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Julho de 1914
P ouco passava das seis da madrugada quando Mog entrou sem ruído
pelo portão do pátio. Estava uma bela manhã, com a promessa de mais
um dia de calor. As aves cantavam e, em qualquer outra altura, tudo aquilo
lhe teria lembrado como fora afortunada por ter conseguido fugir de Seven
Dials e ter um marido apaixonado e trabalhador.
Mas mal conseguira dormir naquela noite, preocupada com Belle.
Apesar de, nos tempos em que trabalhava como criada no bordel de Annie,
ter tido de cuidar de seis ou sete raparigas confrontadas com o mesmo
problema que Miranda, nunca fora fácil para ela. Era uma coisa suja e ver-
gonhosa, que o facto de estar grávida tornara de certeza ainda mais terrível
para Belle.
Mog desejava do fundo do coração que houvesse uma alternativa para
as mulheres solteiras que se encontravam naquela situação. Mas se não re-
corressem ao aborto, sem o apoio das famílias ou do pai da criança ver-se-
iam na esmagadora maioria dos casos atiradas para as ruas, e o hospício
seria o único lugar que as acolheria. Se o bebé não morresse durante o
parto, seria mandado para um orfanato ou entregue a uma dessas pessoas
que viam nas crianças abandonadas uma forma lucrativa de negócio e as
tratavam sem a mais ínfima ponta de ternura e só com um mínimo de
cuidados.
Mas a principal preocupação de Mog era outra: se alguma coisa tivesse
corrido mal na noite anterior, Belle estaria metida em grandes sarilhos. A
lei podia fazer vista grossa se alguém ajudasse uma prostituta numa situ-
ação daquelas, mas não uma senhora da sociedade.
Porque muitas mulheres morriam em consequência daqueles bárbaros
abortos: se não enquanto estavam a ser feitos, algum tempo mais tarde,
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quando surgiam as infeções. Belle podia não ser culpada de encorajar e
colaborar com o que Miranda fizera, mas se a rapariga morresse, a família
ia querer alguém para acusar, e ela seria o bode expiatório ideal.
Não se ouvia qualquer ruído e a porta estava entreaberta para deixar
entrar um pouco de ar. Mog empurrou-a um pouco mais e espreitou para
dentro. Belle dormia no chão, vestindo apenas a camisola interior, com o
cabelo despenteado e um braço dobrado à volta da cabeça. A rapariga
loura deitada na cama improvisada parecia igualmente tranquila. Vestia
uma velha camisa de dormir de algodão debruada a renda que se lembrava
de ter feito para Belle. Estava com boas cores, nem demasiado pálida, nem
afogueada e febril.
Sentiu-se invadida por um enorme alívio. Não havia sangue nem nada
que sugerisse que qualquer coisa fora do vulgar tivesse acontecido naquela
sala. Viu um balde coberto no pátio, e calculou que todas as provas est-
ivessem ali.
Não obstante o seu alívio por estar tudo bem, havia na rapariga loura
qualquer coisa que a fez voltar a espreitar pela porta entreaberta, e, cho-
cada, reconheceu a filha de Mrs. Forbes-Alton. Até poucos dias antes, tudo
o que sabia a respeito da mulher vinha de coscuvilhices: que era bom-
bástica e gostava de controlar tudo o que acontecia na aldeia. Conhecera-a
finalmente numa reunião convocada para criar um grupo de tricot que
fizesse coisas úteis para os soldados que combatiam na frente. Mrs.
Forbes-Alton comparecera com as duas filhas, e Mog lembrava-se muito
bem delas por terem parecido tão embaraçadas quando a mãe começara a
comportar-se como se fosse ela a mandar ali.
Mrs. Fitzpatrick, a esposa de um famoso pianista que tinha sangue azul
a correr-lhe nas veias, sugerira que talvez Mrs. Jenkins, proprietária da ret-
rosaria, pudesse aconselhar as senhoras em relação a que género de peças
tricotar e dar instrução às novatas, uma vez que era perita na matéria.
Mrs. Jenkins dissera que teria muito prazer, e que faria um desconto
em todos os novelos de lã comprados na sua loja.
– Oh, não! – exclamara Mrs. Forbes-Alton, com a sua voz enfatuada. –
Não podemos permitir que alguém lucre com a nossa iniciativa. Temos de
comprar a lã a um grossista.
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Mog ficara furiosa, tal como muitas das outras mulheres presentes,
porque Mrs. Jenkins perdera o marido na guerra contra os Boers, na África
do Sul, e semanas antes vira os dois filhos alistarem-se. Era uma mulher de
bom coração, que tricotava generosamente roupas para todos os bebés que
nasciam na aldeia e ajudara inúmeras jovens a fazer o vestido de noiva.
Toda a gente sabia que ia enfrentar sérias dificuldades, com os dois filhos
na guerra. Mas como uma das presentes fizera notar, iria provavelmente
tricotar, mesmo assim, mais peças do que qualquer outra pessoa da aldeia.
Naquela tarde, na reunião, ambas as meninas Forbes-Alton tinham
aparecido impecavelmente vestidas, a imagem perfeita da tímida docilid-
ade. O que tornava ainda mais difícil para Mog imaginar a mais velha e
menos bonita a ter um caso amoroso secreto.
Depois da reunião, crescera o ressentimento contra Mrs. Forbes-Alton
e alguém comentara que era sempre assim que ela se comportava, menos-
prezando os esforços dos outros mas fazendo muito pouco pelo seu lado.
Dizia-se que era arrogante e mesquinha, e que tratava os criados de uma
maneira execrável. Por isso não deixava de ser irónico o facto de, ao salvar
Miranda, Belle ter poupado à horrorosa criatura a vergonha e a humilhação
que tão largamente merecia.
Agora que sabia como era a mãe de Miranda, Mog tinha ainda mais
pena da filha. O mais certo era ter sido criada por serviçais, com pouco ou
nenhum afeto ou interesse por parte da mãe. Não admirava que tivesse
caído nos braços do primeiro homem que lhe dissera que a amava. Mas
pagara um preço alto por essa pequena e fugaz felicidade.
Se tudo corresse bem, recuperaria fisicamente em poucos dias, com re-
pouso e boa higiene, mas Mog sabia que a cicatriz mental de perder um
filho, por acidente ou intenção, era algo que demoraria muito mais tempo a
sarar.
Belle mexeu-se e abriu os olhos quando a porta rangeu. Sorriu ao ver
Mog, levou um dedo aos lábios e fez um gesto de cabeça na direção de
Miranda, após o que se pôs de pé e saiu para o pátio.
Fechou a porta, agarrou no braço de Mog e guiou-a até um par de caix-
otes de madeira, onde se sentaram ao sol.
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– Ela vai ficar bem, parece-me – disse. – Foi muito corajosa, não grit-
ou nem nada, e adormeceu pouco depois de ter acabado, mas eu não seria
capaz de voltar a passar por isto.
Mog passou-lhe o braço pelos ombros e puxou-a para si. Detestava a
ideia de a sua Belle ter tido de enfrentar uma coisa daquelas.
– Não quero nem pensar no que teria acontecido à Miranda se tivesse
ido para casa – disse. – Conheci a mãe dela, uma autêntica bruxa. – Contou
a Belle tudo o que sabia a respeito de Mrs. Forbes-Alton. – Mas o que é
que vais fazer agora com a rapariga?
– Deixá-la dormir o mais possível – respondeu Belle, a olhar para a
porta. – Não vou abrir a loja, claro, uma vez que é suposto eu estar com a
Lisette. Mais logo acompanho-a a casa. Felizmente, a amiga em casa de
quem é suposto ela ter passado a noite não tem telefone, de modo que a
mãe não tem forma de saber que nunca lá esteve. A Miranda pode fingir
que teve uma menstruação particularmente forte e enfiar-se na cama.
– Vais ter de ver-te livre daquilo – disse Mog, a apontar para o balde.
– Vou enchê-lo de terebintina e deitar-lhe fogo, mais tarde – respondeu
Belle. – Não pode ser agora; poderia levantar suspeitas, se alguém visse
fumo a esta hora da manhã.
– Tiro-te o chapéu, pensaste em tudo – disse Mog, num tom de admir-
ação. Nunca deixava de a espantar ver como, depois de todas as humil-
hações por que tinha passado, Belle conseguira conservar a sua humanid-
ade, a sua dignidade e um caloroso sentido de humor.
Amara-a como sua filha a partir do momento em que lhe pegara ao
colo quando ela nascera, e teria continuado a amá-la se ela tivesse perdido
a razão e a beleza. Mas o facto de ter regressado a Inglaterra e, graças à sua
força de vontade, abrir a chapelaria com que sempre tinha sonhado e
transformá-la num enorme êxito deixava-a imensamente orgulhosa.
Mog esboçou um meio sorriso.
– Não é a primeira vez que tenho de planear qualquer coisa, mas não
sei se vou ser capaz de dizer ao Jimmy. Como estava ele ontem à noite?
– Estava ótimo, mas tu sabes como ele leva sempre tudo na maior. Não
é como certos homens a quem salta a tampa quando a mulher sai de casa.
Tens ali um dos bons.
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– Eu sei – disse Belle, sombria. – É por isso que me vai custar tanto
mentir-lhe a respeito de ter estado com a Lisette.
– Nesse caso, não lhe digas muito. Em vez disso conta-lhe do bebé.
Vais ver que fica tão empolgado que nem se lembra de perguntar pela
Lisette.
Belle fez um ar pensativo.
– Achas que a Miranda se manterá em contacto comigo depois disto?
– Queres que mantenha?
– Quero. A princípio achei que era uma emproada, mas quando ultra-
passámos essa fase descobri que tínhamos muito em comum e senti-me
próxima dela. Não conseguia deixar de pensar que só pela graça de Deus
nunca cheguei a ver-me na mesma situação. Mas não lhe disse que ia ter
um bebé, não me pareceu certo.
Mog suspirou.
– Não. Mas não penses demasiado nisso. Estavas presente quando ela
mais precisava de alguém. Bem, se não precisas de mim aqui, acho que é
melhor ir para casa. Há alguma roupa que queres que leve para lavar? Não
quero que o Jimmy te veja com qualquer coisa suspeita.
– Há um lençol e uma toalha – disse Belle, e pôs-se de pé para os ir
buscar. – Estarei em casa por volta da uma.
Quando, minutos mais tarde, abria o portão do pátio com a roupa suja
num saco, Mog voltou-se para ela.
– Estou muito orgulhosa de ti – disse. – Pode ser que aos olhos da lei
tenhas agido mal ao envolver-te, mas para mim foste corajosa e bondosa.
Espero que a Miranda compreenda que Deus devia estar a sorrir-lhe
quando te mandou ao seu encontro.
Jimmy estava atrás do balcão, com Garth, quando ela entrou pela porta
lateral. Por causa da feira, o pub estava a rebentar pelas costuras, e muito
barulhento. Belle dirigiu-se à cozinha e encontrou Mog a fazer sanduíches.
– Está tudo bem? – perguntou Mog em voz baixa, apesar de a porta
que dava para o pub estar fechada.
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– Ela está ótima – tranquilizou-a Belle. – Nem dores nem febre, e es-
tava com apetite esta manhã e muito animada no caminho até casa. Estou
tão aliviada por ter corrido tudo bem.
– As minhas preces foram atendidas. – Mog ergueu os olhos para o
teto. – Mas falemos agora de coisas mais terrenas. Daqui a um minuto vou
levar estas sanduíches para o pub e dizer ao Jimmy que já voltaste. Porque
é que não aproveitas para mudar de roupa e arranjares-te um pouco?
O tilintar da campainha da porta fez Belle pousar o véu de rede que es-
tava a prender a um chapéu e passar para a loja.
– Jimmy! – exclamou ela, surpreendida. Jimmy só costumava ir à loja
para a acompanhar a casa quando estava a chover. Mas eram apenas três da
tarde de um belo dia de outubro. – O que te traz por cá?
– Saí para comprar tinta para as janelas – disse ele.
Belle franziu a testa. A loja de ferragens não ficava para aqueles lados
e, além disso, Jimmy parecia abalado.
– Aconteceu alguma coisa?
– Será preciso acontecer alguma coisa para eu visitar a minha mulher?
– replicou ele, num tom inusitadamente duro.
Belle aproximou-se.
– Não, mas foi de certeza preciso acontecer alguma coisa para me
falares nesse tom – disse, com uma nota de censura na voz.
– Desculpa. Uma mulher veio ter comigo e deu-me isto.
Enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma pena branca.
Belle arquejou. Lera no jornal que um ou dois dias antes tinham an-
dado mulheres pelas ruas a entregar penas brancas aos homens. Era uma
sugestão de que eram cobardes por não se terem alistado. Tinha pensado
que se tratara de casos isolados, meia dúzia de mulheres patetas sem mais
nada que fazer do que incomodar quem trabalhava.
– Não ligues. Devia ser uma maluca qualquer – disse.
– Não, era um grupo de dez – disse Jimmy, com um ar muito perturb-
ado. – Estavam a abordar todos os homens. Vi o Willie, o lavador de
janelas, receber uma, e também o homem que vende jornais na estação, e
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outro que andava a passear com a mulher. Fiquei tão chocado que não
esperei para ver quem mais recebia uma pena e vim direito para aqui.
– Não tem importância – tranquilizou-o Belle. – Ninguém tem de se
alistar, se não quiser.
Mas mesmo enquanto dizia estas palavras sentiu um arrepio descer-lhe
pela espinha, porque apenas duas semanas antes vira na estação um
enorme cartaz que mostrava Lord Kitchner de uniforme e dedo esticado.
«O Teu País Precisa de Ti», dizia o cartaz. Na altura, achara que transmitia
uma poderosa mensagem.
– Pode não ser obrigatório, mas talvez seja moralmente certo eu fazer
a minha parte – refletiu Jimmy.
Nesse momento, Belle ficou assustada. Sabia que quando Jimmy usava
palavras como «moralmente certo» era porque já estava seguro do que
tinha de fazer.
– Não podes! Vamos ter um filho! – exclamou.
Jimmy estendeu os braços para a abraçar.
– Não quero que o nosso filho ou filha pensem que o pai foi um co-
barde – disse docemente, com os lábios muito perto do cabelo dela. – E
não te vou deixar abandonada à tua sorte para te desenvencilhares sozinha.
Terás o tio Garth e a Mog para cuidar de ti.
Belle afastou-se dele, furiosa.
– Mas podes morrer. Não quero que o nosso bebé tenha por pai um
herói morto.
– Não vai acontecer – disse ele, e fez um gesto de súplica com as
mãos.
– Vai-te embora. – Belle apontou para a porta. – E espero que, quando
chegar a casa, tenhas recuperado o juízo.
Jimmy saiu sem dizer mais uma palavra e Belle regressou à sua ban-
cada de trabalho. Estava tão zangada que, com um gesto mais brusco,
rasgou o véu em que estava a trabalhar, e pegou no chapéu e atirou-o para
o chão.
A campainha da porta voltou a tilintar e, pensando que era Jimmy que
voltara atrás para pedir desculpa, Belle ignorou-a.
– Belle? – chamou uma voz feminina, hesitante. – Está aí?
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Era Miranda. Belle fez um esforço para recuperar a compostura e
dirigiu-se à loja. Miranda estava muito elegante, com um vestido malva-
claro e um pequeno chapéu enfeitado com violetas artificiais a condizer.
Tinha as faces rosadas e parecia brilhar.
– Que agradável surpresa – disse Belle, grata por aquela interrupção
que a distraía da sua fúria. – Tenho pensado muito em si.
Miranda escrevera-lhe uma carta um par de semanas antes, quando es-
tava na propriedade da família no Sussex. Nessa carta agradecia a Belle a
sua bondade e dizia que tinha recuperado plenamente sem que ninguém
desconfiasse.
– É bom estar de volta a Londres – disse Miranda. – Quis tanto falar
consigo enquanto estive fora. A mamã esteve insuportável, ainda mais do
que é costume. Está tão desesperada por me casar que todos os dias convi-
dava pessoas com filhos solteiros para jantar. Não poderia ter tornado as
suas intenções mais claras se tivesse escrito no convite que se destinava a
arranjar-me marido.
Belle sorriu.
– E apareceu algum jeitoso?
Miranda revirou os olhos.
– Horríveis, todos eles. E, além disso, só falavam da guerra e de irem
juntar-se a um regimento qualquer. Julguei que morria de tédio. E a Belle,
como tem estado?
– Estava bem até há cinco minutos, quando o Jimmy apareceu. Acha
que tem de se alistar, mas eu não suporto a ideia de vê-lo ir.
– Oh, Céus! Claro que não. Mas tinha-me dito que ele não fazia tenção
de se alistar até que fosse obrigatório.
– Foi o que ele disse. Mas hoje uma mulher deu-lhe uma pena branca e
agora sente-se culpado e com medo de que as pessoas o considerem um
cobarde.
– A mamã juntou-se a um grupo que anda a distribuir penas brancas –
disse Miranda, de nariz franzido num gesto de reprovação. – Na minha
opinião, já é suficientemente mau para os homens terem os seus pares a
pressioná-los, mas agora com as mulheres a humilhá-los, os pobrezinhos
sentem que têm de ir. As pessoas como a minha mãe não pensam em como
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é que as mulheres e os filhos dos soldados vão sobreviver. Segundo ouvi
dizer, o que pagam no exército é uma miséria.
A compaixão de Miranda para com esposas e filhos pareceu a Belle a
oportunidade ideal para lhe dizer que ia ter um filho.
– Não estou muito preocupada com o que pagam no exército, mas é
que, bem vê, estou à espera de um filho.
– Mas que notícia maravilhosa! – exclamou Miranda, e o calor do seu
sorriso mostrava que estava a ser sincera. – Para quando?
– Finais de fevereiro.
Miranda fez um ar chocado.
– Sim, na altura já sabia – disse Belle. – Mas não fui capaz de lho dizer
naquela noite. Achei que não era a ocasião mais indicada.
– Nesse caso, foi duplamente horrível da minha parte afligi-la com os
meus problemas naquele momento – disse Miranda, e avançou para a ab-
raçar. – Mas estou muito feliz por si e, por favor, não sinta que não deve
falar no assunto por receio de me perturbar. Compreendo perfeitamente
que não queira que o seu marido se aliste numa altura destas. Mas estou
certa de que, depois de pensar bem no assunto, ele há de reconsiderar.
– A verdade é que muitos outros homens com vários filhos o fizeram.
Ainda ontem ouvimos falar de um homem de Lee Green com cinco filhos
que se alistou. O Garth disse que os homens no pub estavam a brincar com
o assunto e a dizer que se tinha alistado para fugir deles.
Conversaram durante mais alguns minutos acerca da guerra em geral e
Miranda disse que tinha pensado muito em arranjar um emprego e sair de
casa.
– Candidatei-me a vários lugares, nos últimos dias – disse. – Não me
iludo a mim mesma, sei que não tenho experiência. A única coisa digna de
nota que sei fazer é conduzir um automóvel.
– Jesus!
Belle estava impressionada; não conhecia pessoalmente nenhum
homem que soubesse conduzir, quanto mais uma mulher. Aquando da
mudança para Blackheath, os automóveis eram ainda uma raridade, mas
nos últimos dois anos tinham-se tornado muito mais comuns. Mas ainda
eram só os ricos que os tinham, e não via que isso fosse mudar nos tempos
mais próximos.
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– Pedi ao chauffeur do papá que me ensinasse quando estávamos no
Sussex – disse Miranda, alegremente. – Pensei que com tantos homens a
irem para a guerra, talvez houvesse uma oportunidade para uma mulher.
Os automóveis são muito difíceis de pôr a trabalhar, é preciso uma força
bruta para rodar a manivela. Também tenho andado a ler a respeito da
maneira como funcionam. Não quero fazer figura de pateta no caso de o
meu se avariar.
– Estou muito contente por vê-la tão organizada e otimista – disse
Belle.
– Sei muito bem a quem tenho de o agradecer – respondeu Miranda, e
arqueou as sobrancelhas. – Agora que me contou as suas novidades, talvez
haja uma maneira de eu poder pagar-lhe tudo o que fez por mim. Posso to-
mar conta da loja, se precisar de descansar ou ir a qualquer lado.
Belle ficou emocionada.
– É muita gentileza sua – disse. – Mas acho que vou fechar a loja
muito antes de o bebé chegar.
– Oh, não! – exclamou Miranda. – Não pode, porque é muito talentosa
e toda a gente adora os seus chapéus. Não pode contratar uma ama?
– Nunca faria uma coisa dessas – disse Belle, horrorizada.
Miranda riu.
– Não, suponho que não. Mas olhe que eu fiquei muito mais bem ser-
vida com uma ama do que teria ficado com a minha mãe.
– Há uma coisa que tenho de lhe perguntar – disse Belle. – Está
mesmo bem? Não falo de estar doente nem nada disso, mas já venceu o
desgosto?
O rosto de Miranda ensombreceu.
– Houve alguns dias em que andei chorosa e cheia de pena de mim
mesma – admitiu ela. – Mas ficou tudo muito melhor quando fomos para o
Sussex. Dava grandes passeios, andava ocupada a aprender a conduzir e
visitava alguns dos rendeiros do papá. Nunca o tinha feito, acho que o que
me aconteceu me abriu os olhos para o mundo real. O mais certo é terem
ficado muito espantados por eu me interessar pelas hortas deles, pelos fil-
hos e pelo telhado que metia água. Algumas daquelas pessoas são tão ter-
rivelmente pobres que compreendi que afinal a minha vida não era assim
tão má.
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Continuaram a conversar até serem horas de Belle fechar a loja.
Quando estava a trancar a porta, Miranda pousou-lhe a mão no braço e
apertou-lho.
– Espero que o Jimmy não se aliste, mas se o fizer, lembre-se de que
tem aqui uma amiga.
Quando, nessa noite, ela e Jimmy se deitaram, Belle soube que ele
tinha tomado uma decisão. Houvera pouco que fazer no pub e Jimmy pas-
sara o tempo escada acima escada abaixo. Sentava-se alguns minutos a
fazer-lhe companhia, mas sem dizer uma palavra, e voltava para o balcão.
Adivinhou, pela expressão tensa dele, que queria falar, mas temia que a
conversa descambasse em discussão. Estava ansiosa por pôr tudo a limpo,
mas conhecia suficientemente bem o marido para saber que ele gostava de
ter tempo para ponderar sozinho as situações e se o pressionasse demasi-
ado poderia vir a arrepender-se.
Naquele momento, porém, enquanto Jimmy enrolava o corpo à volta
do dela, como sempre fazia, quase conseguia ouvir-lhe as engrenagens do
cérebro a rodarem com emoções contraditórias.
Sabia que o medo dele não era por si mesmo, mas por ter de a deixar.
E também sabia que se chorasse e suplicasse, conseguiria demovê-lo. Mas
teria o direito de o fazer, quando ele sentia que era esse o seu dever?
Não duvidava que Jimmy tinha consciência de que não eram na ver-
dade necessários os dois, ele e Garth, para gerir o Railway, sobretudo
agora que a maior parte dos clientes habituais já tinha partido para França.
Provavelmente, sentia-se culpado de cada vez que ouvia dizer que fulano
ou sicrano se tinham alistado, sendo ele jovem e saudável e sem qualquer
boa desculpa para ficar em casa. Um bebé a caminho não seria certamente
considerado uma desculpa válida, uma vez que a maior parte dos homens
preferia distanciar-se de todo desse assunto e deixar que as mães e as irmãs
das respetivas mulheres tratassem de lhes dar apoio.
E sabia que Jimmy seria um bom soldado; era corajoso, forte e inteli-
gente. Os outros homens gostavam dele, e tinha a certeza de que não
tardaria a ser promovido porque possuía as qualidades necessárias para
liderar.
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Por muito que a aterrorizasse a ideia de ele ser ferido, ou até morto,
uma das coisas que mais amava em Jimmy era a honradez intrínseca à sua
natureza. Não queria vê-lo envolvido num turbilhão de sentimentos, a
tentar equilibrar aquilo que entendia ser o seu dever com a reação dela.
Não duvidava que ele receava que ela visse ali uma deserção, uma vontade
de a abandonar, e isso seria introduzir uma cunha entre os dois, abrir uma
clivagem.
Amava-o demasiado para querer prolongar a confusão em que se en-
contrava. Sabia que tinha de ser tão corajosa como ele era e deixá-lo fazer
o que pensava ser correto.
Pegou na mão que ele pousara na sua coxa e apertou-a.
– Não quero que vás – disse muito baixo na escuridão do quarto. –
Não sou como tu, não quero saber para nada do rei e da pátria, sou sufi-
cientemente egoísta para querer que as coisas continuem a ser agradáveis e
boas como até agora. Mas sei que tens princípios, e se achas que deves ir
combater, apoiarei a tua decisão.
– A sério? – sussurrou ele em resposta. – É que, estás a ver, apesar de
não querer separar-me de ti, quando o nosso país está em guerra, isso não é
uma desculpa válida para fugir à luta. Quase todos os homens que já
partiram deviam ter namoradas ou mulheres de quem não se queriam sep-
arar, mas arranjaram coragem para o fazer. A pena branca de hoje será
apenas a primeira de muitas, se eu ficar. As pessoas dirão que não só sou
um cobarde como lucrei com a guerra. Não seria capaz de viver com isso.
Belle agarrou-se a ele, a morder o lábio para não dizer que não queria
saber do que lhe chamassem desde que o tivesse a seu lado.
– Eu sei, eu também não seria capaz de o suportar – mentiu.
– Quem me dera acreditar que estará tudo acabado pelo Natal – disse
ele, puxando-a para si. – Quem me dera poder prometer-te que voltarei
para casa são e salvo. Mas acredito que tendo-te mantido viva e tendo-te
trazido de volta para mim depois de tudo aquilo por que passaste quando
foste raptada, Deus não será cruel ao ponto de deixar que eu morra em
França quando esperamos o nosso primeiro bebé.
Belle não tinha tanta certeza de que Deus funcionasse daquela
maneira. Pensava que o mais provável era colocar certas pessoas neste
mundo para serem postas à prova uma e outra vez. Ela e Jimmy tinham
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tido dois anos de sublime felicidade, e talvez isso fosse tudo o que podiam
esperar.
Jimmy passou-lhe a mão pelo ventre, acariciando a ligeira curva, como
que a dizer silenciosamente ao filho que o amava e que tencionava ser o
melhor dos pais.
– Quando é que vais então ao centro de recrutamento? – murmurou
ela, emocionada por aquela mostra de sensibilidade.
– Amanhã – respondeu ele. – Não vale a pena prolongar a agonia.
Duas semanas depois de Jimmy ter embarcado para França, Belle es-
tava sentada numa cadeira, na loja, ao fim da tarde, a ler mais uma vez a
primeira carta a sério que recebera dele. Chovia intensamente e estava cada
vez mais escuro, mais uma indesejada lembrança de que o inverno não
vinha longe, e ela pôs-se de pé para acender as luzes.
Na semana anterior, recebera um postal. Era uma fotografia bastante
indistinta do porto de Boulogne, que ele devia ter comprado logo após o
desembarque, pois escrevera o postal no primeiro dia que passara em
Étaples. Eram apenas cinco linhas, só para dizer que tinha chegado e que
partilhava uma cabana com nove outros homens. Avisava-a de que não ia
ter muito tempo para escrever, pois os seus dias seriam ocupados com o
treino da recruta, que incluía tiro, ordem unida e preparação física a correr
pelas dunas e praias das proximidades.
A primeira semana sem ele arrastara-se devagar; tinha saudades do
calor do corpo de Jimmy na cama a seu lado, da mão pousada na sua bar-
riga – que parecia ter-se tornado maior depois de ele partir. Tinha saudades
de partilhar com ele a refeição da noite, das piadas que ele contava a re-
speito dos clientes do pub e os mexericos da aldeia. Garth e Mog tentavam
compensá-la. Mog entrava no quarto, à noite, para lhe dar um beijo na testa
e aconchegar-lhe as roupas, Garth limpava-lhe os sapatos e perguntava-lhe
como tinha sido o dia na loja. Mas, por muito ternos e queridos que
fossem, nunca poderiam preencher o vazio que Jimmy tinha deixado.
Todos eles sentiam a ausência do seu assobio quando regressava da
cave, dos seus passos ligeiros nas escadas, do seu riso contagiante e do seu
encanto. Mog desfizera-se em lágrimas certa tarde, quando tirara do forno
uns biscoitos acabados de cozer e os deixara em cima da mesa a arrefecer,
e ele não aparecera para roubar descaradamente um enquanto ela estava de
costas voltadas. Garth habituara-se de tal maneira a que Jimmy fizesse a
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maior parte do trabalho mais pesado, movendo barris e carregando grades
de cerveja que, agora que tinha de fazer tudo sozinho, lhe doíam as costas
e tinha dificuldade em deixar tudo tratado antes de abrir o pub.
Receber finalmente uma carta a sério fora um alívio para os três. Fora
bom ter um vislumbre das peripécias dos primeiros tempos dele na vida
militar, ler a respeito dos amigos que tinha feito e de como estava a
aguentar-se.
Jimmy começara a escrever a carta na sua segunda noite no campo de
treino, descrevendo os nove homens com quem partilhava a cabana, o
treino e até a comida. Travara amizade com um homem chamado John
Dixon, que viera de Woolwich. Descrevia-o como sendo um indivíduo
desbocado, divertido e um pouco malandro que, contava, lhe recordava al-
guns dos homens de Seven Dials.
Devia ter tido de parar de escrever e continuado na noite seguinte, ao
fim de um longo dia passado na carreira de tiro. «Fui uma desgraça», es-
creveu. «Disparávamos várias vezes contra o alvo e depois íamos ver se
tínhamos acertado. Eu nem sequer cheguei perto, nem uma única vez. O
sargento chamou-me cabeça de cenoura que não serve para nada, à mistura
com alguns outros insultos que não vou repetir.»
O dia seguinte fora de aplicação militar. Jimmy conseguira trinta
flexões antes de se ir abaixo, mas a maior parte dos outros não passara das
dez. «Sempre desconfiei que levantar barris havia de servir para qualquer
coisa», acrescentava. Naquela altura, apesar de ele nunca o dizer, percebia-
se pelas suas palavras que estava a achar tudo aquilo muito duro e difícil.
Contava que alguns homens quase tinham desfalecido de cansaço no fim
de uma longa corrida pelas dunas.
O simples facto de não escrever mais do que algumas linhas de cada
vez era prova bastante de que o mantinham ocupado do nascer do sol até à
noite, mas dias mais tarde, escrevia, com algum orgulho, que tinha obtido
uma pontuação de setenta em cem na carreira de tiro e conseguido fazer
cinquenta flexões.
Enquanto lia, Belle pensava que Jimmy devia estar a passar pelo pior
dos pesadelos – revistas constantes, corridas de quilómetros pelas dunas
com equipamento completo, rastejar pela areia húmida, treino com
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baioneta e aprender a carregar rapidamente a espingarda. Além disso, se-
gundo ele dizia, não parava de chover e fazia muito frio.
Falava de uma coisa chamada a Arena, onde treinavam ordem unida, e
dizia que Étaples era uma aldeia miserável e esquecida por Deus, que não
tinha sequer uma loja decente. As imagens que criava para ela eram todas
sombrias, e no entanto conseguia parecer surpreendentemente jovial
quando dizia que usar as botas que lhe tinham sido distribuídas era como
carregar uma bola de chumbo em cada pé.
Mas o melhor da carta eram os seus pensamentos a respeito dela.
«Imagino-te a escovar os cabelos diante do toucador, a maneira como eles
caem sobre os teus ombros, brilhantes como alcatrão derretido. Ou ver-te
quando sais para a loja de manhã, toda elegante e aperaltada. Penso na
maneira como comes maçãs, a mostrar os dentinhos muito brancos e a
ponta rosada da tua língua quando lambes os lábios.»
Belle adivinhou que ele tinha outros pensamentos bem mais íntimos,
mas não se atrevia a escrevê-los por saber que a carta seria muito provavel-
mente lida por um censor, e que ela a leria, pelo menos em parte, a Garth e
a Mog. Mas terminava dizendo: «Estás sempre nos meus pensamentos, e
pergunto a mim mesmo o que estarás a fazer, se te sentirás muito sozinha
sem mim. Penso no nosso bebé que cresce dentro de ti e rezo para estar de
volta a casa antes de ele nascer. Espero que não estejas zangada comigo
por te ter deixado quando mais precisavas de mim.»
Ela, pelo seu lado, tinha-lhe escrito uma carta todos os dias desde que
ele partira. Deixava-as no correio quando regressava a casa, ao fim da
tarde. Mas tinha cada vez mais dificuldade em descobrir coisas novas para
lhe dizer, porque os seus dias eram todos iguais. E tentar tornar as suas
cartas divertidas era ainda mais difícil. As suas clientes eram, de um modo
geral, pessoas vulgares, era muito raro alguém dizer qualquer coisa que ele
achasse mesmo vagamente engraçado. Por vezes, quando lia o que tinha
escrito a respeito do que Mog lhes fizera para o chá na noite anterior, ou de
alguma mensagem que um dos clientes deixara para ele através de Garth,
sentia que a carta mal merecia ser lida. Mas procurava sempre encontrar
alguma antiga recordação partilhada para o fazer sorrir, dizia-lhe das
muitas saudades que tinha e tudo o que ele representava para ela. E depois,
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no final de cada carta, desenhava qualquer coisa, um coelho, um gato ou
qualquer outro pequeno animal, e acrescentava um chapéu.
Pegou na carta que lhe tinha escrito e em que lhe contava que, nessa
manhã, tinha encontrado uma grande aranha em cima da sua bancada de
trabalho. Ficara muito assustada, pusera um copo em cima dela e correra à
loja do lado para pedir a Mr. Stokes, o sapateiro, que fosse tirá-la dali.
Por isso, no fim da página, começou a desenhar uma gorda e cómica
aranha de cartola, a lembrar-se de como Jimmy achava graça ao facto de
ela ter tanto medo de aranhas.
A campainha da porta tilintou e ela levantou-se de um salto, deixando
o bloco de papel em cima do balcão.
Era um homem alto e corpulento que vestia uma comprida e enchar-
cada gabardina, e a primeira coisa que lhe ocorreu foi perguntar-se se
poderia pedir-lhe que a despisse e a deixasse junto à porta, porque não a
queria a pingar para o chão.
– Boa-tarde, senhor – disse, delicadamente. – Posso ajudá-lo?
– Quero um chapéu – disse o homem, num tom brusco.
– Não vendo chapéus para cavalheiro, senhor – respondeu ela, assum-
indo que era o que ele queria, uma vez que não usava nenhum e tinha a
cabeça quase calva a brilhar molhada pela chuva. – Mas há uma loja de
roupa de homem algumas portas mais abaixo, onde poderá encontrar o que
procura.
– Eu disse que queria um chapéu de homem? – ladrou o sujeito.
Belle ficou instantaneamente assustada. Embora o homem parecesse,
visto de longe, bastante respeitável, exalava, de mais perto, um cheiro a
bafio que lhe fez lembrar Sly, um dos homens que a tinham raptado
quando tinha quinze anos. Usava bigode, mas descuidado, e uma sombra
de barba escurecia-lhe o queixo. Ao examiná-lo com mais atenção,
descobriu que o colarinho da camisa estava muito sujo.
– Deseja então comprar um chapéu para a sua esposa, talvez? –
perguntou.
Nunca antes sentira medo na loja, mas naquele instante, ao ver como a
rua estava escura, e deserta, devido à chuva, apercebeu-se de que podia ser
vista como uma vítima fácil para qualquer ladrão que olhasse para dentro
através da montra e a visse sozinha.
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– Quero dinheiro – rosnou o homem, e, enfiando a mão no bolso, tirou
de lá um curto e grosso cacete de madeira.
Belle olhou para ele, cheia de espanto e medo. O homem fizera-a
sentir-se nervosa desde o primeiro instante, mas não estava à espera
daquilo.
– Quase não fiz nada hoje – arquejou.
Era verdade, só tinha vendido um chapéu, e dos mais baratos, que
custava apenas dois xelins. Com os trocos que tinha na gaveta do balcão,
não haveria mais de sete ou oito xelins, ao todo.
O homem arrepanhou os lábios.
– Não me minta, eu sei que faz um bom negócio.
– Mas hoje não. Não parou de chover, e está muito frio – disse ela.
O homem avançou, brandindo o cacete, e Belle recuou, cobrindo a
cabeça com as mãos.
– Não me bata, dou-lhe o que tenho! – gritou.
Quando a pancada que esperava não aconteceu, espreitou por entre os
dedos. O homem já tinha aberto a gaveta do balcão e estava a tirar as
moedas e a enfiá-las no bolso. O que provava que já a tinha observado
noutras ocasiões, uma vez que a gaveta era pequena e não se notava à
primeira vista.
– Onde está o resto? – perguntou o indivíduo, voltando a avançar para
ela. – Se não mo dás, dou cabo da loja, e depois de ti.
Aterrorizada, Belle sentia o coração martelar-lhe o peito. Via o deses-
pero refletido na cara do homem e soube que a ameaça não era vã.
– Não há mais nenhum – insistiu. – Só vendi um chapéu barato, não
tenho mais dinheiro na loja.
– Não me mintas! – gritou ele. – Vai buscá-lo!
Se houvesse mais algum dinheiro fosse onde fosse, Belle teria corrido
a buscá-lo. Tinha experiência suficiente com homens desesperados para
saber que o apaziguamento era vital.
– Juro que não há mais nenhum – disse, apavorada. – Se houvesse, eu
dava-lho.
Ao ouvir isto, o homem bateu com o cacete no espelho rotativo e estil-
haçou o vidro, que caiu numa tilintante cascata.
– Vai buscá-lo, ou a próxima és tu! – berrou o indivíduo.
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– Não posso ir buscar o que não existe – gritou ela. – Já tem tudo o que
havia.
O homem soltou uma espécie de grunhido furioso, saltou para ela e
bateu-lhe com o cacete no ombro. Belle gritou de dor e recuou a cam-
balear, agarrada ao ombro.
– Está ali, não está? – perguntou o indivíduo, a apontar com o cacete
para a sala das traseiras.
Belle recuou até à parede ao lado da porta.
– Se encontrar algum dinheiro aí dentro, pode ficar com ele – soluçou.
Quando o assaltante passou por ela para entrar na sala das traseiras,
Belle julgou ver a sua oportunidade e correu para a porta da frente. Mas no
instante em que deitou a mão à maçaneta para a abrir, ele alcançou-a,
agarrou-a pelo ombro e puxou-a para trás.
– Não vais a parte nenhuma, cabra! – gritou, e, erguendo o cacete,
bateu-lhe no flanco do corpo com tanta força que ela se dobrou sobre si
mesma e tombou no chão. Mas nem mesmo assim o energúmeno ficou sat-
isfeito, e levantou a perna para lhe desferir um pontapé.
Na fração de segundo em que a perna se moveu, Belle tentou proteger
o ventre com os braços, mas era demasiado tarde e a pesada bota atingiu-a
em cheio na barriga, com tanta força que a fez deslizar pelo chão até cho-
car contra o balcão.
A dor foi tão violenta que não tentou pôr-se de pé. Em vez disso,
enrolou-se sobre si mesma, quase incapaz de ver. Ouviu-o trancar a porta
da frente e baixar a persiana, e, convencida de que ia matá-la, o seu único
pensamento foi o que uma coisa daquelas faria a Jimmy.
Mas o homem não voltou a bater-lhe. Limitou-se a passar por cima
dela e dirigir-se à sala do fundo. Belle ouviu-o revistar tudo, atirando para
o chão as caixas de aplicações arrumadas nas prateleiras, como se estivesse
possesso. Tinha quase a certeza de que ele guardara no bolso a chave da
porta. Tentar chegar ao telefone não era opção, porque ele não deixaria de
a ouvir, mal se mexesse. Não podia lutar contra ele, não se atrevia sequer a
gritar de dor com medo de o enfurecer ainda mais. Por isso, permanecer
imóvel e aparentemente inconsciente no chão parecia ser a única coisa a
fazer. Quando o homem se convencesse de que não havia mais dinheiro, ir-
se-ia embora.
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Era muito difícil ficar calada e quieta quando todo o seu ser queria
gritar de dor. Mas conseguiu. Só abriu os olhos uma vez, ao ouvi-lo abrir
uma lata, e viu despejar no bolso do casaco os biscoitos que continha.
A dor era tão intensa que a loja começou a rodopiar, e a última coisa
de que mais tarde se lembraria de ter pensado foi que ia vomitar.
Eram dez da manhã quando Mog desceu a escada com o Dr. Towle
para o acompanhar até à porta. Ambos cambaleavam de cansaço: Mog
tinha grandes manchas vermelhas a sujar o avental branco e o médico,
sempre tão impecável e imaculado, parecia uma pessoa diferente, com um
restolho de barba na cara e os olhos raiados de sangue.
O céu estava cinzento-escuro e fazia muito frio. Ouviram Garth a ar-
rastar barris na adega. Tinha deixado a porta aberta.
– Ela vai recuperar? – perguntou Mog, com a voz a tremer. Belle per-
dera uma quantidade enorme de sangue e houvera um momento em que
não parecera possível salvá-la. Mas o médico enchera-a de gaze, e agora
estava tudo nas mãos de Deus.
– É jovem e forte – disse o Dr. Towle, e deixou escapar um suspiro
fundo, como se estivesse a tentar encontrar aspetos positivos. – Se con-
seguir ultrapassar as próximas vinte e quatro horas sem mais hemorragias e
sem infeções, julgo que recuperará completamente. Vou mandar uma
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enfermeira para ficar com ela. O seu esforço é admirável, Mrs. Franklin,
mas está exausta e a Belle precisa de cuidados especializados.
Mog assentiu com um gesto de cabeça.
– O que for melhor para ela. Não suportaria perdê-la.
– É sua sobrinha? – perguntou o médico, a olhar para ela com curiosid-
ade. Sabia que Mr. Franklin era tio de Jimmy Reilly, mas sentia o pro-
fundo amor que aquela mulher tinha pela sua paciente, e parecia muito
mais forte do que seria normal num parentesco só por afinidade.
– Fui governanta da mãe dela – respondeu Mog. – Mas criei-a desde
bebé.
– Estou a ver. – O médico anuiu. – Pois deixe-me dizer-lhe que fez um
excelente trabalho. É uma jovem encantadora e, segundo a minha mulher,
uma talentosa chapeleira. É uma pena o marido ter partido recentemente
para França. Tenho a certeza de que a presença dele lhe faria muito bem.
– Acha então que devemos tentar trazê-lo para casa? – perguntou Mog.
– A Belle não quis que ele soubesse do ataque, para não o preocupar, e
suspeito de que dirá o mesmo acerca disto.
– Sim, mas pelo que sei a respeito do Jimmy, diria que gostaria de es-
tar aqui para apoiar a mulher. É claro que vai demorar algum tempo a
contactá-lo e conseguir o seu regresso, mas sim, penso que é o que deve
ser feito.
– Mas como, senhor doutor? – perguntou Mog, a retorcer o avental
com as mãos. – Não sei nada dessas coisas.
– Dê-me o nome do regimento e outros pormenores e deixe o assunto
comigo. Tenho alguma influência que posso usar para o trazer de volta.
Depois de ter dado a Mog instruções sobre a maneira de cuidar de
Belle enquanto a enfermeira não chegasse e de ter tomado nota das in-
dicações referentes a Jimmy, o Dr. Towle saiu, dizendo que voltaria antes
do jantar.
Garth entrou na cozinha quando Mog estava a pôr a roupa suja na
celha para ser lavada. Viu, por cima do ombro dela, a água fria tornar-se
encarnada, e empalideceu.
– Ela vai conseguir? – perguntou.
– Não sei.
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Mog voltou-se para o marido, desfeita em lágrimas. Tinha-o ouvido,
durante a noite, andar de um lado para o outro no corredor, e o facto de
saber que ele tinha tanto medo como ela era reconfortante.
Garth abraçou-a e apertou-a contra o peito.
– A sorte não pode ser cruel ao ponto de levá-la agora, desta maneira,
depois de tudo aquilo por que ela passou e tudo o que significa para o
Jimmy e para nós – disse, com a voz a tremer de emoção.
Mog endireitou-se e limpou os olhos à manga do vestido.
– Tenho de voltar para junto dela – disse. – Importas-te de trazer
carvão para acender a lareira no quarto? Pôs-se muito frio, e quando a en-
fermeira chegar não podemos deixá-la gelar.
– Alguma vez pensas em ti mesma? – perguntou ele gentilmente, e
acariciou-lhe a face. – Só dormiste um par de horas antes de isto acontecer.
Não podes com uma gata pelo rabo.
– Ficarei bem logo que souber que ela vai recuperar.
Ele voltou a abraçá-la e passou-lhe as mãos pelo cabelo.
– Vai, então. Já te levo uma chávena de chá, e trato eu de acender o
lume.
Mog passou todo o dia seguinte com os nervos em franja. Belle pare-
cia ter estabilizado, até comeu algumas colheres de sopa, mas isso não sig-
nificava que estivesse livre de perigo. Mog sabia que uma infeção podia
surgir de um momento para o outro, e que era isso que matava mulheres
naquela situação.
A enfermeira Smethwick começava a mexer-lhe com os nervos, com
as suas ordens e os seus ares de superioridade. Deixara bem claro que não
a queria a entrar e sair constantemente do quarto da doente, remetendo-a
para as suas tarefas e as suas preocupações.
Tinha enviado um telegrama a Annie, que podia aparecer a qualquer
altura. O que não deixaria de tornar a atmosfera ainda mais tensa. Garth
não gostava muito dela, e se Annie se mostrasse tão abrasiva como era seu
costume, ia de certeza irritá-lo. Tudo o que verdadeiramente queria era que
Jimmy voltasse. Confortaria Belle, daria a Garth um aliado masculino e a
sua força tranquila ajudá-la-ia a ela a aguentar-se.
E então chegou o carteiro, com uma resposta de Annie: «Diz Belle
lamento. Não posso ir agora. Breve. Annie.»
– O que poderá ser mais urgente do que ver uma filha doente? – disse
Garth, de lábios arrepanhados como costumava fazer quando escondia os
seus verdadeiros sentimentos.
Como sempre, Mog sentiu-se obrigada a fazer o papel de pacificadora.
– Talvez esteja doente. Pode ter tido um hóspede mais difícil. Montes
de coisas.
– Mais provavelmente acha que perder um filho só pode ser uma coisa
boa – rosnou Garth, maldoso.
– Não digas isso – ralhou Mog. – A Belle disse-me que ela estava
muito feliz com a perspetiva de ser avó.
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– A única coisa que a faz feliz é ganhar dinheiro – replicou Garth e,
dando meia-volta, afastou-se.
Mal a enfermeira Smethwick saiu, ao fim do dia, Mog subiu para ir ver
Belle. Estava acordada e tinha os olhos vermelhos do choro.
– Que se passa, querida? – perguntou Mog, enquanto se sentava na
cama junto dela.
– Queria que o Jimmy cá estivesse – respondeu Belle, tristemente. –
Não sei como é que vou dar-lhe uma notícia destas.
– Bem, com isso podes deixar de te preocupar. O doutor enviou-lhe
uma mensagem e pediu que o mandassem para casa. Não te disse nada
antes porque pensei que vê-lo entrar porta adentro seria uma surpresa
maravilhosa para ti.
– Tinha de ser um estranho a dizer-lhe? – Belle fez um ar horrorizado.
– E porque haviam eles de deixá-lo vir por uma coisa assim? Só se pensas-
sem que eu estava a morrer!
Mog engoliu em seco. Devia ter adivinhado que Belle só pensaria em
Jimmy, não nas suas próprias necessidades.
– O doutor Towle disse que tinha alguma influência. Achou que pre-
cisavas do Jimmy aqui.
– E achou que era uma generosidade deixá-lo fazer toda a viagem a
pensar o pior?
– Tenho a certeza de que o doutor Towle há de ter dito ao comandante
que tu estavas a recuperar, querida. E também conheço suficientemente o
Jimmy para saber que ficaria zangado connosco se não tentássemos ao
menos fazer-lhe chegar uma mensagem. Seria muito mais cruel dar-lhe a
notícia numa carta e deixá-lo imaginar sabe-se lá o quê.
Belle tapou a cara com as mãos e começou a soluçar.
– Nunca mais vai voltar a ser a mesma coisa. Todos os nossos planos
foram por água abaixo. O Jimmy está na tropa e eu perdi o bebé. Não resta
nada.
– Isso é pura patetice – disse Mog, indignada. – Tu e o Jimmy con-
tinuam a ter-se um ao outro, e a guerra não há de durar para sempre. E há a
loja, também, quando voltares a estar bem.
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Belle afastou as mãos do rosto.
– Sabes muito bem que nem o Garth nem o Jimmy me deixarão voltar
para lá. Vou ter de estar como todas as outras esposas inglesas, fechada em
casa. Sem poder ser eu, a ver os anos passar sem propósito nem objetivo,
sem nada que realizar.
Mog protestou porque achou que era a sua obrigação. Disse que Belle
estava transtornada por ter perdido o bebé e a olhar para as coisas de uma
maneira distorcida. Mas sabia que ela tinha razão. Garth e Jimmy não iam
querer que voltasse à loja: teriam medo, depois do que acontecera.
Se Belle fosse como qualquer uma dessas vulgares jovens bem-educa-
das, não aspiraria a mais do que ser uma esposa bem-amada. Mas Belle
não era vulgar, não tinha tido uma infância normal com uma mãe que cui-
dasse da casa enquanto o pai trabalhava fora. Na idade mais impres-
sionável, fora levada para longe de casa e, de ambos os lados do Atlântico,
aprendera coisas que haviam apagado a sua inocência e lhe tinham en-
sinado a arte da sobrevivência.
Ela, que odiava as distinções de classes, fora, desde o primeiro dia em
que abrira a loja, obrigada a fazer vénias a snobes porque eram eles a cli-
entela que lhe permitia viver. Em casa, estava sempre a imitar as senhoras
que lhe entravam na loja, a pavonearem-se de nariz empinado e a
queixarem-se de como estavam cansadas depois da prova de um vestido,
de um almoço com amigas ou até de um jogo de bridge.
Mog, Jimmy e Garth achavam muito divertidas as suas pequenas imit-
ações, que retratavam com tão crua fidelidade a monotonia vazia das vidas
daquelas mulheres. Pouco faziam pelas suas próprias mãos, e o seu único
objetivo parecia ser assegurarem-se de que as filhas casavam bem e viviam
exatamente da mesma maneira que elas.
E no entanto, por ser uma chapeleira tão talentosa, Belle conquistara
um estatuto especial junto daquelas mulheres e habituara-se a ser lison-
jeada por elas. Podia não gostar daquilo que representavam, mas
orgulhava-se de ter conseguido pôr um pé no mundo onde elas se moviam.
Se desistisse da loja, passaria no mesmo instante a ser vista como a mulher
de um taberneiro, e as mesmas mulheres que a tinham tratado como uma
amiga não se dignariam sequer a olhar para ela.
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Belle precisava de pessoas quase tanto como precisava de criatividade.
Se tivesse tido o bebé, teria sido uma boa mãe, uma mãe cheia de amor,
mas tinha demasiado fogo, imaginação e inteligência para se conformar a
uma vida de tarefas domésticas.
– Ainda vai demorar algum tempo até voltares ao normal – disse Mog
com muito cuidado, porque não queria ir contra qualquer coisa que Garth
ou Jimmy pudessem dizer. – Descansa, melhora, e fala com o teu marido
quando ele chegar a casa. O Jimmy é muito compreensivo, tu sabes disso.
Talvez não queira que voltes à loja, mas não acredito nem por um instante
que se oponha a que faças algum trabalho voluntário para ajudar ao esforço
de guerra.
– A distribuir penas brancas, como a mãe da Miranda? – respondeu
Belle, com algum azedume. – Ou talvez queiras que me junte ao teu cír-
culo de tricotadeiras? Consegues verdadeiramente imaginar-me a fazer
esse género de coisas?
– Sabes muito bem o que penso a respeito dessas estúpidas mulheres
que distribuem penas brancas – retorquiu Mog. – Há outros papéis, papéis
úteis. Portanto, porque é que, enquanto estás aí deitada, em vez de te en-
cheres de pena de ti mesma não pensas no que é que gostarias de fazer?
CAPÍTULO 7
Dois dias mais tarde, enquanto Belle estava a descansar, Jimmy foi até
à loja.
Naquela manhã, tinham chegado várias cartas de clientes que,
sabedoras do que acontecera, queriam manifestar a sua solidariedade. Belle
perguntara-lhe como devia responder-lhes, se devia avisá-las de que não
voltaria a abrir a loja, e Jimmy não soubera o que dizer. Garth deixara bem
claro o que pensava do assunto. Para ele, manter a porta aberta era peri-
goso e o lugar de Belle era em casa. Jimmy estava de acordo, mas também
sabia o que a loja significava para Belle e por isso estava relutante em
pronunciar-se, de momento.
Pensara que, se fosse dar uma vista de olhos, talvez conseguisse arru-
mar as ideias e chegar a uma decisão. Fechou a porta da loja depois de
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entrar e olhou em redor. Mog tinha feito a limpeza no dia seguinte ao
ataque, mas o espelho sem vidro e a cadeira partida na sala das traseiras
bastavam para lhe dar uma ideia de como fora horrível. Ainda havia uma
mancha de sangue na parede, e vê-la fez com que as entranhas se lhe con-
traíssem de fúria.
No entanto, enquanto deambulava pela loja, a tocar nos pequenos
chapéus que Belle fazia tão bem, soube que não era capaz de lhe exigir que
desistisse completamente dela. Sem aquele interesse e com ele em França,
Belle sentiria que nada mais lhe restava.
O som de alguém a bater à porta interrompeu-lhe os pensamentos.
Mog pendurara um letreiro a dizer «Encerrada até nova ordem», mas,
apesar disso, viu uma jovem do outro lado do vidro, a fazer-lhe sinais para
que abrisse.
Um pouco irritado, abriu a porta. A jovem, elegantemente vestida,
usava um chapéu verde enfeitado por uma pena que tinha, de certeza, sido
feito por Belle.
– Lamento, mas a loja está fechada – disse, ao mesmo tempo que
apontava para o letreiro.
– Eu sei ler – replicou a jovem, num tom de seca ironia. – Mas estive
fora uns dias. Vim ver a Belle, somos amigas, compreende? Chamo-me
Miranda Forbes-Alton. Aconteceu alguma coisa à Belle? E já agora, quem
é o senhor?
Jimmy lembrou-se de uma referência a alguém chamado Miranda. Se-
gundo Mog, tinha uma mãe insuportável, e a julgar pelas maneiras, a filha
fora cortada do mesmo pano.
– Sou o marido – disse. – A Belle foi atacada e roubada e em con-
sequência da agressão perdeu o nosso bebé.
Para sua consternação, os olhos da jovem encheram-se de lágrimas.
– Oh, Céus, não! – exclamou Miranda, limpando os olhos com um
lenço de renda. – Pobre Belle, que coisa horrível! Estava tão feliz por ir ter
um filho. Se tivesse sabido mais cedo! Há alguma coisa que possa fazer?
Posso tomar conta da loja, se isso ajudar.
Jimmy não gostara da maneira como ela lhe perguntara quem era. No
entanto, a óbvia perturbação da jovem por causa do que acontecera a Belle
apaziguou-o.
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– É muita gentileza sua – disse –, mas decidimos manter a loja encer-
rada, de momento. Como pode imaginar, ela ainda está muito fraca e triste.
– Claro que deve estar. Desculpe ter-lhe falado com dureza, Mister
Reilly. Não esperava que fosse o senhor, sabendo que estava em França.
Conte-me o que aconteceu. A que horas foi?
Jimmy explicou tudo com mais pormenor, incluindo como Belle est-
ivera perto da morte devido à perda de sangue e como o médico tinha
usado a sua influência para lhe conseguir uma licença. Miranda
sobressaltou-se, com uma expressão horrorizada.
– Mas vai ter de voltar para o exército, não vai? – disse. – Há alguma
coisa que eu possa fazer para ajudar? Gosto muito da Belle e sei que vai
ficar ainda mais triste quando se for embora.
Jimmy reconheceu a sinceridade das palavras daquela jovem, e soube
que se sentiria muito mais descansado quando regressasse a França
sabendo que Belle tinha uma boa amiga com quem falar.
– Tenho de voltar amanhã – disse. – Tenho a certeza de que a Belle
ficaria contente por receber a sua visita, da parte da tarde. Talvez consiga
animá-la.
– Vou certamente tentar – respondeu ela. – E, por favor, diga-lhe que
penso nela e explique-lhe que só soube do ataque depois de falar consigo.
– Com certeza, Miss Forbes-Alton. A Belle agradecerá o seu cuidado,
como eu agradeço. Temos uma porta lateral no Railway; não precisará de
passar pelo pub.
– Irei por volta das duas. E mantenha-se a salvo, lá em França. A Belle
precisa de si inteiro.
Jimmy sorriu-lhe. Compreendia agora o motivo pelo qual Belle
gostava dela; podia parecer um pouco emproada à primeira vista, mas mel-
horava à medida que se dava a conhecer.
O som das pesadas botas de Jimmy lá fora na rua, pouco depois, fez
Belle chorar. Mais tarde, ouviu o comboio entrar na estação e voltar a
partir, levando-o para longe dela.
Mog subiu a escada, abriu a porta e espreitou para dentro do quarto,
mas Belle fingiu que estava a dormir. A última coisa que queria era com-
paixão. Só serviria para fazê-la sentir-se ainda pior. Passou o resto da man-
hã a chorar e a dormitar; agora que tinha perdido o bebé, que Jimmy tinha
partido e que se capacitara da possibilidade de ele nunca mais voltar,
sentia-se completamente arrasada.
E o facto de Mog lhe falar com dureza por não ter comido o pequeno-
almoço nem o almoço não ajudou nada.
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– Compreendo perfeitamente que estejas triste por o Jimmy ter tido de
voltar para França – ralhou. – Mas recusares-te a comer não vai trazê-lo de
volta; mas vai com certeza impedir-te de recuperar as forças. Tenho mais
que fazer do que subir até aqui com bandejas de comida que tu não tentas
sequer comer.
Quando ouviu passos no corredor, por volta das duas da tarde, Belle
pensou que era Mog que voltava para lhe dar mais um sermão e enfiou a
cara na almofada, novamente a fingir que dormia, mas a porta abriu-se e a
voz que ouviu foi a de Miranda.
– Oh, minha pobre Belle!
Belle sentou-se na cama. Tinha-se esquecido de que Miranda promet-
era aparecer. Caso se tivesse lembrado, teria pedido a Mog que arranjasse
uma desculpa qualquer para a mandar embora. Mas agora que ela ali es-
tava, com um grande ramo de flores de estufa nos braços, não foi capaz de
ser mal-educada.
– Obrigada por ter vindo – disse numa voz fraca, muito consciente da
presença de Mog atrás de Miranda, preparada para dizer qualquer coisa se
ela não se mostrasse devidamente agradecida.
– Fiquei perfeitamente horrorizada quando Mister Reilly me contou do
ataque, e lamento muito a sua perda – disse Miranda. – Tenho estado no
Sussex, e por isso não sabia de nada. Quem me dera que houvesse
qualquer coisa que estivesse ao meu alcance para a fazer sentir-se melhor.
– Já me sinto melhor só por a ver – disse Belle. – Entre, por favor, e
sente-se. Essas flores tão bonitas são para mim?
Mog sorriu, claramente aliviada por ela se ter comportado como devia
ser.
– Posso trazer-lhes um chá? – sugeriu. – E vou levar essas flores para
baixo, se achar bem, e pô-las numa jarra com água.
Miranda disse que adoraria um chá e puxou uma cadeira para junto da
cama. Mog saiu, levando as flores consigo.
– Esteve a chorar – disse Miranda, quando a porta se fechou. – Mas
seria de esperar, agora que o Jimmy voltou para França. Aposto que sente
que lhe tiraram tudo.
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– É exatamente o que sinto. – Belle suspirou. – Não sei o que faço se
perder o Jimmy. Vão mandá-lo para a frente muito em breve, e se podem
tê-lo ensinado a disparar, duvido que haja uma maneira de aprender a
evitar as balas do inimigo.
– Deu-me a impressão de ser um homem muito calmo e inteligente –
disse Miranda. – Além disso, tem muitos motivos para voltar. Tenho um
tio que é brigadeiro; uma vez disse-me que os homens que não têm nada a
perder podem ser um perigo. São com frequência muito corajosos, mas
temerários. Os que têm tudo a perder, como o seu Jimmy, não correm
riscos que os coloquem em perigo a eles e aos camaradas, e acabam por ser
os melhores a comandar.
– É reconfortante sabê-lo – disse Belle, e sorriu debilmente. – Mas
ajude-me a sair deste poço de autocomiseração. Conte-me o que tem feito.
Miranda atirou para trás o elegante lenço de seda que usava ao
pescoço, com um gesto que dizia que tinha muito para contar.
– Bem, por estranho que possa parecer, estava a ajudar num pequeno
hospital lá no Sussex – disse. – Os pacientes eram, na sua maioria, oficiais
feridos em combate e, como sei conduzir, era eu que os levava para as cas-
as de convalescença, ou para as das famílias, quando estavam em con-
dições de viajar. Mas acabou porque alguém achou mal uma mulher estar a
fazer um trabalho de homem.
– Que ridículo! – exclamou Belle. – A maior parte do homens que
sabem conduzir deve ter-se alistado.
– Parece que não – disse Miranda, sombria. – Eu era apenas uma
voluntária, claro, e, para ser franca, acho que foi muito rude da parte deles
recusarem a minha ajuda. Sugeriram que me tornasse voluntária a ajudar a
tratar dos feridos e dos doentes, se queria ter alguma coisa que fazer. Mas
eu detestei esta ideia de que as mulheres só servem para lavar pessoas e en-
rolar ligaduras. Como calcula, a minha querida mamã acha que um menina
bem-nascida não devia sequer fazer uma coisa dessas.
E, no meio de risos, começou a contar a Belle uma aventura que lhe
acontecera quando andava a conduzir. No escuro, metera pelo lado errado
na bifurcação de uma estrada rural e acabara atascada na lama no meio de
um bosque com um paciente que não podia andar.
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– Foi horrível. Tive de o deixar no carro e ir a pé procurar a quinta
mais próxima para pedir ajuda. Chovia imenso e eu estava a escorrer água
e tinha o casaco e os sapatos completamente estragados. Quando, por fim,
consegui que um fazendeiro me levasse no trator até ao carro, o malfadado
paciente pôs-se a ralhar comigo por não me ter certificado de que tinha
fósforos para lhe acender os cigarros antes de me ir embora. Dá para acred-
itar? Ele ali sentado, quentinho e seco, a queixar-se de não ter podido fu-
mar, enquanto eu tinha caminhado oito quilómetros e parecia uma ratazana
afogada!
Belle riu à gargalhada. A verdade era que Miranda dava a impressão
de ser um pouco insensível. Muito provavelmente, o paciente pensara que
ela tinha ido passar o resto da noite no hotel mais próximo e se esquecera
de onde o deixara.
– Que se segue, então? – perguntou Belle. – Distribuir chávenas de chá
aos soldados enquanto eles esperam pelos transportes de tropas?
– Fui convidada para gerir uma banca de chá – respondeu Miranda. –
Mas vai ser o inferno. Vou passar os dias com um monte de mulheres
iguais à minha mãe. Duvido que consiga aguentar muito tempo.
– Pode ajudar-me na loja quando eu estiver melhor – disse Belle, num
impulso. – O Jimmy disse que eu podia voltar, desde que tivesse alguém
comigo. Até sugeriu o seu nome. Pagar-lhe-ia, claro, e seria a pessoa ideal.
Olhe para si, uma imagem da moda!
Miranda usava um vestido cinzento-prata com uma saia comprida e es-
treita; à volta da gola do casaco justo pusera um lenço de seda em tons de
azul e prata com uma levíssima sugestão de cor-de-rosa. O discreto chapéu
cinzento, de aba larga, tinha à volta da copa uma tira do mesmo tecido que
o lenço.
– Com certeza não está a falar a sério? – perguntou, muito
surpreendida.
– Claro que estou – insistiu Belle. – Tenho de contratar um ajudante,
mas faz muito mais sentido ter alguém com bom gosto e presença do que
uma caixeira de loja que até agora só tenha cortado queijo.
Miranda riu.
– Oh, Belle, estaria como peixe na água, porque adoro chapéus. Mas
só Deus sabe o que vai a mamã dizer.
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– Talvez possa dizer-lhe que está só a ajudar-me? Fazer com que
pareça mais uma missão de misericórdia do que um emprego?
Com esta, desataram as duas a rir. No caso de Belle, foi por estar a
imaginar a formidável Mrs. Forbes-Alton toda inchada de indignação, a
manifestar as suas opiniões a respeito das empregadas de lojas como se
fossem uma espécie de roedor.
– Dirá: «Não pode estar a falar a sério, Miranda! As pessoas vão
pensar que é uma dessas suffragettes» – disse Miranda, a imitar a voz da
mãe. – Para ela, qualquer coisa ligeiramente subversiva é uma indicação de
sufrágio.
– A Mog tem grandes simpatias pelo movimento das suffragettes –
disse Belle. – E eu também. Porque não hão de as mulheres poder votar?
– Para dizer a verdade, concordo – confidenciou Miranda. – Se fossem
as mulheres a mandar, não haveria guerras. Temos coisas melhores que
fazer com o nosso tempo do que escavar trincheiras e matar pessoas.
– Em que ocuparia então o seu tempo, se pudesse fazer o que quisesse?
– perguntou Belle.
– Não me importaria de passar uma tarde com um amante
maravilhoso.
A resposta, inesperadamente audaciosa, levou Belle de volta aos dias
preguiçosos no Martha’s em Nova Orleães. As raparigas eram sempre sim-
páticas e abertas, e ela tinha saudades daquele género de cumplicidade
feminina. Miranda não fora tão explícita como qualquer delas teria sido,
mas o facto de se sentir suficientemente segura para falar provava que a
via verdadeiramente como uma amiga.
Miranda tapou a boca com a mão.
– Oh, que falta de tato da minha parte, depois de tudo por que passou –
disse, muito corada.
– De modo nenhum – riu Belle. – Animou-me mais do que pode
imaginar.
– A sério?
– Sim, a sério. Foi adorável não se ter sentido na obrigação de andar
em bicos de pés à minha volta.
Ainda estavam a rir quando Mog entrou com uma bandeja onde tinha
posto as flores numa jarra e chá e bolo para as duas.
110/474
– Ouvi-as rir lá em baixo – disse Mog. – Posso saber qual é a graça?
– Foi só uma patetice a respeito de uma das clientes da Belle – re-
spondeu Miranda. – Fez-nos rir às duas.
– Bem, gostei de as ouvir. – Mog pousou a bandeja em cima da mesa
de cabeceira e levou a jarra com as flores para a cómoda. – Deixo-a a fazer
o papel de mãe, Miss Forbes-Alton – disse, e voltou-se para sair.
– Miranda, mente quase tão bem como eu – disse Belle, com uma nova
gargalhada.
– Foi uma coisa que aprendi para manter feliz a querida mamã. Tenho
a impressão de que ela desaparecia numa baforada de fumo, se me ouvisse
dizer que desejava uma tarde com um amante.
No mesmo instante, Belle compreendeu por que razão Miranda fora
tão imprudente com Frank. Talvez fosse um tanto ingénua quando o con-
hecera, mas não era de certeza a flor de estufa pela qual a princípio a to-
mara. No fundo do coração, era uma aventureira, e fora só a sua falta de
experiência com um certo tipo de homens que a levara a deixar-se enganar
pelo hábil sedutor. Parecia que, afinal, tinham mais em comum do que de
início pensara.
Miranda ficou com ela quase até às cinco da tarde, e o tempo passou a
correr enquanto as duas falavam disto e daquilo. Só quando se apercebeu
de que horas eram e disse que tinha de ir para casa, é que Miranda voltou a
ficar séria.
– Sei que não lhe perguntei como se sente por ter perdido o seu bebé –
disse e, inclinando-se, acariciou a face de Belle, os olhos azul-claros cheios
de compreensão. – Por favor, não pense que foi por não querer saber,
porque quero, muito. Mas depois das coisas por que passámos juntas, não
me senti no direito se perguntar uma tal coisa porque provavelmente pensa
que não senti a perda do meu bebé.
A sinceridade dela comoveu Belle.
– Sei exatamente o que quer dizer, Miranda. Foi por essa mesma razão
que, naquela noite, não lhe disse que ia ter um filho. Ambas perdemos os
nossos bebés, intencional ou acidentalmente, e o nosso desgosto é igual.
Penso que deu provas de uma grande coragem ao vir ver-me; deve ter tido
receio de que eu me voltasse contra si. Mas fez-me sentir melhor, deu-me a
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esperança de que, um dia, hei de conseguir ultrapassar isto. E isso é muito
mais valioso do que meras palavras de solidariedade.
Miranda limpou apressadamente uma lágrima do canto do olho.
– Posso voltar a visitá-la? Eu sei que precisa de descansar para recu-
perar as forças, mas que me diz de depois de amanhã?
– Gostaria muito – disse Belle. – E estava a falar a sério quando disse
aquilo a respeito de trabalhar na loja, de modo que o melhor é começar a
pensar numa maneira de preparar a sua mãe.
Voltaram as duas a rir, e Belle ainda sorria quando Miranda saiu do
quarto e desceu a escada.
CAPÍTULO 8
Wootton saiu para falar com os seus agentes e esteve ausente cerca de
vinte minutos. Enquanto esperava sozinho na sala de interrogatório,
Broadhead espantava-se com o barulho e agitação que reinavam no edifí-
cio. Excetuando as noites de sábado, quando tinham de arrebanhar os
bêbedos que se envolviam em zaragatas, a esquadra de Blackheath tendia a
ser um lugar muito sossegado. Mas ali era meio-dia de um dia de semana,
e uma mulher berrava como se estivessem a matá-la, outra pessoa qualquer
batia sem parar nas grades de uma cela, e de dois em dois minutos havia
uma erupção de gritos e pragas. A dada altura, houve uma confusão
qualquer mesmo à porta da sala de interrogatório, com um homem a prote-
star aos urros que não tinha sido ele.
Wootton voltou à sala com um ar satisfeito.
– Sim, temo-lo cá registado. Chama-se Archie Newbold, sem residên-
cia fixa. Dizem que foi desmobilizado do exército por invalidez há alguns
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anos e tivemo-lo cá como convidado várias vezes, por embriaguez e con-
duta desordeira.
Broadhead assentiu com um gesto de cabeça.
– Podemos então ir buscá-lo?
– «Podemos»? – disse secamente o graduado. – O homem pertence à
nossa jurisdição, vamos ser nós a apanhá-lo. Quanto a si, pode voltar para
a sua simpática e tranquila Blackheath. Entraremos em contacto com a es-
quadra de lá quando o tivermos na jaula.
Para Broadhead, aquilo foi como uma estalada.
– Mas, sargento, fui eu que fiz todo o trabalho de base neste caso.
Gostaria de ser eu a capturá-lo.
Wootton olhou com dureza para ele durante um momento, antes de
replicar:
– Aqui, para capturar os bandidos, é preciso conhecer a área. Há
montes de vielas escuras e estreitas, velhos armazéns, casas de ópio, bor-
déis e prédios onde chegam a viver dez pessoas em cada quarto, pardieiros
imundos onde as mulheres são tão más como os homens e as crianças
seguem o exemplo dos pais. Parece ser um tipo duro, mas isso aqui não
basta. Aqui é preciso ser tão manhoso como eles.
Broadhead sentiu-se ofendido pela assunção de que o seu trabalho
como polícia consistia em encontrar cães perdidos e ajudar velhinhas a at-
ravessar a rua, mas tinha demasiada experiência para se pôr a discutir com
um superior, e Wootton tinha todo o ar de não ser flor que se cheirasse,
caso o irritassem.
– Bem, sabe onde pode encontrar-me, se precisar de uma ajuda extra –
disse. – Vou levar o desenho comigo. Vai ser necessário, como prova.
Wootton voltou a dar uma vista de olhos ao esboço.
– Está muito parecido. Pergunto a mim mesmo se ela seria capaz de
desenhar alguém que lhe descrevessem. Ajudar-nos-ia a encontrar a
malandragem muito mais facilmente.
– Transmitirei o elogio, mas não a imagino a querer passar o seu
tempo a fazer esse género de trabalho, sobretudo depois daquilo por que
passou – respondeu Broadhead. – Bem, vou andando. Desejo-lhe sorte
com esse Newbold.
115/474
Na última semana de novembro, Belle foi ver a loja pela primeira vez
desde que fora atacada. Tinha Mog consigo, e Miranda iria ter com elas a
qualquer momento.
– Cheira um pouco a mofo – disse Mog, enquanto abria a porta e
acendia as luzes. – Mas vai desaparecer logo que acendermos o fogão.
Belle entrou, hesitante, e ficou um pouco surpreendida por parecer
tudo exatamente igual ao que era antes do ataque. Sabia que Mog e Garth
tinham mandado substituir o espelho e retirado tudo o que ficara partido,
mas estava à espera de ainda encontrar algum vestígio dos acontecimentos
que tinham ocorrido na última tarde que ali estivera.
Sabia que devia sentir-se aliviada por não haver nada que lhe recor-
dasse esses acontecimentos, e até empolgada por rever o lugar que em tem-
pos tanto amara. Mas a verdade era que não queria estar ali. Nem naquele
momento, nem no futuro.
Não que tivesse medo. Só sentia que o que quer que fosse que a tinha
feito desejar tanto aquela loja, e trabalhar tão arduamente para fazer dela
um êxito, desaparecera. Pura e simplesmente, já não lhe apetecia passar
longas horas a desenhar um chapéu e depois a imaginar a maneira de o
fazer. Tal como não lhe apetecia ficar ali dia após dia a ver mulheres ex-
perimentarem chapéus e ouvir-lhes as histórias a respeito de para que os
queriam.
A ironia desta mudança não lhe passou despercebida. Passara horas a
convencer Mog, Jimmy e Garth de que precisava da loja, e agora que es-
tavam convencidos, não a queria. Mas não estava a ver como livrar-se
dela, sobretudo depois de, num impulso, ter oferecido um emprego a
Miranda.
– Vais ter de fazer algumas peças novas e mudar a montra, para as
pessoas verem que estás feliz por voltar – disse Mog.
Belle abriu a boca para dizer que nunca estaria feliz por voltar, mas
tornou a fechá-la, sabendo que se dissesse a Mog o que sentia iria deixá-la
preocupada.
– Não posso fazê-lo antes do Natal – conseguiu finalmente dizer. –
Vou esperar pelo Ano Novo.
116/474
O seu corpo podia ter sarado, mas era como se a centelha vital que em
tempos o habitara se tivesse extinguido. Deixava-se muitas vezes invadir
por um desânimo e uma melancolia tão grandes que se refugiava no
quarto, dizendo a Mog que queria ler. Mas nem tentava abrir um livro. Em
vez disso, estendia-se na cama e ficava a olhar para o teto, a sentir-se im-
potente e desesperadamente triste.
– Acho boa ideia – respondeu Mog, sem sequer olhar para ela. Estava
a endireitar um chapéu encarnado num expositor, como se isso fosse a
coisa mais importante do mundo. – Não vais ter tempo para fazer mais do
que alguns chapéus novos, e precisas de fazer uma reabertura em grande.
Além disso, a Miranda ainda está a ajudar na banca de chá.
Como se esta última frase fosse uma deixa, Miranda chegou, a acenar-
lhes através do vidro da montra. Grata pela diversão, Belle abriu a porta e
abraçou a amiga.
Sentia que se não fossem as visitas regulares de Miranda, era bem
capaz de se ter deixado ir abaixo naquelas últimas semanas. Miranda nunca
fazia perguntas; se ela estava de humor sombrio, limitava-se a aceitar o
facto. Se estava a chorar, abraçava-a e oferecia-se para lhe arranjar o ca-
belo, ou sugeria que fossem dar um passeio. Contava-lhe histórias diverti-
das a respeito das senhoras com que trabalhava na banca de chá em Char-
ing Cross. Fora a habilidade de Miranda para a fazer rir que lhe permitira
aguentar muitos dias maus.
– Estou entusiasmada por voltar aqui – disse Miranda, ofegante, e en-
tão, ao ver um chapéu azul-escuro num expositor, correu para ir buscá-lo.
– Oh, tão querido! – exclamou e, atirando para cima de uma cadeira o
castanho de feltro que estava a usar, substituiu-o pelo azul-escuro. Então, a
fazer pose diante do espelho, chupou as bochechas para dentro e projetou
para fora os lábios franzidos. – Como é possível que me tenha escapado até
agora? É perfeito para mim.
Como sempre, conseguiu fazer Belle rir. O chapéu azul era na verdade
um pouco extravagante, todo ele tules e flores de veludo, um chapéu para
um chá da tarde num hotel elegante, e ficava perfeito no cabelo louro de
Miranda.
– Acho que a tua mãe diria que não te vai aquecer muito a cabeça –
disse.
117/474
– Quem quer saber de aquecimento quando uma coisa é tão bonita e
divertida? – replicou Miranda. – És tão inteligente, Belle. Espero conseguir
aprender a fazer qualquer coisa que se pareça com um chapéu enquanto cá
estiver.
Belle sentiu uma pontada de culpa ao compreender que Miranda tinha
levado muito a sério a oferta de emprego. Claro que ultrapassaria o desa-
pontamento se lhe explicasse o que sentia, mas naquele momento, com a
amiga tão bonita com o chapéu, as faces brilhantes de entusiasmo face à
perspetiva de um novo começo, não teve coragem para espetar um alfinete
no balão.
Depois de Mog as ter deixado sozinhas para ir fazer umas compras,
Miranda começou a andar pela loja e a experimentar chapéus, e a cada um
que experimentava fingia ser uma pessoa diferente, descrevendo as circun-
stâncias em que poderia usá-lo.
Ao enfiar na cabeça um cloche de feltro azul-escuro, muito simples,
tornou-se uma rapariga do campo numa entrevista para um lugar de ama.
– Tenho muita experiência com miúdos – disse, com um cerrado
sotaque rural. – É que sou a mais velha de dez, está a perceber, e a minha
mã gosta da pinga, de modo que tenho eu de tratar deles. Não concordo
nada com dar com a correia nos pequeninos, nem mesmo quando eles se
portam como sanguessugas, uma boa estalada geralmente resolve o prob-
lema, e depois fechá-los na arrecadação do carvão.
Belle riu à gargalhada, porque a maneira como Miranda contorcia a
cara enquanto fazia o seu discurso lhe fazia muito lembrar uma professora
horrível que tivera na escola e estava sempre a bater nos alunos com uma
bengala.
Uma ligeira pancada na porta da loja sobressaltou-as às duas. Miranda
tirou o chapéu, com um ar culpado.
– É um polícia – disse.
Belle pôs-se de pé.
– É o guarda Broadhead, aquele de quem te falei.
Abriu a porta e convidou-o a entrar. Apesar de não se lembrar ver-
dadeiramente do papel dele no dia do ataque, depois disso o polícia tinha
ido visitá-la a casa várias vezes, e acabara por simpatizar com ele.
– O que é que o traz hoje por cá? – perguntou.
118/474
– O homem que a atacou foi encontrado e preso – respondeu ele, com
um grande sorriso. – Foi às primeiras horas da manhã, em Deptford. Vai
amanhã a tribunal, mas ficará detido até ao julgamento. Se vai ou não ser
antes do Natal, dependerá da quantidade de trabalho que os tribunais est-
iverem a ter nessa altura.
Belle sentiu uma vaga de alívio.
– É uma excelente notícia – disse. – Saber que ele está atrás das grades
fará com que eu e os outros lojistas da rua nos sintamos muito mais
seguros.
Broadhead anuiu.
– Encontrei Mrs. Franklin pelo caminho e ela disse-me que estava
aqui. Fico contente por vê-la a pé e recuperada. Passou por um mau bo-
cado, sobretudo com o seu marido em França.
Belle apresentou-lhe Miranda e explicou que ela ia ser sua ajudante na
loja.
– O Jimmy vai a caminho da Frente Ocidental – acrescentou. – Pelo
menos ia, da última vez que tive notícias dele. Só Deus sabe quando vol-
tará a casa.
– E eles a dizerem que estaria tudo acabado antes do Natal! – disse
Broadhead. Parecia um pouco embaraçado, como se houvesse mais
qualquer coisa que queria dizer mas não conseguisse decidir-se.
– E é suposto eu aparecer amanhã no tribunal? – perguntou Belle, para
lhe dar um empurrão.
– Oh, não, é só uma audiência preliminar. Um advogado explica o
caso ao juiz.
– Dir-me-á então quando vou ser precisa?
– Sim, com certeza – disse ele, e sorriu. – É melhor ir andando, mas
quero dizer-lhe que sem o desenho que fez do homem, nunca teríamos
conseguido apanhá-lo. Tem um talento raro. E os seus chapéus também
são muito bonitos.
– Muito obrigada, guarda Broadhead – respondeu Belle. – E estou
muito feliz por terem apanhado o vosso homem.
119/474
Depois de ele sair, Miranda encostou-se à parede, a sorrir mali-
ciosamente para Belle.
– Para que é esse ar? – perguntou Belle.
– Ele gosta de ti – disse Miranda.
– Não sejas ridícula.
– Não tirava os olhos de ti! Aposto que ouviu dizer que viveste em
França e está na esperança de um pouco de oh-la-la.
Belle agitou um dedo esticado na direção da amiga, como uma
professora.
– Tu, Miranda, tens uma mentezinha perversa e uma imaginação
hiperativa.
O guarda James Broadhead abriu caminho por entre o mar de gente que
enchia o vestíbulo do tribunal de Lewisham para apanhar Belle e
Mog antes de elas saírem.
– Só queria agradecer-lhe pelas provas que aqui trouxe hoje – disse,
dirigindo-se a Belle. – Não há de ter sido fácil para si.
Belle esboçou um débil sorriso. Não fora com certeza fácil esperar que
a chamassem a prestar testemunho numa sala cheia de pessoas esfarrapa-
das que cheiravam mal e olhavam para ela com expressões malévolas.
Testemunhara a respeito do assalto e dos ferimentos de que fora vítima e,
pior ainda, tivera de explicar ao tribunal que a agressão lhe provocara um
aborto. Mas o guarda Broadhead sempre tinha sido muito gentil para com
ela e não queria associá-lo aos males que sofrera.
– Estou contente por ter acabado e por ele não ir assaltar nem magoar
mais ninguém nos próximos anos – disse. – E a polícia fez um bom tra-
balho ao trazê-lo perante a justiça.
Archie Newbold fora declarado culpado em todas as sete acusações de
roubo com violência de que era alvo e condenado a dez anos de prisão. Ela
fora apenas uma de várias testemunhas, mas o juiz tivera a péssima ideia
de a elogiar pelo desenho que permitira à polícia identificar o criminoso, o
que fizera com que o homem sentado no banco dos réus a olhasse de uma
forma ameaçadora que a assustara.
Estava-se em meados de janeiro e lá fora nevava. Belle sentia-se ge-
lada até à medula e completamente torcida por dentro, mas não só por
causa do julgamento. No dia anterior, tinham lido no jornal que houvera
bombardeamentos levados a cabo por dirigíveis em Yarmouth e King’s
Lynn, dos quais tinham resultado vinte e oito mortos e sessenta feridos.
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Belle sentia que pairava sobre Inglaterra uma nuvem muito negra que não
ia dissipar-se tão depressa.
– Posso convidar as duas senhoras para uma chávena de chá, para se
aquecerem? – perguntou Broadhead, como se tivesse adivinhado o que ela
estava a sentir.
– É muito gentil – respondeu Belle. – Mas penso que a nevar desta
maneira é melhor voltarmos já para casa.
– Quem é aquele? – perguntou Mog ao polícia, indicando com um
gesto um homem alto, de sobretudo escuro e chapéu de coco. Estava en-
costado à parede perto da porta do tribunal, a olhar para eles. – Parece
muito interessado em nós. Já tinha reparado nele na sala de audiência.
Broadhead olhou para o homem.
– Julgo que deve ser um jornalista – respondeu. – Deve estar à espera
de uma oportunidade para falar convosco. Se quiserem, posso acompanhá-
las até apanharem um fiacre. Deve ser o bastante para o afastar.
Belle ainda não tinha reparado no homem, mas o que menos queria era
falar com quem quer que fosse naquele dia, de modo que deu o braço a
Mog e permitiu que Broadhead saísse à frente delas para irem apanhar um
transporte.
Mas mal Broadhead começou a descer a escadaria do tribunal, o
homem alto desencostou-se da parede e atravessou-se no caminho das duas
mulheres.
– Miss Cooper, não é verdade? – disse, estendendo a mão para apertar
a de Belle.
Ser tratada pelo nome de solteira foi um choque. Belle hesitou e olhou
para Mog em busca de ajuda.
– Sei que agora é Mrs. Reilly, mas já foi Belle Cooper, não foi? – disse
o homem num tom untuoso e sabedor, a fixar nela os olhos castanho-
amarelados.
Num lampejo de intuição, Belle sentiu que ele devia tê-la relacionado
com o julgamento de John Kent, o homem que a raptara e a vendera a um
bordel por ela o ter visto assassinar uma das raparigas que trabalhavam
para a mãe. Kent fora enforcado antes de ela casar com Jimmy e Belle
pensara, ao mudar-se para Blackheath, que o seu passado estava enterrado
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e esquecido. Mas negar o nome Cooper seria inútil e daria a impressão de
que tinha qualquer coisa a esconder.
– Sim, o meu nome de solteira era Cooper – disse, a esforçar-se muito
por não denunciar o nervosismo que a dominava. – Já nos conhecemos?
– O guarda Broadhead arranjou-nos um fiacre – disse Mog, e apertou
com mais força o braço de Mog para lhe indicar que deviam afastar-se o
mais depressa possível. – Temos de ir, não podemos deixá-lo à espera com
este frio.
– Blessard – disse o homem, ainda de mão estendida – Frank Blessard,
do Chronicle. Não nos conhecemos, mas…
Belle cortou-lhe a palavra ao apertar a mão que ele oferecia.
– Prazer em conhecê-lo, Mister Blessard. Peço desculpa, mas tenho de
ir.
Enquanto desciam apressadamente os degraus, Belle teve consciência
de que o homem fazia menção de as seguir, como se quisesse perguntar-
lhe mais qualquer coisa, mas não voltou a cabeça e perguntou a Broadhead
se queria regressar com elas à aldeia.
– É muita gentileza sua – disse ele, com o rosto a iluminar-se. – Estava
a pensar apanhar o elétrico. Mas se não incomodo, de fiacre chegarei com
certeza muito mais depressa.
Belle escreveu a sua carta a Jimmy. Não lhe disse nada a respeito de
Blessard; só falou das outras testemunhas e do desfecho do julgamento.
Referiu que tinha estado a nevar, mas que de momento só chovia, e que
voltaria a abrir a loja dali a uma semana. Encontrara um fornecedor de
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chapéus elegantes e regalos de pele que venderiam bem e lhe dariam
tempo para desenhar e confecionar chapéus para a primavera.
Mas, como sempre, a maior parte da carta era preenchida com
pequenos pormenores da vida caseira, de como ela, Mog e Garth estavam
preocupados com ele, e das saudades que tinha.
O desenho que fez no fundo da página era um porco com uma peruca
de juiz, porque nessa manhã reparara que o juiz fazia lembrar um porco,
com uns olhos muito pequenos e escuros e um nariz tão arrebitado que
mais parecia um focinho.
Numa folha à parte, desenhou Blessard tal como o recordava. Rosto
ossudo, pele estragada, lábios finos e um pequeno e estreito bigode
castanho-claro, mas descobriu que não conseguia lembrar-se da forma dos
olhos. Só da astúcia que havia neles.
Estaria o passado a preparar-se para voltar e assombrá-la?
1916
1 de julho de 1916
Foi o mais longo, o mais doloroso e o pior dia da sua vida, e desde que
se alistara tinha tido muitos dias maus. Despiu o dólman e aplicou um
penso sobre a ferida, numa tentativa de evitar infeções, e fez o que pôde
pelos outros dois homens. Ambos tinham graves ferimentos no peito e per-
deram os sentidos por volta das onze da manhã. Jimmy tentou poupar a
170/474
água que tinha no cantil, mas o calor era tanto que a sede acabou por levar
a melhor.
Tudo o que conseguia ver do fundo do buraco onde estava era o céu
azul e sem nuvens lá em cima e a corrente infindável de soldados que pas-
savam. O fogo de metralhadora continuava a crepitar, igualmente infind-
ável, e ouvia os gritos e os gemidos dos homens que morriam a poucos
metros de distância. Quando o sol incidiu a pique na cratera,
transformando-a num forno, já não lhe restava uma gota de água e a dor no
braço era tão violenta que o fazia querer gritar também.
Tentou pensar em Belle e imaginar a frescura da cozinha da casa. Mas
apesar de conseguir manter estas imagens durante um ou dois segundos, o
barulho e a carnificina ao seu redor depressa o traziam de volta à realidade.
Viu uma ratazana correr por cima de um dos homens inconscientes.
Sentiu um arrepio e atirou-lhe uma pedra para a enxotar. A ratazana desa-
pareceu, mas era óbvio que não tardaria a voltar, acompanhada por outras,
atraídas pelo cheiro do sangue. Tentou então pôr-se de pé, com a intenção
de sair do buraco e voltar às linhas britânicas. Mas quer fosse devido ao
enorme número de corpos que viu caídos à volta da cratera, à ferida ou
apenas ao calor, as pernas cederam-lhe e não teve outro remédio senão vol-
tar a deixar-se cair. Examinou os outros dois homens e verificou que es-
tavam mortos.
Foi raiva o que então sentiu. Como podiam os generais enviar tantos
homens para uma morte certa? Se o que via do seu buraco estava a aconte-
cer ao longo de toda a linha, então as forças britânicas tinham de certeza
sido completamente dizimadas.
Belle recebeu a nota de Jimmy a dizer-lhe que tinha sido ferido uma
semana depois de ter acontecido.
171/474
«Fui ferido no antebraço, mas não te preocupes, não é grave. Puseram-
me um remendo e vão mandar-me para casa em breve, de licença. Fui um
dos felizardos: o meu amigo Donkey morreu, e muito mais homens de
quem eu gostava. Mas suponho que aí já sabem quantas baixas houve a 1
de julho.»
Belle sabia. Os feridos tinham começado a chegar, a conta-gotas no
dia 4 de julho, em catadupas no dia seguinte. Um oficial da enfermaria de
Miranda dissera que calculava que tivesse havido dezoito mil mortos e
mais de trinta mil feridos, só no primeiro dia da batalha do Somme. Belle
não sabia, na altura, que era onde Jimmy estava, mas receara que sim, pois
ele tinha-lhe escrito algum tempo antes a dizer que ia a caminho de um
novo lugar. Por isso passara todos aqueles dias até receber a carta dele a
preparar-se para o temido telegrama.
Ficou contente por ele só ter sido ferido, mas ao mesmo tempo re-
ceosa. Muitos dos homens que via no hospital pareciam ter-se fechado em
si mesmos e tinham pesadelos horríveis. Através de coisas que diziam,
muitas vezes de passagem, soube que naquele dia, em França, tinham visto
o Inferno na Terra.
Jimmy voltou a casa na última semana de julho. Tinha o braço enfiado
numa funda e a pele da cara a pelar, mas o seu sorriso era tão radioso como
sempre.
– Não exageres – disse ele, enquanto ela se afadigava à sua volta a
tentar instalá-lo confortavelmente, a oferecer-se para lhe cortar a comida e
despi-lo. – Estou bem. Nunca tinha gostado tanto de te ver a ti e a esta
casa, mas estou em condições de voltar à luta.
Tivera sorte, em comparação com tantos outros homens que estavam
no Herbert. O ferimento mantivera-se limpo e estava a sarar bem. Con-
forme ele próprio fizera notar, a funda destinava-se apenas a evitar que es-
forçasse o braço; tinha os dedos todos a funcionar, como demonstrou
tocando uma musiquinha no piano do pub.
– Acho que vou conservar a funda, para as outras pessoas – disse. –
Descobri que gosto de ser tratado como um herói.
Tinham passado vinte meses desde que se alistara, e naquela primeira
noite em casa fez amor com Belle como se pensasse que nunca mais vol-
tariam a ter uma oportunidade.
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– Só por isto vale a pena ser ferido – disse a dada altura. – Não con-
seguia pensar noutra coisa enquanto estava no hospital, e as enfermeiras
estavam sempre a perguntar-me porque estava a sorrir.
Um ou dois dias mais tarde, admitiu que ficara aliviado por o terem
mandado para casa. Não estava a contar com isso. Os ferimentos como o
dele eram habitualmente tratados num hospital louco, e depois era o re-
gresso à frente. Disse que achava que o comandante do batalhão interviera
a seu favor.
No entanto, por muito maravilhoso que fosse tê-lo em casa, saber que
Jimmy ia ter de regressar à frente de combate aterrava Belle. Não con-
seguia partilhar a perspetiva dele, segundo a qual aquele ferimento era a
sua conta e que dali em diante estaria a salvo. Cada vez que lhe lavava e
renovava o penso da ferida no braço não conseguia impedir-se de pensar
no que sentiriam as mulheres que recebiam um telegrama a dizer que os
maridos tinham morrido.
Mesmo no meio da doçura das noites de amor, o espírito dela es-
voaçava entre o medo de o ver partir outra vez e a culpa de sentir que se
aguentara muito bem sozinha durante todo aquele tempo.
As histórias que Mog, ufana de orgulho, contava a Jimmy a respeito de
como gostavam de Belle no hospital, e os louvores que Garth lhe tecia pelo
muito que os ajudava, faziam-na parecer um paradigma de virtude.
Custava acreditar que Mog tinha em tempos sido tão contra o trabalho e
Miranda, de tal maneira fora radical a sua mudança de atitude, chegando
agora a incitá-la a passar os seus dias de folga com a amiga. Poucas sem-
anas antes, tinham ido de bicicleta passear pelos campos, para lá de
Eltham, e, à noite, iam muitas vezes as duas a concertos e ao teatro.
Agora que Jimmy tinha voltado depois de ter escapado por tão pouco,
Belle sentia-se dividida entre ser a esposa perfeita, a fada do lar e correr at-
rás do seu próprio sonho. Queria muito ir para França com Miranda. Já se
tinham candidatado duas vezes ao lugar de condutoras de ambulância, e de
ambas tinham sido recusadas. Miranda tinha a certeza de que era apenas
por as autoridades acharem que não tinham experiência suficiente e insistia
em que tentassem outra vez.
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O tempo estava bom e Belle conseguira um par de dias de folga para
ela e Jimmy poderem estar juntos. Levaram uma cesta de piquenique para
Greenwich Park, sentaram-se à sombra de uma árvore e conversaram.
Jimmy falou-lhe dos amigos que fizera na tropa, das condições em que
tinha combatido e queixou-se dos generais, que considerava de um modo
geral estúpidos e incapazes de liderar homens.
– Os cinco dias de bombardeamento no Somme foram um desperdício
de tempo e de recursos – disse, com alguma raiva. – Metade das granadas
não rebentaram, e as que rebentaram não arrasaram o arame farpado nem
mandaram os Boches a correr para a segunda linha de trincheiras. Um
homem que vi no hospital passou horas preso no arame, atingido em
quatro pontos diferentes do corpo durante o dia e quase feito em pedaços.
E foi apenas um entre centenas. Os nossos descobriram, mais tarde, que os
Boches se tinham preparado bem. Tinham abrigos de betão e canhões
muito maiores e melhores do que os nossos. Não tivemos a mais pequena
hipótese.
À medida que os dias passavam, Belle apercebeu-se de que Jimmy es-
tava um pouco envergonhado por se ter atirado para o fundo da cratera e
ficado lá o dia inteiro. Não tinha qualquer razão para se sentir assim. Belle
bem via, pelo aspeto do ferimento, que ele jamais teria conseguido usar a
arma e que teria de certeza perdido os sentidos devido à perda de sangue, o
que significava que poderia ter sido novamente atingido, dessa vez fatal-
mente. Assim lho disse, e então desviou-se do assunto para falar das
greves que surgiam por todo o país, da subida do custo de vida e da escas-
sez de alimentos.
Estava um pouco envergonhada por não lhe dizer que continuava a
querer ir para França e que Miranda andava a dar-lhe aulas de condução
sempre que conseguia pedir emprestado o carro ao tio. Mas desculpava-se
perante si mesma argumentando que podiam nunca chegar a ser aceites, de
qualquer modo. Além disso, era possível que a guerra acabasse em breve,
apesar de Jimmy pensar que não. Estava aliviada por ele não ter sido ferido
com gravidade e queria que regressasse a França com a recordação do
parque no verão, das longas noites de amor, das boas refeições e do riso.
Não de uma mulher que parecia ter sempre qualquer coisa escondida na
manga.
CAPÍTULO 13
Belle iria descobrir ao longo dos dias seguintes que a filosofia de en-
treajuda de Vera não só tornava o trabalho mais fácil como criava ca-
maradagem. Não era necessário um esforço extra assim tão grande para
ajudar outro condutor a carregar a sua ambulância, e esse esforço era in-
variavelmente retribuído, sobretudo nos casos dos pacientes mais pesados.
Chovera quase sem parar desde que tinham chegado e, certo dia, a ambu-
lância de Miranda ficou atascada na lama, e no mesmo instante vários ho-
mens acorreram para ajudar, com sacos de serapilheira para pôr debaixo
das rodas. Numa outra ocasião, David tropeçou quando carregava uma
maca, e surgiu imediatamente uma mão para o ajudar a equilibrar-se.
Nas alturas em que havia menos comboios, ela e Miranda apro-
veitavam para conhecer os outros condutores e maqueiros. Vinham dos
mais variados estratos sociais. Alguns, como David, apesar de declarados
inválidos e desmobilizados, tinham querido ficar para ajudar os outros. Al-
guns tinham sido recusados pelo exército devido a pequenos problemas de
saúde. Mas a esmagadora maioria estava ali por razões semelhantes às que
a tinham movido a ela e a Miranda: contribuir com a sua parte ou fugir à
monotonia do que faziam em casa. Quaisquer que fossem as razões, todos
se davam bem, havia muito riso e muitas brincadeiras e, apesar de ser um
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trabalho extremamente duro, tanto ela com Miranda se sentiam libertadas
por terem sido aceites num mundo predominantemente masculino.
Um dos condutores mais velhos, que ambas julgavam ter um precon-
ceito absoluto contra mulheres a fazer aquele trabalho, riu à gargalhada
quando, um dia, as ouviu imitar duas enfermeiras que eram verdadeira-
mente insuportáveis. No dia seguinte, quando a correia da ventoinha da
ambulância de Belle se partiu, o homem foi em seu auxílio e ensinou-a a
substituí-la. Quando ela lhe agradeceu, disse que não era nada, que ela e
Miranda eram como raios de sol e que estava muito contente por se terem
juntado ao grupo. Belle ficou encantada por esta prova de aceitação, e
naquele momento sentiu que por muito árduo que fosse o trabalho, ou
muito primitivas as condições de vida, tinham tomado a decisão correta.
Até o capitão Taylor lhes fazia de longe em longe um aceno de
aprovação. David contou-lhe o que ouvira dizer a outro oficial do RAMC:
«Aquelas duas raparigas novas são feitas de boa massa.»
O céu, sem remorsos, continuava a abrir-se num dilúvio infindável.
Ambas chegavam muitas vezes ao fim do dia encharcadas e geladas até aos
ossos. À noite, a cabana mais parecia a sala de uma lavandaria, com roupas
estendidas a secar e botas molhadas cheias de jornais espalhadas à volta do
fogão. E no entanto, apesar de tudo isto, Belle parecia ter mais energia do
que alguma vez tivera quando estava em casa. Em vez de voltar para a
cabana logo a seguir ao jantar para jogar às cartas ou ler e escrever cartas,
gostava de passar uma ou duas horas nas enfermarias, a informar-se dos
progressos dos homens que tinha transportado.
Oferecia muitas vezes uma pequena ajuda às enfermeiras, escrevendo
cartas para homens que não conseguiam pegar na caneta, lendo para algum
que tivesse cegado ou simplesmente dando de comer aos que não estavam
em condições de se alimentarem sozinhos. Miranda brincava com ela por
causa disto, dizendo que já tinha a sua conta de sangue e tripas durante o
dia e não precisava de ir procurar mais à noite.
Por estar sempre tão ocupada, as cartas que escrevia a Jimmy eram
muitas vezes tão breves como as que ele lhe enviava a ela. Também
tentava escrever a Mog e a Garth todas as semanas, mas era difícil respon-
der aos mexericos de Mog a respeito das pessoas da aldeia, da escassez de
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comida e de quem estivera na reunião semanal do grupo de costura. Tudo
aquilo lhe parecia tão trivial face às coisas a que assistia diariamente…
Compreendia agora por que razão Jimmy sempre dissera tão pouco
sobre a sua vida quotidiana. Havia o censor a espreitar-lhe por cima do
ombro, claro, mas mais provavelmente pensava que as coisas que
testemunhava todos os dias não podiam ser compreendidas por quem não
as tivesse experimentado. Ela sentia o mesmo: não era capaz de explicar o
humor negro que todos usavam como uma forma de lidar com o horror que
viam, ou por que razão se tornara tão ligada às pessoas com quem trabal-
hava. Sabia agora que a vida de um soldado não tinha nada que ver com a
maneira como os jornais a retratavam.
Até chegar ali, imaginara Jimmy encolhido numa trincheira, constante-
mente debaixo de fogo. Agora, graças a David, que estivera na frente,
sabia que os homens só passavam quatro dias seguidos na primeira linha
antes de serem enviados para a retaguarda.
Jimmy tinha voltado à frente depois de o seu ferimento ter sarado, mas
para um outro regimento, e, pelo menos até à última carta que recebera
dele, continuavam na reserva. Mas David dissera-lhe que mesmo que est-
ivesse na linha da frente, isso não significava que se encontrasse num
perigo constante de ser alvejado. Aparentemente, os homens tinham de
suportar longos períodos de absoluto tédio, durante os quais tudo o que tin-
ham de fazer era estarem atentos a qualquer atividade do inimigo. Além
disso, havia pontos ao longo da linha onde os combates eram raros, onde,
segundo David, se praticava, de um e do outro lado, uma política de «vive
e deixa viver». Claro que mesmo naqueles lugares mais tranquilos se podia
ser morto por um sniper ou por uma granada atirada, mas o verdadeiro
perigo surgia quando os generais ordenavam um assalto, ou quando os ho-
mens eram mandados para a Terra de Ninguém em patrulhas destinadas a
descobrir o que andava o inimigo a fazer.
Belle também imaginara que estar «na reserva» significava descansar,
mas, segundo David, não era bem assim. Estavam sempre muito ocupados,
a treinar, a transportar abastecimentos, a melhorar as trincheiras, a enterrar
os mortos, a reparar o arame farpado, a levar munições para onde fossem
necessárias, além de lavar e remendar o uniforme.
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Desde que acabara a recruta, em 1915, Jimmy tocara muito ao de leve
em assuntos como piolhos, lama, uniformes encharcados, ratazanas e o es-
tado das latrinas, mas sempre de uma maneira despreocupada, como se
fossem inconvenientes que não o incomodavam por aí além. Mas os con-
dutores, que tinham todos, numa ou noutra ocasião, ido até à frente recolh-
er feridos nas enfermarias de campanha, eram bem mais gráficos na
descrição destes horrores. Um deles contou a Belle como os homens quase
enlouqueciam por causa dos piolhos e passavam velas acesas pelas costur-
as dos uniformes para os queimar. Disse que tinham o corpo coberto de ba-
bas, algumas delas infetadas. Ficou a saber que a espessa lama onde os
soldados eram obrigados a patinhar se misturava muitas vezes com excre-
mentos das latrinas e até pedaços de corpos de homens que ali tinham mor-
rido. As ratazanas eram do tamanho de gatos e infestavam as trincheiras,
de tal maneira que mesmo um pequeno ferimento podia facilmente gan-
grenar e resultar numa amputação.
Na segunda-feira de Páscoa, 9 de abril, quando a batalha de Arras
começara, a todos estes males tinham-se ainda somado o granizo e a neve.
Os feridos que chegavam todos os dias falavam de tanques atascados na
lama, de mulas que caíam e se afogavam na lama, de homens feridos que
não conseguiam arrastar-se para fora da lama e morriam lá, como as mulas.
Jimmy estava alojado num celeiro e escrevia mais a respeito de ter be-
bido um copo de vinho ou comido um prato de ovos com batatas fritas
num estaminet do que das condições no terreno baixo e pantanoso, mas era
claramente apenas uma questão de tempo antes de o regimento ser lançado
na batalha. Sabendo o que isso significaria, Belle tinha dificuldade em
escrever-lhe cartas leves e alegres, quando todos os dias via com os seus
próprios olhos o que podia muito bem acontecer-lhe.
Vera estava muito entusiasmada com a chegada iminente dos seus dois
irmãos que se tinham alistado no Anzac e já tinham partido da Nova
Zelândia. Chamavam-se Tony e «Spud», e ela limitara-se a rir quando
Belle lhe perguntara o porquê da alcunha.2 No entanto, apesar de animada
com a possibilidade de os ver, ainda que fugazmente, ao mesmo tempo re-
ceava que os mandassem de imediato para a frente, como acontecera aos
canadianos e aos australianos.
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Também Sally, Maud e Honor tinham irmãos ou primos em França, e
Belle notara que, embora pouco falassem sobre eles, todos os dias con-
sultavam discretamente a lista de baixas. Parecia haver entre todos um
acordo tácito quanto a controlarem a ansiedade em relação a parentes
mandados para a frente. Henry, um dos condutores, soubera que o
sobrinho estava dado como desaparecido, presumivelmente morto, poucos
dias depois de ela e Miranda terem chegado. Belle vira-o atrás da cabana,
de cabeça inclinada e os ombros sacudidos por soluços, mas mesmo assim
saltara para a ambulância ao toque da campainha e continuara a trabalhar
todo o dia como se nada fosse. Sally dissera, com o seu característico prag-
matismo, que manter-se ocupado era a melhor maneira de lidar com o
desgosto.
Mas se as enfermeiras, condutores, auxiliares, médicos e outras pess-
oas que trabalhavam no hospital conseguiam controlar-se, o mesmo não se
diria de quem chegava de Inglaterra para ver filhos ou maridos que não se
esperava que sobrevivessem. Dia após dia, Belle e Miranda viam estas
pessoas chegarem ao hospital. Distinguiam-se do pessoal não só pelas
roupas civis mas também pelo ar cansado e as expressões confusas. Muitas
delas, a maior parte, nunca tinham saído de Inglaterra, não falavam
francês, e sabiam que os filhos ou maridos iam morrer. Muitas vezes, vin-
ham demasiado tarde e eles já tinham morrido. O pessoal de enfermagem
era sempre carinhoso e fazia o que podia para os confortar, mas tudo pare-
cia ainda mais trágico para aqueles que tinham vindo de tão longe e sido
privados da oportunidade de dizer um último adeus. Os funerais eram
quase diários: Belle sentia o sangue gelar-se-lhe nas veias sempre que
ouvia o cornetim tocar a Silêncio.
David era muito filosófico no que respeitava aos chorosos parentes.
Dizia que ao menos sabiam onde estavam sepultados os corpos dos entes
queridos, e tinham ouvido as orações, ao contrário dos pais de milhares de
outros homens enterrados em valas comuns perto dos campos de batalha. E
alguns corpos nunca chegavam a ser encontrados; eram feitos em pedaços
e ficavam espalhados pela lama. Para as famílias desses homens, devia ser
uma verdadeira tortura, na eterna esperança de que tivessem sido feitos pri-
sioneiros, ou que jazessem numa cama de hospital, algures, e que um dia
regressassem a casa.
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No sábado não choveu, para variar, mas continuava a estar muito frio.
Ainda nessa tarde um motorista francês dissera que aquele era o verão
mais chuvoso de que se lembrava. Havia grandes poças de água à volta dos
terrenos do hospital, o que dava a toda a gente uma boa ideia de como de-
viam ser terríveis as condições para os homens que se encontravam na
frente.
Miranda encontrou-se com Will às seis, no local habitual das suas es-
capadelas noturnas. Era a primeira vez desde a noite em que se tinham
conhecido que o via à luz do dia, e notou que o carro tinha sido lavado e
encerado. E ele também; sentiu o cheiro a sabonete de limão quando o bei-
jou, e apesar de Will estar de uniforme, era evidente que o mandara engo-
mar, e as botas brilhavam de graxa.
– Pensei que esta noite nunca mais chegava – disse ele, e esfregou-lhe
o nariz no pescoço. – Fartei-me de ouvir piadas do resto da malta; disseram
que tinha passado o dia a olhar para o relógio.
– Também eu – admitiu ela. – Foi um dia de muito trabalho, e as
mudanças da minha ambulância estavam sempre a emperrar, de modo que
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me dói o braço de tanto puxar pela alavanca. Esperava ter tempo para to-
mar um banho antes de vir ter contigo, mas não tive sorte. E tu tão elegante
e bem arranjado.
Nunca Will lhe parecera tão atraente. A pele era dourada, os olhos bril-
havam e tinha o cabelo escuro muito bem cortado e penteado. Sentia o cor-
ação a bater muito depressa na expectativa da noite que se avizinhava, mas
desejava ter tido tempo para se pôr bonita para ele.
– Para mim estás maravilhosa, suficientemente apetitosa para te dar
umas trincas – disse ele. – É melhor levar-te daqui para fora antes que
mudes de ideias.
Um dos dois cabos dirigiu-se a Will, a falar num francês tão rápido
que nem sequer Miranda conseguiu perceber uma palavra. Will olhou para
ele, confuso.
– Perguntou quando é que os Americanos vão chegar para nos ajudar –
traduziu o sargento, num inglês perfeito.
– Vêm a caminho – respondeu Will.
O homem perguntou-lhe então onde era a sua base e quando estariam
as tropas prontas para entrar em combate.
Will explicou que estava em Calais e que lhe tinham dito que as tropas
estariam prontas no início de 1918. Foi então a sua vez de perguntar a re-
speito de Verdun e da batalha do Somme, acrescentando que ficara cho-
cado ao saber do enorme número de baixas, tanto francesas como inglesas.
O sargento traduziu para os companheiros o que ele dizia.
Will tinha dito a Miranda, dias antes, que era muito difícil saber a ver-
dade acerca das condições na frente e, o que era ainda mais importante,
acerca de como as tropas francesas e aliadas encaravam a chegada dos
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soldados americanos. Se houvesse hostilidade, era uma coisa que tinha de
ser resolvida e ultrapassada. Miranda compreendeu que Will via naquele
encontro casual com alguns soldados franceses uma oportunidade de ouro
para ficar a saber o que pensavam. Deixou-o falar enquanto bebia o seu
café e comia os croissants, mas não conseguia desviar os olhos do sargento
francês, e não era só pelo facto de falar tão bem inglês e de ele e Will pare-
cerem estar a entender-se às mil maravilhas, conversando a respeito de
armas e das vantagens e inconvenientes dos tanques e do uso da cavalaria.
Na realidade, tudo no homem era fascinante: os olhos azuis e frios
como aço, a angulosidade das feições, a antiga cicatriz que parecia ter sido
feita com uma faca. Até o cabelo era invulgar, de um castanho muito claro
com madeixas de puro louro. Não o descreveria como bonito, não da
mesma maneira polida e saudável como Will era bonito; tinha um ar de-
masiado duro para isso. Mas tinha aquele élan que caracterizava os oficiais
franceses, além de um sorriso caloroso, e falava um inglês excelente; sen-
tia que estava ali muito mais do que um simples soldado.
– Peço desculpa por não me ter apresentado – disse Will. – Sargento
Will Fergus, e esta é a minha noiva, Miranda Forbes-Alton, de Inglaterra.
A Miranda conduz ambulâncias em Camiers.
– É demasiado bonita para esse trabalho – disse o francês, galante,
tornando-se instantaneamente ainda mais interessante aos olhos dela. –
Estes dois são os cabos Pierre Armel e Deguire, e eu chamo-me Étienne
Carrera. Estamos todos encantados por conhecê-los.
O nome quase fez Miranda dar um salto. Tanto quanto sabia, podia ser
um dos nomes mais comuns em França, mas, de alguma maneira, tudo o
que Belle lhe contara a respeito do seu Étienne parecia corresponder
àquele homem. Nunca referira o apelido nem o descrevera fisicamente;
dissera apenas que tinha um passado obscuro e falava muito bem inglês.
Como seria estranho se fosse ele!
Will começou então a fazer perguntas acerca de um recente motim no
seio do exército francês. Explicou que tinha ouvido dizer que um grande
número de homens desertara e queria saber se era apenas um boato sem
fundamento.
– Sim, é verdade, mas nenhum de nós os três esteve envolvido – re-
spondeu Étienne. – Mas não censuraria nenhum dos que estiveram por
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terem tomado uma posição. Os nossos homens sempre estiveram prepara-
dos para defender as suas posições na linha, mas era uma loucura teimar
em lançá-los em assaltos que significavam a morte certa. Os homens en-
volvidos não desertaram, essa parte é mentira. Estavam exaustos, mal ali-
mentados e mal equipados; sabiam que o inimigo os excedia largamente
em número e tinham muito menos canhões de grande calibre do que os
Boches. Protestaram da única maneira que podiam. E resultou, porque, fi-
nalmente, a situação melhorou, e estamos a receber comida melhor e a des-
cansar mais.
Esta conversa continuou durante algum tempo, com os dois cabos a
fazerem perguntas em francês e o sargento a traduzir. Miranda continuava
a olhar para Étienne. E quanto mais olhava mais sentia que tinha de
descobrir se era o homem que Belle tinha amado.
Esperou por uma pausa na conversa antes de falar.
– Sargento Carrera, por acaso é de Marselha? – perguntou.
– Sim, sou – respondeu ele, parecendo muito surpreendido pela per-
gunta. – Conhece a cidade?
– Não, mas uma amiga minha conheceu alguém chamado Étienne que
era de lá. Estava a perguntar a mim própria se seria o senhor.
Étienne pareceu fechar-se sobre si mesmo, semicerrando os olhos.
– E como se chama essa sua amiga? – perguntou.
– Belle Reilly.
Ele fez um ar estupefacto.
– Sim, sou eu. Conheço a Belle.
Will olhou para Miranda, surpreendido.
– Como o mundo é pequeno – disse.
– Ela está aqui, em França – continuou Miranda. – Trabalha comigo no
hospital.
Foi interessante ver como a notícia o afetou. Não reagiu imediata-
mente, mas ela quase conseguia ler-lhe os pensamentos, a querer fazer per-
guntas, mas ao mesmo tempo preocupado com o que ela podia saber a seu
respeito.
– Também é condutora de ambulâncias?
– Sim, viemos para cá juntas. Somos amigas há algum tempo; vivemos
na mesma parte de Londres.
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Étienne estava agora inclinado para ela, claramente ansioso por saber
mais, e, de repente, ocorreu a Miranda que talvez Belle não ficasse satis-
feita se ele aparecesse no hospital.
– O marido está na Bélgica, julga ela que em Ypres – disse. – Foi
ferido no Somme, felizmente sem gravidade. Alguma vez foi ferido?
Ele sorriu-lhe, os olhos a suavizarem-se de uma maneira que o tornava
terrivelmente atraente.
– Só coisas sem importância. Pode dizer à Belle que a minha sorte
continua a aguentar.
Houve na resposta dele qualquer coisa de tão íntimo que Miranda se
sentiu enervada; sugeriu a Will que eram horas de irem andando. Desejou
muito ter pensado melhor antes de perguntar àquele homem se conhecia
Belle. Seria ela a culpada se ele aparecesse no hospital e colocasse a amiga
numa posição difícil.
Mais tarde, Miranda e Will foram de carro até outra pequena aldeia e
passearam um pouco pela margem de um rio antes de arranjarem um sítio
onde almoçar.
– Conta-me como é que a Belle conhece o sargento francês – pediu
Will. – Não há dúvida de que ele ficou muito surpreendido quando soube
que ela estava em França.
Miranda queria contar-lhe a história toda, mas não podia fazê-lo sem
revelar demasiado acerca do passado de Belle.
– Conheceu-o quando esteve em Paris, antes da guerra – disse, caute-
losamente. – Foi muito antes de nos termos tornado amigas.
– Diria que houve alguma coisa entre os dois, para ela te ter falado
dele – observou Will. – Qualquer coisa que, pelo menos para ele, foi im-
portante… Quase deu um salto na cadeira quando disseste o nome dela.
– Talvez tenha havido qualquer coisa. Mas ela voltou para casa e ca-
sou com o Jimmy, o seu namorado de infância.
– Esse Jimmy deve ser um homem e tanto, nesse caso.
Miranda sabia exatamente o que ele queria dizer. Mesmo durante
aquele breve encontro, apercebera-se de que os dois amigos de Étienne, e
até o próprio Will, o admiravam. Não por qualquer coisa que ele tivesse
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dito ou feito, era apenas essa superioridade inata que certas pessoas têm.
Ser capaz de falar fluentemente outra língua era uma parte da explicação,
mas o seu aspeto e maneiras faziam o resto.
– O Jimmy é uma excelente pessoa – disse. – Amante, fiável e não
menos carismático, à sua maneira. São muito felizes juntos e perfeitos um
para o outro.
– Nesse caso, talvez seja melhor não dizeres à Belle que encontraste o
seu velho amigo? – sugeriu Will.
Miranda achou que era muito perspicaz da parte dele. Não acreditava
que muitos homens tivessem sido capazes de avaliar tão rapidamente a
situação.
– Sim, és capaz de ter razão. Mas vai ser difícil guardar para mim uma
notícia destas.
Miranda ficou acordada durante muito tempo depois de Belle ter ad-
ormecido, a reviver a sua noite com Will. Só pensar nisso excitava-a e
fazia-lhe o coração bater mais depressa. Para tentar dormir, pôs-se a ima-
ginar que a guerra tinha acabado e que estava a embarcar num navio com
Will a caminho da América. Ele dissera que a casa dos pais «era pequena»,
uma «casa popular», como lhe chamara, do que ela assumira que seria
como as casas geminadas inglesas, construídas em filas. Mas só lá ficariam
muito pouco tempo, até Will receber uma nova colocação; depois disso,
viveriam nos alojamentos dos casados.
Quando Belle lhe aparecera com o plano para fazer trabalho voluntário
no Herbert, Miranda não queria verdadeiramente fazê-lo. Só se deixara ar-
rastar pelo entusiasmo da amiga. Estivera dúzias de vezes à beira de desi-
stir, porque o trabalho era demasiado duro e também porque não suportava
que lhe dessem ordens. Só ficara, para dizer a verdade, porque sabia que se
saísse a mãe diria: «Eu bem te disse.» Por isso avançara com a sugestão de
conduzir ambulâncias, que lhe parecia um trabalho mais leve e muito mais
glamoroso. Agora tinha todos os motivos para se rir desta ideia tola. Não
havia ali glamour absolutamente nenhum e o trabalho era ainda mais
pesado.
Parecia, no entanto, que era seu destino ir para França e conhecer Will.
Esperava-a um novo começo num país que sempre quisera visitar. Will
contara-lhe tanta coisa naquele dia, as dificuldades que os pais tinham tido
de ultrapassar quando haviam chegado como emigrantes, o bairro
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sobrelotado e difícil onde vivera quando era mais novo, a beleza daquela
terra, longe das grandes cidades.
Dissera que ia comprar um livro sobre a América para lhe oferecer,
para que pudesse fazer uma ideia mais clara de como era a vida lá. E no
dia seguinte ia começar a fazer perguntas também a Belle. Nunca até então
se lembrara de o fazer.
Era estranho pensar que era a Frank que tinha de agradecer por tudo
aquilo. Se não fosse o caso que tivera com ele e o aborto, nunca teria con-
hecido Belle, e a sua vida fora completamente diferente. Os pais já teriam
provavelmente conseguido casá-la e passaria os seus dias a tricotar peúgas
e cachecóis para os soldados, tornando-se cada vez mais parecida com a
mãe.
Belle era a única pessoa de quem ia ter saudades quando iniciasse a
sua nova vida. A amizade dela significara muito, os segredos partilhados,
os risos e a alegria de estar com alguém que sabia tudo a seu respeito mas a
amava apesar disso. E achava que ter conhecido Belle a tornara uma pess-
oa melhor.
Ia ser muito difícil dizer-lhe adeus.
Olhou para a cama de Belle. Estava demasiado escuro para conseguir
vê-la, mas ouvia os pequenos sons que fazia ao respirar pelo nariz en-
quanto dormia. Queria muito falar-lhe do seu encontro com Étienne, mas
Will tinha razão: saber que ele estava tão perto poderia perturbar-lhe a
serenidade.
Sorriu para si mesma. Étienne era o género de homem que perturbaria
qualquer mulher. Os olhos cor de aço, as feições cortadas à faca e o
sotaque francês seriam o suficiente, mas havia mais qualquer coisa. Belle
dissera certa vez que outro amigo o comparara a um tigre, e Miranda
achava que era uma comparação apropriada. Podia ser um caçador, forte,
implacável e perigoso, se o enfurecessem.
No entanto, não tinha a mínima dúvida de que ele tivera, e ainda tinha,
sentimentos muito profundos em relação a Belle.
D avid tentou segurar Belle, mas ela libertou-se com um safanão e cor-
reu para a ambulância destroçada. Enquanto corria, sabia que havia
poucas probabilidades de Miranda não estar gravemente ferida; o comboio
esmagara toda a parte da frente do veículo.
O maquinista e o fogueiro saltaram da locomotiva, e ao longo do com-
boio as enfermeiras espreitavam das janelas, a tentar perceber o que tinha
acontecido.
De joelhos na estrada, Alf uivava enquanto tentava arrancar Miranda
dos destroços. Belle gritou a David que o ajudasse.
O fogueiro do comboio tentou impedi-la de se aproximar.
– Não vai ser um espetáculo digno de uma rapariga ver – disse,
agarrando-lhe os braços.
– Ela é minha amiga e vejo homens feridos todos os dias – soluçou
Belle. – Deixe-me ver se ainda há alguma esperança.
Empurrou-o para longe de si com a força do desespero e correu os últi-
mos metros. A primeira roda do lado esquerdo da locomotiva cortara ao
meio o que tinha sido o banco do condutor, e uma vez que Miranda não es-
tava visível, dava a impressão de que tinha sido atirada para o lado do pas-
sageiro. O para-brisas estilhaçara-se e havia pedaços de vidro espalhados
pela via, todos eles sujos de sangue.
Nesse instante, Belle quase perdeu a coragem. As pessoas gritavam e a
locomotiva vomitava vapor, mas ela tinha de olhar e, pondo-se de joelhos,
espreitou para dentro do que restava da cabina esmagada.
Mesmo ao fundo, o cabelo louro de Miranda destacava-se no escuro,
contra a porta, mas o corpo estava suspenso de cabeça para baixo e
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grotescamente torcido, com ambas as pernas presas debaixo da roda de
ferro. Havia tanto sangue que Belle foi sacudida por uma violenta náusea.
– Miranda, ouves-me? – gritou. – Sou eu, a Belle, estou aqui. Por
favor, responde-me, se puderes.
Não houve qualquer som ou movimento. Belle conseguia, com di-
ficuldade, distinguir a mão da amiga, ainda levantada como que para pro-
teger a cabeça, como quando o comboio embatera na ambulância. Esticou
o braço e agarrou o de Miranda, tateou-lhe o pulso em busca de um sinal
de vida.
Mas não havia nenhum. Miranda estava morta.
– Amei-te muito, Miranda – sussurrou Belle, com a chuva a misturar-
se com as lágrimas e a escorrer-lhe pela cara. – Nunca tinha tido uma ver-
dadeira amiga antes de te conhecer e não sei como vou conseguir continuar
sem ti.
O maquinista do comboio aproximou-se e ajudou-a a levantar-se, e ela
deixou-se cair contra o peito dele, a soluçar.
– Venha comigo, querida, vêm aí pessoas para retirar a ambulância.
Não pode fazer mais nada. Temos de levar os feridos que estão no com-
boio para o hospital.
S ally passou por Belle quando, ao fim do dia, ela estava a lavar a
ambulância.
– O capitão Taylor pediu-me para te informar de que está uma pessoa
à tua espera na sala dos condutores – disse secamente.
Belle assumiu que era Will. Haviam passado duas semanas desde a
noite em que tinham ido os dois até à passagem de nível deixar flores para
Miranda. Fora um momento particularmente doloroso, porque a ambulân-
cia destruída ainda lá se encontrava, tombada de lado junto aos carris. A
cabina parecia ter sido aberta com um gigantesco abre-latas para se poder
retirar o corpo de Miranda, mas apesar de a chuva ter lavado o sangue, o
horror do instante em que vira a locomotiva esmagar o frágil veículo vol-
tara a assaltar com a mesma força o espírito de Belle. Para Will, devia ter
sido simplesmente devastador ver como a mulher que amava encontrara a
morte. Fora-se abaixo e soluçara de uma forma tão convulsiva que Belle se
arrependera de ter aceitado mostrar-lhe o local do acidente.
– Tinha tantos planos para nós – dissera ele, banhado em lágrimas. – Ia
levá-la ao Waldorf de Nova Iorque e fazer um piquenique no Central Park.
Os meus velhos tê-la-iam adorado, teríamos tido uma boa vida juntos.
Tudo o que Belle pudera fazer fora ajudá-lo e falar-lhe de todas as
coisas adoráveis que Miranda dissera a respeito dele. Que tinha esperado
toda a vida por um amor como aquele e que estava ansiosa por casar com
ele.
Tinham-se sentado num velho tronco de árvore e choraram sozinhos, e
então Belle entregara-lhe a fotografia e o diário.
– Não li as entradas depois de ela te ter conhecido – dissera-lhe. – São
só para os teus olhos. Mas espero que te proporcione algum conforto ler as
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coisas engraçadas que ela escrevia, e que isso te ajude a compreendê-la
melhor. Tenta recordá-la como era na última noite que passaram juntos,
não como a vida dela acabou. Ela há de estar a ver-te lá de cima e a querer
que sejas feliz com outra pessoa qualquer, um dia.
A recordação daquela dolorosa noite com Will continuava gravada no
espírito de Belle, e esperou que a visita dele fosse para lhe dizer que tivera
notícias dos pais de Miranda, pois não se sentia capaz de lidar com mais
cenas emocionais.
– Vais arranjar problemas, se continuares a ter visitantes masculinos –
observou Sally, venenosa. – Mas suponho que conseguiste insinuar-te com
falinhas mansas junto do capitão Taylor.
As alfinetadas como aquela, da parte de Sally, tinham-se tornado con-
stantes. Faziam lembrar a Belle o tom acintoso de algumas raparigas do
Martha’s, em Nova Orleães. Só não percebia de que podia ela ter inveja:
ali ninguém estava em competição, e mesmo que estivessem, Sally era
muito melhor condutora, e ainda por cima uma excelente mecânica.
– Bem, a ti ninguém te pode acusar de te insinuares com falinhas man-
sas. És mais do género cobra, cospes veneno e paralisas as tuas vítimas.
Sally afastou-se sem responder. Vera, que ouvira a troca de palavras,
sorriu a Belle e ergueu o polegar, num gesto de aprovação.
Vera tinha sido um grande conforto para Belle. Mudara-se para a cama
que fora de Miranda, talvez por compreender que seria à noite que Belle
sentiria mais a falta da amiga. As outras raparigas nunca mencionavam o
nome de Miranda – era como se ela nunca tivesse ali estado –, mas Vera
punha Belle a falar dela, e isso ajudava-a muito.
Não querendo que Will visse provas da natureza do seu trabalho, Belle
correu à cabana, despiu a bata ensanguentada, lavou a cara e as mãos e
escovou rapidamente o cabelo antes de ir ter com ele.
A porta da cabana dos condutores estava aberta e ela entrou, preparada
para cumprimentar Will com um sorriso, mas quando viu quem a esperava
deteve-se, petrificada pelo choque.
Era Étienne.
Sempre que evocava a imagem dele, era como o tinha visto em Paris,
na Gare du Nord, com um chapéu de aba estreita, fato escuro e colete às
riscas, os olhos como vidro azul. Agora, porém, estava magnífico com o
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uniforme azul-escuro do exército francês, as botas brilhantes como espel-
hos e as divisas de sargento na manga. Mas os olhos azuis eram os mes-
mos, e fizeram o coração dela dar um salto.
Quando chegara a França, perscrutava sempre os grupos de soldados
franceses, meio na esperança de o descobrir. E também costumava verifi-
car os nomes dos feridos franceses que ocasionalmente eram levados para
o hospital. Mas o que de certeza não esperava era vê-lo aparecer ali à pro-
cura dela.
– Étienne! – exclamou. – O que…? Como…?
Calou-se, tão chocada que não conseguia dizer coisa com coisa.
– Encontrei o Will Fergus na base americana, quando lá fui buscar uns
abastecimentos – disse ele. – Contou-me o que tinha acontecido à namor-
ada. Senti que tinha de vir ver como estás. Sei que há de ter sido tão duro
para ti como foi para ele.
Aturdida pela surpresa, Belle teve de se sentar.
– Mas como soubeste que eu a conhecia? – perguntou.
Étienne franziu a testa e sentou-se também.
– A Miranda não te contou que nos conhecemos quando eles estavam
no Faisan Doré?
– Não, não contou. Mas nessa noite chegou tarde e morreu na manhã
seguinte. – Fez uma pausa, a olhar para ele com uma expressão confusa. –
Mas como conseguiu ela fazer a ligação entre nós?
Étienne encolheu os ombros.
– Eu estava lá com um par de homens da minha companhia. O Will
falou connosco e eu traduzi o que ele dizia para os outros dois. A dada
altura, apresentámo-nos. Só posso supor que ela reconheceu o meu nome
de qualquer coisa que tu lhe disseste, pois perguntou-me se era de
Marselha. Quando eu disse que sim, perguntou-me se conhecia alguém
chamado Belle. Fiquei como tu estás agora, aturdido. Disse-me que estavas
cá.
– Mas nunca me falou disso – arquejou Belle.
– Deve ter sido por ter pensado que era melhor não falar. Mais tarde,
apercebi-me de que devias ter-lhe contado muita coisa a meu respeito, para
ela se lembrar do nome. Isso tocou-me. E depois, saber que ela tinha
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morrido daquela maneira tão horrível! O Will quase não foi capaz de falar
do assunto.
– Sim, foi terrível. A verdade é que ainda mal consigo acreditar que
aconteceu. Éramos muito amigas, e eu pensava que seríamos sempre.
Sinto-me perdida sem ela.
– Calculei que fosse esse o caso, e é por isso que tinha de vir. Mas
confesso que descobrir que lhe tinhas falado sobre mim me fez ficar feliz
por não me teres esquecido completamente.
A porta da cabana estava aberta, eles estavam sentados em frente um
do outro, e alguém que olhasse para o interior nada veria que sugerisse que
ela e o sargento francês eram mais do que simples conhecidos. Apesar
disso, Belle sentiu-se de repente muito nervosa.
– Oh, tivemos uma vez uma daquelas conversas do género tu-contas-
me-a-tua-história-e-eu-conto-te-a-minha – disse num tom despreocupado,
como se nada daquilo tivesse grande importância. – Foi a única pessoa a
quem falei de Nova Orleães e de Paris e do teu papel em todo o drama.
Mas a Miranda era uma romântica, com uma queda muito especial para ver
mais nas coisas do que na verdade lá está.
– Ela deve ter sido muito importante para ti, para te sentires capaz de
lhe fazer confidências acerca dessa época da tua vida. – Étienne olhou-a
nos olhos, com uma sobrancelha inquisitiva erguida. – Como foi que a
conheceste?
– Na minha loja – respondeu Belle. – Morava perto, e sim, acabou por
ser muito importante para mim. A morte dela deitou-me completamente
abaixo. Foi horrível e não teria acontecido se a passagem de nível estivesse
vigiada, como era suposto estar.
– É duro perder bons amigos – disse ele. – Perdi tantos desde o
começo da guerra que agora evito fazer amizade seja com quem for.
– Nunca tinha tido uma amiga verdadeira, alguém com quem pudesse
desabafar e falar de tudo. E penso que ela também não. Podíamos vir de
meios muito diferentes, mas tínhamos muita coisa em comum.
– Que aconteceu à loja?
– O Jimmy alistou-se, eu perdi o bebé e acabei por deixar de achar
graça a fazer e vender chapéus. Parecia-me uma coisa tão frívola, com tan-
tos homens a morrer na guerra.
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– Lamento muito teres perdido o bebé. Compreendo que tenha mudado
tudo para ti, sobretudo com o teu marido longe de casa. Mas o que foi que
vos fez vir até cá, a ti e à Miranda?
Belle sentiu que aquela linha de interrogatório tinha como objetivo
descobrir se a recordação dele tinha, de algum modo, influenciado a
escolha. Sabia que devia deixar muito claro que não, mas os sentimentos
que nutria por ele e que julgara mortos e enterrados estavam mais uma vez
a fervilhar-lhe no peito. Aquele sotaque francês era tão cativante, e evoc-
ava tantas boas recordações do tempo que tinham passado juntos.
– Foi por puro acaso – disse, sem se atrever a olhá-lo nos olhos com
medo de que ele lesse nos dela que não estava a dizer toda a verdade. –
Decidimos fazer a nossa parte a favor do esforço de guerra trabalhando
como voluntárias no hospital militar, e no ano que lá passámos a Miranda
ensinou-me a conduzir. Então disseram-nos que aqui em França precis-
avam desesperadamente de condutores de ambulâncias. E pensei que tam-
bém teria oportunidade de ver o Jimmy com mais frequência.
– E tens estado muito com ele desde que vieste para cá?
Como antes, quando questionada a respeito de ter estado com Jimmy,
sentiu uma pontada de culpa por não ter sequer tentado.
– Não, infelizmente temos estado demasiado ocupados para sair daqui.
– A Miranda conseguiu – fez ele notar.
Belle corou. Devia ter calculado que ele não deixaria escapar aquela.
– Para ela era mais fácil. O Will não estava preso por deveres regulares
e, além disso, estava mais perto.
– Eu não estou perto, e também tenho deveres regulares, mas quando
soube que estavas aqui quis vir ver-te imediatamente. A única coisa que
me travou não foram as dificuldades, foi o receio de que não quisesses ver-
me.
Belle sentiu que ele estava a encurralá-la, a tentar forçá-la a admitir os
seus sentimentos. A maneira mais fácil de sair daquilo seria dizer que não
tinha querido vê-lo, mas não foi capaz.
– Não esperava voltar a ver o Will – continuou Étienne. – Mas a sorte
entrou na jogada e mandaram-me ao depósito onde ele se encontrava, em
Calais. Quando ele me disse como a morte de Miranda te tinha afetado,
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senti que precisavas de um velho amigo. Mas se estou a perturbar-te, então
talvez o melhor seja ir-me embora.
– Perturbaste-me da última vez que apareceste – disse ela. – Porque é
que teimas em fazer isto?
– Porque é que apareço? Ou porque é que te perturbo? – perguntou
Étienne. Os olhos azuis pareciam sondar a alma dela até ao fundo. –
Apareço porque não consigo manter-me afastado. Só tu podes dizer porque
é que isso te perturba.
– Nesse caso, porque é que não foste ver-me a Inglaterra, depois de eu
ter deixado Paris? – disse ela, num súbito desabafo. – Devias saber que es-
tava na esperança de que o fizesses.
Ele suspirou.
– Pensei que precisavas de tempo para ultrapassar todas as coisas por
que tinhas passado.
– Aquela única carta que me escreveste podia ser de um tio a informar-
se sobre a minha saúde – acusou ela, indignada.
Ele levantou-se do banco e aproximou-se para lhe pegar nas mãos.
– Eu disse-te que não era muito bom a escrever em inglês – disse, num
tom de censura. – A tua carta estava cheia de Jimmy isto e Jimmy aquilo,
estavam os dois a viver sob o mesmo teto. O Noah escreveu-me a dizer
que achava que iam casar. Eu queria que fosses feliz e pensei que o melhor
seria sair da tua vida.
– Como podia eu dizer-te o que sentia quando tu nunca me encorajaste
a acreditar que me vias como mais do que uma amiga? – perguntou ela,
com a proximidade dele e a maneira como lhe pegava nas mãos a fazerem-
na tremer.
– Pensei que ter corrido a socorrer-te tão depressa e ter ficado a teu
lado enquanto recuperavas, em Paris, eram provas suficientes dos meus
sentimentos por ti. Depois de tudo aquilo por que tinhas passado, não me
atrevia sequer a beijar-te.
E então largou-lhe as mãos, segurou-lhe a cara e beijou-a.
Foi o mais suave e o mais terno dos beijos, e durou apenas o tempo su-
ficiente para fazer o coração dela correr à desfilada.
– Sou uma mulher casada – disse ela, mas não se afastou, e soube que
o seu tom não fora sequer indignado.
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– No amor e na guerra vale tudo, segundo dizem. – O sorriso dele foi
malicioso e arrapazado. – Nenhum de nós sabe se vai sobreviver a esta
guerra. Não gostaria de morrer sabendo que não tive coragem para te dizer
o que sinto por ti.
– Isso é um golpe baixo – disse ela, e agora sim, estava indignada. –
Suponho que vieste até cá a pensar que eu ia cair-te nos braços porque me
sinto muito sozinha sem a minha amiga e porque o Jimmy está na frente?
Pois bem, pensaste mal. Tiveste a tua oportunidade para expressar os teus
sentimentos em Paris.
– Se o tivesse feito, terias ficado comigo?
Belle recordou os últimos minutos com ele na Gare du Nord e a dor
que lhe dilacerara o coração por desejá-lo tanto.
– Na estação, pedi-te que dissesses qualquer coisa em francês. Não
compreendi o que disseste, mas sei que não foi que me amavas.
– Disse que desafiaria incêndios, inundações e o próprio Inferno para
estar contigo – disse ele, a olhá-la nos olhos. – Se isso não foi dizer que te
amava, não sei o que foi. E continuaria a desafiar todas essas coisas, e até o
teu desagrado por ter cá vindo agora que és uma mulher casada.
Os olhos de Belle encheram-se de lágrimas. Sentiu que alguma coisa
se derretia dentro dela, e embora soubesse que devia dizer-lhe que aquelas
palavras chegavam demasiado tarde e afastar-se dele, mais uma vez não foi
capaz.
Étienne levantou a mão e, em silêncio, limpou-lhe as lágrimas com o
polegar, e então inclinou a cabeça e os seus lábios encontraram os dela e
estava a beijá-la como, em Paris, ela esperara que fizesse.
Involuntariamente, ergueu os braços para o abraçar. A língua dele de-
safiava a dela, o seu corpo apertava-se contra o dela, e a paixão deflagrou
entre os dois como um incêndio na floresta. Belle esqueceu que a porta es-
tava aberta e que qualquer pessoa que passasse poderia vê-los; esqueceu
também que tinha um marido que ficaria com o coração destroçado se
soubesse daquilo.
Estava perdida, e sabia-o. Não havia maneira de se afastar agora e fin-
gir que aquilo não significara nada para ela. Queria que ele a possuísse, o
sentimento era demasiado forte para ser combatido.
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– Vem comigo – disse ele, quando os seus lábios finalmente a liber-
taram, embora os braços continuassem a prendê-la. – Conheço um sítio
onde podemos estar juntos.
– É errado, Étienne – disse ela, debilmente.
– Como é que pode ser errado quando acabo de encontrar a rapariga
que amo, por puro acaso, num país dilacerado pela guerra? Posso ser morto
na próxima batalha, e o Jimmy também. Temos de aproveitar o que temos
agora, não sabemos o que o amanhã nos vai trazer.
Belle tinha ouvido aquelas palavras inúmeras vezes desde que estava
em França, e sempre concordara com o sentimento, mas uma vozinha in-
terior tentava recordar-lhe que não se aplicavam à sua situação porque era
casada. No entanto, uma outra voz muito mais forte abafava-a, gritava-lhe
que era agora ou nunca com Étienne e que mandasse para o diabo as
consequências.
Ouviu-se a si mesma a dizer-lhe que saísse dos terrenos do hospital e a
esperasse junto da mesma abertura no arame por onde Miranda costumava
passar para se encontrar com Will.
Um novo beijo selou a combinação. Étienne meteu-se no camião e par-
tiu, e ela correu para a cabana para mudar de roupa e preparar uma mala.
Quis a sorte que Vera estivesse lá sozinha, deitada na cama a ler um
livro. Disse que as outras tinham ido jogar ténis.
– Arranjas-me uma desculpa qualquer? – pediu Belle, depois de lhe ter
dito apenas que ia sair com um velho amigo. – Sê evasiva, diz que foi o
meu marido que veio visitar-me. Estarei de volta amanhã a tempo de
trabalhar.
– Mas não é o Jimmy? – perguntou Vera. Parecia surpreendida, mas
não horrorizada; parecia não sofrer da rigidez moral dos Ingleses. E tam-
bém dissera muitas vezes que achava que qualquer oportunidade de ser fel-
iz devia ser agarrada com ambas as mãos.
Belle abanou a cabeça.
– Amanhã explico-te tudo. E reza pela minha alma, porque não tenho a
certeza de dever estar a fazer isto.
Depois de se ter lavado apressadamente e de ter vestido roupa interior
limpa e o seu único vestido decente, enfiando as roupas de trabalho num
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saco, para a manhã seguinte, Belle saiu a correr, escapuliu-se por entre as
filas de enfermarias e chegou à estrada onde Étienne a esperava.
Sentia a pulsação muito acelerada e o coração a dar-lhe cambalhotas
no peito, mas quando saltou para a cabina do camião, a visão do rosto dele,
incendiado de alegria, disse-lhe que, acontecesse o que acontecesse, ia
valer o risco.
– É só um café com alguns quartos no andar de cima – disse ele. – Mas
conheço outros homens que levaram lá as mulheres e disseram-me que os
quartos são muito limpos. Prometo trazer-te de volta ao hospital antes das
seis, isto se ainda não mudaste de ideias.
Belle só conseguiu abanar a cabeça, sorrir e esticar-se para o beijar na
face. Naquela noite, ia fingir que era livre como um passarinho. A conta
seria paga mais tarde.
O café ficava a cerca de vinte e cinco quilómetros de distâncias, por
um caminho cheio de curvas. O lugarejo era tão pequeno que mal se lhe
podia chamar uma aldeia: meia dúzia de casas, uma loja que vendia de
tudo e o café, com quartos para arrendar no primeiro andar.
Comeram ovos com batatas fritas acompanhados por um copo de
vinho tinto tão áspero que Belle teve de se esforçar para o beber sem fazer
uma careta. Havia alguns soldados franceses, mas Étienne conseguiu uma
mesa ao fundo da sala, e se conhecia alguns deles, não o disse. Tinha, logo
à chegada, falado a respeito de um quarto com o homem que estava atrás
do balcão, uma conversa pontuada por muitos encolher de ombros e agitar
de mãos. Quando Belle lhe perguntara o que fora tudo aquilo, limitara-se a
rir e dizer que o homem comentara que ela era uma beldade e ia dar-lhes a
suíte nupcial.
– Então é isto a suíte nupcial? – perguntou Belle quando, mais tarde,
subiram ao primeiro piso. Era um quarto muito pequeno nas traseiras da
casa, quase sem espaço para passar à volta da cama de casal, e o papel de
parede, com um padrão de flores, estava a descolar-se em diversos pontos.
– Bem, tem uma cama de casal – disse Étienne, a experimentá-la com
a mão. – E há uma casa de banho na porta ao lado… A retrete suponho que
será nas traseiras.
Belle sentiu-se pouco à vontade quando ele foi espreitar da janela. Não
era uma prostituta, da qual se esperava que tomasse a iniciativa, nem uma
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esposa, que normalmente se enfiaria na cama primeiro e esperaria para ver
qual era a disposição do marido. Tinha vergonha de se despir à frente dele,
o que, considerando que com dezasseis anos se enfiara nua no beliche onde
ele dormia, no barco a caminho de Nova Orleães, e se lhe oferecera
descaradamente, era no mínimo ridículo.
Étienne voltou-se para ela e sorriu-lhe. O sol da tarde entrava pela
janela e transformava-lhe o cabelo num halo dourado.
– Com medo?
Ela anuiu, sem confiar na voz. Ele contornou a cama e abraçou-a.
– Tenho um remédio para isso – disse em voz baixa, e beijou-a.
Quando os lábios dos dois se colaram e a língua dele lhe entrou na
boca, a excitação sexual foi imediata e varreu o medo e a vergonha.
Étienne empurrou-a para trás até a fazer cair em cima da cama, e con-
tinuou a beijá-la até que ela se debateu debaixo dele, a puxar-lhe pelo uni-
forme para que o despisse.
– Tu primeiro – sussurrou ele, e fê-la voltar-se para poder desabotoar-
lhe o vestido. Beijou-lhe e lambeu-lhes as costas à medida que desapertava
cada botão, e então fez deslizar a manga pelo braço, sem parar de a beijar,
até a fazer passar pelo pulso, e em seguida fez o mesmo ao outro braço.
Puxou então o vestido para baixo e deitou-a de costas para poder beijar-lhe
os seios que a camisola interior mal cobria.
– Magníficos, seios de mulher, tal como eu imaginava que se
tornariam.
Continuou a beijá-los enquanto desapertava o cós do saiote e o atirava
para o chão, e depois tirou-lhe as meias, as cuecas e finalmente a camisola
interior, deixando-a nua.
A sarja áspera do uniforme contra a pele dela excitou-a ainda mais, e
Étienne parecia não ter pressa de se despir. Enfiou uma coxa entre as dela
e começou a movê-la ritmicamente, sem parar de beijar-lhe e chupar-lhe os
seios.
Impaciente, ela desabotoou-lhe o dólman, puxando o tecido com ges-
tos bruscos na ânsia de sentir a pele dele contra a sua. Étienne usava sus-
pensórios por cima de uma camisa de algodão azul, e Belle agarrou-os para
lhos tirar.
– Qual é a pressa, pequenina? – sussurrou ele. – Temos a noite toda.
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Belle vira-lhe o peito nu dúzias de vezes, a caminho da América,
admirara-lhe os ombros largos e musculosos e a cintura estreita, mas
quando lhe despiu a camisola interior, reparou na cicatriz que lhe descia do
ombro ao longo do flanco.
– Foste ferido! – exclamou, tocando-lhe com as pontas dos dedos. Pen-
sou que era muito mais extensa do que a de Jimmy, e no mesmo instante
desejou não ter sido recordada da existência do marido num momento
daqueles.
– Não tem importância – disse ele. – Quando era rapaz, sempre quis
ter uma cicatriz assustadora, para me fazer parecer mais duro.
– Já pareces suficientemente duro sem isto – disse Belle, e voltou a
passar os dedos pela cicatriz.
Étienne puxou-a para si e silenciou-a com um beijo, enquanto lhe en-
fiava a mão no cabelo.
Belle deixou de ouvir o som dos soldados a rir e a conversar lá em
baixo no café, não viu o dia tornar-se noite nem quis saber de que prob-
lemas aquelas horas de bem-aventurança poderiam atrair sobre a sua
cabeça. A cicatriz de Étienne era um testemunho da verdade do que ele
dissera a respeito de não haver quaisquer garantias de que sobreviveriam
àquela guerra. Nunca lhe passara sequer pela cabeça que ela ou Miranda
pudessem perder a vida, e no entanto a amiga estava morta, e embora fosse
muito mais provável que Jimmy e Étienne tombassem no campo de batalha
do que ela ser vítima de um acidente fortuito, não podia ter a certeza.
Tudo o que sabia de certeza era que a sorte interviera e trouxera
Étienne de volta para ela. Tinha de haver uma boa razão para isso. Amara-
o quando tinha dezasseis anos. Fora ele quem lhe permitira ultrapassar
tudo aquilo a que fora sujeita depois de ter sido raptada, e fora ele quem
lhe dera a força e a determinação para aguentar o que Nova Orleães lhe
atirara à cara.
E, dois anos depois disso, fora ele quem, em Paris, a salvara das garras
de Pascal e se sentara à sua cabeceira enquanto ela recuperava. O resto do
mundo podia pensar que era apenas mais uma esposa infiel que cedera à
tentação de arranjar um amante porque estava longe de casa e se sentia
sozinha, mas, para ela, Étienne tinha direitos de precedência no seu
coração.
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Cada carícia, cada beijo, cada palavra de amor murmurada levavam-na
mais alto no êxtase. Étienne não tinha pressa em penetrá-la e parecia ex-
clusivamente concentrado em proporcionar-lhe prazer, lambendo-a até que
ela gritou ao atingir o clímax e lhe suplicou que entrasse nela.
Seguiram-se longas e lentas arremetidas até ambos pingarem suor,
tanta ternura num instante, tanta ferocidade no seguinte. Teve um novo or-
gasmo e, nos espasmos da delícia, não se apercebeu sequer de que ele se
tinha retirado de dentro dela. Quando sentiu a humidade pegajosa no
ventre percebeu que, mesmo no auge da paixão, Étienne tinha pensado
nela e não quisera arriscar uma gravidez.
– Minha bela rosa inglesa – disse ele, apoiado num cotovelo, a olhar
para ela enquanto lhe limpava docemente as lágrimas das faces. – Foi tudo
o que sonhei, e muito mais.
– Quem me dera – disse ela, com mais lágrimas a subirem-lhe aos
olhos.
Ele pousou-lhe nos lábios um dedo que cheirava a ela.
– Não digas isso. Temos de acreditar que se a sorte voltou a juntar-nos,
é porque tem mais planos para nós. Amo-te, Belle, não só esta noite, mas
para sempre. O amor encontra sempre maneira.
– Vais voltar à frente?
– Sim, muito em breve. Mas hei de escrever-te, e virei ver-te sempre
que puder. Vais acreditar que um dia esta guerra há de acabar e nós
poderemos estar juntos?
– Sim, porque te amo. – Não era aquele o momento para falar dos ob-
stáculos que o impediriam. – E penso que chegou o momento de te recom-
pensar por todo o prazer que me deste, qualquer coisa para te fazer ficar
acordado nas trincheiras.
E então brincou com ele, com a boca e a língua. Sempre que ele
tentava acariciá-la, afastava-lhe as mãos com uma palmada, e continuou a
fazer o que estava a fazer até que Étienne desistiu e aceitou que aquilo era
só para ele.
Recordações do Martha’s voltaram a encher-lhe a cabeça enquanto o
ouvia gemer de prazer. Da primeira vez que lhe haviam dito que tinha de
tomar o sexo de um homem na boca, achara que aquilo era a coisa mais
nojenta que alguma vez ouvira. E continuara a ser algo que evitaria se
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pudesse. Mas não havia nada de repelente em fazê-lo a Étienne, parecia até
ser a coisa mais natural do mundo. Sentia prazer em proporcionar-lhe um
tão grande gozo.
Eram quase seis da manhã e chovia quando ele a deixou perto do hos-
pital. Já levava vestidas as roupas de trabalho e uma bata lavada – o
vestido estava no saco –, de modo a poder seguir diretamente para a ambu-
lância. Tinha os lábios inchados de tantos beijos e o sexo dorido, estava
cansada da falta de sono e sentia o coração pesado por não fazer ideia de
quando voltaria a vê-lo.
– Guarda isto num lugar seguro – disse ele, enquanto lhe enfiava um
pedaço de papel na mão. – Estão aí moradas onde posso ser contactado se
te acontecer qualquer coisa inesperada, ou se eu não conseguir vir ter con-
tigo aqui.
Belle olhou para o papel: indicações sobre o regimento, uma morada
de Marselha e outra de Paris.
– Vou tentar escrever melhor em inglês – continuou Étienne, com um
sorriso triste, e enrolou uma madeixa de cabelo dela à volta do dedo. – Mas
se não conseguir fazer um bom trabalho, lembra-te de que te amo e que de-
safiaria incêndios, inundações e o próprio Inferno para estar contigo.
Ela sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.
– Mantém-te a salvo para mim – disse, com a voz a tremer de emoção.
– Mas se fores ferido, pede para te trazerem para aqui.
– Agora tenho todas as razões para me manter vivo. – Étienne
inclinou-se para a beijar uma última vez. – Agora vai, não quero que ar-
ranjes problemas.
Belle ficou parada alguns instantes, a vê-lo afastar-se. Subitamente, a
enormidade do que tinha feito desabou-lhe sobre a cabeça. Como seria
capaz de voltar a encarar Jimmy? Porque fora que cedera à tentação? Seria
uma noite de paixão compensação suficiente para a culpa com que ia ser
obrigada a viver?
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Vera aproximou-se quando Belle estava a usar a manivela para ligar o
motor da ambulância. David tinha ido à arrecadação buscar mais mantas.
– A Sally foi um bocado mazinha depois de tu teres ido embora, ontem
à noite – segredou Vera. – Pensou que tinhas saído com o Will e disse que
já era mais do que tempo de o deixares aguentar-se sozinho. Eu não lhe
disse que não era o Will, de modo que não deixes escapar nada se ela te
falar no assunto.
Belle olhou para ela, horrorizada.
– Pensou que eu estive com ele toda a noite?
Vera esboçou um meio sorriso.
– Não, ela e as outras estavam na cama às nove, de modo que não
sabem que não voltaste. Esta manhã, acordei antes de elas se levantarem e
desfiz a cama e destranquei a porta.
– Graças a Deus – exclamou Belle. – Não aguentaria se elas pensas-
sem que roubei o homem à Miranda. Já me sinto mal que chegue.
Vera pegou-lhe na mão e apertou-a, num gesto de compreensão.
– Podes ter sido um pouco irresponsável – disse –, mas não foste má.
Aceitaste um pouco de conforto, foi só isso.
Belle sentiu-se comovida ao ouvir estas palavras.
– Obrigada por me teres ajudado. Hei de tentar explicar-te tudo, mais
tarde.
Às dez da manhã, Belle já tinha feito três viagens até à estação. Como
a dela fora a segunda ambulância a sair do hospital, da primeira vez trans-
portara apenas pacientes sentados, muito mais fáceis do que os de maca.
Mas na segunda e na terceira tinham-lhe calhado sobretudo canadianos,
homens grandes, pesados, todos eles com ferimentos terríveis.
– Hoje tens estado muito calada e sonhadora – comentou David en-
quanto lavavam a ambulância, depois de um dos feridos ter vomitado. –
Alguma razão especial?
A verdade era que estivera a recordar a noite com Étienne, de tal
maneira que começara a sentir calores e a ficar novamente excitada. Per-
guntou a si mesma quando voltaria a vê-lo.
259/474
Contava quase tudo a David; tinham-se tornado bons amigos ainda
antes da morte de Miranda, mas o terrível acidente aproximara-os ainda
mais. Mas, claro, não podia falar-lhe de Étienne: a ideia de uma mulher
casada com o marido na frente passar a noite com outro homem deixá-lo-ia
horrorizado.
Foi só então que teve plena consciência da sua situação. Jimmy era um
bom homem, e amava-a. Ia destroçar-lhe o coração se lhe dissesse que
queria deixá-lo. E se o fizesse perderia também Mog, que nunca poderia
tomar partido por ela estando casada com Garth.
– A mesma coisa do costume, a pensar demasiado nas mortes que esta
guerra tem causado – respondeu rapidamente. – A vida é tão efémera, não
é?
– Tiveste notícias do teu marido desde que lhe escreveste a contar o
que aconteceu à Miranda?
– Não. E da Mog e do Garth também não. Pergunto a mim mesma se a
Mog terá ido ao funeral da Miranda. Mrs. Forbes-Alton arranjou de certeza
maneira de toda a gente ficar a saber, e a Mog deve ter ficado chocada por
eu não ter ido a casa para estar presente. Claro que lhe expliquei a razão na
minha carta, mas duvido que a tenha recebido a tempo.
– Esperemos que ela não tenha ido para a Mog com aquela conversa a
respeito de tu seres responsável – disse David. – É uma coisa horrível para
dizer seja a quem for.
– Talvez Mrs. Forbes-Alton seja infeliz no casamento – sugeriu Belle.
– Suponho que é quanto basta para azedar qualquer um.
– Sim, acho que sim. Tive uma tia que era um autêntica peste para toda
a gente, e no fim acabei por descobrir que não a tinham deixado casar com
o homem que amava. O homem com quem a obrigaram a casar era um
bom tipo, mas um banana. Era isso que a tornava tão má.
– Penso muitas vezes em como será que as mulheres dos homens que
ficaram muito feridos lidam com a situação, quando eles voltam para casa
– continuou David. – Por muito que se tenham amado antes, viver de uma
pensão de miséria com alguém que precisa de cuidados constantes pode ser
um pesadelo.
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Aquelas palavras fizeram Belle endireitar-se bruscamente. Étienne
falara como se acreditasse que haviam de arranjar uma maneira de estar
juntos. Estaria na esperança de que Jimmy fosse morto?
CAPÍTULO 18
D ias depois da sua noite com Étienne, Belle passou pela sala do correio
antes de iniciar o trabalho para ver se havia correspondência para ela.
Quando lhe entregaram uma carta, o coração deu-lhe um salto no peito:
talvez fosse de Étienne. O desapontamento que sentiu ao reconhecer no
sobrescrito a caligrafia familiar de Jimmy foi imediatamente seguido por
uma profunda vergonha.
«Meu querido amor», leu.
–A única coisa boa de estar muito ocupada é não termos tempo para
ficar a remoer as coisas – disse Belle a Vera enquanto comiam
uma sanduíche e bebiam uma chávena de chá entre duas viagens à estação.
Estava-se a meio da noite. Os comboios que transportavam os feridos
tinham começado a circular à noite, por causa dos bombardeamentos. A
aviação alemã visava em particular as vias-férreas, numa tentativa de de-
sorganizar os serviços e as linhas de comunicação, e não tinha escrúpulos
em atacar feridos e doentes. Por isso, agora as ambulâncias só saíam de-
pois do escurecer, sem luzes, o que tornava a tarefa ainda mais difícil
naquelas estradas esburacadas e cheias de curvas.
Além disso, tinha recomeçado a chover. As pessoas diziam que aquele
era o verão mais frio e chuvoso de que havia memória, e não seria Belle,
que recordava as sufocantes noites de verão em Seven Dials, quando era
criança, e o calor húmido de Nova Orleães, a contestar a afirmação.
O rosto sardento de Vera rasgou-se num sorriso.
– Pode ser que trabalhar te dê jeito, mas eu gostava de ter tempo para
lavar a cabeça e escrever para casa – disse. – Sei que estou de meter medo,
e a mã vai ficar frenética se não receber notícias minhas em breve.
Belle não duvidava de que também ela estava de meter medo; há muito
que deixara de se preocupar com o seu aspeto.
– Já não sei o que dizer nas cartas – confessou, com um suspiro. – Que
está outra vez a chover e que temos de patinhar nas poças para chegar às
ambulâncias? Já o disse não sei quantas vezes. Que a comida é tão má
como sempre foi e que quase nunca temos uma folga? Não tem ponta de
interesse, e também já o disse. Quanto aos feridos, a única diferença é que
agora vêm mais carregados de lama. Talvez gostassem de saber lá em casa
278/474
que o número de baixas em Ypres é quase tão elevado como foi no
Somme, mas não consigo sequer pensar em homens a afogarem-se em
crateras de bombas, quanto mais escrever a esse respeito.
A terceira batalha de Ypres começara a 31 de julho, precedida por um
bombardeamento que durara quinze dias e durante o qual tinham sido dis-
parados quatro milhões de granadas. O estrépito dos canhões era tão forte
que se dizia que podia ser ouvido em Inglaterra, e no hospital a sensação
que dava era que estavam a ser disparados a poucos quilómetros de
distância.
Chegaram notícias de que na manhã do dia 31 o tempo estava seco,
embora a terra estivesse revolvida e esburacada por dois anos de bom-
bardeamentos. Segundo os relatos, a infantaria, acompanhada por cento e
trinta tanques, fizera bons progressos em direção ao planalto de Gheluvelt,
a sudeste de Ypres. Era considerado importante conquistar esta posição aos
Alemães porque o terreno ligeiramente elevado proporcionava bons pontos
de observação sobre as terras baixas circundantes.
Mas então, durante a tarde, os Alemães tinham contra-atacado com um
fogo de artilharia tão cerrado que a vanguarda da Força Expedicionária
Britânica tivera de fugir. Como se isso não bastasse, uma chuvada torren-
cial súbita dera uma consistência de papa ao solo já ensopado. Novas di-
visões tinham sido lançadas para a batalha, mas continuara a chover sem
parar durante os três dias seguintes. As linhas de comunicação foram corta-
das, os homens afogavam-se nas crateras deixadas pelos rebentamentos, os
tanques afundavam-se na lama, as mulas e os cavalos não conseguiam
avançar, e nesse ponto o general Haig mandara cessar a ofensiva.
O total das baixas, incluindo os soldados franceses, foi estimado à
volta de trinta e cinco mil, e calculou-se que os Alemães tinham tido um
número igual de mortos.
A primeira vaga de feridos chegara a 1 de agosto, e a partir desse dia
os números tinham crescido regularmente. Belle não tinha meio de saber se
Jimmy e Étienne ainda estavam vivos, tal como Vera não sabia dos irmãos.
Tinham de obrigar-se a acreditar que a ausência de notícias era um bom
sinal.
Mas as histórias que os feridos contavam a respeito das condições em
Ypres eram da matéria de que os pesadelos são feitos. Aqueles feridos
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eram os afortunados, os que tinham conseguido manter-se fora dos buracos
cheios de água até serem recolhidos pelos maqueiros. Alguns contavam
como tinham tentado arrancar um amigo à lama que o sugava, só para o
verem voltar a escorregar para trás e desaparecer.
Embora Belle, Vera e os outros condutores não tivessem, nem
pudessem ter, uma verdadeira compreensão do panorama geral e de qual
era o plano de Haig, tudo aquilo lhes parecia fazer tão pouco sentido como
a batalha do Somme: um número esmagador de baixas para conquistar al-
guns metros, só para voltar a perdê-los mais tarde num contra-ataque
alemão.
Nos postos de socorros da frente e nos comboios, as enfermeiras
esforçavam-se ao máximo por desembaraçar os feridos da lama que os
cobria e vestir-lhes batas de hospital, mas mesmo assim muitos homens
chegavam à estação envoltos numa autêntica carapaça de barro. Era por
isso que Belle e Vera não tinham tempo para lavar a cabeça ou escrever
para casa, porque mal acabavam de transportar os últimos feridos para o
hospital, iam para as enfermarias ajudar também lá. As enfermarias per-
manentes estavam cheias a transbordar, pelo que tinham sido montadas
dúzias de grandes tendas para receber o excedente. Muitos dos médicos e
enfermeiras mantinham-se a trabalhar quarenta e oito horas seguidas.
– O capitão Taylor quer que amanhã nós as duas levemos até Calais os
homens que têm bilhete para Inglaterra – disse Vera, enquanto engolia o
resto da sanduíche. – Suponho que isso significa que vêm ainda mais a
caminho nos comboios.
– Bem, espero que sejamos as últimas a saber. Mas agora temos de
voltar à estação. Não há sossego para os malvados.
– Ultimamente não tens falado de tu sabes quem – comentou Vera, en-
quanto se encaminhavam para as ambulâncias.
– Tento não pensar nele – respondeu Belle. – Mas não sou muito bem-
sucedida.
Vera pousou-lhe a mão no braço e apertou-lho; era a sua maneira de
dizer que compreendia.
– Amanhã compramos uma garrafa de qualquer coisa em Calais e
apanhamos uma de caixão à cova quando voltarmos. Talvez nos faça es-
quecer as pessoas que amamos durante uma ou duas horas.
280/474
A caminho da estação, Belle pensou na sugestão de Vera. David ia
meio a dormir; como tantos outros, também ele ajudava nas enfermarias
durante o dia. Todo o pessoal do hospital estava exausto, não só devido às
longas horas de trabalho mas também ao horror que testemunhavam diaria-
mente e para o qual não havia fim à vista. Ela e Vera não eram as únicas a
ter na frente pessoas que amavam; quase toda a gente tinha alguém com
quem se preocupar. E depois havia as famílias em casa a debaterem-se
com a escassez de comida e os bombardeamentos, a temerem pelos que es-
tavam em França e a perguntarem-se se alguma vez a vida voltaria a ser o
que fora antes da guerra.
As cartas de Mog tinham-se tornado muito diferentes desde que os
comentários de Blessard tinham aparecido na imprensa. Em vez de mexeri-
cos, passara a escrever a respeito de fazer geleia ou compota de fruta, ou
de no domingo ter ido dar um passeio com Garth pelo campo. Esforçava-se
muito por parecer alegre, mas era evidente que se fechara em si mesma.
A culpa e o remorso roíam Belle, pelo passado que pusera uma nuvem
tão negra sobre a cabeça de Mog e pela sua infidelidade a Jimmy. Ele es-
crevia sempre que podia, mas também nas suas cartas havia cansaço.
Quanto a Étienne, a inabalável e otimista convicção de que um dia poderi-
am ser felizes era muitas vezes assustadora, porque Belle sabia que
qualquer felicidade com ele seria sempre à custa da infelicidade de outros.
Dissera-lhe, em todas as cartas que lhe escrevera, que nunca poderia ser
tão simples como ele julgava. E ele dizia em resposta que estava preparado
para esperar todo o tempo que fosse preciso.
Parecia a Belle que estava sempre à espera. À espera na fila de ambu-
lâncias para carregar os feridos, à espera de cartas, à espera de que aca-
basse uma guerra que parecia interminável, à espera de que nascesse uma
manhã em que ela acordasse a não desejar tanto Étienne que até doía.
Nos dias que se seguiram, Belle sentiu que, se não fosse a ajuda de
Vera e de David, talvez não tivesse conseguido aguentar. Fisicamente,
Jimmy estava a recuperar bem, não havia sinais de infeção em qualquer
dos cotos, mas alternava entre retrair-se ao ponto de não querer falar com
ninguém e ficar tão furioso que gritava com as enfermeiras. Disseram-lhe
que estava a ter pesadelos.
– Tudo isso é de esperar – disse David, com um encolher de ombros,
quando ela lhe contou. – Se tu não estivesses aqui, aposto que seria uma
simpatia para toda a gente e estaria ansioso por ir para casa. Passou por um
inferno, não admira que tenha pesadelos. Mas provavelmente ainda não se
apercebeu dos grandes progressos que a medicina fez desde o início da
guerra. Agora sabem fazer transfusões de sangue, enxertos de pele nas
queimaduras, coisas com que nem sequer sonhávamos. Aposto que neste
preciso momento há de estar um desses crânios a trabalhar para fazer bons
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membros artificiais. E ele vai receber uma pensão, não vai ficar na miséria,
e tem-te a ti, o felizardo.
David tinha razão a respeito dos extraordinários avanços feitos pela
ciência médica desde o início da guerra. Na realidade, praticamente tudo
dera grandes saltos em frente, desde os automóveis aos aviões. Belle
lembrava-se de, quando era criança, terem apenas velas e candeias de
azeite, de a maior parte das pessoas ter as latrinas no pátio das traseiras e
de, até poucos anos antes, os ómnibus serem puxados por cavalos. Agora a
eletricidade era uma coisa comum, cada vez mais pessoas tinham
automóvel, e não só retretes interiores mas também casas de banho com to-
dos os confortos. Por isso, parecia razoável pensar que todos estes pro-
gressos significavam que Jimmy ia conseguir uma perna artificial que lhe
permitisse voltar a andar.
David era quem tinha o conhecimento prático, mas Vera era aquela a
quem Belle podia confidenciar os seus medos mais íntimos.
– Vai ser muito difícil. Vamos voltar para casa, onde as pessoas falam
a meu respeito e do meu passado. Tenho a certeza de que a mãe da Mir-
anda fará tudo para manter os mexericos a circular durante o máximo
tempo que puder – disse à amiga. – Se o Jimmy continuar maldisposto e
zangado, não sei se serei capaz de aguentar. E toda a gente vai estar à es-
pera de que eu arranje um amante, de modo que vão vigiar-me como fal-
cões. Quero fazer o que está certo, mas nunca pretendi ser uma santa.
– Encara as coisas um dia de cada vez – disse Vera. – O falatório a teu
respeito acabará por parar, se não houver mais nada que o alimente. O
Jimmy ficará de certeza muito mais calmo quando deixar de ouvir os can-
hões à distância e estiver em casa. Arranjará maneira de fazer coisas sem
ajuda, e tu não estarás sozinha com ele, vais ter a Mog e o Garth perto de
ti. Mas vais manter-te em contacto comigo, não vais? Adorava ir a
Inglaterra antes de voltar à Nova Zelândia. E vou ajudar-te a animar o
Jimmy.
Havia uma coisa acerca da qual Belle não podia falar fosse com quem
fosse. Jimmy dissera que já não era um homem. Sabia que com aquilo, em-
bora não o tivesse dito explicitamente, queria dizer que acreditava que não
poderiam voltar a fazer amor. Que ela soubesse, não havia qualquer razão
física para que assim fosse. Na sua opinião, quando os ferimentos dele
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sarassem completamente e deixasse de ter dores, se estivessem juntos na
cama ele descobriria que tudo funcionava como sempre funcionara. Mas
também sabia que quando os homens desenvolviam uma fixação a respeito
de uma coisa daquelas, ela se tornava muitas vezes um facto.
Se Jimmy não fosse capaz de falar sobre o assunto com ela, também
nunca perguntaria a um médico. E não podia ser ela a perguntar.
Como se tudo isto fosse pouco, não conseguia deixar de pensar em
Étienne. Quando estes pensamentos lhe invadiam o espírito durante o dia,
reprimia-os, obrigava-se a pensar noutra coisa qualquer. Mas muitas vezes
acordava de noite a meio de um sonho escaldante em que os dois estavam
a fazer amor, excitada e a desejá-lo, e isso fazia-a ter vergonha de si
mesma.
Então, em finais de agosto, recebeu uma carta dele. Sentiu que devia
rasgá-la sem a ler, mas não foi capaz. E quando começou a ler, não con-
seguiu conter as lágrimas.
Belle leu a carta uma e outra vez, e chorou. Nessa noite, dobrou-a até a
reduzir a um pequeno quadrado, cortou alguns pontos no forro do pequeno
saco onde guardava os utensílios de costura, enfiou-a na abertura e voltou
a cosê-los. Tinha queimado todas as outras cartas de Étienne. Mas não se
sentia capaz de se separar daquela.
CAPÍTULO 21
V era estava sentada na cama, a ver Belle fazer a mala. – Vou ter muitas
saudades tuas – disse, com o lábio infeior a tremer.
– Não tantas como eu de ti – respondeu Belle tristemente. – Não tenho
uma única amiga, agora que a Miranda morreu, e se encontro a mãe dela
sou bem capaz de lhe bater.
– E a tua mãe? Vais estar com ela?
Belle fez uma careta.
– Duvido. Nem sequer se deu ao incómodo de responder à minha carta
a contar o que aconteceu ao Jimmy. Graças a Deus pela Mog; ao menos
essa vai ficar feliz por me ver.
– Vais então levar o Jimmy diretamente para casa? – perguntou Sally,
do outro lado da cabana.
Sally tinha-se tornado muito mais simpática desde que Jimmy fora
ferido; tinha muitas vezes um chá feito quando Belle voltava da visita e
perguntava sempre por ele.
– Não, vai ficar numa casa de convalescença em Sevenoaks. Vou
acompanhá-lo até lá, para o instalar, e depois sigo para casa.
Outubro já chegara e os ferimentos de Jimmy estavam a sarar bem.
Nos dias em que não chovia a cântaros, Belle levava-o muitas vezes a dar
um passeio de cadeira de rodas, ao fim da tarde. Mas, a bem da verdade,
não podia dizer que estivesse mais animado. Mostrava-se bem-disposto
junto dos outros pacientes e do pessoal da enfermaria, mas quando estava
sozinho com ela tornava-se irritadiço e sombrio.
A batalha de Ypres nada perdera da sua fúria. Houvera pouco antes um
bombardeamento de três semanas durante o qual a 1.ª e 2.ª Divisões aus-
tralianas se tinham juntado à 23.ª e 41.ª britânicas e atacado a estrada de
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Menin, a leste de Ypres. Os Alemães tinham recuado perante a devasta-
dora chuva de fogo, e o planalto de Gheluvelt fora finalmente tomado
pelos Aliados. Mas dizia-se que não podia haver uma vitória decisiva no
campo de batalha meio inundado, esventrado e calcinado que era Ypres.
Os Aliados ganhavam algumas centenas de metros e avançavam para uma
nova posição, só para os Alemães contra-atacarem e a reconquistarem.
Muitos afirmavam que tudo aquilo era um exercício de perfeita futilidade e
que o general Haig devia pôr fim à ofensiva.
Parecia, porém, que Haig pouco se importava com a perda de vidas, ou
até com o senso comum. Com o exército britânico praticamente exaurido,
planeava recorrer ao Anzac e às tropas canadianas para tomar o que restava
da aldeia de Passchendaele. Todos no hospital receavam que o número de
baixas fosse enorme, e para Vera, com dois irmãos no Anzac, isso era
muito assustador.
– Fica com isto, vai manter-te quente no inverno. – Belle estendeu-lhe
o xaile de lã que Mog lhe tricotara. – Gostaria de imaginar-te embrulhada
nele. Fiquei muito contente por o ter quando cá cheguei naquela primeira
noite e estava tanto frio.
Belle sabia que deveria estar feliz por ir para casa, mas a verdade era
que o receava. Ali podia ter tido de trabalhar duramente, mas sentira-se
livre de todas as mesquinhas restrições e formalidades que eram uma parte
tão integrante da vida em Inglaterra. Os outros condutores tratavam-na
como uma igual, usava as saias mais curtas por questões práticas, podia ser
ela mesma sem que ninguém a julgasse. E também adorava ajudar nas en-
fermarias, onde sentia que era valorizada e necessária.
Parecia-lhe que fora numa outra vida que ela e Mog se tinham mudado
para Blackheath e passado dias a ouvir e a ver como a classe média falava
e se comportava, para se poderem integrar. Agora, tudo isso se lhe afig-
urava tão sem sentido como aquela guerra; tudo o que tinham feito fora
porem-se a jeito para serem derrubadas por gente pedante e de vistas cur-
tas, enclausuradas nas suas vidas de privilégio.
Mesmo assim, orgulhava-se de ter realizado o seu sonho de abrir uma
loja de chapéus. Quando recordava esses dias, o casamento com Jimmy e a
felicidade que tinham partilhado, via-os como uma época dourada em que
todas as coisas más do passado tinham sido banidas para sempre.
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Mas não estava destinado a acontecer. A guerra rebentara, Jimmy
partira para França e ela perdera o bebé.
No entanto, trabalhar no Herbert e ir para ali voltara a fazê-la sentir-se
realizada. Acabara por acreditar que, quando a guerra acabasse, toda a ex-
periência adquirida por ela e Jimmy lhes permitiria construir juntos uma
nova vida que seria ainda melhor do que o seu primeiro ano de casados.
Essa esperança parecia perdida. Jimmy, em tempos forte e determ-
inado, era agora um homem desfeito e dependeria dela para tudo. Graças a
Blessard, o seu passado desonroso tornara-se do conhecimento público.
Em vez do respeito e admiração de que em tempos gozara, as pessoas mur-
murariam à sua passagem e pô-la-iam de parte. E, como se tudo isto não
bastasse, também o dinheiro seria apertado, pelo que não poderiam ir para
outro lugar qualquer e começar de novo.
– Que se passa? – perguntou Vera. – Estás com cara de quem vai
desfazer-se em lágrimas.
– Estava só a pensar que vou ter saudades de tudo isto. – Belle con-
seguiu um débil sorriso e deixou-se cair na cama ao lado da amiga. Não ia
perturbar Vera dizendo-lhe o que verdadeiramente a preocupava. – Vou
sentir falta das conversas, das gargalhadas e da comida má. Bem sei que
vou ter a minha cama confortável, os cozinhados da Mog e tudo o resto,
mas a verdade é que estou um pouco assustada.
Vera passou-lhe o braço pelos ombros e apertou-a com força. Era
muito intuitiva e provavelmente adivinhava a verdadeira causa da relutân-
cia de Belle em voltar para casa.
– Vai correr tudo bem, tenho a certeza. O Jimmy voltará a ser o que
era, e as pessoas lá do lugar onde vives acabarão por esquecer o que leram
nos jornais. Talvez tenhas um filho... pensa em como seria bom! E os
Americanos vão estar prontos para combater no Ano Novo, e a guerra
acabará em breve.
Para si mesma, Belle pensou que a única certeza daquela lista era que
os Americanos se juntariam à luta em janeiro. Mas Vera já tinha preocu-
pações suficientes com a segurança dos irmãos e do que menos precisava
era de se preocupar também com a sua amiga inglesa.
– Ficarei bem logo que vir as Brancas Falésias de Dover – disse. –
Mas não te esqueças de me ir visitar antes de voltares à Nova Zelândia.
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Duas horas mais tarde, Belle encontrou Mr. Gayle à espera junto do
carro diante da porta principal, pronto para a levar de volta à estação. En-
tretanto escurecera, e estava muito frio.
– O seu marido ficou bem? – perguntou ele, enquanto ligava o motor.
– A verdade é que não sei, mal abriu a boca – respondeu Belle. –
Tenho de pedir desculpa por ele, normalmente não é mal-educado para
ninguém, mas está muito em baixo.
– Estas coisas afetam os homens de maneiras diferentes, como certa-
mente sabe, uma vez que esteve em França. Vi homens tão gravemente
feridos que na realidade não podiam aspirar a uma qualidade mínima de
vida, e que apesar disso se mostravam otimistas e joviais, ao passo que
outros com ferimentos muito mais ligeiros pareciam revoltados contra tudo
e contra todos. Mas uma vez longe do barulho dos canhões e da pressão da
guerra, até os mais difíceis acabam geralmente por recuperar. O seu mar-
ido é um homem afortunado por ter uma esposa tão bonita e dedicada. Tem
muito que agradecer. Dos que foram gaseados, dos que ficaram cegos e
paralisados, é que tenho verdadeiramente pena. Não têm muito por que es-
perar em termos de futuro.
Belle achara Haddon Hall um lugar maravilhoso e estava muito
agradecida ao capitão Taylor por ter puxado os cordelinhos para que
Jimmy fosse mandado para lá. Tinham-no mudado para uma cadeira de ro-
das, ao chegar, e levado para o dormitório que partilharia com cinco outros
homens, no piso térreo. Era um quarto encantador, cheio de luz, com uma
parede coberta de livros porque tinha sido a biblioteca. Tinham-lhes
mostrado a casa de banho, recentemente construída, com um dispositivo
para ajudar os que precisassem a entrar na banheira. Havia uma sala de bil-
har, uma sala de estar com piano e confortáveis sofás e cadeirões, uma sala
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de jantar e a estufa de que Mr. Gayle já tinha falado. Havia jogos de tab-
uleiro, puzzles, aguarelas para os que gostassem de pintar, e um homem
que perdera ambas as pernas estava a construir um modelo de navio.
Fora na estufa que tinham tomado o chá da tarde: scones, sanduíches e
bolo, tudo delicioso, mas Jimmy mal dissera uma palavra.
– Ora bem, quando vier visitá-lo outra vez, telefone, e ou vou eu
buscá-la, ou arranjo alguém que o faça – disse Mr. Gayle, entregando-lhe
um cartão de visita. – Todos nós sabemos como as coisas podem ser di-
fíceis para as esposas e mães dos feridos, sobretudo as que têm filhos
pequenos e vivem longe.
– Estava a pensar em arranjar um sítio para viver aqui perto, para torn-
ar as visitas mais fáceis – disse Belle. – Acha que será possível?
– Posso fazer umas perguntas por aí – respondeu ele. – Uma vez que
foi condutora de ambulâncias, estaria disposta a fazer um pouco de
condução?
– Com certeza que sim. E também trabalhei como auxiliar de enfer-
magem no Royal Herbert antes de ir para França. Teria muito prazer em
voltar a fazê-lo.
– É uma jovem muito corajosa – disse ele, olhando-a de lado enquanto
conduzia. – Espero sinceramente que o seu marido consiga dar a volta en-
quanto aqui estiver. Precisa de aproveitar toda a ajuda e conselhos que lhe
puderem dar.
– Estou certa de que o fará. Vou deixá-lo sozinho durante um par de
dias, para ele se adaptar. Parece ficar ainda mais triste quando eu estou por
perto.
– Suponho que tem medo de a perder. Os homens são muito estúpidos;
muitas vezes atacam precisamente aqueles que deviam adorar.
Jimmy estava muito mais bem-disposto. Sorriu a Belle quando ela en-
trou na estufa e apresentou-a a três companheiros com evidente orgulho.
Fred, de dezanove anos, tinha perdido ambas as pernas, Henry apenas
uma, e Ernest ficara cego e parcialmente paralisado em consequência de
uma lesão na coluna vertebral. Belle conversou com cada um deles,
perguntando-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em Haddon
Hall. Eram todos da zona sul de Londres, mas só Ernest estava ali há mais
de três meses.
– Os meus pais não têm condições para cuidar de mim – disse, com
uma surpreendente jovialidade. – Mas eu também não quero ir para casa.
Gosto de estar aqui.
Um pouco mais tarde, Belle levou Jimmy para a sala de estar, para
poderem ter um pouco mais de privacidade. Ajoelhou-se ao lado da cadeira
de rodas e beijou-o, e, pela primeira vez, ele correspondeu com
entusiasmo.
– Assim está melhor – disse ela, e sentou-se sobre os calcanhares. – Já
começava a pensar que um pedaço do meu Jimmy tinha ficado em Ypres.
Jimmy sorriu, envergonhado.
– Tenho sido um idiota, demasiado ocupado a ter pena de mim mesmo.
– Tinhas todas as razões para ter pena de ti mesmo – respondeu ela. –
Agora conta-me como é a vida aqui.
Enquanto o ouvia falar, Belle apercebeu-se de que, mais do que
qualquer tratamento, tinham sido a paz e o sossego, o calor e o conforto, os
principais responsáveis por aquela melhoria do seu estado de espírito. Os
únicos sons que se ouviam no exterior eram o vento, o canto das aves e, de
vez em quando, alguém a rachar lenha, ao contrário do que acontecia no
hospital em França, onde o troar da artilharia à distância e o barulho dos
aviões a passar lá em cima eram companhias constantes.
Também os outros pacientes estavam a ajudar, até porque alguns,
como Ernest, estavam muito pior do que ele e não tinham o consolo de
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visitas familiares. Belle ficou satisfeita ao ouvir Jimmy expressar admir-
ação pelo seu novo amigo. Parecia mais otimista na maneira como en-
carava a sua incapacidade porque lhe tinham dito que, quando o coto do
braço estivesse completamente sarado, lhe aplicariam uma prótese que po-
deria usar para se apoiar às muletas ou manobrar a cadeira de rodas em
pequenas distâncias.
Aproveitara o tempo para ler, para aprender a jogar xadrez, e disse, a
rir, que descobrira que era capaz de se levantar da cadeira e saltitar ao pé-
coxinho até à mesa de jantar, à retrete ou à cama.
– O único problema é que tenho de aprender a equilibrar-me – acres-
centou, com uma expressão compungida. – Ontem à noite esqueci-me, caí
e não consegui voltar a levantar-me. Um dos rapazes sugeriu que pendur-
asse pesos do lado esquerdo do corpo.
Belle sentiu o coração mais leve ao ouvi-lo brincar com o assunto. Re-
ceara que isso nunca acontecesse.
– Gostarias que eu arranjasse um sítio para morar aqui perto? –
perguntou-lhe, um pouco mais tarde. – Poderia vir ver-te todos os dias, e
Mister Gayle disse que talvez eu pudesse conduzir um pouco.
– Não me parece que seja muito boa ideia – respondeu Jimmy,
surpreendendo-a com a súbita dureza do tom. – Já estiveste longe de casa
tempo que chegue, e de qualquer modo eles não iam querer que viesses cá
todos os dias.
Muito antes de haver luz, quando ainda não se ouvia qualquer som na
rua, Belle levantou-se, vestiu-se na casa de banho, escovou o cabelo,
prendeu-o num rolo e desceu as escadas. Era véspera de Natal, o dia mais
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atarefado no pub, e Garth e Mog não tardariam a descer para se preparar-
em. A ideia do encontro amedrontava-a. Sabia que, fosse qual fosse a
mentira que inventasse, não conseguiria enganar Mog.
Por isso pôs um avental e preparou a mesa para o pequeno-almoço,
com a intenção de ser corajosa e fingir que só se levantara mais cedo para
os ajudar. Preparou também uma bandeja para Jimmy, porque se lhe
levasse o pequeno-almoço à cama, quando ele descesse, horas mais tarde,
Mog e Garth estariam demasiado atarefados para reparar fosse no que
fosse.
Estava a fritar bacon e ovos quando Mog desceu.
– Oh, querida! Que agradável surpresa. Mas devias ter ficado na cama
e deixado isso para mim – disse, com o rosto esguio enrugado num sorriso.
– Como está o Jimmy?
– Ainda estava a dormir quando desci – respondeu Belle. – Vou levar-
lhe o pequeno-almoço.
Levou a bandeja de Jimmy para cima enquanto Garth e Mog se sen-
tavam à mesa. Jimmy continuava deitado na mesma posição em que ela o
vira na noite anterior, como se não se tivesse mexido.
– O teu pequeno-almoço, Jimmy – disse ela secamente. – Talvez fosse
boa ideia ficares aqui, por enquanto. Não quero que a Mog perceba que
aconteceu alguma coisa e fique preocupada.
– Desculpa, Belle. O que eu disse foi imperdoável.
Uma parte de si queria aceitar as desculpas e dizer que sabia que o que
ele dissera não viera do coração. Mas a outra parte estava ainda demasiado
magoada para perdoar assim tão facilmente.
– Nada é imperdoável com o tempo, e algumas provas de que não es-
tavas a falar a sério – disse, cautelosa. – Mas neste momento estou muito
magoada, portanto senta-te e come para que eu possa ir tratar das minhas
outras tarefas.
– Por favor, fica e fala comigo – pediu ele.
– Não posso, há muito que fazer lá em baixo. Compreendo que te
sentes só meio homem e que precisas de tempo para te resignares com o
que aconteceu. Mas pôr-me à margem e ser mau para mim por causa do
meu passado não é a melhor maneira de lidar com o assunto. Falamos mais
tarde.
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*
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– E depois havia o Pai. Chamávamos-lhe assim não por ser velho, mas
porque toda a gente lhe confessava coisas. Uma vez disse-lhe que ele devia
ter ido para padre, mas respondeu-me que gostava demasiado de mulheres.
– Que coisas tinhas tu para confessar?
Jimmy encolheu os ombros.
– Ter medo antes de saltar da trincheira, pensar muitas vezes no meu
pai.
– A sério? – exclamou Belle, surpreendida. – Nunca, nem uma única
vez, me disseste que pensavas nele.
– E não costumava pensar, até ir para lá. Suponho que teve qualquer
coisa que ver com conhecer tantos géneros diferentes de homens que fa-
lavam muitas vezes sobre os pais. Sempre acreditei que o meu era podre
até ao caroço por ter abandonado a minha mãe, mas talvez essa história
tenha dois lados, como quase todas as histórias.
– Alguma vez falaste com o Garth a respeito dele?
– Não. Ele iria tomar partido pela minha mãe, e não havia mais nin-
guém com quem falar.
– Também eu penso muitas vezes no meu pai. Mas como a Annie nem
sequer se mantém em contacto comigo, é pouco provável que queira falar
dele. Quem me dera que a Mog soubesse.
Jimmy sorriu-lhe.
– Há de ser um homem bom e generoso, e criativo, também. Não her-
daste nada disso da tua mãe.
O elogio fez-lhe crescer lágrimas nos olhos, mas não achava que o
merecesse. De repente, sentiu que tinha de revelar pelo menos uma parte
do seu segredo.
– Esse homem que te salvou, disseste que se chamava Carrera. Era
esse o apelido do Étienne – disse.
– O quê? O homem que te levou para a América?
– Prefiro recordá-lo como o homem que ajudou o Noah a encontrar-me
em Paris.
Jimmy ficou silencioso por um instante, a olhar fixamente para ela.
– Naquele dia, em Verdun, perguntou se só me chamavam Red na
tropa, depois de ouvir os outros tratarem-me por Red Reilly. Agora que
penso nisso, foi uma pergunta estranha; normalmente, ninguém quer saber
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qual é o nosso verdadeiro nome. Até me perguntou o que fazia eu antes da
guerra. Contei-lhe que me chamava Jimmy e trabalhava num pub; referi o
teu nome e disse que tinhas perdido o bebé. Se era o mesmo homem,
porque foi que não me disse nada?
– Talvez só tenha feito a ligação mais tarde – sugeriu Belle. – Ou en-
tão achou melhor não trazer o passado de volta, uma vez que não estavas
sozinho. Falei-lhe muito a teu respeito durante a viagem para a América, e
claro, dois anos mais tarde soube pelo Noah que nunca tinhas desistido de
me encontrar.
– Estás a dizer que me salvou para ti?
– Duvido que tenha encarado as coisas dessa maneira. Provavelmente,
lembrou-se de te ter conhecido em Verdun, naquele dia, e não foi capaz de
te deixar indefeso.
Jimmy bufou, com um som que foi quase um assobio. Belle não sabia
o que dizer mais; quando olhou para ele, quase conseguiu ouvi-lo pensar, a
assimilar todas as facetas da situação.
– Achou que me devia a minha vida? Porquê? Eu não tinha feito nada
por ele. Arriscou-se a ser castigado por ter parado para me ajudar. Duvido
que o comandante dele tivesse considerado uma prioridade salvar um
Tommy quando havia dúzias de franceses feridos espalhados por todo o
lado. Tens de ter sido tu a razão. Ele amava-te!
Belle sentiu o estômago revirar-se. Desejou não ter dito nada. Jimmy
era um pensador, ia ficar a remoer aquilo, a dar voltas ao assunto, e ia
querer respostas para tudo o que não conseguisse perceber.
– Sabes muito bem que ele sempre teve remorsos por me ter levado
para Nova Orleães – disse. – Foi precisamente por isso que foi a Paris
ajudar o Noah a encontrar-me. Diria que isso prova que se preocupava
comigo, mas não havia mais nada entre nós. Nunca tinha ficado tão feliz
por ver alguém como quando ele arrombou a porta do sótão onde estava
presa. Mas depois disso, tudo o que queria era voltar para Inglaterra, para
te ver a ti e à Mog.
– É curioso teres dito tão pouca coisa a respeito dele depois de voltares
– observou ele, com a voz carregada de suspeita. – Um homem salva-te a
vida e tu nem sequer queres manter-te em contacto com ele?
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– Claro que teria querido, mas tive medo de que tu não gostasses. Oh,
Jimmy, não queiras fazer disto uma coisa que não é. Eu tinha acabado de
passar por várias espécies de inferno, estava em casa, novamente a salvo,
queria esquecer tudo e começar de novo.
Jimmy estendeu a mão para a muleta e levantou-se do cadeirão.
– Acho que vou para a cama – disse.
«Isso mesmo, agita as coisas e depois vai esconder-te para remoer»,
pensou ela, mas não teve coragem de o dizer em voz alta. Era o que ele
fazia constantemente, e ela sentia que não ia aguentar muito mais; era
como caminhar sobre cascas de ovos.
– Quem me dera ter o meu antigo Jimmy de volta – disse tristemente.
– Não imaginas as saudades que tenho dele.
Jimmy apoiou-se na muleta e olhou de cima para ela, a boca contor-
cida num esgar de escárnio.
– Como podes esperar que seja o mesmo quando me falta metade do
corpo? Tu também não és a mesma Belle com quem casei. Que desculpa
tens para isso? – Voltou-se e atravessou a sala. Belle ficou a vê-lo afastar-
se, com o coração cada vez mais pesado.
CAPÍTULO 25
Depois de Belle sair, o Dr. Towle ficou por um instante a olhar para as
notas que tinha tomado enquanto falava com ela. Belle sempre o intrigara,
desde que ela e a tia tinham ido morar para uma casa a poucas portas de
distância da clínica depois de se terem mudado para Blackheath. A sua
beleza era o bastante para a tornar notada, mas era mais do que isso; não
tinha nada da patetice ameninada a que estava habituado, olhava as pessoas
nos olhos e tinha uns modos desenvoltos que ele achava muito atraentes.
Durante todo o tempo que tivera a loja de chapéus em Tranquil Vale,
fora um tema de conversa regular para ambos os sexos. Era admirada pelo
seu talento, elegância e beleza, mas havia mais qualquer coisa que nin-
guém conseguia verdadeiramente definir. Havia quem dissesse que era
sofisticada e usasse palavras como «confiante», «segura» e até «cheia de
raça» para a descrever, mas até Mrs. Towle, conhecida pela maneira inci-
siva como avaliava as pessoas, o mais que conseguia dizer era que achava
que Belle «tinha um passado».
Era muito admirada pelo trabalho voluntário que fizera no Herbert
Hospital. Constara que era conscienciosa e competente, mas quando re-
solvera ir para França, muita gente tinha achado que conduzir ambulâncias
não era ocupação adequada para uma jovem casada. A venenosa Mrs.
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Forbes-Alton ateara as chamas afirmando que ela lhe extraviara a filha, e a
coscuvilhice subira de tom. Mais tarde, depois da trágica morte de Mir-
anda, aparecera no jornal aquele insidioso artigo a respeito dela, e as
pessoas tinham-no feito circular com uma alegria malévola.
O Dr. Towle lembrava-se do julgamento e subsequente execução do
tal Kent. Na altura, sentira uma enorme compaixão por todas as suas víti-
mas inocentes, e ficara chocado ao descobrir que Belle Reilly fora uma
delas. No entanto, como fizera notar à mulher, que infelizmente era quase
tão virulenta como Mrs. Forbes-Alton na condenação de Belle, fora precisa
muita coragem para sobreviver e certificar-se de que o criminoso era
julgado.
Que podia ele então dizer ao marido para o arrancar ao marasmo? Ser-
ia lícito insinuar que podia perder a sua encantadora esposa se o não
fizesse?
Belle perdeu a visita do médico a Jimmy porque saíra para tentar com-
prar um pouco de carne e tivera de esperar na fila uma hora só para
descobrir, quando chegou ao balcão, que o talhante já não tinha mais nada
para vender. Mas conseguira alguns ovos e queijo, e planeava fazer uma
saborosa empada para o jantar.
Estava cansada e cheia de calor, e quando entrou na cozinha e viu
Jimmy sentado no sítio onde o deixara ao sair, já tinha na ponta da língua
um comentário mais azedo. Mas, para sua grande surpresa, ele ergueu os
olhos e sorriu-lhe.
– Estás com um ar arrasado – disse. – Tiveste de ficar muito tempo na
fila?
Era a primeira vez que ele dava sequer a entender que sabia que havia
filas para comprar comida, quanto mais expressar preocupação.
– Mais de uma hora, e não consegui nada no talho. – Belle suspirou. –
Espero que esta noite o Garth consiga arrancar a alguém um coelho, ou
coisa que o valha.
Dirigiu-se ao lava-louça, encheu um copo de água e bebeu-o de um
trago.
– Onde está a Mog? – perguntou.
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– Saiu para ir à reunião de costura e o Garth está a dormir uma sesta. O
doutor Towle passou por cá.
– Ah, sim? – disse ela. – E quem lhe abriu a porta?
– Eu. Sei abrir portas – replicou Jimmy, mas não houve na resposta a
habitual nota de sarcasmo. – Deu-me um sermão sobre apatia.
Belle sentou-se à mesa, compondo a adequada expressão de surpresa.
– Disse que preciso de sair mais, e que devia praticar com a perna de
pau todos os dias, usando-a por períodos cada vez mais prolongados.
– E que disseste tu a isso?
– Que ia fazê-lo.
Dessa vez, a surpresa de Belle foi bem real.
– Ficaríamos todos muito satisfeitos – disse. Queria acrescentar que
andava a dizer a mesma coisa há várias semanas e que ele a ignorara, mas
ficou calada.
– Suponho que tenho sido patético – admitiu ele. – O doutor explicou-
me que os músculos do que me resta do braço e da perna ficarão cada vez
mais fracos se não os usar. E apanhar sol vai fazer-me sentir melhor.
– E que tal praticar um bocadinho agora? – sugeriu Belle. – Podias
fazê-lo no pub, quando está fechado. Lá não há muitos obstáculos para
contornar.
– Agora não. Começo amanhã, com o Garth por perto para me ajudar.
Belle achou que aquilo era uma estratégia dilatória.
– Vou fazê-lo, Belle. Prometo – disse ele. – Tu não és suficientemente
forte para me apoiar. E estarei melhor com o Garth.
Eram quase nove quando o médico chegou, e durante esse tempo Belle
precisara de mudar a cama mais duas vezes. Começara a chover, e com as
janelas fechadas sabia que o quarto devia cheirar como o pátio de uma
quinta.
O Dr. Towle estava despenteado, com a barba por fazer e os olhos
avermelhados. Claramente, também ele passara a maior parte da noite a pé.
Mas mesmo assim conseguiu sorrir a Belle e apresentar as suas condolên-
cias antes de examinar Jimmy.
– Disse-me Mrs. Franklin que o seu marido adoeceu pouco depois do
funeral do tio, ontem à tarde – afirmou, perguntando em seguida quanto
tempo tinham demorado a febre e os vómitos a aparecer.
– Não podemos levá-lo para o hospital? – perguntou Belle.
– Receio que não haja camas disponíveis em parte alguma – respondeu
o médico. – E mesmo que houvesse, sujeitá-lo a uma deslocação agora só
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serviria para agravar o estado em que já se encontra. Infelizmente, Mrs.
Reilly, já está a fazer tudo o que é possível fazer para o ajudar.
– Vai morrer? – sussurrou ela. Jimmy parecia estar inconsciente, mas
não podia ter a certeza.
O Dr. Towle fez um gesto que implicava que estava nas mãos de Deus.
– Cerca de um terço dos pacientes que observei conseguiu recuperar,
mas nenhum deles tinha desenvolvido febres tão altas como o seu marido.
Com qualquer outra doença, a juventude e a força são uma grande vant-
agem, mas com esta parece acontecer exatamente o contrário.
– Não podemos perdê-lo também a ele! – Belle olhou para o médico,
horrorizada. – Não há nada que possa dar-lhe?
– Bem gostaria que houvesse – disse ele, com uma expressão sombria.
– Tente fazê-lo beber água morna com um pouco de brandy. Lave-o com a
esponja, mantenha o quarto quente mas bem ventilado. É tudo o que posso
aconselhar. Volto a passar logo à noite para ver como ele está.
Durante todo esse dia, Belle lutou para obrigar Jimmy a beber, e
quando o líquido lhe escorreu pelos cantos da boca porque ele não queria
ou não conseguia engolir, passou a usar um conta-gotas de vidro que foi
buscar ao armário dos medicamentos para lhe espremer um pouco de água
misturada com brandy por entre os lábios cerrados. Jimmy tão depressa
perdia como recuperava a consciência, entrava em delírio e dizia coisas
sem sentido. Mas, de vez em quando, pronunciava algumas palavras que
ela conseguia compreender.
«Olhei tantas vezes para a tua fotografia que ela acabou por estalar»
foi uma dessas coisas. Belle sabia que estava a referir-se à fotografia dela
tirada no dia em que tinham casado. Dera por falta dela depois de ele ter
partido para França. «Os outros homens diziam que nenhuma mulher podia
amar um ruivo» foi outra.
Mas sobretudo dizia os nomes de amigos que tinha feito na tropa, e
embora ela não soubesse quem eram, estava contente por ele estar a pensar
nos bons tempos.
O Dr. Towle voltou nessa noite, como prometera, elogiou Belle por ter
usado o conta-gotas e pareceu satisfeito por saber que Jimmy não voltara a
vomitar.
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– Esta doença não apresenta um padrão definido – disse. – Alguns pa-
cientes que parecem estar às portas da morte conseguem recuperar. Outros
que dão a impressão de não estar assim tão mal acabam por morrer. É ex-
tremamente frustrante e quem me dera que houvesse mais qualquer coisa
que pudesse fazer.
– A sua visita é um conforto – respondeu Belle. – Quando ele está
sossegado, como agora, tenho esperança.
– Consegue aguentar mais uma noite com ele, Mrs. Reilly? Parece es-
gotada. Posso tentar arranjar uma enfermeira para a ajudar.
– Penso que é melhor ser só eu a cuidar do meu marido – respondeu
Belle, a lembrar-se da autêntica fera que ele lhe tinha enviado quando per-
dera o bebé.
– Bem, tente então dormir um pouco enquanto ele está tranquilo –
disse o médico. – Agora tenho de ir, tenho mais dúzias de doentes para vis-
itar. Mas voltarei de manhã, e esperemos que tenha havido algumas
melhoras.
Belle desceu à cozinha para um jantar tardio de pão e queijo que Mog
lhe tinha preparado, mas mal acabou de comer voltou para junto de Jimmy.
Conseguiu dormitar no cadeirão durante cerca de uma hora, mas ao
acordar encontrou-o novamente delirante.
Voltou a limpá-lo com a esponja, verteu-lhe um pouco de água com
brandy na boca, mudou os lençóis que estavam encharcados em suor e ur-
ina e tentou confortá-lo enquanto ele divagava incoerentemente.
– Não conseguia encontrar o nosso objetivo – disse a dada altura,
apertando-lhe a mão com tanta força que a magoou. – Não via nada e
escorregava na lama, e caí em cima dos cadáveres.
Belle calculou que estava a recordar o último ataque. Dizia palavras
que não tinham qualquer significado para ela: barragem progressiva, very
lights, tia Sally e Forby. Mas pouco importava que não fizessem sentido
para ela; tinha a sensação de que ele julgava estar a falar com outro
soldado.
– Um homem foi cortado ao meio por um estilhaço – disse Jimmy
noutra ocasião. – A metade de baixo continuou a correr por um instante.
– Chiu – dizia-lhe ela, e lavava-lhe a testa com água fria. – Agora estás
em casa, nunca mais terás de ver essas coisas.
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Por volta das duas da manhã, ele ficou lúcido durante algum tempo.
Virou a cara para ela e tentou sorrir.
– És tu, Belle! Pensei que estava a sonhar. Disse aos rapazes que tinha
de manter-me vivo para voltar para ti. E voltei.
– Sim, voltaste, e agora tens de beber um pouco disto para te pores
bom – disse ela, e ofereceu-lhe um copo de água. Jimmy até conseguiu le-
vantar a cabeça sozinho e beber um ou dois goles antes de voltar a cair na
almofada.
Fechou os olhos e então Belle sentiu que tinha dobrado a esquina e es-
tava a dormir, de modo que voltou ao cadeirão. Cerca de uma hora mais
tarde tornou a levantar-se ao ouvi-lo fazer um estranho som estrangulado
com a garganta. Aproximou um pouco mais o candeeiro e viu que a cara
dele se tornara mais escura, como acontecera à de Garth.
– Oh, por favor, não! – exclamou. Procurou-lhe o pulso e verificou que
estava mais fraco, e quando lhe pousou a mão na testa sentiu-a escaldar.
Começou a lavá-lo com a esponja, com gestos frenéticos, enquanto falava
com ele e lhe suplicava que voltasse. Mas não teve resposta. Jimmy entre-
abria os olhos de vez em quando, mas nem sequer tentava falar.
– Jimmy, tens de acabar com isto – disse na voz firme que usava para
falar com os soldados na ambulância. – Podes melhorar, tens de melhorar.
Fá-lo por mim, não me deixes sozinha.
De repente, Mog estava junto dela. De pequena estatura como era,
parecia encher o quarto de determinação.
– Vá lá, Jimmy – disse. – Não apoquentes a Belle desta maneira. Nós
as duas precisamos de ti. Amamos-te.
Ele abriu os olhos.
– Amo-vos às duas – disse, num murmúrio rouquejante. – Cuidem
uma da outra, não posso ficar mais tempo.
Belle olhou para Mog, horrorizada, e viu pela expressão dela que sabia
que ele estava a morrer.
– Nunca to tinha dito, mas penso em ti como meu filho – disse Mog. –
E orgulho-me muito de ti!
Ele tentou sorrir, mas foi apenas um levíssimo movimento dos lábios.
– Foi como uma mãe para mim – sussurrou. – Não deixe a Belle ficar a
chorar por mim. Mantenham-se juntas.
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– Estou aqui, Jimmy – disse Belle. – E estou a dizer-te que tens de lut-
ar contra isto.
Jimmy virou os olhos para ela e agitou a mão como se quisesse
levantá-la para lhe tocar no rosto.
– Minha Belle, minha maravilhosa Belle – disse. – Peço desculpa por
tudo, mas é melhor assim.
Belle pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos.
– Não tens de pedir desculpa, e não é nada melhor assim – disse, com
a voz entrecortada e as lágrimas a caírem-lhe pela cara.
Sentiu a mão dele ficar flácida entre os seus dedos e procurou-lhe o
pulso. Não o encontrou.
– Oh, Mog! – gritou.
Foi Mog quem pegou na mão de Jimmy e a pousou no lençol. Fechou-
lhe os olhos e beijou-o na face.
– Adeus, filho – murmurou. – O Garth e a tua mãe estão à tua espera.
– Não, Jimmy! – soluçou Belle. Escorregou até ficar de joelhos no
chão, com a cabeça apoiada no peito dele. – Havia tanto mais que eu
queria dizer-te.
As duas mulheres ficaram ali durante algum tempo, as duas a chorar, e
então Mog pôs-se de pé e obrigou Belle a levantar-se, embalando-a contra
o peito como costumava fazer quando ela era pequena.
– De noite parece tudo pior – disse suavemente. – Mas ele tinha razão,
foi melhor assim. Detestava sentir-se tão impotente. Sabia que as coisas
nunca iam melhorar. Agora vem para a cama comigo. Não podemos fazer
nada até haver luz.
CAPÍTULO 27
B elle ouviu alguém bater à porta lateral quando ela e Mog estavam sen-
tadas na cozinha, mas ignorou o som. Há uma semana que Jimmy
fora a enterrar, e desde então as pessoas não tinham parado de bater à
porta. Muito ocasionalmente era alguém a oferecer ajuda e solidariedade,
mas a maioria das vezes era só para perguntar quando voltaria o pub a ab-
rir. Havia um letreiro pregado na porta a avisar que o estabelecimento es-
tava fechado devido à morte dos proprietários, mas isso não parecia ser o
suficiente para dissuadir os interessados.
Tanto Belle como Mog estavam a ter dificuldade em aguentar o dia a
dia. O tempo pesava-lhes, sem terem ninguém de quem cuidar. Sentiam-se
vazias e assustadas, e não sabiam verdadeiramente para onde se virar. As
perguntas constantes só serviam para tornar tudo ainda pior, recordando-
lhes que havia decisões a tomar.
As pancadas voltaram a soar, agora mais fortes.
– Pode ser o doutor Towle – disse Mog.
Belle pôs-se de pé com relutante lentidão. Talvez Mog tivesse razão;
no funeral, o médico dissera que passaria dentro de uma semana para ver
como estavam.
– Sim, sim, ja lá vou – murmurou, enquanto se encaminhava para a
porta.
Mas não era o médico: era Noah, que tirou o chapéu ao vê-la e sorriu,
hesitante.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Noah! Que surpresa!
Não o via há pelo menos três anos, mas apesar do casaco cinzento-
claro impecavelmente cortado, do colete, das calças às riscas e dos sapatos
feitos à mão que falavam do seu êxito, o rosto rosado e ainda arrapazado
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tinha uma expressão de tamanha compaixão e simpatia que Belle foi como
que transportada àquela época em Paris em que ele fizera tanto para a
ajudar. O simples facto de o ver fê-la imediatamente sentir-se melhor.
– Espero não ter vindo em má altura… Estava em França e só recebi a
tua carta ontem, quando cheguei – disse. – Nem sei dizer-te como lamento
não ter cá estado para te apoiar a ti e à Mog quando mais precisavam.
Tanto eu como a Lisette chorámos pelas duas quando lemos a tua carta, e
tivemos muita pena de não termos podido dizer um último adeus ao Garth
e ao Jimmy.
A sinceridade dele comoveu-a, e foi como um bálsamo.
– Nem eu queria que viesses cá e arriscasses ser infetado – disse. –
Mas estou muito contente por te ver. Não temos aberto a porta a ninguém,
mas ainda bem que desta vez o fizemos. Entra.
Quando a porta se fechou, Noah passou os braços à volta de Belle e
abraçou-a com força.
– Eu sei que não é suposto um cavalheiro tomar estas liberdades –
disse, num tom brincalhão. – Mas sabes que sempre te considerei como se
fosses da família.
Belle retribuiu o abraço e beijou-o no rosto, que cheirava a creme de
barbear com aroma a sândalo.
– Se tivesse podido escolher um irmão, escolhia-te a ti – disse, com lá-
grimas de emoção a subirem-lhe aos olhos. – Vamos para a cozinha? A
Mog acabou de cozer pão.
Mog apareceu à porta da cozinha, com o avental e a cara enfarinhados.
– Oh, Noah! – exclamou, e correu a abraçá-lo. – É tão bom ver-te.
Ainda hoje de manhã estávamos a dizer que tu saberias o que devíamos
fazer.
– Querida Mog – disse ele, enquanto a abraçava. – Tenho tanta pena
que tenhas perdido o Garth. Sempre pensei que ainda o veria quando ele já
fosse muito velho. Foi um golpe tão cruel para ti e para a Belle perderem
os vossos maridos. Como foi que aguentaram dois funerais?
Tanto por causa do medo que as pessoas tinham do contágio como do
seu próprio desgosto, Belle e Mog tinham decidido que o funeral de Jimmy
seria uma cerimónia muito simples. Tinham servido chá e bolo às poucas
pessoas que tinham insistido em aparecer, mas o número dos que tinham
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estado presentes na igreja e dos que tinham deixado cartas de condolências
e flores era bem elucidativo de como Jimmy fora apreciado.
– Bastante bem, até um dia depois do Jimmy – respondeu Mog, a
limpar os olhos ao avental. – Mas desde então tem sido horrível.
Noah olhou para Belle, que assentiu a confirmar. Não havia nada para
preencher o vazio que os homens tinham deixado. Estava tudo demasiado
sossegado, demasiado arrumado. Até o pub fechado parecia uma censura.
Mas mesmo que sentissem que tinham de o reabrir, havia formalidades
relacionadas com o luto que era preciso observar. Não seria bem visto duas
mulheres que acabavam de enviuvar trabalharem numa taberna.
Mog fizera notar que mesmo que quisessem voltar a abrir, nenhuma
delas tinha força para trazer as barricas da cave, ou qualquer conhecimento
válido a respeito dos vários géneros de cerveja ou de como deviam ser
tratados, porque sempre fora Garth que se ocupara dessa parte do negócio.
Só naquele dia Mog se sentira com forças para cozer pão. Até então,
tinham-se limitado a depenicar a comida que ficara do chá que se seguira
ao funeral de Jimmy, e nenhuma delas tinha apetite.
A presença de Noah na cozinha era como uma luz que se tivesse
acendido. Mog fez chá, colocou o pão acabado de cozer, ainda quente do
forno, em cima da mesa, foi buscar a manteiga e o queijo e afadigou-se en-
quanto contava a Noah como tinham sido as coisas para as duas.
Noah sempre fora um excelente ouvinte. Enquanto Mog falava e servia
o chá, ele assentia com a cabeça, absorvendo tudo.
– Conta-me como foi depois de o Jimmy ter regressado de França –
pediu a Belle, passado algum tempo. – Há de ter sido muito difícil para os
dois.
Belle fez o seu relato o mais sucinto possível. Ela e Mog tinham falado
daquilo vezes sem conta durante toda a semana, e estavam agora no ponto
em que não queriam voltar ao assunto.
– Fala-nos tu da Lisette, da Rose e do Jean-Philippe – disse, depois de
lhe ter contado o mínimo dos mínimos. – Estamos a precisar de coisas
alegres.
– Arrendámos uma moradia no Devon, para fugir de Londres – contou
ele. – Achámos que as crianças precisavam do ar do mar, campos verdes e
menos tristeza à sua volta. Infelizmente, não pude estar sempre com elas,
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tive de ir para França. Mas o Jean-Philippe aprendeu a nadar enquanto eu
estive fora e foi bom ver-lhes as faces brozeadas e a Lisette com um ar
mais relaxado, quando voltei. Ela queria vir hoje, mas eu disse-lhe que era
melhor vir sozinho.
– Nem eu quereria que ela viesse cá passado tão pouco tempo – afirm-
ou Belle. – Uma mãe tem de manter-se saudável pelos filhos.
– A Lisette não tem medo do contágio. – Noah esboçou um meio sor-
riso. – Fez muita questão de que eu vos dissesse que não foi por isso que
não veio e vos convidasse a voltarem comigo e deixarem que ela cuide das
duas durante algum tempo.
– É muito generosa – disse Mog, com o lábio a tremer. – Casaste com
uma das boas, Noah.
– Todos nós casámos. – Noah suspirou. – Sem a influência do Garth e
do Jimmy, no passado, não estaria onde hoje estou, e não teria a Lisette.
Nem preciso de vos dizer como gosto de vocês.
– Sempre foste um mestre da palavra – disse Belle, com um sorriso
carinhoso. Noah nunca sofrera da habitual reticência masculina em dizer o
que lhe ia no coração. Mas era um homem que acompanhava sempre as
suas palavras com ações, e ela sabia que qualquer conselho que lhes desse
naquele dia seria bom.
– Dizem que não sabem para onde se hão de virar – continuou Noah, a
olhar de uma para a outra. – Enquanto vinha para cá, calculei que fosse
esse o caso, e tenho algumas sugestões que talvez possam ajudar.
– O verdadeiro problema é o pub – disse Mog, desanimada. – Não
sabemos durante quanto tempo é suposto mantermos o luto. E não estou a
falar só de vestir de preto, trata-se também de saber quando será aceitável
voltar a abrir a porta. Somos ambas perfeitamente capazes de servir ao bal-
cão, e sabemos alguma coisa a respeito da maneira de ordenar cervejas e
outras bebidas. Mas há muito mais que não sabemos, e o pub precisa de
um homem forte ao leme.
– Sim, claro que precisa – concordou Noah. – Podiam resolver a maior
parte dos vossos problemas contratando um gerente. Desse modo, nen-
huma das duas teria de aparecer no pub. Mas deixem-me dizer-vos uma
coisa, a convenção do luto está também ela praticamente morta. Quase
toda a gente no país chora a morte de alguém. As viúvas têm de continuar
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a trabalhar para alimentarem os filhos, e as pessoas não podem dar-se ao
luxo de gastar o pouco dinheiro que têm em roupas pretas. Compreendo
que ambas considerem apropriado e decente vestirem de negro durante al-
gum tempo e não serem vistas em lugares públicos. Mas, muito sincera-
mente, só os muito velhos, com uma visão muito limitada das coisas, es-
perariam que respeitassem todas essas observâncias nos tempos que
correm.
Fora também essa a opinião de Belle, mas Mog ofendera-se quando ela
a expusera e insistira em que passassem as duas a vestir de preto. Mas
Noah podia dizer-lhe coisas como aquela; para Mog, ele era a fonte de to-
do o conhecimento.
– Um gerente? – disse Mog. – Não tinha pensado nisso. Não será de-
masiado caro?
– Se mantiverem o pub fechado é que não terão qualquer rendimento –
respondeu Noah. – Posso ajudar-vos pondo o anúncio e entrevistando os
candidatos.
– Sim, mas seria muito fácil para um gerente enganar-nos – objetou
Belle. – Sabes como é, Noah, os homens que trabalham neste ramo nem
sempre são os mais honestos. O próprio Garth conhecia os truques todos.
Noah assentiu, a concordar.
– Penso que a verdadeira pergunta que têm de fazer a vocês mesmas é
se querem sequer continuar aqui.
Belle e Mog trocaram um olhar.
– Eu não, particularmente – disse Belle. – Mas claro que tudo isto per-
tence agora à Mog. É ela que tem de decidir.
Mog estava claramente confusa.
– Eu também não quero continuar aqui, depois de tanta tristeza. Mas se
me fosse embora, sentiria que estava a trair a confiança do Garth. Ele
amava esta casa.
– Amava-te mais a ti – fez Noah notar. – Sei que não se importaria
nada se a vendesses. Lembra-te do que ele pensava a respeito de mulheres
e pubs!
Tanto Belle como Mog conseguiram esboçar um débil sorriso.
– Se pudesse, ele nunca deixaria ninguém que vestisse saias transpor
aquela porta – disse Belle.
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– Bem, acabou por ceder um pouco nesse aspeto – observou Mog. –
Servi ao balcão ao lado dele durante a maior parte da guerra. Só porque ele
não podia pagar a um empregado, e no fim acabou por deixar os soldados
trazerem as mulheres e as namoradas.
– Estamos então de acordo em que ele não esperaria que vocês as duas
continuassem a gerir o pub? – perguntou Noah. – E penso que também
sabemos que daria voltas na sepultura se o deixassem falir. Nesse caso,
porque não vender, Mog? Podiam comprar outro pequeno negócio de que
gostassem e que soubessem ambas gerir. Talvez a Belle pudesse voltar a
fazer chapéus? Uma casa de chá? Um pequeno hotel?
– Adorava ter uma casa de chá – admitiu Mog. – Uma dessas casinhas
bonitas com um jardim onde pudéssemos servir chá durante o verão.
Belle sorriu. Não era a primeira vez que Mog falava naquilo, e possuía
sem dúvida todos os talentos necessários para ter êxito. Além disso, era
bom voltar a ouvi-la falar com entusiasmo sobre qualquer coisa.
– E não ias ter saudades das amigas que fizeste aqui? – perguntou.
– Que amigas? – respondeu Mog, com uma nota de amargura. – As
mulheres que me desprezaram quando leram aquelas coisas a teu respeito?
Só voltaram a mudar de atitude mais tarde, quando me tornei útil às suas
diversas causas.
– Foi um episódio vergonhoso – concordou Noah. – E é outra ex-
celente razão para fazer as malas e mudar de sítio. A menos, claro, que am-
bas sintam que têm de estar perto do lugar onde o Garth e o Jimmy estão
sepultados.
– O Garth costumava dizer que essas coisas eram disparates sentiment-
alistas – respondeu Mog tristemente. – E se o Jimmy tivesse sido enterrado
em França, a Belle não poderia visitar a campa dele.
– Assim sendo, não há nada que as impeça. Penso que é preciso terem-
nos crescido os dentes neste negócio para ser verdadeiramente bom nele,
para não falar de ser tão casmurro como o Garth era. Diria que vocês as
duas se sentiriam muito mais felizes numa atividade mais feminina.
– De certeza que não ia gostar de limpar a sanita do pátio das traseiras
todos os dias até ao resto da minha vida – disse Mog, e fez uma careta. Por
um momento, pareceu voltar a ser a Mog dos velhos tempos.
Noah sorriu.
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– Então, querem que contacte alguns agentes para tratar da venda?
Claro que podiam ser vocês as duas a fazê-lo, mas há o perigo de, ao ver-
em duas mulheres, eles tentarem intimidá-las para conseguir um preço
mais baixo.
Belle olhou interrogativamente para Mog, que hesitou apenas um
instante.
– Sim, Noah, agradeço-te que trates disso. Quanto mais depressa ven-
dermos melhor.
Belle levantou-se da cadeira e abraçou-a.
– É muito corajoso e sensato da tua parte – disse. – Podemos arrendar
um pequeno apartamento para viver enquanto decidimos para onde quere-
mos ir e o que queremos fazer.
– Mais vale cedo do que tarde – sentenciou Noah. – Quanto mais
tempo o pub estiver fechado, menos atraente será para um potencial com-
prador. Blackheath é uma boa zona, com um serviço de comboios fiável.
Apostaria a minha reputação em como vai tornar-se um sítio muito na
moda quando a guerra acabar.
– E isso será em breve? – perguntou Belle; Noah havia de saber a ver-
dade verdadeira, e não acreditava que lhe fosse dar uma das versões ideal-
izadas que os jornais publicavam.
– Diria que antes do Natal – respondeu ele. – Perdeu ímpeto, há de-
masiados milhões de mortos, e os Alemães estão tão desmoralizados como
nós. Agora chamam à terceira batalha de Ypres, aquela em que o Jimmy
foi ferido, batalha de Passchendaele, do nome de uma qualquer desgraçada
aldeia completamente destruída que ainda não conseguiram tomar. Gostar-
ia que todo este episódio ficasse conhecido como a Atrocidade de
Passchendaele. Se estivesse na minha mão, mandava chicotear o general
Haig por ter mandado a nata da juventude britânica e da Commonwealth
ser feita em pedaços pelas bombas ou afogada na lama. Foi, e continua a
ser, um sacrifício inútil e estúpido.
– Estiveste lá? – perguntou Belle. A paixão com que dissera aquelas
palavras parecia confirmá-lo.
– Sim, estive na estrada de Menin, entre tanques calcinados, homens,
cavalos e mulas mortos, e testemunhei os espantosos e aterradores bom-
bardeamentos. Quando os obuses explodiam na lama levantavam géisers
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que se erguiam trinta metros no ar, levando consigo pedaços de cadáveres.
Vi milhares de homens que pareciam formigas, vergados sob o peso das
mochilas, a tentar correr naquele atoleiro sob um fogo assassino, e mesmo
assim segurando as espingardas com os braços levantados enquanto as
balas os ceifavam. Por vezes, eram precisos quatro maqueiros para trans-
portar um homem numa distância de trinta metros, tão espessa era a lama.
Houve feridos que ficaram quatro dias com água pelo pescoço, no meio
dos mortos, antes de serem socorridos. E enquanto isto acontecia, os gen-
erais bebiam chá em chávenas de porcelana, a salvo na retaguarda, e
planeavam enviar ainda mais homens para o matadouro.
Belle tapou a cara com as mãos, horrorizada.
– Escrevi uma peça a contar a verdade, mas o jornal não a publicou. –
Noah franziu os lábios, num esgar de nojo. – Mas quando a guerra acabar,
hei de contar tudo num livro. Será um testemunho do horror, da barbarid-
ade e da insensatez desta guerra. E talvez faça as viúvas, as mães, os pais,
os irmãos e as irmãs de dezenas de milhares de homens como o Jimmy
compreenderem como eles foram incrivelmente corajosos.
V era fez uma careta apalhaçada quando Belle lhe abriu a porta.
– Espero que tenhas recebido a minha carta – disse. – Se não rece-
beste, tens dois segundos para fechar a porta.
Belle riu.
– Recebi, e fiquei encantada por saber que vinhas – disse, e estendeu a
mão para a mala da amiga. – Mas desconfio que não recebeste a minha,
que se deve ter cruzado com a tua no correio.
– O quê, aquela em que dizias que não me lembrasse de aparecer à tua
porta? – perguntou Vera, enquanto entrava para o corredor.
– Essa mesmo – respondeu Belle. Mas, consciente de que tinha de con-
tar à amiga o que acontecera a Garth e a Jimmy antes de a apresentar a
Mog, pousou a mala, voltou a abrir a porta e arrastou Vera para o passeio.
– É justo. Gostei de voltar a ver-te, nem que fosse só por um segundo
– disse Vera, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios ao reparar na expressão
ansiosa de Belle. – Vim em má altura?
– Não, não é nada disso, mas preciso de te contar o que aconteceu
antes de voltarmos a entrar. Estava na carta que não recebeste. O Garth e o
Jimmy morreram, vítimas da gripe, com menos de uma semana de
intervalo.
Vera quase deixou cair o queixo.
– Foi há quatro semanas. Já ultrapassámos o pior do choque… bem,
pelo menos aprendemos a aceitar o facto.
– Posso ir-me embora – disse Vera, alarmada. – Lamento muito. Não
quero vir incomodar num momento destes.
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– Não precisas de te ir embora. A Mog ficou tão feliz como eu por
saber que vinhas. – Belle agarrou o braço de Vera, para dar ênfase às suas
palavras. – Um pouco de alegria será bom para ti e para mim.
Vera ficou a olhar para ela por um instante.
– Nem posso acreditar. Tenho tanta pena, Belle – disse. – Oh, meu
Deus! Poderia ter chegado em pior altura?
Belle sorriu.
– Chegas em muito boa altura. Só queria ter-te escrito mais cedo para
vires avisada. Não quero que te sintas constrangida. Anda, vem conhecer a
Mog.
Vera ainda estava hesitante quando Mog avançou para a receber.
– Lamento muito a sua perda, Mrs. Franklin – disse. – A Belle acaba
de me dizer.
– E a mim disse-me como foi uma boa amiga para ela em França – re-
spondeu Mog e, abrindo os braços, avançou para abraçar Vera. – É muito
bem-vinda, minha querida. E trate-me por Mog.
Só então Belle se sentiu mais descontraída. Mog gostava de ter alguém
para apaparicar, e sabia que Vera estava mais do que recetiva a um pouco
de tratamento maternal.
– Só mais dois dias e estamos lá. – Belle suspirou. – Mal posso esperar
por caminhar numa rua, entrar numa loja, ver relva e árvores. E não vai ser
tão bom não ter de ouvir mais pessoas queixarem-se?
Já era abril, e tinham passado por todo o género de condições meteor-
ológicas. A primeira tempestade da viagem, no golfo da Biscaia, fora o
batismo de fogo para Mog, com ondas do altura de campanários a
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abaterem-se sobre o navio. Mas apesar de ter ficado verde, Mog não
chegara verdadeiramente a enjoar.
Tinha havido ventos tão fortes que era impossível caminhar sem ser
agarrada às grades da amurada do navio. Chovera granizo, com pedaços do
tamanho de berlindes a martelarem os conveses com um barulho de
metralha, caíra chuva diluviana e nevoeiro cerrado, e por vezes o sol era
tão forte que em poucos minutos queimava qualquer pedaço de pele
exposta.
À medida que se aproximavam do equador, o calor sufocante tornara
impossível dormir à noite, e também houvera tempestades tropicais.
Agora, porém, o tempo estava mais fresco, ainda abafado no camarote,
mas agradável para passear no convés, quando o vento amainava.
O tédio fora a maior das provações. Os dias pareciam intermináveis,
sem nada que fazer. Ambas tinham levado material para bordar e tricotar,
tinham lido livros, tinham jogado às cartas, tinham esperado pelas re-
feições, mas era o facto de se sentirem fechadas e a falta de exercício físico
que as impedia de gozar o que deviam ter sido umas relaxantes férias.
Havia, claro, muitos outros passageiros com quem conversar: um
grupo de oficiais, todos eles feridos, mas não com tanta gravidade que pre-
cisassem de estar confinados à enfermaria do navio, cerca de quarenta
emigrantes como elas próprias, e alguns neozelandeses que estavam em
Inglaterra quando a guerra estalara e tinham sido obrigados a ficar por
causa dos perigos que uma viagem por mar envolvia naquelas circunstân-
cias. Mas embora a maior parte daquelas pessoas fosse suficientemente
agradável para entreter uma ou duas horas de conversa, nenhuma delas era
muito, muito interessante, e algumas eram até francamente aborrecidas.
Com tudo isto, Belle e Mog, aprisionadas juntas num espaço tão limitado,
acabavam com alguma frequência por chocar. Ambas tinham de fazer um
esforço concertado para dar à outra alguma privacidade e isolamento.
Agora, porém, a viagem estava a chegar ao fim e as irritações passadas
tinham desaparecido. Mog mostrava-se positivamente estouvada, a namor-
iscar com os tripulantes e a sorrir a toda a gente.
Desembarcaram em Auckland com o sol a brilhar no céu. Para elas,
era como um dia de primavera em Inglaterra, e parecia-lhes estranho
pensar que ali era outono. A pequena pensão que encontraram a cerca de
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oitocentos metros do cais era uma bonita casa de madeira, e do quarto que
lhes deram via-se o mar.
Iam ficar cinco dias em Auckland antes de embarcarem no Clansman
com destino à baía das Ilhas, e o prazer de poderem finalmente caminhar
em terra firme era quase inebriante. Todas as pessoas que encontravam
queriam falar com elas a respeito de Inglaterra. Até as nascidas na Nova
Zelândia pareciam ter pais ou avós ingleses ou escoceses. Eram todas
amistosas e prestáveis, sempre prontas a sugerir lugares a visitar, explicar
os costumes locais ou dar conselhos sobre coisas que talvez precisassem de
comprar na cidade porque não conseguiriam encontrá-las em Russell.
Contavam-lhes histórias sobre os Maoris e a sua cultura, um tema que elas
achavam fascinante e sobre o qual nada sabiam. E depois havia as histórias
acerca das dificuldades que os primeiros colonos tinham tido de enfrentar
ao desembarcarem dos barcos de emigrantes, no século anterior. E toda a
gente lhes oferecia sinceras condolências pela morte dos maridos.
De muitas maneiras, a Nova Zelândia não era assim tão diferente de
Inglaterra. Não tinha os edifícios muito antigos, havia muito menos gente,
e não tinham visto lugar algum a que se pudesse verdadeiramente chamar
um bairro degradado, embora os habitantes locais assim os considerassem.
O clima era semelhante, as pessoas tinham o mesmo género de crenças e
prioridades. Mas também ali, no outro lado do mundo, a gripe espanhola
fizera vítimas. A dona da pensão disse-lhes que tinham morrido cerca de
seis mil e setecentas pessoas, mas que, felizmente, todas as que conhecia e
tinham sido contagiadas tinham sobrevivido. Contou-lhes como os trans-
portes públicos tinham deixado de circular por receio de espalhar a doença,
e que carroças, comboios e camiões tinham sido usados como carros
funerários.
Também os efeitos da guerra eram ali muito semelhantes aos que se
tinham registado em Inglaterra. Milhares de neozelandeses tinham-se
alistado pelas mesmas razões que os jovens ingleses, e um grande número
deles morrera. E, tal como em Inglaterra, viram nas ruas de Auckland ho-
mens com membros a menos, cegos e desfigurados. Disseram-lhes que a
maioria daqueles homens, no total mais de quatro mil e quinhentos, tinha
sido ferida em Gallipoli. Outros dois mil e setecentos tinham morrido. Mas
não era tudo: outros tantos tinham sido feridos em França e ainda não
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tinham sido repatriados. Apesar de a maior parte das famílias ter perdido
pelo menos um dos seus membros, os neozelandeses pareciam encarar o
facto com um enorme estoicismo e orgulharem-se muito da coragem dos
seus homens. Belle e Mog ficaram igualmente comovidas pela pena e
solidariedade que todos eles pareciam sentir pelos Britânicos, por terem
tido de suportar não só um número esmagador de mortos e feridos, mas
também os bombardeamentos, a escassez de comida e o racionamento.
– Sinto que cheguei ao lugar onde era suposto viver – disse Mog uma
noite, quando estavam a preparar-se para se irem deitar. – Não adoras o
facto de as pessoas daqui não parecerem ter um cabo de vassoura enfiado
no cu?
Esta fez Belle rir à gargalhada. Mog referia-se à aparente ausência de
distinções de classe. Belle não tinha bem a certeza de ser essa a atitude
geral; afinal, estavam a viver num meio de gente vulgar. Mas esperava que
acontecesse o mesmo em Russell, pois lembrava-se de Vera ficar sempre
surpreendida e divertida com o snobismo das outras condutoras em França.
– É melhor não usares muito a palavra «cu» por estes lados até con-
hecermos melhor as pessoas – avisou.
Vinte minutos mais tarde, Mog e Belle tinham a chave da casa vazia e
estavam a abrir a porta. Como todos os edifícios da povoação, aquele era
de madeira. O exterior era pobre, a precisar urgentemente de reparação e
de uma pintura. Os degraus que davam acesso à porta da frente estavam a
apodrecer e, quando abriram a porta, o cheiro a mofo fê-las franzir o nariz.
Quatro outras portas abriam para o pequeno vestíbulo quadrado, no qual
tinha início uma estreita escada. A divisão à esquerda fora a oficina do sap-
ateiro. Ainda estava juncada de pedaços de cabedal espalhados pelo chão e
continha uma forma de sapateiro e uma comprida bancada de trabalho.
Mas tinha duas janelas, como todas as divisões do piso térreo, uma voltada
para a frente a outra para o lado, o que proporcionaria uma boa iluminação
depois de os vidros serem lavados. A da direita tinha sido uma sala de es-
tar, atravancada com uma mobília velhíssima. Ao fundo, do lado esquerdo,
havia um quarto, também tão cheio de mobílias velhas que era quase im-
possível lá entrar, e do lado direito uma cozinha, antiquada e muito suja.
Mas com uma porta que dava para um quintal, que parecia ter sido bem
cuidado até à morte de Mr. Phillips: havia arbustos, roseiras e uma
pequena horta, tudo afogado pelo mato e pelas ervas daninhas.
O piso superior era constituído por uma única e ampla divisão com
duas janelas no teto, uma em cada extremo. Excetuando uma velha cama
de ferro com uma enxerga manchada, estava completamente vazia, pelo
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que assumiram que o proprietário tinha vivido durante muitos anos no an-
dar de baixo.
– Consigo viver com a latrina exterior – disse Mog, apesar de estar a
torcer o nariz. – Mas o que não aguento é ter de ir buscar água à bomba lá
fora. E a mobília é toda para queimar. Mas a casa é espaçosa e clara. E os
soalhos parecem em bom estado. – Deu um salto, para ilustrar o que
afirmava.
– Suponho que podemos construir uma casa de banho nas traseiras ou
num dos lados, e um canalizador deverá ser capaz de trazer água também
para a cozinha – disse Belle, pensativa. – E podíamos mandar fazer um al-
pendre ao longo da parte da frente. E pôr uma dessas vedações de tabuin-
has brancas. Ficaria muito bonito. E podíamos usar a oficina: tu para fazer
vestidos, eu para fazer chapéus, e também podíamos vender artigos de
retrosaria.
Estavam a olhar uma para a outra, a especular, quando ouviram Vera
chamar.
– Vem cá acima – gritou Belle.
Vera subiu os degraus a correr.
– Costumava vir cá montes de vezes quando era miúda. Mister Phillips
fazia sapatos para toda a gente – disse, ofegante. – A mulher era simpática,
estava sempre a apaparicar-nos porque eles não tinham filhos. Morreu
antes da guerra. A casa está com um aspeto horrível.
– Mas tem possibilidades – declarou Mog, com o rosto pequeno a bril-
har de entusiasmo. – Mister Henderson acaba de nos dizer que recebeu
uma carta do sobrinho que herdou a casa a dizer que aceitará qualquer
coisa por ela porque está a precisar do dinheiro. Vou ter de fazer uma
oferta.
– Bem, mais ninguém a vai querer. Ficou toda a gente muito em baixo,
depois da guerra e da gripe, e ninguém tem dinheiro disponível.
Era a primeira vez em toda a sua vida que Mog tinha dinheiro, muito
mais dinheiro do que alguma vez sonhara. Mas mesmo assim não
tencionava gastá-lo precipitadamente.
– Vai ser muito difícil arranjar alguém para fazer umas reparações? –
perguntou. – Precisamos de uma casa de banho e de um fogão na cozinha
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para termos água quente. E todo o exterior e o telhado precisam de ser
impermeabilizados.
– Vai haver homens a fazer fila à porta para conseguirem o trabalho –
respondeu Vera. – Mas no que precisam de pensar é se querem ficar em
Russell. Não estão cá há tempo suficiente para terem a certeza.
– Soube que queria cá ficar no instante em que pus o pé fora do barco
– disse Mog. – Sinto que é o lugar certo para mim. Mas não posso falar
pela Belle. Vocês, os jovens, precisam de estar num sítio onde aconteça
mais qualquer coisa.
Vera olhou interrogativamente para Belle.
– É isso que sentes?
– Como disseste, não estamos cá há tempo suficiente para eu ter se-
quer pensado nisso. Mas gosto de paz e sossego. De qualquer modo, é a
Mog quem tem dinheiro para comprar a casa, não eu – acrescentou, com
um encolher de ombros. – A decisão é dela.
– Sim, sou eu que tenho de decidir se compro ou não a casa – disse
Mog. – Mas o que estava a tentar dizer é que isso não significa que tu ten-
has de ficar aqui amarrada, Belle. Será a tua casa, mas tens de planear o
que queres fazer com a tua vida. Detestava pensar que tinhas ficado
comigo por sentires que era a tua obrigação.
Belle olhou para ela de testa franzida.
– Mas planeámos criar um negócio juntas.
– Eu sei, e gostaria muito que acontecesse, claro que sim. Mas aqui
não há homens novos, Belle. Não quero que acabes transformada numa
velha solteirona. Gostava de ver-te casar outra vez.
– Então vais ter de esperar que as galinhas tenham dentes – declarou
Belle, com uma gargalhada. – Nunca mais vou amar outro homem.
– Também eu penso o mesmo, agora. Mas isso é porque só somos
viúvas há poucos meses. Eu estou a ficar velha, mas tu és nova e bonita. O
Jimmy não havia de querer que passasses o resto da tua vida sozinha.
– A Mog não tem razão quando diz que aqui não há homens novos –
interveio Vera. – Os meus irmãos vão voltar em breve, e há mais um par
de rapazes que também devem vir. Mas não te vejo a apaixonares-te por
nenhum deles. Olha para mim, sou um exemplo do que acontece às flores
de Russell! Já sou considerada uma velha solteirona!
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– Nesse caso, talvez vocês as duas devessem desandar para Auckland
– disse Mog.
Vera riu.
– Estou muito tentada a fazer isso mesmo. A mã dá comigo em doida.
Já era suficientemente mau antes de eu ir para França, mas tornou-se muito
pior desde que voltei. Não quero ficar a trabalhar para todo o sempre na
padaria.
E começou a cantar uma canção que dizia: «Como é que vou mantê-
los na quinta depois de terem visto Paris?»
Belle riu à gargalhada.
– Estás a inventar isso?
– Nem pensar. Uns americanos do hospital costumavam cantá-la.
Tinham-na ouvido num musical em Nova Iorque antes de embarcarem
para França. E também a ouvi num gramofone. Parece que é muito popular
na América. Mas essa é outra coisa que vais descobrir aqui: estamos muito
isolados do resto do mundo. Música, arte, livros novos, não chegamos a
saber nada da maior parte dessas coisas.
– A mim não me faz diferença – disse Mog.
Vera suspirou e fez um ar envergonhado.
– Arrependo-me de não as ter avisado, mas é que, sabem, eu própria só
me apercebi depois de voltar, e nessa altura já vocês vinham a caminho.
Mog passou um braço pelos ombros de cada uma das raparigas e
puxou-as para si.
– Pois bem, agora estamos cá, e eu gosto. Mas se é demasiado aborre-
cido para vocês as duas depois de terem visto Paris, então têm de encontrar
um lugar de que gostem mais.
– Não vou sair daqui a correr sem primeiro tentar a sério – disse Belle,
num tom cheio de firmeza. – Também gosto deste lugar, e antes de
começarmos a considerar alternativas, olhemos objetivamente para o que
podemos fazer aqui.
Passaram cerca de uma hora a dar a volta à casa, e Mog fez uma lista
das reparações que tinham de ser feitas.
– Vou pensar nisto durante uns dias – disse, enquanto fechava a porta
depois de saírem. – Preciso de saber quanto vale e quanto vão custar as
obras antes de decidir.
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Quando, nessa noite, foi para a cama com Mog, depois de Étienne ter
regressado ao seu quarto no pub, Belle pensou que o encontro tinha corrido
muito bem.
Mog ficara espantada ao ver aparecer-lhe em casa o homem de quem
tanto ouvira falar no passado e que julgava morto. Por momentos, ficara a
olhar para ele de boca aberta, mas depressa recuperara e começara a dis-
parar perguntas. Porque não escrevera a avisar? Não seria um pouco es-
tranho fazer uma viagem tão grande movido por um capricho? Tencionava
ficar na Nova Zelândia? E porque fora dado como morto, afinal?
Étienne enfrentara o interrogatório com gentil encanto. Primeiro, ex-
plicara como fora ferido, e depois apanhara a gripe, e expusera as razões
que tinham levado Noah a convencer-se de que morrera.
– Eu e o Noah mantivemo-nos sempre em contacto depois de a Belle
ter voltado para junto de vocês – dissera, contando-lhe toda a história. –
Foi através dele que soube que tinham mudado para Blackheath e que a
Belle tinha casado com o Jimmy. Foi uma coincidência extraordinária ter
encontrado o Jimmy em França. Ele disse coisas que me fizeram perceber
quem era, e se estivéssemos sozinhos, talvez lhe tivesse dito quem eu era,
mas uma tal conversa era impossível estando ele com outros homens.
– Extraordinário também foi o facto de estar presente no sítio onde a
granada rebentou com ele – dissera Mog, secamente.
– Nem por isso. franceses e ingleses combatiam muitas vezes lado a
lado – respondera ele, ignorando o sarcasmo. – Tenho a certeza de que ele
lho disse. Na altura, pareceu-me ter visto o Jimmy na noite anterior, à dis-
tância. Talvez isso significasse que estava inconscientemente à procura
dele. Não vou fazer comentários a esse respeito, mas julgo que ele deve
ter-lhes dito como foram as coisas naquele dia, com a chuva e um nevoeiro
tão cerrado que não se via nada a mais de um par de metros de distância.
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Os nossos soldados e os britânicos misturaram-se durante o ataque porque
tínhamos de contornar as enormes crateras feitas pelos obuses. Devo ter
visto mais de cem homens mortos ou feridos naquele dia, ingleses e
franceses. Mas quando aquele foi atingido tão perto de mim e o capacete
caiu na lama, reconheci-o e ajudei-o.
– Porquê? – perguntara Mog. – O Jimmy disse-nos que não era per-
mitido ajudar os feridos.
– Por causa da Belle, claro – respondera ele, e encolhera os ombros. –
Se houvesse maqueiros por perto, tê-los-ia chamado. Mas eles não podiam
sair da trincheira debaixo de fogo tão intenso, e eu não podia deixá-lo
naquele buraco cheio de água.
Depois disto, Mog mostrara-se muito mais simpática. Servira o guis-
ado de borrego que tinha feito para o jantar e fora ela que lhe contara como
tinham lidado com os ferimentos de Jimmy e, finalmente, como ele e
Garth tinham morrido vitimados pela gripe.
Pela maneira como Mog falara com Étienne, Belle convencera-se de
que não achara nada de suspeito no aparecimento de um velho amigo. Mog
confiava totalmente no discernimento de Noah, e uma vez que fora ele o
causador de tudo aquilo, isso significava que Étienne devia ser bem
recebido.
Tinham então falado a respeito da casa, e dos planos que ela e Belle
tinham feito para criar um negócio de modista, chapelaria e retrosaria. A
única pergunta que Mog disparara pela segunda vez fora sobre as razões
que o tinham levado a viajar até à Nova Zelândia.
– Mais ou menos as mesmas que a vocês as duas – respondera ele,
com um encolher de ombros muito gaulês. – A quinta tinha sofrido muito
durante a minha ausência, e em França continua a haver demasiada dor e
raiva. Perdemos muito mais homens do que os Britânicos. Eu já andava a
pensar num novo começo num sítio qualquer. Então, quando o Noah en-
trou em contacto comigo e me contou tudo o que lhes tinha acontecido e
que tinham emigrado para aqui, a Nova Zelândia pareceu-me um bom
lugar para recomeçar. O clima da ilha do Norte não é muito diferente do de
França. Posso comprar uma quinta aqui, ou dedicar-me à pesca, que é
outra coisa de que gosto. De que outra maneira havia eu de começar senão
indo para um sítio onde já tinha uma velha amiga?
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Étienne deixara-as pouco depois, e quando Belle o acompanhara à
porta, ele puxara-a para fora e beijara-a. Fora exatamente como o primeiro
beijo no hospital, uma chama a inflamar-se dentro dela. Belle soubera en-
tão que a parte mais difícil de tudo aquilo seria esconder os seus sentimen-
tos por ele. Não iam poder ter o namoro casto e prolongado que se esper-
ava de uma viúva recente. Ela queria-o já, queria estar nua nos seus braços,
mergulhar no êxtase com ele.
– Amanhã havemos de arranjar forma de ficarmos sozinhos –
sussurrou-lhe junto ao pescoço, enquanto lho beijava. – Amo-te, Belle, e
juntos vamos contornar todos os obstáculos.
Belle voltara para dentro e encostara-se à porta fechada, para se re-
compor antes de enfrentar as inevitáveis perguntas de Mog.
Não havia verdadeiros obstáculos. Eram os dois livres, embora
houvesse aquelas hipócritas ideias a respeito da viuvez a que as pessoas
davam tanta importância. Belle não se importava realmente que as pessoas
a vissem como uma pega leviana que dançava em cima da campa do
marido enrolando-se com um francês, mas preocupava-a a possibilidade de
qualquer comportamento menos próprio se refletir negativamente em Mog.