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Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | IdA – UnB

A bica de Marepe: produzir um Nordeste

Pedro Ernesto Freitas Lima1


Universidade de Brasília

Resumo: Ao nos depararmos com a obra A bica de Marepe percebemos elementos


identitários que nos remetem a uma ideia de Nordeste. De forma simultânea, esses
elementos são modelados por meio de uma “mimese de produção” de modo que a
eles são fundidos traços biográficos que particularizam esses elementos e os arrastam
para um espaço do estranhamento. Considerado pela crítica como um artista “local”,
propomos aqui discutir a obra de Marepe para além de uma condição descritiva de
uma espaço “afetivo” específico, mas também em termos de produção de espaços a
partir de estratégias de diálogos entre rastros identitários e memórias particulares.

Palavras-chave: Marepe, Nordeste, arte contemporânea.

Ao elaborar um programa que pretendia pensar o que seria uma arte


nacional, os modernistas paulistas que estiveram envolvidos na Semana de
Arte Moderna de 1922 estabeleceram um parâmetro do que seria uma arte
“moderna” e “brasileira”, conceitos que foram aceitos na medida em que na
região Sudeste se deram eventos que foram privilegiados para a construção de
uma cronologia “esparsa e seletiva” da constituição das nossas artes visuais 2
(ANJOS, 2005: 52). Concomitante a esse processo, as produções artísticas
realizadas em outras regiões do país foram rotuladas de “regionais” – na
medida em que eram entendidas como “pouco mais que descrições etnológicas
do entorno humano e físico” – e “regionalistas” – isto é, privilegiavam a tradição
em detrimento de práticas modernas (idem, ibidem: 53). Essa classificação, por
mais inadequada que possamos considerar hoje, continua a impactar a forma
como olhamos para artistas e obras que fazem referência a aspectos
identitários específicos de um determinado lugar: Marepe é um caso exemplar
de como tendemos a qualificar determinadas obras como “regionais” ou “locais”
1 Doutorando em Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília
(linha de pesquisa em Teoria e História da Arte) e professor substituto do Instituto de Artes da
mesma instituição. Orientador: Prof. Dr. Emerson Dionisio Gomes de Oliveira.
2 Esses eventos seriam as construções dos Museus de Arte Moderna em São Paulo e no Rio

de Janeiro, ambos de 1948, a primeira Bienal de São Paulo em 1951, e a legitimação crítica do
Concretismo e do Neoconcretismo (ANJOS, 2005: 52-53).

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na medida em que essas privilegiam elementos considerados identitários e


estabelecem uma relação antitética com aquilo tido como “global”.
Partindo da obra A bica (1999) de Marepe, propomos discutir uma
questão particular e constituinte do debate mencionado acima acerca do “local”
em relação ao “global”. Considerando o pressuposto de que é redutor
considerar obras que tratam de questões identitárias como “descrições
etnológicas do entorno humano e físico”, como dito acima, nos perguntamos
então se, para além do caráter evidentemente representacional, nessas obras
também identificaríamos um caráter produtor, e como operaria essa produção.

Figura 1. Marepe, A Bica (1999), zinco, cabo de aço, estrutura de ferro anexada ao telhado,
600 x 600 x 600 cm (Foto: Eduardo Eckenfels).

Desde 2012 instalada no Instituto Inhotim, A bica faz referência a um


elemento largamente encontrado na região do Recôncavo Baiano, inclusive na
cidade de Santo Antônio de Jesus onde nasceu o artista, utilizado para captar e
armazenar água da chuva. Realizada em zinco, a obra pende de uma estrutura
de ferro por meio de cabos de aço. Em relação a uma bica comum, a obra de
Marepe constitui um caminho potencial para água surpreendente. Tortuoso
como se fosse um labirinto, a estrutura de zinco não determina o menor
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percurso que a água poderia fazer; pelo contrário, sugere um caminho longo,
não objetivo, permeado por avanços e retrocessos pelo qual a água seria
escoada.
A preocupação com a água, mais especificamente com o seu
armazenamento diante de um contexto de escassez, faz parte da construção
identitária da região e evoca a própria construção do que hoje reconhecemos
como Nordeste. Como assinala Durval Muniz de Albuquerque Júnior, as
regiões, ou a sua ideia, não são fatos inertes na natureza, não estão dadas
desde sempre, mas são “fatos humanos” em grande parte produzidos a partir
de discursos que não são emitidos a partir de um espaço exterior a eles, mas
sua própria locução encena, produz e pressupõe esse espaço (1999: 23; 66).
Foi no final do século XIX que políticos dos estados hoje conhecidos
como nordestinos se identificaram em torno de um discurso comum que
defendeu a destinação de recursos financeiros por parte da União para aqueles
estados que sofriam com o problema da seca, problema esse que os demais
estados da região Norte não enfrentavam. Na Constituição de 1891 as
bancadas de parlamentares desses estados conseguiram incluir uma obrigação
de destinação de verbas especiais por parte da União para o socorro de áreas
vítimas de flagelos naturais, como a seca. Mais tarde, em 1919, foi criada a
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) destinada a atender as
demandas da região Nordeste, termo que passa a ser então empregado para
distinguir esses estados dos outros estados nortistas (idem, ibidem: 68-70).
Outra obra de Marepe que nos remete à questão da água é Filtros
(1999). Aqui os populares filtros de barro são prolongados em sentido vertical
por meio do empilhamento de várias seções intermediárias do objeto
responsável pela filtragem. A exemplo de A bica, novamente o percurso da
água é prolongado, o que pode nos sugerir a baixa qualidade original desse
insumo, o que exigiria sucessivas filtragens, ou ainda a dificuldade em obter
esse produto na sua versão apropriada para consumo humano.

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Figura 2. Marepe, Filtros (1999), filtros de barro, bancos de madeira, copos de vidro e água,
dimensões variáveis.

Além do reconhecimento em torno de um discurso sobre o flagelo da


seca, outros episódios ocorridos na primeira metade do século XX marcaram a
construção identitária nordestina a partir de aspectos não apenas físicos e
geográficos, mas também culturais e artísticos como são os casos de O Livro
do Nordeste (1925) 3 , elaborado por Gilberto Freyre, e do Congresso
Regionalista do Recife (1926) 4 , organizado pelo Centro Regionalista do
Nordeste, entidade existente desde 1924. Para Albuquerque Júnior, esse
processo possibilitou que surgisse um Nordeste “adequado para os estudos na
academia, para exposição no museu, para o programa de televisão, para ser
tema de romance, pinturas, filmes, peças teatrais, discursos políticos, medidas
econômicas” (ibidem: 65).

3 Para Albuquerque Júnior, essa foi a primeira tentativa de dar uma definição para o Nordeste
que não se restringisse aos âmbitos geográfico, natural, econômico e político, mas que
considerasse também aspectos culturais e artísticos (1999: 72).
4 O Congresso foi um misto de encontro artístico-cultural e político. A ideia era unir os membros

dos estados daquela região em torno do patriotismo regional. O objetivo do Centro era reunir e
congregar “elementos de vida e cultura nordestinas” por meio de conferências, excursões,
exposições de arte, uma biblioteca com obras dos intelectuais da região e da edição da revista
O Nordeste (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999: 73).

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Quando reconhecemos um Nordeste em A bica, certamente estamos


recorrendo a dizibilidades e a visibilidades que nos chegaram por meio de uma
série de eventos e produtos culturais que construíram o nosso repertório dessa
região, o que nos permite pensar em um Nordeste “nosso”. Essa possibilidade
de termos uma concepção própria de determinada região nos leva a explorar a
obra de Marepe não apenas em termos de “representação” com sentido de
documentação identitária, mas também de “produção”.
O fato de A bica nos causar estranhamento por conta de sua forma
hiperbolicamente sinuosa, assim como o provocado pelo empilhamento
redundante de Filtros, ainda que não solape suas características identitárias,
questiona aquela antiga concepção de arte “regional” que enfatizaria sua
dimensão descritiva de determinado espaço. O que se verifica aqui não é uma
“mimese da representação”, uma perspectiva que toma o discurso como cópia
do real e que daria conta de sua descrição, mas uma “mimese da produção”,
isto é, os discursos participam da própria produção dos seus objetos (idem,
ibidem: 49).
Para Moacir dos Anjos, Marepe se preocupa em

[...] trazer, para o campo codificado das artes visuais [...],


expressões características de seu espaço de vida ordinária. [...]
aquilo que pertence ao seu território doméstico, pelo qual tem
estima e que aumenta, por isso, sua ‘potência’ de agir. O
desejo do artista em proteger um espaço restrito e próximo
contra algo que supostamente o nega [a cultura global] se
confunde, portanto, com o desejo de ocupar o espaço
simbólico mais distante, porém mais largo, que a arte instaura.
(ANJOS, 2010: 186).

Ao trazer “características” de seu “território doméstico” pelo qual tem


“estima”, Marepe produz uma obra de caráter biográfico na qual elementos do
seu meio, nos parece, são modelados pela sua biografia e pela sua memória.
Poderíamos considerar esses elementos modeladores como agentes de uma
“mimese de produção”, o que nos leva a entender a afirmação de Anjos de que,
diante dos trabalhos de Marepe, “parece estar-se sempre longe ou perto
demais daquilo que, supostamente, os explicaria de modo acurado”. (idem,
188). Eles seriam então

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evidência forte, em verdade, de que o roçar de diferenças


produz não sínteses identitárias, mas afirmações de
pertencimento híbridas e instáveis, igualmente apartadas dos
componentes distintos dos quais são resultados, embora
tragam sempre deles seus rastros. (idem, ibidem)

Dessa forma, por mais que possamos identificar elementos identitários


em sua obra, não seria pertinente afirmar, ainda de acordo com Anjos, que os
habitantes de Santo Antônio de Jesus, por reconhecerem a procedência e
função dos objetos usados pelo artista, seriam dela intérpretes privilegiados
(idem, ibidem), já que perto demais o objeto estaria tão desfocado quanto se
ele estivesse muito distante. Mas como, na obra de Marepe, podemos pensar a
articulação entre representação e produção de identidade? Como pensar na
convivência entre “rastros” identitários e formas inverossímeis em A bica?
Considerando o uso e a transformação de elementos pelos quais o
artista tem “estima” a partir de seu “território doméstico”, poderíamos aqui
pensar no processo ficcional inerente ao da narrativa biográfica a partir da
memória. Joël Candau (2013: 167-168) considera que o ato de memória
verificado nas histórias de vida evidencia a aptidão humana de inventariar o
passado, ordená-lo e torná-lo coerente no próprio momento da narração,
produzindo assim uma ilusão biográfica, uma ficção relativamente “estável,
verossímil e previsível”. Para Pierre Janet (apud CANDAU, 2013: 168), o ato
mnemônico de condução dessa narrativa “nunca é uma pura reprodução do
acontecimento ausente, mas sim [...] uma construção”. O estado emocional
daquele que recorda pode ter tal efeito sobre as recordações evocadas de
modo que se torna difícil determinar o quanto ela corresponde ao
acontecimento passado e o quanto ela é resultado da projeção da afetividade
do narrador no momento da reminiscência. Ainda segundo Candau,

seria inexato querer avaliar as narrativas de vida a partir de


critérios do verdadeiro e do falso rejeitando pura e
simplesmente as anamneses que não parecem credíveis
porque, por um lado, “aquilo que se diz de si próprio é sempre
poesia” (Renan, 1992: 38) e, por outro, como para toda a
manifestação da memória, existe uma verdade do sujeito que
se diz nos espaços referenciados entre a narração (a memória
restituída, as maneiras de “tomar-por-certo”: Ricouer, 1985:
402) e a “realidade” factual. (CANDAU, 2013: 171, grifo nosso).

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Em entrevista registrada em vídeo produzido pelo SESC TV (2011),


enquanto Marepe fala sobre o local onde seu pai trabalhou, uma casa de
material de construção chamada Comercial São Luis, o vídeo mostra o interior
dessa loja, no qual vemos uma série de pilhas de panelas de alumínio
enfileiradas em prateleiras. Em seguida, vemos o registro da retirada do muro
contendo uma publicidade da mencionada loja que foi transportado para a 25ª
Bienal de São Paulo, onde foi exposto sob o título de Tudo no mesmo lugar
pelo menor preço. Após ser despregado do chão por trabalhadores usando
britadeiras, o muro é içado por um guindaste para ser então colocado na
caçamba de um caminhão. O muro voa, torna-se poesia.
Percebemos em outras obras do artista o quanto recordação e invenção
– com conotação de poesia – as constituem de forma indiscernível, o que não
nos impede de identificar, como já apontamos, “rastros” identitários do meio
social no qual o artista se reconhece. Em Cama de vento (2010), Marepe
adiciona às tradicionais camas dobráveis de madeira e tecido, usadas pelo
artista em sua infância, asas construídas com penas de pássaros da região do
Recôncavo. Em Pinheiros (2010), bacias de alumínio de diferentes tamanhos
são empilhadas, resultando em uma forma similar a de um pinheiro, árvore
comumente usada em decoração natalina. O empilhamento, por sua vez, é um
elemento recorrente em sua obra. É inevitável pensarmos no interior da
Comercial São Luis, ou em qualquer outra casa que atue no mesmo ramo,
ocupado quase que completamente por empilhamentos de um mesmo objeto,
como se ali fosse possível verificar um horror ao vazio. Essa dualidade pode
ser aproximada da percepção de Anjos (2010: 195) da obra de Marepe como
um elogio tanto ao passado e ao periférico, evocando modos de vida
particulares, quanto a um tempo presente e a um território central, que
significaria uma adesão a uma genérica arte internacional. Ou seja, sua obra
descreve um movimento pendular entre a defesa do vernacular e o desejo pelo
cosmopolitismo.
A edição e os elementos privilegiados pelo mencionado vídeo nos
induzem a sobrepor à obra do artista seus dados biográficos, numa relação de
transparência. Ao considerarmos esses dados biográficos para analisar a obra
de Marepe, devemos reconhecer o quanto o olhar teleológico, que lança um
olhar retrospectivo de modo a produzir um sentido a partir de uma narrativa

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construída pela biografia do artista, é sedutor, como nos lembra Maria de


Fátima Morethy Couto (2011: 2204). A avaliação de Couto remete a uma
tradição vasariana que busca elevar a arte a uma condição para além da de
mero ofício e a atividade de seus produtores à condição de intelectual e liberal.
No entanto, evidentemente, não podemos aderir a uma associação unívoca e
inquestionável entre dados biográficos e obra ainda que a consideremos
plausível. Ao abordar a obra de Cézanne, por exemplo, Merleau-Ponty (2013:
128) afirma que o sentido de sua obra não pode ser explicado nem pela sua
vida e nem pelas “influências” de artistas consagrados pela história da arte. No
entanto, o filósofo reconhece que vida e obra se comunicam e que a “obra por
fazer” exige determinada vida, e não outra (idem, ibidem: 141).
Para Anjos,

o que distingue cada lugar de vida dos demais não é o


conteúdo de um repertório estanque de narrativas e gestos,
mas as maneiras pelas quais este conteúdo é afetado por
repertórios de outros lugares e, simultaneamente, como ele
também os afeta. (ANJOS, 2010: 183, grifo do autor).

Ou seja, considerando esses elementos identitários pertencentes a uma


“cultura popular”, o que os torna singulares não é o fato de serem
reconhecíveis enquanto elementos passíveis de serem repertoriados ou
descritos como “populares”, mas as relações e os modos como são utilizados,
recebidos, compreendidos e manipulados (CHARTIER, 1995: 184).
Considerando que aceitamos esse diálogo entre biografia e obra, o que
buscamos debater aqui foi como percebemos em A bica a representação de
elementos identitários de uma região específica permeados por uma “mimese
de produção” que, análoga à forma de construção de narrativas biográficas,
elabora novas formas, novas identidades que se estabelecem como tal apesar
de se erigirem nesse espaço lacunar entre o que seria o falso e o verdadeiro e
que podem, ou não, capturar sujeitos que ali se reconheçam.

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Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JUNIOR. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: FJN, Editora


Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.

ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

______. Longe ou perto demais para saber do que se trata. In: Crítica, Moacir dos
Anjos. Rio de Janeiro: Automatica, 2010. p.183-197.

CANDAU, Joël. Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.

CHARTIER, Roger. “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. In:


Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.8, n.16, 1995. p.179-192.

COUTO, Maria de Fátima Morethy. Arte e biografia: fabulações. In: Anais do Encontro
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Sheila Cabo Geraldo, Luiz Cláudio da Costa (orgs.). Rio de Janeiro: ANPAP, 2011.
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MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne. In: O olho e o espírito. São Paulo:


Cosac & Naify, 2013. p.123-142.

Museu vivo: Marepe. Direção: Cacá Vicalvi. São Paulo: SESC TV, 2011. 23’16”.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eg68TijEhOw>. Acesso em
setembro de 2016.

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