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Prefácio
p. XVI
“Os códigos fundamentais de uma cultura (...) fixam, logo de entrada, para cada
homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na
outra extremidade do pensamento, teorias científicas ou interpretações de filósofos
explicam por que há em geral uma ordem, a que lei geral obedece (...). Mas, entre essas
duas regiões tão distantes, reina um domínio que (...) não é menos fundamental (...). É aí
que uma cultura, afastando-se insensivelmente das ordens empíricas que lhe são prescritas
por seus códigos primários, instaurando uma primeira distância em relação a elas, fá-las
perder sua transparência inicial (...), libera-se o bastante para constatar que essas ordens
não são talvez as únicas possíveis nem as melhores: de tal sorte que se encontre diante do
fato bruto de que há, sob suas ordens espontâneas, coisas que são em si mesmas
ordenáveis, que pertencem a uma certa ordem muda, em suma, que há ordem. Como se,
libertando-se por uma parte de seus grilhões linguísticos, perceptivos, práticos, a cultura
aplicasse sobre estes um segundo grilhão que os neutralizasse, que, duplicando-os, os
fizesse aparecer ao mesmo tempo que os excluísse e, no mesmo movimento, se achasse
diante do ser bruto da ordem. É em nome dessa ordem que os códigos da linguagem, da
percepção, da prática são criticados e parcialmente invalidados.”
p. XVII
“Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região
mediana que libera a ordem no seu ser mesmo (...)”
“(...) essa região mediana (...) anterior às palavras, às percepções e aos gestos,
incumbidos então de traduzi-la com maior ou menor exatidão ou sucesso (...)”
p. XVIII
“Assim, em toda cultura, entre o uso do que se poderia chamar os códigos
ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há a experiência nua da ordem e de seus
modos de ser.
1
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1981.
No presente estudo, é essa experiência que se pretende analisar. Trata-se de
mostrar o que ela veio se tornar, desde o século XVI, no meio de uma cultura como a
nossa: de que maneira, refazendo, como que contra a corrente, o percurso da linguagem
tal como foi falada, dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos, das trocas
tais como foram praticadas, nossa cultura manifestou que havia ordem e que às
modalidades dessa ordem deviam as permutas suas leis, os seres vivos sua
regularidade, as palavras seu encadeamento e seu valor representativo; que
modalidades de ordem foram reconhecidas (...)”
“Tal análise, como se vê, não compete à história das ideias ou das ciências: é antes
um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis
conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na
base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer
ideias (...)”
p. XIX
“(...) uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas
condições de possibilidade (...)”
“Ora, esta investigação arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na
epistémê da cultura ocidental: aquela que inaugura a idade clássica (por volta dos meados
do século XVII) e aquela que, no início do século XIX, marca o limiar de nossa
modernidade. A ordem, sobre cujo fundamento pensamos, não tem o memso modo de ser
que a dos clássicos. Por muito forte que seja a impressão de que temos um movimento
quase ininterrupto da ratio europeia desde o Renascimento até nossos dias (...), toda essa
quase continuidade no nível das ideias e dos temas não passa, certamente, de um efeito
de superfície (...)”
“(...) o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as, oferece-as ao saber,
é que foi profundamente alterado.” Isso parece o oposto da perspectiva Kantiana
p. XX
“(...) a arqueologia, dirigindo-se ao espaço geral do saber, (...) define sistemas de
simultaneidade, assim como a série de mutações necessárias e suficientes para
circunscrever o limiar de uma positividade nova.
Assim, a análise pôde mostrar a coerência que existiu, durante toda a idade clássica,
entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do
valor. É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente; a teoria da
representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis (...);
uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua
coerência própria, impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade
no tempo; a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da
produção (...) ”
p. XXI
“(...) o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois
séculos, uma simples dobra do nosso saber, que desaparecerá assim que este houver
encontrado uma nova forma.”
“(...) esta investigação (...) tomando como seu ponto de partida o fim do
Renascimento e encontrando (...) na virada do século XIX, o limiar de uma modernidade
de que ainda não saímos.”
“Trata-se, em suma, de uma história da semelhança: sob que condições o
pensamento clássico pôde refletir, entre as coisas, relações de similaridade ou de
Capítulo VI — Trocar
p. 227
“I. A análise das riquezas
(...) existe, nos séculos XVII e XVIII, uma noção que nos permaneceu familiar,
embora tenha perdido para nós sua precisão essencial. (...) Trata-se (...) de um domínio
geral: de uma camada bastante coerente e muito bem estratificada, que compreende e
aloja, como tantos objetos parciais, as noções de valor, de preço, de comércio, de
circulação, de renda, de interesse. Esse domínio, solo e objeto da ‘economia’ na idade
clássica, é o da riqueza.”
p. 228
“(...) metalistas e antimetalistas: entre os primeiros, contar-se-iam Child, Petty,
Locke, Cantillon, Galiani; entre os outros, Barbon, Boisguillebert e sobretudo Law,
depois, mais discretamente, após o desastre de 1720, Montesquieu e Melon) (...)”
p. 229
“Na realidade, os conceitos de moeda, de preço, de valor, de circulação, de mercado
não foram pensados nos séculos XVII e XVIII a partir de um futuro que os esperava na
sombra, mas, sim, sobre o solo de uma disposição epistemológica rigorosa e geral. É essa
disposição que sustenta, na sua necessidade de conjunto, a ‘análise das riquezas’”
p. 230
“(...) não seria possível encontrar o liame de necessidade que enlaça a análise da
moeda, dos preços, do valor, do comércio, se não se trouxesse à luz esse domínio das
riquezas que é o lugar de sua simultaneidade.”
“(...) a reflexão sobre a moeda, o comércio e as trocas está ligada a uma prática e a
instituições.”
p. 231
[Parêntesis: Davanzati
“(...) si um prince (...) frappait des monnais de fer, de plomb, de bois, de liège, de
cuir, de papier ou de sel, comme on l’a déjà fait, ou encore d’autres matières, cette
monnaie ne serait pas acceptée em dehors de son état, comme étant différente de la
matière généralement employée à cet usage : ce ne serait pas une monnaie universelle,
mais seulement um prix particulier, une marque ou um billet, une promesse de la propre
main du prince qui l’oblige à rembourser au porteur une valeur équivalente en véritable
monnaie (...)”2]
De volta a Foucault
“Malestroit fez ver que (...) o encarecimento das mercadorias só pode ser devido ao
aumento dos valores nominais investidos por uma mesma massa metálica; mas, para uma
mesma quantidade de trigo, dá-se sempre um mesmo peso de ouro e prata.”
p. 235
“Mas, a partir dessa identificação do papel da moeda com a massa de metal que ela
faz circular, concebe-se perfeitamente que ela está submetida às mesmas variações que
todas as outras mercadorias.”
“(...) um aumento de massa metálica importada do Novo Mundo, e, por
consequência, um encarecimento real das mercadorias, posto que os príncipes, possuindo
ou recebendo de particulares lingotes em maior quantidade, cunharam peças mais
numerosas e de melhor quilate; para uma mesma mercadoria, dá-se portanto uma
quantidade de metal mais importante. A subida dos preços tem, pois, uma ‘causa principal
(...), a abundância daquilo que dá estimativa e preço às coisas3’”
“(...) o poder de compra da moeda só significa o valor mercantil do metal.”
“tem-se aí uma disposição análoga à que caracteriza o regime geral dos signos no
século XVI (...). Aqui, o signo monetário só pode definir seu valor de troca, só pode
estabelecer-se como marca, segundo uma massa metálica que, por sua vez, define seu
valor na ordem de outras mercadorias.”
p. 236
“Entre todas as coisas de que o homem pode ter necessidade ou desejo, e os veios
cintilantes, ocultos, onde crescem obscuramente os metais, há uma corresponência
absoluta.”
p. 237
“‘Abandonaríamos então todos os nossos cálculos e diríamos: há na terra tanto ouro
quanto tantas coisas, tantos homens, tantas necessidades; na medida em que cada coisa
satisfaz necessidades, seu valor será o de tantas coisas ou de tanto ouro4’”
2
Davanzati B. Leçons sur les monnaies. In J. Y. Le Branchu, Écrits Notables Sur La Monnaie. Paris,
1934, t. II, p. 228.
3
Bodin. La réponse aux pardoxes de M. de Malestroit, 1568.
4
Davanzati. Leçon sur les monnaies. In J. Y-. Le Branchu, op. cit., p. 230-1.
“Esse cálculo (...) reúne a terra às suas cavernas e às suas minas; faz correspoder
as coisas que nascem entre as mãos dos homens com os tesouros enterrados desde a
criação do mundo.”
A natureza afetiva da riqueza, segundo Foucault:
“As marcas da similitude, porque guiam o conhecimento, endereçam-se à perfeição
do céu; os signos da troca, porque satisfazem o desejo, apoiam-se na cintilação negra,
perigosa e maldita do metal. Cintilação equívoca, pois reproduz no fundo da terra aquela
que rutila na extremidade da noite [as estrelas]: aí reside como uma promessa invertida
[no subsolo, e não no céu] de felicidade, e porque o metal se assemelha aos astros, o
saber de todos esses perigosos tesouros é ao mesmo tempo o saber do mundo. E a
reflexão sobre as riquezas propende assim para a grande especulação sobre o
cosmos, assim como, inversamente, o profundo conhecimento da ordem do
mundo deve conduzir ao segredo dos metais e à posse das riquezas [eis a
necessidade e a razão da conformação da Economia]. Vê-se a densa rede de necessidades
que, no século XVI, liga os elementos do saber: de que modo a cosmologia dos signos
duplica e funda finalmente a reflexão sobre os preços e a moeda, de que modo ela autoriza
também uma especulação teórica sobre os metais, de que modo estabelece uma
comunicação entre as promessas do desejo e as do conhecimento, da mesma forma como
se respondem e se aproximam por secretas afinidades os metais e os astros.”
p. 238
“III. O mercantilismo
5
SCIPION DE GRAMMONT. Le denier royal, traité curieux de l’or et de l’argent. Paris, 1620, p. 48.
6
Idem, p. 13-4.
“Primeiro, não é mais do metal que virá o valor das coisas. Este se estabelece (...)
segundo critérios de utilidade, de prazer ou de raridade; é na relação de umas com as
outras que as coisas assumem valor (...). ‘[A] verdadeira estimação desse valor tem sua
origem no juízo humano e nessa faculdade a que se chama estimativa’7. As riquezas são
riquezas porque as estimamos.”
p. 243
“Para o pensamento clássico [século XVII], em vias de se constituir, a moeda é o
que permite representar as riquezas. Sem tais signos, as riquezas ficariam imóveis, inúteis
e como que silenciosas.”
p. 246
“As relações entre riqueza e moeda estabelecem-se, pois, na circulação e natroca,
não mais na ‘preciosidade’ do metal. Quando os bens podem circular (e isso graças à
moeda), eles se multiplicam e as riquezas aumentam.”
p. 247
“A metáfora, tão assídua em nosso Ocidente, da cidade e do corpo, só assumiu, no
século XVII, seus poderes imaginários com base em necessidades arqueológicas muito
mais radicais.
p. 248
7
Idem, p. 46-7.
“A teoria clássica da moeda e dos preços elaborou-se através de experiências
históricas bem conhecidas. A primeira é a grande valorização dos signos monetários que
começou bem cedo na Europa, no século XVII.”
p. 249
“Tem-se o hábito de ver nessas experiências (...) o confronto entre os partidários de
uma moeda-signo e os de uma moeda-mercadoria.”
p. 250
“Se interrogarmos, porém, o saber que as tornou, umas e outras, ao mesmo tempo
possíveis, perceberemos que a oposição é superficial; e que, se é necessária, é a partir de
uma disposição única que estabelece somente, num ponto determinado, a bifurcação de
uma escolha indispensável.
Essa disposição única é a que define a moeda como uma garantia.”
p. 251
“A moeda pode sempre reconduzir às mãos de seu proprietário o que acaba de ser
trocado por ela, assim como na representação um signo deve poder reconduzir o
pensamento àquilo que ele representa.
8
Cantillon. Essai sur la nature du commerce em général. 1952, p. 76.
aí comprasse mercadorias, fizesse crescer as manufaturas, enriquecesse as herdades,
deixando a Espanha mais miserável do que jamais fora.”
p. 261
“Tais análises são importantes porque introduzem a noção de progresso na ordem
da atividade humana.”
p. 262
“Aqui, ao contrário, o tempo pertence à lei interior das representações,
incorporando-se a elas; segue e altera sem interrupção o poder que detêm as riquezas de
se representarem a si mesmas e de se analisarem num sistema monetário.”
V. A Formação do Valor
“(...) como pode a moeda estabelecer entre as riquezas um sistema de signos e de
designação?”
p. 263
“Já não se trata, pois, de saber segundo qual mecanismo as riquezas odem se
representar entre si (e median te essa riqueza universalmente representativa que é o metal
precioso), mas por que os objetos do desejo e da necessidade hão de ser reprresentados,
como se estabelece o valor de uma coisa e por que se pode afirmar que ela vale tanto ou
quanto.
Valer, para o pensamento clássico, é primeiramente valer alguma coisa, poder
substituir essa coisa num processo de troca. A moeda só foi inventada, os preços só foram
fixados na medida em que essa troca existe.”
p. 279
9
QUESNAY. Artigo “Hommes”. In: Daire. Les physiocrates, p. 42.
“No sistema das trocas, no jogo que permite a cada parte de riqueza significar as
outras ou ser por elas significada, o valor é ao mesmo tempo verbo e nome, poder de
ligar e princípio de análise, atribuição e determinação. O valor, na análise das
riquezas, ocupa, pois, exatamente a mesma posição que a estrutura na história natural;
como esta, reúne numa única e mesma operação a função que permite atribuir um signo
a outro signo, uma representação a outra representação e a que permite articular os
elementos que compõem o conjunto das representações ou os signos que as decompõem.”