
- É.
- Eu nunca vi aquele cara na minha vida! – riu.
E riu, riu tanto que chegou a pôr as mãos no pinto pra
segurar o xixi. Eu não acreditava naquilo... As pessoas ao redor
começaram a rir também, e eu me senti um idiota, ainda
tentando tirar o refrão da Xuxa da cabeça, vendo meu kamikaze
explodindo levando junto com ele nossos filhos de olhos puxados.
Fosse teatro a cortina fechava ali mesmo. As lágrimas escorriam
pelo rosto rechonchudo e vermelho na minha frente!
Com vontade de matar alguém, cruzei o corredor ao som
mental da festa do estica e puxa e fui ver as fotos da minha falsa
festa de aniversário.
“Parabéns” pra mim!
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Pequenos e Curtos
O Caminhoneiro
Alerta
Conselhos de Shangri-La
A Mansão Ideal
Perguntei pra ele: por que você não namora com dois
passivos?
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Ele respondeu: seria uma boa para mim porque eles iam se
odiar nas noites que tivessem que se revezar!
Eu acho deliciosas estas cenas dantescas e já fico a me
imaginar supervisionando tudo, como se eu fosse um tipo de
fiscal da casa usando espartilho de couro e com uma chibata na
mão. Lógico, eu ia puxar os cabelos do primeiro passivo
indisciplinado ou revoltado com sua sina bígama involuntária.
- Você não tá ouvindo que o seu macho quer comer o outro
agora?!
Como castigo, ele seria obrigado e manipular e satisfazer o
segundo passivo, de modo a pagar pela petulância. Consideraria
também privá-lo de alguns seriados favoritos, ou mesmo de
refrigerantes de baixa caloria.
Nessas doces divagações descobri minha verdadeira
vocação: governanta erótica.
- Eu daria uma ótima governanta erótica! – sugeri,
tentando imaginar que tipo de salário receberia. Claro,
provavelmente incluiria insalubridade.
- Ah daria sim, daria... – meu amigo riu – Você tem noção
de que eu consigo imaginar tudo o que você fala?
Certamente eu seria odiado.
- Mas com você nas rédeas eu poderia finalmente montar o
meu harém – admitiu.
Por algum motivo obscuro, sem nem o conhecer, eu já
detestava o primeiro passivo imaginário. Fiquei pensando eu
adentrando seu quarto, machucando-o com tortura psicológica:
“Hoje o mestre não vai usar você, pode ir tomar seu banho logo,
e dormir. Ele vai jantar com o segundo na cozinha. Se eu ouvir
qualquer barulho vindo daqui – qualquer barulho – você sabe o
que o espera, vou trancar a porta agora.”
- Vou jantar na cozinha? Não podia ser um café colonial na
sala de inverno?
- É pra isso que eu sou sua governanta, bebê. Eu organizo.
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Suspirei satisfeito e já realizado por antecipação com o
sucesso do meu desempenho no hipotético cargo.
Faroeste Brilhante
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Desintrodução
O que o inspirou?
Em primeiro lugar foi a conversa com o amigo. Em
segundo, conforme estava já escrevendo, travei contato
com o livro “Homossilábicas” da Editora Escândalo, que
reunia uma série de contos de autores diferentes sob a
temática homoafetiva. Era muito parecido com o tipo de
trabalho que eu estava com vontade de realizar, e isso só
me incentivou. Criar as histórias foi diferente dos grandes
romances, porque me permitiu trilhar entre paisagens,
temas, personagens e narrativas diversas. Foi muito
gostoso experimentar (beberica e sorri de modo suspeito).
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ironia com a vida de um famoso colunista de jornal que é
gay. Sem falar no curto, e profundo, A Rainha Branca.
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presentes ali. Ultimamente, contudo, tenho desenhado
pouco e por isso não tenho feito tantas ilustrações sobre as
histórias como fazia antes.
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Extras #2
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“É bom fazer faxina na vida, nas relações. Tem dois
produtos detergentes e alvejantes ótimos: ‘verdade’ e
‘honestidade’. Mantenha limpo.”
“Hoje a noite não tem luar, e o rio não reflete nada além de
escuridão morna e secreta. O silêncio vela os desejos
contidos, em si.”
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“Me vesti de cor-de-rosa laminado e fui no mercado.
Quando passei no caixa queriam me comprar - acharam que
eu era um sonho de valsa gigante.”
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“Olho para minhas mãos trêmulas cheias de tempo. Marcas
de memórias estampadas em mim. Guias de tudo que
desejei, de tudo que fiz. O que sou.”
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Extras #3
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O Autor: Rafael Nova
www.rafaelnova.com | twitter.com/novarafael | fb.com/rafaelnova0
(ZzZzZzZz...)
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Livros da Série:
Cidade do Anjo (2012, Editora Escândalo)
Sagrado Coração (2013, não publicado)
Cálice do Sul (2014, não publicado)
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Fb.com/CidadeDoAnjo
Série A Imperatriz
A Imperatriz & As Rosas
O Cavalheiro e A Primavera
Uma outra vida, um outro mundo. Conheça o povo dos claros, uma raça de
seres que foi exilada do continente em que viviam. Ao longo de eras e guiados
pelas filhas das estrelas elas prosperaram e se multiplicaram. Agora, uma
sombra ameaça acabar com sua paz, e apenas um Cavalheiro e A Imperatriz
esquecida sabem a extensão desse perigo. Sem a crença de todos, será que
conseguirão reunir forças para salvar seu planeta?
Histórias Curtas
A Rainha Branca
Acostume-se a viver sozinho. Acorde, durma, não precise de ninguém. Vá para o
trabalho e depois para a escola. Não tenha família. Não tenha sentimentos. Dia
após dia ele tenta agir como uma pessoa normal, e em reflexões que misturam
desânimo e matérias do colégio, tenta entender e se situar diante do mundo lá
fora. A casa no subúrbio, o trabalho no mercadinho, a visão sobre as pessoas
que vivem suas vidas normais. As coisas mudam a partir de misteriosos e
recorrentes sonhos onde uma mulher vestida de branco pede sua ajuda.
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Copyright © Rafael Nova, 2013.
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