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TRADUZINDO A

ÁFRICA
QUEER
CATERINA REA
CLARISSE GOULART PARADIS
IZZIE MADALENA SANTOS AMANCIO
(ORGANIZADORAS)

TRADUZINDO A

ÁFRICA
QUEER

editora
DeViRes
2018 © Editora Devires
Traduzindo a África Queer

Caterina Rea
Clarisse Goulart Paradis
Izzie Madalena Santos Amancio
(Organizadoras)

Editor | Gilmaro Nogueira


Revisão | Gerusa Bondan
Diagramação | Daniel Rebouças
Capa | Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira

CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


R281t REA. Caterina,
Traduzindo a África Queer/Caterina Rea, Clarisse Goulart
Paradis, Izzie Madalena Santos Amancio. 1ª edição/Salvador,
BA: Editora Devires, 2018.
146p.; 16x23cm
ISBN 978-85-93646-16-4
1. África 2. Dissidência sexual 3. Queer I. Título.
CDU 306
CDD 316.7-306.76

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Direitos para
essa edição cedidos à Editora Devires.

editora
DeViRes
Editora Devires
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA
www.editoradevivres.com.br
SUMÁRIO
O Queer African Reader e sua atualidade para o debate sobre
dissidência sexual e teoria queer em uma perspectiva Sul-Sul 7
Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB
Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB
Izzie Madalena Santos Amancio/FEMPOS/UNILAB

A proposta do Queer African Reader 23


Sokari Ekine
Hakima Abbas
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

Um ensaio 28
David Kato Kisule
Tradução Felipe Fernandes/GIR@/UFBA

“Sobre sororidade e solidariedade”: tornando queer os espaços


feministas africanos 31
Awino Okech
Tradução Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB

Discursos pós-coloniais do ativismo queer e de classe na África 57


Lyn Ossome
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

Caster corre para mim 74


Ola Osaze
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

A história única a homofobia africana é perigosa para o ativismo


LGBTI 78
Sibongile Ndashe
Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e Equipe do FEMPOS
Manifesto LGBTI africano/declaração 89
Autorexs varixs
Tradução Thamy Ayouch/Université Denis Diderot, Paris VII

Queerizando as fronteiras: uma perspectiva africana ativista 91


Bernedette Muthien
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

Lutas LGBTI Queer como outras lutas em África 101


Gathoni Blessol
Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e equipe do FEMPOS

O Quênia Queer na lei e na política 111


Keguro Macharia
Tradução Sergio Rodrigo Ferreira GIGA/UFBA

Olhando para além dos binarismos coloniais: desfazendo o


discurso sobre a homossexualidade no Malaui 129
Jessie Kabwila
Tradução Tatiana Ivette Castilla Carrascal/UNILAB e Carolina Barbosa Pereira/UFBA
O Queer African Reader e sua atualidade
para o debate sobre dissidência sexual e
teoria queer em uma perspectiva Sul-Sul
Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB
Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB
Izzie Madalena Santos Amancio/FEMPOS/UNILAB

Apresentamos, aqui, a tradução de alguns dos textos contidos no


Queer African Reader, a primeira coletânea de textos escritos por autorxs
africanxs que se declaram abertamente como queer ou que se solidarizam
com a pauta da dissidência sexual1. Este trabalho de tradução, liderado
pelo Grupo de Pesquisa “Pós-colonialidade, Feminismos e Epistemologias
Anti-hegemônicas/FEMPOS/UNILAB”, foi realizado durante o decorrer
do projeto de pesquisa Fluxo Contínuo UNILAB (2016-2017), intitulado
Sexualidades dissidentes, Interseccionalidade e Teoria Queer na África:
um primeiro mapeamento2, e do projeto de Iniciação Científica (PIBIC/
UNILAB, 2017-2018), intitulado Diversidade sexual, homofobia e debate
sobre teoria Queer em contextos africanos: uma primeira abordagem,
ambos coordenados por Caterina Rea. Este envolveu a participação de
professorxs da UNILAB, de professorxs e doutorandxs da Universidade
Federal da Bahia/UFBA (Felipe Bruno Martins Fernandes, Carolina
Barbosa Pereira e Sérgio Rodrigo Ferreira) e da França, Université de
Paris VII (Thamy Ayouch), que colaboraram no processo de tradução3.
Ao focar nas traduções de textos do Queer African Reader, escolhemos
apresentar a teoria queer africana a partir das produções de autorxs do

1 Gostaríamos de agradecer Sokari Ekine, editora do Queer African Reader, e a todxs xs autorxs
aqui traduzidxs por terem nos facilitado este trabalho, aceitando a publicação das traduções e
cedendo os direitos autorais.
2 No quadro deste projeto, realizamos a primeira tradução de um artigo do Queer African Reader.
Trata-se do texto da militante nigeriana Sokari Ekine, “Narrativas contestadoras da África Queer”,
publicado pela revista Cadernos de Gênero e Diversidade, v. 2, n. 2, 2016.
3 As traduções aqui propostas são traduções livres e militantes de textos do Queer African Reader,
a partir de um trabalho colaborativo entre xs membrxs do grupo de pesquisa FEMPOS/UNILAB
e outrxs colaboradorxs externxs que participaram deste projeto.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 7
próprio continente4. O campo dos estudos queer sobre contextos africanos
conta com diversas produções de antropólogxs e historiadorxs africanistas
e teóricxs queer brancxs, norte-americanxs e europexs, como mostra o
artigo de Ashley Currier e Thérèse Migraine-George, publicado, em 2016,
no Journal of Lesbian and Gay Studies5. Na academia brasileira, ainda há
uma separação bastante evidente entre africanistas e pesquisadorxs na área
dos Estudos de Gênero e Sexualidades e, em particular, da Teoria Queer.
Existem algumas exceções, como o texto publicado pelo antropólogo Luiz
Mott, na revista Afro-Ásia, de 2005, onde o autor contesta o chamado “mito
da inexistência da homossexualidade na África”6 e pesquisas mais recentes
de jovens cientistas sociais sobre a vivência da homossexualidade em
países africanos de língua oficial portuguesa (Cabo Verde e Moçambique,
em particular). Mencionamos, nesta direção, o texto de Fabiana Mendes
de Souza, publicado em 2014, na revista baiana Olhares Sociais7, e o
de Francisco Miguel, sobre a homossexualidade masculina em Cabo
Verde, publicado em 2016, pela revista Enfoques8. O texto de Francisco
Miguel menciona o Queer African Reader entre as produções africanas
sobre sexualidades dissidentes. De significativa importância é também
a publicação, em tradução portuguesa, pela revista Bagoas, do estudo
clássico do antropólogo inglês, Evans-Pritchard, “Inversão sexual entre
os Azande”, que mostra a presença de formas de relações homoafetivas no
grupo étnico dos Azande da época pré-colonial9.

4 Cf. REA, Caterina. “Sexualidades dissidentes e teoria Queer pós-colonial: o caso africano”. Revis-
ta Epistemologias do Sul, v. 1, n. 1, p. 145-165, 2017 e REA, Caterina. “Descolonização, Feminismos
e condição queer em contextos africanos”. Ravista Estudos Feministas, n. 26, v. 3, p. 1-21, 2018.
5 CURRIER, Ashley; MIGRAINE-GEORGE, Thérèse. “Queer Studies/African Studies. An impos-
sible transaction?”. A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 22, n. 2, 2016, p. 281-305. Nesta linha
de uma produção queer sobre as sexualidades africanas, podemos citar também HOAD, Neville.
African Intimacies. Race, Homosexuality and Globalization. Minneapolis/London: University of
Minnesota Press, 2007; e CURRIER, Ashley. LGBT Organizing in Namibia and South Africa. Min-
neapolis/London: University of Minnesota Press, 2012.
6 MOTT, Luiz. “Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro”, Afro-Ásia,
n. 33, 2005, p. 9-33.
7 SOUZA MENDES, Fabiana de. “Discretos e declarados: Relatos sobre a dinâmica da vida dos
homossexuais em Maputo, Moçambique”. Revista Olhares Sociais, v. 3, n. 2, 2014, p. 76-101.
8 MIGUEL, Francisco. “(Homo)sexualidades masculinas em Cabo Verde: um caso para pensar
teorias antropológicas e movimentos LGBT em África”. Enfoques, v. 15, 2016, p. 87-110.
9 PRITCHARD, Evans. “Inversão sexual entre os Azande”. Tradução Felipe Bruno Martins Fer-
nandes, Bagoas, n. 7, p. 15-30, 2012.

8 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Esta breve revisão bibliográfica nos leva a concluir que são ainda bem
escassos, particularmente no Brasil, os textos que mencionam reflexões
recentes de militantes e cientistas africanxs, engajadxs nas múltiplas lutas
pela afirmação da dissidência sexual e de gênero, assim como na crítica ao
neocolonialismo e à imposição, para os países africanos, do modelo único
da “democracia” neoliberal.
O Queer African Reader é oriundo de países africanos de língua
e de colonização inglesa e foi publicado em 2013, pela editora africana
Pambazuka, editora progressista cujo objetivo é visibilizar as produções de
pensadorxs e ativistas africanxs que participam das diferentes frentes das
lutas contra a opressão. O Queer African Reader conta com a participação
de ativistas, acadêmicxs, políticxs e artistas de vários países da África que
promovem uma análise crítica e a discussão sobre a importância social,
cultural e política da dissidência sexual e de gênero no continente. Por isso,
destacamos a presença de registros diferentes nos textos desta coletânea,
que vão do mais acadêmico e teórico, ao mais afeito à militância.Visamos,
aqui, à apresentação da tradução para o português de alguns destes
textos do Reader, na esperança de podermos continuar este trabalho, no
futuro, trazendo novos textos africanos para a discussão, no Brasil, sobre
sexualidades dissidentes.
O Queer African Reader tem como editoras duas mulheres feministas,
a nigeriana Sokari Ekine e a egípcia Hakima Abbas. Na introdução à
coletânea, que traduzimos neste volume, as autoras apontam para a essencial
contribuição das lutas travadas pelas comunidades LGBTIQ africanas
em prol da visibilidade da dissidência sexual, para a consolidação da
democracia e da libertação anticolonial no continente. Para isso, é preciso
contestar os discursos hegemônicos nos quais a África e a cultura africana
são homogeneizadas, quando de sua representação em uma identidade
única, uniforme e estática, seja por uma homofobia obsessiva e radical, seja
por uma heterossexualidade compulsória e totalizante. Se tais discursos
hegemônicos são encarnados por sujeitos políticos diferentes e mesmo
opostos – os países ocidentais e as organizações LGBT internacionais, por
um lado, e as lideranças políticas e religiosas locais, por outro –, as lógicas
que os animam não são, porém, diferentes, conforme as análises que a
maioria dxs autorxs do Reader realiza. De fato, ambos os discursos levam

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 9
a uma compreensão simplista e redutiva da complexidade que caracteriza
as culturas africanas (no plural) e a multiplicidade de vivências e práticas
sexuais que nelas se manifestam.
A leitura do Queer African Reader nos mostra o caráter insustentável
dos estereótipos que pesam sobre o continente africano e, particularmente,
sobre a forma com que sexualidades e gêneros dissidentes aí são
representados. A África não é toda e integralmente homofóbica, nem é
toda e exclusivamente heterossexual. Como em todo e qualquer contexto
sociocultural, existem sexismo, machismo e homofobia, mas, também,
existem sítios de resistência e de lutas feministas e em prol da libertação
das comunidades LGBTIQ. É assim que países como Uganda, Nigéria ou
Malaui, conhecidos como os mais inóspitos para as pessoas sexualmente
dissidentes, são, ao mesmo tempo, teatros de intensas produções de
práticas teóricas e de militâncias feministas e queer. Neste sentido,
pode-se afirmar que a África, em seus vários contextos e regiões, está se
transformando em um laboratório extraordinário do pensamento e do
ativismo feminista e Queer.
Na ótica do Queer African Reader, a questão (homo)sexual, na África,
não constitui uma realidade isolada, mas diz respeito a novas formas de
colonização que concernem às relações entre o Norte e o Sul globais. Ou
seja, a questão (homo)sexual apresenta-se como uma questão política
crucial, na qual se encarnam o neo-imperialismo e o paternalismo do
Ocidente e as crispações nacionalistas anticoloniais dos países africanos.
As intervenções de instituições ocidentais ligadas à defesa dos direitos
humanos e LGBT em territórios africanos, onde tais direitos não são
respeitados, suscitam o ódio dos líderes políticos e culturais, que veem
comprometida a autonomia de seus países e da sociedade civil em geral.
Essas intervenções reforçam a compreensão que se tem, em muitas regiões
da África, de que “a homossexualidade é parte da agenda ocidental”.10 Desta
forma, analogamente ao que o teórico palestino Joseph Massad11 aponta
para o mundo árabe, de maneira paradoxal, crendo defender e libertar

10 NDASHE, Sibongile. The single story of “African homophobia” is dangerous for LGBTI activism.
In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.
11 MASSAD, Joseph. Desiring Arabs. Chicago: University of Chicago Press, 2007.

10 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
os homossexuais africanos, as agências e as ONGs LGBT internacionais
acabam estimulando a homofobia local e piorando as condições de
vida das pessoas dissidentes sexuais e de gênero no continente12. Estas
últimas são consideradas como traidoras da pátria e como portadoras
de interesses estrangeiros, ligados ao mundo ocidental. Em particular,
a presença de tais atores estrangeiros, que desconhecem ou ocultam
as agendas dos movimentos LGBTI locais, assume, em muitos casos, a
forma de uma nova colonização, através da continuidade da ingerência
das potências ocidentais nas questões políticas locais, sob o pretexto de
defenderem os direitos das minorias sexuais. Como escreve lucidamente
Sibongile Ndashe,

Mesmo com boas intenções, as intervenções estrangeiras, muitas vezes,


não compreendem as dinâmicas e as políticas locais e podem fazer
muito mais mal do que bem. Mas fundamentalmente, a tentativa de
estrangeiros de liderarem a luta do movimento, na África, subordina
os interesses da comunidade local aos interesses de atores externos,
reforçando divisões raciais enraizadas no movimento global e afogando
as vozes progressistas e os movimentos de desenvolvimento13.

12 Segundo Massad, lido e seguido por várixs autorxs africanxs, estas ONGs e associações interna-
cionais que operam no Sul Global são as que estão afiliadas às duas mais poderosas associações de
defesa dos direitos humanos LGBT, ou seja, a International Lesbian and Gay Association (ILGA)
e a International Gay and Lesbian Human Rights Commission (IGLHRC). Sediada em Genebra, a
ILGA se estrutura como uma federação mundial de organizações que operam em vários países do
mundo. A IGLHRC mudou seu nome em 2015 e se chama agora Out Right Action International.
Sediada em Nova York, esta organização tem presença permanente nas Nações Unidas e funcioná-
rios em diferentes países, agindo amplamente no Sul Global. Na interpretação queer africana, estas
associações e suas inúmeras ramificações perpetuam agendas econômicas e políticas neoliberais,
desenvolvendo o controverso papel de agências financiadoras que concedem dinheiro ou impõem
sanções aos países africanos e do Sul, conforme estes se engajam ou não no fortalecimento dos
direitos humanos LGBT. Desta forma, ao invés de serem um fator de libertação para as minorias
sexuais de muitos países africanos, as organizações internacionais fortalecem posições heterocen-
tradas nas populações locais, pelas quais a epistemologia/política ocidental da (homo)sexualidade
não representa o único nem o principal vetor de identificação.
13 NDASHE, Sibongile. The single story of “African homophobia” is dangerous for LGBTI activism.
In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 11
O outro aspecto desta mesma questão das intervenções de
ONGs estrangeiras é a imposição de um modelo único de vivenciar a
homossexualidade, que coincide com o modelo ocidental. Este modelo
privilegia estratégias que nem sempre, nem necessariamente funcionam
nos contextos africanos ou nos do mundo árabe e oriental. A epistemologia
ocidental da (homo)sexualidade estrutura-se a partir do coming-out
(saída do armário), da afirmação do orgulho e da visibilidade enquanto
características imprescindíveis do ser gay e lésbica e se baseia, desta
forma, na ideia de uma oposição bem definida entre homossexualidade
e heterossexualidade. Assumir abertamente a própria homossexualidade
se torna, para o mundo ocidental, a primeira e fundamental etapa da
libertação sexual. Contudo, como nos ensinam xs queers africanxs e, em
geral, xs queers of color, as epistemologias e as práticas das sexualidades
dissidentes, nos contextos africanos, mas também no mundo árabe-
muçulmano e no Sul Global, não funcionam necessariamente segundo o
binarismo homossexual versus heterossexual e não implicam a exigência
da saída do armário e da visibilidade como condição indispensável
do exercício de uma sexualidade dissidente. Mais precisamente, na
maioria das culturas africanas e na cultura árabe-muçulmana, o fato
de ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo não comporta
afirmar uma identidade gay ou lésbica, nem “expressar a necessidade de
políticas gays”14. Da mesma forma, silêncio e discrição podem se mostrar
estratégias mais eficazes de ativismo. E o próprio ativismo, em muitos
contextos individuais, não é considerado um exercício intrínseco para
a experimentação de sexualidades e tampouco para o pertencimento
às práticas das sexualidades dissidentes. É esta diferença cultural de
estratégias de luta que a Internacional Gay15 não consegue incorporar,
suscitando reações negativas das populações locais contra a causa
homossexual, identificada com uma preocupação do neo-imperialismo
ocidental.

14 MASSAD, Joseph. Desiring Arabs. Chicago: University of Chicago Press, 2007.


15 Internacional Gay é o nome que Joseph Massad dá para o conjunto de associações e ONGs
LGBT internacionais, mas sediadas nos países ocidentais, que opera no mundo árabe, na África e
no Sul Global com a “missão” de salvar as minorias sexuais locais da terrível homofobia de tais re-
giões. Segundo Massad, retomado por muitxs autorxs africanxs, a Internacional Gay é responsável
por impor um modelo único e ocidentalizado das relações homoafetivas.

12 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Nesta introdução, usamos a terminologia LGBTIQ, uma vez que ela é
usada pelxs autorxs do Queer African Reader. No entanto, consideramos
que a escolha desta terminologia e o fato de se autoproclamar como
gays, lésbicas, bi, trans* ou queer não traduz uma exigência única e
necessariamente compartilhada por todos os sujeitos da dissidência
sexual nos contextos africanos. Nem uma tal postura é acompanhada pela
incorporação das principais normas e padrões da vivência homossexual
no mundo ocidental.
É nesse sentido que muitxs dos autorxs do Reader apontam para
a necessidade de criar políticas transversais e interseccionais de luta
contra diferentes sistemas de dominação e de opressão, homofobia
e heterossexualidade obrigatória, mas também as novas faces do
colonialismo, do racismo e as lógicas neoliberais que sempre vêm
acompanhar as intervenções ocidentais no Sul Global.
A partir da perspectiva de uma universidade como a UNILAB,
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Basileira, voltada para a discussão e valorização das culturas africanas
e afro-diaspóricas, este projeto se revela de grande importância para a
descolonização das mentes e dos corpos. A leitura e a compreensão das
discussões travadas no Queer African Reader nos permitem enxergar que
as sexualidades e os gêneros dissidentes fazem, sim, parte das culturas
africanas, e não constituem identidades simplesmente importadas pelo
Ocidente colonial. Neste sentido, a discussão de assuntos e de pautas
feministas, na África e no próprio terreno da UNILAB, não constitui a
promoção de interesses contrários aos africanos ou às culturas africanas.
A maioria dxs autorxs do Reader testemunha a própria africanidade e a
necessidade de fazer acompanhar a luta em prol da libertação sexual da luta
contra o colonialismo, o neocolonialismo e a dominação das populações
africanas por interesses políticos e econômicos do mundo ocidental.
A apresentação do Queer African Reader contribui para desfazer
o argumento da suposta superioridade ocidental (Europa e Estados
Unidos) em matéria de gênero e de sexualidade, que alimenta, no
plano internacional, posturas femonacionalistas e homonacionalistas.
Contra estas posturas, argumentamos que não existem culturas ou
nações inteiramente sexistas, machistas e homofóbicas, em oposição a

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 13
culturas e nações totalmente privadas de tais preconceitos e formas de
violência. Cada cultura e cada nação são atravessadas por estas atitudes
preconceituosas, mas todas contêm movimentos que, corajosamente,
enfrentam estas violências e visam à realização de uma justiça social
interseccional. O Queer African Reader defende, assim, que as culturas
africanas são profundamente dinâmicas, maleáveis e intimamente
atravessadas por conflitos, o que as torna abertas para uma multiplicidade
de formas e vivências da sexualidade. Como afirma Keguro Macharia, a
propósito do Quênia,

estamos constantemente criando e recriando a nós mesmos e ao


Quênia através de nossa forma de afiliações e filiações íntimas. Nossas
vidas íntimas inovadoras oferecem paradigmas de como a cultura e o
patrimônio estão dinâmica e constantemente em evolução16.

No plano das relações internacionais, vale ainda a pena lembrar que o


Queer African Reader discute a espinhosa questão da retirada, por parte de
países ocidentais, das ajudas humanitárias, onde os direitos das minorias
sexuais não são respeitados. O caso do Malaui, discutido por Sibongile
Ndashe, por Jessie Kabwila e por Sokari Ekine e Hakima Abbas, ou o
caso de Uganda, mencionado por Sokari Ekine17, mostram a ineficácia
destas políticas baseadas nas estratégias das ajudas condicionadas ou na
aplicação de sanções, que acabam vulnerabilizando ainda mais as minorias
sexuais, apontadas como culpadas pelas instabilidades econômicas que
tais estratégias determinam.
Os exemplos trazidos por essxs autorxs nos remetem a como a
orientação neoliberal da economia política, dominante no mundo, se
estrutura, também, a partir dos seus projetos patriarcais e heteronormativos.
A questão das ajudas condicionadas explicita como o neoliberalismo,
como rationale econômica, política e social, projeta-se a partir de
práticas coloniais, racistas e sexistas. Como nos mostra Awino Okech,

16 MACHARIA, Keguro. Queer Kenya in law and policy. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari
(Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.
17 Cf. o texto “Narrativas contestadoras da África Queer” (2016), que mencionamos anteriormente.

14 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
na sua contribuição para o Queer African Reader, a heteronormatividade
estrutura não apenas as relações afetivas e sexuais no âmbito privado,
mas organiza como se dão as relações de poder no Estado, na família, na
economia. Conceber a heteronormatividade como vértebra da economia
política tem como ganho não apenas combater o neoliberalismo, mas
politizar, cada vez mais, as identidades sexuais dissidentes. Evidenciar
esses traços estruturantes, como nos mostra Okech, é necessário para
pensar as vias possíveis para uma ação política queer/feminista que seja
transformadora a partir de seus contextos particulares.
Existe uma grande atualidade do Queer African Reader e de muitos dos
debates políticos levantados para o atual contexto brasileiro. Pensamos,
em particular, na presença, em muitos países africanos, de uma poderosa
bancada evangélica, fomentada pelos Estados Unidos e outros países
ocidentais, que tem o poder de influenciar o curso da política local e,
sobretudo, de incentivar campanhas de ódio contra as minorias sexuais.
É assim que, neste contexto, o Ocidente joga o duplo jogo de suposto
modelo de liberdade sexual e de políticas gay-friendly, bem como de
apoiador de igrejas e cultos estrangeiros que agem, nos países africanos,
como os principais promotores da repressão contra os movimentos da
dissidência sexual e de gênero. Nesta direção vão os textos de David Kato
e de Gathoni Blessol. Esta última, em particular, denuncia abertamente as
lideranças religiosas, sobretudo evangélicas, de muitos países africanos,
por espalharem uma versão ocidentalizada da espiritualidade, “que é
baseada no que é masculino, branco e rico”18 e que, como tal, dificilmente
poderia encarnar uma suposta originalidade da cultura e da tradição
africanas.
Na introdução ao Reader, Sokari Ekine e Hakima Abbas retraçam a
gênese da coletânea e sua relação com a história do debate queer na África.
Elas apontam, em particular, para o processo por indecência e atos contra
a natureza, intentado, no Malaui, em 2010, contra Tiwonge Chimbalanga,
uma mulher trans, e seu companheiro, Steven Monjeza. A partir deste
fato desenvolveu-se uma acalorada discussão sobre a presença de sujeitos

18 BLESSOL, Gathoni. LGBTI-Queer struggles like other struggles in Africa. In: ABBAS, Hakima;
EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 15
LGBTIQ no Malaui, que se estendeu para a maioria dos outros países
da África de colonização inglesa. Ekine e Abbas analisam em detalhe os
discursos das diferentes partes que se posicionaram sobre o caso, como
os líderes locais, com sua violenta retórica homofóbica, a imprensa
internacional, os diplomatas de países ocidentais que ameaçaram retirar
as ajudas humanitárias, como retaliação ao não respeito aos direitos das
populações LGBT e a International Gay. Esta última, formada por um
conjunto de associações e ONGs LGBT internacionais, sediadas nos países
do Norte Global e guiadas por atitudes missionárias e pela pretensão de
salvar as populações LGBT locais, como se estas não possuíssem qualquer
capacidade organizativa e as próprias agendas, construídas a partir
das necessidades de países do Sul Global. As duas editoras do Queer
African Reader pretendem resgatar as vozes de intelectuais e militantes
queer do continente africano. Trata-se, assim, de “documentar não só a
resistência nas vidas e nas lutas diárias das comunidades queer da África”
e de “valorizar a complexidade da maneira com que a libertação queer é
enquadrada na África e pelos africanos”19. É por isso que o próprio termo
queer deve ser ressignificado no contexto das lutas plurais e interseccionais
que, além da dissidência sexual, visam a contestar o sistema patriarcal,
capitalista e neocolonial.
David Kato, autor do primeiro ensaio, foi um professor de escola
e militante pelos direitos LGBTIQ em Uganda, que foi assassinado
em janeiro de 2011. Ele entregou este texto, publicado no Queer
African Reader, um mês antes de ser morto. Neste breve artigo, David
Kato apresenta a situação de seu país, na época em que tramitava, no
parlamento ugandense, um projeto de lei contra a homossexualidade e
que inúmeras violências eram perpetradas contra pessoas gays e lésbicas.
Kato explica a proliferação da homofobia em Uganda, como “promoção
de um ódio continuado”20, a partir das antigas leis coloniais antissodomias
implementadas pelos ingleses, e da intervenção massiva, hoje em dia, de
igrejas evangélicas norte-americanas, cuja ingerência na política interna é

19 ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.
20 KATO, David. An essay. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader.
Dakar: Pambazuka Press, 2013.

16 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
muito poderosa. Desta forma, pode-se afirmar que, se a homofobia existe
em Uganda e em outros países do continente, ela não é necessariamente,
nem originariamente, um fenômeno africano ou intrínseco às culturas
locais.
Awino Okech é militante e acadêmica do Quênia, atualmente
pesquisadora na SOAS University of London, onde seu trabalho versa
sobre as relações entre gênero, sexualidades e estados/nações no contexto
de sociedades que experimentam ou experimentaram situações de conflito.
No capítulo intitulado “Sobre sororidade e solidariedade: tornando queer
os espaços do feminismo africano”, Okech busca refletir sobre os desafios,
conflitos e potencialidades do encontro entre movimento queer e espaços
feministas de ativismo, considerando especialmente o contexto africano.
A partir de uma reflexão sobre o papel dos movimentos sociais e de sua
capacidade de desafiar os poderes patriarcais, racistas e heteronormativos,
a autora busca interrogar alguns dos conceitos que fundamentaram
historicamente teoria e prática feministas, tais como a ideia de amizade,
sororidade e solidariedade. Ao revisitar os alicerces dos espaços feministas
autônomos, Okech busca refletir de que modo é preciso subverter alguns
desses cânones, de modo a constituir um campo movimentacional cada
vez mais construído e impactado pela contribuição prática e teórica dxs
sujeitxs queer.
Lyn Ossome é uma feminista e acadêmica queniana, cuja trajetória
intelectual e militante desenvolve-se em vários países africanos.
Atualmente está baseada no Institute for Social Research da Universidade
de Makerere, em Kampala (Uganda). O texto dela, aqui traduzido, faz
uma interessante análise da conjuntura política da África pós-colonial,
atravessada por novas tensões e anseios de reconhecimento por parte de
grupos marginalizados. O processo de democratização, no fim dos anos
1980, em vários países africanos, conferiu visibilidade para o movimento
queer no continente. Porém, nota Ossome, no momento em que o ativismo
LGBTIQ se expande e reivindica o reconhecimento dos seus direitos, o
ativismo pela justiça social e econômica e a análise em termos de classe
sofrem um recuo. A homofobia se espalha no continente, ao passo que
os fundamentalismos religiosos conseguem se aliar com o poder estatal
e o modelo neoliberal se impõe com as desigualdades de classe. Neste

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 17
momento, é necessário que as lutas queer afirmem explicitamente suas
intersecções com as questões raciais, de gênero e, particularmente, de
classe, e que integrem, em suas pautas, a justiça econômica e social. Trata-
se, desta forma, de desconstruir a ideia enraizada segundo a qual os grupos
queer representariam uma elite econômica e cultural, nas sociedades
africanas, vinculada aos interesses ocidentais. Tal ideia, defendida pelas
classes dominantes e pelo fundamentalismo religioso, impede a formação
de uma plataforma plural de lutas, assim como de políticas transversais
de solidariedade, capazes de unir os diferentes grupos marginalizados.
As políticas de identidade existentes em muitos contextos africanos
revelam-se insuficientes e mesmo violentas ao mobilizarem um só aspecto
identitário e ao excluírem outras dimensões, como a classe, a partir das
quais se pode construir novas alianças.
Ola Osaze é um homem trans da Nigéria, que mora e trabalha nos
Estados Unidos, onde é um dos organizadores do Black LGBTQIA+
Migrant Project (BLMP) e do Transgender Law Center. O texto que aqui
apresentamos parte da análise do caso de Caster Semenya, a atleta sul-
africana vencedora da medalha de ouro no Campeonato Mundial de
Atletismo de Berlim, em 2009. Como relata o texto de Osaze, a vitória
de Caster Semenya foi questionada e a atleta teve de se submeter a
testes de gênero para que fosse comprovada sua feminilidade. Segundo
destaca o autor, o caso de Caster Semenya, como o de Saartjie Baartman
(conhecida como a Venus de Hottentot), no passado, mostram o racismo-
sexismo do mundo ocidental em relação às mulheres africanas, mas
também o preconceito contra as pessoas africanas cujo gênero não está
em conformidade com as normas socialmente estabelecidas. Através
da análise deste caso, Ola Osaze mostra as profundas interligações nos
processos de racialização do gênero (e dos gêneros não binários) e a
gendrificação da raça.
O texto de Sibongile Ndashe apresenta uma contundente crítica
à narrativa única que apresenta a África como homogeneamente
caracterizada por uma homofobia obsessiva. Sibongile Ndashe é uma
advogada sul-africana e feminista, engajada na defesa dos direitos humanos
e na luta pela descriminalização da homossexualidade na África. A tese
de Ndashe é a de que a “história única da homofobia africana é perigosa”

18 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
para os militantes locais, cujas resistências e lutas são continuamente
invisibilizadas atrás da retórica da África unicamente dominada pela
violência homofóbica e pelo heterossexismo. Uma tal retórica fortalece a
presença de movimentos estrangeiros com suas mensagens salvacionistas,
que pretendem organizar e liderar os processos locais, impondo a agenda
ocidental. É preciso, então, construir ações conjuntas entre movimentos
locais, regionais e internacionais, deixando, porém, aos grupos locais, sua
plena autonomia na implementação das estratégias de luta.
O pequeno texto do Manifesto Queer Africano encarna, em
poucas linhas, a radicalidade do projeto Queer no continente africano,
reivindicando a necessidade de uma revolução africana anticolonial, em
prol da justiça social, de gênero, da justiça econômica, erótica e ambiental.
O texto de Bernedette Muthien, ativista sul-africana no campo
das questões de gênero, sexualidades e direitos humanos, chama nossa
atenção para a importância do híbrido, do fronteiriço, do que se encontra
no cruzamento (inbetween). Somente desta forma é possível questionar
o tentador chamado da pureza e das origens, no qual estão presentes os
germes das violências. Ela define sua identidade como fluida, dinâmica,
complexa, ou seja, como queer.

Enquanto o termo queer abraça todxs aquelxs que não são


heteronormatixos e inclui as fronteiras [inbetween] fluidas, o termo
‘lésbica’ não me inclui necessariamente porque eu me defino para além
dos binarismos, como fronteira e como fluida, dinâmica e variável.
Certas pessoas podem, talvez, me chamar de bissexual, mas este termo
também remete a uma noção de polaridade – de que eu sou ambos os
polos – quando de fato eu me desloco e mudo de posição, não em um
continuum estático e linear, mas ao longo de uma elipse infinitamente
espiralar que, não ironicamente, é oval, símbolo do poder reprodutivo
feminino21.

21 MUTHIEN, Bernedette. Queerying borders: an Afrikan activist perspective. In: ABBAS, Haki-
ma; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 19
Gathoni Blessol é queniana e ativista pelos direitos das populações
LGBTIQ no seu país, sendo que atualmente está sob ameaças de morte,
por conta de seus engajamentos. No texto aqui apresentado, a autora
afirma a importância do movimento queer africano tecer alianças com
outros movimentos africanos de lutas contra o capitalismo e as injustiças
sociais, econômicas e políticas. A luta LGBTIQ é uma das mais solitárias
na África, pois se encontra presa entre grupos extremistas religiosos
e fascistas, de um lado, e grupos liberais, de outro. Se os primeiros
querem impor uma visão moral, supostamente local, e pregam contra a
homossexualidade, os liberais defendem a universalidade das normas, são
patrocinados pelo “neocolonialismo cor-de-rosa” e animados pelo ideal
salvacionista. Escreve Gathoni Blessol a propósito desta segunda vertente:

Como em muitas outras lutas, o resultado deste ideal catastrófico foi o


crescimento de um ativismo e de organizações LGBTIQ motivadas por
financiadores que são guiados, de maneira visionária, pouco prática,
capitalista e mercantilizada – sobretudo, marginalizando as lutas, as
realidades, os conceitos e as soluções da base. Nossas organizações
LGBTIQ se tornaram, em grande parte, hierarquicamente estruturadas,
mandatadas pelos financiadores e limitadas no ativismo22.

Ou seja, esse processo acaba restringindo o pensamento e a prática


dos movimentos LGBTIQ àquilo que os órgãos financiadores indicam ou
exigem, perdendo o caráter interseccional de suas lutas. Ao contrário, os
movimentos LGBTIQ africanos devem tomar consciência de suas raízes
nas culturas africanas onde, antes da colonização, existiam formas de
relacionamentos homoafetivos e performances de gênero com valor de
ritual cultural ou religioso que podem inspirar e fortalecer os movimentos
atuais.
Keguro Macharia é um intelectual e acadêmico queniano, atualmente
vinculado à Universidade do Maryland (USA), onde trabalha, em
particular, sobre as intersecções entre estudos queer e estudos africanos.

22 BLESSOL, Gathoni. LGBTI-Queer struggles like other struggles in Africa. In: ABBAS, Hakima;
EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013.

20 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
O texto aqui apresentado faz um apanhado sobre a situação das minorias
sexuais no Quênia durante a primeira década do século XXI, a partir
da leitura de três acontecimentos importantes e interligados, como a
Lei sobre as Ofensas sexuais (2006), a Política Nacional sobre Cultura e
Herança (2009) e a nova Constituição (2010). Destes documentos, ressalta
a vontade de proteger a família heterossexual contra outras formas de
arranjos familiares e de relacionamentos afetivos que viriam comprometer
a unicidade do modelo familiar heterossexual e reprodutivo. Apesar
de a legislação queniana não se basear, primeiramente, na repressão e
criminalização da homossexualidade, a primazia aberta e insistentemente
conferida para a heterossexualidade torna impensáveis e mesmo
impossíveis os modos de vida queer.
Analisando a situação política do Malaui, Jessie Kabwila, docente
universitária, ativista feminista e defensora da liberdade acadêmica na
Universidade do Malaui, apresenta, no seu texto, os principais discursos
que dominam o debate sobre a homossexualidade, mostrando as raízes
coloniais que, ainda, o atravessam. Quem defende a legalização da
homossexualidade o faz, na maioria dos casos, em nome do discurso
universalista dos direitos humanos. De outro lado, as igrejas evangélicas
e os líderes tradicionais argumentam contra o caráter africano da
homossexualidade e rejeitam a possibilidade de sua legalização. A autora
contesta ambos os discursos e mostra que eles estão enraizados no
contexto do passado colonial africano e não expressam a autenticidade de
um posicionamento local. Assim, a

decisão de legalizar ou manter a homossexualidade ilegal, no Malaui,


precisa ser feita em termos locais e do Malaui. O Malaui pós-colonial
precisa ter essa conversa em termos descolonizados, que não sigam
o discurso prescritivo e colonizador dos direitos humanos, nem o
discurso essencialista da cultura malauiana que alimenta o discurso
colonial ocidental da religião organizada do Ocidente e do Oriente e
do elitismo de classe23.

23 KABWILA, Jessie. Seeing beyond colonial binaries: unpacking Malawi’s homosexuality dis-
course. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press,
2013.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 21
Em particular, segundo Kabwila, é preciso elaborar um discurso
malauiano sobre a legalização da homossexualidade, que não identifique
esta medida com uma forma de adesão à modernidade ocidental, como
um ‘presente’ que o Ocidente traria para uma África supostamente
atrasada, tradicionalista e pré-moderna. Os distintos países africanos
devem se apropriar da discussão sobre a homossexualidade, fazer com
que a preocupação com a vida e o respeito a sujeitos não normativos,
em termos de gênero e de sexualidade, não apareça mais como uma
ingerência ocidental ou como “um projeto imperial atual”24, mas possa se
traduzir em caminhos propriamente africanos da dissidência sexual.
Acreditamos, assim, que com estas traduções do Queer African
Reader seja possível fortalecer o diálogo Sul-Sul a partir da perspectiva
dos Estudos de Gênero, Feministas e Estudos sobre Sexualidades,
permitindo uma releitura descolonizada deste campo. Muitas questões,
contudo, ainda permanecem em aberto e precisam de um ulterior
aprofundamento, entre elas, a da escolha dxs autorxs do Reader de
utilizarem termos como ‘gay’, lésbica’, ‘bissexual’ ou ‘trans’, que remetem
à história ocidental das identidades sexuais e de gênero. Como soaria a
chamada ‘sopa de letrinhas’, se ao invés das categorias ocidentais, fossem
colocadas as expressões africanas que marcam a dissidência sexual e de
gênero, nos diferentes contextos deste continente?

24 HOAD, Neville. African Intimacies. Race, Homosexuality, and Globalization. Minnesota: Uni-
versity of Minnesota Press, 2007, p. XIII.

22 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
A proposta do Queer African Reader
Sokari Ekine
Hakima Abbas
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

A viagem desta coletânea começou em janeiro de 2010, em um


momento crítico na história queer africana. Uma mulher trans do Malaui,
Tiwonge Chimbalanga, de 20 anos, e seu companheiro homem, Steven
Monjeza, 26 anos, foram processados por crime de grave indecência e
por atos contra a natureza, puníveis com até 14 anos de aprisionamento
e trabalhos forçados. A mídia internacional e os grupos internacionais
de defensores dos direitos humanos, em frenesi, passaram informações
sobre violação de direitos gays na África. O presidente do Malaui, o
falecido Bingu waMutharika, uniu-se ao coro da violência transfóbica
e homofóbica. Embaixadas e diplomatas do Norte Global mobilizaram-
se, por sua vez, alimentados pela defesa de organizações de lésbicas,
bissexuais, gays, transgêneros e intersex (LGBTI) dos respectivos países
e demandaram a libertação dos dois “homens”, ameaçando a retirada de
ajuda, se os direitos humanos não fossem respeitados.
E, com isso, os pontos de discussões anteriormente silenciados
dentro do grupo cada vez maior de ativistas africanxs, pensadorxs,
artistas e de comunidades queer, passaram para o primeiro plano,
em uma deslumbrante exibição do que é o pântano das vidas LGBTI
no continente. Havia a invisibilização das identidades de gênero não
convencionais das vidas e dos seres trans*, ao insistirem em se referir a
Tiwonge como um gay, mesmo que ela afirmasse se identificar como uma
mulher. Existia a retórica violenta da homofobia populista, usada para
calar os dissidentes em toda a nação não somente por meio de uma elite
dominante formada pela alta classe política e econômica, mas também
assentada sobre o poder de uma religião importada. Havia o uso da
retórica da independência, que inclui a definição do que é africano e a
rejeição das imposições ocidentais, de forma a incentivar a violência do
africano contra o africano (aqueles que se identificam com as prescrições
dominantes em termos de sexualidade e de gênero, contra quem encarna

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 23
definições dissidentes de gênero e sexualidade), com a intenção de apagar
a não conformidade de gênero e as identidades não heterossexuais do
projeto nacional. Havia a Internacional Gay – defensorxs e associações
lésbicas e gays em nível internacional – que chegavam ao país com
pouco ou nenhum conhecimento do contexto para conduzir as questões,
mas com a convicção firme de que elxs estavam salvando as vítimas
perseguidas da barbárie brutal dos africanos, sem consultar os grupos
locais e repreendendo os líderes africanos por seu fracasso em abraçar a
ideologia liberal, acompanhada pelos direitos humanos e dos monopólios
econômicos neoliberais. Havia as embaixadas e os governos ocidentais
que flexionaram seus músculos para vir ao socorro da minoria perseguida,
enfatizando assim a continuidade da dependência colonial do continente
e reforçando dinâmicas de poder distorcidas entre o Norte e o Sul Globais.
Ao usar a retirada das ajudas humanitárias como uma alavanca para salvar
os LGBTI africanos, estes “parceiros do desenvolvimento internacional”
criaram uma onda de medo paradoxal frente a esta ameaça, apesar do
amplo reconhecimento de que as ajudas nunca serviram aos interesses das
populações africanas. Havia a África do Sul, à qual nos dirigimos com uma
ansiedade cheia de expectativas, por conta da nossa tendência a agarrar-
nos às memórias de um partido de libertação guiado por princípios,
esperando que o partido falasse com coragem, mas cujo longo silêncio
nos deixou cabisbaixos e envergonhados. Havia um dos nossos “líderes”
que tentou providenciar o perdão presidencial, mas ainda insistindo na
negação do pertencimento queer, com uma atitude de “quem sabe da
próxima vez”. Havia os corajosos habitantes do Malaui, oriundos de todas
as esferas da vida, que permaneceram em suas casas ou enfrentaram a
mídia nacional para denunciar a opressão infligida contra nós todxs e que
atingia diretamente a poucxs; malauianos que não conseguiram alcançar a
audiência internacional porque sua mensagem era demasiado complexa,
mas que tentaram avisar sua nação do iminente estrangulamento de
uma crescente regressão democrática; os mesmos malauianos que se
encontraram aprisionados e conduzidos a se esconderem, alguns meses
depois, quando o dissenso popular atingiu as estradas e as universidades.
Havia o movimento LGBTI do Malaui, cujas vozes não conseguiam
superar a cacofonia de interesses que falavam por, sobre e contra eles, e
cujas comunidades eram empurradas nas profundezas do medo. Havia

24 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
os africanos no mundo que se organizavam, olhavam uns para os outros,
procurando uma estratégia e apoio, e que não conseguiam abalar o
teatro do absurdo que se desenvolvia ao redor das vidas africanas. Mas,
próprio como o fenômeno de políticos medíocres, que procuram a cena
e a encontram na persecução fundamentalista de uma comunidade que
já estava com medo, parece espalhar-se no continente, por outro lado, a
resistência africana, que cresce, aprende e é fortalecida através de cada
batalha.
No intuito de dar voz a esta resistência e de perpetuar a história das
múltiplas identidades que encarnamos, nós duas, editoras, Sokari Ekine,
africana da Nigéria, e Hakima Abbas, uma africana do Egito, juntamos
nossas forças com um grupo de africanxs no mundo, para dar testemunho
do implacável poder das comunidades queer ao redor da África e sua
diáspora. O Queer African Reader reúne textos acadêmicos, análises
políticas, depoimentos de vida, conversações e trabalhos artísticos de
africanxs engajadxs na luta pela libertação LGBTIQ. O Queer African
Reader rompe com a homogeneização da África como continente
homofóbico, para evidenciar a complexidade das vidas e das experiências
LGBTIQ, com contribuições que exploram temas como identidade,
resistência, solidariedade, lavagem cor de rosa [pinkwashing], políticas
globais, intersecções de lutas, religião e cultura, comunidade, sexo e amor.
Conscientes da magnitude do que estamos propondo documentar
no Queer African Reader, sabíamos que não podíamos tentar fazer isso
sozinhas. Assim, levamos até o fim a ideia de suscitar discussões, a partir
das nossas numerosas comunidades e de nossos contribuintes potenciais,
sobre como documentar não só a resistência nas vidas e nas lutas
diárias das comunidades queer da África, mas também como valorizar
a complexidade da maneira com que a libertação queer é concebida
na África e pelos africanos. Nós esperamos também que o trabalho da
coletânea assegure que esta publicação tenha respondido às necessidades
do movimento queer africano, pelas discussões que abarca, em vez de ser
uma visão voyeurística para “outros” olhares. O que descobrimos, através
desse processo, e nas raízes da resistência queer na África, é a continuação
das lutas pela libertação africana e pela autodeterminação do indivíduo e
do coletivo.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 25
Usamos o termo queer aqui e no título para denotar um quadro
político mais do que uma identidade de gênero ou um comportamento
sexual. Usamos queer para sublinhar uma perspectiva que abraça a
pluralidade de gênero e sexual e que procura transformar, revisar e
revolucionar a ordem africana, mais do que assimilá-la em um contexto
hetero-patriarcal-capitalista opressivo. Queer é nossa posição dissidente,
mas o usamos, aqui, conscientes das limitações da terminologia em
relação com nossas realidades africanas neocoloniais. Xs autorxs, ao longo
deste volume, usam um conjunto de identificações para denotar gêneros e
sexualidades dissidentes. Como editoras, acreditamos que esta diversidade
proporciona o sabor com o qual tal coletânea está condimentada. É esta
vasta multiplicidade que abraçamos nas perspectivas, experiências, ideias
e estratégias apresentadas neste livro.
Na mesma medida em que, neste volume, queríamos fazer um
retrato completo do espectro do arco-íris negro, assim como dar voz às
tendências pró-queer e pró-feministas de um conjunto de africanxs que se
identificam em diferentes esferas sexuais e de gênero, reconhecemos que
existem várias lacunas no material aqui coletado. Por exemplo, a ausência
de textos submetidos pela África do Norte, assim como a ausência de
vozes das velhas gerações e as experiências que documentaram, produz
uma lacuna na tessitura que esta coletânea tenta registrar. Por isso tudo,
assumimos toda a responsabilidade e esperamos que este livro estimule
outrxs africanxs a retomar o desafio. Esperamos que outros possam
produzir mais e que isso possa não somente afirmar a existência da
dissidência política em termos de sexualidade e de gênero, na África, mas,
também, reforçar a reflexão e sublinhar a importante contribuição destas
vozes para a libertação de nosso continente.
Quanto ao aspecto financeiro para realizar esta coletânea, agradecemos
ao fato de que foi uma entidade financiadora feminista africana, Urgent
Action Found – Africa, a ser a primeira a apoiar este trabalho. Gostaríamos,
portanto, de agradecer a UAF-Africa pela ajuda generosa e pela confiança
no projeto em suas fases iniciais. O Queer African Reader tornou-se
também possível graça à ajuda generosa da Arcus Foundation, e nós
somos gratas, especialmente, à sua agente internacional de programas,
Carla Sutherland, por seu apoio à iniciativa ‘Fahamus’s Reclaim’, da qual

26 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
nasceu o Queer African Reader.
Poucos meses depois que começamos o processo que culminou, após
três anos, no Queer African Reader, David Kato, professor e importante
ativista LGBTI em Uganda, foi assassinado. Poucas semanas antes de seu
assassinato, David submeteu um artigo para nós, em consideração a este
volume. Incluímos o artigo de David em primeiro lugar na coletânea,
em memória de um militante abatido. Com humildade, dedicamos o
Queer African Reader para todxs xs sobreviventes e vítimas das múltiplas
opressões e para xs resistentes que lutam, a cada dia, com o corpo, com o
espírito e com a mente, para libertar a nós todxs. Nós xs saudamos!

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB)

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 27
Um ensaio
David Kato Kisule
Tradução Felipe Fernandes/GIR@/UFBA

David Kato Kisule submeteu esse curto ensaio às editoras do Queer


African Reader apenas um mês antes de seu assassinato, em 26 de janeiro
de 2011. David Kato foi professor e um proeminente ativista LGBTI
em Uganda, tendo trabalhado como advocacy na organização Sexual
Minorities Uganda (SMUG) [Minorias Sexuais de Uganda]. Algumas
semanas antes de sua morte, David ganhou um caso histórico contra um
jornal sensacionalista que publicou fotografias de 100 pessoas, incluindo a
dele mesmo, em um artigo que conclamava o enforcamento de lésbicas e
gays ugandenses. Esse ensaio é aqui publicado, com muitas poucas edições,
em memória de David Kato e todos aqueles que tombaram na luta pela
igualdade LGBTI.
Nesse país, é um absurdo que, ao mesmo tempo em que LGBTIs
se esforçam para liberar sua comunidade na conquista não de direitos
especiais, mas de direitos iguais como possuem quaisquer outras, está se
enfrentando um dilema. Com leis opressivas e leis contra a sodomia (que há
muito tempo foram revogadas em seus países de origem!), o investimento
massivo de grupos religiosos estrangeiros em comunidades africanas, a
recente propagação da homofobia que promove um ódio continuado e a
reprodução global do evangelicalismo estadunidense tornaram as coisas
piores para a sobrevivência da comunidade LGBTI nesses países.
Em nome da proteção da família tradicional, os evangélicos
recentemente incitaram a elaboração de um projeto de lei anti-
homossexualidade no parlamento ugandense – como um projeto de
lei privado, que afetará não apenas a comunidade LGBTI, mas, caso
aprovado, terá repercussão global para toda a comunidade.
Por isso, é necessária uma abordagem que confronte esse projeto de
lei como um problema universal com repercussões globais. Também é
necessário o uso de estratégias vigorosas e sem rodeios para falar sobre
esse projeto de lei não simplesmente como “expressão da homofobia”, mas

28 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
como incitador de um ódio contínuo e de violência. Há uma necessidade
premente de fomentar o debate sobre os sistemas globais que atualmente
agem na reprodução do autoritarismo homofóbico em todas as partes do
mundo.
Em Uganda, na medida em que a comunidade LGBTI se tornou mais
visível em sua demanda por inclusão nas estratégias governamentais
de saúde, na luta para enfrentar a disseminação do HIV, os legisladores
propuseram leis que criminalizam até mesmo o sexo consensual entre
pessoas do mesmo sexo com a pena de morte!
Isso incentivou muitas voltas ao armário e tornou muitas pessoas
vulneráveis ao açoite. Alguns foram presos, assediados, detidos e outros
morreram nesse processo. Muitos foram expulsos de lares, moradias,
escolas, e outros humilhados (através até mesmo de linchamentos e
estupros). Há, também, uma homofobia institucionalizada estimulada
por gestores de políticas públicas e os autores ficam sempre impunes!
Lésbicas são estupradas por membros da família e por outros, em nome
da cura do lesbianismo e, nesse processo, muitas se infectam com o HIV!
Tais alegações foram feitas primeiramente no Tribunal de Mbale,
onde Late Brian Pande e Wasukire Fred foram acusados por relação
sexual carnal contra a ordem da natureza e o cirurgião da polícia disse à
corte que:
Ele encontrou um deles sem DST, mas na segunda testagem foram
encontradas DST em ambos.
Ele encontrou um deles com um ferimento no ânus.
Ele descobriu que um deles branqueou o rosto.
Com esses dados, concluíram que os dois rapazes estavam fazendo
sexo juntos.
Em resposta, o magistrado perguntou pelas garantias para conceder
aos dois uma fiança judicial, ao que um proeminente advogado, no
tribunal, demandou ao magistrado para não conceder a fiança pois dentro
de uma semana toda a cidade de Mbale estaria cheia de homossexuais
e, então, os dois deveriam morrer na prisão! Não por acaso, Pande
morreu semanas depois de sair da prisão de Maluku, onde tínhamos sido

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 29
proibidos de vê-lo quando fomos visitá-lo. Contradizendo os relatórios
hospitalares, seu atestado de óbito informava que ele havia morrido de
meningite, doença que, no entanto, ainda não havia sido verificada pelos
médicos, o cirurgião policial disse, diante de um corpo bem nutrido, que
ele tinha morrido de anemia!
É estranho que, tendo acompanhado de perto o caso de Mbale sem
saber quem era Fred, ao perguntarmos por Fred como víamos na mídia,
fomos informados de que a pessoa que procurávamos era um homem,
mas que sempre vivera com a aparência de uma mulher! Podemos nos
perguntar que mal poderia ter feito uma pessoa que viveu na mesma
comunidade por mais de 30 anos! Apenas o estímulo ao ódio público
por fundamentalistas religiosos e gestores de políticas públicas pode ter
deesncadeado tal ódio!
Toda legislação criada sem a inclusão de comunidades marginalizadas
é antidemocrática – o projeto de lei em si mesmo é inconstitucional, uma
vez que advoga pela discriminação, não segue ou respeita os princípios
internacionais e não segue a lei ugandense.
Em geral, o estado e a situação são alarmantes e há uma grande
necessidade de lutar para impedir esse projeto de lei, o que é complicado,
pois qualquer membro da sociedade civil que contribui com essa luta é
tido como incitador da homossexualidade, a qual está em processo de
criminalização, de acordo com o último comunicado do Ministro de
Relações Internacionais!
Graças a todos os esforços, coragem e luta da comunidade LGBTI de
Uganda, ativistas, artistas, líderes religiosos, aliados e gestores de políticas
públicas em todo o país, África e mundo, a lei anti-homossexualidade de
Uganda não foi aprovada até o momento de escrita deste ensaio. Entretanto,
o perigo e a ameaça ainda crescem e mais e mais países em todo o
continente e continuam a ameaçar a criar legislação semelhante e incitam
a violência e a perseguição daqueles considerados como de sexualidades
não hteronormativas e com identidades de gênero transgressoras.

Tradução Felipe Bruno Martins Fernandes (GIRA/UFBA)

30 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
“Sobre sororidade e solidariedade”:
tornando queer os espaços feministas
africanos
Awino Okech
Tradução Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB

Esse capítulo busca examinar o espaço e lugar da organização


queer dentro dos “espaços feministas africanos mainstream”. Essa é uma
tarefa ambiciosa, dada a multiplicidade de espaços, atorxs e agendas.
As possibilidades de “espaços feministas mainstream” sugerem uma
multiplicidade de vanguarda, ou outros locais, que operam na periferia
do centro. Esse fato é, em si mesmo, uma posição que vale a pena ser
interrogada, mas não se enquadra no escopo deste capítulo. Meu objetivo
não é criticar locais específicos de construção dos movimentos feministas,
mas sim oferecer uma linha direta teórica, traçar disjunções e refletir
sobre possibilidades. Esse capítulo inicia uma conversa teórica que não
é de forma alguma concebida para ser abrangente ou representativa da
riqueza de experiências e literatura disponíveis.
Para minha análise nesse capítulo, eu me baseio na minha experiência
pessoal – leia-se aqui a minha participação em diversos espaços, alguns
nomeados como espaços ativistas feministas; outros, como locais
acadêmicos feministas, conversas com diversos atores com histórias
em diferentes formas de organização, algumas feministas, algumas
explicitamente nomeadas como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero,
Intersexo (LGBTI). Eu me baseio nessas conversas como locais nos quais
vários indivíduos identificados como mulheres, feministas, lésbicas,
pesquisadorxs têm lutado com o intuito de encontrar um espaço teórico,
dentro de espaços ativistas, para dar sentido à luta25 de viver e ocupar uma
das muitas identidades que xs torna vulneráveis não ​​ apenas a ataques

25 O termo luta é usado para se referir às tensões manifestadas em navegar por múltiplas identida-
des, algumas políticas, outras vistas como pessoais, algumas rotuladas como arriscadas e em con-
flito. Por exemplo, quando uma mulher gay ocupa um cargo público, mas a sua homossexualidade
não é uma questão política, o resultado é muitas vezes um silenciamento de sua identidade sexual

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 31
específicos do Estado, mas também a um isolamento particular entre
“irmãs”, onde a “segurança” é construída como um componente central
do espaço.
A acusação de homofobia26 dentro dos movimentos de mulheres27 ou
nos espaços feministas autônomos recentes em várias partes da África não
é nova. Essas acusações foram evidentes na pós 4ª Conferência Mundial de
Mulheres da ONU de Beijing, em 1995, na qual várias mulheres africanas
ativistas sinalizaram que a questão “sexual” não era uma prioridade para
as mulheres africanas28. Sexo e sexualidade só se tornaram prioridades na
medida em que impactaram saúde, mobilidade, emprego e herança (leia-
se direitos reprodutivos e violência contra as mulheres). Debates em torno
da autonomia corporal e integridade sexual continuam permanecendo
locais tênues referentes à legislação e ao ativismo em muitos países
africanos29. Isso pode ser visto no desenvolvimento do discurso público
e/ou na legislação sobre o aborto, os quais continuam a irritar órgãos de
formulação de políticas e do público igualmente30. Além disso, a ofensiva
da violência contra homens e mulheres que performam sua sexualidade
diferentemente – contra a normatividade heterossexual – também recriou
discursos sobre autonomia. Orientação sexual como um assunto de

ou de sua piblicização, transformando isso em uma questão política. Na maioria dos contextos
africanos, os dois não coexistem perfeitamente.
26 O termo poderia significar qualquer coisa, desde um “silêncio” sobre orientação sexual e hete-
ronormatividade no discurso ativista feminista até referências explícitas a um outro – “eles” – ou
a reticência em identificar abertamente e engajar-se nas lutas políticas LGBTI quando solicitadas.
No Quênia, por exemplo, a maioria dos lobbies “pró-aborto” ​​vieram de ginecologistas e não de
ativistas dos direitos das mulheres.
27 Não me aprofundo em uma discussão sobre a existência e a viabilidade do movimento de
mulheres. Esse tema foi habilmente discutido mais recentemente pela AWID, através de seu projeto
de pesquisa sobre construção do movimento (veja www.awid.org). Eu faço a distinção entre um
movimento de mulheres e espaços feministas com base em uma análise mais aprofundada neste
capítulo, que traça a divisão entre um movimento de mulheres que se baseia no feminismo como
sua ideologia organizadora e aqueles que se distanciam dele.
28 JOLLY, Susie. Queering development: exploring the links between same sex sexualities, gender
and development. Development, v. 8, n. 1, p. 78-88, 2000.
29 Ativistas dos direitos da mulher foram retardatárias nos debates “pró-aborto” e na negociação
com o Estado e em outros locais de poder como as igrejas, em que a escolha foi efetivamente
apagada.
30 KLUGMAN, Barbara; BUDLENDER, Debbie. Advocating for abortion access: eleven coun-
try studies. Women’s Health Project, University of Witwatersrand, 2002; Center for Reproductive
Rights. In Harm’s Way the Impact of Kenya’s Restrictive Abortion Law, CRR, New York, 2010.

32 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
advocacy é um assunto que tem sido citado como tendo o potencial de
desviar a luta, como se torna evidente quando são feitas escolhas sobre
quais questões ganham prioridade no âmbito público — como questões
políticas e, eu acrescento, ideológicas, dentro dos lobbies dos direitos das
mulheres31.
A organização distinta, que ocorre na maior parte da África entre
o trabalho LGBTI e os lobbies feministas/de direitos das mulheres,
é igualmente significativa, uma vez que o trabalho LGBTI se baseia
historicamente no repertório que chamarei, para os propósitos deste
capítulo, de teoria feminista. Jackson faz abaixo uma distinção útil, ao
notar que:

Queer e feminismo convergem na medida em que ambos questionam


a inevitabilidade e a naturalidade da heterossexualidade e ambos, pelo
menos até certo ponto, ligam a divisão binária entre o gênero com
aquela entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Para além
disso, eles diferem em ênfase. Os teóricos queer buscam desestabilizar
a heteronormatividade, mas estão relativamente despreocupados com
o que acontece nas relações heterossexuais. As feministas, porque estão
preocupadas com as maneiras pelas quais a heterossexualidade garante
a divisão de gênero e depende dela, estão muito mais interessadas na
institucionalização e na prática cotidiana das relações heterossexuais32.

Como resultado, escolhas foram feitas33 por indivíduos e organizações


em torno de qual identidade política colocar em primeiro plano, com
alguns argumentando que enquanto elxs mantêm uma forte conexão com
a teoria feminista, a ideologia e os espaços são centrais para o ímpeto
de seu trabalho ativista e sua identidade política lésbica é sustentada,

31 Eu tirei essa reflexão de conversas com mulheres queer que tiveram que negociar a menção de
direitos e escolhas sexuais, de modos significativos, em declarações e posicionamentos em confe-
rências. A inocência sobre a distração que a orientação sexual anunciava era oferecida porque a
identidade queer delas não era destacada como sendo política.
32 JACKSON, Stevi. The social complexity of heteronormativity: gender, sexuality and heterosex-
uality. In: HETERONORMATIVITY – A FRUITFUL CONCEPT?, Trondheim, 2005.
33 Eu tirei essa reflexão de conversas com ativistas da África subsaariana que trabalham com
organizações LGBTI ou são autoidentificadas como ativistas LGBTI ao contrário de ser mulheres
que são lésbicas.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 33
colocada em jogo, por causa do “silêncio”, falta de “solidariedade” e às
vezes “homofobia” dentro de espaços onde isso não deveria ser a norma –
espaços feministas e/ou o movimento de mulheres34.
Nesse capítulo, eu avalio se as ferramentas conceituais e ideológicas
que o feminismo oferece têm sido usadas de modo que não sejam nem
homogeneizantes nem essenciais dentro dos processos de construção do
movimento. Eu examino as abordagens conceituais que foram implantadas
na construção dos movimentos dentro de espaços feministas autônomos.
Ao fazê-lo, eu questiono o quão prontos eles estão para responder a um
crescente movimento queer35.
Isso é importante por três razões. A primeira é baseada na história
e aceitação do feminismo de um lado e a causa das mulheres do outro.
Onde feministas e o feminismo foram guetizados e rotulados de várias
maneiras, Adeleye Fayemi observa:

É muito difícil criar e sustentar espaços feministas em muitos


países africanos por várias razões. O feminismo é ainda muito
impopular e ameaçador. A palavra  ainda  evoca mulheres brancas
nuas e selvagens queimando seus sutiãs, imperialinsmo, dominação,
um enfraquecimento da cultura africana, etc. As feministas são
submetidas a ridicularizações e insultos e, em alguns casos, sofrem
ameaças de vida. Elas são chamadas de “frustradas”, “solteironas
deploráveis”, “castradoras”, “destruidoras de lares” e muitos outros
epítetos indignos36.

Algumas das respostas para desafiar essas qualificações foram


admitidamente reacionárias, ao invés de proativas. Enquanto elas foram

34 HAMES, Mary. The women’s movement and lesbian and gay struggles in South Africa. Feminist
Africa, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.agi.aca.za/sites/agi.ac.za/files/fa_2_standpoint_4.
pdf>. Acesso em: 30 nov. 2012; KRAAK, Gerald. Homosexuality and South African left: the ambi-
guities of exile. In: WISER, Johannesburg, 2002.
35 A palavra queer aqui é semelhante à interpretação de Jolly como constituindo uma rejeição da
distinção binária entre homo e heterossexual e, assim, uma conceituação das sexualidades como
não essenciais e transitórias. (JOLLY, Susie. Queering development: exploring the links between
same sex sexualities, gender and development. Development, v. 8, n. 1, p. 78-88, 2000).
36 ADELEYE-FAYEMI, Bisi. Creating and sustaining feminist space in Africa: local global chal-
lenges in the 21st century. In: 4th ANNUAL DAME NITA BARROW LECTURE, Toronto, 2000. p. 8.

34 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
úteis em perturbar a hegemonia epistemológica ocidental, o discurso
emergente, ao contrário, reincorporou o patriarcado e, especificamente,
suas raízes heteronormativas37. Isso também produziu um discurso no
feminismo africano que foi construído em oposição ao que foi visto como
sendo o que feminismo ocidental representava. Não necessariamente
evoluiu em novos discursos que se engajaram de maneira significativa
com as realidades contextuais da África. Ao contrário, tornou-se
culturalmente relativo. O resultado foi uma série de projetos destinados
a escavar narrativas e histórias para enfrentar as construções dominantes
da África e das “mulheres africanas”. O feminismo africano definido
dessa forma permanece em oposição e moldado por construções
imperiais e, reconhecidamente, por redefinições da África, e não evolui
organicamente38.
A segunda razão reconhece que as bolsas de estudo feministas
africanas, em particular, e as bolsas de estudo feministas, em geral, têm
sido amplamente indisponíveis para a maioria dxs estudantes africanxs
e cidadãxs interessadxs ​​em se engajar em análise de gênero, para além
do “gênero e desenvolvimento”, tornados populares pelas empresas
de desenvolvimento. Consequentemente, alguns dos imperativos
epistemológicos que eu localizo aqui em termos da sua centralidade em
desafiar a heteronormatividade permanecem subutilizados em espaços

37 O termo “heteronormatividade” é utilizado para referir-se às instituições, estruturas de en-


tendimento e orientações práticas que fazem a heterossexualidade parecer não somente coerente,
isto é, organizada como sexualidade, mas também privilegiada. (MIKELL, Gwendolyn. African
Feminism: The Politics of Survival in Sub-Saharan Africa. Philadephia: University of Pennsylvania
Press, 1997; OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. The Invention of Women: Making na African Sense of Western
Gender Discourse. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997; STEADY, Filmina Chiona.
The Black Woman Cross-Culturally. Cambridge: Schenkman, 1981).
38 Trabalhos acadêmicos mais recentes nessa arena produziram análises mais nuançadas (ver,
entre outros, BENNETT, Jane. Editorial: researching for life: paradigms and power. Feminist Af-
rica, v. 11, p. 1-12, 2008; LEWIS, Desiree. Editorial. Feminist Africa, n. 2, p. 1-7, 2003; MEKGWE,
Pinkie. Theorising African Feminism(s): the colonial question. QUEST: An African Journal of
Philosophy/Revue Africaine de Philospphie, n. 20, p. 11-22, 2008; MUPOTSA, Danai S.; MHISHI,
Lennon. This little rage of poetry: researching gender and sexuality. Feminist Africa, n. 11, p. 97-
107, 2008; PEREIRA, Charmaine. Interrogating norms: feminists theorising sexuality, gender and
heterosexuality. Development, v. 52, n. 1, p. 18-24, 2009; SALO, Elaine. Multiple targets, mixing
strategies: complicating feminist analysis of contemporary South African women’s movement. Fe-
minist Africa, n. 4, p. 64-71, 2005).

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 35
de construção do movimento. O mantra da necessidade de responder
a problemas reais e ser relevante para realidades vividas pelas mulheres
“na base” resultou na construção da epistemologia feminista, a qual é
inacessível e irrelevante para entender e responder às realidades vividas
pelas mulheres. Essa é uma tensão que, ainda que consistentemente
reconhecida, é dificilmente resolvida na prática.
A terceira razão considera o contexto atual, o qual é caracterizado
por massivas reversões de ganhos conceituais e de ativistas que o
feminismo ofereceu para entender as injustiças socioeconômicas e
políticas. A manipulação desenvolvimentista e despolitizada do gênero
como estrutura conceitual que deve moldar as intervenções que buscam
a transformação nas normas de gênero é frequentemente baseada em
princípios de igualdade que buscam a inclusão ao invés da transformação39.
Isso contribuiu, em parte, para canalizar energias para remobilizar uma
posição política que se centra no desmantelamento do patriarcado e em
seu poder associado tanto teoricamente, quanto na prática. A recuperação
de espaços autônomos onde tal reflexão possa ocorrer é um fator desse
contexto político mais amplo. Como, portanto, essas afirmações recentes
levaram a uma compreensão efetiva e renovada do patriarcado e a uma
desestabilização da heteronormatividade para responder à diversidade40
e à transformação das hierarquias de poder dentro e fora do movimento?

Pensando nos movimentos


O termo “movimento” se tornou tão corrente e vagamente usado no
atual discurso a ponto de quase se tornar desprovido de significado [...]
precisamos revisitar nossa definição de movimentos e ter clareza sobre
o que é e o que não é um movimento. Pois é um pouco preocupante o
quanto fenômenos diferentes são descritos como movimentos41.

39 Veja uma discussão mais completa sobre isso em Hassim (2004).


40 Eu uso o termo diversidade aqui para destacar binarismos existentes que atribuem alteridade a
desejos homoeróticos, por exemplo.
41 BATLIWALA, Srilatha. Grassrooots movements as transnational actors: implication of global
civil Society. Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organisations, v. 13, n. 4,
p. 393-410, 2002.

36 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
As preocupações de Batliwala refletem não apenas a imposição do
termo movimento enquanto qualquer atividade que reúna uma coalizão
de organizações, mas são também indicativas da crescente preocupação
com a ideia de construir movimentos populares através de intervenções
programáticas de organizações internacionais para o desenvolvimento. O
“desenvolvimentismo” da construção dos movimentos é uma tendência
crescente que merece alguma interrogação conceitual, particularmente na
medida em que esses processos, em toda a África, refletem ativamente a
noção de organização, sobre quais modelos de organização são críticos
para seus objetivos de justiça social e o lugar da ideologia nessas agendas42.
Movimentos sociais emergem como contestações populares da
legalidade da participação. Portanto, aspiram a redefinir e estender o
espaço e os limites das formas “aceitáveis” de engajamento político,
social e econômico na sociedade. Existe uma constante tensão entre a
“legalidade da participação”, como definida e regulada por instituições e
indivíduos poderosos, e os desejos populares da maioria da população,
cujo envolvimento com a governança de suas sociedades é limitado
pelas regras de participação. Na última década, essa tensão foi elevada
pela diminuição do espaço para participação cidadã, pelos governos e
instituições supraestatais, e apresentou maiores ameaças para o espaço
que os cidadãos têm para a ação autônoma.
Há uma série de teorias que informaram a análise em torno do
desenvolvimento dos movimentos sociais. Teóricxs da “mobilização
de recursos”, por exemplo, explicam a ação coletiva em termos de
oportunidades estruturais, liderança, redes ideológicas e organizacionais43.
Teóricxs dos “novos movimentos sociais” oferecem o conceito de
“identidades coletivas” como forma de examinar como as pessoas agem
em conjunto, frequentemente com o objetivo de alcançar um tipo novo,
distinto ou semiautônomo de presença e reconhecimento culturais.
Estudiosxs que escrevem desde a perspectiva dos “novos movimentos

42 Para uma discussão mais completa sobre isso, ver Batliwala (2002) e o projeto de pesquisa sobre
construção do movimento AWID e extensivos recursos sobre o objeto em www.awid.org.
43 McCLURG MUELLER, Carol; MORRIS, Aldon D. Frontiers in Social Movements Theory. New
Haven: Yale University Press, 1992. p. 12-16.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 37
sociais” estão interessadxs na construção, contestação e negociação das
identidades coletivas no processo de atividade política. Identidade coletiva
refere-se “à definição (frequentemente implícita) acordada de associação,
limites e atividades para o grupo”44. A existência de identidade coletiva,
assim como da noção de “consciência coletiva” ou “falsa consciência” é
difícil de comprovar. A própria natureza dos movimentos sociais significa
que a identidade coletiva é um “alvo em movimento”, com diferentes
definições dominando diferentes pontos da trajetória de um movimento.
Os anos 199045, em particular, assistiram a um avanço dos
movimentos, especialmente em países que enfrentaram a transição ou
passaram por processos de consolidação democrática, que levaram a uma
mudança em sua lógica, dinâmica e ênfase. De acordo com Alvarez46, uma
das mudanças significativas foi a modificação de uma postura antiestatal
para uma postura de negociação crítica em relação ao Estado e às arenas
internacionais formais. Isso também significou um deslocamento de um
tipo de autonomia defensiva e dinâmica de confronto para a lógica da
negociação.
Organizações não governamentais, consequentemente, passaram a
ser consideradas como o veículo de escolha – a fórmula mágica – para
fomentar estratégias de desenvolvimento47. A liberalização gradual do
ambiente político no qual movimentos sociais operaram e a introdução
do gênero no Estado, induzido em parte por alguns governos estaduais
controlados pela oposição no início até meados da década de 1990,
resultaram na necessidade de um número crescente de feministas
formalizarem suas organizações e desenvolverem maior expertise em
políticas48. Os termos dessa incorporação, muitas vezes, não foram

44 LARAÑA, Enrique; JOHNSTON, Hank; GUSFIELD, Joseph R. New Social Movements: From
Ideology to Identity. Philadelphia: Temple University Press, 1994. p. 15.
45 Um fator decorrente do fim da Guerra Fria.
46 ALVAREZ, Sonia E. Advocating feminism: the Latin American Feminist NGO boom. In: AN-
NUAL SCHOMBURG-MORENO LECTURE, Latin American Studies Program Mount Holyoke
College, 1998.
47 GRUHN, Isebill V. NGOs in partnership with UM: a new fix or a new problem for African
development?. Global Society, v. 11, n. 3, p. 325-337, 1997.
48 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new so-

38 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
inspirados no feminismo e contribuíram para um desvio em direção ao
discurso do “gênero”. Hassim observa que o impacto da institucionalização
dos interesses levou à criação de um conjunto de instituições especializadas
que levaram à “consideração do gênero fora do âmbito da política e dentro
da esfera técnica dos desafios da formulação de políticas”49. Isso suscitou
um conjunto peculiar de desafios, sendo fundamental entre eles o fato
de que o movimento das mulheres não constitui temas, interesses e
formas ideológicas autoevidentes. Hassim observa que “mulheres não se
mobilizam como mulheres ou simplesmente porque são mulheres”; em
outras palavras, mulher não é um sujeito estável para mobilização50.
Várixs teóricxs têm apontado que as tentativas de desagregar a
identidade de gênero são inúteis, já que os significados culturais de
“mulher” mudam em relação aos numerosos outros marcadores de
identidade e em diferentes contextos51.

A combinação de dificuldades teóricas e práticas de definir os interesses


do movimento e sua identidade política, por um lado, e a suspeita com
que o feminismo foi tratado ... afetaram a capacidade do movimento
de mulheres desenvolver uma identidade política relativamente
autônoma do poder ideológico do nacionalismo52.

cial movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004; SALO, Elaine.
Multiple targets, mixing strategies: complicating feminist analysis of contemporary South African
women’s movement. Feminist Africa, n. 4, p. 64-71, 2005.
49 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new social
movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004. p. 18.
50 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new social
movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004. p. 5.
51 BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Rout-
ledge, 1990; RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the political economy of sex. In: REIT-
ER, Rayna R. (Ed.). Towards an Anthropology of Women. New York: Monthly Review, 1975.
52 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new social
movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004. p. 7.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 39
Hassim, enquanto fala especificamente do contexto da África do
Sul, levanta um conjunto de preocupações conceituais e práticas que
enquadram abordagens sobre o desenvolvimento dos “movimentos de
mulheres”. Essas preocupações são encapsuladas na distinção que ela
faz entre objetivos inclusivos e transformadores dos movimentos. Os
primeiros estão preocupados com:

A inclusão no Estado de forma fragmentada e, muitas vezes,


despolitizada, procurando incluir as mulheres nos quadros de políticas
existentes, sem questionar se as orientações gerais dessas políticas são
apropriadas para as mulheres, ou como novas áreas de políticas ou de
legislação devem ser colocadas na agenda53.

Subjacente à abordagem inclusiva, de acordo com Hassim, está


o desejo de manter algumas condições mínimas de unidade entre as
mulheres por meio de uma relutância em interferir nas raízes estruturais
da desigualdade de gênero. Além disso, a influência das ideologias
liberais dentro deste projeto contribui para fomentar a percepção de que
o mercado e a família estão fora do âmbito da intervenção estatal54.
A abordagem transformativa, por outro lado, dá atenção para as
formas pelas quais o poder opera dentro e entre as esferas política, social
e econômica de sociedades específicas. Com efeito, é um projeto político
de transformação55.
Salo56 desafia a abordagem de Hassim como sendo dependente de
binarismos distintos (reformista ou transformador) e, portanto, falha
ao considerar a multiplicidade de espaços e desafios encontrados pelos

53 HASSIM, Shireen. Terms of engagement: South Africa challenges. Feminist Africa, n. 4, p. 10-
28, 2005.
54 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new social
movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004. p. 12.
55 HASSIM, Shireen. Terms of engagement: South Africa challenges. Feminist Africa, n. 4, p. 10-
28, 2005. p. 5.
56 SALO, Elaine. Multiple targets, mixing strategies: complicating feminist analysis of contempo-
rary South African women’s movement. Feminist Africa, n. 4, p. 64-71, 2005.

40 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
movimentos emergentes e existentes de mulheres. Salo argumenta,
portanto, que os objetivos reformistas e transformadores não são
mutuamente excludentes. Ambos argumentos de Hassim57 e Salo58
apontam para a complexidade inerente à mobilização de qualquer
tipo, e sobretudo, aquela nomeada como feminista. Salo59 e Hassim60
apontam para a importância de examinar como as pessoas passam a
ocupar movimentos e os significados ligados a espaços particulares. O
que me interessa é a tensão entre mobilização e o valor ligado a como os
espaços são ocupados, particularmente, as maneiras com que os espaços
feministas na África têm procurado se articular, ideologicamente, em
torno da política queer em geral e dos movimentos especificamente.

Construindo espaços feministas


Esse espaço [o movimento feminista] é formado por nossas amizades,
redes, nossos laços, organizações e nossas energias feministas
individuais e coletivas. Esse é o espaço que usamos para mobilizar
em torno de nossos princípios feministas, onde aprimoramos nossas
habilidades analíticas e onde buscamos (e às vezes encontramos)
respostas para as nossas muitas perguntas. A crença de que esse
espaço é necessário para tornar nossa vida melhor e mais fácil. Isso se
manifesta em nossos processos de autodescoberta, nossas esperanças,
nossos sonhos, nossas aspirações, nosso anseio por mais conhecimento
e revelações61.

O AFF (Fórum Africano de Feministas) foi projetado como um


meio para compartilhar o pensamento feminista africano e a
prática, fornecendo “espaços seguros” para a reflexão crítica sobre o
progresso pessoal e coletivo, e um trampolim para a ação. As pessoas

57 HASSIM, Shireen. Voices, hierarchies and spaces: reconfiguring the women’s movement in
Democratic South Africa. Part of Research Project Globalisation, Marginalisation and new social
movements in post-apartheid South Africa, University of KwaZulu Natal, 2004.
58 SALO, Elaine. Multiple targets, mixing strategies: complicating feminist analysis of contempo-
rary South African women’s movement. Feminist Africa, n. 4, p. 64-71, 2005.
59 Idem.
60 Idem.
61 ADELEYE-FAYEMI, Bisi. Creating and sustaining feminist space in Africa: local global chal-
lenges in the 21st century. In: 4th ANNUAL DAME NITA BARROW LECTURE, Toronto, 2000. p. 6.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 41
participam do fórum regional e de suas iniciativas irmãs a partir da sua
capacidade pessoal. Essa foi uma estratégia intencional para permitir
que indivíduos compartilhem e ampliem suas crenças e compromissos
ativistas além das limitações de suas posições ou papéis institucionais62.

A posição ideológica da Campanha “1 em 9”63 reflete o princípio


básico do feminismo de que o pessoal é político. Reconhecendo essa
verdade fundamental, a campanha reconhece que, para erradicar a
violência sexual contra as mulheres, deve combater ativamente todas
as formas de opressão, incluindo, mas não só, o racismo e o classismo,
pois todas elas impactam o acesso das mulheres à igualdade e justiça.
A campanha reconhece que várias formas de opressão, incluindo, mas
não limitadas ao sexismo, racismo, classismo e homofobia, convergem
para negar às mulheres o acesso à igualdade e à justiça. A campanha
incorporará essa consciência em sua política e prática de tal forma que
moldará a maneira pela qual entendemos e respondemos à violência
sexual contra as mulheres64.

Os trechos acima foram extraídos de três textos que refletem


amplamente a trajetória de diferentes processos de construção de
movimentos. Todos eles o fazem desde uma base conceitual/teórica,
pensando nos contextos e estímulos que levaram a decisões específicas
sobre como os espaços feministas seriam construídos. Adeleye-Fayemi65
discute o significado de se construir um movimento feminista na África
e as prioridades de tal espaço. Em seu artigo, ela analisa o amplo espectro
de desafios, tanto epistemológicos e metodológicos, e procura reunir as

62 HORN, Jessica. Feeding freedom’s hunger: reflections on the second Feminist Forum. Feminist
Africa, n. 11, p. 121-126, 2008. p. 122.
63 [NT]: A campanha “1 de 9” foi feita por organizações feministas de combate à violência de gê-
nero da África do Sul, contra a forte deslegitimação de Khwezi, a mulher sul-africana que acusou o
presidente Zuma de estupro. O termo faz referência aos dados do Conselho de Pesquisa Médica da
África do Sul que indica que apenas uma de cada nove sobreviventes de estupro denuncia o crime
na polícia (BENNETT, Jane. Challenges Were Many: The One in Nine Campaign, South Africa.
Association for Women’s Rights in Development (AWID, 2008). Disponível em <https://www.awid.
org/sites/default/files/atoms/files/changing_their_world_-_the_one_in_nine_campaign_south_
africa.pdf> Acesso em 11 jun. 2018.
64 ONE in Nine Campaign. Termes of reference, [s.d.]. Disponível em: <http://www.oneinnine.
org.za/23.page>. Acesso em: 27 dez. 2012.
65 ADELEYE-FAYEMI, Bisi. Creating and sustaining feminist space in Africa: local global chal-
lenges in the 21st century. In: 4th ANNUAL DAME NITA BARROW LECTURE, Toronto, 2000.

42 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
diversas energias, principalmente organizacionais, que contribuíram
para a construção de um movimento de mulheres em toda a África. Ela
enfatiza o trabalho de lobby e advocacy conduzido pelas organizações de
direitos das mulheres e os ganhos delas. Ela também assume uma postura
crítica sobre os feminismos transnacionais conceituados através de um
exame da noção de “sororidade” global. Adeleye-Fayemi66 considera as
hegemonias intelectuais e financeiras ocidentais e como estas, por sua vez,
levaram à necessidade de desenvolver o “feminismo local”. As questões
de identidade de classe, etnia, raça e gênero não surgem como desafios
centrais na sustentação de um movimento feminista africano.
Horn, em seu texto, oito anos depois, reflete sobre a criação e
deliberação dentro do segundo Fórum Feminista Africano (o AFF é
um espaço feminista autônomo para indivíduos autoidentificados como
feministas)67. Ela examina o ethos como também os princípios-guia
para inclusão nesse espaço. Ela também destaca, ainda que brevemente,
tensões discursivas que emergem em um espaço dessa natureza que reúne
diversos grupos de mulheres; estes, em grande parte, giram em torno da
sexualidade, das questões do aborto às da orientação sexual.
O terceiro texto, derivado da Campanha 1 em 9, é representativo de
uma tentativa ousada de desafiar o Estado (sul-africano) por meio de um
agrupamento deliberado de organizações (embora indivíduos possam ter
liderado o trabalho) para oferecer solidariedade à denunciante (Kwezi)
durante o julgamento de violação de Jacob Zuma68. A base ideológica
do trabalho da campanha, sua interpretação e seus termos de referência
mais amplos são evidentes no excerto. A Campanha 1 em 9 também se
diferencia – dada a natureza “esporádica” de sua evolução exigida pelo
caso e o fato de reunir organizações e indivíduos ao mesmo tempo em

66 ADELEYE-FAYEMI, Bisi. Creating and sustaining feminist space in Africa: local global chal-
lenges in the 21st century. In: 4th ANNUAL DAME NITA BARROW LECTURE, Toronto, 2000.
67 Enquanto Horn, em sua obra, é cuidadosx em seu uso da linguagem que não especifica gênero
através da palavra “pessoas”, o espaço tem como alvo pessoas que se identificam como mulheres,
tanto biologicamente quanto em performance, no sentido de que, mesmo se fossem lésbicas, elas
se identificam como mulheres lésbicas, ao invés de homens lésbicos.
68 Em 2005, o então vice-presidente da África do Sul, Jacob Zuma, foi acusado de estupro por
Kwezi. Ele foi posteriormente absolvido de todas as acusações. A formação da campanha 1 em 9
foi estimulada por este caso.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 43
que cria espaço para trabalhar com aliadxs – mantendo a clareza sobre
o lugar da liderança e voz feminina na campanha (ver www.oneinnine.
org.za). Eu penso que a Campanha 1 em 9 representa, na medida do
possível, um afastamento da inclusão e transformação binária por um
lado, buscando engajar-se conscientemente na falsidade do gênero como
uma identidade fixa da qual a organização pode brotar e, por outro lado,
reconhecendo abertamente a realidade da homofobia como uma forma
de violência contra mulheres e confrontando-a como uma das opressões
interseccionais.
Eu selecionei esses três trechos não porque eles são representativos
de uma tendência, mas porque eles oferecem, para o propósito desse
capítulo, uma narrativa que define tanto a evolução quanto a continuidade
dos processos de construção e sustentação dos movimentos feministas.
Dois são pan-africanos em orientação e um nacional com aspirações sub-
regionais. Todos os textos, quando lidos na íntegra, aludem aos imperativos
teóricos que moldaram a evolução de cada espaço ou onde foram
desenvolvidas as ideias que moldaram espaços como o AFF69. Eu faço uso
especificamente dos conceitos de amizade, sororidade e solidariedade para
analisar as maneiras pelas quais eles foram conceitualmente empregados
na organização de espaços feministas e/ou na mobilização de diversxs
atorxs. Apoio-me nos estudos feministas europeus e americanos no
restante deste capítulo por duas razões principais. A primeira é informada
pela longa história de organização queer e subsequente teorização nesses
contextos. Em segundo lugar, embora os contextos possam diferir, essxs
acadêmicxs, em momentos diferentes, se envolveram no mesmo conjunto
de questões políticas abordadas nesse capítulo, além de serem relevantes
para o momento atual na África.

Teorizando amizades
Amizade foi/é vista como solidariedade política; como constitutiva dos
movimentos feministas e base da identidade coletiva. É vista como um

69 A contribuição de Adeleye-Fayemi para um número de iniciativas de construção de movimen-


tos feministas africanos pode ser colhida de seu texto.

44 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
modo de apoio pessoal, intimidade e cuidado, sendo assim produtor
de identidade própria70.

O cerne da teoria do feminismo da segunda onda era a crença de que


a solidariedade entre as mulheres era vital. Ao contrário da posição de
Beauvoir71 em torno das dificuldades inerentes às mulheres transcenderem
para amizades verdadeiras, a ênfase na amizade das mulheres baseada nos
princípios da igualdade e não da desigualdade, evidente nas estruturas
heteronormativas patriarcais, foi enfatizada por Adrienne Rich72 e Mary
Daly73. “A amizade demonstrava oferecer ao feminismo um foco nos
aspectos agenciadores, não-institucionais, emocionais e prazerosos da
vida social”74. Isso sugeriu uma visão de mundo teórica diferente de uma
que atendia principalmente às estruturas de opressão de gênero, às arenas
institucionais pelas quais a dominação e a subordinação são reproduzidas:

A afiliação e a preferência homorrelacionais dos homens historicamente


fundamentaram os Estados-nação, mas a amizade é de maneira
característica e distintamente não regulada, voluntária e dirigida
pela busca do prazer. Ela contrasta com as relações pessoais formais,
legalmente regulamentadas e institucionalizadas entre marido e

70 ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 324.
71 BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. New York: H. M. Parhley, 1968.
72 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: ____. Blood, Bread,
and Poetry. New York: Norton Paperback, 1994 [1980]).
73 DALY, Mary. Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism. Boston: Beacon Press, 1978.
74 Roseneil é privilegiada aqui pela extensa análise que ela oferece sobre as teorias da amizade ba-
seadas na história da análise feminista em torno do movimento sufragista britânico, entre outros.
A literatura teórica sobre mulheres e amizades, infelizmente, permanece limitada a um contexto
do Norte (ver também: ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists
futures. In: DAVIS, Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Wom-
en’s Studies. London: Sage, 2006. p. 323; ROSENEIL, Sasha. Disarming Patriarchy: Feminism and
Political Action at Greenham. Milton Keynes: Open University Press, 1995; ROSENEIL, Sasha.
Common Women, Uncommon Practices: The Queer Feminisms of Greenham. London: Continuum
International Publishing Group, 2000; ROSENEIL, Sasha. The heterossexual/homossexual binary:
past, present and future. In: RICHARDSON, Diane; SEIDMAN, Steven (Ed.). The lesbian and gay
studies Handbook. London: Sage, 2002.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 45
mulher, pais e filhos e o Estado75.

Foi dada importância à amizade pelas gerações anteriores de


feministas e se tornou a raiz ou base do feminismo como parte inerente e
fundamental da construção do movimento feminista76. A lente da amizade
possibilitou um desafio à heteronormatividade e exigiu que se prestasse
atenção à transformação radical da organização da vida íntima77. Xs
estudiosxs, ao analisarem a importância das amizades para o movimento
sufragista, argumentam que elas se tornaram parte importante do discurso
do sufrágio porque diferem da noção de camaradagem, que serviu como
discurso mobilizador no movimento socialista masculino dominante78.
Os atributos positivos das amizades das mulheres foram patologizados;
um amor apaixonado pela amiga passou a sinalizar uma identidade sexual
desviante. Esse desvio descritivo poderia estar associado à possibilidade
de maior independência econômica dos homens e à identificação do
patriarcado como uma tentativa de reinar nos laços heterossexuais79.
O surgimento de feminismos lésbicos marcantes levou ao
questionamento das amizades entre pessoas do mesmo sexo e se elas
poderiam ser lidas como eróticas. Smith-Rosenberg80 sugere que algumas
dessas relações amorosas existiam em todos os sentidos, exceto o genital.
Ela argumenta:

75 ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 323.
76 Idem.
77 Idem.
78 ROSENEIL, Sasha. The heterossexual/homossexual binary: past, present and future. In: RICH-
ARDSON, Diane; SEIDMAN, Steven (Ed.). The lesbian and gay studies Handbook. London: Sage,
2002; ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 327.
79 ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 327.
80 SMITH-ROSENBERG, Carroll. The female world of love and ritual: relations between women
in nineteenth-century America. Signs, v. 1, n. 1, p. 1-29, 1975.

46 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
A questão essencial não é se essas mulheres tinham contato genital e,
portanto, podiam ser definidas como heterossexuais ou homossexuais.
A tendência do século XX de ver o amor humano e a sexualidade dentro
de um universo dicotomizado de desvio e normalidade, genitalidade
e amor platônico é estranha às emoções e atitudes do século XIX e
distorce fundamentalmente a natureza da interação emocional dessas
mulheres. Essas cartas são significativas porque nos forçam a colocar
esse amor feminino em um contexto histórico particular. Há todos
os indícios de que essas quatro mulheres, seus maridos e famílias –
todas eminentemente respeitáveis ​​ e socialmente conservadoras –
consideravam tal amor socialmente aceitável e totalmente compatível
com o casamento heterossexual. Emocional e cognitivamente, seus
mundos heterossocial e homossocial eram complementares81.

Rich82 desenvolve essa análise através de seu trabalho sobre histórias


lésbicas desde sua proposta de um continuum lésbico. Rich83 argumentou
sobre uma visão das amizades entre pessoas do mesmo sexo como falha
dentro desse continuum e, portanto, evidência de “amantes do mesmo
sexo”. Ela desafiou definições clínicas de lésbicas, argumentando por um
movimento além da real experiência sexual genital.
Sugiro que a abordagem analítica adotada tanto por Rich84 quanto
por Smith-Rosenberg85, embora de maneira diferente, se baseia em
construções dominantes das mulheres como desprovidas de paixão, com
ênfase dessas relações ou namoros como assexuais. O apagamento da
sexualidade como chave para a identidade lésbica bem como a negação da
especificidade da vida e história lésbicas foram levantadas em várias críticas

81 SMITH-ROSENBERG, Carroll. The female world of love and ritual: relations between women
in nineteenth-century America. Signs, v. 1, n. 1, p. 1-29, 1975.
82 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. Blood, Bread, and Poetry.
New York: Norton Paperback, 1994 [1980]).
83 Idem, p. 51-53.
84 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: ____. Blood, Bread,
and Poetry. New York: Norton Paperback, 1994 [1980]).
85 SMITH-ROSENBERG, Carroll. The female world of love and ritual: relations between women
in nineteenth-century America. Signs, v. 1, n. 1, p. 1-29, 1975.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 47
ao seu trabalho86. Eu argumento que o continuum que Rich87 e Smith-
Rosenberg88 sugerem é aquele que permeia o discurso ativista vigente e é
manifesto na construção das amizades das mulheres – os fundamentos da
camaradagem entre “irmãs” – como centrais para os espaços feministas
autônomos convencionais. A ênfase no indivíduo, na segurança e no
rejuvenescimento como elementos críticos para a criação e promoção
de espaços autônomos é fundamental nesse sentido. Consequentemente,
as relações do mesmo sexo entre mulheres estão situadas como parte
de um continuum heteronormativo e não como performances distintas
de “outras” sexualidades. O apagamento da sexualidade como parte das
amizades das mulheres, por um lado, e a confluência das amizades das
mulheres com as sexualidades lésbicas, por outro, levanta um conjunto
de desafios na conceituação das identidades queer e como a solidariedade
entre os movimentos é, por sua vez, oferecida.

Construindo solidariedade

A evolução em direção à adoção da solidariedade em oposição à


“sororidade” baseou-se em uma crítica que ressaltou a ausência de raça
e classe como categorias analíticas através de linhas de construção de
movimentos89. O conceito de “solidariedade” foi abordado como sendo
estrategicamente mais poderoso. Estudiosas como hooks90 e Mohanty91
argumentaram que a solidariedade não se baseava na suposição de
uniformidade da opressão e permitia uma diferenciação maior (por

86 ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy; EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 330.
87 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: _____. Blood, Bread,
and Poetry. New York: Norton Paperback, 1994 [1980]).
88 SMITH-ROSENBERG, Carroll. The female world of love and ritual: relations between women
in nineteenth-century America. Signs, v. 1, n. 1, p. 1-29, 1975.
89 hooks, bell. Feminist Theory from Margin to Center. Boston: South and Press, 1984; MOHAN-
TY, Chandra. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidarity. Chapel Hill:
Duke University, 2003.
90 hooks, bell. Feminist Theory from Margin to Center. Boston: South and Press, 1984. p. 59.
91 MOHANTY, Chandra. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidarity.
Chapel Hill: Duke University, 2003.

48 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
exemplo, no que diz respeito à classe e à etnia) das raízes da opressão.
O laço interno que levaria naturalmente à solidariedade não era um
fenômeno estável e pré-dado, como elas sustentaram, mas deveria ser
construído em lutas políticas práticas.
No entanto, a “solidariedade”, como é usada hoje, reivindica se apoiar
em fundamentos incondicionados. Uma abordagem essencialista da
solidariedade sugere que os relacionamentos são uma manifestação de
algo autêntico; uma perspectiva fundacionalista sustenta que as mulheres
devem sentir solidariedade por causa do vínculo profundo entre as
mulheres92. Entendida como tal, a solidariedade cria um sujeito pré-
discursivo, mas, acima de tudo, é uma precondição para a ação. Em outras
palavras, um grupo tem que sentir solidariedade antes de poder agir com
sucesso. Eu argumento que, embora útil, o modo como a solidariedade e a
sororidade são empregadas é limitador na promoção de uma política que
desafia o patriarcado de maneiras significativas.
Há duas maneiras distintas pelas quais é construída a solidariedade
em torno da crise de violência dirigida a pessoas identificadas como gays
e lésbicas. A primeira é conduzida dentro de uma estrutura de direitos
humanos que lida com ela baseando-se puramente em um amplo espectro
de direitos que, se revogado por um Estado desonesto, torna os requerentes
impotentes. O segundo conjunto de respostas diz respeito àquelas que
estão dispostas a confrontar as possibilidades dessas relações como parte
de um continuum heterossexual, como uma área onde historicamente as
amizades das mulheres sempre “se desviaram” mas não permaneceram,
onde o erótico atua como um mecanismo para lidar com as “limitações”
dos vínculos primários do relacionamento heterossexual no casamento
e na família, invisibilizando e/ou “compreendendo” simultaneamente,
dessa forma, as relações lésbicas como extensões de laços femininos
heterossexuais.
A amizade das mulheres é reconhecida por sua capacidade de desafiar
a heterorrealidade – uma realidade que não depende dos homens. Isso
se baseia no discurso da sororidade dos anos 70, em que laços eletivos

92 Idem.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 49
de amizade entre mulheres provaram ser vitais para sustentar as
comunidades feministas. A desestabilização que essas amizades causaram
em termos de discurso ocorreu visando a um afastamento de um quadro
heterorrelacional. Ao contrário de desvalorizá-las, tal desestabilização
dava primazia àqueles vínculos, que não eram vistos como frívolos; e isso,
em si mesmo, era transgressivo e radical. Mostrou que o cuidado e o apoio
poderiam ocorrer fora da família, dentro dos espaços onde amizades e
solidariedades são forjadas93. Não obstante, resultou na fusão desse
discurso com a sexualidade lésbica e a organização política relacionada.
As amizades homorrelacionais (entre as mulheres), que têm sido
progressivamente percebidas como um imperativo para a construção e
sustentação dos movimentos feministas, ocorrem dentro dos confins de
uma estrutura heteronormativa, onde os espaços feministas proporcionam
um alívio das restrições do casamento e de estruturas heterorrelacionais
como Estado, universidade, religião que as ativistas enfrentam
cotidianamente. A heteronormatividade permanece subproblematizada e
as amizades homorrelacionais desenvolvidas nesses espaços como parte
da solidariedade permanecem no nível de apoio e não se movem para
desestabilizar a heteronormatividade, a partir da qual o indulto é buscado.
Os binarismos do homem-mulher, a heterossexualidade como orientação
sexual e não como um princípio organizacional para o trabalho, a
economia e o poder, moldam a análise do Estado, da economia e da
transformação imaginada.
Essa abordagem, como o continuum lésbico de Adrienne Rich94,
descentra a identidade sexual e subestima a centralidade da sexualidade
como núcleo das relações lésbicas, deixando intactas a heterossexualidade
e a heteronormatividade como estruturas analíticas e organizadoras.
Um exame superficial das respostas feministas destinadas a combater
e/ou interrogar a tirania estatal contra as sexualidades desviantes vê as
respostas do Estado como táticas divisionárias que visam a nos afastar

93 ROSENEIL, Sasha. Foregrounding friendship: feminists pasts, feminists futures. In: DAVIS,
Kathy, EVANS, Mary; LORBER, Judith (Ed.). Handbook of Gender and Women’s Studies. London:
Sage, 2006. p. 331.
94 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: ____. Blood, Bread,
and Poetry. New York: Norton Paperback, 1994 [1980]).

50 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
de preocupações urgentes de democratização de Estados recalcitrantes e
autocráticos, por um lado, ou como assuntos privados que deveriam não
ser “regulamentados” por outro95. A eficácia de tal argumento em silenciar
os detratores não pode ser subestimada, mas sua limitação é gritante por
três razões principais.
A primeira é que desmantela o ditado feminista do pessoal é político
assim como as análises que procuraram desmantelar a dicotomia público/
privado. Faz isso situando a relação de pessoas do mesmo sexo dentro
do domínio privado e como um espaço que não deveria ser regulado.
Isso está em nítida contradição com as teorias e experiências de violência
doméstica, um dos espaços mais bem-sucedidos do ativismo feminista
em todo o mundo. Em segundo lugar, limita o “desempenho” dessas
relações ao domínio “privado” e não ao domínio “público” por meio
de uma abordagem “não pergunte, não diga”. Finalmente, essas análises
subproblematizam a heterossexualidade – seu papel na organização
da família, do trabalho e da economia, sua função em institucionalizar
a heteronormatividade e, através disso, “arranjar” um Estado “secular
aceitável”. A desestabilização que as sexualidades de pessoas do mesmo
sexo prenunciam – em um contexto em que o Estado, a igreja e o governo
confiam nas amizades masculinas homorrelacionais como base para
contratos sociais do Estado-nação – exige uma contrarresposta violenta
que é a violência instigada pelo Estado. A heterossexualidade, portanto,
atua como um meio para manter a ordem social patriarcal opressiva
através da família, da igreja e da “cultura”96.
A heteronormatividade também se torna o meio para reforçar

95 TAMALE, Sylvia. Human Rights impact assessment of Uganda’s anti-homosexuality bill.


Pambazuka News, n. 465, 2010. Disponível em: <http://www.pambazuka.org/en/category/featu-
res/61423>. Acesso em: 30 nov. 2012; NAKAWEESI-KIMBUGWE, Solome; MUGISHA, Frank.
Bahati’s bill: A convenient distraction for Uganda’s government. Pambazuka News, n. 453, 2009.
Disponível em: <http://www.pambazuka.org/en/category/comment/59556>. Acesso em: 30 nov.
2012.
96 McCLINTOCK, Anne. Imperial Leather: Race, Gender and Sexuality in the Colonial Context.
New York and London: Routledge, 1995; BURTON, Antoinette (Ed). Gender, Sexuality and Colo-
nial Modernities. New York: Routledge, 1999; STOLER, Ann Laura. Carnal Knowledge and Imperi-
al Power: Race and the Intimate in Colonial Rule. Los Angeles: University of California Press, 2002.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 51
hierarquias particulares dentro das heterossexualidades. Seidman97
observa que a heterossexualidade “não apenas estabelece uma hierarquia
heterossexual/homossexual, mas também cria hierarquias entre as
heterossexualidades”, resultando em “formas hegemônicas e subordinadas
de heterossexualidade”.
Essas distinções ignoram a recusa em colaborar com a
heteronormatividade, como observa Rich:

A história de mulheres que – como bruxas, mulheres sozinhas,


resistentes ao matrimônio, solteironas, viúvas autônomas e/ou lésbicas
– conseguiram, em níveis variados, não colaborar [com normas
heterossexuais]. É precisamente essa história da qual as feministas têm
tanto a aprender e sobre as quais existe um silêncio geral como esse98.

Tornando queer99 os espaços feministas

Os movimentos feministas têm uma longa história de tentativas de


superar as exclusões das mulheres no feminismo mainstream – mulheres
de cor, lésbicas, bissexuais e transexuais, mulheres indígenas, mulheres que
não falam inglês, mulheres do Sul Global100. De acordo com Harcourt101,
lidar com a exclusão só pode ser possível através do reconhecimento de que
o feminismo é construído sobre a “política da diferença” que pode existir
ao lado da “política da amizade”. No entanto, existem várias identidades,

97 SEIDMAN, Steven. From polluted homosexual to the Normal Gay: changing patterns of sexual
regulation in America. In: INGRAHAM, Chrys (Ed.). Thinking Straight: New Work in Critical
Heterosexuality Studies. New York: Routledge, 2005. p. 40.
98 RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In:____. Blood, Bread,
and Poetry. New York: Norton Paperback, 1994 [1980]). p. 50.
99 Queer é usado aqui para significar impacto sobre/afeto.
100 JOHNSON, Rebecca. Gender, race, class and sexual orientation: theorising the intersections.
In: MacDONALD, Gayle; OSBORNE, Rachel L.; SMITH, Charles. Feminism, Law, Inclusion. In-
tersectionality in Action. Toronto: Sumach Press, 2005. p. 21-37.
101 HARCOURT, Wendy. Sexual and bodily integrity. In: DÜTTING, Gisela; HARCOURT,
Wendy; LOHMANN, Kinga; McDEVITT-PUGH, Lin; SEMENIUK, Joanna; WIERINGA, Saskia
(Ed.). The European Feminist Forum: a Herstory, 2004-2008. Amsterdam: Aletta Institute for Wom-
en’s History, 2009.

52 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
até mesmo conflitantes, nos movimentos feministas102. Essa abordagem
leva a sério a teoria da interseccionalidade que examina como diferentes
categorias social e culturalmente construídas interagem, gerando os níveis
complexos de desigualdades.
Interseccionalidade é uma “análise que afirma que os sistemas de
raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade formam
características de organização social que constroem a experiência das
mulheres negras e, por sua vez, são moldadas pelas mulheres negras”103.
A Interseccionalidade baseia-se no discurso teórico pós-moderno,
em particular à sua crítica do essencialismo e a desconstrução de sujeitos
estáveis, incluindo um sujeito feminista (“mulheres”). É, portanto,
um desafio à teoria e política feminista essencialista: se “não há nada
sobre ser ‘mulher’ que naturalmente liga as mulheres”104, então quem
deveria representar os movimentos feministas? hooks argumenta que
a solidariedade não pode crescer por si mesma, mas precisa de um
compromisso sustentado e contínuo. Mohanty, ao escrever sobre o
feminismo transnacional, acrescenta que a solidariedade não deve ser
vista como um fenômeno dado, mas deve ser constituída na prática,
através do processo de trabalho em conjunto. Assim, o desafio é “construir
o universal com base nos particulares/diferenças”105. Haraway106, hooks107
e Mohanty108 afastam-se de uma política do essencialismo para propor
uma política de formação de coalizões e afinidade.

102 Idem, p. 73.


103 COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics
of Empowerment. New York: Routledge, 2000. p. 299.
104 HARAWAY Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the Reinvention of Nature, London: Free
Association Books, 1991.
105 MOHANTY, Chandra. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidari-
ty. Chapel Hill: Duke University, 2003. p. 7.
106 HARAWAY Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the Reinvention of Nature, London: Free
Association Books, 1991.
107 hooks, bell. Feminist Theory from Margin to Center. Boston: South and Press, 1984
108 MOHANTY, Chandra. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidari-
ty. Chapel Hill: Duke University, 2003.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 53
A ideia de grupos de afinidade vem dos movimentos anarquistas e
operários da Espanha do final do século XIX, que mais tarde lutaram
contra o fascismo durante a Guerra Civil espanhola. Ao mesmo
tempo em que esse modelo do grupo de afinidade foi sendo adotado
pelo movimento antiguerra na década de 1960, pequenos grupos de
“conscientização” das mulheres estavam se formando. A partir do final
dos anos 1960, houve uma “transformação das noções feministas de
intervenção política”. As feministas estavam rompendo com “as táticas
tradicionais de lobby e até certo ponto [...] com a política de oposição
da esquerda”, que era dominada por homens e não oferecia espaço para
as agendas das mulheres. Isso foi reconhecido como o tipo de prática
política e de organização que tornaria o movimento de liberação das
mulheres “autoinstituinte, autorregulador e autodirigido”109.

Os grupos de afinidade têm sido associados mais recentemente ao


movimento antiglobalização e às formas pelas quais xs jovens se envolvem
em movimentos sociais. A direção e a dinâmica dos movimentos não
seguiriam líderes ou especialistas confiáveis, mas sim fariam com que as
pessoas interajissem e analisassem sua própria situação110. Ao contrário da
identidade baseada na solidariedade, a afinidade não precisa se basear em
um consenso subjacente entre os membros do grupo, mas as identidades
políticas são formadas em um ato de negar o “eles” construído111. Negar o
“eles” construído significa traçar uma fronteira política entre “nós” e “eles”
através do ato de articulação. Novas posições de sujeito são nomeadas
e explicadas através da negação de certos “eles”, por exemplo, como
antirracismo, antissexismo e anticapitalismo.
O feminismo pós-moderno que desafia a validade de se organizar

109 WHELEHAN, Imelda. Modern Feminist Thought: From the Second Wave to Post-feminism.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 1995.
110 COOTE, Anna; CAMPBELL, Beatrix. Sweet Freedom: the Struggle for Women’s Liberation.
Oxford: Basil Blackwell, 1982. p. 23.
111 Ver o relato franco de Honor Ford-Smith (FORD-SMITH, Honor. Ring ding in a tight cor-
ner. In: ALEXANDER, Jacqui M.; MOHANTY, Chandra (Ed.). Feminist Genealogies, Colonial
Legacies, Democratic Futures. New York, Routledge, 1997) sobre o significado de construir um
movimento através da práxis de uma organização. Suas experiências como membro fundadora do
Sistren – um coletivo teatral feminino jamaicano – são úteis para refletir sobre o significado do
poder de negociação, classe e financiamento (LLOYD, Moya. Beyond Identity Politics. Feminism,
Power and Politics. London: Sage Publications, 2005).

54 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
primariamente com base na identidade de gênero tem sido percebido
como um beco sem saída para o feminismo político como um movimento.
O gênero é visto como uma construção e, portanto, desafia a existência da
“mulher” como uma categoria. Segundo esse argumento, devido à falta
de “uma experiência compartilhada de opressão – uma identidade –,
as demandas políticas não podem ser articuladas”112. No entanto, se os
grupos de afinidade são um modelo que pode ser efetivamente implantado
para desestabilizar a heteronormatividade e o gênero enquanto princípios
organizadores, de que tipo de identidade política estamos falando?
Wieringa113 pergunta: “As identidades de resistência ou de oposição
formam um melhor ponto de partida para a organização das políticas
feministas? Isso parece mais provável, mas a próxima pergunta é como
sair da oposição, da resistência, da negação, para as demandas positivas,
para uma agenda de mudanças?”.
O desafio continua a ser como criar um modelo de grupo de afinidade
que seja sustentável e capaz de lidar com a inevitável hierarquia da
profissionalização exigida pelos financiadores, mas que permaneça flexível
e transparente e capaz de mobilizar o entusiasmo de diversos grupos. Isso
requer não apenas teorizar sobre a mobilização política que o modelo
de afinidade permite, mas também sobre uma nova política feminista:
idealista, mas pragmática, profissional, transparente, capaz de construir
alianças com grupos diversos, bem como com os interesses estabelecidos.
O potencial para a solidariedade efetiva114 entre um movimento queer
emergente e os espaços feministas autônomos tradicionais só pode ocorrer
se as teorias fundamentais que estruturam esses espaços mudarem. Essas
teorias devem ser capazes de reconceituar o significado das amizades
homossociais e o tênue relacionamento com as identidades e sexualidades

112 LLOYD, Moya. Beyond Identity Politics. Feminism, Power and Politics. London: Sage Publica-
tions, 2005. p. 55.
113 WIERINGA, Saskia. From solidarity to affinity and feminist comunal identities. In: DÜT-
TING, Gisela; HARCOURT, Wendy; LOHMANN, Kinga; McDEVITT-PUGH, Lin; SEMENIUK,
Joanna; WIERINGA, Saskia (Ed.). The European Feminist Forum: a Herstory, 2004-2008. Amster-
dam: Aletta Institute for Women’s History, 2009. p. 36.
114 Solidariedade é usada aqui para se referir às possibilidades de uma fusão de interesses ideoló-
gicos e políticos na busca de equidade e não discriminação com base no sexo, gênero, orientação
sexual, credo, raça ou etnia, conforme delineado em uma ampla estrutura de direitos.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 55
queer. A “solidariedade” oferecida ao crescente movimento queer na África
não pode ser vista como algo que desestabiliza a heteronormatividade por
meio do desmantelamento da maneira com que a família, o Estado e a
economia reproduzem a heterossexualidade normativa. Essa abordagem
começa a separar “experimentos” de amizades entre pessoas do mesmo
sexo e desejos entre pessoas do mesmo sexo, dando assim credibilidade
à identidade sexual e política atribuída a ser queer e separando-a de uma
que coexiste perfeitamente dentro de um paradigma heteronormativo.
Pelo contrário, ela deve ser a que perturba a principal teorização dentro
dos espaços ativistas feministas, que considera a identidade de gênero
(homem/mulher) como um enquadramento a partir do qual se entende,
confronta e desmantela o patriarcado.

Tradução Clarisse Goulart Paradis (UNILAB)

56 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Discursos pós-coloniais do ativismo queer e
de classe na África
Lyn Ossome
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

A África é, atualmente, confrontada com os fenômenos neocoloniais


do capitalismo e do racismo globalizados115, um fato que, mais do
que nunca, sugere a necessidade de um fortalecimento inventivo dos
movimentos ao redor de políticas centradas em um engajamento
consciente com diferentes posições e histórias de sofrimento. A mudança
dos estados africanos em direção à democratização, iniciada no período
de ajuste do final dos anos 80, é historicamente importante pelo impacto
que teve, entre outros fatores, na criação da visibilidade do ativismo queer
e das lutas de classe. O período democrático foi caracterizado por uma
demanda intensificada por liberdades que, por um lado, facilitou a ‘saída
do armário’ dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, trangêneros e intersex
(LGBTI)116 e, de outro lado, desencadeou uma onda de reivindicações
concorrentes fundamentalistas e moralistas que ainda promovem um
retrocesso dissimulado117. Sobre este ponto, Neville Hoad escreve:

115 SCHUHMANN, Antje. Exoticizing the erotic: white on white via the Black body: collecting
artefacts within German dominant culture. In: WRIGHT, Michelle; SCHULMANN, Antje (Ed.).
Blackness and Sexualities. New Brunswick: Transaction Publisher, 2007, p. 122.
116 Os processos de democratização nos diferentes países africanos fornecem o contexto no qual
emergiram formalmente os direitos gays. Por exemplo, a transição democrática da África do Sul
forneceu uma oportunidade política e uma situação aberta para a mobilização gay (COCK, Ja-
cklyn. Engendering gay and lesbian rights: the equality clause in the South African Constitution.
Women’s Studies International Forum, v. 26, n. 1, p. 35-45, 2003; CROUCHER, Sheila. South Afri-
ca’s democratization and the politics of gay liberation. Journal of Southern African Studies, v. 28, n.
2, p. 315-30, 2002). Este surgimento não foi, porém, caracterizado por processos puramente posi-
tivos: o momento Stonewall do Zimbábue aconteceu na sequência da expulsão de gays e lésbicas
do Zimbábue, por Robert Mugabe, da Feira Internacional do Livro de Zimbábue, em Harare, em
julho de 1995; e, no Segundo Congresso das Mulheres (SWAPO), no dia 6 de dezembro de 1996, o
presidente Sam Nujoma reafirmou esta posição, quando jurou que erradicaria a homossexualidade
da sociedade da Namíbia.
117 Como afirma Mukhopadhyay, a promessa universalista do liberalismo, alimentando as lutas
por direitos iguais, foi ao mesmo tempo a razão da limitação de direitos para as garantias formais,
pois o liberalismo não reconhece a diferença e as desigualdades (em termos de recursos e poder)

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 57
Em relação interessante com a sua circulação transnacional, os
direitos humanos de gays e lésbicas emergiram como um fator novo
e vulnerável na hegemonia nacional pós-apartheid, da África do Sul,
onde o sucesso provisório de sua instituição pode ser contabilizado na
insistência dos ativistas em afirmar seu caráter nacional, contra sua
dimensão transnacional. A temporalidade deles é igualmente desafiada.
Surgem no momento do transnacionalismo, embora, na África do Sul,
este momento seja também o momento tardio da pós-colonialidade.
O Zimbábue se tornou independente em 1981 e a Namíbia em 1991;
a África do Sul teve suas primeiras eleições democráticas em 1994.
Estes direitos foram comprometidamente marcados como um legado
do colonialismo e como uma maneira de facilitar uma nova identidade
a partir da qual se desafiava os valores nacionais. Eles se tornaram uma
relíquia do passado colonial que deve ser transcendido e/ou um sinal
do futuro transnacional, que deve ser temido118.

Uma casualidade desconfortável desta abertura de espaços políticos


foi a diminuição do engajamento com as análises de classe por parte de
ativistas da justiça social. Enquanto os fundamentalistas religiosos se
alinharam ao poder do Estado, os grupos LGBTI foram deixados de fora;
a intensificação da homofobia, que existe massivamente no contexto do
liberalismo econômico e do fundamentalismo religioso na África fala
por (speaks to) este estado de coisas. Muitas relações sociais opressivas,
como as do racismo e da homofobia, envolvem uma sistemática
falta de reconhecimento. Enquanto esta mudança da distribuição do
reconhecimento destacou, progressivamente, formas até agora ignoradas
de opressão, alguns observadores lamentaram o fato de que isso parece ter

entre os grupos que provêm destas diferenças. No contexto liberal, o indivíduo é pensado como
um sujeito humano abstrato que não tem pertencimento de gênero, classe, casta, raça, etnia ou
comunidade (MUKHOPADHYAY, Maitrayee. Situating gender and citizenship in development
debates: toward a strategy. In: MUKHOPADHYAY, Maitrayee; SINGH, Navsharan. Gender Justice,
Citizenship and Development. Ottawa: IDRC, 2007, p. 270). Mesmo quando esta noção é ampliada
para incluir identidades, os discursos liberais são facilmente manipulados pelos grupos hegemôni-
cos, na sociedade, que têm acesso aos recursos e ao poder. Isso se vê em termos práticos nos países
africanos onde a identidade sexual é sacrificada no altar das identidades étnicas e religiosas con-
servadoras, que são positivamente manipuladas por interesses políticos e econômicos.
118 HOAD, Neville. Between the white man’s burden and the white man’s disease: tracking lesbian
and gay human rights in Southern Africa. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 2, n. 4, p.
561-562, 1999.

58 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
coincidido com um abandono do interesse pelas políticas de classe, que
foram associadas com as políticas de distribuição social119. O abandono
da análise de classe não era somente incoerente, mas decididamente
inoportuno por coincidir com o aumento das tentativas dos neoliberais
de legitimar as desigualdades de classe.
Entre tantos discursos que enquadram a onda renovada de homofobia
na África no presente há um que se coloca, largamente, dentro de duas
linhas de pensamento conservadoras. De um lado, o diálogo com as
questões do direito de existência das pessoas queer, que é principalmente
de ordem política, no contexto. De outro lado, enquanto se reconhece
tacitamente este direito, se constroem, paralelamente, as relações entre
pessoas do mesmo sexo ao redor de sua materialidade e se vincula à
liberdade e à escolha de questões de acessibilidade: este pensamento
fala implicitamente dos direitos econômicos e sociais como a fronteira
emergente da luta para os grupos LGBTI. Neste texto, tentarei demonstrar
a necessidade urgente de embasar esta última dimensão e ilustrar as
maneiras com que o político, embora importante, está sendo usado pelxs
ativistas queer, na África, para ocultar uma luta abrangente pelos direitos
socioeconômicos.
Podemos constatar, em muitos países, que, em tempos de tensões
socioeconômicas, os direitos dos cidadãos e, especialmente, a proteção dos
grupos considerados mais vulneráveis, como as mulheres, os imigrantes e
outras minorias, se tornaram o bode expiatório em nome do patriotismo
que, muitas vezes, inclui referências a uma tradição homogênea
presumidamente compartilhada. É o outro abjeto (imigrantes, perversos,
criminosos, soropositivos, prostitutas, moradores de rua – as classes
perigosas) que é considerado responsável por ameaçar a paz interna, em
vez de, por exemplo, as noções hegemônicas de masculinidade violenta
ou os interesses específicos de classe120. Embora haja uma tendência
a colocar a culpa somente nos Estados, os processos nacionalistas e
étnicos, também, dependendo de seus objetivos, podem projetar forças

119 PHILLIPS, Anne. Which Equalities Matter? Cambridge: Polity Press, 1999.
120 SCHUHMANN, Antje. Taming transgressions: South African nation building and body pol-
itics. Agenda, n. 83, p. 100, 2010.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 59
que são hegemônicas na sociedade, fazendo, assim, romper o próprio
poder do Estado de proteger as minorias. As hierarquias nacionalistas,
étnicas e morais (que expõem versões da descolonização baseadas no
fundamentalismo religioso e em ideologias de pureza) empregam uma
variedade de táticas voltadas ao deslocamento e à invisibilidade das vozes
ativas de grupos não conformistas. O efeito disso consiste em excluí-los
das lutas de classe e, de fato, da participação política121.
Na África, tais estratégias incluíram o uso difundido de mitos
alienantes, da violência e da aberta discriminação, de maneira a
desestabilizar diretamente e a minar a participação dos membros das
comunidades LGBTI que também são parte das classes oprimidas e
desfavorecidas. Além disso, a solidariedade heterossexista foi usada para
apagar as diferenças de classe, em grande detrimento das pessoas pobres de
todas as identidades culturais. Essas estratégias também circunscrevem, de
forma severa, a habilidade de acessar e estabelecer legitimamente direitos
e reivindicações, mesmo em países que conquistaram êxitos nominais
na legislação que proíbe a discriminação, como no caso da África do
Sul. Ilustrarei os três pontos, fornecendo exemplos das discussões em
andamento e das contestações no continente.

Mitos desestabilizadores, ativismo queer e apagamento


da memória

Um corpo crescente de pesquisas, ativismo e arte demonstrou


completamente a falsidade do fato da exclusiva heterossexualidade dos
africanos122. Vale a pena, portanto, interrogar de que maneiras o rótulo

121 Da perspectiva da diversidade política e da democracia representativa, a invisibilidade dos


grupos LGBTI nos sítios formais das lutas de classe deslegitima suas reivindicações por uma igual-
dade substantiva.
122 Como mencionado por Epprecht (EPPRECHT, Marc. Bisexuality and the politics of normal
in African ethnography. Anthropologica, v. 48, n. 2, p. 187-201, 2006), Moodie e Ndatshe (MOOD-
IE, T. Dunbar; NDATSHE, Vivienne. Going for Gold: Men, Mines and Migration. Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1994), Harries (HARRIES, Patrick. Work, Culture and Identity: Mi-
grant Laborers in Mozambique and South Africa, c. 1860-1910. Portsmouth: Heinemann, 1994),
Gevisser e Cameron (GEVISSER, Mark; CAMERON, Edwin (Ed.). Defiant Desire: Gays and Les-

60 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
elitista e ocidentalcêntrico é dirigido ao ativismo e aos ativistas queer.
Ressaltando este lado do pensamento, Amory123 observa que a reticência
da pesquisa sobre homossexualidade e o pânico heterossexual descarado
sobre o tema são colocados em evidência pelo recorrente e insistente refrão:
“Não existe homossexualidade na África”, frequentemente acompanhado
pela acusação também insidiosa segundo a qual a homossexualidade
é uma “perversão ocidental”, imposta ou adotada pelas populações
africanas. Esta visão da queerness parte, parcialmente, de uma cidadania
exclusivamente heterossexual, que ignora o fato de que queer representa
uma resistência a algo que é socialmente definido como normal, e que,
neste sentido, queer pode excluir práticas gays e lésbicas que têm uma
perspectiva normativa; ou pode incluir outras experiências que não são
explicitamente sexuais124. Trata-se de uma visão altamente prejudicial que
se afasta do dominante (mainstream) e invisibiliza reivindicações legítimas
de inclusão econômica e política e a diversidade dos grupos queer.
Há um processo dialético na aparente localização econômica

bians Lives in South Africa. Johannesburg: Ravan, 1994), Murray e Roscoe (MURRAY, Stephen
O.; ROSCOE, Will (Ed.). Boy-Wives and Female Husbands: Studies in African Homosexuality. New
York: St. Martin’s Press, 1998), Kendall (KENDALL, K. Limakatso. Women in Lesotho and the
(Western) construction of homophobia. In: BLACKWOOD, Evelyn; WIERINGA, Saskia (Ed.).
Same-sex Relations and Female Desire: Transgender Practices across Culture. New York: Columbia
University Press, 1999), Lockhart (LOCKHART, Chris. Kunyenga, real sex and survival: assessing
the risk of HIV infection among urban street boys in Tanzania. Medical Anthropology Quarterly,
v. 16, n. 3, p. 294-311, 2002), Njinge e Alberton (EVERYTHING must come to light. Diretores:
Mpumi Njinge e Paulo Alberton. Produtores: Ruth Morgan, GALA, OIAFF. Editor: Paulo Alber-
ton. Pesquisadores: Ruth Morgan, Mpumi Njinge e Graeme Reid. Financiadores: HIVOS, Joseph
Rowntree Charitable Trust, Out In Africa Gay And Lesbian Film Festival. Documentário. África
do Sul, Brasil, 2002. 25 min.), Epprecht (EPPRECHT, Marc. Hungochani: the history of a dissident
sexuality in Southern Africa. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2004), Galz (GAYS and
lesbians of Zimbabwe (GALZ). Sahwira. Harare: GALZ, 2002), Morgan e Wieringa, por exemplo,
documentam cuidadosamente a presença de diversas expressões de sexualidade entre pessoas do
mesmo sexo na África – nas sociedades tradicionais, nas instituições coloniais e nas configurações
presentes no dia a dia. Uma rede panafricana crescente de associações LGBTI também testemunha
diversas culturas e práticas locais entre pessoas do mesmo sexo e bissexuais na África (MORGAN,
Ruth; WIERINGA, Saskia (Ed.). Tommy boys, Lesbian Men and Ancestral Wives: Female Same-Sex
Practices in Africa. Johannesburg: Jacana, 2005). E mais uma quantidade de imagens escrita e pro-
duzida por Africanxs, na ficção, no teatro, nos filmes, desestabilizam o estereótipo de uma África
puramente heterossexual.
123 AMORY, Deborah P. Homosexuality in Africa: issues and debates. A Journal of Opinion, v.
25, n. 1, p. 5-10, 1997.
124 JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York: NYU Press, 1996, p. 98.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 61
hegemônica das minorias sexuais nos Estados. Evans observa que
existem restrições legais e morais que impedem a variedade dos grupos
marginais e minoritários de perseguir suas crenças religiosas e culturais e,
do mesmo modo, suas necessidades econômicas. A gestão do Estado em
relação a estes “alienígenas morais” que são encontrados nas margens da
cidadania é exercida em arenas sociais, políticas e econômicas e resulta em
discriminações tanto formais como informais. Esta é a zona intermediária
entre as construções liberais e republicanas da cidadania, onde estão
localizadas as minorias religiosas, étnicas e sexuais – fora da comunidade
nacional e moral, mas no interior da nação cívica. Para aqueles que
conseguem arcar com isso, não é um sistema totalmente fechado125.
Os grupos das minorias sexuais desenvolveram, como consequência,
infraestruturas socioeconômicas comunitárias com diferentes graus de
complexidade ao redor de suas identidades. Organizaram-se para obter
mais moradia, seguros, planos de saúde, direitos aos cuidados parental ou
marital e gastaram uma porção significativa de sua renda em, por exemplo,
produtos de consumo para gays e estilos de vida específicos, em territórios
sexuais e sociais segregados ou especificamente gays126. Entre xs ativistas
LGBTI africanxs, o recuo para semelhantes enclaves127 foi largamente
imposto pelo alto grau de insegurança sob a forma de violências sexual,
física, emocional e psicológica. No coração deste recuo está o imperativo da
sobrevivência tanto econômica como social e cultural. As rígidas fronteiras
morais, na sociedade, geram comunidades ligadas pela imoralidade e
pela ilegalidade e que, ao negociar suas demandas de cidadania, adotam
mecanismos econômicos que parecem, paradoxalmente, fugir da
participação ativa em quadros mais amplos de direitos políticos e sociais, e
que mais legitimamente representam suas reivindicações como cidadãos.
Os movimentos populares são particularmente vulneráveis às tendências

125 EVANS, David T. Sexual citizenship: the material constitution of Sexualities. London: Rout-
ledge, 1993, p. 6.
126 Idem, p. 8.
127 Esta retirada incluiu prolongados períodos de exílio de ativistas dos seus países de origem, a
residência em casas seguras e isoladas e a necessidade de proteger o complexo da residência. Mui-
tos são privados dos meios quotidianos da sobrevivência econômica e, como resultado, dependem
inteiramente de doações e de benevolência. Tal destituição forçada de uma ativa força de trabalho
do trabalho assalariado pode falsear os dados do desemprego e debilitar as lutas de classe.

62 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
reducionistas, que resultam de políticas de identidade. O problema com
quem persegue políticas identitárias é que estas terminam por apagar as
questões de classe e perdem o foco estratégico e o potencial por alianças
mais amplas. Como Yuval-Davis128 nota, as políticas identitárias tendem
não só a homogeneizar e naturalizar as categorias e os grupos sociais,
mas também a negar as fronteiras instáveis das identidades, as diferenças
internas de poder e os conflitos de interesse.

Mitos desestabilizadores

As lutas de classe representam um sítio dentro do qual os mitos


que concernem à homossexualidade são reproduzidos e enraizados.
A perpetuação de noções homogeneizantes que agrupam todas as
populações queer sob uma categoria alienante e polêmica é, de certa forma,
estranha. O mito segundo o qual a homossexualidade é elitista em si –
uma classificação prejudicial e racialmente manipulada – tenta despojar
a identidade sexual de suas intersecções com as subjetividades de gênero,
raciais ou étnicas e, ao proceder desse modo, restringe de forma essencial
o campo de temas sobre os quais as minorias sexuais podem sustentar
suas lutas. O efeito desta posição é de negar, para os LGBTI pobres, o
suporte e a solidariedade de outros grupos similarmente marginalizados
do ponto de vista econômico – por exemplo, o grau da vulnerabilidade
específica das lésbicas enquanto mulheres ou enquanto trabalhadoras
assalariadas ou enquanto minorias étnicas pode ser escondido debaixo
de tais discursos homogeneizadores do elitismo. O erro que resulta disso
é a aparência de uma história independente das culturas que informam
as instituições, os sistemas e as concepções ideológicas da natureza e da
localização de nossas opressões como pessoas africanas no continente e
na diáspora.
É importante perguntar-se quem se beneficia com a produção destes
mitos e distorções129. Pode-se argumentar que as elites dominantes, com o

128 YUVAL-DAVIS, Nira. Gender and Nation. London: Sage Publications, 1997.
129 Fazendo alusão a esta questão, Mark Gevisser argumenta que, como muitos africanos se sen-
tiram sempre mais incomodados com a dependência de seus países em relação ao Ocidente, eles

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 63
apoio do poder do estado, tentam, através deste discurso de divisão, isolar
uma classe de elite minoritária, identificada pela orientação sexual, que
eles falsamente identificam com forças globais da opressão. A maioria dos
grupos marginalizados que eles apontam através desse tipo de moralização
é vendida por meio da convicção de se combater um inimigo comum, junto
ao Estado – uma força global opressora. As pessoas queer são apontadas
não tanto por conta de sua identidade, quanto por continuarem, de
maneira deliberada, o recrutamento ideológico de sujeitos, subverterem
a realidade das lutas compartilhadas, e sustentarem a opressão de classe
da maioria. Existem várias táticas à disposição do Estado e das classes
dominantes para atingir a este propósito, das quais a mais dramática
presenciada, no momento, é a violência física e institucional130.

Violência

As formas sexualizadas de violência que penetram as sociedades


derivam de uma base estrutural que rodeia aqueles para os quais aponta
segundo linhas de classe, gênero, raça e etnicidade. A violência sexual
dirigida contra os indivíduos queer pode ser entendida, em um sentido,
como uma arma política nas mãos de grupos privados de direitos que são,
eles mesmos, vítimas da violência estrutural em um sistema econômico
injusto, que favorece a violência entre os excluídos e economicamente
marginalizados. Porém, a efetividade da violência, na realidade, funciona
dentro de um sistema que subcontorna os indivíduos através destas
categorias: portanto, a identificação heteronormativa dos indivíduos
segundo as categorias raciais, étnicas e de classe coloca as pessoas que se

tentam achar um lugar para seu orgulho: podem ser pobres, mas pelo menos têm valores! Entre
todos os indicadores mundiais de bem-estar, eles têm pelo menos um: a moralidade. Com estados
ineficientes e economias moribundas, que melhor maneira de manter o apoio popular que a de
fazer de uma minoria impopular o bode expiatório, no nome de uma batalha contra a decadên-
cia ocidental? (GEVISSER, Mark. Homosexuality and the battle for Africa’s soul. Disponível em:
<http://africanarguments.org/2011/03/homosexuality-and-the-battle-for-africas-soul/>. Acesso
em: 9 mar. 2011).
130 A violência deveria ser entendida aqui ao longo de um continuum que começa com o isola-
mento, a estigmatização, a discriminação aberta contra xs homossexuais, que, geralmente, termina
com manifestações de brutalidade física e também com o homicídio.

64 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
autoidentificam como queer fora das matrizes através das quais a violência
estrutural é entendida e abordada.
As feministas marxistas criticaram a violência contra as mulheres em
relação à produção capitalista e à reprodução, assim como se referem à
sua capacidade de perturbar a reprodução da força de trabalho. Apesar
desta reprodução ser predominantemente atrelada aos salários, também
demostrou depender da obtenção e gozo de certos direitos e liberdades
fundamentais. Este tipo de compreensão possibilitou a emergência de
uma resposta holística acerca da opressão econômica das mulheres que
atravessa as políticas macro/microeconômicas, a representação política
e a codificação legal em estatutos e convenções nacionais, regionais
e internacionais. Ainda que o subcontornar mencionado acima e a
reprodução ideologicamente heteronormativa do trabalho impliquem
que as mulheres lésbicas e bissexuais, por exemplo, fiquem afastadas das
reivindicações de semelhantes vitórias pela segregação deliberada ou por
falha ao ligar a violência homofóbica aos modelos completos da violência
econômica na sociedade.
Uma demonstração clara deste ponto é a recente negação da condição
de observador feita à Coalizão de Lésbicas Africanas (CAL) na African
Commission on Human and People’s Rights131 (ACHPR). A Comissão
negou a demanda sem dar explicação alguma. Ignorando os objetivos
declarados da CAL, enraizados no avanço da igualdade de gênero, da
justiça social e na proteção dos direitos de indivíduos particularmente
vulneráveis,132 esta decisão ilustra uma das maneiras pelas quais a
aplicação de intenções políticas convenientes, conservadoras pode servir
para reforçar a discriminação econômica contra todas as mulheres, e não
somente àquelas, por esta decisão, visivelmente visadas; pois, neste caso,
como a lei pode calibrar a demanda de direitos de outra maneira, que
não através de sua aplicação não discriminatória nas bases do gênero? A
definição precisa do termo ‘gênero’ permanece não especificada nos livros
de base da ACHPR.

131 Comissão Africana dos Direitos Humanos.


132 CENTER for Human Rights (CHR). African Commission should reconsider decision on
Coalition of African Lesbians. Pambazuka News, n. 22, 2010.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 65
Apagamento

Outro exemplo que deveria estar relacionado à violência econômica


é o voto de 2010, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a favor de
uma alteração que retira a orientação sexual de uma resolução contra
as execuções. Marrocos e Mali, dois Estados africanos muçulmanos
socialmente conservadores, introduziram, no Comitê de Direitos
Humanos da Assembleia Geral, uma alteração da resolução que vem,
a cada dois anos, condenar as execuções extrajudiciárias, sumárias
e arbitrárias e outras formas de homicídios. Esse voto é significativo,
se entendido no contexto de escassez econômica e de violência.
Embora o número de novos conflitos que provém da África tenha
significativamente baixado ao longo das duas últimas décadas, o medo
de guerras civis cresce grandemente nas nossas frágeis democracias e
em nossas economias em dificuldades, do Sudão à Costa do Marfim,
do Quênia ao Zimbábue. Os movimentos populares recentes contra o
desemprego, a pobreza e a corrupção da elite dominante na África do
Norte pintam um quadro ainda mais profundo das lutas de classe que
ganham ímpeto no continente. Nos contextos econômicos dos conflitos,
muitos observadores notaram que a pobreza e a violência vão de mãos
dadas, e que há uma forte relação negativa entre o desenvolvimento
econômico e o crime nos diferentes países. Os grupos de minorias sexuais
se tornaram particularmente vulneráveis como bodes expiatórios e
como objeto de caça às bruxas durante tempos de durezas econômicas133.
Sua exclusão explícita da resolução da Assembleia Geral, que especifica
as violências em função da raça, nacionalidade, etnicidade, religião,
língua, status de refugiado ou de autóctone, nega o peso de grande porte

133 Miguel, no seu estudo sobre o assassinato de bruxas na Tanzânia (MIGUEL, Edward. Pover-
ty and witch killing. Review of Economics Studies, n. 72, p. 1153-1172, 2005); Oster, que analisa
processos de bruxaria na Europa (OSTER, Emily. Witchcraft, weather and economic growth in
renaissance Europe. The Journal of Economic Perspectives, v. 18, n. 1, p. 215-228, 2004) e Berman,
em seu estudo sobre as milícias religiosas radicais (BERMAN, Eli. Hamas, Taliban and the Jew-
ish underground: an economist’s view of radical religious militias, unpublished manuscript. San
Diego: University of California, 2003), todos eles usam dados empíricos para demonstrar o poder
da economia para tornar racionais, compreensíveis, fenômenos que haviam sido anteriormente
entendidos, quase que exclusivamente, através de lentes socioculturais.

66 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
da violência homofóbica. E mais, o fato de substituir a especificidade da
discriminação com base na orientação sexual pela expressão mais geral
‘razões discriminatórias de diferente natureza’ demonstra o apagamento
deliberado da relação que existe entre violência, identidade sexual e classe.
Na presença de impactos econômicos como aqueles sublinhados acima,
é possível despojar a violência homofóbica de seus contextos econômicos
e sociais, restringindo a resistência a um campo de batalha político (de
direitos) e isolando-o de suas raízes econômicas e de seu valor enquanto
uma questão de classe.

Liberalismo econômico e fundamentalismos

Hoje, mais do que nunca, a realidade de que os indivíduos ocupam


múltiplas identidades que podem mudar, dissolverem-se ou emergirem,
é conhecida, assim como a necessidade de mapear as lutas de classe nesta
complexa realidade. Possivelmente, a mais controvertida entre estas
identidades é a da sexualidade, no coração da qual está o princípio da
escolha, que é, por sua vez, baseado no princípio da liberdade. Como tal,
qualquer limitação da escolha constitui um ataque à ideia de liberdade.
No nexo entre liberdade e escolha presume-se a habilidade dos indivíduos
de ter acesso, expressar e gozar dos direitos, entre os quais os mais
básicos são relativos a questões de sobrevivência. Esta habilidade é, no
momento, limitada para muitas populações da classe trabalhadora, na
África, empobrecidas pelas políticas econômicas neoliberais. Um efeito
deste estado de coisas é o crescimento dos fundamentalismos culturais e
religiosos que se manifesta na exclusão, na falsa compartimentalização, na
separação e no silenciamento das opressões.
Para os grupos LGBTI, este silenciamento foi incluído na luta clássica
entre os movimentos sociais progressistas e as hegemonias nacionalistas,
os partidos políticos particularmente conservadores e as elites
dominantes, para controlar o apoio popular e reter o poder em face dos
desafios econômicos, globais e sociais. Os movimentos sociais existem,
primariamente, como uma contrapartida aos excessos burocráticos:
como uma voz alternativa, apelam para uma maioria consciente
que é economicamente, politicamente, socialmente, culturalmente

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 67
marginalizada por indivíduos, instituições e processos dominantes na
sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, os movimentos sociais respondem
e articulam as suas demandas através de meios que são (necessariamente)
táticos e que podem ser excludentes, se conveniente. Enquanto grupos
que vigiam constantemente as mudanças nas prioridades globais,
conversando incessantemente e interrogando as prerrogativas nacionais
para o desenvolvimento, e procurando atrair perpetuamente as massas,
os movimentos sociais são obrigados a evitar, embora taticamente, temas
e contestações que possam comprometer seu amplo alcance crítico
e diminuir a sua efetividade. Também, inevitavelmente, as questões
temáticas que definem as lutas são influenciadas pelas noções hegemônicas
de ‘bem’ e ‘mal’, da mesma forma como, instintivamente, reagem ao que
é dominante.
Não é, então, surpreendente que, no momento em que a África e
xs africanxs são assaltados pelos números da mídia referentes a não
africanidade da homossexualidade, por uma afirmação altamente
politizada, sancionada e agitada por Estados apáticos, a reação mais
visível por parte dos movimentos sociais foram réplicas fracas, na mesma
respiração política, e o processo que abafa assuntos centrais de crises
econômicas, meios de sustentação e de sobrevivência, ao redor dos quais
estes discursos polarizados se estruturam. Em termos simples, os Estados
e as sociedades precisam que os movimentos sociais identifiquem, entre
eles, os bodes expiatórios, e a África testemunhou um grande número
deles: os Asiáticos na Uganda de Idi Amin, os estrangeiros na África do
Sul, os albinos na Tanzânia, as bruxas no Quênia, Moçambique, Tanzânia
e Uganda.
A diferença sempre foi empregada para desviar a raiva da sociedade
quando a situação econômica não favorece a maioria; e como os governos
africanos inclinam, cada vez mais, em direção às mesmas políticas
econômicas baseadas no mercado, que desfavoreceram, no passado,
grande parte da população, a produção da diferença e a perpetuação do
fundamentalismo são obrigadas a continuarem, com os movimentos
sociais – embora querendo mudar de táticas – permanecendo no centro

68 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
deste exercício de equilíbrio134. Paradoxalmente, apesar do aparente
aspecto de retrocesso, o ativismo queer está, atualmente, fazendo a
experiência de um renovado impulso no continente: a visibilidade criada
pela conscientização pública e pelas discussões realizadas nas mídias, os
debates na academia e, para o público geral, a curiosidade sobre o tema são
recursos que podem, novamente, ser canalizados na direção de perseguir
o objetivo da justiça social e econômica.

Transcendendo as diferenças: reorientando as lutas de


classe

Qual é a importância de manter esta discussão? O que está em jogo?


De uma perspectiva política, o impacto do ativismo queer sobre a evolução
pós-libertação na África e na diáspora é uma área que recebeu escassa
atenção nos discursos pós-coloniais. A sua contribuição para os estudos
relacionados ao gênero e à sexualidade, assim como para a violência e a
representação, permanece pouco teorizada ou completamente ignorada
no continente.
Uma contribuição significativa se relaciona ao crescimento do HIV/
AIDS e suas relações com o Haiti e a África. Na descoberta inicial da
epidemia, a culpabilização dos haitianos e, logo depois, dos africanos,
trouxe uma certa consciência e sensibilidade diaspóricas, pelo menos, ao
se depararem com a doença – o ‘ocorrer conjunto’ do ativismo antirracista
e queer135. A partir do início dos anos 1990, as pressões multidirecionadas
que a epidemia da AIDS colocou para as categorias de ‘identificação’,
‘poder’, ‘conhecimento’ tornaram necessárias e alimentaram novas
formas de organização política, de educação, teorização, que eram
largamente produzidas sob a rubrica da teoria queer. Em particular,
esta contribuição abarcou as políticas de coalizão de muitos ativismos
antiAIDS que repensaram a identidade em termos de afinidade e não

134 JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: An Introduction. New York: NYU Press, 1996, p. 94-95.
135 WALCOTT, Rinaldo. Somewhere out there: the new black queer theory. In: WRIGHT, Mi-
chelle; SCHUHMANN, Antje (Ed.). Blackness and Sexualities. New Brunswick: Transaction Pub-
lisher, 2007, p. 30.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 69
de essência136, incluindo, portanto, não somente lésbicas e homens gays,
mas também bissexuais, transexuais, trabalhadorxs do sexo, pessoas com
AIDS, trabalhadorxs da área de saúde, pais e amigxs de gays. A epidemia
de AIDS implicou, também, a necessidade de repensar a compreensão
tradicional dos mecanismos de poder nas batalhas entrecruzadas sobre
a epidemiologia, a pesquisa científica, a saúde pública e as políticas de
imigração137.
Na África, como em muitos países pobres em outros continentes, o
impacto da pandemia da AIDS foi sentido muito mais profundamente, ao
ponto de romper as bases econômicas da família e das comunidades, mas
também de maneira a perturbar as respostas sociais e científicas dominantes
ao tratamento. A realidade dos homens que têm sexo com homens (HSH)
ganhou amplo reconhecimento como algo crucial para as campanhas de
tratamento do HIV/AIDS em muitos países africanos. A ocorrência do
fenômeno HSH está no fato de sua concentração demográfica na classe
média, conjuntamente com os impactos potencialmente devastadores
sobre a força de trabalho na economia em desenvolvimento. Desta forma,
ocorreram importantes mudanças positivas nas políticas de emprego,
que reconhecem agora o HIV como base de discriminação, apesar das
tentativas de separatismo e de apagamento. Marc Epprecht138 nos incita
a considerar que, mesmo que a prática homossexual não seja comum
ou reconhecida como tal, a homofobia, a transfobia e o heterossexismo
e outros discursos de invisibilização podem ter influências culturais
significativas sobre a maioria da população. Se assim for, as intervenções
dirigidas para a população majoritária hoje (em prol do empoderamento
das mulheres e pela saúde sexual, em particular) não podem, ele afirma,
ignorar despreocupadamente os conhecimentos que provêm da pesquisa
e do ativismo queer.

136 SAALFIELD, Catherine; NAVARRO, Ray. Shocking pink praxis: race and gender on the ACT
UP frontlines inside/out: lesbian theories. In: FUSS, Diana (Ed.). Gay Theories. New York: Rout-
ledge, 1991.
137 HALPERIN, David M. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. New York: Oxford Uni-
versity Press, 1995, p. 28.
138 EPPRECHT, Marc. Bisexuality and the politics of normal in African ethnography. Anthropo-
logica, v. 48, n. 2, p. 187-201, 2006.

70 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
É imaginado um passado africano altamente moralizado, assim
como uma sociedade não marcada pela decadência e que são colocados
como uma etapa para os projetos de descolonização, investidos por
movimentos como o Panafricanismo e o feminismo africano, ambos
responsáveis por uma particular política identitária que, normalizando a
heterossexualidade, exclui certos sujeitos em nome de uma representação.
É preciso recomeçar um diálogo mais honesto dentro dos movimentos
sociais e entre xs ativistas e, em particular, transcender as diferenças
que polarizam, enfraquecem e comprometem o ativismo que visa à
criação de uma sociedade mais justa. Transportar as vozes dos grupos
LGBTI para as lutas de classe exige que seu ativismo seja enraizado em
diferentes sítios de luta, que não devem ser vistos como contraditórios
um com o outro e que, como argumenta Judith Butler139, não precisam
ser reconciliados. Isso significa, por exemplo, se engajar nas posições
tomadas pelos ativistas queer que participam dos movimentos de
mulheres, enquanto feministas, das uniões de trabalhadores, enquanto
trabalhadores, e de outras plataformas de justiça social e econômica,
sendo que cada um desses movimentos se compromete com os outros
de maneira interseccional. Isso significa menos o fato de escamotear
a diferença, que reconhecer e construir a partir da diversidade. Nira
Yuval-Davis140 nos exorta em direção a políticas transversais, nas quais a
unidade percebida e a homogeneidade são substituídas por diálogos que
reconhecem o posicionamento específico daqueles que participam, assim
como o ‘conhecimento incompleto’ que cada posicionamento situado
pode oferecer. As políticas transversais, porém, não assumem que o
diálogo é sem fronteira e que cada conflito de interesse é reconciliável. As
fronteiras do diálogo transversal são determinadas pela mensagem mais
do que pelo mensageiro.
Enquanto a dimensão política permanece abstrata (de estruturas de
poder), para a maioria dos africanos, a dimensão econômica do pão e da
manteiga permanece imediatamente acessível, para aqueles sobre os quais
pesam a vida quotidiana e as lutas pela sobrevivência, dramatizadas de

139 BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the Discursive Limits of Sex. London: Routledge, 1993.
140 YUVAL-DAVIS, Nira. Gender and Nation. London: Sage Publications, 1997, p. 131.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 71
maneiras extraordinariamente similares pelas fronteiras étnicas, sexuais
e raciais. Há uma probabilidade maior de atingir a unidade nesta última
dimensão [socioeconômica], de forma que – não surpreendentemente
– é mais crucial para os poderes hegemônicos tentarem eliminar esta
dimensão, como base para uma campanha unitária, como já está sendo
testemunhado pelas tentativas de exterminar os direitos LGBTI e nossa
participação em órgãos superiores como a União Africana ou a ONU e,
em nível nacional, por meio de processos legislativos, como as tentativas
em Uganda, desde 2009, de criar leis extremas contra a homossexualidade.
É também crucial, então, para os ativistas, reconhecer a atualidade desta
dimensão socioeconômica e trabalhar para consolidá-la, enquanto base
central para as lutas de classe.

Conclusão

Amory141 observa que nossas análises devem ser informadas pela


consciência das causas múltiplas e interseccionais da persecução e da
opressão políticas: gênero, raça, etnicidade, classe, religião, assim como
sexualidade. Precisamos trabalhar no sentido de formar alianças com
outros estudiosos e grupos que compartilhem estes objetivos. É também
importante relembrar que, historicamente, a incapacidade de articular
os objetivos da luta como um continuum enfraqueceu a solidariedade
e retardou o avanço, sendo uma fonte contínua de divisões internas.
Optar unicamente pelas sexualidades transcende a classe, a raça e a
geografia e não deve formar as bases sobre as quais as lutas continentais
pela igualdade continuam a sofrer recuos. Qualquer ressurgimento da
homofobia está destinado a reorientar o ativismo queer para o pessoal e o
político que, embora importantes, podem também ser contraproducentes,
na medida em que isso pode impedir o engajamento necessário do
ativismo queer com as questões interseccionais de classe e, ainda mais,
impedir o ativismo queer de ganhar uma voz contundente para enfrentar
os discursos patriarcais, sexistas e heteronormativos na sociedade. Não

141 AMORY, Deborah P. Homosexuality in Africa: issues and debates. A Journal of Opinion, v.
25, n. 1, p. 5-10, 1997.

72 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
pode ser ignorado o perigo de retraimento nas políticas de identidade
no momento em que o agravamento de problemas sociais e econômicos
no continente obriga a alianças fortes pela justiça social. Não é irônico
o fato de que as atuais políticas da alteridade, na África pós-colonial,
estejam tão intensamente incorporadas dentro de um discurso de classe
e sexualidade: muitos aspectos da vida quotidiana na África retêm a
conexão da sexualidade a questões de economia política. Enfim, a ideia
de que o ativismo queer deveria, realmente, recuperar as análises de classe
na África não é totalmente inoportuna.

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB)

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 73
Caster corre para mim
Ola Osaze
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

Na África do Sul, milhares de milhas distante da cidade de Nova York,


vive e respira Caster Semenya. Talvez, ela esteja ainda treinando para a
próxima corrida, imaginando uma vitória não ofuscada por questões
relativas ao seu gênero. Ela surgiu de uma relativa obscuridade para
quebrar o recorde mundial e ganhar a medalha de ouro na final feminina
dos 800 metros, em Berlin, em 2009.
A vitória dela foi tão surpreendente que todos os murmúrios a
respeito do seu gênero foram, repentinamente, amplificados. Outras
poucas corredoras, que pensaram que o título deveria ser, corretamente,
delas, resmungaram publicamente. A Associação Internacional das
Federações de Atletas (IAAF) interveio, recusando-se em acreditar que
alguém tão jovem, inexperiente e, como argumentariam alguns, tão preta
e pobre, pudesse ganhar. Fizeram o inimaginável: obrigaram Semenya a se
submeter a uma bateria de exames de gênero. Muitas das pessoas com um
corpo feminino temem a visita anual ao ginecologista. Muitas tremem ao
pensar em deitar na mesa de exame com as pernas abertas (stirruped) para
que um indivíduo, que recebeu um treinamento médico, possa examinar
o que tem entre elas. O que Caster teve de enfrentar nas mãos dos supostos
expertos de gênero, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e
especialistas em medicina interna fez com que o Papanicolau (pap smear)
de rotina lembrasse uma agradável e pacífica caminhada na praia de areia.
Enquanto nigeriano que desafia as categorizações de gênero, para mim,
a história de Semenya é muito familiar. Decidi entrevistar outrxs africanxs
da cidade de Nova York que também estão, de uma maneira ou da outra,
fora das normas de gênero. Queria saber com quais aspectos da história de
Caster elxs se identificavam mais fortemente, suas análises sobre a forma
com que Caster foi tratada e o que o mundo todo podia aprender disso
naquele momento. Perguntei a NCK, um africano que queria manter o
anonimato, por que existia um furor tão grande ao redor das expressões
de gênero de Semenya. Não somente como ela ousou se colocar na
arena feminina, mas como ela ousou sair destas armadilhas de pobreza,
participar da corrida, atravessar a linha final, endossar a medalha de ouro

74 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
e a bandeira da África do Sul. NCK relaciona as experiências da atleta
com os legados da colonização na África, afirmando que isso acontece da
mesma maneira em que rótulos como “de cor” ou “indiano” eram usados
para impor e sustentar o apartheid na África do Sul. As palavras não
deveriam impor limitações, explica, embora palavras e expressões como
“masculino” ou “hermafrodita” foram usadas por parte de outros atletas
oficiais da IAAF e jornalistas mainstream para desumanizar Caster, apesar
de sua vitória.
Kagendo Murungi, uma mulher queniana que se identifica enquanto
não conforme às normas de gênero, como gesto de resistência contra o
sistema binário de gênero que regula a sociedade, afirma que os sucessos
das mulheres africanas são constantemente desvalorizados por causa
dos difundidos estereótipos racistas e sexistas. Há uma longa história de
como os aspectos mais íntimos de nossas anatomias físicas são exibidos
ao redor do mundo para o prazer das elites europeias. O espetáculo e
ultraje de Saartjie Baartman, a “Vênus de Hottentot”, pode ser o exemplo
mais conhecido deste fenômeno, ela declara. Da mesma forma, Yvonne
Fly Onakeme Etaghene, que se identifica como uma poetisa lésbica
nigeriana, argumenta: “Se Caster pode ser alguém que não se encaixa nos
papéis de gênero socialmente prescritos, então, isso significa que as nossas
demarcações de gênero não são reais”.
Os oficiais da IAAF pediram que Caster provasse essencialmente que
ela é uma mulher ‘tradicional’. ‘Bem, o que é uma mulher tradicional?
Quais são os corpos das mulheres tradicionais?’ pergunta NCK. ‘Estão
tentando dizer que esse é um corpo que devemos excluir do conjunto dos
corpos rotulados enquanto mulheres, como oposto ao exame do rótulo
de mulher, e vendo que a experiência é muito mais ampla e esta pessoa
a transcendeu toda’. No caso de Caster, transcender implicou o fato de
ser uma atleta natural, recusando-se a obedecer às normas de gênero em
termos de como vestir, se comportar, treinar sem fim e desenvolver um
corpo musculoso que muitos, independentemente do gênero, competem
para ter (a configuração muscular de Linda Hamilton in Terminator 2 foi
a única razão pela qual eu ia na ginástica nos anos 1990). As mulheres
masculinas não são uma novidade, então, por que Caster e as pessoas
não conformes, em termos de gênero, são demonizadas pela sociedade
majoritária? Etaghene culpa a incapacidade das pessoas de aceitar
as expressões de gênero que caem fora do sistema binário de gênero

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 75
socialmente prescrito e imposto em praticamente todas as esferas da vida.
‘As pessoas não sabem como lidar com os corpos atléticos a não ser que
sejam de quem tem pênis. Não sabem lidar com as maneiras nas quais as
mulheres podem ser e são masculinas’.
Etaghene afirma que a não conformidade de gênero constitui uma
parte vital da tessitura das experiências e das expressões africanas. ‘Se
você olhar para as culturas africanas e outras da alvorada dos tempos,
sempre existiram mulheres masculinas e homens femininos; e pessoas
que atravessaram o espectro do gênero, seja em uma cerimônia espiritual,
onde alguém que é biologicamente mulher recebe (is possessed) um
espírito masculino e se comporta de uma forma que é percebida como
masculina. Isso é revolucionário em termos de gênero’. A poetisa esportista
de pele escura e de cabelo ‘fro-hawk’142 foi, muitas vezes, vilipendiada por
conta da sua identidade. ‘Posso falar das pessoas que te dão murros e
fazem um espetáculo de você. Seja o que for, o que eu tenho para dizer, o
como eu pareço, ou o fato de ser uma lésbica nigeriana, as pessoas fazem
disso um espetáculo. ‘Oh, meu Deus, você é uma lésbica nigeriana, tem
somente uma pessoa como você e você é estranha’’. Etaghene usa a arte
como uma maneira de cicatrizar estas experiências. ‘É como permanecer
forte e focada, sabendo que eu sou minha própria normalidade. Não sou a
esquerda do centro. Sou meu próprio centro. Não olho para, por exemplo,
a feminilidade heterossexual branca como o que eu deveria ser’.
O que se está encorajando é como os sul-africanos, percebendo a
base racista e sexista das ações da IAAF, defenderam, categoricamente,
a sua moça de casa (home girl). Etaghene, Murungi e NCK pensam que
isso apresenta a oportunidade perfeita para aumentar a visibilidade – e
um diálogo respeitoso – da interconexão das mulheres africanas com
as experiências lésbicas, gay, bissexuais, não-conformes quanto ao
gênero, trans* e intersex. ‘Se nada mais, pelo menos, talvez, a imprensa
convencional noticiará sobre as pessoas intersex e deixará o termo
ofensivo hermafrodita no passado ao qual pertence’, acrescenta Murungi.
De maneira similar, Etaghene se sente esperançosa de que mais pessoas
apoiarão, com fervor, os direitos intersex, colocando, assim, os assuntos

142 N. T.: o termo frohawk remete a um tipo de estilo afro-americano de cabelo, que deriva da
palavra mista entre afro e mohawk (moicano). 

76 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
intersex em uma escala mais global. Adicionalmente, de acordo com
Murungi, o retrato irresponsável, datado, impulsivo, racista, sexista,
transfóbico, exotizante de Caster, feito pela mídia mainstream, foi
repetidamente desafiado por uma onda de jornalistas DIY (Do It Yourself)
‘Faça a si mesmo’, e entusiastas das redes sociais.
As pessoas postaram mensagens assertivas em sites de internet, do
tipo ‘Caster corre para mim’ e ‘Para Caster Semenya’. Outras colocaram
vídeos no YouTube expressando sua solidariedade de muitas maneiras.
Por exemplo, um desenho animado de um minuto, também intitulado
‘Caster corre para mim’, do artista queer turco-alemão Beldan Sezen, incita
as pessoas a questionar os papéis de gênero e desafia qualquer tentativa de
policiar as expressões de gênero. No caso de Etaghene, a solidariedade foi
expressa através da criação de um poema de amor em honra a Semenya
como uma sobrevivente. Em um trecho de seu poema, “Caster Semenya:
praising your name”143, a poetisa olha para o passado e profetisa sobre o
futuro:

Mas, machuca ser visionária, às vezes, ser brilhante, excelente,


Às vezes, fere de formas que nunca poderíamos ter imaginado,
O pioneiro é frequentemente bramido,
Mal-entendido, demonizado –
De Jesus a Tupac
Audre Lorde a você, Caster
Qualquer umx que é diferente ou excepcional,
Sente o impacto de uma pena inesperada & criticismo
As crianças de seus críticos
Louvarão teu nome,
Agitarão uma camiseta com tua cara,
Terão pôsteres de você em suas paredes para inspirá-las a serem
grandes144

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB)

143 Caster Semenya: louvando o seu nome.


144 O resto do poema de Etaghene pode ser encontrado no seu blog, “Uma lésbica de certo cali-
bre”: http://www.myloveisaverb.com.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 77
A história única a homofobia africana é
perigosa para o ativismo LGBTI
Sibongile Ndashe
Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e Equipe do
FEMPOS

Dado que o movimento nascente para os direitos de lésbicas, gays,


transexuais e intersex (LGBTI) cresce, reivindicando seu lugar nos espaços
públicos e se tornando cada vez mais visível, a próxima fase exige que se
preste atenção na mensagem que ajuda a impulsionar o movimento. Não
é mais suficiente contar o número de afirmações e de palavras de apoio
que o movimento recebe. O ponto de partida foi sempre que os direitos
LGBTI são direitos humanos e, por sorte, esse é também o ponto final.
Esta fase atual do ativismo deve responder ao contexto social, explicar as
perspectivas e o que ele procura, identificar aliados e definir atividades e
estratégias com o objetivo de responder aos desafios e às oportunidades
enfrentadas pelo movimento. O que era, um tempo atrás, pouco nítido
precisa ser apurado, as estratégias (de luta) não questionadas devem ser
colocadas em questão. A construção do movimento permanece sendo uma
parte integral desse processo. Eu vou focar no aspecto da construção do
movimento: as oportunidades e os desafios da construção e da sustentação
das relações com outros movimentos, locais, regionais e internacionais.
Diferentes países no continente se encontram em diferentes fases
do ativismo. Alguns países não têm movimentos para falar e a postura
de “não pergunte, não conte” (Don’t ask, don’t tell) permanece a única
forma de ativismo: se sabe que existem pessoas LGBTI nas comunidades,
mas não há discussão a ser feita. Há países onde houve movimentos que
permaneceram estáticos, pois não foi possível expandir os círculos do
ativismo. Há países onde o movimento foi capaz de se enraizar na sociedade
civil. A afirmação “a África é um continente, não um país” se torna mais
importante onde a história única continua a permear o ativismo LGBTI
no continente, ou seja, a ideia de que o ativismo não existe, que somente
existe homofobia. Outrxs comentadorxs criticaram com eloquência a
história única que é contada sobre a relação da sociedade civil africana

78 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
com o movimento LGBTI no continente145.
A história única é, de fato, uma história perigosa que torna mais fácil
impor soluções rápidas no mar “do nada”; torna mais fácil enfraquecer
os processos locais simplesmente porque “eles não estão acontecendo”;
e torna mais fácil cooptar indivíduos e chamá-los de movimentos locais
com vistas a ganhar o apoio em um país. Isso confere às vozes não
africanas a cobertura para perseguir suas próprias agendas e reforça os
movimentos homofóbicos dentro da sociedade, quando eles afirmam que
a homossexualidade é parte da agenda ocidental. Mesmo com as melhores
intenções, as intervenções estrangeiras frequentemente não compreendem
as dinâmicas e as políticas locais e podem causar muito mais prejuízos do
que promover o bem. Mais fundamentalmente, a tentativa de estrangeiros
de liderarem a luta do movimento na África subordina os interesses da
comunidade local aos interesses de atores externos, reforçando divisões
raciais enraizadas dentro do movimento global e afogando as vozes
progressistas e os movimentos de desenvolvimento.
A procura por homofóbicos num contexto onde se sabe que a
homofobia existe é inútil a não ser que, é claro, o único interesse seja
sustentar a evidência da homofobia e envergonhar quem for descoberto
como homofóbico. Esta fascinação em indicar as pessoas homofóbicas
habilitou o silenciamento de vozes progressistas. Isto também nega a
oportunidade de ser ouvido por aqueles que mudaram, voluntariamente
ou não, que estão indecisos, que estão começando a falar ou estão dizendo
coisas progressistas.
Ao falar sobre a forma com que a homofobia é tolerada por um Estado
como a África do Sul, por exemplo, é frequentemente citado um incidente
do atual presidente Jacob Zuma146. Falando para líderes tradicionais
em uma maneira que qualificamos como uma incitação à violência, ele
afirmou que, quando era jovem, nenhuma pessoa gay teria ficado na
frente dele147. Zuma foi justamente e energicamente condenado por esta
afirmação. Naquele momento, foi demitido da vice-presidência do país,

145 KEGURO, Macharia. “Homophobia in Africa is not a single story”. Guardian, 26 de maio de 2010.
146 N.T.: Até fevereiro de 2018.
147 iol, “Zuma provokes ire of homosexuals”, 26 de setembro de 2006.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 79
mas continuou sendo ainda vice-presidente do ANC (African National
Congress). Nos dias em que sua afirmação se tornava notícia nacional
e internacional, Zuma fez um pedido de desculpa inqualificável148. Em
narrações posteriores a esta história, a desculpa continua a ser apagada,
pois é inconveniente para a narrativa de como os líderes políticos africanos
não são abertos. Em outro incidente, quando Zuma foi levado a dizer
algo sobre a condenação e a sentença de Tiwonge e Steve, no Malaui, pela
Aliança Democrática, ele falou, erroneamente, que a África do Sul tinha já
condenado o acontecido149. Nenhuma informação podia ser encontrada
a propósito do suposto pronunciamento de condenação da sentença.
Contudo, o efeito foi que o presidente da África do Sul teria condenado
a sentença no parlamento sul-africano, o que correspondia a uma ação
positiva tomada pelo país. Apesar das inerentes contradições com a
política de relações internacionais da África do Sul de não comentar sobre
as questões domésticas de outros países da região, a condenação, que era
claramente emitida pela primeira vez no parlamento, quando Zuma foi
levado a falar, foi tornada invisível pela história única.
De maneira semelhante, quando o primeiro ministro do Zimbábue
disse que tinha mulheres suficientes para os homens no Zimbábue, e que
não podia entender o porquê os homens queriam suspirar um no ouvido
do outro150, ele foi vigorosamente condenado. Quando seu partido, o
MDC, rapidamente se mexeu para emitir uma declaração, distanciando
a organização da afirmação151 (do primeiro ministro), a história única
não deixou que a retratação fosse colocada. E isso apesar do fato de que,
provavelmente, o maior partido no país tivesse efetivamente adotado uma
posição que defende os direitos LGBTI.
Similarmente, o primeiro ministro queniano, Raila Odinga,
erroneamente referiu-se à constituição queniana como se proibisse as

148 “Zuma sorry for gay remarks”. News24, 28 de setembro de 2006.


149 BOYLE, Brendan. “Zuma slams Malawi imprisonment of gays”. Times Live, 27 de maio de 2010.
150 New Zimbabwe. “Mugabe, Tsvangirai slam homosexuals”, 26 de março de 2010.
151 MHLANGA, Sithandekile. “Zimbabwe PM Tsvangirai’s comments on gay rights only per-
sonal opinion – spokesman”. Voice of America (VOA), 26 de março de 2010; BLESSING-MILES,
Tendi. “African myths about homosexuality”. Guardian, 23 de março de 2010; Zimbabwe repórter,
“MDC in damage control over PM gay remarks”, 26 de março de 2010.

80 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
relações entre pessoas do mesmo sexo152. A constituição do Quênia não
diz nada sobre este tema. Nos dias seguintes à afirmação, após ter sido
condenado, ele afirmou ter sido mal entendido. Embora não tivesse se
retratado a respeito da afirmação, esclareceu que não desejava mais ser
associado a ela, pelo menos publicamente.
Nestes três casos, o perigo posto pelas afirmações iniciais não pode ser
exagerado. As afirmações foram odiosas e desonestas. Todos falavam para
os eleitorados que tinham julgado serem mais favoráveis à homofobia.
Nada no passado deles podia ter preparado seus apoiadores progressistas
para estas afirmações. Não se podia dizer que Zuma estivesse testando
as águas; isso é o que torna a sua primeira afirmação mais chocante.
Tsvangirai e Odinga também foram descritos pela mídia como defensores
progressistas da democracia e dos direitos humanos e as suas afirmações
chocaram, pois pareciam ser uma negação da possibilidade de aplicar
os direitos humanos para a comunidade LGBTI. Porém, as retratações
e correções mostram claramente que existem forças sociais dentro e fora
destes três países que têm o poder de controlar, mitigar e negar a homofobia
de políticos individuais. Quem se beneficia quando as narrativas apagam
a queda e as retrações que acontecem após o pronunciamento destas
afirmações?
Enquanto as declarações destes e de outros líderes políticos
permaneceram firmemente em destaque, as vozes progressistas e outros
desenvolvimentos positivos continuaram a serem apagados. Em Uganda,
o líder da oposição e então candidato à presidência, Kizza Besygie, afirmou
publicamente a sua oposição ao projeto de lei anti-homossexualidade e
defendeu a descriminalização da homossexualidade153. Ele baseou sua
rejeição, em primeiro lugar, no direito à privacidade, o que significa que
o Estado não tem interesse no que as pessoas fazem atrás das portas
fechadas, embora ele também argumentou que arrastar e perseguir os
membros da comunidade LGBTI seria uma perda de recursos públicos.
De maneira semelhante, no Malaui, semanas depois que a legislatura

152 MOMANYI, Bernard. “Arrest gays, Kenyan PM orders”, Capital News, 28 de novembro de 2010.
153 IQ4News, “Kizza Besigye condemns ‘kill the gays’ bill”, 11 de janeiro de 2011.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 81
votou a inclusão da conduta lésbica sob as disposições do Código Penal,
que proíbe as relações entre pessoas do mesmo sexo, o ministro da justiça
e dos assuntos constitucionais, Doutor George Chaponda, afirmou que
o Malaui não mudaria as leis para descriminalizar a homossexualidade
depois que a Alemanha cortou suas ajudas financeiras ao país, em
resposta à sua falha ao fazer isso154. Ele também argumentou, porém, que,
enquanto a homossexualidade permanecesse contra a lei, o Malaui tinha
leis de privacidade que protegiam as pessoas da intrusão do Estado e disse
que os homossexuais não seriam geralmente perseguidos. Embora esta
não seja a solução perfeita, o uso das leis sobre a privacidade pode ser a
melhor estratégia a curto prazo no Malaui para proteger os direitos das
pessoas LGBTI. Estas afirmações ainda são ignoradas pela narrativa da
história única.
A partir destes exemplos, podemos ver, ao mesmo tempo, que a
homofobia permanece forte no continente – disso não pode haver dúvidas
– mas também que existem grupos de pressão dentro das sociedades
africanas, nos partidos políticos e nos parlamentos nacionais, assim como
nos governos, que são preparados a enfrentar a homofobia e a pressionar
os governos a respeitar os direitos das pessoas LGBTI.

A África deve mover-se rapidamente. Agora!

Em outras partes do mundo ocorreram vários e prolongados processos


que tentaram conquistar os direitos da população LGBTI. Embora
não haja uma fórmula, um caminho que possa ser traçado, copiado e
considerado útil para todo mundo, algumas das estratégias sugeridas
para vários países parecem ser estabelecidas contra um desenvolvimento
gradual do movimento. No momento, as estratégias propostas para o
movimento africano variaram, mas o que eles têm em comum é a ideia
de que a construção do movimento é um acréscimo de necessidade e que
há uma maneira rápida na qual a indignidade, o estigma, a violência e
o ódio contra a população LGBTI podem ser superados. Também é

154 Nyasa Times, “Malawi refuses ‘homosexuality’ aid condition”, 9 de fevereiro de 2011.

82 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
sugerido que a resposta a como enfrentar as várias formas de violações
a direitos da população LGBTI pode ser encontrada nos tribunais e
que a solução pode ser tão simples quanto encontrar um advogado,
um cliente, escrever um sumário, e fazer com que as Cortes declarem
inconstitucionais as leis que criminalizam as relações entre pessoas do
mesmo sexo. Um movimento crescente e cauteloso está sendo cobrado
para que se torne mais assertivo e agressivo na reivindicação de direitos.
Aqueles que argumentam diferentemente são acusados de se contentar
com o status quo ou simplesmente de serem covardes. É parte da história
única propor uma única solução para a África, sem levar em conta os
diferentes níveis de preparação nos países para sustentar a ação e negando
os contextos específicos de cada país. O impacto potencial negativo de tais
estratégias em países que não estão prontos é enorme. É quase possível
que as decisões legais sejam tomadas a nível nacional e regional, que a
criminalização da homossexualidade seja tanto constitucional e de acordo
com a Carta Africana. Isso pode ter um efeito de reforçar a criminalização
em todo o continente e causar dano aos países onde as estratégias locais
estão tendo sucesso na transformação das atitudes; somados ao efeito
potencialmente catastrófico sobre os indivíduos que escolheram levar o
caso à frente nestes países.

Receber sanções

Era só uma questão de tempo antes que os países africanos começassem


a questionar o fato de serem intimidados pelos países ocidentais a
mudar a sua posição em relação à homossexualidade. Politicamente,
com a homofobia como a narrativa dominante no continente, essa era
uma venda fácil para os políticos. A moeda de troca, que corresponde
à chamada retirada da ajuda financeira, foi claramente subestimada. A
retirada da ajuda em nome de uma minoria é um perigo e uma faca de
dois gumes que, frequentemente, leva a futuros sofrimentos por parte de
outros grupos em desvantagem, beneficiários das ajudas, e pode levar ao
isolamento futuro dessa minoria.
Quando o Malaui rejeitou a ajuda financeira dos alemães, pois
as condições postas eram de descriminalizar a homossexualidade, os

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 83
perdedores foram, claramente, as múltiplas causas às quais a ajuda
financeira dava suporte. Politicamente o perdedor foi a Alemanha por ser
o intimidador e não se importar com os direitos humanos e pela insistência
na imposição de valores ocidentais. Foi fácil, para o Malaui, manter a
cabeça erguida e dizer “esse dinheiro é uma ameaça à nossa soberania
e enfraquece a nossa autonomia política, os valores sociais e culturais
que mantemos”. Independentemente da maneira como esse movimento
aconteceu, como isso ajuda os movimentos locais LGBTIs a se tornarem
enraizados nos movimentos da sociedade civil local que precisam de um
financiamento de doadores para fazer uma variedade de outras atividades
e prover serviços para outras causas? Como esse movimento permite que
os movimentos locais continuem dialogando com seus governos quando
as suas questões custaram ao país tanto em ajuda financeira externa? A
história única desconsidera os processos e os contextos locais e pretende
que o movimento LGBTI seja insular e possa trabalhar sem laços locais.

Amigos sinceros

Cada vez mais há uma visão de que a luta pelos “direitos gays” é mais
do que apenas uma luta pelos direitos humanos. O envolvimento ocidental
é facilmente denunciado como uma outra forma de colonialismo e algo
que deve ser rejeitado por uma questão de princípio. Há várias maneiras
pelas quais o sentimento é expresso, mas há uma visão de que o Ocidente
se preocupa mais com os direitos dos homossexuais do que com outros
direitos humanos, da mesma forma em que sempre parecia se preocupar
com os direitos humanos das pessoas cujos países tinham petróleo. Em
janeiro de 2011, quando David Kato155 foi assassinado, organizações e
governos internacionais se acotovelaram uns aos outros para subir ao
pódio e denunciar o assassinato. A resposta das autoridades ugandesas foi
negar imediatamente que a homofobia tivesse algum papel no assassinato
de Kato. Outros perguntaram onde estava esta exibição de indignação da
comunidade internacional quando as pessoas eram massacradas nas ruas.
Se fossem as minorias com as quais o Ocidente se preocupava, onde eles

155 Um ativista LGBTI da Uganda que foi assassinado em 26 de janeiro de 2011.

84 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
estavam quando o povo Batwa continuava sendo caçado no Congo, o povo
de Basarwa enfrentava violações dos direitos humanos em Botsuana e os
albinos em algumas partes da África Oriental eram assassinados? Onde
estava a onda de apoios e atenção da mídia quando tudo isso acontecia?
A grande distinção entre discriminação contra minorias sexuais e
a discriminação a qual outros grupos são submetidos é que a lei serve
para autorizar, normalizar e legitimar a discriminação, criminalizando
a conduta sexual de minorias sexuais. Em quase todos os casos, os
governos admitirão com prazer as leis e justificarão sua existência. As
outras formas de discriminação são muitas vezes questões que os próprios
governos sentem que não têm solução e tomaram medidas para proibir
a discriminação naquela base. Se os governos são os perpetradores das
violações, não o admitirão facilmente. No máximo, os governos procurarão,
com frequência, absolver o mecanismo estatal e demonstrar como eles
estão cumprindo os padrões internacionais de direitos humanos ao iniciar
investigações para processar aqueles que estão envolvidos. Enquanto o
envolvimento ocidental é visto como um incentivador ou único defensor
do movimento LGBTI, o crescimento do movimento e sua consolidação
na sociedade civil permanecerão ilusórios e a autonomia dos movimentos
permanecerá em questão.
Da mesma forma, campanhas de Internet bem-intencionadas que
visam à promoção do ativismo LGBTI podem conseguir o oposto. Em
dezembro de 2010, os codiretores do AIDS-Free World embarcaram
em uma campanha de escritura de cartas para falar abertamente contra
a homofobia. Inicialmente, pareceu que estavam escrevendo para
instituições. Escreveram para a União Africana, o Commonwealth e as
Nações Unidas. Então havia uma correspondência entre Paula Donovan e
Bernice Sam, que é a diretora regional da Women in Law and Development
in Africa (Mulheres em Direito e Desenvolvimento na África/WILDAF)156.
Os fatos, em grande parte desenhados a partir da correspondência entre as
duas, referem-se a um comentário de Bernice Sam durante o processo de
revisão da Constituição de Gana. Sam é acusada de ter dito: “Acreditamos

156 AIDS-Free Africa. “Homophobia plagues Africa, correspondence between AIDS-Free World
and Berenice Sam”, 16 de dezembro de 2011.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 85
que é hora para que nossa Constituição defina o casamento claramente,
porque não podemos esconder o fato de que esses tipos de uniões podem
nos alcançar no futuro. Este é o momento de dizer nós não queremos
casamentos do mesmo sexo”.
Há muitas coisas que dizem respeito à correspondência, incluindo
o tom, a linguagem e o conteúdo. Vou me concentrar em duas, o
contexto e a questão. Gana não tem um grande movimento LGBTI; o
Centro de Educação Popular e Direitos Humanos (Gana) (CEPERGH)
e outros estão trabalhando para construir esse movimento. A questão da
discriminação não foi debatida publicamente. Durante o ano passado,
houve marchas organizadas por associações cristãs e muçulmanas contra
a homossexualidade. Poucas figuras públicas, como a advogada de direitos
humanos Nana Oyeh Lithur, estão dispostas a se associar, publicamente,
à situação das relações homossexuais. É inútil dizer, neste ponto, que os
casamentos do mesmo sexo, embora exigidos para a plena igualdade, ainda
não estão na agenda. Bernice Sam é uma defensora respeitada dos direitos
das mulheres não só em Gana, mas também na África Ocidental e em
outras partes do continente. O movimento nascente LGBTI está buscando
expandir círculos de ativismo com outras organizações convencionais de
direitos humanos. Em muitas partes do mundo, o movimento de mulheres
foi um apoiador tradicional e continua sendo um aliado do movimento
LGBTI em muitas partes do continente.
Como o linchamento público de Bernice Sam e a exortação a
denunciar a homofobia são úteis para alguém? Qual ativista perguntou
sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Gana? Quem, no
Gana, foi preparado para entrar em debate sobre o casamento entre
pessoas do mesmo sexo? Os casamentos gays continuam sendo um assunto
controverso em todo o mundo. Um grande refrão de muitos opositores
sobre a questão da descriminalização diz que: “se descriminalizamos,
eles vão querer casar e adotar filhos”. Advogados e ativistas afirmaram,
constantemente, “não é disso que estamos falando agora. Vamos
atravessar esta ponte quando chegarmos a esta questão”. A campanha pelo
amor igualitário do Reino Unido e a batalha que quase está terminada
nos Estados Unidos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo não
podem ser transplantadas para Gana. Seria uma intervenção prematura e

86 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
não adequada para o contexto. Isso força os ativistas locais a dar respostas
e a entrar em batalhas que não são alcançáveis e colocam problemas na
agenda com que não têm capacidade de lidar.

Conclusão

A situação na África, em relação aos direitos das pessoas LGBTI,


é diversificada e complicada pela política, pela história e pelas normas
sociais nacionais e locais. Enquanto a homofobia é particularmente forte
na África de língua oficial inglesa, em parte como consequência das leis
coloniais, também existe na África de língua oficial francesa. Algumas
organizações convencionais da sociedade civil e partidos políticos de
oposição começaram a apoiar o movimento, enquanto outros mantiveram
posições populistas sobre o tema. Os países onde o governo se sente
menos legitimado são, na maioria dos casos, os mais fortes na afirmação
de sua retórica homofóbica, fazendo críticas externas potencialmente
contraproducentes. É preciso que cada país desenvolva as suas próprias
estratégias para promover os direitos das pessoas LGBTI e a história única
milita contra isso, criando a impressão de que existe uma resposta simples,
muitas vezes legalista, ao que se entende claramente como violações dos
direitos humanos.
Será importante para os movimentos locais interagir com aliados
regionais e internacionais em sua luta pelos direitos LGBTI. As
colaborações locais, regionais e internacionais foram capazes de ajudar os
movimentos a desenvolver estratégias eficazes. No entanto, será crucial que
os movimentos locais tenham a posse de suas lutas e que os movimentos
regionais e internacionais sirvam para complementar e auxiliar. Nessa
linha, é importante fazer perguntas sobre a relação com organizações não
nacionais da sociedade civil. Essas relações estão direcionadas a iniciar
ações ou apoiar movimentos locais? O que as ONGs internacionais
podem fazer em países onde não existem movimentos ativos da sociedade
civil? O que acontece se os processos não estão ancorados, controlados
ou apoiados pelos grupos locais? Como os movimentos LGBTI locais e
internacionais interagem com as organizações dominantes da sociedade
civil hostis e neutras? Como os políticos locais progressistas ou neutros

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 87
costumam desenvolver mudanças positivas? A narrativa da história
única do africano homofóbico não permite que essas perguntas sejam
feitas e respondidas honestamente nos diferentes países do continente
e, portanto, atua como uma barreira ao desenvolvimento de estratégias
nacionais efetivas.

Agradecimentos

Um agradecimento especial aos amigxs, Solomam Sacco, que forneceu


comentários críticos e perspicazes, ajudou imensamente a esclarecer e
moldar algumas das ideias, e a Joel Nana, que está sempre disponível no
outro extremo da linha para discutir, compartilhar fatos e ideias, fornecer
informações e desafiar algumas delas. Todos os erros são inteiramente
meus.

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB)


e Izzie Madalena Santos Amancio (UNILAB)

88 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Manifesto LGBTI africano/declaração
Autorexs varixs
Tradução Thamy Ayouch/Université Denis Diderot, Paris VII

Como africanxs, temos todxs um potencial infinito.157 Pleiteamos uma


revolução africana que abranja a exigência de (re)imaginar as nossas vidas
fora das categorias neocoloniais de identidade e poder. Durante séculos,
fomos controladxs por estruturas, sistemas e indivíduos que fizeram
desaparecer a nossa existência como pessoas detentoras de agência,
coragem, criatividade e autoridade econômica e política.
Como africanxs, pleiteamos a celebração das nossas complexidades e
somos dedicadxs a modos de viver que permitam a autodeterminação em
todos os níveis das nossas vidas sexuais, sociais e políticas. As possibilidades
são infinitas. Precisamos de justiça econômica; precisamos reivindicar
e redistribuir o poder; precisamos erradicar a violência; precisamos
redistribuir as terras; precisamos de justiça de gênero; precisamos de
justiça ambiental; precisamos de justiça erótica; precisamos de justiça
racial e étnica; precisamos de acesso justo a instituições, serviços e espaços
potencializadores e responsivos.
Somos especificamente dedicadxs à transformação das políticas da
sexualidade nos nossos contextos. Enquanto xs africanxs LGBTI forem
oprimidxs, toda a África será oprimida.
Esta visão exige que nos dediquemos a:
— Reivindicarmos e compartilharmos as nossas histórias (passadas
e presentes), as realidades que vivenciamos, as nossas contribuições à
sociedade e as nossas esperanças com respeito ao futuro.
— Consolidarmo-nos e reforçarmos as nossas organizações,
aprofundarmos os nossos vínculos e compreendermos as nossas
comunidades, construirmos alianças com princípios e contribuirmos
ativamente para a revolução.

157 African-lgbti-manifestodeclaration. Disponível em: <http://www.blacklooks.org/2011/05/>.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 89
— Desafiarmos todos os sistemas legais e todas as práticas que
criminalizam ou pretendem reforçar a criminalização das pessoas, das
organizações, da produção de saberes, da autoexpressão e da construção
de movimentos LGBTI.
— Desafiarmos o apoio do Estado às normas de sexualidade, gênero e
discriminação, às estruturas legais e políticas e aos sistemas culturais que
se revelam opressivos.
— Reforçarmos os vínculos de respeito, cooperação, paixão e
solidariedade entre as pessoas LGBTI, dentro das nossas complexidades,
diferenças e contextos diversos. Isso implica respeitar e celebrar as nossas
múltiplas formas de vida, de autoexpressão e de linguagens.
— Contribuirmos ao reconhecimento social e político do fato de que
a sexualidade, o prazer e o erotismo fazem parte da nossa humanidade
comum.
— Colocarmo-nos proativamente dentro de toda construção de
movimento que apoiar a nossa visão.

Tradução Thamy Ayouch (Paris VII)

90 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Queerizando as fronteiras: uma perspectiva
africana ativista
Bernedette Muthien
Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB

Qualquer campo de estudo somente adquire relevância se as pessoas,


e especificamente as comunidades das pessoas, forem capazes de usá-
lo em formas concretas. Consequentemente, teorizar unicamente pela
teoria, embora intelectualmente estimulante para alguns de nós, não
tem absolutamente relevância alguma para o dia a dia, para as realidades
vividas por pessoas comuns. Deve-se, portanto, ter cautela com essa visão
dualista, uma visão derivada da experiência vivida nos dois ambientes,
acadêmico e ativista, que raramente se interseccionam. Às vezes, as pessoas
comuns não são vistas como ‘teóricas’ acerca das próprias experiências
e as pessoas que gostam de teoria parecem, irremediavelmente, carentes
de experiência – falando com fluidez, uma experiência é teórica tanto
quanto a teoria é muito mais experiencial. Esses termos não deveriam ser
colocados como pontos opostos. De maneira simultânea e, especialmente
para evitar opor de forma dicotômica a teoria e a experiência, a inextricável
dança entre experiência e teoria não é frequentemente lenta e fechada, mas
solta e recortada, e amiúde abusiva, mais do que cocriadora. Daí o meu
compromisso entusiasmado com metodologias de pesquisa participativa,
baseada na ação, que procura o mútuo intercâmbio de capacidades.
No contexto africano mais amplo, e particularmente na África do
Sul, há quase vinte anos no processo de democratização, a transformação
sistêmica é de importância crítica. As questões que concernem às
maneiras como transformar as sociedades da desigualdade, da injustiça
e da violência sistêmica para sociedades de reconciliação, diversidade,
justiça e não violência são os temas mais importantes para muitxs de nós.
A violência é uma realidade quotidiana experimentada para as pessoas
não heterossexuais no mundo todo, e especialmente na África e, também,
mais perto de casa, na África do Sul, em particular. Aqui, como em toda
parte, as lésbicas são sujeitas ao que esta autora chama de “estupro curativo”,
o estupro de mulheres percebidas como lésbicas por parte de homens,

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 91
ostensivamente como uma cura para/das suas sexualidades aberrantes.
Outros homens, além disso, de forma ainda mais irônica, assujeitam
homens gays a este tipo de estupro curativo. Consequentemente, teorizar
sobre a não heteronormatividade e a lesbianidade, em particular, não pode
ser algo separado da realidade do estupro curativo para muitas lésbicas no
mundo, e particularmente na África do Sul.
Outras questões para completar a análise incluem: o quanto relevante o
campo dos estudos lésbicos é para as pessoas comuns, quem é uma lésbica
e quem define a lesbianidade. A palavra “lésbica”, como é o caso para a
maioria dos conceitos abrangidos pelo arco-íris ou pela sopa de letrinhas
LGBTQI, foi inventada e se desenvolveu fora das realidades africanas. Na
África do Sul, os que falam a língua nguni se referiram (de maneira errônea),
durante muito tempo, aos homossexuais como stabane ou hermafroditas
(intersex). Os habitantes originários da África do Sul, os Khoe-San, não
são heteronormativos e os gêneros e as sexualidades são vistas como
fluidas e dinâmicas, ao invés de binarismos estáticos. Esta fluidez refere-se
à maioria das populações indígenas mais antigas no mundo, dos bardache
nativos americanos aos hijras indianos. Estes incluem pessoas chamadas
geralmente de “terceiro sexo”, transgênero, intersex e/ou qualquer outra
condição diferente da dicotomia estereotipada do masculino-feminino.
Em geral, as definições funcionam em termos negativos que se definem
em relação (e geralmente em oposição) ao Outro. Consequentemente,
homossexual significa não heterossexual e lésbica significa uma mulher
não heterossexual ou homossexual. Porém, empregar uma definição linear
de lésbica pode excluir as infinitas variedades de escolhas da sexualidade
que estão entre os dois polos [inbetween] e variam com o tempo e com as
circunstâncias.
Assim, como devemos definir lésbica? Muitas pessoas com as quais
me associo definem a lésbica como equivalente do homossexual gay, ou
seja, como oposto de heterossexual. Enquanto o termo queer abraça todxs
aquelxs que não são heteronormativxs e inclui as fronteiras [inbetween]
fluidas, o termo ‘lésbica’ não me inclui necessariamente porque eu me
defino para além dos binarismos, como fronteira e como fluida, dinâmica
e variável. Talvez alguns possam me chamar de bissexual, mas este termo
também remete a uma noção de polaridade – de que eu sou ambos os

92 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
polos – quando na verdade eu me desloco e mudo de posição, não em
um continuum estático e linear, mas ao longo de uma elipse infinitamente
espiralar que, não ironicamente, é oval, símbolo do poder reprodutivo
feminino. A lésbica é definida como orientação ou como preferência?
Somos vítimas da biologia ou agentes ativas de escolha?
Enquanto respeito aquelas que se identificam como lésbicas, todxs
conhecemos lésbicas que dormem com homens, e lésbicas que, mesmo
que não atuem com eles, têm fantasias sexuais com os homens. O
mesmo se aplica a mulheres que se identificam como heterossexuais
e, frequentemente, em silêncio, mentalmente ou de fato, se relacionam
sexualmente com outras mulheres. Muitas mulheres fora da África do Sul,
que poderiam se identificar enquanto lésbicas em qualquer outro lugar,
estão casadas, com filhos e/ou praticam relações sexuais com pessoas do
mesmo sexo de forma oculta, devido à violência da homofobia patriarcal
pós-colonial. Por exemplo, a casa de uma líder ativista africana de gênero
foi bombardeada pelo menos uma vez, porque ela trabalhava, em termos
amplos, com as sexualidades e particularmente com os ativismos lésbicos
aparentemente fora da visão pública geral. Uma das suas tarefas foi
estabelecer uma rede nacional discreta para homens e mulheres gays. É
este ativismo clandestino para as sexualidades que resultou diretamente
em ataques a ela e que justifica extrema prudência por sua parte. Outro
exemplo são os ataques contra a cofundadora da Intersex South Africa,
Sally Gross, que necessitou de semelhantes medidas para a segurança
pessoal. Atos pessoais de violência contra ativistas não heteronormativxs
estão profundamente ligados com a violência social genérica contra
aquelxs que são percebidxs como não heterossexuais, o que inclui os
estupros curativos de mulheres percebidas como lésbicas, ação que é
tão prevalente, que as organizações queer da África do Sul têm projetos
inteiros especificamente dedicados a esta forma de violência de gênero.
São precisamente os imperativos do heteropatriarcado que mantêm
as lésbicas e suas irmãs heteras nas caixas inconsistentes de sua
sexualidade binária. É bem mais simples encontrar segurança em uma
identidade homogênea, mesmo que todas as identidades sejam mais
complexas aos olhos de uma pesquisa mais aprofundada. Por exemplo,
a paleoantropologia mostra que os seres humanos sempre migraram

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 93
através dos continentes e, consequentemente, a ideia de uma raça ou
nacionalidade homogênea é, na melhor das hipóteses, errada. Somos cada
umx, todxs, hibridizadxs, sem nenhuma certeza definida sobre as origens.
A única coisa da qual podemos sempre realmente estar certxs, nesta altura,
é que todxs nascemos humanos, mesmo que algumas antigas tradições
espirituais, como o Hinduísmo e o Jainismo, refiram-se a encarnações
entre as espécies.
Se assumimos que a sexualidade, como qualquer outra identidade,
muda constantemente na circunferência sem fim de um oval infinito, então
a sexualidade não pode nunca ser realmente fixada, não é predeterminada
e primordial, não nos detém fisiologicamente como reféns. Afinal das
contas, o campo da fisiologia, como tal, evidencia que cromossomos e
hormônios são fluidos por natureza e ambos, o macho e a fêmea, existem
em todos os seres humanos. Os polos estáticos de sexo macho e fêmea
são, por consequência, não cientificamente precisos e servem somente
aos interesses do heteropatriarcado para dividir e dominar, de maneira
semelhante àquela como a ciência foi usada para dividir e conquistar,
durante as épocas coloniais, e sob o regime do apartheid na África do Sul.
Como afirma Stephen Batchelor158,

as coisas não são claras como aparecem. Não são nem delimitadas
nem separadas umas das outras por linhas. As linhas são traçadas
nas mentes. Não existem linhas na natureza ... [tudo emerge] de uma
matriz de condições e, por sua vez, se torna parte de uma outra matriz
de condições da qual algo mais surge.

Existe tal construto como o da lésbica africana? A ideia de africanx é


possível em um mundo globalizado? Não podemos esquecer como 54 das
Nações Unidas reconheceram as fronteiras nacionais (coloniais) cortadas
entre grupos étnicos locais como os Dagara, que moram em Burquina
Faso e em Gana, assim como os Khoe-San, que continuam morando na
Namíbia, Angola, Botsuana e África do Sul. Como continente, a África

158 BATCHELOR, Stephen. Buddhism without beliefs. New York: Riverhead, 1997, p. 76.

94 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
tem, indiscutivelmente, os patrimônios culturais e históricos mais diversos
do mundo, com até 3.000 línguas ainda faladas.
A África inclui a dimensão das esposas lésbicas e bissexuais dos mineiros
de Lesotho, no trabalho de Cheryl Stobie e nas escritas de Ifi Amadiume159
sobre casamentos entre mulheres na nativa Nigéria. Stobie160 critica o livro
Boy-Wives and Female Husbands: Studies of African Homosexualities, que
oferece um conjunto de textos do século XVIII ao final do século XX e
examina um número considerável de culturas subsaarianas, fornecendo
amplas evidências de que as práticas homossexuais são nativas já há um
período muito longo. Existe muito material fascinante, que inclui traduções
de relatos etnográficos dos tempos pré-coloniais e coloniais, registros de
Corte de um crime de homossexual masculino no Zimbábue do início
da colonização, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o conceito de
lésbica masculina em Hausa (África Ocidental), comportamentos sexuais
de adolescentes do mesmo sexo, cross-dressing, inversão de papéis e
mulheres que amam mulheres em Lesotho. É também de interesse um
apêndice, com uma lista de 50 culturas africanas diferentes, com padrões
de comportamento entre pessoas do mesmo sexo, a maioria das quais tem
termos locais para práticas e papéis sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
e há evidência de relações eróticas do mesmo sexo entre coesposas e entre
mulheres casadas de forma heterossexual em Lesotho.
Falando de seu povo nativo Dagara, em Burquina Faso, Malidoma
Somé afirma que o gênero tem muito pouco a ver com a anatomia.

É puramente energético. A inteira noção de gay não existe no mundo


nativo. Isso não significa que não existam pessoas que se sentem da
mesma forma como se sentem certas pessoas nesta cultura que são
chamadas de gays. Os grandes astrólogos dos Dogon são gays [...]
porque em qualquer outra parte do mundo as pessoas gays são uma

159 AMADIUME, Ifi. Male Daughters and Female Husbands: Gender and Sex in an African So-
ciety. London: Zep Books, 1988; AMADIUME, Ifi. Reinventing Africa: Matriarchy, Religion and
Culture. London: Zed Books, 1998; AMADIUME, Ifi. Bodies, choices, globalizing neo-colonial
enchantments: African matriarchs and mammy water. Meridian, v. 2, n. 2, p. 41-66, 2002.
160 STOBIE, Cheryl. Reading bisexualities from a South African Perspective. The Journal of Bi-
sexualities, v. 3, n. 1, p. 33-52, 2003.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 95
bendição e no mundo moderno são uma maldição? Isso por si só,
é evidente. O mundo moderno foi construído pelo Cristianismo.
Eliminaram os deuses da terra e os mandaram para o céu, onde quer
que isso seja...161.

Sobonfu Somé reflete sobre a normalidade das intimidades sexuais e


espirituais das mulheres Dagara.

A sexualidade, inclusive a sexualidade entre mulheres, está tão


integrada na vida espiritual dos Dagara, que este povo não tem uma
palavra para especificar ‘lésbica’ e até ‘sexo’ [...] Como muitos outros
africanos, as mulheres Dagara não dormem com seus homens. As
mulheres precisam dormir juntas, estarem juntas para se fortalecerem
umas com as outras [...] assim, se elas se encontram com os homens, não
há desequilíbrio. Nós temos um pai feminino que nos dá uma energia
masculina. Ela é como um macho. Qualquer coisa que sentimos ou
experimentamos com a qual não tínhamos lidado é manifestada. Este
ritual de grupo feminino equilibra as energias masculinas e femininas.
Tanto é assim que não somos nem completamente masculinos nem
femininos162.

Alicia Banks163 cita um artigo intitulado “Inside Gay Africa” para


relatar como os Watusi ainda têm reputação por sua bissexualidade.
Nas cidades da África do Leste, as mulheres Azandes arriscavam-se à
execução para procurar prazer umas com as outras, às vezes mediante
falos feitos de raízes, e no Zaire, a homossexualidade tinha um elemento
místico, enquanto a bissexualidade é também bastante comum entre
os grupos Bajuni da África do Leste. Desta forma, se o termo ‘lésbica’
pode ter origens na Grécia antiga, as práticas que descreve são, com

161 SOMÉ, Malidoma. Gays: guardians of the gates, 1993. Disponível em: <http://www.oocities.
org/ambwww/GAYS-IN-AFRICA.htm>. Acesso em: 17 dez. 2012.
162 SOMÉ, Sobonfu. The lesbian spirit. Girlfriends Magazine, 1994. Disponível em: <http://www.
oocities.org/ambwww/GAYS-IN-AFRICA.htm>. Acesso em: 17 dez. 2012.
163 BANKS, Alicia. Gay racism: White lies/black slander. Fito feminist e-zine, 2005. Disponível
em: <http://www.engender.org.za/publications/JLSQueeryingBordersfinal.pdf>. Acesso em: 17
dez. 2012.

96 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
certeza, universais e, certamente, incluem a África. Porém, o que fica
claro a partir de muitas das citações acima é que as sexualidades não são
necessariamente separadas das espiritualidades ou de outros aspectos da
vida e do ser humano, da mesma forma que as sexualidades sempre foram
fluidas, especialmente na África pré-colonial e em muitas outras antigas
sociedades nativas.
Em vez de focar estritamente na lesbianidade e nos estudos lésbicos,
pode ser mais útil para a África se re-historicizarmos e recuperarmos a
fluidez pré-colonial, pelo menos como uma maneira de ir além da camisa
de força dos binarismos, das opressões e das violências coloniais, ainda
hoje presentes. Neste sentido, os estudos queer oferecem uma recepção
mais ampla, mais do que um lar, inteiramente porque oferecem maior
“inclusividade”, mesmo que sofram as mesmas doenças do poder e da
exclusão como qualquer outro campo de estudos. Ninguém deveria
esquecer da ironia de definir o pré-colonial em relação ao colonial. Como
coloca a famosa acadêmica feminista, Ifi Amadiume:

O pluralismo e a oposição não são importações coloniais. Contudo,


há uma grande divergência em relação a como nomear a sociedade
africana anterior ao encontro colonial. Os escritores do híbrido
infelizmente desencadearam semelhantes ataques virulentos contra a
ideia de uma tradição africana autêntica que muitos têm escavado e
evitado a noção de tradição na África, preferindo usar conceitos como
transição e modernidade. Eles supõem que tudo que é pré-colonial está
morto e sepultado. Eu estou reivindicando o conceito de tradicional na
África, para significar as culturas africanas pré-coloniais, mas admito
o problema com uma rígida quebra temporal ou com algo estático.
Argumento que o tradicional pode também estar no presente e que o
tradicional pode ser dinâmico. É por isso que introduzo a justaposição
das noções de parentesco coletivo e de oposição (itálicos de Bernedette
Muthien)164.

As lutas pelos direitos lésbicos básicos estão ainda longe de ser

164 AMADIUME, Ifi. Bodies, choices, globalizing neo-colonial enchantments: African matri-
archs and mammy water. Meridian, v. 2, n. 2, p. 7, 2002.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 97
reconhecidas ao nível global, incluindo a África do Sul, onde a noção
de estupro curativo deu ao país uma nova notoriedade após a África do
Sul ter entrado no Livro de Recordes Guinness pelas altas estatísticas de
estupros em 1999. As violências de gênero servem como um lembrete
específico de que o heteropatriarcado deveria ser nosso foco, e que os
estudos e os ativismos sobre a sexualidade precisam incluir todas as
sexualidades que sempre foram praticadas. Até agora, as lésbicas e os gays
que, sistematicamente, discriminam o povo queer mais fluido, perpetuam
o mesmo tipo de violência cultural e outras que a heteronormatividade
nas sociedades modernas.
Precisamos levantar questões críticas de como as identidades que
escolhemos, ou nas quais nos encontramos engajadxs, nos ajudam a
viver, na prática. Que importância têm os estudos de identidade para
as vidas quotidianas das pessoas queer comuns e, de fato, para as lutas
contra o heteropatriarcado? Como os estudos queer ajudam as pessoas
a ter consciência de sua plena saúde e liberdade sexual? A homofobia
está assentada ao lado de outros sistemas de opressão, como o racismo
e o sexismo, e precisa ser analisada e combatida nestes contextos
interseccionais.
Adotar e viver qualquer identidade e estilo de vida para além
daqueles heteronormativos é uma subversão ao heteropatriarcado e,
consequentemente, contribui para a transformação da sociedade. Se
as identidades e os estilos de vida de alguém tentam transcender os
binarismos dos status quo, isso pode ser ainda mais revolucionário, assim
como poderia ser mais desafiador manter-se firme em posição e sob
coerção por parte de ambas as polaridades percebidas.
Em seu ensaio germinal, “The master’s tool will never dismantle the
master’s house”, a falecida Audre Lorde escreve:

Aquelas de nós que estão fora do círculo da definição de mulheres


aceitáveis para esta sociedade; aquelas de nós que foram forjadas no
cadinho da diferença, aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas,
que são negras, que são mais velhas, sabem que a sobrevivência não
é uma habilidade acadêmica. É aprendendo como estar sozinha,
impopular e algumas vezes injuriada, e como fazer causa comum com

98 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
aquelxs outrxs identificadxs como estando fora das estruturas, com
o objetivo deAquelas de nós
definir que estão fora
e procurar umdomundo
círculo da
nodefinição de mulherestodxs
qual podemos aceitáveis
para esta sociedade; aquelas de nós que foram forjadas no cadinho da
prosperar... diferença,
Em um aquelas
mundo de possibilidades para nós todxs, nossas
de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que
visões pessoais ajudam
são mais velhas,asabem
estabelecer as bases para
que a sobrevivência a ação
não é uma política.
habilidade O
acadêmica.
fracasso dasÉ feministas
aprendendo como estar sozinha,
acadêmicas impopular e algumas
em reconhecer vezes injuriada,
a diferença como e
uma força écomo fazer causa comum com aquelxs outrxs identificadxs como estando fora
o fracasso em chegar além da primeira lição patriarcal.
das estruturas, com o objetivo de definir e procurar um mundo no qual
Partilha e conquista,
podemos todxs no prosperar...
nosso mundo,Em umtemmundoquedesepossibilidades
tornar determina e
para nós todxs,
empodera165nossas
. visões pessoais ajudam a estabelecer as bases para a ação política. O
fracasso das feministas acadêmicas em reconhecer a diferença como uma força
é o fracasso em chegar além da primeira lição patriarcal. Partilha e conquista,
no nosso mundo, tem que se tornar determina e empodera165.
Acompanhando o discurso de transformação, possa este
ativismo,Acompanhando
fluido e intermediário
o discurso de[inbetween],
transformação,que se este
possa identifica
ativismo,como
fluido e
perverso polimorfo
intermediário pelosque
[inbetween], seus
se potenciais ironicamente
identifica como subversivos
perverso polimorfo pelos eseus
transformativos, deixar você satisfeita com o momento, plenamente
potenciais ironicamente subversivos e transformativos, deixar você satisfeita com o
consciente de que a autenticidade é somente um ideal...166
momento, plenamente consciente de que a autenticidade é somente um ideal...166

IQ Quadro perfeito
Você está no centro Há uma impressão digital
da sua guerra contra o conflito em um rosto sem pupila
e ainda os silêncios de um inteiro e linhas de identidade
alfabeto circulando o quadro
ao redor uma letra grega em escalas de cinza
fecha a espiral infinita com algumas amostras
da balcanização de uma vida aveludada
que decapita [peach life’s]
esta (in)voluntária a um estalar de dedos
fonte de ar bastardo na ceia

165Agradecimentos
LORDE, Audre [1979]. The master’s tools will never dismantle the master’s house. In: MOR-
AGA, Cherríe; ANZALDÚA, Gloria. This Bridge called my Back: Writings by Radical Women of
Color. Watertown: Persephone Press, 1981, p. 99-100.
166 Nota: O artigo também inclui as seguintes referências: MUTHIEN, Bernedette. Why are you
not married yet?! Heteronormativity in an African women’s movement. Women’s Global Network
for 165
Reproductive Rights Newsletter, n. 79, 2003. Disponível em: <http://www. wgnrr.org>. Acesso
LORDE, Audre [1979]. The master’s tools will never dismantle the master’s house. In: MORAGA,
em:Cherríe;
17 dez. ANZALDÚA,
2012; MUTHIEN, Bernedette.
Gloria. This BridgePlaying
called on
mythe pavements
Back: Writingsofbyidentities. In: van ZYL,
Radical Women of Color.
Mikki; STEYN, Melissa. Performing Queer.
Watertown: Persephone Press, 1981, p. 99-100. Cape Town: Kwela Books, 2005; OCHS, Robyn and
ROWLEY,
166
Nota: Sarah (Ed.). Getting
O artigoE.também Bi: Voicesreferências:
inclui as seguintes of Bisexuals AroundBernedette.
MUTHIEN, the World.Why Boston: Bisexual
are you not married
Resource Center, 2005. in an African women’s movement. Women’s Global Network for Reproductive
yet?! Heteronormativity
Rights Newsletter, n. 79, 2003. Disponível em: <http://www. wgnrr.org>. Acesso em: 17 dez. 2012;
MUTHIEN, Bernedette. Playing on the pavements of identities. In: van ZYL, Mikki; STEYN, Melissa.
Performing Queer. Cape Town: Kwela Books, 2005; OCHS, Robyn and ROWLEY, Sarah E. (Ed.). Getting
T R ABi:
DUVoices
ZINDO of ABisexuals QU E E Rthe World. Boston: Bisexual Resource Center, 2005.
Á F R IC AAround 99
Agradecimentos

A Engender, por seu apoio à escrita deste capítulo: http://www.


engender.org.za.

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB)

100 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Lutas LGBTI Queer como outras lutas em
África
Gathoni Blessol
Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e equipe do
FEMPOS

Muito foi escrito sobre as lutas de lésbicas, gays, bissexuais, pessoas


trans* e intersex-queer (LGBTIQ) africanxs para atingir a igualdade e a
liberdade que, idealmente, permitem a aceitação e inclusão, por parte de
sociedades religiosas, culturalmente diferentes e tradicionais da África. O
que tanto a nossa comunidade LGBTIQ quanto a mais ampla sociedade
africana tendem a esquecer é que as pessoas LGBTIQ não são alienígenas
vindos do espaço ou do Ocidente – como é afirmado –, mas são uma
representação das nossas comunidades africanas; somente os conceitos,
as definições e ideologias que moldam nossas lutas pelo reconhecimento
são estrangeiros e diferentes.
O que isso implica é que as comunidades LGBTIQ são completamente
africanas, são religiosas, são parte da rica diversidade cultural e são
formadas, ao mesmo tempo, por pessoas tradicionais e não tradicionais.
São filhas e filhos, irmãos e irmãs, mãe e pai, amigos e família, vizinhos e
avós de nossas comunidades africanas.
Quando, durante o Fórum Social Mundial de 2011 em Dakar,
Senegal, participei de uma das sessões sobre “Queerização da África”, foi
apresentado um conceito que me deixou com o desejo de refletir e de
redefinir minhas lutas pessoais. A apresentadora era, sem dúvida, a mais
poderosa defensora dos direitos humanos e queer que eu já tenha visto ou
escutado. Ela era também membro e ativista no movimento democrático
de esquerda na África do Sul. Lembro que minhas contradições tiveram
início quando ela, considerando a sua sexualidade, tinha chegado a tal
radicalismo político. Como ela era capaz de falar tão eloquentemente sobre
as outras lutas no seu país? À parte o fato de que a constituição da África
do Sul preserva os direitos das minorias sexuais, como ela conquistara o
respeito, os corações e a confiança de pessoas de outros movimentos?

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 101
Tive a oportunidade de discutir com ela minhas dúvidas sobre seu
trabalho enquanto ativista de diversos movimentos sociais. Ela contou
que, embora sua sexualidade permanecesse ainda muito importante
na sua vida, havia muito mais nela como pessoa e ativista do que sua
sexualidade. Havia a mulher africana, que é parte de uma população
oprimida nesta sociedade patriarcal, sexista, racista, classista e capitalista,
que coloca o dólar acima da vida humana. Enquanto a sua raça, o seu
gênero e sua orientação sexual – que constituíram a base das suas
opressões – permaneciam importantes para as suas lutas, a ação política
ia para além de suas identidades.
Ela continuou afirmando que a comunidade LGBTIQ necessitava da
presença de um movimento queer politicamente consciente através de
toda África, um movimento que fosse aliado com outras lutas para acabar
com o capitalismo e outras injustiças econômicas, sociais e políticas,
bem como com as formas de exploração e de opressão que vêm com esse
sistema.
Esta ativista era tão poderosa que emocionou não somente a mim,
mas a todo o público. Era uma líder em todos os aspectos e alguém que
eu gostaria de imitar no futuro. De fato, pela primeira vez, considerei que
precisava de educação em todas as formas de humanidades.
Uma outra coisa que ela falou e que permanece sendo uma triste
verdade foi que a luta LGBTIQ é uma das mais isoladas na África. É
extremamente difícil demandar solidariedade, e isso é agravado pelas
múltiplas divisões no movimento sobre a diferença de poder, cultura,
tradição e política.
Neste capítulo, vou tentar relatar minha compreensão sobre algumas
das variantes discutidas nas sessões em relação ao contexto que temos na
África e, particularmente, no Quênia, por exemplo, a luta de poder entre
extremistas religiosos/fascistas e os liberais.
Os extremistas religiosos na África, cujo reino do céu lhes foi conferido
por conta de sua ‘retidão’, são os mesmos seguidores de cultos evangélicos
oriundos do Ocidente no testemunho, no discurso e nas normas,
também, por vezes, no sotaque e na linguagem espiritual. A ironia não
se perde. Muitas das práticas religiosas que temos, aqui, no Quênia, são

102 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
influenciadas pelas noções ocidentais de espiritualidade e religião, que se
baseiam no que é masculino, branco, rico e seu Deus – que é representado
como um homem caucasiano. Nossos líderes religiosos africanos pregam,
para nós, estas doutrinas com sotaques estadunidenses, usando estranhas
linguagens espirituais – ‘shammah’, ‘nisi’ e ‘eloi’ – nenhuma das quais
corresponde a palavras africanas para se referir a Deus.
Nossas igrejas foram acusadas de receberem grandes quantidades de
fundos por parte de seus irmãos e suas irmãs nos Estados Unidos, para
sustentá-las na sua persecução (até promovendo a pena de morte) das
pessoas LGBTIQ. Por favor, notem que tudo isso é feito em nome do
Senhor, como meus camaradas e eu testemunhamos claramente durante o
enterro de David Kato, que foi assassinado em sua própria casa, em 2011.
Durante o enterro, um sacerdote sem vergonha contestou a nobre vida
que David teve aqui na terra e os esforços que pôs na luta, afirmando que
até os animais ‘sabem’ com quem devem supostamente acasalar/dormir.
Aquele homem de Deus, por quaisquer razões, fosse sua loucura religiosa
ou sua ‘retidão’, não tinha direito de desrespeitar o leito de morte de outra
pessoa.
Senti-me enganada pela religião e pelos poucos homens loucos que
expandem o Evangelho, apresentando uma imagem do criador que é mais
odiosa e vingativa do que o Deus santo e amoroso que eles pregam. Seus
duplos padrões são evidentes: os líderes religiosos pregam, vigorosamente,
contra a homossexualidade como uma questão de moralidade, ao mesmo
tempo em que toleram assassinos, estupradores e opressores capitalistas,
glorificando-os e entregando ao Senhor suas almas imundas para que
descansem na paz eterna. E mais, o papel da igreja no conflito e na guerra
não é um segredo; o discurso de ódio no genocídio ruandês, o fornecimento
de armas na guerra civil do Burundi e a pregação tendenciosa depois das
eleições de dezembro de 2007 no Quênia, que alimentaram a explosão da
brutal violência pós-eleitoral, são somente alguns exemplos.
A observação destes mesmos extremistas religiosos no meu país, o
Quênia, vem do fato de que eles se aproveitaram da falta de poder estatal,
depois da população ter votado por uma constituição, em 2011, que
integrou ao nosso sistema judiciário a Corte Kadhi, já existente, de nossos
irmãos e irmãs muçulmanas. Secundariamente, a nova constituição

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 103
afirmava, claramente, que o Quênia é um estado secular, entendendo com
isso a separação entre Estado e Igreja.
Desta forma, como podem eles reconquistar o poder de outra maneira
do que impondo o que é moralmente reto; e qual questão é mais adequada
do que a homossexualidade, ainda desprezada pela sociedade?
Os rivais dos extremistas religiosos são os liberais, os de esquerda
que querem levantar questões sobre a universalidade das normas e do
sistema capitalista opressivo, os que são apoiados pelos colonialistas cor
de rosa, pelas feministas cupcake e intervencionistas visionários. São os
bem-adaptados, as classes médias altas da burguesia, que chegam à África
para ‘salvar’ as ‘coitadas’ das populações africanas. São os estudantes
dos Colégios que se disponibilizam, depois da graduação, para ‘ajudar’
e depois voltam como membros do conselho e presidentes executivos de
ONGs e, em particular, de instituições financeiras, com todas as respostas
e visões perfeitas. E como aprendemos até agora, as ajudas têm um preço,
não importa se baixo; assim, com o passar do tempo, o continente viu
nascer inúmeras ONGs que descarrilaram os processos de qualquer
movimento progressista e de mudança na África. Começaram como
grandes associações e terminaram como fábricas de petições burocráticas.
Não estou insinuando que todas as ONGs têm más intenções, mas como
Issa Shivji afirma no seu livro Silences in NGO Discourse: “não julgamos o
resultado do processo pelas intenções dos seus autores. Visamos a analisar
os efeitos objetivos das ações, independentemente de suas intenções”167.
Como em muitas outras lutas, o resultado final deste ideal catastrófico
foi o crescimento de um ativismo e de organizações LGBTIQ motivadas
por financiadores que são guiados, de maneira visionária, pouco prática,
capitalista e mercantilizada – sobretudo, marginalizando as lutas, as
realidades, os conceitos e as soluções da base. Nossas organizações
LGBTIQ se tornaram, em grande parte, hierarquicamente estruturadas,
mandatadas pelos financiadores e limitadas no ativismo. Isso deixou
muitos poucos espaços LGBTIQ conscientes, que sejam gradualmente

167 SHIVJI, Issa G. Silences in NGO Discourse. The role and future of NGOs in Africa. Nairobi and
Oxford: Pambazuka Press, 2007.

104 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
analíticos e radicais e que tenham a habilidade de criar conscientização em
suas comunidades em relação aos temas que nos afetam como africanos,
tais como os múltiplos níveis de opressão que provêm de nossas realidades
socioeconômicas e sóciopolíticas como, antes de tudo, africanos, e, depois,
como pessoas queer.
Este fato limitou, por sua vez, nosso pensamento sobre o que os
financiadores querem e como podemos, da melhor forma, adquirir
financiamentos em vez de como podemos incorporarmos nossas lutas
com os outros movimentos pelos direitos sociais com os quais vivemos e
trabalhamos. Como resultado, o quadro burguês fez surgir alguns poucos
‘libertadores’ da comunidade LGBTIQ, que novamente são escolhidos
pelos financiadores. Tornaram-se a face pública da luta e são guardiões
bem patrocinados. Isso conduziu a novas divisões do status econômico
e de classe de tal modo que uma pessoa queer não pode se relacionar
com uma outra sem considerar o quão bem conhecida é e ‘o fundo de
seu bolso’. Outra consequência foi a falta de um movimento queer forte
e orientado pela paixão que adere a seus círculos de base na África. Isso
tudo é agravado pela loucura religiosa que está conduzindo a graves e
fatais violações de direitos humanos da comunidade LGBTIQ africana.
As contradições da maneira com que o movimento LGBTIQ se
desenvolveu até agora se somou às percepções, na mais radical sociedade
heteronormativa, de que a homossexualidade é coisa ocidental ou, como
diria um camarada meu, “algo que alguém roubou no caminho para a
vida de cidade”. Outra crença que escutei voltando do Fórum Social
Mundial é que se tornar gay acontece quando uma pessoa é bem-sucedida
e quer obter dinheiro. No caso das mulheres, elas se tornam feministas e
depois lésbicas para evitar as responsabilidades de terem filhos. Achei tais
afirmações detestavelmente ridículas.
Porém, se os movimentos LGBTIQ pudessem (re)examinar a evidência
histórica das práticas e expressões sexuais africanas, surpreendentemente
diversas e complexas, rejeitariam este equívoco e fortaleceriam suas lutas.
Acredito que seja um passo crucial em cada luta que as pessoas tenham
uma compreensão de onde elas vêm, onde elas estão e para onde estão se
dirigindo. De fato, uma vez que você começa a examinar cuidadosamente
o material sobre a homossexualidade ou a identidade sexual em geral nas

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 105
antigas culturas africanas, é incrível quantos estudos e quantas histórias
são reveladas que contradizem completamente as rígidas noções sobre a
sexualidade designada como africana. Esses estudos fornecem evidências
históricas da homossexualidade na África Pré-Colonial, encontradas na
linguagem, na denominação, em desenhos e práticas religiosas que vão
do extremo Norte ao extremo Sul, do leste para o oeste168. Para mencionar
algumas, apenas, chama atenção os Quemant, da Etiópia Central,
onde relações homossexuais entre jovens pastores eram comuns, ou os
Maale, na Etiópia do Sul, onde os homens (ashtime) realizavam tarefas
femininas e tinham relacionamento com outros homens. Também,
os Meru, no Quênia, onde homens se vestiam de mulher, e, de vez em
quando, casavam com outros homens. Da mesma forma, entre os Kikuyu,
no Quênia, casamentos entre mulheres eram bastante comuns. Alguns
estudiosos afirmam que estes tinham um caráter mais prático do que de
relacionamentos sexuais; entretanto, o fato que permanece é o de que
esses relacionamentos existiam e ainda existem. Os Hauçá chamavam as
travestis homossexuais de Yan Daudu. Os Nzema, do Gana, praticavam
casamentos (agyale) entre dois homens que se amavam reciprocamente.
A língua Kirundi, do Burundi, tem ao menos cinco palavras para indicar
a sexualidade entre homens. Em Angola, casamentos entre dois homens
eram honrados e valorizados, e os homens que se comportavam como
mulheres eram chamados de chibados. Entre os Zandi, do Sudão, o sexo
entre duas mulheres é chamado de adandara. E, assim, poderia continuar.
Isso e muito mais mostra que a homossexualidade existia muito antes do
Cristianismo chegar ao continente – somente não era reagrupada com os
acrônimos que usamos atualmente – e isso desafia a teoria segundo a qual
a homossexualidade seria não africana.
A falta de conhecimento da nossa história é o maior obstáculo, não
somente no movimento LGBTIQ, que está sendo combatido com tanto
fervor em todas direções, mas também em qualquer movimento. A história
africana foi amplamente pesquisada, ao invés de nós, por estudiosos

168 Um início excelente para o tema é o texto de Steven O. Murry, “Homosexuality in traditional
sub-Saharan Africa and contemporary South Africa”. Seven Sister Study Group Reader, volume 1,
2009.

106 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
ocidentais, resultando na falta de documentos suficientes e apropriados,
como, por exemplo, os ditados ridículos que recitamos na pré-escola que
nos foram contados de maneira deliberadamente e errada, dentre eles, o
que nos diz que o Dr. Livingstone acabou com o comércio de escravos
na África e que o Dr. Krapf descobriu o Monte Quênia, quando, na
verdade, nossos ancestrais viveram nessas terras, olhando para a mesma
montanha que chamavam de Monte Kirinyaga. Ensinaram-nos, ainda,
que foi um homem branco que o descobriu. Ironicamente, continuamos
a nos referir a ele como Monte Quênia, mesmo depois de conquistarmos
a independência.
Uma outra incompreensão surge quando as palavras ‘Africano’,
‘constituição’ e ‘Cristianismo’ se encontram na mesma frase, em um
argumento contra a homossexualidade. O Cristianismo não é africano,
porque chegou à África, assim como o Islamismo, como uma estratégia
da missão civilizatória e colonizadora, no século XVIII. As constituições
dos países africanos também foram feitas depois da colonização, e podem
ser consideradas como instrumentos britânicos e franceses para ligar
suas colônias, incluindo o Quênia. Nossa história foi ditada e imposta a
nós pelos colonizadores para justificar seus atos desumanos, e, depois da
Independência, eles nos presentearam com alguns de seus fantoches, que
os emulavam e celebravam-nos como heróis, ao mesmo tempo em que
reforçavam o capitalismo em nome da globalização no continente. Isso
deixou muitas lutas, inclusive a dos LGBTIQ, sem um discurso prático e
orientado por interesses africanos.
As diferentes lutas enfrentam o mesmo sistema opressor do qual
elas são conscientemente e obviamente parte. Um exemplo é encontrado
nos nossos espaços de advocacy LGBTIQ, onde ignoramos a opressão
de classe, as hierarquias e as burocracias acabam restringindo nossa luta
somente à liberação sexual, e para poucos. Uma leitura da história e da
política LGBTIQ, em toda sua complexidade, nos ajuda a reconhecer a
realidade que há a mais nessas lutas do que os nossos olhos podem ver.
Uma exploração mais complexa da história e da política LGBTIQ africanas,
em conjunto com o estudo do colonialismo, nos levará à compreensão da
relação entre a opressão da população negra em geral, e das mulheres, e
dos LGBTIQ, em particular. Isso, por sua vez, fará com que nossas lutas

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 107
estejam abertas a serem estudadas, analisadas, criticadas, e, oxalá!, aceitas
como um dos mais antigos costumes africanos na história.
O Estado e seus líderes políticos são outro obstáculo para essas lutas.
Os políticos tendem a usar a comunidade LGBTIQ para ter dividendos
políticos ou para esconder as questões reais que afetam nossos países. Um
exemplo perfeito foi a confusão parlamentar no Quênia, no final de 2010,
quando o arquivo do processo de quem matou Robert Ouko ressurgiu.
Quando Luís Ocampo169, da Corte Criminal Internacional, revelou a lista
dos suspeitos responsáveis pela violência pós-eleitoral, trouxe o caos entre
os parlamentares. Isso foi seguido por um ‘apontar de dedos’, delações, em
um espetáculo político de acusações e negações, retórica e propaganda.
Não posso omitir a notícia; foi como assistir a uma série dramática.
De maneira cômica, quando o suspense e a dúvida aumentaram na
população queniana, o primeiro-ministro (PM), quando estava na favela
Kibera, ordenou a prisão de gays no Quênia. Imediatamente, isso deu à
população queniana algo diferente para pensar que não a violência pós-
eleitoral. Nesse meio tempo, enquanto a elite política queniana imaginava
formas de arrecadar fundos para impedir que seus capangas fossem à
Corte Internacional Criminal, a população queniana estava preocupada
em prender e espancar pessoas da comunidade homossexual, como
o primeiro-ministro tinha recomendado. Mas quando os quenianos
deixaram de ser distraídos por essa retórica e recusaram o seu afastamento
das questões da Corte Criminal Internacional, o jogo sujo dos políticos
foi desvendado. O primeiro-ministro falou, junto à comunidade
internacional; e Ocampo [disse] que ele tinha sido citado falsamente e que
reconhecia os direitos gays, ou o que quer que isso signifique. Ocampo
então repetiu virtualmente a mesma lorota durante o enterro de Kirima170,
que ocorreu depois da saga Wikileaks171.

169 Luis Moreno Ocampo foi o promotor na Corte Internacional Criminal (até junho de 2012)
que preparou o processo contra os supostos principais autores da violência que aconteceu entre
2007 e 2008, depois das contestadas eleições quenianas. Quatro dos seis suspeitos enfrentaram
processos que estão em andamento no momento em que escrevo.
170 O falecido Kirima foi um infame empresário que foi assassinado uma tarde no caminho para
casa.
171 Wikileaks é uma plataforma/fórum de Internet que expunha muitos relacionamentos som-

108 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
A luta queer está situada também na realidade socioeconômica e
cultural da vida cotidiana das pessoas, uma realidade que impõe como
as pessoas LGBTIQ interagem e sobrevivem no mundo ao redor delas.
A sociedade interpretou as vidas e as lutas LGBTIQ como sendo nada
mais do que um desvio, uma anomalia sexual, como se essas pessoas
não fossem seres sociais, políticos e culturais como quaisquer outros, e
não tivessem direitos para reivindicar. É nesse tema dos direitos que os
debates sobre orientação sexual e identidade de gênero estão focados. É a
mentalidade normativa produzida pelo patriarcado, pelo sexismo e pelo
capitalismo, e pela designação dos papéis de gênero durante o nascimento,
que ignora as pessoas intersex que vivem entre nós. Como resultado, a
atribuição de gênero se torna problemática para a sociedade, embora não
necessariamente para os próprios indivíduos.
Precisamos descolonizar nossas mentes do imperialismo e do
capitalismo para tornarmo-nos uma sociedade consciente e diversa, que
reconhece que a homossexualidade é humana, assim como é africana.
Descolonizar cria iniciativas socialmente progressistas e espaços que não
agrupam e nem classificam questões dentro de normas pré-estabelecidas.
Necessitamos considerar diferentes formas de engajamento e de educação
para mostrar às nossas populações que a África tem uma base e riqueza
em humanidade que inclui tudo, longe das manipulações políticas, sociais
e econômicas, e da exploração que estão ocorrendo.
A visão positiva é que as pessoas e as culturas nunca são fixas, mas
estão em constante mudança no tempo. Por exemplo, duas décadas atrás,
era considerado errado, em todos os contextos, divorciar ou, para uma
mulher, usar calça. Nossas sociedades podem mudar no tempo, sabendo
que as lutas sociais, econômicas e políticas se interseccionam. Esses temas
parecem familiares em todas as lutas, mas havia um vazio que esperava
que a ação acontecesse.
No momento em que nós discutíamos a mudança nas sessões do
Fórum Social Mundial, nossos irmãos e nossas irmãs, no Egito e na
Tunísia, uniam-se e faziam essa mudança. Eles faziam a sua história e

brios entre políticos e os Estados Unidos.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 109
redefiniam o pressuposto de que Mubarak era intocável, e revolucionaram
sua população. Deixei o Fórum Social Mundial com uma única ideia.
Precisamos reivindicar nossas próprias histórias, descolonizar as mentes
de nosso povo, construir nossas próprias sociedades e com nossas próprias
regras, que são africanas e feitas por africanos. Com solidariedade,
camaradagem e unidade, colocamos todas as nossas diferenças e políticas
pessoais de lado e combatemos o que nos oprime, fazendo uma onda de
movimentos (que já está vibrando na África) que levará a esta mudança.
Esse, para mim, é o novo mundo que vejo e antecipo.

Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB), Izzie Madalena


Santos Amancio (UNILAB) e equipe do FEMPOS

110 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
O Quênia Queer na lei e na política
Keguro Macharia
Tradução Sergio Rodrigo Ferreira GIGA/UFBA

Em 28 de novembro de 2010, Raila Odinga, primeiro-ministro do


Quênia, disse: “Se encontrados [casais homossexuais], devem ser presos
e levados a autoridades relevantes”172. Cinco anos antes, tal declaração
teria provocado silêncio ou aprovação. No entanto, os principais jornais
publicaram artigos contestando a declaração de Raila173. O professor
Makau Mutua, especialista em direito e presidente da Comissão de
Direitos Humanos do Quênia, argumentou que “a nova constituição
protege os direitos dos homossexuais”. Makau baseou essa declaração
em dois elementos da constituição: garantia de direitos iguais e a não
proibição explícita do casamento gay174. É muito cedo para dizer se a
certeza de Makau está justificada. Como acontece com os EUA e a Índia,
os direitos das minorias sexuais provavelmente ainda serão debatidos nos
Tribunais de Justiça do Quênia175.
Neste artigo, apresento uma narrativa sobre o estado dos direitos das
minorias sexuais no Quênia examinando três promulgações entremeadas
de lei e política: Lei de Ofensas Sexuais (2006), a Política Nacional sobre
Cultura e Patrimônio (2009) e a constituição recentemente promulgada
(2010). Ao examinar esses documentos e os debates que os cercam,
acompanho como o queniano (Kenyan-ness) é definido em relação à
sexualidade. Eu argumento que precisamos entender os direitos das
minorias sexuais em relação aos direitos da maioria sexual. Qualquer
tentativa de argumentar em favor do primeiro sem considerar o último

172 BARASA, Lucas. Kenya PM orders gays’arrest. Daily Nation, 28 nov. 2010.
173 Ver GAITHO, Macharia. Mr. PM, the Bill of Rights you fought so hard for covers gay Kenyans
too. Daily Nation, 29 nov. 2010; ATWOLI, Lukoye. Homophobia only serves to spread homosexu-
ality. Daily Nation, 4 dez. 2010; WAT-AH, Rasna. Raila owes Kenyans an apology, not denial. Over
statement against gays. Daily Motion, 5 dez. 2010.
174 MUTUA, Makau. Why Kenya’s new constitution protects gays. Daily Nation, 11 dez. 2010.
175 A decisão na Índia merece um exame minucioso por ativistas queer africanos. O texto com-
pleto está disponível em: <http://www.sacw.netlarticle985.html>.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 111
corre o risco de perder sua constituição mútua. Baseio-me no argumento
do teórico cultural Neville Hoad segundo o qual a “homossexualidade”
é “um dos muitos conteúdos imaginários, fantasias ou significações (às
vezes negativos, às vezes não) que circulam na produção de soberanias e
identidades africanas em suas representações por africanos e outros”176.
E eu examino como a figura do “homossexual” circula nas discussões e
documentos jurídicos e culturais quenianos.

A Lei de Ofensas Sexuais (2006)

Em 2006, o Parlamento do Quênia promulgou a Lei de Ofensas


Sexuais. Ela representou a demanda de um ativismo realizado durante
mais de uma década por uma coalizão de organizações, incluindo a
Federação de Mulheres do Quênia (FIDA), a Coalizão sobre Violência
Contra a Mulher (COVAW), a Documentação Consultiva e o Centro
Legal dos Direitos da Criança (The CRADLE) e o Centro de Educação e
Conscientização de Direitos (CREAW)177. O projeto de lei sobre ofensas
sexuais foi divulgado pela primeira vez em dezembro de 2004, quando
foi encaminhado para o processo parlamentar pela deputada indicada
Njoki Ndung’u. Antes de assumir um cargo público, Ndung’u, que é pós-
graduada em Direitos Humanos e Liberdades Civis, trabalhou no setor
público, como assessora do Estado na Procuradoria Geral da República
e no setor privado, inclusive como analista política da Organização da
Unidade Africana. Ela também era um membro ativo da sociedade civil
do Quênia, como ex-membro da FIDA e ativista dos direitos das mulheres.
O projeto de lei criou o que Michel Foucault chama de uma “explosão”
do discurso sobre a sexualidade178. Foi a primeira vez em que o sexo e
a sexualidade foram discutidos tão abertamente, e por completo, no

176 HEAD, Neville. African Intimacies: Race, Homosexuality, and Globalisation. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 2007. p. XVI.
177 Para uma história do processo de elaboração do projeto de lei, ver ONYANGO-OUMA, W.;
NDUNG’U, Njoki; BARAZA, Nancy; BIRUNGI, Harriet. The Making of the Kenya Sexual Offences
Act, 2006: Behind the Scenes. Nairobi: Kwani Trust, 2009.
178 FOUCAULT, Michel. History of Sexuality. New York: Vintage, 1978. Uma cópia da lei final
pode ser acessada em: <http://www.mzalendo.com/’Bills.Details.php?ID=1>.

112 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
parlamento, nos principais meios de comunicação e nos fóruns on-line.
Quenianos discutiam namoro e casamento, ritual tradicional e violência de
gênero, consentimento e coerção179. À medida que os quenianos debatiam
as linhas (frequentemente tênues) sobre o que era bem-vindo, aceitável ​​e
íntimo, definiam (e defendiam) o que constituía corpos normais de gênero
e intimidades sexuais. Nesta seção, eu detalho como os debates em torno
do projeto de lei estabeleceram a família como alvo de ofensas sexuais
e extraíram as implicações dessa estratégia para o ativismo de minorias
sexuais.
No início de 2005, Ndung’u delineou um escopo amplo para o projeto
de lei quando argumentou que “não são apenas as meninas e mulheres que
podem ser vítimas; a lei deve reconhecer que meninos e homens também
são abusados”180. Ao especificar que “meninos e homens” também eram
sexualmente vulneráveis, Ndung’u ampliou a jurisprudência do projeto
para proteger uma ampla gama de pessoas, incluindo profissionais do
sexo e minorias sexuais. Certamente, alguns quenianos interpretaram o
projeto dessa maneira. Por exemplo, a Conferência Episcopal do Quênia,
uma associação de igrejas católicas, apoiou o projeto, argumentando: “Há
muitos corpos machucados, corações machucados e mentes machucadas
de crianças, mulheres e homens espalhados pela paisagem do Quênia, todos
feridos, brutalizados e, com frequência, mortos pela violência sexual”. No
entanto, a conferência acrescentou: “Atualmente, o aborto, a prostituição
e a homossexualidade são ilegais. Os bispos católicos gostariam de ter
certeza de que este projeto de lei não revoga leis existentes sobre esses

179 Veja, por exemplo, a postagem e a discussão do blog ‘What an African woman thinks’. Dis-
ponível em: <http://wherehermadnessresides.blogspot.coml2(l)6105/sexual-offienoesrbill.html>;
OPONDO, Owino. MPs back tough new penalties for rapists. Daily Nation, 28 abr. 2005; OMARI,
Emman. Apprehension as MPs vote for castration bill. Daily Nation, 28 abr. 2005; OKOLLOH,
Ory. Rape: focus on the victim’s needs. Daily Nation, 9 maio 2005; ONYANDO, Rosemarie M.
Cultural values, my foot! This is rape. Daily Nation, 28 abr. 2006; ORLALE, Odhiambo. Members
cast fear aside to discuss taboo subiect. Daily Nation, 30 abr. 2006; KERROW, Billow A. Islam
quite comfortable with sex bill. Daily Nation, 4 maio 2006; OPOTI, Emmo W. Sexual bill won’t
stop rape; toss it out. Daily Nation, 9 maio 2006; FOOT, Chris. Sex bill unjust and nonsensical.
Daily Nation, 9 maio 2006; PALA, Oyunga. Why we must embrace this bill. Daily Nation, 13 maio
2006; EICHENER, Alexander. An offence against humanity. Kenya Imagine, 30 nov. 2003. Todos
acessados em 10 jun. 2010.
180 GITHAU, Mwangi. MP’s campaign to stem tide of sexual offences. Sunday Nation, 13 mar. 2005.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 113
assuntos de tal maneira que esses males sejam introduzidos pela porta
dos fundos ou por padrão”181. A conferência temia que o projeto pudesse
proteger sexualmente figuras marginais, prostitutas e homossexuais, e
atos contrários à doutrina católica, como o aborto. Da mesma forma, o
Conselho de Imãs e Pregadores do Quênia (CIPK) estava cauteloso com
as medidas que legalizariam a homossexualidade182. Esses grupos queriam
que o parlamento definisse os segmentos da população que mereciam ser
defendidos.
Além de líderes religiosos, outros grupos socialmente conservadores
tentaram restringir o escopo da lei e argumentaram que ela deveria
refletir os valores quenianos. Notadamente, Wanjiru Muiruri, membro do
Grupo de Pais do Quênia, afirmou que “ativistas progressistas de direitos
humanos” provavelmente viam o Quênia como “um anátema, um pária,
por aderir obstinadamente ao que eles consideram leis tradicionais e
opressivas que discriminam os gays e pretensiosos...”. Entretanto, as leis
que potencialmente protegiam as figuras marginais sexuais “minariam o
tecido moral da sociedade e enfraqueceriam a instituição da família no
Quênia”183. Muiruri relacionava as práticas sexuais e instituições com a
identidade nacional, sugerindo que a Lei de Ofensas Sexuais era tanto
importante para definir formas adequadas e impróprias de intimidade,
quanto para tratar das definições de formas apropriadas e impróprias de
pertencimento nacional. Ela defendeu o que as teorias de Lauren Berlant
e Michael Warner descrevem como ‘heterossexualidade nacional’: “A
heterossexualidade nacional é o mecanismo pelo qual o centro da cultura
nacional pode ser imaginado como um espaço higienizado de afetividade
e com comportamento imaculado, um espaço de pura cidadania. Um
modelo familiar de sociedade deslocado do reconhecimento de...
desigualdades sistêmicas”184. Muiruri apaga “desigualdades sistêmicas”
quando ela afirma implicitamente que “o progresso dos direitos humanos”

181 Kenya Episcopal Conference. Statement on the sexual offences bill. Disponível em: <http://
www.kec.or.ke/news.asp?lD=7>. Acesso em: 3 jan. 2011.
182 ARAM, Athnan; RING, Mathias. Muslim Council supports sex bill, criticises male MPs. East
African Standard, 29 abr. 2006.
183 MUIRURI, Wanjiru. There’s hidden agenda in sex crimes bill. Daily Nation, 28 mar. 2006.
Acesso em: 3 jan. 2011.
184 BERLANT, Lauren; WARNER, Michael. Sex in public. Critical Inquiry, v. 24, n. 2, p. 549, 1998.

114 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
põe em risco “a instituição da família no Quênia”. Em seu modelo de jogo
de soma zero, o ativismo de direitos humanos não pode coexistir com a
“heterossexualidade nacional”.
Em retrospectiva, o argumento implícito de Muiruri de que a lei
deveria proteger “a família” indicava uma grande mudança na estratégia
em torno de como fazer passar o projeto de lei. Em 1º de abril de 2006,
um artigo no Daily Nation retratou essa reorientação em torno da família:

As senhoras que se reuniram esta semana sob os auspícios da Associação


Parlamentar de Mulheres do Quênia tiveram uma poderosa mensagem
para seus colegas homens: Apoiem-nos nesta luta contra predadores
sexuais depravados, pois se eles forem autorizados a continuar, são
suas filhas, assim como as nossas, suas irmãs e mães, assim como as
nossas e, cada vez mais, até seus filhinhos, que se tornarão as próximas
vítimas185.

As reportagens do Daily Nation concordavam com os parlamentares,


e terminavam o artigo assim: “Aqueles animais que atacam nossas filhas,
irmãs, mães e esposas devem pagar caro”. Ativistas da sociedade civil
enviaram mensagens por SMS para parlamentares do sexo masculino que
diziam: “Faça a coisa certa apoiando o projeto de lei. Você está apoiando
sua esposa, mãe, filha e irmã”186.
Essa ênfase retórica na “esposa, mãe” e assim por diante mudou o local
da vulnerabilidade: ofensas sexuais não eram mais o que era cometido
contra garotas e mulheres, homens e meninos potencialmente anônimos;
elas eram cometidas contra a instituição da “família”. Ao aprovar o projeto,
os legisladores estariam afirmando sua lealdade e devoção à família. Como
o teórico queer Lee Edelman perguntou, quem se atreveria a ser contra a
família?187. Os parlamentares já não eram mais solicitados a proteger toda
e qualquer pessoa que pudesse ter sido abusada sexualmente, incluindo

185 DAILY Nation. Join Forces on Sex Bill, 1 abr. 2006.


186 DAILY Nation. Engrossing debate as sex bill is brought to the house of the floor, 30 abr. 2006.
187 EDELMAN, Lee. No Future: Queer Theory and the Death Drive. Durham: Dulce University
Press, 2004.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 115
prostitutas e minorias sexuais; em vez disso, eles foram solicitados a
defender seus parentes.
No entanto, esse foco na defesa da família era custoso: legisladores
do sexo masculino que se opunham ao assédio sexual, estupro conjugal e
excisão genital feminina argumentavam, falsamente, que essas disposições
(e similares) ameaçavam práticas de cortejo e a vitalidade conjugal. Como,
questionaram alguns deputados, alguém seria capaz de distinguir entre
namoro e assédio sexual? Esta questão expõe as contradições inerentes
ao projeto de lei: os legisladores procuraram proteger as condições que
permitem a heteronormatividade, incluindo a formação de papéis de
gênero próprios e alguns alegadamente africanos, ao mesmo tempo em
que protegem o casamento e a família dos criminosos sexuais. Além
disso, práticas ‘tradicionais’, como a excisão genital feminina, poderiam
ser defendidas porque, como argumentaram alguns parlamentares, elas
ajudaram a policiar o gênero; abraçando estrategicamente o relativismo
cultural, os defensores da excisão argumentaram que isso tornava as
mulheres ‘casáveis’. Enquanto as práticas de gênero e os rituais de namoro
pudessem ser ‘amarrados’ para criar casamentos e defender famílias, eles
recebiam o aval.
Nem se poderia perceber que a lei atacasse as práticas sexuais e de
gênero que aconteciam dentro do casamento. Este último argumento
veio à tona nos debates sobre estupro conjugal. Embora as disposições
contra o estupro conjugal estivessem no rascunho inicial do projeto de
lei, disponível em dezembro de 2004, o debate sobre estupro conjugal
ganhou intensidade na última metade de abril e foi até maio de 2006 – o
parlamento aprovou a lei na última semana de maio de 2006. O estupro
conjugal ganhou intensidade como um problema quanto mais o projeto
se concentrava em proteger as instituições do casamento e da família.
Então, o ministro assistente da saúde, Enoch Kibunguchy, afirmou: “Este
projeto vai separar as famílias porque diz que alguém pode estuprar
sua esposa”188. Outros parlamentares argumentaram que “não podia
ocorrer nenhuma relação sexual não consensual entre esposos que se

188 LUMWAMU, Kennedy; MATOKE, Town. MPs take sex bill war home. Daily Nation, 1 maio 2006.

116 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
amam”189. Numa absurda e trágica ironia, o projeto de lei para proteger
contra ofensas sexuais foi transformado em um projeto que protegia a
família. Enquanto a família heteronormativa era a unidade considerada
vulnerável, não poderia ser simultaneamente um local onde ocorressem
ofensas sexuais. As discussões em torno do estupro conjugal sugeriram
que o objetivo final do projeto era proteger uma sexualidade queniana
percebida em uma família patriarcal e heteronormativa.
Defensores de cláusulas contra o assédio sexual e o estupro conjugal
alegaram que o maior adversário em tais debates era a cultura, que estava
sendo usada como uma desculpa para os homens ligados à tradição não
mudarem a lei. Essa explicação é apenas parte da história. À medida que
o projeto de lei se reduzia, da tentativa de proteger todas as mulheres e
meninas, homens e meninos sexualmente vulneráveis para a defesa da
família heterossexual, tornou-se praticamente impossível incluir quaisquer
disposições que pudessem impedir a formação da família heterossexual
ou expor rachaduras na fachada da família. Os limites heteronormativos
da Lei de Ofensas Sexuais impossibilitaram a criminalização de atos
que ocorrem dentro do espaço sagrado do leito conjugal heterossexual.
Protegendo a família contra invasores de fora – estrangeiros, prostitutas e
homossexuais – os legisladores não podiam proteger a família dos perigos
internos à sua estrutura. Tampouco poderiam proteger os locais de sua
formação – o assédio sexual continua a ser uma ameaça real, assim como
outras formas de violência sexual e de gênero projetadas para criar corpos
e relacionamentos normativos.

Da lei à política: a família

Em agosto de 2008, o Ministério de Estado da Cultura e do Patrimônio


do Quênia distribuiu um esboço de uma política recém-formulada sobre
cultura e patrimônio. Embora não explicitamente declarado, a política foi
claramente uma resposta ao caos da violência pós-eleitoral que abalou
o país em janeiro e fevereiro de 2008. A política oficial foi divulgada em

189 OPONDO, Owino. House passes sexual offences bill. Daily Nation, 1 jun. 2006.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 117
2009: como a ‘Panorâmica’ da política anota, “As políticas que visam à
inclusão e participação de todos os cidadãos são garantias de coesão
social e um pré-requisito para a paz!”190. Em termos gerais, a política
tem um mandato duplo: tenta formar unidades dentro das comunidades
diversas do Quênia e busca controlar os significados de contato com
países, práticas e ideologias que são, ostensivamente, estranhas ao Quênia.
É uma proposta, então, que concebe e tenta produzir o queniano como
uma forma de intimidade (intimacy) que faz frente às ameaças internas e
externas.
Mais explicitamente do que a Lei de Ofensas Sexuais, a Política
Nacional de Cultura e Patrimônio (2009) define o papel da família em
relação ao queniano. O capítulo 4 é intitulado “A Família”, e eu cito isso na
sua totalidade:

A fundação da sociedade queniana sempre foi a família como a menor


unidade da sociedade e das relações de parentesco. No entanto, com o
advento da cultura moderna, adotamos conceitos contemporâneos de
família provocados por casamentos entre os quenianos e pessoas de
outras nacionalidades.

Declarações políticas
O Governo trabalhará em conjunto com outras instituições para
fortalecer as relações familiares e de parentesco como base para uma
nação unificada.
O Governo providenciará o fácil acesso às famílias através do
desenvolvimento de instalações culturais a nível local, isto é, centros
culturais comunitários, bibliotecas, instalações para artes performáticas
e artes visuais para o benefício de pequenas comunidades rurais, do
aumento de instalações para educação artística de crianças pequenas
no nível do ensino primário191.

190 KENYA Government. National Policy On Culture and Heritage. Nairobi: Government Printer,
2009, p. 1.
191 KENYA Government. National Policy On Culture and Heritage. Nairobi: Government Printer,
2009, p. 32.

118 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
O Capítulo 4 é breve, tem pouco mais de 100 palavras. Como as
declarações breves usadas para dar ordens aos militares, essa brevidade
não apenas pressupõe, mas também constrói a intimidade queniana
como uma questão já decidida. Brevidade, neste caso, funciona como
uma estratégia de encerramento – esta afirmação não encoraja nem aceita
o diálogo. A cultura e a herança estão ancoradas em uma forma sexual
muito específica, e não pode haver debate legítimo sobre a forma da
heterossexualidade nacional.
Ao afirmar que “a fundação da sociedade queniana sempre foi a
família”, (ênfase minha), este documento reescreve e apaga as histórias
urbanas de prostituição do Quênia, histórias baseadas em classes
incorporadas em sindicatos muito importantes do Quênia, coalizões
multiétnicas que funcionam fora das estruturas baseadas em parentesco
e das histórias violentas do colonialismo que forjaram unidades de
grupos diferentes192. Posicionando este princípio íntimo muito específico,
a família heterossexual, como a forma central através da qual surgiu a
“sociedade queniana”, apaga as formas inovadoras e criativas de afiliação
que foram centrais na criação e construção do Quênia.
“Sempre” apaga também os marcadores temporais da emergência
do Quênia como nação. Agora, se escolhemos privilegiar ou não o
colonialismo é uma questão de debate legítimo. Não precisamos ancorar
o desenvolvimento e o surgimento da “sociedade queniana” em 1885,
1952 ou 1963193. As formas que essa nação adotou foram muito mais
desiguais, em rupturas curtas e longas, e pode ser que 1922, quando o
ativista trabalhista Harry Thuku foi preso, seja mais significativo para o
surgimento de alianças étnico-cruzadas do que 1920, quando a África
Oriental Britânica foi renomeada Quênia. No entanto, ao postular “a
família” como aquilo que funciona ao longo do tempo, como fundamento
sobre o qual a própria temporalidade repousa, ao mesmo tempo em que

192 Ver WHITE, Luise. The Comforts of Home: Prostitution in Colonial Nairobi. Chicago: Univer-
sity of Chicago Press, 1990; KANOGO, Tabitha. African Womanhood in Colonial Kenya. Oxford:
James Currey, 2005.
193 1885 foi a data da Conferência de Berlim, a infame Scramble for Africa; 1952 foi o início ‘ofi-
cial’ da luta nacionalista do Quênia, na qual o Mau Mau assumiu um papel fundamental; em 1963,
o Quênia conseguiu independência dos britânicos.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 119
resiste à temporalidade, este documento anula as histórias prementes que
precisamos entender e disseminar, se quisermos abraçar nossas histórias
como multiétnicas, multipolíticas e multiculturais, e atravessadas por
distintas classes.
Argumentando que a família moderna – que permanece indefinida
– emerge através de “casamentos entre os quenianos e outros nacionais”,
esta política baseia-se em duas suposições. Primeiro, presume-se que
os casamentos entre cidadãos quenianos não redefinem o casamento, a
família ou o queniano de qualquer forma. Etnia, raça, religião e classe
não têm especificidade íntima. Um casamento entre, digamos, um gikuyu
e um indiano, ou um luo e um kamba, não levanta questões; não há,
similarmente, problemas nos casamentos intergeracionais, não levantando
novas questões ou paradigmas. Essas alegações simplesmente não são
confirmadas pela história do Quênia194. Ideias importantes sobre o que
significa ser queniano estão ancoradas em nossas histórias de negociações
íntimas. Estamos constantemente criando e recriando a nós mesmos e ao
Quênia através de nossas formas de afiliações e filiações íntimas. Nossas
vidas íntimas inovadoras oferecem paradigmas de como a cultura e o
patrimônio estão dinâmica e constantemente em evolução. Posicionar o
casamento intranacional como instituições estáticas, pré ou antimodernas
rouba os quenianos de paradigmas valiosos.
O segundo grande pressuposto dessa afirmação é que o casamento
heterossexual oferece acesso à modernidade do íntimo. Como estudos
recentes demonstram, formas de intimidade são cada vez mais aduzidas
como evidência da modernidade. Os Estados que adotam o direito queer,
por exemplo, são considerados mais modernos, enquanto os Estados

194 Na história pós-independência do Quênia, o caso mais famoso sobre as complicações do ca-
samento interétnico foi o encenado entre a viúva de S.M. Otieno, Wambul Otieno, e seus membros
do clã. Ver STAMP, Patricia. Burying Otieno: the politics of gender and ethnicity in Kenya. Signs, v.
16, n. 4, p. 808-45, 1991; GORDON, April. Gender, ethnicity, and class in Kenya: “Burying Otieno”
revisited. Signs, v. 20, n. 4, p. 883-912, 1995; COHEN, David; ODHIAMBO, Atieno. Burying S.M.:
The Politics of Knowledge and the Sociology of Power in Africa. London: James Currey, 1992.
Mais recentemente, Wambui Otieno também tem sido foco de controvérsias por se casar com um
homem vários anos mais novo do que ela. Ver MUSILA, Grace A. Age, sex and power in modem
Kenya: a tale of two marriages. Social Identities, v. 11, n. 2, p. 113-129, 2005.

120 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
que ainda criminalizam os direitos queer são considerados primitivos195.
Consequentemente, ao enquadrar formas de intimidade como portas
de entrada para a modernidade, esse documento político incorpora-
se aos paradigmas existentes. No entanto, esta política queniana limita
a modernidade do íntimo à modernidade do íntimo heterossexual,
recusando a possibilidade de que as intimidades modernas existam em
condições bem distintas da heterossexualidade conjugal. O casamento
heterossexual é definido em termos de cultura e herança, enquanto o
restante, ser mãe solteira, abstinência, promiscuidade, desejos e práticas
queer é implicitamente marcado como não cultural, não moderno, não
tradicional, nada contribuindo para a história, para o presente e para o
futuro.
Tudo isso dentro de aproximadamente 40 palavras do parágrafo
introdutório.
É contra esse pano de fundo a-histórico que as declarações de política
são definidas e cada uma delas merece atenção especial.

O governo trabalhará em conjunto com outras instituições para


fortalecer as relações familiares e de parentesco como base para uma
nação unificada.

Essa formulação opõe implicitamente aqueles que querem “fortalecer


as relações familiares e de parentesco” a outros que não são nomeados
e que procuram destruí-los. De fato, esta declaração de política baseia-
se e reforça a Lei de Ofensas Sexuais ao privilegiar a unidade familiar
heterossexual como um objeto de vigilância e proteção do Estado.
Com certeza, essa afirmação em apoio à família é importante,
especialmente se quisermos perceber as ricas possibilidades do que

195 HOAD, Neville. Arrested development or the queerness of savages: resisting evolutionary
narratives of difference. Postcolonial Studies, v. 3, n. 3, p. 133-158, 2000; PATTON, Cindy. Stealth
bombers of desire: the globalisation of “alterity” in emerging democracies. In: CRUZ-MALAVÉ,
Arnaldo; MANALANSAN, Martin F. (Ed.). Queer Globalisations: Citizenship and the Afterlife of
Colonialism. New York: New York University Press, 2002, p. 195-218.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 121
significa ser multiétnico e multirracial. De fato, um esforço conjunto do
governo para apoiar a integração nacional através de meios íntimos é
vital, especialmente no rescaldo da turbulenta violência pós-eleitoral, que
separou os laços íntimos. Precisamos construir um espaço nacional no
qual as reivindicações de etnia não tenham o poder de romper ligações
íntimas, um espaço nacional no qual os laços íntimos têm o poder de
redefinir a política de base étnica.
No entanto, se quisermos atribuir aos vínculos íntimos um papel
fundamental na criação e sustentação da nação, então parece estratégico
e lógico que nosso objetivo nacional seja multiplicar as possibilidades de
laços íntimos, reconhecer tanto o alcance quanto a diversidade de laços
íntimos que ocupamos e criamos. Não somos todos nós que estamos
nos casando com heterossexuais, e ancorar o país nesse fundamento
arrisca-se a alienar os muitos solteiros, mas ainda intimamente unidos,
jovens; as mulheres e homens que prestam serviços íntimos; aqueles de
nós que permanecem abstinentes ou celibatários; e aqueles de nós que
experimentam o gênero e a sexualidade de várias maneiras. Precisamos
perceber o potencial da variedade e da diversidade dos arranjos íntimos
que ocupamos, e não encerrar as possibilidades deles de produzir coesão
nacional, ou o que Walt Whitman chama de “adesão”196.
Ao contrário da primeira declaração de política, que é relativamente
clara, a segunda é truncada, pouco clara, e até mesmo ilógica. Lê-se:

O Governo providenciará o fácil acesso às famílias através do


desenvolvimento de instalações culturais a nível local, ou seja, centros
culturais comunitários, bibliotecas, instalações para artes visuais e
realizações para o benefício de pequenas comunidades rurais, aumento
das instalações para educação artística de crianças pequenas ao nível
das escolas primárias.

196 Aqui, eu me afasto da crítica queer de que o Estado deve sair do negócio de legislar a intimi-
dade. Embora eu reconheça os muitos problemas da intimidade sancionada pelo Estado, também
tenho receio de abordagens que alienem o Estado, abordagens que podem não ser apropriadas ou
possíveis em um espaço como o Quênia.

122 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Em um nível puramente sintático, a sentença não possui um predicado
claro. Para quem o governo “fornecerá acesso fácil [às famílias]” e
com que propósito?197 No entanto, ao rejeitar a sentença com base em
sua idiossincrasia sintática corre-se o risco de perder o que sugere, não
importa o quão desajeitado seja.
Por breves instantes, parece que ‘instalações culturais’ contêm famílias
– é onde as encontramos, onde elas são construídas e onde circulam.
O objetivo das instalações culturais é, portanto, “conter”, no sentido de
restringir e selar, ideias sobre o que são as famílias. É a partir da “cultura”,
por meio da criação de “centros culturais, bibliotecas, instalações para
artes performáticas e visuais”, que recebemos “fácil acesso” às famílias.
Em suma, essas instituições culturais, criadas ou apoiadas pelo Ministério
da Cultura e do Patrimônio, têm como objetivo primordial a criação
de espaços íntimos de apego. Eles nos ensinam o que é a intimidade
apropriada, como as famílias funcionam. Espaços e instituições culturais
não são, portanto, projetados para inovar arranjos sociais e íntimos, nem
devem desafiar nossas ideias preconcebidas sobre a intimidade apropriada.
O que parece especialmente impressionante nessa lista de instalações
culturais é como elas gerenciam e circulam o conhecimento: das artes
performáticas, incluindo o teatro local baseado na comunidade, até as
bibliotecas que armazenam e disseminam conhecimento e as artes visuais,
a ‘cultura’ deve fornecer ‘fácil acesso às famílias’. Os trabalhos artísticos,
culturais e literários (no sentido amplo da escrita) devem sempre fornecer
“acesso fácil” para a família e ser, para usar um americanismo, “amigo da
família”. Ainda que, inadvertidamente, esta seleção reconheça a relação
entre a imaginação e a inovação íntima, os atos e arranjos íntimos podem
ser criados, formados e reformados. Em contraste, a cultura patrocinada
pelo governo procura impedir a imaginação indisciplinada que pode
fomentar inclinações queer. Representações artísticas e literárias que
desafiam a forma e a função da família estritamente definida são,
presumivelmente, não culturais e, pior, um desafio para a produção de

197 Para ser justo, a sentença pode ser completa e coerente, mas minha descrença em seu hetero-
centrismo nu me força a interpretá-la como incoerente. Isto é o que é apropriadamente chamado
de leitura “engajada”.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 123
uma “nação unificada”. É importante perceber o que está em jogo aqui:
nada menos que a unidade da nação. Consequentemente, aqueles que
criticam tais políticas estão não apenas “contra a família”, mas também
estão contra uma “nação unificada”.
O escopo desta afirmação é incrível, pois esses espaços culturais
específicos, bibliotecas, centros culturais e museus ofereceram refúgio e
consolo a muitas pessoas queer isoladas e a seus questionamentos. Nós
nos procuramos nas páginas de livros de medicina, livros de psiquiatria,
dicionários, enciclopédias; nos reconhecemos em Radcyffe Hall,
James Baldwin, Oscar Wilde e Shakespeare; nos sentimos intimamente
conectados enquanto assistíamos a peças, filmes, balés; aprendemos a nos
chamar, a nomear e renomear a nós mesmos, a ocupar o mundo como
parte dele, mesmo quando isolados. Identificar, depois, esses espaços como
gaiolas heteros, espaços de contenção, é apagar a possibilidade, ampliar a
solidão, consagrar a impossibilidade como condição da condição queer
(queerness).
É especialmente digno de nota que dois grupos são mencionados:
comunidades rurais e crianças pequenas, presumivelmente aquelas que
não foram corrompidas pelos efeitos de desenraizamento da modernidade
urbana, aqueles que não foram infectados com a alteridade íntima.
Conforme construído, as comunidades rurais e as crianças pequenas
suportam o fardo da memória íntima. As comunidades rurais são
especialmente importantes porque continuam a ser consideradas como
guardiãs da tradição, na memória, se não, necessariamente, na prática.
Neste documento, as “comunidades rurais” são implicitamente distintas
daquelas que se casam com “estrangeiros” e, assim, inovam as formas
modernas da família heterossexual. As comunidades rurais tornam-se
museus íntimos, dedicados a manter formas “tradicionais” de intimidade
que, neste documento, são roubadas de sua diversidade e heterogeneidade.
Apressando-se em proteger as “comunidades rurais” das perturbações
íntimas da modernidade, essa política apaga as histórias de inovação
íntima e erótica que são uma parte rica da herança multiétnica do
Quênia. Acabaram-se as práticas de flexão de gênero nas quais as
mulheres biológicas funcionavam como homens culturais; são apagados
os casamentos entre mulher-mulher praticados em vários grupos; são

124 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
silenciadas as práticas de compartilhamento de parceiros dentro de faixas
etárias; são censurados os relacionamentos intergeracionais que são
centrais para o crescimento de rituais198. Volto, mais uma vez, à brevidade
deste capítulo, que assume que as histórias íntimas do Quênia não
precisam de elaboração nem consideração, que termos como “família” e
“parentesco” esgotam a maneira como vivemos e construímos nossas vidas
íntimas. Este silêncio torna não cultural o que deveria ser profundamente
cultural, não histórico o que fornece textura à história, não específico o
que permite a especificidade multiétnica.
Ao justapor comunidades rurais e crianças pequenas, esta declaração
política alinha implicitamente os dois, infantilizando as comunidades
rurais e desurbanizando as crianças pequenas. Ambos os grupos, sugere
este documento, devem ser protegidos para que, por sua vez, possam nos
proteger, modelando para nós como devem funcionar os arranjos íntimos
heterossexuais adequados.
Apesar e por causa de sua brevidade, este capítulo merece a atenção de
ativistas sexuais e de gênero. Este capítulo e a política que ele contém não
são leis. No entanto, promulgado como política oficial do governo, este
capítulo poderia ser organizado na criação de leis repressivas. Os grupos de
interesse antifeminista e antiqueer podem recorrer a essa definição oficial
de cultura e herança íntimas para defender leis repressivas e punitivas.

Combinando lei e política

Nesta seção final, volto à afirmação confiante de Makau Mutua de que


a recém-promulgada constituição protege os direitos dos homossexuais e
reavalia-os à luz da história recente que descrevi até agora. Para resumir
brevemente meu argumento: desde que o debate começou a sério sobre a
Lei de Ofensas Sexuais, em 2005, os quenianos aprovaram uma série de leis
e políticas em que o casamento nacional pertenceria à heterossexualidade
e que prometiam proteger a família heteronormativa; desde então a

198 Ver NJAMBI, Wairimu Ngaruiya; O’BRIEN, William E. Revisiting “woman-woman mar-
riage”: notes on Gikuyu women. NWSA Journal, v. 12, n. 1, p. 1-23, 2000.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 125
heterossexualidade nacional tem sido cada vez mais protegida por lei
e promovida pela política. O casamento heterossexual e as famílias
heteronormativas foram tão soldados para a nação, que um ataque contra
um ou ambos é considerado um ataque ao queniano. Simultaneamente,
o direito e a política definiram implicitamente formas não normativas
de expressão de gênero e prática sexual como ameaças à família, como
aquelas contra as quais a família deve ser defendida199.
Em 2007, o ano seguinte à aprovação da Lei de Ofensas Sexuais,
Amos Wako, então Procurador Geral do Quênia, apresentou um projeto
de lei ao parlamento200. Oficialmente, como Judy Thongori, advogada do
campo do direito de família, explicou, o projeto ajudaria a harmonizar o
mosaico de leis do Quênia, que reconhece múltiplas formas de casamento,
incluindo religiosas, civis e costumeiras201. De maneira não oficial, o
projeto responde às ansiedades provocadas por debates em torno do
escopo da Lei de Ofensas Sexuais e é uma resposta nacional ao ativismo
internacional sobre casamento gay.
Esta competência não oficial é explicitada na definição de casamento
na cláusula 2.3: “Casamento significa a união voluntária de um homem e
uma mulher com a intenção de durar para o resto da sua vida”. Nem uma
vez, em todo o projeto de lei, é mencionado o casamento entre pessoas do
mesmo sexo ou qualquer outra variação queer. Mutua argumentou que a
ausência de proibição sugere implicitamente aprovação: “Como qualquer

199 Mesmo categorias não baseadas em identidade, como homens que fazem sexo com homens
(HSH), ameaçam a família, como Andil Gosine explica em Monster, womb, MSM: the work of
sex in international development. Development, v. 52, n. 1, p. 30: As transgressões do HSH são
muitas. Ele quebra os códigos legais que proíbem a sodomia e a homossexualidade, enfraquece a
instituição do casamento heterossexual por meio de sua participação em atos sexuais que o enfra-
quecem (já que muitos, se não a maioria dos HSH, são homens casados) e atrapalha os quadros
heterossexuais, através de sua rejeição de performar ou de se amarrar a uma identidade sexual fixa.
Essas práticas são todas exigências das formas dominantes de regulação sexual euro-americanas.
De fato, o que é particularmente interessante sobre o trabalho de desenvolvimento conduzido em
nome da proteção dos HSH (ou proteção da sociedade contra ele) é sua ênfase na proteção das
principais características das práticas de regulação sexual euro-americanas: o casal heterossexual,
a declaração pública e a reificação da identidade e mediação estatal da prática sexual.
200 Um rascunho da lei está disponível em: <http://www.mzalendo.oom/Bills.Details.php.
ID=40>.
201 NJUNG’E, Caroline. Kenya marriages face drastic makeover. Daily Nation, 1 maio 2009.

126 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
estudante mediano de direito do primeiro ano sabe, uma liberdade que
não é proibida, é permitida!”202. No entanto, uma entrevista concedida
por Njoki Ndung’u logo após a promulgação da Lei de Ofensas Sexuais
oferece algumas dicas sobre a relação entre o não dito e o não declarado:
“Houve reclamações de alguns grupos religiosos conservadores de que o
projeto procurava legalizar as relações entre pessoas do mesmo sexo e o
aborto. Isso me surpreendeu porque, conhecendo a sensibilidade desses
tópicos no Quênia, eu havia me esforçado para garantir que o projeto
não surgisse para tratar dessas questões!”203. Para Ndung’u, o não dito é
parte do que o estudioso haitiano Michel-Rolph Trouillot chama de “o
impensável”204. O que não é permitido nem proibido é apagado como
uma possibilidade histórica.
Ainda mais reveladoras, a linguagem e a intenção do projeto de
casamento foram incorporadas à nova constituição. A seção 45.1, no
capítulo 4, sobre a Carta de Direitos, diz: “A família é a unidade natural e
fundamental da sociedade e a base necessária da ordem social, e gozará
do reconhecimento e proteção do Estado”. A seção 45.2 continua: “Todo
adulto tem o direito de se casar com uma pessoa do sexo oposto, com
base no livre consentimento das partes”. A justaposição dessas duas seções
delimita o que entendemos por família, sexo e gênero. No rascunho da
constituição, ‘família’ não é uma metáfora para as relações de cuidado
entre os indivíduos, mas é uma instituição heterossexual reprodutiva que
se funda através do sangue. A constituição não reconhece relações fictícias
de parentesco baseadas em classe e outras afinidades. Em segundo lugar,
esta seção reconhece apenas duas configurações de gênero e corporais:
os adultos vêm em pares binários, o “homem” e a “mulher” mencionados
explicitamente na lei do casamento.
O espírito desta lei é que ela afirma, em termos positivos e afirmativos,
o que outras formas de legislação em outras partes da África, Nigéria
e Uganda, por exemplo, tentaram traduzir em termos negativos. Não

202 MUTUA, Makau. Why Kenya’s new constitution protects gays. Daily Nation, 11 dez. 2010.
203 Reproductive Health Matters. Legislating against sexual violence in Kenya: an interview with
the Njoki Ndung’u, v. 15, n. 29, p. 150, 2007.
204 TROUILLOT, Michel-Ralph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston:
Beacon Press, 1995. p. 70-107.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 127
proíbe o casamento gay. Promove o casamento heterossexual. No entanto,
essa legislação afirmativa reflete, em espírito, a legislação negativa que
causou arrepios em todo o mundo. Observe que não diz: o Quênia proíbe
o casamento homossexual. Também não diz: o Quênia só reconhece a
humanidade de seres humanos adequadamente generificados (gendered)
e genitalizados. Em vez disso, afirma a importância da família e do
casamento e promete proteger essas instituições.
Mas contra quem eles deveriam ser protegidos?
É somente quando fazemos esta pergunta que entendemos o quanto
essas duas cláusulas se assemelham à proposta de legislação antigay em
Uganda. A família heterossexual reprodutora deve ser protegida contra
os queers, contra os homens que dormem com homens e mulheres que
dormem com mulheres e contra indivíduos transgêneros e intersexuais
que perturbam o puro gênero binário que ancora a nação.
Meu objetivo neste ensaio foi começar a traçar como a vida íntima
é estruturada através da lei e política quenianas. Ao fazê-lo, concentrei-
me não em leis e políticas que são explicitamente antiqueer – seja anti-
homossexual ou antitrans – mas, sim, naquelas leis e políticas que,
embora aparentemente indiferentes aos corpos, desejos e práticas queer,
na verdade, dependem desses corpos, desejos e práticas para ancorar seu
próprio ser normativo.

Tradução Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira (UFBA)

128 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
Olhando para além dos binarismos
coloniais: desfazendo o discurso sobre a
homossexualidade no Malaui
Jessie Kabwila
Tradução Tatiana Ivette Castilla Carrascal/UNILAB e Carolina Barbosa
Pereira/UFBA

Introdução
O debate sobre condição gay e lesbianismo, usualmente referida
como homossexualidade, está polarizado principalmente entre dois
discursos concorrentes que são em grande parte de origem colonial. Por
um lado, está uma voz minoritária, que fala através das estruturas legais,
lutando cautelosamente para que a homossexualidade seja legalizada,
avançando nos argumentos que estão imersos, sobretudo, no discurso
dos direitos humanos. De outro lado está a maioria encabeçada pelas
igrejas, líderes tradicionais e funcionários de governo, vozes mais altas
que rejeitam vigorosamente este chamado. O que este capítulo analisa
é a falta predominante da apropriação local [indigenous] e doméstica
nos argumentos que avançam em qualquer um dos campos. A partir da
minha participação no processo de revisão constitucional do Malaui, das
reações às mensagens do “Malawi Gay and Lesbian Society” na lista de
e-mails do Chancellor College, da assinatura do Malawi Daily Times pela
Ministra da Informação Patricia Kaliyati e dos artigos na Nyasa Times
sobre o Malawi Gay Rights Movement, eu argumento que, dado o nível
de HIV e AIDS205 que o Malaui está enfrentando, e o caráter imperial,
parasita e ‘podre’ do discurso dos direitos humanos, o Malaui do século
XXI precisa se apropriar deste discurso. A decisão de legalizar ou manter

205 Este trabalho adota a posição de Zillah Einstein de não capitalizar cartas que levem a uma
presença hegemônica sobre outros (1996) e aplica isso para não capitalizar o HIV/AIDS, em uma
tentativa de enfatizar que se o HIV/AIDS é real na África, ele não define a população da África. É
uma maneira de ilustrar que eles estão vivendo heroicamente suas vidas diante de uma doença tão
crônica. A vida está acontecendo e a África não é uma história de miséria, vitimização e dependên-
cia como a mídia ocidental quer que acreditemos.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 129
a homossexualidade ilegal no Malaui precisa ser feita em termos locais
e do Malaui. O Malaui pós-colonial precisa ter essa conversa em termos
descolonizados, que não sigam o discurso prescritivo e colonizador dos
direitos humanos, nem o discurso essencialista da cultura malauiana que
alimenta o discurso colonial ocidental da religião organizada do Ocidente
e do Oriente e do elitismo de classe. O discurso precisa girar em torno de
um eixo, de modo que:

• Aceite e valorize a diferença, a diversidade e abertura de voz.


• Interrogue os prós e contras da legalização para a vida cotidiana
da maioria e da média população do Malaui em termos de classe,
gênero, sexo, etnia e outras categorias.
• Determine como a homossexualidade, enquanto categoria, se
relaciona com o que definimos como sendo próprio do Malaui.
• Defina e trace historicamente o que o sexo e a homossexualidade
significam para a cidadania do Malaui desde os tempos pré-coloniais
até o presente, representando as mudanças.

Abordagens ancoradas em binarismos polarizados só problematizarão


e aumentarão as tensões no Malaui. Por um lado, há argumentos
impregnados de conveniência política que frequentemente pervertem
o conceito ‘cultura’, empregando produtos coloniais e imperiais como
a cristandade e o islamismo. Tais argumentos constroem uma forma
hegemônica de essencialismo cultural. De outro lado, estão os conceitos
voyeuristas e darwinianos ocidentais que exotizam a África, xs africanxs
e o sexo africano. Eles retratam a legalização da homossexualidade como
mais uma descoberta ocidental, um presente para o continente sombrio e
primitivo e a prova de uma modernidade africana.
Como este capítulo se baseia principalmente em fontes de mídia
impressa, ele começa dando uma visão geral da cobertura desta mídia206,

206 O estado moderno do Malaui tem uma população de cerca de 18 milhões e conquistou sua
independência em 1964. Seus baixos níveis de alfabetização e desafios econômicos tornam o rádio
a forma de mídia mais amplamente utilizada. As taxas de alfabetização são de 49,8% para as mu-
lheres, 76,1% para os homens, em comparação com o Zimbábue, onde os números são 87,2% para

130 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
com foco nos anos de 2005 a 2007207.

Homossexualidade na mídia impressa do Malaui


Em geral, a reação do Malaui à homossexualidade, conforme relatado
na mídia, tem sido negativa, variando da intolerância à homofobia total. Em
comparação com 2003 e 2004, o ano de 2005 viu um aumento significativo
na mídia pública de debates sobre questões como homossexualidade,
cross-dressing e travestilidade.
A mídia malauiana, especialmente a impressa e a rádio208 (a televisão
não é usada amplamente), trata a homossexualidade, a travestilidade e
o cross-dressing de maneira diferente. A homossexualidade é a questão
que é mais debatida. As discussões concentram-se principalmente em sua
moralidade e a maioria das submissões opõe essa ao altar da religião e da
cultura. A travestilidade raramente é discutida, enquanto o cross-dressing
muitas vezes não está ligado à homossexualidade ou à travestilidade. O tipo
de cross-dressing que é visível na mídia malauiana é o que acontece durante
as funções tradicionais, como casamentos, funerais, ritos de iniciação
e encontros de entretenimento, que podem ser locais ou cosmopolitas
ou uma mistura. Há também um aumento de artistas populares com
nomes femininos, como Anne Matumbi. A TVM, a estação de televisão
do Malaui, já realizou documentários sobre garotos que se vestem como
mulheres para entreter. Quando essxs músicxs são perguntadxs por que
elxs fazem isso, relatam que é por razões comerciais; isso xs torna mais
famosxs do que outrxs e tece uma sensação de intriga e suspense ao
redor delxs, aumentando assim suas vendas. Os meios de comunicação
do Malaui apresentam homens vestidos como mulheres e vice-versa em
casamentos e até mesmo durante os funerais de alguns grupos étnicos,
mas isso não é tratado como uma prática indicativa de ‘desvio’ sexual ou
tendências homossexuais. Em suma, os meios de comunicação sugerem

as mulheres e 94,2% para os homens (UNICEF, 2007).


207 Voltei ao Malaui em 2003 depois de trabalhar como professora expatriada em Botsuana por
oito anos.
208 A principal estação de rádio do Malaui é a Malawi Broadcasting Corporation (MBC), e os
principais jornais são o The Daily Times e The Nation.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 131
que a travestilidade está ausente no Malaui, uma vez que nem sequer é
discutida. Já o cross-dressing é retratado como uma prática que não está
ligada à sexualidade, à identidade sexual ou a questões de identidade, mas
como uma ferramenta de entretenimento que qualquer um dos sexos pode
praticar. A homossexualidade, por outro lado, é geralmente vista como
uma nova ameaça, um ‘pecado’ alienígena que precisa ser erradicado muito
rapidamente antes que se espalhe e contamine a população malauiana.
As discussões sobre a homossexualidade na mídia pública, às vezes, se
espalham para os fóruns de discussão on-line da Universidade do Malaui.

A lista de discussão do Chancellor College

No início de 2005, a lista de discussão do Chancellor College, o


principal colégio constituinte da Universidade do Malaui, divulgou uma
publicação da Malawi Gay and Lesbian Society, que estaria sediada na
África do Sul. Esta lista delineou seu status legal e afirmou que planejava
apresentar sua solicitação de legalização na próxima revisão constitucional,
prevista para ocorrer no final do ano. Eu estava interessada em monitorar
a resposta a essa questão por três razões: como participante no processo
de revisão constitucional; como uma ativista acadêmica feminista que
viu as cartas da cultura, etnia, gênero e regionalismo atuarem na luta
contra o patriarcado209, especialmente em questões relativas à violência
contra as mulheres210; e como uma ativista e presidente de um sindicato
que tinha um membro que era gay e que, com frequência, era perseguido
verbalmente211.
Eu estava interessada em ver como xs malauianxs aprenderam a reagir

209 A força hegemônica trabalha de várias formas, inclusive física, ideológica, institucional, de-
fendendo a criação e manutenção da dominância masculina nos níveis individual e/ou coletivo.
Este poder é usado por homens de qualquer idade, raça, classe ou religião para dominar as mu-
lheres.
210 Eu iniciei um projeto para combater a violência contra as mulheres na universidade (UNIMA)
e vi como as forças hegemônicas, como o patriarcado, se disfarçam, reinventam e se transformam,
especialmente quando estão sob ataque. Esta é uma universidade onde uma ativista acadêmica
feminista (Professora Isabel Phiri) teve que sair depois de fazer algumas pesquisas que expuseram
a prevalência de várias formas de violência contra as mulheres no campus em que eu leciono.
211 Eu era a presidenta do Sindicato dos Funcionários Acadêmicos do Chancellor College (2004-

132 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
a essa questão que havia sido lançada em seus rostos. Eu queria ver se a
discussão seria investigativa, condenatória, participativa e/ou desdenhosa.
Foi uma questão que esteve em pauta várias vezes na sala comunal
sênior212, mas que agora foi assumida pela comunidade homossexual213
que colocou a caneta no papel e provocou uma resposta.
O que se seguiu foram pontos de vista que citaram a religião e
a cultura como motivos para legitimar as posições em grande parte
homofóbicas. Para começar, as respostas jogaram tudo dentro de um
mesmo pacote – gays, lésbicas e pedófilos foram todos reunidos em um
único barco. Os comentários rotulavam a homossexualidade, variando os
rótulos de não malauiana, não humana e ilógica; alguns até invocaram o
presidente Mugabe do Zimbábue: chamando uma pessoa homossexual de
algo, rotulando a homossexualidade de algo que nem sequer é feito por
animais e, na prática, subumana. A Bíblia e o Alcorão foram citados em
uma tentativa de provar que a homossexualidade não é um ato humano.
Dois e-mails foram ataques verbais diretos ao membro da equipe que se
define, amplamente, enquanto gay e explicitamente expressaram desdém
pela pessoa e por “quem faz o que faz”. Outros e-mails rotularam a prática
como algo compreensível quando feito por prisioneiros, mas não por
malauianxs livres. A palavra operativa que foi usada para ligar esta prática
com a prisão foi matanyula, um termo pejorativo que se refere aos homens
que fazem sexo anal. Um dos e-mails lamentou como um homem não
gostaria de dormir com as numerosas e bonitas mulheres, enquanto outro
expressou a alegria de que quanto mais gays houvesse, mais mulheres
estariam disponíveis para ele. Em geral, a heterossexualidade era rotulada
como a norma, qualquer coisa fora dela era apresentada como uma
anomalia e, portanto, como um infortúnio e doença deplorável e infeliz.

2006) e em nossas batalhas contra a administração, por liderança visionária; e com o governo,
sobre salários, eu tinha visto em primeira mão como o capitalismo se protege e luta ferozmente
quando atacado para proteger lucros, inventando categorias de etnia, gênero e idade.
212 Um lugar onde a equipe acadêmica e seus cônjuges se encontram e socializam e discutem
questões acadêmicas e outras. Seus membros incluem professores universitários do mais baixo ao
mais alto nível, de funcionários associados a professores.
213 Eu acreditava que o e-mail veio da comunidade homossexual do Malaui. Isso era discutível,
já que o e-mail dizia que os membros da associação estavam na África do Sul e isso fez com que
algumas pessoas duvidassem de sua autenticidade. Eu entendi o subterfúgio como medo de ser
identificado, dado o status legal da homossexualidade.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 133
O makwerekwere
Essa reação me lembrou a maneira como experimentei a reação de
Batswanas214 ao HIV/AIDS de 1994 a 2003. Isso me lembrou de minhas
experiências como makwerekwere215 em Botsuana, onde eu fui professora
expatriada por oito anos, antes de voltar a ser docente sobre teoria literária
feminista africana no Chancellor College, University of Malaui.
Quando o HIV/AIDS ganhou visibilidade em Botswana, a opinião
pública expressa pela Botsuana Television (BTV) e as estações de rádio locais
citou esta doença como sendo estrangeira, trazida por makwerekwere. Um
bom número de estrangeiros costumava ser castigado e era muito comum
ouvir chamadas locais para que eles fossem mandados embora para suas
casas, porque estavam espalhando essa horrível doença. O que é interessante
é que as categorias de raça e nação foram aplicadas neste castigo. Africanos
brancos e de pele clara, especialmente os de países africanos abastados,
como os sul-africanos, não faziam parte dos makwerekwere que estavam
espalhando o HIV/AIDS; foram os ‘africanos’ negros de países pobres,
como Zimbábue, Malaui e Moçambique, os principais alvos desse jogo
de culpas. Eu experienciei esta realidade em primeira mão. Meu contrato
para lecionar na Escola Secundária Moshupa exigia que eu fizesse um
teste de HIV/AIDS e eu conhecia um bom número de expatriados negros
africanos que haviam sido declarados não empregáveis e deportados para
casa depois de um teste com resultado positivo. Eu estava furiosa com o
caráter claramente racista dessa política, especialmente quando descobri
que um colega professor expatriado, um inglês branco, não estava sendo
convidado a fazer esse teste. Decidi registrar meu desgosto em relação ao
meu empregador, o Gerenciamento do Serviço de Ensino. Este inglês, que
por acaso era amigo e vizinho, concordou em me acompanhar, pois ficou
espantado com a diferença em nosso tratamento, sendo que tínhamos o
mesmo empregador e ensinávamos aos mesmos alunos. Foi-nos dito na
cara que era política do governo que o teste fosse aplicado aos “negros”

214 As pessoas do Botsuana são chamadas de Batsuana.


215 Um termo depreciativo referindo-se a estrangeiros negros africanos em Botsuana. Emprego
uma abordagem centrada no assunto para a sua ortografia, a ortografia que eu, o Chichewa/Shona
Mukwekwere que vive em Botsuana possuía para autorizar e contextualizar o termo.

134 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
(leia-se africanxs negrxs, pois para euro-ocidentais e afro-americanxs não
era obrigatório) expatriados.
Então, quando voltei para casa e escutei os principais argumentos
que rotularam a homossexualidade como não africana, uma importação
estrangeira e vil, me veio à mente a semelhança em relação ao modo
como eu tinha sido suspeita de espalhar HIV/AIDS, principalmente por
causa de minhas origens geopolíticas. Havia uma notável semelhança
na maneira como eu tinha sido vista em Botsuana, e como agora os
malauianos tornavam estrangeira uma prática que eles consideravam
negativa, dolorosa e que eles não aprovavam, como se todas as coisas
ruins fossem importadas e as locais perfeitas e boas. A síndrome de culpar
o estrangeiro não parou por aí.

Uma doença trazida por estrangeiros


Em um artigo intitulado “Governo do Malaui colhendo amendoim do
turismo”216, Patricia Kaliyati, a então ministra de Informação e Turismo,
passou a “lamentar” o “problema” da homossexualidade que ela disse ser
excessiva em Chintheche Inn e estar infectando rapidamente os resorts do
Lago Malaui217. Ela rapidamente jogou a carta da cultura: “Nossa cultura
não tolera a homossexualidade. Estes turistas, quando chegam, devem
aprender a nossa cultura, não introduzindo uma cultura ruim como a
homossexualidade, que é desnecessária no Malaui”218. Ela passou a culpar
os turistas que gastavam dinheiro com jovens malauianos em troca de
favores homossexuais.
No dia 25 de janeiro de 2007, as principais empresas de mídia
impressa no Malaui fizeram uma manchete que anunciava que a ministra
Kaliyati fecharia mais um resort turístico com base na sua ligação à
homossexualidade e abuso de drogas. O artigo prosseguiu explicando
que ela continuou a fustigar os chefes sêniors que se aproximaram dela,
implorando para abrir o resort turístico, porque era o seu principal meio

216 MALAWI government reaping peanuts from tourism Blantyre Bureau, 2006. Disponível em:
<http://www.mask.org.za/prinpage.phd?id=1141>. Acesso em: 6 nov. 2007.
217 Idem.
218 Idem.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 135
de subsistência. Neste artigo não houve relato de planos atuais ou futuros
para a ministra se envolver com os chefes e as pessoas desta comunidade.
É de se perguntar por que, dada a crença em sua cultura – que ela mostrou
anteriormente, uma cultura que se orgulha da dimensão comunitária – a
honrada ministra não se sentou e discutiu essa questão com a comunidade
e os chefes219, em vez de recorrer à abordagem de cima para baixo e usar
seu poder e status para fechar arbitrariamente o resort. Ela se comportou
como um colonialista que veio, viu e conquistou, passando a prescrever o
que era bom para as pessoas e o que deveria acontecer. Por meio de Kaliyati,
o governo demonstrou que, quando se trata de homossexualidade, não se
dialoga com as pessoas envolvidas com o objetivo de entender o assunto
antes de tomar uma posição.

O parlamentar decide
A mesma ministra tinha falado sobre a homossexualidade
anteriormente, enquanto fazia parte de um workshop de treinamento
sobre gênero em agosto de 2006, no qual eu participava. Esta foi uma
iniciativa conjunta do Executivo Escocês e do British Council para
capacitar mulheres parlamentares malauianas, ligando-as à sociedade
civil em questões de gênero.
Ela foi uma das parlamentares presentes, embora não tenha
participado de todo o workshop ou da sessão específica em que eu levantei
a questão da homossexualidade. No dia anterior ao discurso dela sobre
a homossexualidade, eu havia apresentado a questão da sexualidade e
como era importante que as mulheres líderes estivessem bem informadas
antes de se apressarem em dizer qualquer coisa à mídia, para que não
precisassem retratar suas opiniões quando o contrário aparecesse. Citei a
saga de Mary Nangwale220 como um exemplo para ilustrar que os discursos
políticos públicos de mulheres políticas são mais escrutinados, quanto à

219 Estou bem ciente de que o papel e a definição dos chefes malauianos foram muito influen-
ciadas pelo colonialismo, pela política multipartidária e pela chamada democratização do Estado
neocolonial. Eu emprego a definição pré-colonial de chefe no Malaui.
220 A manipulação pela mídia e pelo sistema político do debate parlamentar sobre a primeira
inspetora-geral da polícia do Malaui. Outro exemplo é o tratamento dado pela mídia à tentativa de

136 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
precisão, do que os feitos pelos homens.
Eu usei o modo como os profissionais reagiram aos e-mails
[anônimos] de gays e lésbicas na lista discutida anteriormente, perguntei
como eles, como parlamentares, lidaram com essa questão. Um bom
número reagiu na maneira usual de “homossexualidade ser pecado”. Mas
à medida que a discussão prosseguia, um deputado de um dos círculos
eleitorais de Lilongwe, por exemplo, questionou por que os homossexuais
não saíam para lutar por seus direitos sexuais, por que escreviam cartas
anônimas. Salientei que alguns dos fatores contribuintes eram que a
homossexualidade é um crime que carrega um estigma e leva ao ostracismo
no Malaui221. Percebi que quando alguém apresenta os fatos obtidos no
local, os parlamentares se abrem e fazem perguntas para entender melhor
a questão. Alguns deles até dão exemplos de gays e lésbicas que conhecem,
citando exemplos históricos de tais pessoas, sobre as quais sabiam por
meio de seus avós. No final da discussão, alguns parlamentares apreciaram
minha apresentação. A visão geral foi de que eles podem pedir abertura
sobre a questão, mas a linha de fundo é que eles não podem endossar
o que enfurece e é visto como um tabu por seu eleitorado e liderança
do partido. No final do dia, eles levam as opiniões das pessoas de cujos
votos dependem para seus trabalhos. Eu ainda enfatizei que eles, como
indivíduos, precisam ler essa questão e tomar uma posição informada.
Os comentários da Ministra Kaliyati sobre a homossexualidade
ocorreram um dia depois desta sessão e usei seu aparente fracasso em
distinguir a homossexualidade da pedofilia para enfatizar o ponto que
eu havia abordado nas sessões de treinamento anteriores. Kaliyati havia
homogeneizado e criticado os praticantes de ambas, pedindo sua prisão
onde quer que fossem encontrados no Malaui. Kaliyati não foi a primeira
liderança política a pedir a prisão de homossexuais. Ela estava, é claro,
seguindo o exemplo do presidente Mugabe, do Zimbábue, que em 1993

Vera Chirwa de concorrer à presidência. Ela era rotulada como muito velha quando tinha a mesma
idade que Bingu wa Mutharika, então presidente do Malaui – há muitos exemplos que evidenciam
o viés de gênero na liderança política globalmente e no Malaui.
221 Alguns dos parlamentares e outros membros da sociedade civil disseram estar decepcionados
com minha escolha de discutir a questão da homossexualidade com um deles lamentando que
desta vez eu tivesse ido longe demais em minha radicalidade.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 137
enfureceu alguns participantes da feira do livro no Zimbábue ao chamar
os gays como “piores” que os cães e os porcos”222 e prosseguiu para pedir
sua prisão em Mutare, Zimbábue. Mugabe continuou argumentando
que os casamentos entre pessoas do mesmo sexo eram uma ameaça à
humanidade e condenou as igrejas que abençoaram as uniões gays223. Seu
discurso foi aplaudido por padres anglicanos na audiência e o Zimbábue
é fortemente anglicano. As opiniões de Mugabe encontraram um lar entre
o clero do Zimbábue e do Malaui.

A rejeição de Henderson
A voz religiosa do Malaui tem muita força no debate sobre a
homossexualidade. Para apreciar o peso que esta voz carrega, é
importante conhecer a composição religiosa do Malaui. Malaui tem uma
população de cerca de 18 milhões de pessoas. Muçulmanos e cristãos
somam 93% da população. Há 7,9 milhões de cristãos (80%), 1,3 milhões
de muçulmanos (13%), 305 mil pertencem a outras religiões (3%) e
apenas 423 mil não têm crença religiosa, professam religiões africanas
tradicionais ou são ateus (4%)224. Ao abordar a homossexualidade e a
distribuição de preservativos aos prisioneiros do Malaui, o Pastor Gibson
Nachiye, da Igreja da Vida Mais Profunda, e o Bispo Andrew Dube, das
Assembleias de Deus, apresentaram uma severa advertência contra a
legalização da homossexualidade, em julho de 2003, argumentando que:
“A homossexualidade é um pecado diante de Deus, portanto, atos como a
distribuição de preservativos apenas encorajariam a imoralidade”.
A rejeição do Bispo Dr. Nick Henderson, que em julho de 2005 havia
sido eleito pela diocese do Lago Malaui para servir como seu bispo,
mas que foi desafiado por membros conservadores da Igreja Anglicana,
sintetiza a reação da igreja sobre a homossexualidade no Malaui. Em
setembro de 2005, o Herald informou que o Bispo Malango havia adiado

222 GRUNDY, Trevor. Mugabe fuels “Reformation” against gays, 2006, p. 1. Disponível em: <http://
scotlandonsunday.scotsman.com/index.cfm?id=1045722004>. Acesso em: 5 nov. 2007.
223 Idem, p. 2.
224 Isto é baseado no artigo do Reverendo Dr. Chakanza sobre “Religions Percentage of Popula-
tion – Country Overview” (2004).

138 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
a audiência de confirmação do Bispo Henderson, por causa de relatos
de que ele era gay, alegando que o apoio de Henderson aos direitos gays
estava fora de sintonia com os valores africanos. Malango não era o único
a afirmar que ser gay é contrário aos valores africanos. O bispo Nathaniel
Yisa, da Nigéria, argumenta que: “A Bíblia refere-se à homossexualidade e
a condena abertamente. Na sociedade tradicional africana, não há espaço
para homens que querem fazer sexo com homens. Quanto às mulheres
que querem fazer sexo com mulheres – para a maioria das pessoas nas
áreas rurais, isso é inimaginável”225.
O argumento de que a homossexualidade ou ser gay não é africano
é uma questão que trato em um artigo na revista Feminist Africa226. Eu
argumento que, independentemente de quem aceita ou aprova o cross-
dressing e a homossexualidade, o que está claro é que ambas as práticas
têm uma história e antecedência na África. O artigo desafia o pensamento
binário e fundamenta sua posição fornecendo evidências de documentos
na literatura africana, nos artefatos e rituais de países como Gana, Quênia
e África do Sul. De fato, há um crescente corpo de pesquisas africanas que
ilustra a homossexualidade como uma prática nativa cultivada em casa.

Legalize a homossexualidade – o apelo do MHRRC


O argumento para legalizar a homossexualidade no Malaui é esparso,
mas notavelmente crescente. Em um artigo, Frank Namangale relata que
o Malawi Human Rights Resources Centre (MHRRC), no dia 28 de janeiro
de 2005, apresentou uma proposta à Comissão do Malaui para legalizar a
homossexualidade no país. O centro disse que queria que essa proposta
fosse considerada durante a revisão constitucional nacional, argumentando
que as penalidades previstas no código penal violavam o direito de uma
pessoa escolher livremente sua orientação sexual. O argumento que foi
mais avançado pelo centro é o que é mais interessante: [este é] um padrão
internacional reconhecido de direitos humanos. A discriminação de

225 GRUNDY, Trevor. African set to found rival Anglican church, 2005, p. 2. Disponível em:
<http://palmettoanglican.blogspot.com/2005_09_01_archive.html>. Acesso em: 5 nov. 2007.
226 KABWILA-KAPASULA, Jessie. Challenging sexual stereotypes: is cross-dressing “un-Afri-
can”?. Feminist Africa, n. 6, p. 68-72, 2006.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 139
pessoas sob diversas formas é proibida e todas as pessoas, sob qualquer
lei, têm garantida proteção igual e efetiva contra a discriminação, por
motivos de raça, cor, sexo, inclusive orientação sexual227.
O oficial de comunicações do centro, John Soso Phiri, prosseguiu
dizendo que xs malauianxs deveriam aceitar que havia gays e lésbicas
na sua comunidade e que elxs precisavam ser autorizadxs para sair a céu
aberto e viver livremente. Isso não poderia acontecer até que o centro
‘abrisse as mentes das pessoas’228 e foi por isso que a proposta foi feita.

A síndrome do presente estrangeiro


Começando com o MHRRC, as duas palavras destacadas acima,
“internacional” e “aberta”, sintetizam a natureza problemática dessa visão,
quer você concorde com quem fala ou não. Quando se pede para que
sejam seguidas as tendências internacionais, na perspectiva da nação do
Malaui – um povo que foi colonizado pela Europa e que está atacando
várias formas do imperialismo ocidental –, um pedido desses é o mesmo
que procurar problemas. Dado o que geralmente acontece aos malauianos
e aos africanos quando seguem o exemplo do mundo internacional
guiado pelo Ocidente, pedir para os malauianos fazer uma mudança
pragmática de atitude sobre o tema com base no que está acontecendo ao
nível internacional é imprudente, errado e perigoso. Para começar, o uso
da palavra ‘internacional’ anacroniza e infantiliza o Malaui, insinuando
que o Malaui está atrasado em relação aos tempos e não tem agência para
traçar seu próprio caminho nesta questão. Phiri precisa lembrar que esse
é o exato tom que foi usado para legitimar atos imperiais como os do
comércio de escravos e do colonialismo, e a tendência continua até hoje.
Phiri precisa lembrar que a palavra ‘internacional’ designa o Ocidente
para muitos malauianos e africanos. Não é apenas um insulto dizer-
me, como malauiana, para imitar o Ocidente; francamente, é como me
pedir para seguir os caminhos da pessoa que comprou as algemas que

227 NAMANGALE, Frank. Legalise homosexuality says human rights body. Daily News, 2005, p.
1 (ênfase da autora).
228 NAMANGALE, Frank. Legalise homosexuality says human rights body. Daily News, 2005, p. 1.

140 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
estão me encadeando. Walter Rodney229 e Adu Boahen230 ilustraram
convincentemente como os chamados gigantes internacionais são os
culpados por grande parte do que a África e o Malaui estão enfrentando.
O oposto de “aberto” é “fechado” e quando Phiri diz que o centro quer
abrir as mentes das pessoas, isso implica que suas mentes estão e/ou foram
fechadas, esperando para serem abertas por pessoas como ele e que tenham
afinidades com o centro. Tal abordagem está articulada com dinâmicas
de poder e insinua que as questões malauianas estão engajadas com os
padrões daqueles que defendem o discurso dos direitos humanos feito
pela Europa e pela América do Norte. Em uma entrevista comigo (abril de
2007),231 Nkiru Nzegwu alertou contra o engajamento da África de uma
maneira que não a considerava igual a outros continentes, uma forma que
não respeitava seu povo e que, ao contrário, colocava o Ocidente no centro
do mundo, tornando-o local e referência de conhecimento verdadeiro. Ela
dá o exemplo de como os artistas europeus aprenderam a abstração da arte
africana. Ao invés de reconhecer isso, inverteram o sentido e a chamaram
de arte tribalista e primitiva. Ela prossegue explicando como a sofisticada
arte africana que eles encontraram foi rotulada para poderem imitá-la, ou
então apenas invisibilizada. Quando se leva em conta tais pontos de vista
fica evidente por que as visões de Phiri podem ser problemáticas para
a África de hoje, que está lutando para se manter sozinha, enfrentando
tantos obstáculos internacionais em sua tentativa de se definir e decidir
seu próprio destino. Quando se observa como o Ocidente se beneficiou da
primitivização e da exotização não apenas das identidades africanas, mas
das sexualidades africanas, os africanos têm justificativa para desconfiar
de um discurso que sugere, mesmo remotamente, que é preciso prestar
atenção à atitude internacional sobre a sexualidade. O “internacional”
inclui a Europa que nos tempos coloniais definiu x africanx como o
homem e a mulher hipersexualizadxs232. Os povos da África e do Malaui,

229 RODNEY, Walter. How Europe Underdeveloped Africa. London: L’Ouverture Publications,
1972.
230 BOAHEN, Adu. African Perspectives of Colonialism. Baltimore: The Johns Hopkins University
Press, 1987.
231 KABWILA-KAPASULA, Jessie. Celebrating Africa House: an interview with Professor Nkiru
Nzegwu. JENdA: A Journal of African Women’s Studies, n. 10, p. 171-176, 2007.
232 SALO, Elaine. Talking about feminism in Africa. Women’s World, 2001. Disponível em:

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 141
neste caso, estão lutando contra a imagem de povos anacrônicos233 aos
olhos do Ocidente, além de doentes, indefesos e atrasados. Sugerir o
argumento do “internacional” é endossar o retrato racista da África pelo
Ocidente. Esta questão de abrir a mente dxs malauianxs faz com que a
aprovação e/ou reconhecimento da homossexualidade pareça ser um
problema prescrito pelo exterior. Dá a imagem de um presente que vem de
um povo internacional, esclarecido e selecionado, os três sábios bíblicos
do Oriente, ou, neste caso, do Ocidente. A historiografia ocidental sobre
a África, para não falar das problemáticas atuais, torna muito difícil para
xs malauianxs receberem qualquer presente do Ocidente. As palavras de
Nuruddin Farah em seu livro Gifts ilustram eloquentemente o argumento
que estou tentando desenvolver aqui. Falando sobre as línguas europeias,
que têm sido discutidas como um presente que pode unir os africanos,
Farah aponta a razão para os africanos desconfiarem dos chamados dons
do Ocidente: “Para saber quem eu sou (um africano) e como eu me saí,
você deve entender por que eu resisto a todos os tipos de dominação,
incluindo o de receber algo”234.

Rótulos racistas
É crucial que aqueles que defendem a legalização da homossexualidade
evitem rótulos racistas, uma vez que isso só irá problematizar a maneira
pela qual os africanos leem sua própria causa. Richard Kirker, o secretário
geral do pequeno, mas destacado Movimento Cristão Lésbico e Gay, disse
o seguinte, ao reagir à divisão que ocorreu quando a Igreja anglicana
americana nomeou o Bispo Gene Robinson: “Pessoalmente, eu prefiro ver
uma divisão dentro das fileiras da comunidade anglicana do que pessoas
de princípios que se curvam às demandas de africanos homofóbicos”.
O que exatamente significa o rótulo de africanos homofóbicos? E

<http://www.wworld.org/programs/regions/africa/amina_mama.htm>. Acesso em: 7 nov. 2007.


233 Um termo usado por Fanon (1963), Boahen (1987) e McClintock (1995) para se referir ao
modo como o Ocidente definiu a África como um lugar sombrio, atrasado e indefeso. Chegar a
isso era visto como voltando no tempo, enquanto ir para a Europa era visto como luz e desenvol-
vimento para o mundo.
234 NGABOH-SMART, Francis. Dimensions of gift giving in Nurrudin Farah’s Gifts. Research in
African Literatures, v. 27, n. 04, p. 144-156, 1996.

142 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
se Akinola (o arcebispo da Nigéria) fosse europeu e branco, teria feito
diferença? O problema é a homofobia ou o capital epidérmico (relacionado
à cor da pele) de quem pratica a homofobia? – para citar Steven Gregory235.
Tal declaração corrobora o discurso racista, agravando a situação.

Envolver-se com a homossexualidade em termos do


Malaui
Se examinarmos as posições tomadas por aqueles a favor e contra a
legalização da homossexualidade, é evidente que a maioria dos argumentos
é externa in natura. O Malaui precisa examinar esta questão em termos do
Malaui. Em vez de nos apressarmos em falar de cultura como se ela fosse
um conceito puro, precisamos nos encontrar dentro de nós mesmos, como
pessoas, e descobrir como o sexo é definido e como era definido antes
da colonização e o papel que o sexo e a sexualidade desempenham nos
parâmetros malauianos da cidadania e da personalidade. Como definimos
desvios no sexo? A homossexualidade é uma questão entre nós agora ou
não? Como isso está ligado ao HIV/AIDS que estamos enfrentando?
Nossa agenda e prioridades devem se basear no que sentimos, pensamos,
acreditamos e representamos uns aos outros e coletivamente. A menos
que a “identidade do Malaui” não exista mais, precisamos ter certeza de
que o debate sobre essa questão seja apropriado e que haja participação
dxs malauianxs em sua diversidade, em vez de ancorá-lo à hegemonia
heterossexual, ao cristianismo e ao islamismo.
A primeira realidade a aceitar no Malaui é que, embora tenhamos
prisioneiros para quem damos preservativos, dizemos que a
homossexualidade não é do Malaui. Certamente os preservativos não
são para explodir como balões e as apresentações de Lucius Banda de 13
de maio de 2007 atestam a presença da homossexualidade nas prisões.
Evidentemente, precisamos reconhecer essa realidade em vez de moralizar
e prescrever o que pensamos que o sexo é e deveria ser no Malaui.
Precisamos interrogar este tropo moralizante e prescritivo que perpassa os

235 GREGORY, Steven. The Devil Behind the Mirror: Globalization and Politics in the Dominican
Republic. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2007.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 143
argumentos daqueles que são contra a legalização da homossexualidade.
Precisamos nos perguntar se a cultura malauiana define e policia o
sexo da maneira que o cristianismo faz. Eu estou perguntando isso sabendo
como a cultura malauiana tem sido citada no discurso sobre prostituição,
mães solteiras e mulheres solteiras na teoria literária feminista. Um bom
exemplo é o modo como as definições de mulheres livres, mulheres
vadias, filhos de fora do casamento e bastardos surgiram e foram
debatidas236. Em Kabwila-Kapasula237, Nzegwu ilustra como a sexualidade
das mulheres na África pós-colonial tem sido policiada em questões que
não eram na África pré-colonial. Usando o exemplo de sua sociedade
igbo, Nzegwu238 ilustra como a definição cristã de morais frouxas e filhos
nascidos fora do casamento é usada para policiar e colocar no ostracismo
social as mulheres em Igboland pós-colonial, ao contrário dos tempos
pré-coloniais. Quando alguém entra em uma comunidade africana,
hoje, que adotou a definição colonial de boa mulher, que muitas vezes
é modelada nos ideais vitorianos e foi usada para policiar a sexualidade
feminina europeia239, é fácil entender como as categorias ocidentais estão
sendo usadas como critérios normalizadores. É fácil comprar ideias como
‘bastardo’ e ‘prostituta’, mas isso era diferente antes que os colonialistas
vitorianos chegassem a Igboland.
Se a homossexualidade deve ser rejeitada com base no fato de ser
estrangeira, só podemos fazer isso depois de termos examinado como
definíamos a homossexualidade antes da chegada do colonialismo e suas
identidades, processos e instituições.
Precisamos investigar nosso passado no Malaui, se é que é possível,
e então verificar se realmente não tínhamos homossexualidade. Então,
novamente, quantas coisas xs malauianxs fazem hoje que não fizeram antes?
A questão da homossexualidade precisa ser desvendada e interrogada por
nós como pessoas hoje, levando em conta nosso ontem. Precisamos pesar

236 KALIPENI, Ezekiel; ZELEZA, Paul T. (Ed.). Sacred Spaces and Public Quarrels: African Cul-
tural and Economic Landscapes. New Jersey: Africa World Press, 1999.
237 KABWILA-KAPASULA, Jessie. Celebrating Africa House: an interview with Professor Nkiru
Nzegwu. JENdA: A Journal of African Women’s Studies, n. 10, p. 171-176, 2007.
238 NZEGWU, Nkiru. Family Matters. Albany, New York: University of New York Press, 2006.
239 PATEMAN, Carole. The Disorder of Women. California: Stanford University Press, 1989.

144 T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R
e ver como nós, como pessoas, nos sentíamos e nos sentimos sobre isso.
Precisamos nos perguntar como definimos sexo, se o sexo como
um ato tem diferenças e é sempre definido em termos de diversidade.
É importante examinar nossas diferentes comunidades em suas várias
versões de matriarcado, patriarcado, patri/matrilocalidade, e ver que
peso é dado às relações sexuais e como isso se cruza com a cidadania na
aldeia e no ambiente urbano. Precisamos saber se o modo como alguém
faz sexo afeta a definição de quem é um malauiano ou não. Precisamos
desatrelar a interface entre o modo como se faz sexo e o acesso a recursos
e cidadania. Nos meus estudos literários do Malaui e da região da SADC,
eu ainda devo ter a prova de uma comunidade que sanciona uma pessoa,
desqualificando-a de ser um membro da aldeia ou comunidade, com base
na forma como faz sexo.

Conclusão
É importante que xs malauianxs se envolvam em seus problemas como
iguais com outras nações. Precisamos evitar privilegiar a lógica colonial
eurocêntrica na conceituação de nossos problemas e soluções. Aqueles
que defendem a legalização da homossexualidade precisam se envolver
com o Malaui como uma nação madura, independente e bem informada.
Eles não devem apresentar a homossexualidade como uma questão sobre
a qual o mundo inteiro discute enquanto o Malaui fica para trás. Em
uma entrevista com Nzegwu, a autora enfatiza que qualquer sociedade
e, especialmente, uma africana, dada a sua historicidade, precisa ser
engajada, respeitosamente, como um igual. Ela precisa ser abordada com
uma atitude de leitura a partir do interior e não uma leitura externa que
prescreve e diz que “eu vim para lhe dizer o que fazer”240. O Malaui deve
usar a sua casa, aceitando encontrar uma solução aos próprios problemas,
porque, a leste, a oeste, ao norte, ao sul, a casa é melhor. É imperativo
que o Malaui use óculos caseiros para ver a homossexualidade para além
dos binários coloniais de religião/cultura e direitos humanos. O discurso

240 KABWILA-KAPASULA, Jessie. Celebrating Africa House: an interview with Professor Nkiru
Nzegwu. JENdA: A Journal of African Women’s Studies, n. 10, p. 171-176, 2007.

T R A DU Z I N D O A Á F R IC A QU E E R 145
da homossexualidade precisa ser fundamentado em discursos internos e
próprios241.

Tradução Ivette Tatiana Castilla Carrascal (UNILAB) e Ana Carolina


Barbosa Pereira (UFBA)

241 O artigo abarca também as seguintes referências: CHAKANZA, J. C. African Ancestors’ Re-
ligion: Chipembedzo cha Makolo Achikuda. Zomba: Kachere Series, 2004; FANON, Frantz. The
Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 1963; CHURCHES condemn condoms in Mala-
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Acesso em: 12 mai. 2007; CHURCHES condemn condoms in Malawi. Malawi News, 2003. Dis-
ponível em: <http://www./malawinews.co.za/look/0711-malawi.html>. Acesso em: 6 nov. 2007;
MacCLINTOCK, Anne. Imperial Leather. London: Routledge, 1995; NZEGWU, Nkiru. Gender
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nov. 2007.

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