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Lágrimas de Outono

Lágrimas de Outono

Amanda Bonatti

É exatamente disso que a vida é feita: de momentos! Momentos os quais temos que
passar, sendo bons ou não, para o nosso próprio aprendizado, por algum motivo.
Nunca esquecendo do mais importante: nada na vida é por acaso...

Chico Xavier
PRÓLOGO - PARA SEMPRE OUTONO

Quando o outono se aproximava, eu sentia que era chegada a hora de me deixar cair,
assim como as folhas do quintal. Para elas tudo parece ser tão calmo. Um dia
simplesmente caem, numa dança girante pelo ar e deitam-se na grama, repousando, sem
dor.

No chão, folhas e flores mortas em compridas mantas, algumas secas, outras, ainda
intactas, coloriam um tapete silencioso, movimentando-se ao véu do vento, em diversos
tons de marrom, rosa e verde, pincelados pelo Ipê Amarelo.

Podia ficar por horas olhando o céu, até se tornar vaga escuridão. Não pensava em nada,
ou pensava somente as mesmas coisas, no entanto, não me dava conta disso. As horas
passavam e não me levavam a lugar algum.
Cada vez mais sentia meu coração enrijecer entristecido e meus olhos feridos não mais
enxergavam a beleza das cores e da poesia no quintal. Quantas vezes, à sombra da velha
árvore de carvalho deitei meu corpo fraco, e pensei - será que as folhas secas caem por
estarem desoladas?

Quantas noites adormeci com o pensamento de que deve ser assim que se sente uma folha
seca quando cai ao chão, desprendendo-se da sua fonte nas frias tardes de outono. Deve
saber que é chegada a hora. É doloroso resistir ao frio da solidão.

A solidão que então, era minha própria morada, parte de mim, prendia-me com seus
braços fortes, sufocantes e deixava-me no escuro. Em momentos como estes, em que a
angústia e dor dilaceravam-me por dentro, eu pensava em mamãe, em sua voz doce, em
como gostaria de lhe dar um abraço, só mais uma vez.

Vou ao longe com a lembrança da menina que um dia fui; tentando buscar um resquício
felicidade. No entanto, por mais que tentasse, não conseguia. A alegria me fora arrancada
como uma planta que se retira até a raiz do solo. Quisera eu conseguir entender, perdoar.
Quisera eu, ser como mamãe, uma linda flor do outono, e talvez eu não sobrevivesse à
próxima estação

CAPÍTULO 1

MEUS OITO ANOS – 1940

“Fica sempre um pouco de perfume

nas mãos que oferecem rosas.”

Judite J Vilela.
A primeira lembrança que tenho da minha infância é o jardim da casa onde nasci, onde
dei meus primeiros passos, por entre as flores e o imenso gramado verde, onde corri, com
os pés descalços, sentindo a umidade da terra molhada pela chuva recém caída e o quebrar
das folhas secas, quando o outono transformava a paisagem do jardim.

Lembro-me perfeitamente da casa, grande e antiga, feita de madeira, com janelas


arredondadas e uma grande varanda que dava acesso à sala. Era uma casa bonita, simples,
mas encantadora. A casa havia pertencido ao meu avô e mamãe a herdara, por ser filha
única. Ela sempre nos contava que a casa não era propriamente a mesma, papai havia
reformado, pintado, mas ainda era a casa da infância de mamãe, por isso ela conhecia tão
bem cada detalhe.

Os móveis, também herdados, eram igualmente antigos, feitos de alguma árvore que não
me recordo o nome, todos com desenhos talhados à mão. Na sala, três sofás com estofados
em veludo, balcões de madeira escura com gavetas que se fechavam à chave, e uma
mesinha de centro onde repousava um vaso de porcelana pintado pela minha mãe, eram
delicadas flores amarelas e azuis.

Nossa casa, apesar de antiga, tinha beleza e vida em todos os cômodos, principalmente
quando enfeitados com os arranjos de flores que mamãe fazia, com as flores do nosso
jardim.

Nas paredes da sala, havia alguns retratos. Lembro-me bem que um deles era bastante
antigo e desbotado. Era a fotografia do meu avô, já falecido. A outra fotografia era do
casamento de mamãe e papai. A imagem amarelada, parecia ser na verdade uma pintura.
Nenhum dos dois estava sorrindo, mas seus olhos revelavam um alegria escondida e
mamãe estava ainda mais bonita. Eu gostava de olhar para estas fotografias e sentia
vontade de um dia também ter uma minha com mamãe e papai.

Recordo que muitas vezes à tarde, mamãe estendia uma manta branca debaixo do
Carvalho, a árvore que nos dava sombra nos dias mais quentes de verão. Ali, sentávamos
eu e minha irmã Carolina, enquanto mamãe preparava limonada e biscoitos de polvilho.
Adorávamos aquela árvore, era o nosso lugar preferido para lanchar e brincar com as
nossas bonecas de pano.
Eu tinha seis irmãos, a maioria meninos. Eu era a mais nova, seguido por José, Carolina
e Paulinho. Alfredo e Henrique eram os filhos mais velhos, já casados, e apesar de
morarem na mesma cidade apareciam pouco em nossa casa.

Beto, era o irmão que eu menos me lembrava. Eu tinha quatro anos de idade quando ele
se mudara para a Capital a fim de estudar e trabalhar e eu não tinha mais o visto desde
então. Ele tinha a intenção de voltar para casa depois de formado, mas acabou
encontrando um bom trabalho e resolveu ficar. Mamãe trocava com ele muitas cartas e
sempre me contava como Beto também gostava do jardim e das frutas do pequeno pomar.
O fato de Beto ir para a Capital estudar e ter se formado em Direito, deixava mamãe e
papai muito orgulhosos, mas também com muita saudade.

Minha irmã Carolina, oito anos mais velha do que eu, brincava comigo como se eu fosse
uma de nossas bonecas, cuidava de mim e me chamava de filhinha. Fazia uma cestinha
com frutas do nosso jardim e trazia para que eu as experimentasse.

José era um menino tímido e falava pouco. Lembro-me de que ele chorou quando precisou
começar a frequentar a escola, pois teria que ficar um tempo afastado da mamãe e da
nossa casa. Papai saiu arrastando ele pelo quintal até a carroça para levá-lo ao primeiro
dia de aula, Carolina foi atrás, dizendo que ele ia gostar da escola e fazer muitos amigos
como ela também havia feito, e eu fiquei pensando como seria quando chegasse a minha
vez.

Já Paulinho, achava-se o homem da casa, pois era o irmão mais velho que ainda morava
conosco. Tinha quase vinte anos e sonhava em também ir morar na Capital, conhecer o
mar e estudar na escola de marinheiros. Trocava muitas cartas com Beto, e em todas elas
pedia que conseguisse uma vaga de emprego para ele.

Eu, passava o dia brincando no quintal, na maior parte do tempo sozinha, já que Carolina
e José iam para a escola. Quando voltavam José e Carolina faziam a lição de casa e
ajudavam mamãe com algum afazer doméstico. Carolina ajudava a preparar o jantar e
José buscava água no poço e colhia algumas frutas no quintal. Eu até tentava ajudar, mas
como era muito pequena não me deixavam.

– Você ainda é muito pequenina. – Mamãe falava apontando o dedo indicador cheio de
farinha no meu nariz. – Vai brincar, jardineira. Quando o bolo ficar pronto, a chamaremos.
Mamãe chamava-me de jardineira pois eu vivia no jardim, era meu lugar favorito no
mundo inteiro, o meu universo de flores e borboletas. Meus animais de estimação eram
formigas, lesmas e alguns insetos que encontrava no quintal, eu era muito curiosa e
incansável pesquisadora, vivendo a infância mais feliz que se possa imaginar.

Papai trabalhava muito. Ele era Gerente na fábrica de papel da nossa cidade. A fábrica
era próxima da nossa casa e conseguíamos ouvir o apito no início e fim dos turnos de
trabalho. No fim da tarde, Carolina e José chegavam da escola e aguardávamos papai com
o Jantar pronto e posto à mesa.

À noite a beleza do jardim mudava, podíamos ver vagalumes incendiando o breu e ouvir
os grilos e o coaxar dos sapos, cigarras e algumas corujas. Em noites de lua cheia o jardim
ficava mais iluminado, brilhando sobre o ipê amarelo, o deixando ainda mais lindo.
Mamãe e papai, sentavam-se na varanda quase todas as noites. Papai, na banqueta de
madeira, e mamãe, na cadeira de balanço, revezando o colo, comigo e José.

Não conversávamos muito, ficávamos ali olhando o céu, apreciando a presença um do


outro. De vez em quando papai contava alguma história, mamãe achava graça e todos nós
ríamos.

Sempre íamos dormir cedo, papai apagava luz do candeeiro que nos ajudava a andar pelo
escuro, antes, porém, mamãe acompanhava a mim e a Carolina até o nosso quarto, nos
desejava boa noite e fazíamos uma oração. Mamãe falava que nas orações, muito mais
importante do que pedir, era agradecer por todas as coisas maravilhosas que haviam
acontecido no nosso dia. Rezar era para ser uma conversa com Deus. Ela também dizia,
que devíamos agradecer até mesmo as coisas que não foram tão boas, afinal, tudo serviria
para melhorarmos. Confesso que só depois de muito tempo fui entender o que isso queria
dizer.

“Meu anjo da guarda, meu bom amiguinho, leve-me sempre, pelo bom caminho”.

“Obrigada pelas flores e pelas frutas, pela minha mamãe.... Meu papai, meus irmãos e
pelo machucado em meu joelho. Caí essa tarde”.

Se a noite estivesse estrelada, da minha cama eu podia olhar através da janela e contar
algumas estrelas, inventar uma cantiga silenciosa e olhar atentamente para não perder
uma estrela cadente que, por acaso, passasse por ali. Tanta estrela me transportava para
um mundo de sonhos em que tudo era permitido. Mas eu não ousaria fazer pedido algum,
o que mais poderia querer, se minha vida era tão linda quanto as estrelas mais brilhantes
do céu?

Às vezes o sono demorava a chegar. Então, eu ia até a janela do quarto e ficava ouvindo
o som noturno dos animais e sentindo o perfume que vinha das flores e das diversas
árvores frutíferas espalhadas pelo amplo quintal.

Mesmo sendo muito pequena, já sabia o nome de quase todas as flores. Minha mãe
ensinou-me a cuidar, regar e não as arrancar. Eu passava boa parte do dia correndo entre
as árvores e subindo nos galhos mais baixos, aventurando-me e saltando novamente na
grama. Foi assim que cresci, vendo cada planta ser cuidada com carinho. Algumas, vi
mamãe plantando, outras, já estavam lá muitos anos antes de eu nascer. Era o caso do Ipê
Amarelo do Carvalho e da Cameleira.

O Ipê era o mais colorido do jardim, florescia em agosto e estendia-se até setembro. Eram
suas pequenas flores amarelas que deixavam o jardim inteiro decorado. O Carvalho era a
minha árvore preferida. Possuía incontáveis galhos, e parecia ser uma árvore muito velha,
com suas raízes grossas.

Para muitos podia ser uma árvore banal, sem flores, como tantas outras, mas, era com
certeza, a árvore das árvores do nosso jardim, a mais altiva e imponente. Nela papai
construiu um balanço. Eu e mamãe o pintamos de branco e no assento, desenhei flores
cor-de-rosa.

Minha mãe gostava de me balançar até que eu pudesse imaginar alcançar as estrelas e a
lua. Eu pedia para que me balançasse mais alto, então eu podia ver todo o céu. Imaginava
que ele era o mar, e as nuvens, as ondas. Então eu mergulhava no mar e tocava as estelas,
tudo ao mesmo tempo. Com minha imaginação de criança eu podia tudo.

- Mamãe, olha, eu posso voar. – Falava, mas sem soltar as mãos da corda do
balanço.
- Sim, estou vendo! Parece um pássaro do campo. – E me empurrava ainda mais
alto.

Das flores, eu gostava de todas, mas a Camélia, era minha preferida. Ganhou-me por sua
graciosidade. Mamãe falava-me que a Cameleira podia viver mais de cem anos, e isso era
muito mais do que eu podia imaginar. A do nosso Jardim tinha as flores brancas. Eu as
adotei como sendo as minhas flores, das quais eu cuidaria. Ficávamos apreciando e tendo
cuidado para não as tocar porque, sendo branca, ficava amarelada quando tocada.

Quando as folhas secas tomavam conta da grama eu gostava de deitar-me sobre elas e
abrir meus braços como se fosse um anjo, batendo as asas para voar. Depois olhava o
resultado no desenho que formava no chão. Mamãe dizia que era mesmo um lindo anjo
do outono. Nosso Jardim era um verdadeiro paraíso em cores, era a cor do amor.

Mamãe apreciava poesia e música e me ensinou alguns versos e cantigas. Gostava


também de costurar. Era a sua profissão, mas sempre arrumava tempo para fazer-me
lindos vestidos e também guardava retalhos para costurarmos roupinhas para minhas
bonecas.

Por ser a filha mais nova, eu era muito próxima à minha mãe e queria estar perto dela o
tempo inteiro. Enquanto ela sentava-se a máquina de costura para trabalhar, eu ficava
sentada aos seus pés, brincando com meus bonequinhos de retalhos e a ouvindo cantar.
Esperava a hora que terminava o trabalho e íamos brincar no quintal.

Então passeávamos de mãos dadas pelo jardim e mamãe ia me contando sobre cada
plantinha, como devia ser cuidada, podada, quando florescia e quando morria. Lembro-
me de mamãe cuidando, plantando e regando as flores com cuidado. Ela sabia a estação
adequada para cada uma delas, e, para algumas, dávamos até nomes.

A beleza daquele jardim ia além da sua própria beleza, e era o que ele representava para
nós que o deixava ainda mais encantador. Representava o amor e o cuidado que eu e
mamãe tínhamos uma com a outra. Eu sabia, enquanto houvessem flores, sempre haveria
este elo.

Certa vez, notamos uma camélia caída no chão, mas ainda estava tão bonita, branquinha
e intacta. Fiquei triste em vê-la caída e pensei que alguém a tivesse arrancado. Olhei para
a flor com tristeza e lamentei.

- Bel, a flor de camélia representa a alma que sempre irradia beleza. A camélia quando
cai, cai a flor inteira de uma vez. – Ela falou, e vendo que eu não compreendia, continuou.
- Simboliza uma vida com alma perfeita, significa viver feliz até o último momento e
partir sem sofrimento - mamãe disse, recolhendo a flor.
- Mamãe, o que é alma? – Perguntei curiosa com aquela palavra diferente que ela havia
pronunciado.

- É aquilo que é eterno, como essa Camélia que acabou de cair. – Ela disse mostrando-
me a flor. – A cada dia que se passa, uma nova Camélia cairá, mas, sempre nascerá
novamente, entende, meu amor?

- Eu acho que isso é uma coisa boa, não é mamãe? – Falei.

- É sim, muito. – Sorriu.

Então ela pegou a Camélia branca e enfeitou os meus cabelos. Primeiro, fez uma trança,
que vinha do alto da cabeça e descia até as minhas costas, depois, prendeu a trança e
colocou a Camélia na ponta. Para que eu pudesse ver, trouxe a trança para a frente de
meus ombros.

- Olha só, ficou linda. A sua camélia agora vive em você, enfeitando seus cabelos – disse-
me com docilidade.

- Mas e quando ela murchar, mamãe? – Perguntei preocupada.

- Então ficará a lembrança, meu amor. Da camélia que você cuidou, que soube ver a sua
beleza até o último momento, que soube entender que partiria, mas que seria eterna dentro
de você. Esse é o melhor lugar para uma boa lembrança viver Bel, dentro do seu coração,
assim ela nunca morre. – Mamãe disse-me com sabedoria.

- Assim como a alma? – Esforcei-me a entender.

- Isso Bel. A alma é eterna, assim como a sua flor também pode ser – ela me disse abrindo
um enorme sorriso.

Eu tinha oito anos de idade. Naquele momento não refleti muito sobre o que mamãe
dissera, apenas senti que ela tinha razão. Guardei aquela flor e aquele momento dentro do
meu coração, por isso nunca o esqueci.

***

Naquela noite mamãe foi até o meu quarto e mais uma vez, rezamos juntas. Como estava
frio, cobriu-me com o cobertor de flores amarelas que ela mesmo havia feito para mim e
deu-me um beijo de boa noite. Passou as mãos em meus cabelos, depois segurou em
minhas mãos.

- Bel, sabia que te amo? – Disse-me, amável.


- Eu também te amo mamãe. – Respondi enroscando meus braços em seu pescoço.
– Eu te amo do tamanho do céu. – Falei.
- Do céu? Tudo isso? – Ela riu. – Boa noite jardineira, tenha lindos sonhos. – Falou
repousando um beijo em minha testa.

Mamãe também deu boa noite à Carolina e foi se deitar, o cheiro do seu perfume o ficou
em minhas mãos. Eu adorava o cheiro da minha mãe.

- Boa noite Bel. – Carol desejou.


- Boa noite Carol.

Era bom dividir o quarto com minha irmã. Às vezes, durante a noite eu sentia medo do
escuro e então, Carolina deixava que eu deitasse com ela até o medo passar. Eu a achava
muito corajosa.

***

De madrugada acordei sobressaltada. Ouvi a voz de Paulinho muito exaltada e papai


também falava alto, muito nervoso. Sentei na cama pensando se deveria ver o que estava
acontecendo. Será que estavam brigando?

Mesmo no escuro percebi que Carolina também havia acordado.

- Carol? Está ouvindo? – Perguntei.


- Estou, parece que papai e Paulinho estão brigando. O que será que aconteceu? –
Carolina perguntou, sentando-se na cama.

Caminhamos juntas até a porta do quarto e espiamos pelo corredor. Papai passava a mão
pela testa e cabelos e Paulinho, andava de um lado para o outro segurando o candeeiro de
querosene, ansioso, gesticulando o tempo inteiro. Não estavam brigando. De repente,
Paulinho entrou no quarto de mamãe, e papai foi para a varanda. Ouvimos no mesmo
instante um barulho de motor de automóvel, o que era muito estranho, já que nem nossa
família nem vizinhos tinham um.
Em seguida, ouvimos também o trotar de cavalos e a movimentação tornou-se intensa na
varanda. Papai segurava o candeeiro e assim que avistou o carro fez sinal para que alguém
entrasse. Ouvimos os passos pelo assoalho de madeira.

- Bel, fique aqui. Verei o que está acontecendo, tudo bem? – Disse-me Carolina.
- Deixe-me ir com você, estou com medo, Carol. – Pedi.
- Está certo, vamos...

Demos as mãos e caminhamos no escuro lentamente até a porta do quarto de mamãe, mas
encontramos lá papai, Paulinho e um senhor que eu não sabia de quem se tratava. Não
nos deixaram entrar no quarto e pelo olhar de todos e a forma como estavam agitados,
percebemos que alguma coisa muito ruim estava acontecendo com mamãe.

- Papai, onde está a mamãe? – Perguntei preocupada, forçando meus olhos para
enxergar no escuro, na direção do quarto mal iluminado.
- Carolina, leve sua irmã imediatamente para o quarto, vamos, agora! – Papai
repreendeu-nos de forma ríspida, o que nos deixou mais assustadas ainda.

Comecei a chorar e desobedecendo papai fui até a porta do quarto e tentei entrar, mas
papai segurou-me e disse para que eu fosse para o quarto junto com Carolina e José, que
naquela altura também já havia acordado.

– Cuide dela Carolina... é muito nova para entender – papai disse à minha irmã.
– Entender o que papai? O que está acontecendo? – Carol questionou assustada, mas
não obteve resposta, apenas um olhar duro, que fez com que obedecêssemos
imediatamente.

Ficamos no escuro do quarto, eu, chorando abraçada à Carolina e José deitado em minha
cama sem dizer uma palavra sequer, e acredito que tão perdido quanto nós.

Ouvimos, então, um barulho, e através da janela, vimos quando levaram mamãe


rapidamente até um veículo. Papai e Paulinho seguravam-na nos braços e ela estava
desacordada. Fiquei paralisada, assistindo tudo acontecer como se estivesse fora do meu
corpo, como expectadora, sem conseguir reagir. O automóvel deu partida e depois sumiu
no meio da noite.
Foram longas horas sem respostas, nas quais fiquei divagando sobre o que realmente
estava acontecendo, e, de todas as possibilidades, a que mais me assustava, era a de que
mamãe não voltasse mais.

Olhando através do vidro embaçado pelo frio da madrugada orvalhada, pensava em


mamãe. Minha esperança era ver a luz do automóvel voltando e a trazendo para casa bem,
para que eu pudesse abraçá-la. Levantei minha mão na direção do vidro e desenhei um
coração com as iniciais “I e E” (Isabel e Elisa).

- Te amo mamãe. – Falei baixinho.


- Vamos Bel, vamos deitar. Papai quando voltar nos dará notícias, não se preocupe.
Venha, pode dormir comigo esta noite – Carolina disse, segurando-me pela mão
e me conduzindo à sua cama. Depois de um algum tempo, acabei adormecendo.

CAPÍTULO 2

AS PRIMEIRAS LÁGRIMAS

“Que eu não perca a beleza e a alegria de viver,

mesmo sabendo que muitas lágrimas brotarão dos

meus olhos e escorrerão por minha alma.”

Chico Xavier

Logo os primeiros raios de sol adentraram pela fresta da cortina semiaberta de meu quarto.
Saltei da cama assustada e, por alguns instantes, imaginei que tudo não havia passado de
um sonho ruim, daqueles que nos tomam uma noite inteira, e quando acordamos
pensamos ser até real. Ouvi vozes que vinham de fora de casa, perto da janela do meu
quarto.
Eram papai e meus dois irmãos mais velhos, Alfredo e Henrique. Eles estavam abraçados,
pareciam muito abalados. Sem espera, corri para o quintal, Carolina me acompanhou.

- Papai, onde a mamãe está? – Perguntei, enquanto minhas mãos e todo o meu corpo
tremiam.
- Bel, sua tia vai cuidar de você. – Meu Deus! Ela é muito nova ainda para entender.
– Disse abalado, olhando para Alfredo.
- Mas eu quero a minha mãe, o que houve com ela, papai? Onde ela está? –
Perguntei novamente, já começando a chorar.

Era visível a dor em seus olhos, papai me abraçou e pela primeira vez, vi meu pai chorar.
Foi apenas uma lágrima pesada, que correu rapidamente e logo ele a enxugou, enquanto
me olhava, tentando encontrar as palavras certas, porém nunca as encontrou. Jamais
esquecerei aquele dia e a dor que o momento representou em minha vida. Entendi que
mamãe não voltaria mais.

Carolina sentou-se no degrau da varanda, pôs as mãos no rosto e começou a chorar. Papai
abaixou-se ao seu lado e lhe deu um abraço. Todos os meus irmãos estavam em nossa
casa, menos Beto, pois ele morava na Capital e era muito longe da nossa cidade.

Lembro-me da expressão triste no rosto do meu pai, dos olhares curiosos dos vizinhos,
das lágrimas de Carolina. Lembro-me de me sentir perdida, sufocada, como se estivesse
afogando. Meu desejo era gritar, colocar para fora toda aquela dor que pulsava em meu
peito.

A dor era imensa. Certamente, se nada daquilo estivesse acontecendo, seria mais um dia
em que eu correria no quintal, mamãe me acompanharia em algumas aventuras,
podaríamos alguns galhinhos secos, depois comeríamos torta de maçã, acompanhada de
suco de laranja. Mas parecia tudo diferente e sem graça naquele instante.

Já era outono, as folhas começavam a cair, a temperatura também. Não fosse a ausência
de mamãe, tudo teria outro brilho e beleza, mas ela não estava lá, e nunca mais estaria.
Minha flor perfumada, aquela que cuidava e cobria-me à noite, que coloria a minha
infância, que me ensinou a amar, a pertencer a um lugar encantado, o lugar onde eu amava
estar, se foi.
Corri em direção à Cameleira, ajoelhei-me no gramado verde e pensei em mamãe. Eu não
podia e não queria aceitar que ela não voltaria mais. Deparei-me com uma camélia branca,
tão pura, singela, que estava caída na grama, segurei-a e a desfolhei com amargura,
apertando-a contra o meu peito. Era o meu próprio coração que estava sendo desfolhado.

- Isabel?

Uma mulher alta e magra estava parada atrás de mim. Eu não a conhecia. Como ela
sabia o meu nome? Não respondi. Continuei no chão apertando aquela flor entre os
dedos, chorando e soluçando.

- Querida, venha. Seu pai está aguardando por todos na sala. Lembra-se de mim?
Eu sou Rosa, irmã do seu pai. Vou cuidar de você. – A mulher disse segurando
em minha mão para levantar-me do chão.
- Eu não me lembro de você! – Falei com a voz elevada, soltando-me de suas mãos
e correndo de volta para casa.

***

Aos poucos a nossa casa ficou repleta de pessoas estranhas, vestidas de preto. Ninguém
falava comigo nem tampouco me explicavam o que havia acontecido com minha mãe. O
clima era muito ruim e todos estavam calados. Quando precisavam falar, cochichavam
uns com os outros. Vi muitos olhares piedosos em minha direção e meus irmãos mais
velhos – Henrique e Alfredo - vinham me abraçar e acarinhar minha cabeça de tempo em
tempo. Alguns vizinhos diziam: tadinha, tão pequena ainda.

- Bel! – Vi minha irmã sair do quarto e corri em sua direção, abraçando-a pela
cintura.

Os olhos de Carolina estavam vermelhos e inchados, tinha muita tristeza em seu olhar.
Me abraçou com força.

- Bel, mamãe se foi, não sei o que fazer. – Foi somente o que disse.
- Carol, eu não entendo, por quê? – Indaguei.

Eu realmente não entendia, nunca havia perdido ninguém e meu conceito de morte não ia
além da perda de algumas flores e de encontrar alguns passarinhos desfalecidos no jardim.
Mas mamãe? Ela era forte, era essencialmente importante, ela não deveria morrer nunca
– pensei.

- Meninas.... Onde fica o quarto de vocês? – Tia Rosa nos interrompeu,


perguntando.

Carolina segurou em minhas mãos e juntas atravessamos a sala em direção ao corredor


da casa e seguidas por tia Rosa, chegamos ao nosso quarto.

- Peguem todas as roupas de vocês, tudo, e coloquem aqui, neste cesto. Carolina
ajude sua irmã a separar as roupas dela. – Tia rosa solicitou nos apontando para o
cesto de vime.

Abrimos as gavetas da cômoda e fizemos o que tia Rosa havia pedido, ainda sem entender,
mas também sem questionar.

Em poucas horas entendemos, quando vimos o varal repleto de roupas pretas e


reconhecemos ali nossos vestidos, aqueles que mamãe havia costurado para nós. Tudo
fora tingido de preto, até mesmo nossas roupas íntimas.

***

Lembrei-me do dia do meu aniversário, um mês antes, quando havia completado oito
anos. Mamãe havia feito para mim um vestido com um tecido alaranjado, com pequenas
flores vermelhas. Como adorei aquele presente, senti-me uma princesa com aquele
vestido rodado e com todo um jardim de flores desenhado nele. Incrível como pequenas
coisas traziam-me tamanha felicidade.

- Ficou mesmo linda. – Mamãe disse.


- Sobrou tecido mamãe? – Perguntei com um pensamento em mente.
- Sim... – Ela falou.

A abracei e pedi para que fizéssemos uma roupa igual para Josefina, a minha boneca de
pano. Seu nome era Josefina porque tinha as pernas finas como as minhas, e também
porque era um lindo nome para uma bonequinha de pano. Mamãe fez o vestido para a
boneca e fiquei radiante.

***
Mas então, tudo houvera acabado. Olhei para o varal e vi o meu vestidinho todo tingido
de preto, e só o reconheci pelos pequenos botõezinhos. Todos os meus vestidos pareciam
iguais, sem vida, sem cor, sem alegria. Talvez os vestidos tingidos combinassem mais
com o momento em que estava vivendo, pois era também assim que me sentia: sem vida,
sem cor e sem alegria.

O que veio a seguir eu gostaria de apagar de minha memória. Tia Rosa levou-me para
meu quarto e entregou um dos meus vestidos recém tingidos. Pediu para que eu me
vestisse e ficasse ali no quarto aguardando. Falou que de forma alguma eu fosse até à
sala.

- Isabel, fique aqui no quarto e não saia. As pessoas que estão na sala são todas adultas.
Carolina vai trazer algo para você comer depois, entendeu? Você vai esperar aqui.
Brinque um pouco com as suas bonecas.

Eu apenas assenti com a cabeça. Como poderia pensar em brincar? Tia Rosa não falava
com aspereza, mas com uma autoridade cautelosa, como se quisesse me impedir de
presenciar algo que me causaria muita dor.

Fiquei longos minutos sentada em minha cama, com a pernas penduradas para o lado de
fora, balançando-as nervosa enquanto ouvia conversas e pessoas caminhando no assoalho
de madeira próximo ao meu quarto.

Certa hora, Carolina apareceu ainda mais abatida e trouxe-me sopa. Ela repousou o prato
sobre a penteadeira que ficava entre as nossas camas e deu um pesaroso suspiro de
tristeza.

- Bel, pode comer, não está tão quente. Eu esfriei para você.
- Mas... eu não estou com fome.
- Nem eu, mas tia Rosa falou que precisamos comer um pouco...

Carolina sentou-se ao meu lado. As lágrimas começaram a correr em seu rosto.

- Eu queria ficar aqui com você, Bel. Se eu também fosse criança não precisaria
estar lá na sala... esperando... – Carolina falou, mas não concluiu.
- Mas eu queria ir até lá.... Fale para nossa tia deixar eu ir também. Eu não quero
ficar aqui sozinha. – Pedi. A ideia de estar sozinha já era bastante dolorosa.
- Eu não sei Bel...
- Fala para ela deixar, Carol, por favor. – Implorei ainda mais.
- Eu vou tentar... – Carolina falou.

Ficamos por um tempo abraçadas, chorando. Percebi que Carolina não era tão forte como
eu pensava que fosse. No fundo ela era como eu, uma criança assustada. Há pouco
brincava de boneca, e logo depois, começava a ver as responsabilidades chegando,
decerto não sabia como lidar com a situação.

- Carolina! – Tia Rosa chamou.

Ela levantou-se enxugando as lágrimas e foi para a sala, deixando sem perceber a porta
do quarto semiaberta. Pelo vão da porta vi alguns homens de terno preto e mulheres de
vestido também na cor preta. Falavam baixo, mas suas vozes chegavam confusas até o
quarto, não dava para entender o que diziam.

Senti-me tentada a espiar pela pequena fresta aberta. O meu quarto e de Carolina ficava
próximo à sala. Era o primeiro quarto, no início do corredor, e dali dava para ver parte da
sala. Ainda sentada na cama debrucei meu corpo para frente, alongando o pescoço em
direção à sala e então paralisei meus olhos com a imagem de um caixão cor de marfim
com detalhes dourado. Em volta as pessoas olhavam na mesma direção expressando
tristeza. Entre essas pessoas vi meu irmão José chorando.

Voltei rapidamente meu corpo para a posição anterior quando vi tia Rosa apressada em
direção à porta. Entrou e a fechou com força.

- Mas que coisa, menina. Não lhe disse para ficar aqui? Levante-se e venha cá. Vou
levá-la até o outro quarto. – Ordenou, colérica.

Tia Rosa pôs-me ao seu lado, virando-me contra a sala no momento em que passamos
pela porta, mas em um reflexo de segundos, reconheci mamãe deitada naquele caixão.
Desvencilhei-me de suas mãos e corri até ela.

-Mãe... mãe! – Disse em um grito choroso, com os braços esticados em sua direção
enquanto tia Rosa puxa-me novamente em direção ao quarto dos meus irmãos.

Carolina estava sentada ao lado de papai no sofá, José também. Todos olharam para mim
e depois olharam tia Rosa, lamentando o ocorrido.
Mas eu tinha visto mamãe. Ela usava um vestido azul escuro e seu rosto estava coberto
com um véu branco. Eu sabia que era mamãe ali. Conhecia suas mãos, seus cabelos
castanhos. A dor me invadiu por inteira naquele momento.

Tia Rosa puxou-me com mais força e quando chegamos ao outro quarto ela se abaixou
ficando do meu tamanho e olhando-me nos olhos disse palavras que não recordo mais.
Tinha a ver com seguir em frente, entender e ser forte.

Aquela foi uma noite horrível. Fiquei sozinha no quarto dos meus irmãos, chorando,
implorando a Deus que aquilo fosse apenas um pesadelo, que mamãe aparecesse para me
cobrir, me dar boa noite, me beijar.

Quem apareceu horas mais tarde foi papai. Ele entrou em silêncio no quarto, de certo
achou que eu estava dormindo, repousou o candeeiro no chão e veio até a cama onde eu
estava. Permaneci imóvel, como se estivesse realmente dormindo. Ele me deu um beijo
na testa e voltou para a sala.

Lágrimas quentes e pesadas escorriam em minha face sem que eu pudesse segurá-las.
Meus olhos ardiam.

***

Pela manhã a casa ainda estava silenciosa, no entanto, vez por outra, algumas pessoas
entoavam uma oração e cantavam alguma música triste. Eu ainda chorava.

Papai e Carolina vieram pela manhã até o quarto e me encontraram muito abatida, ainda
com o vestido preto, os olhos muito inchados, e encolhida como um animal assustado.
Papai se aproximou, e me sentei na cama.

- Papai me deixe ver minha mãe! Eu preciso falar com ela. – Disse-lhe.
- Querida, sua mãe não pode lhe ouvir, não sei como explicar. Sinto muito filha,
mas mamãe... a sua mãe não voltará. – Disse, enfim.

Chorei. Eu sabia que ela não voltaria, mas ouvir aquilo de papai me trouxe uma certeza
ainda mais dolorida. Eu já podia sentir a ausência de mamãe machucando meu coração.

- Mas eu quero beijá-la papai. Deixe-me ver minha mãe, tocá-la, deixe, por favor...
– pedi novamente.
Tia Rosa entrou no quarto, trazendo fruta e suco.

- Comam um pouco, pois precisam estar fortes para este dia. Como você está,
Antônio? – Perguntou a papai.
- Bel quer ver Elisa, - disse soltando um suspiro cansado - mas não tenho certeza
se é apropriado na idade dela...
- Ah! Não, meu irmão. Bel é uma criança... – Tia Rosa falou, séria.

E não me deixaram ver mamãe. Levaram-na embora, e com ela todos os vizinhos e
parentes também se foram. Carolina, como já tinha seus dezesseis anos, pôde ver
mamãe e acompanhar papai até o cemitério. José, que tinha apenas onze anos também
foi despedir-se. Sim, eu sabia para onde a estavam levando e sabia que não a veria
nunca mais.

Quem ficou comigo foi Dona Lira, nossa vizinha que morava bem em frente à nossa
casa. De vez em quando ela encomendava vestidos com mamãe e também trocavam
receitas de tortas.

Dona Lira era uma senhora baixa e gorda, com cabelos curtos e negros, sempre
enfeitados com uma faixa de tecido que combinava com o vestido que usava. Eu
gostava dela, achava que tinha um olhar doce e sempre sorria para mim quando nos
encontrávamos.

- Bel coma um pouco de pão e suco, talvez uma fruta? – Ofereceu Dona Lira.
- Obrigada, Dona Lira. Estou sem apetite.
- É assim mesmo quando as pessoas ficam muito tristes. – Ela me disse.
- Dora Lira, mamãe sempre falava que se eu desejasse algo de todo coração, tudo
era possível de realizar...
- Sua mãe era muito sábia, querida.
- Então, se eu desejar que ela volte...
- Ah, querida. – Ela suspirou interrompendo. – Está aí uma coisa que não é
possível, mesmo se desejarmos de todo coração. – Falou.
***

A tarde passou lentamente e demorou para que papai e meus irmãos voltassem. Quando
chegaram foi impossível não perceber como Carolina estava arrasada. Andava curvada
como se sentisse dor em todos os membros, seu olhar revelava um cansaço imenso.
Ficamos todos em silêncio por longos minutos.

Mais tarde, já na hora de dormir, ouvi tia Rosa cochichar com Dona Lira que Carol havia
chorado muito na hora de despedir-se de mamãe.

- Tiveram que puxá-la! Uma cena muito triste. Por isso quisemos poupar Isabel –
Disse tia Rosa - Era o melhor a ser feito, na idade dela. Não é bom passar por
certas situações. Carolina, que já é uma moça, ficou tão impressionada, imagina
como Isabel ficaria!
- Ah, Sim! Eram tão apegadas.... Viviam juntas no jardim. Elisa tinha um apreço
muito grande pelas flores e pelo jardim e Isabel era sua companheira. Estavam
sempre entre as flores, no quintal. – Disse dona Lira.
- Obrigada por ter ficado com a Bel. – Tia Rosa agradeceu à nossa vizinha.

Conforme as horas passavam, sentia cada vez mais saudade de mamãe. À noite foi
especialmente mais doloroso pensar que ela não voltaria. Inconscientemente aguardei que
mamãe viesse me desejar bons sonhos e rezar comigo e Carol. Como nos conformaríamos
em não recebermos mais este carinho?

Fechei meus olhos, pois estava cansada e com sono, porém, pensamentos vinham a todo
instante não deixando que meu corpo descansasse. Quando voltei a abrir meus olhos ela
estava lá. Mamãe olhava-me com ternura, de pé, próximo a minha cama, aproximou-se e
cobriu-me com amor, deu um sorriso e assim que pisquei novamente meus olhos, ela já
havia sumido.

- Carol! – Assustei-me e chamei minha irmã.


- O que foi Bel? Pesadelos?
- Não, vi mamãe. Ela estava em nosso quarto...
- Mas então foi um sonho bom, não precisa ter medo. – Carol falou.
- Não Carol, não foi sonho. Parecia que mamãe estava aqui agora mesmo.
- Ah! Que bom seria se isso fosse possível Bel, mas não é. Vamos tentar tornar a
dormir – Disse-me Carol. – Quer deitar aqui comigo?

Senti medo, pois sabia que na verdade eu não estava dormindo. A visão de mamãe fora
muito concreta com seu sorriso, suas mãos tocando no cobertor para cobrir-me. Meu
coração estava acelerado. Achei estranho que sentisse medo de ver mamãe, mas como
Carol falara, isso não era possível. O que me assustava era o desconhecido. Sabia que eu
não voltaria a vê-la, então, como sua presença tivera sido tão real?

CAPÍTULO 3

VIVER SEM MAMÃE

“Por que Deus permite que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limites, é tempo sem hora”

(Carlos Drummond de Andrade)

Maio de 1940

Depois que mamãe partiu fiquei questionando-me sobre a vida e sobre a morte, apesar de
ser uma criança, muitas dúvidas iam e voltavam com frequência. Algumas coisas eu não
conseguia entender. Por que Deus havia deixado que ela morresse? Quem cuidaria de
mim? E o jardim, quem iria plantar, regar e cuidar das flores?

Mamãe tornou-se meu primeiro e último pensamento do dia. Na verdade, lembrava dela
o tempo inteiro, seu cheiro estava em todos os cômodos da casa e no jardim. Se eu
fechasse bem meus olhos podia ainda a ver ajoelhada no canteiro de Dálias, ou podando
os galhinhos da roseira.

***

Era uma manhã de domingo, o primeiro sem ela. O sol estava fraco, o frio começava a se
aproximar, papai sentou-se na cadeira de balanço, na varanda. Parecia triste, olhava na
direção do jardim, mas seus olhos não pareciam focados em nada. Achamos aquilo muito
diferente, já que era mamãe que sempre se sentava ali.

Caminhei até a árvore de Carvalho, o balanço estava ali, abandonado. Pensei em sentar e
balançar-me, mas lembrei de mamãe e fiquei triste. Se ela ainda estivesse ali, me
balançaria. Abracei a árvore encostando meu ouvido em seu tronco. Abracei-a com amor,
como se abraçasse mamãe e então me pareceu em minha imaginação infantil, que podia
ouvir as batidas de um coração. A árvore estava viva, mas minha mãe, não.

Subi nos primeiros galhos da árvore e vi que papai me observava. A árvore era muito alta
e tinha muitos galhos. Decidi subir um pouco mais e aventurei-me a subir até que quase
enxerguei o telhado de nossa casa.

-Bel, desça! É perigoso. – Ele ordenou.

Desci e sentei-me ao seu lado, queria dizer alguma coisa, mas não sabia por onde
começar. Papai sempre dizia que eu era muito nova para entender as coisas, mas eu sentia
saudade de minha mãe e queria conversar sobre isso, e não evitar falar dela como meus
irmãos e papai vinham fazendo. Com exceção de Carolina e José, eu não tinha mais com
quem conversar sobre coisas simples, do tipo “será que vai chover e quantas cores de
borboletas será que existem? ”.

Meu pai me viu sentar, mas não se moveu tampouco olhou em minha direção. Continuou
com o olhar vago e triste. Algumas folhas do Carvalho caíam no solo como uma chuva,
uma após outra e o vento as arrastava girando-as no ar. Eu gostava de vê-las cair, achava
bonito. Quantas vezes fiquei debaixo da árvore, deitada só para ver as folhas caindo, eu
as contava e também ficava tentando adivinhar qual seria a próxima que cairia.

- Papai, por que as folhas caem das árvores? – Perguntei repentinamente.


- Porque é Outono. – Papai limitou-se a dizer.
- Mas, então, como elas sabem que já é Outono? Será que são os passarinhos que
avisam que o Outono chegou? – Eu disse e se ele confirmasse eu realmente
acreditaria.

Papai riu, eu o acompanhei, mas esperei que ele me desse uma resposta para minha
indagação. Foi o primeiro sorriso que demos desde que mamãe partira. Papai olhou-me e
de certo viu como eu era ainda criança. Me olhou com amor e chamou-me para sentar em
seu colo na cadeira de balanço. Era assim que eu e mamãe fazíamos nos dias mais gelados
da estação. Então, ficávamos na varanda observando as folhas caírem.

- Sabe Bel, as árvores perdem as folhas, pois se não fosse assim, não sobreviveriam
à próxima estação, as folhas queimariam com o frio do inverno e assim ficaria
mais difícil para a árvore respirar. – Papai explicou-me.
Pensei sobre a explicação de papai e achei que realmente fazia muito sentido. Então
lembrei do dia em que mamãe falara sobre a Camélia e percebi que na natureza tudo era
assim.

- Mas não devemos ficar tristes papai. Depois, outras folhas vão nascer, não é? –
Falei, cheia de convicção.
- É sim. Não precisa ficar triste. – Ele assentiu. Olhou-me com serenidade e
acariciou meu rosto. – Bel, enquanto eu viver, farei o possível para que você e
seus irmãos sejam felizes. Sei que nunca poderei preencher este vazio que toma
conta do seu coraçãozinho, pois aí tinha um lugar que era só da sua mãe, mas seu
pai também a ama muito. Sinto por não ter mais tempo em casa, com vocês...
- Eu sei papai. O Senhor tem que trabalhar. Eu também o amo muito, amo você e
amo mamãe. – Declarei com inocência.

Naquele instante, no colo de papai, senti-me protegida, como se nenhum mal pudesse me
alcançar. O carinho do meu pai tirou-me do escuro, daquela solidão em que eu estava
vivendo após a partida de mamãe. Deitei minha cabeça em seus ombros e olhei na direção
da Cameleira, mais ao fundo do Jardim.

Meus olhos paralisaram. Vi mamãe, e como ela estava linda, com seu vestido azul. Era
um vestido que usava somente em ocasiões de festa. Estava feliz e dançava, enquanto
colhia ramos e flores, como se fizesse um arranjo para pôr à nossa mesa.

- Mamãe! – Gritei, pulando do colo de meu pai.

Corri até o jardim, em direção da Cameleira. Ela parou de dançar e me olhou sorrindo,
estendeu-me os braços e me entregou uma Camélia. Convidou-me para dançar a nossa
ciranda, as cantigas que sempre entoávamos. Eu já não sabia se chorava ou se sorria.
Minhas lágrimas se misturavam com o orvalho da planta.

Toquei em suas mãos, mas seu corpo era todo luz, uma neblina brilhante de amor e paz.
Não senti o seu toque físico, mas, sim, o calor daquele toque dentro do meu coração e
uma imensa alegria em encontrar-me com mamãe naquele instante.

Então ela sorriu novamente e despediu-se. Dançou em volta da Cameleira e desapareceu.


Dei também uma volta ao redor do pequeno arbusto, olhei por todo o jardim, mas mamãe
não estava mais lá.
Papai olhou-me confuso da varanda, com o cenho franzido, indagando-se sobre o que
estava acontecendo comigo.

- Isabel, o que está fazendo? – Gritou da varanda.


- Dançando papai, dançando com mamãe, mas ela se foi.... Você não a viu?
- Ah! Bel! Pare com isso. Sua mãe não está aqui. – Respondeu irritado.
- Mas ela estava aqui agora há pouco... – insisti.

Voltei para a varanda trazendo em minhas mãos a Camélia e mostrei ao meu pai.

- Olha papai. Esta Camélia, foi mamãe quem me deu. Ela estava aqui agora mesmo,
eu a vi. – Falei segurando a Camélia e mostrando a papai.
- Isabel, já lhe falei: pare já de dizer tais coisas. Sei que está abalada e sente a falta
de sua mãe, mas não pode ficar inventando. Entenda minha querida, não
tornaremos a vê-la. – Disse aborrecido.
- Mas.... Eu juro!
- Chega Isabel! Chega! – Disse com firmeza, dando-me as costas e entrando em
casa.

Desisti de tentar convencer papai de que havia visto mamãe, ele não acreditaria, pois ela
só aparecera para mim. Soube então que não tivera sido um sonho a aparição de mamãe
em meu quarto na outra noite. Ela realmente viera dar-me boa noite e cobrir-me.

Fiquei ainda por um tempo na varanda, olhando o jardim na esperança de vê-la mais uma
vez, com a Camélia branca entre os dedos, linda, perfeita. Como mamãe falara um dia:
“o que é eterno não morre jamais”.

- Bel, o que aconteceu? Papai entrou tão aborrecido. – Carol veio até a varanda e
sentou-se no degrau, puxando-me para sentar ao seu lado.
- Carol, sabe que eu não mentiria a você, nem a papai.... Eu vi a mamãe. Vi naquela
noite e vi ainda há pouco. Estou acordada, não tenho dúvidas.

Carol olhava-me com pena. Pegou em minhas mãos e puxou-me para que me recostasse
em seu ombro.

- Bel, sei que é difícil para você. Estamos todos sofrendo, mas você como ainda é
criança, está muito confusa. Deve ser normal imaginar que a vê. Papai não entende
bem pois também sofre, sente saudades. – Carol falou.
- Mas Carol, eu não estou imaginando. Eu a vi. Ela me entregou essa flor. Estava
tão linda e...
- Bel, sinto tanto a falta de mamãe. Queria muito que ainda estivesse aqui, mas
simplesmente não posso acreditar, porque quem se vai, não volta mais. Entenda.
– Falou, e eu lamentei que talvez, nunca ninguém acreditasse em mim.

José apareceu na varanda interrompendo-nos e falou que entrássemos, pois, nosso pai e
tia Rosa queriam falar com todos nós na sala. Imediatamente pensei que fosse sobre eu
ter visto mamãe e imaginei que ganharia um dos sermões da nossa tia.

Eu e Carol levantamos e acompanhamos José. Papai estava sentado no sofá e tia Rosa
estava de pé, segurando uma maleta grande.

- Meus sobrinhos, venham, sentem-se. – Pediu indicando um lugar para que


sentássemos.

Quando eu, Carol e José nos acomodamos no sofá, tia Rosa começou a falar.

- Eu sei o quanto esse período está sendo difícil para todos, mas a nossa vida
continua, devemos tentar seguir em frente e era com certeza isso que a mãe de
vocês desejaria, que todos ficassem bem. Eu estive com vocês nessas primeiras
semanas, mas agora preciso voltar ao meu lar, e com isso, Carolina precisará
assumir algumas responsabilidades com a casa e cuidar de Isabel.

Carolina assentiu com a cabeça, mas eu vi quando revirou os olhos.

- Sim, eu cuidarei. Algumas coisas ainda não sei fazer, mas tentarei aprender.
- Será por pouco tempo, Carolina. Pretendo contratar alguém para trabalhar em
nossa casa e cuidar de vocês. Alguém que cozinhe e cuide da casa e das roupas. –
Papai disse

E assim, tia Rosa voltou para a sua casa com sentimento de dever cumprido. Havia feito
sua parte, cuidado de nós em um momento de fragilidade, tingindo nossas roupas de preto
e garantindo que a usássemos todos os dias. Teríamos que usá-las durante todo o primeiro
ano de luto, ela nos disse. Não senti a sua falta, tia Rosa parecia estar sempre nos
controlando, cercando até mesmo nossos sentimentos. Ela, mesmo sem querer, me fazia
sentir culpada por sofrer e chorar a ausência de mamãe, então quando ela se foi, senti-me
aliviada.
Carol ficou temporariamente com a responsabilidade de todos os afazeres domésticos.
Ela preparava a comida, arrumava a casa e cuidava de mim e de José. No período em que
eles iam para a escola eu ficava sozinha, sentada na varanda ou deitada em minha cama
pensando em tudo o que estava vivendo.

***

Certa madrugada, estava frio e chovia um pouco, acordei depois de sonhar com mamãe.
Fechei fortemente meus olhos – ainda estou dormindo, ainda estou dormindo – repetia
silenciosamente, o sonho foi tão real, que acordar, chegou a doer.

Meu coração pulava tão forte que parecia me impulsionar, me arrastar. Então,
sobressaltada, levantei e caminhei sem direção. Do calor da minha cama, comecei a sentir
um arrepio, parecia vir de dentro da alma, quando dei por mim, percebi que estava
ajoelhada no jardim, em meio a chuva, em prantos. Esse foi o primeiro dia em que briguei
com Deus. Voltei para minha cama com o corpo ainda úmido e abraçada às minhas
bonecas chorei até amanhecer, questionando Deus e sentindo-me culpada. Uma estranha
culpa por estar viva, por quê? Por quê Deus não me leva também? Não consegui rezar,
não consegui agradecer.

Pela manhã, levantei sem saber as horas, sem perceber o correr do tempo. Caminhei até
a sala, e olhei para as fotografias empoeiradas na parede. Lembrei de que já não seria
mais possível ter uma foto minha com mamãe; entristeci-me. Lembrei das manhãs em
que eu acordei ao lado de mamãe, ela fazia-me cócegas, ríamos até ficar com a barriga
doendo. Eu também não teria mais dias como estes.

***

O tempo passou, o Outono enfim acabou e demos boas-vindas ao Inverno. Ele havia
chegado ainda mais gelado naquele ano, parecia que a ausência de mamãe era também
como o frio, incômodo e cortante. Três meses havia se passado, mas para mim parecia
uma eternidade.

Mamãe não aparecera mais desde a última vez no jardim. Comecei a acreditar que tudo
não havia passado da minha imaginação, do meu desejo de tornar a vê-la.

Em muitas noites, quando a saudade me tomava por inteira, eu chorava baixinho, até que
não pudesse mais conter as lágrimas e acabava acordando Carolina com meus soluços e
um choro desesperado e incontrolável. Então Carol ia até a minha cama e me abraçava,
enquanto eu ficava encolhida, abraçando minhas pernas até voltar a dormir.

A cada dia o jardim ficava mais triste e malcuidado. A grama cresceu, ervas daninhas
surgiram nos canteiros de flores e alguns arbustos perderam a forma por não serem mais
podados. Algumas plantas morreram, outras pareciam tristes, sem viscosidade, sem
perfume, sem vida.

Para mim era ainda mais triste ver o jardim daquele jeito, porque eu sabia o quanto mamãe
amava aquele lugar. Decidi, então, que cuidaria do jardim. No outro dia pela manhã
acordei cedo e peguei alguns instrumentos usados para cuidar do jardim: tesoura, regador,
água e adubo e fui até o jardim. Com a tesoura comecei a retirar os galhinhos secos e
flores mortas, e com meus próprios dedos, arranquei algumas ervas daninhas.

Talvez o meu trabalho não fizesse grande diferença, o jardim era mesmo imenso e
algumas coisas eu jamais conseguiria fazer sozinha. Mas cada galho seco que eu retirava
me dava um pouco mais de alegria. Demorei-me ainda mais ao cuidar da Cameleira,
queria deixá-la linda, como eu prometera à mamãe. Era a minha árvore, aquela que eu
cuidaria.

- Sabe minhas Camélias, sinto falta da minha mãe. Sei que vocês também devem
sentir, mesmo sendo flores.

Conversei com as Camélias, sem tocar em suas folhas para que não ficassem amareladas,
depois as reguei - Como será que as Camélias se sentem quando uma delas cai? Pensei...

- Ah! Jardineira...

Ouvi uma voz me chamar, uma voz que eu reconheceria até em cem anos, a voz de
mamãe, ainda mais suave, chamando-me “Jardineira”.

- Mamãe? – Virei para procurá-la.

Ela estava perto do balanço. Desta vez usava um vestido rosa claro, de tecido leve e
esvoaçante. Olhou-me e chamou com os dedos, apontando para que eu sentasse no
balanço.

- Venha, jardineira.... Vamos voar?


Ela estava linda e seu sorriso irradiava alegria. Caminhei lentamente em sua direção. Meu
coração dava pulos, eu queria ter certeza que a sua aparição não era uma fantasia, nem
um sonho, mas sim, real. Aproximei-me e sentei-me no balanço e mamãe começou a
balançá-lo devagar. Fechei meus olhos e senti o vento em meu rosto e cabelos.

Mamãe então me balançou com mais força e então, senti que estava a voar, como só ela
sabia fazer-me sentir. Abri meus olhos e vi o céu e as nuvens. O dia estava apagado, frio
e melancólico, mas eu estava feliz, pois estava com mamãe.

Sorri, tomada de felicidade, encantada com a paz e a liberdade daquele instante, o balanço
voando, levando-me ao céu junto com meu pensamento. Neste instante algo
extraordinário aconteceu, uma chuva de Camélias brancas começou a cair sobre mim e
em toda a nossa volta.

O balanço foi ganhando lentidão até parar por completo. Olhei para o chão e ele estava
repleto de lindas Camélias brancas. Mamãe recolheu uma delas e mostrou-me. Depois,
fez uma trança em meus cabelos e colocou a Camélia entre a trança. Foi exatamente o
mesmo gesto que havia feito algumas semanas antes de partir.

- Adeus jardineira. – Disse-me acariciando os cabelos.


- Mamãe, não vá. Sinto tanto a sua falta. – Pedi.
- Eu ainda voltarei para ficar perto de você, minha jardineira.

Deitei-me na grama forrada de Camélias e abri meus braços, segurando as flores entre os
dedos e cobrindo-me com elas. As cores brancas e puras das flores contrastavam com o
tecido preto do meu vestido. Continuei por longos minutos deitada no gramado. Envolver-
me naquelas flores era como receber o abraço que eu tanto precisava.

CAPÍTULO 4

INFÂNCIA ROUBADA

“Não há ponto final para o amor.


Amor é vida e vida é eternidade.
(André Luiz) ”
Dezembro 1940

Gostaria de dizer que depois de um certo tempo, recuperei a alegria em viver, que a dor
foi amenizada e a lembrança de mamãe já não era mais tão dolorosa. Mas não foi o que
aconteceu, as estações continuaram a passar e a minha tristeza não ia embora nunca.

O primeiro Natal sem mamãe foi muito triste, sentei-me à mesa com Carol, José e papai.
Não tínhamos nada especial para a Ceia, apenas um jantar comum, como em todos os
outros dias da semana. Éramos somente nós em casa, Paulinho já não morava mais
conosco, ele havia se mudado há algumas semanas para a Capital, fora morar com Beto.

Carol começou a arrumar a mesa, com frutas, pães e uma torta de pêssegos que ela mesmo
havia preparado, mas que desde a aparência, já mostrava não estar muito boa. Depois, ela
colocou um bonito arranjo de flores de Natal no centro na mesa.

- Para decorar, ficou bonito? – Perguntou.


- Sim, bonito. –Falei com os olhos marejados.
- O que foi Bel? Está triste? – Carol perguntou e eu afirmei com a cabeça.

Lembrei de mamãe. Ela sempre fazia os arranjos com as flores vermelhas de natal, depois
nos chamava para decorar o pinheiro. Cada filho colocava um enfeite na árvore, eu
gostava de colocar a estrela no topo.

-Carol, você não está mais triste? – Perguntei, vendo que minha irmã já sorria com mais
frequência.

- Eu tento ser feliz Bel. Acho que seria isto que mamãe iria querer, então você também
pode tentar. – Carol falou.

-Não sei, eu sinto só saudades. – Foi apenas o que eu disse.

Perto da hora do jantar alguém bateu à porta, papai foi abrir. Era uma mulher alta, morena
e bonita, mas estava vestida de um jeito escandaloso, com um vestido verde escuro, saltos
altos e maquiagem excessiva.

- Boa noite, me desculpem o atraso, eu estava ajudando minha mãe com a ceia de
Natal antes de vir para cá e ainda precisei esperar que meu irmão me trouxesse. –
A mulher falou, ajeitando os cabelos e entrando em nossa casa, reparei que trazia
uma vasilha consigo, coberto com um pano.
- Boa noite. Não há o que desculpar-se, entre. Estes são meus filhos, Carolina, José
e Isabel. – Papai nos apresentou.
- Olá, que lindos! – Disse a mulher, exibindo um sorriso em seus lábios vermelhos
de batom.
- Queridos, esta é Lúcia, ela é uma amiga do trabalho e veio jantar conosco hoje.

Demos boa noite à Lúcia e nos juntamos na sala de jantar. Lúcia se ofereceu para preparar
uma sobremesa, foi até a cozinha com Carol e usou figos para a sua receita. Eram figos
frescos que José e eu havíamos colhido mais cedo.

- Trouxe também estes biscoitos natalinos decorados, eu mesma que fiz. – Disse Lúcia,
oferecendo-nos o biscoito.

Lúcia jantou conosco. Foi um pouco constrangedor, trocamos pouquíssimas palavras e


papai estava tão calado, não parecia à vontade com a visita. Mais tarde, papai mandou
que fossemos nos deitar e disse que acompanharia Lúcia até a sua casa. Até aquele
instante eu não havia imaginado qualquer coisa diferente na relação de papai com Lúcia,
mas logo que saíram Carol anunciou.

- Papai está namorando.


- Namorando? Papai não pode fazer isso. – Falei, surpresa.
- Mas é o que parece. Viram como ela o olhava? – Carol continuou.
- Eu vi, devem estar mesmo namorando. – José falou desanimado.

Corri para o quarto e chorei, como papai podia fazer isso conosco e com mamãe? Fazia
pouco mais de 6 meses que mamãe havia partido e todos nós estávamos ainda muito
tristes, mas papai, como poderia estar já namorando? Não era justo, não era certo, era
decepcionante. Minha irmã me seguiu até o quarto e me encontrou aos prantos.

-Bel, porque choras? Não sabemos ainda de nada, vamos esperar que papai nos diga
alguma coisa. Eu até que gostei da Lúcia, você não?

- Eu jamais vou gostar! – E chorei ainda mais.

-Mas Bel, é a vida de papai, eu também me surpreendi, afinal faz tão pouco tempo que
mamãe morreu, mas o que podemos fazer? Não quer ver papai feliz?
-Sim, quero que papai seja feliz, mas... eu não quero nunca ter outra mãe. – Disse em
prantos.

-Mas não teremos outra mãe, Bel, ouça, nossa mãe sempre será única, mesmo que papai
namore ou se case. Também não sei se estou feliz com isso, mas se papai está...

- Carol... É o primeiro Natal sem mamãe, e nem você nem papai se importam! –
Choraminguei.

- Bel, não é só porque estamos tentando seguir em frente que esquecemos a mamãe. Você
não é a única que está sofrendo! – Carol falou com tom austero.

- Não! Isso não é justo! E eu não gosto quando você fala que mamãe está morta! Não fale
mais assim... ela ainda está aqui, ela nunca me deixaria, ela vem me ver sempre! – Gritei
entre lágrimas.

Carol balançou a cabeça em negação, ela não acreditava em mim.

- Escute Bel, eu vou falar com papai sobre isso, essa teima que você tem de falar
que vê mamãe. Porque eu não a vejo, nem José e nem papai? Isso não é legal,
papai vai ficar muito triste com você. – Carol falou e eu dei de ombros.
- Eu estou também muito triste com papai. Vocês podem até não acreditar em mim,
mas eu não me importo, porque a vejo e sei que ela sempre virá me ver. – Falei,
magoada.
- Tudo bem. Se continuar a dizer isso todos vão achar que está louca.

Balancei a cabeça em negação e me afundei no travesseiro. Eu precisava muito que


confiasse e acreditassem em mim, seria mais fácil se eles também pudessem vê-la,
pensei.

***

No outro dia pela manhã acordei e Carolina não estava mais deitada, fui até a cozinha e
vi que a porta da varanda estava encostada, Carol e papai estavam conversando.

- E ontem ela voltou a afirmar que vê mamãe... – Carol dizia.


- Estou preocupado, pensei que isso iria acabar, mas pelo que vejo só piorou, ela
ainda não superou. – Papai disse.
- Deve ser a forma que ela encontrou de não sofrer tanto papai, não sei. Papai, posso
lhe perguntar algo? Eu... queria saber se o Senhor está... namorando?
- Ora, Carolina, veja lá eu tenho idade para namorar? Na minha idade, com uma
família formada, saiba que eu e Lúcia, pensamos em nos casar. – Papai afirmou.
- Casar? – Indagou Carolina, surpresa.

Casar? Como assim? Eu não queria acreditar naquilo que estava ouvindo, meu
coração se partiu em mil pedaços.

- Eu sei que isso não é algo que se converse com uma filha, mas seu pai não pode
viver sozinho para sempre, espero que compreenda. E Lúcia é uma boa mulher
ela nunca se casou, vive para a família e para a igreja, a conheço há muitos anos
da Fábrica, ela trabalha comigo... sempre foi uma mulher respeitosa.
- Eu compreendo papai, só fiquei surpresa. Mas, quero também lhe dizer algo.
Conheci um rapaz... deveria falar com mamãe sobre isso, mas já não é possível.
Sinto-me envergonhada, mas fui pedida em namoro, se permitir, ele virá conversar
com o senhor.
- Agora fui em que fiquei surpreso. Você está com quantos anos mesmo, Carolina?
– Papai perguntou, fingindo não saber.
- Farei dezessete em breve, papai.
- Já? Tudo bem, tenho que aceitar que meus filhos estão crescendo. Preocupo-me
com Bel, será que aceitará Lúcia?

Passei correndo por Carol e papai como um vulto em direção ao jardim, subi no
Carvalho o mais alto que consegui, senti medo, mas a tristeza foi tão grande que
encobriu qualquer outro sentimento que eu pudesse ter.

- Bel, desça, vamos, você pode cair. – Chamou-me Carol.


- Eu não vou descer nunca!
- Vamos Isabel, desça da árvore, o que pensa que está fazendo, quer se machucar?
– Papai ordenou.
- Eu quero morrer! – Gritei.

Mas é claro que não morri, e o meu “nunca”, não demorou tanto assim, uma hora tive
que descer e enfrentar papai, enfrentar Carolina, nossa casa, meu quarto, a ausência
de mamãe, enfrentar tudo o que ainda viria pela frente e pior, enfrentar Lúcia.
***

Fevereiro 1941

Um novo ano começou, Lúcia mudou-se para nossa casa e eu fazia de tudo para evitá-
la, passava parte do dia no jardim, em cima de uma árvore ou brincando de
“jardineira”.

O jardim já não era mais o mesmo, mas ainda era muito bonito, algumas plantas e
árvores continuavam belas, mesmo sem serem regadas ou podadas, continuavam
firmes com suas folhas e frutas. Mas, a maioria das rosas e flores mais delicadas
haviam morrido, o que me deixava arrasada.

Comecei a frequentar a escola. Íamos pela manhã, caminhando, eu, Carolina e José.
Carol completou dezessete anos e se formou professora. Ela lecionava na escola
primária, a mesma que eu e José estudávamos. Ganhou a permissão de papai para
namorar Francisco e dizia que estava muito feliz e que até gostava de ser professora,
mas que assim que se casasse não precisaria mais trabalhar, pois o namorado era de
família rica.

Achei aquilo muito besta de se dizer. A verdade era que Carolina estava crescendo e
suas ideias mudaram muito, nos afastamos e eu quase não reconhecia a minha irmã
de poucos anos atrás.

José continuava como sempre, quieto. Apenas estudava, lia e pouco demonstrava seus
sentimentos, sempre que eu tentava conversar com ele a conversa virava um
monólogo.

Uma tarde, estávamos no jardim, sentados na grama e encostados no Carvalho, José


olhava para o velho balanço pendurado na árvore.

- Quer balançar Bel? Eu empurro. – José falou apontando o balanço.


- Não, eu não gosto mais do balanço. – Falei, balançando a cabeça em negação.
- Hum, acho que temos que pintar ele, olha só como a tinta já saiu quase toda. – Ele
disse.
- José, você gosta de Lúcia? - Perguntei
- Não sei. – José respondeu
- Mas não sente falta de mamãe? – Indaguei.
Ele apenas assentiu com a cabeça.

- Eu também sinto. – Falei.


- Eu acredito que você pode vê-la. – José falou.
- Jura, acredita mesmo?
- Sim.

O abracei com carinho, eu gostava muito de José, apesar de calado ele sempre foi um
bom irmão.

- O que vocês estão cochichando aí? – Lúcia gritou da varanda.


- Só conversando – José respondeu.
- Pois então entrem, daqui a pouco o pai de vocês irá chegar e vocês ainda estão aí
no jardim, imundos.

Ficamos assustados com a forma com que Lúcia falou conosco, praticamente
gritando, mandou que entrássemos e tomássemos banho, ao que obedecemos
prontamente. Papai demorava-se a chegar e eu e José estávamos famintos, fui então
até a cozinha pegar algo para comer até que desse a hora do jantar, mas não encontrei
nada, procurei sob o balcão, mas nem as frutas estavam lá, tentei abrir o balcão e
constatei que ele estava trancado à chave, procurei em todo lugar até que fui
repreendida por Lúcia.

- Ei, garotinha, não vai esperar o jantar? – Ela falou de forma hostil.
- Mas, ainda vai demorar até papai chegar - eu disse.
- Saia já da cozinha, vai esperar seu pai sim Senhorita! – Disse Lúcia

Engoli a seco e corri para meu quarto. Assim que papai chegou Lúcia serviu o jantar,
ela cozinhava muito mal, mas naquela noite eu estava faminta, já que não havia
comido nada durante à tarde. José também estava faminto, ele repetiu duas vezes.

- Nossa, que fome que vocês estão. – Reparou Carolina.


- É que esquecemos de comer esta tarde, ficamos brincando e depois...
- Eu os chamei, mas por certo não me ouviram. – Interrompeu-me Lúcia.
- Pois não esqueçam de comer, precisam se alimentar bem. – Papai nos alertou.
- Sim papai. – José falou, enquanto Lúcia nos lançava olhares de ameaça sem que
ninguém percebesse.
E foi naquele instante percebi que Lúcia era má, ela mentira para papai dizendo que havia
chamado. A verdade era a de que ela não nos suportava, havia trancado propositalmente
o armário da cozinha e ali escondido as frutas, pães e biscoitos.

Foi também assim nos outros dias, nunca encontrávamos o que comer quando papai e
Carol não estavam em casa. À noite quando chegavam Lúcia preparava o jantar e então
era a única refeição do dia que eu e José fazíamos.

- José, estou com muita fome. – Falei para meu irmão certa tarde.
- Eu também, mas está tudo trancado – José falou.
- É verdade, temos que falar com papai sobre isto que Lúcia está fazendo, não
podemos comer somente frutas o dia inteiro, daqui a pouco as frutas do jardim
vão acabar. Porque você não fala José? Já tem treze anos, é mais velho do que eu.
– Falei.
- Farei melhor, vou pegar as chaves escondido – José anunciou.

Entramos em casa, Lúcia estava no quarto dormindo e a porta ficou encostada, as chaves
estavam sob a penteadeira que era de mamãe, José entrou devagar, abrindo a porta
lentamente, mas ela fez barulho rangendo. Assustamo-nos pensando que Lúcia nos
surpreenderia, mas ela não acordou.

Entramos no quarto e alcançamos as chaves. Quando íamos saindo, o chão da casa, que
era de madeira, fez um barulho que acabou acordando Lúcia.

- Ei, o que pensam que estão fazendo, me deem já estas chaves, seus pestes, nunca
mais ousem entrar em meu quarto ouviram, insolentes. – Gritou esbravejando.
- Isso não é justo, queremos a chave do armário. – Falei corajosa.

Lúcia riu e mostrou para mim as suas tamancas, pesadas, feitas de madeira.

- Vejam isto, vou bater em vocês com isso se continuarem a me enfrentar, jogo na
cabeça de vocês. – Falou arremessando o calçado contra a parede.
- Não faça isso. – Disse José apavorado.
- Ouçam bem vocês dois, se contarem ao pai de vocês eu vou pegar os dois, acho
melhor ficarem calados entenderam? Entenderam? – Gritou.
Saímos correndo do quarto muito assustados, tivemos medo de que Lúcia fizesse o que
prometera e nos batesse caso contássemos para papai que ela nos tratava mal e não nos
deixava comer. Pensei então em contar para Carol, minha irmã certamente acreditaria.

Mas Carol estava em uma fase nova em sua vida, só falava do namorado e até em
casamento já estava pensando, com apenas poucos meses de namoro. Ele era o rapaz
bonito e rico com quem sempre sonhou. Eu só esperava que fosse feliz.

Mais a noite, já na hora de dormir, decido falar com Carolina.

- Carol, eu estou muito triste... – Comecei a falar.


- Com a ausência de mamãe, é isso? Olha Bel, eu...
- Não, não é somente isso, mas é Lúcia, ela não gosta de mim e de José. – Falei.
- Bel, eu sempre a vejo os tratar muito bem, isso é implicância sua, eu conversei
com Lúcia e ela me contou que você e José foram rudes com ela esta tarde. – Disse
Carol.
- Rudes? Eu e José? Não! Carol, nós não fomos rudes, Lúcia que não nos deixa
comer, ela briga e nos ameaça, tranca o armário com chave. - Contei
- Isabel! Lúcia me contou que você gritou com ela e disse que ela não era nossa
mãe para lhe dar ordens, só porque ela pediu que fossem tomar banho. Ouça Bel
você e José não são mais tão crianças assim...
- Mas é mentira!! É mentira! – Gritei.
- Vamos dormir Bel, amanhã temos que acorda cedo, preciso descansar.
- Mas Carol, eu pensei que você acreditaria em mim. – Insisti.
- Boa noite Bel, durma bem. – Finalizou.

Eu mal pude acreditar, além de minha irmã não acreditar em mim ela escolhera
acreditar em Lúcia, estava cega, eu não tinha mais com quem contar. Chorei baixinho,
rezei e pensei em mamãe, então, a encontrei.

Naquela noite a vinda de mamãe foi ainda mais real. Ela veio e me abraçou, passou a
mão em meu rosto o acarinhando, pegou minhas mãos e rezou comigo. “Não deixe
de rezar Bel, e não fique triste com Deus, ele te ama tanto quando eu”. Sentei-me na
cama e a abracei com amor, quanta saudade eu sentia, pude sentir seu perfume e seu
afago aconchegante. Depois mamãe cobriu-me e acenou com a mão se despedindo.
Às vezes sonhamos com algo tão maravilhoso que não desejamos mais acordar,
queremos ficar presos ao sonho, tão real e incrível. Estar com mamãe era como um
sonho, mas eu não podia desejar continuar sonhando, eu estava mesmo acordada,
disso tive certeza.

Depois desse dia mamãe veio me ver quase todas as noites. Às vezes somente me
olhava com ternura, outras vezes sentava-se à beira de minha cama e sorria para mim.
Era reconfortante vê-la após um dia cheio de tristeza, era o bálsamo que me fazia
dormir em paz. Eu não sabia como aquilo era possível, mas fiz como mamãe havia
pedido; agradeci a Deus por permitir que mamãe viesse me ver.

CAPÍTULO 5

MAIS UMA VEZ OUTONO

“Saudade é uma dor que fere nos dois mundos.”


Chico Xavier

Um ano depois... 1942

Era como se me faltasse o ar. Como se a minha vida e minha história também tivessem
sido interrompidos e meus sonhos fossem apagados para nunca mais brilharem. Percebi
que a vida não era nada fácil, e que eu precisaria me esconder e encolher meus
sentimentos muitas vezes se não quisesse sofrer.

Isso era o que eu tentava fazer todos os dias. Encolher a minha dor, sufocando-a dentro
de mim. A vontade de gritar era imensa, mas eu estava crescendo e as pessoas pareciam
exigir que me recuperasse e parasse de lamentar. Um ano havia se passado, me tornei
uma caixinha de guardar lembranças, como se tudo o que eu tivesse vivido fosse o
resquício de felicidade que não teria mais. A caixinha estava completa e não havia nada
de novo para lembrar, só para esquecer.
Acordei triste naquela manhã. Me levantei e fui até a cozinha, papai e Lúcia tomavam
café, quando entrei ambos me olharam. Lúcia ofereceu-me bolo. Ela era incrivelmente
amável comigo quando papai e Carol estavam por perto.

- Obrigada. – Peguei a fatia de bolo e fui para a varanda.

Sentei-me na cadeira de balanço e olhei para o jardim. Doía muito ver como ele estava
feio, nada mais ali lembrava o jardim de mamãe. Chorei recordando tantos momentos
incríveis que ali passei, de como havia sido feliz, da amabilidade de mamãe para comigo
e com as flores.

Papai veio logo em seguida. Sentou-se na banqueta ao meu lado e também olhou o jardim
por longos minutos.

- Esse jardim é muito importante para você, não é Bel? – Papai disse.
- Sim, eu amo este jardim papai, mas estou triste em vê-lo assim. – Falei, deixando
correr mais uma lágrima.
- Eu sei, só o que posso fazer é cuidar do gramado, mas, das flores eu não entendo,
por isso muitas morreram.
- Lúcia arrancou muitas plantas também. – Falei magoada.
- Mas já estavam mortas Bel, só as plantas e árvores muito fortes sobrevivem sem
cuidado. – Disse-me
- Eu tentei cuidá-las, mas não consegui. Todas as flores dos canteiros morreram.
Ao menos ainda tenho as minhas Camélias, o Carvalho e ipê. - Falei contemplando
a imensa árvore.
- Essas árvores são muito fortes, nem um raio as derrubaria, sabia? Se um raio
atingisse o Carvalho, só o tornaria ainda mais forte.
- Eu só sinto saudades de mamãe aqui, perto de nós... – Falei, chorando.
- Sinto muito, filha. – Disse papai comovido.

Papai não gostava que o vissem chorar e mais ainda, não gostava de me ver chorando.
Naquele instante percebi que essa era também a sua vontade: chorar. É claro que ele
também sentia saudades de mamãe, da cumplicidade que tinham, dos momentos em
família, de estarem juntos na varanda. Quando viu que a saudade era tão grande, que ia
transbordar em lágrimas, papai levantou-se e entrou em casa.
Continuei contemplando o jardim completamente modificado e pensando em mamãe, na
saudade que sentia, nas noites em que ela aparecia para mim e em como eu desejava por
aquele encontro, que era sempre muito especial, mas também muito confuso, já que
ninguém acreditava em mim.

O Outono mais uma vez havia chegado, o chão estava novamente coberto de folhas secas
e flores do ipê, as Camélias estavam lá, mais lindas do que nunca, mas mamãe não estava
comigo.

Levantei e fui até o meio do jardim. Sentei na grama ao lado da Cameleira e procurei
alguma Camélia no chão, mas nenhuma havia caído. Sequei com as mãos as lágrimas que
ainda insistiam em cair, depois, acarinhei uma Camélia. Eu sabia que não devia fazer isso,
sabia que a Camélia não devia ser tocada para não ficar amarelada, mas foi impossível
resistir a este gesto. Acarinhar as pétalas suaves de uma Camélia era como acarinhar o
rosto de minha mãe.

Neste instante ela apareceu, usando o seu vestido de tecido azul escuro, com um manto
sobre ele. Em seu rosto, o véu; exatamente como eu a havia visto pela última vez. Mamãe
caminhou lentamente em minha direção e sorriu, foi então que percebi que o véu lhe
cobria apenas um lado do rosto. Ela olhou para mim por alguns instantes e depois chegou
mais perto, enquanto eu continuava sentada na grama, a olhando de baixo, então mamãe
ajoelhou-se e deu um beijo em minha face, depois, falou comigo.

- Minha jardineira, estás crescida. Ouça, não chores mais pela minha ausência ou
pelas flores que morreram, lembre-se: “o coração é o melhor lugar para uma
lembrança boa viver”. Lembre-se que eu sempre estarei perto de você. – Mamãe
sorriu com seu sorriso de anjo e me disse adeus.
- Mamãe? Mamãe!! – Gritei, chorando muito.

Fiquei ali, deitada na grama, chorando e implorando para que ela não me deixasse. Chorei
até doer meu coração. A saudade que sentia de minha mãe chegava a doer
verdadeiramente, senti que aquela era uma despedida, ao menos foi assim que entendi
naquele momento. Deitei-me na grama pois meu corpo era para mim insustentável.

Papai e Carol vieram me socorrer e José veio logo atrás. Papai pegou-me no colo e levou-
me até o sofá da sala.
- Filha, filha, fale comigo, o que houve?
- Essa menina está cheia de frescuras – Disse Lúcia.

Papai olhou surpreso para Lúcia. Acho que não imaginou que ela fosse dizer aquilo.

- Bel não superou a morte de mamãe. Tadinha, sofre muito ainda. – Falava Carol,
preocupada.
- E você superou? – José perguntou, olhando para Carol.
- É claro que não. Mas eu não sou mais uma criança. – Carol respondeu.

Eu queria parar de chorar, mas não conseguia, estava desesperada. Toda a saudade de
mamãe viera à tona de uma só vez naquela manhã. Não sei por quanto tempo chorei e
nem como conseguiram me acalmar. Papai e José perguntavam-me a todo momento o
que havia acontecido para que eu ficasse daquela maneira.

Anoiteceu, eu ainda permanecia imóvel e emudecida. Em minha cabeça passava um filme


daquele último ano, coisas que eu gostaria de apagar para sempre de minha memória.

- Deixe-a descansar, amanhã estará melhor. – Lúcia sugeriu com desdém.


- Carolina, fique de olho na sua irmã esta noite, se possível deite-se com ela. – Papai
pediu.

Papai levou-me no colo até o quarto, deitou-me em minha cama, Carol vinha logo em
seguida, trazendo o candeeiro.

- Ela não virá mais. – Falei olhando para meu pai.


- O que? O que disse Bel? – Papai perguntou.
- Mamãe... ela não virá mais me ver.
- Querida, você precisa ficar bem, descansar.
- Ela sempre veio me ver papai. Mas hoje foi diferente, parecia uma despedida.
- Do que está falando querida?
- Mamãe estava com o vestido azul, com um manto... e estava com um véu. Mas eu
não sei porque, só um lado do seu rosto aparecia. Ela nunca aparecia assim... Então
ela me disse adeus... foi como uma despedida, acho que não voltarei a vê-la. –
Falei, abatida.

O rosto de papai mudou de expressão no instante que falei do véu.


- Véu? – Papai disse assustado, olhando para Carolina.
- Sim, papai.
- Você disse.. disse que o véu... – Papai gaguejou.
- Ela estava vestida como na última vez em que a vi. O véu branco, o vestido azul,
mas o véu lhe cobria apenas um lado do rosto. Foi assim que mamãe apareceu
hoje. – Falei.

Carol começou a chorar, papai também se emocionou, mas procurou disfarçar.

- O que foi? – Perguntei, sem entender.


- Bel... – papai abraçou-me – perdão querida. Eu acredito em você. – Papai falou.
- Eu também acredito, Bel. Me desculpe... – Falou Carol, enxugando as lágrimas.

Eu estava tão triste e fraca que não desejei saber o motivo da repentina mudança de
opinião de papai e Carol. Adormeci, cansada.

Acordei tarde na manhã seguinte, passava das dez horas, minha garganta estava seca
e meu estômago faminto. Fui até a cozinha beber um pouco de água e tentar comer
algo, era um final de semana e papai estava em casa. Ao me aproximar percebi que
papai conversava com Lúcia.

- Ela falou do véu, então não pude mais duvidar. Isabel não foi até o enterro da mãe,
como poderia saber? – Papai falava.
- Pode ter ouvido comentários... a própria irmã pode ter lhe contato. – Dizia Lúcia.
- Não! Estou certo de que ninguém falou com ela sobre isso. Foi para nós um
momento muito delicado. Tomamos muito cuidado para que Bel não sofresse
ainda mais.
- Não acredito nisso! Como pode a menina ver a mãe? Se está morta! – Lúcia falou
irritada.
- Lúcia, às vezes você é tão indelicada. Isabel acabou de completar nove anos, é
ainda uma criança, porque mentiria? Como poderia saber, inventar algo assim? –
Papai falou.
- Ela não é mais tão criança assim, Antônio. – Disse Lúcia a papai. – Nessa idade
já capaz de inventar certas coisas...

Voltei para o quarto e abri as cortinas, estava frio e chovia um pouco. Uma chuva fina
que molhava o dia e depois escorria pelo vidro da janela. Dias assim traziam-me a
impressão de que as horas demorariam a passar. Dentro de mim também existia um
dia frio e triste, que chovia melancolia.

-Bel? Eu queria falar com você.

-Oi Carol, o que foi? – Perguntei, sem tirar meus olhos do jardim.

Carolina entrou em nosso quarto, falando baixinho, enquanto se aproximava de mim.


Ela também olhou através da janela como se estivesse procurando algo que eu pudesse
estar enxergando.

- Você está vendo a mamãe? – Perguntou-me.


- Não, só estou olhando o jardim. – Falei.
- Eu gostaria de também ter visto mamãe. – Carol falou.
- Você não acreditava em mim, o que mudou? – Perguntei.
- O véu... – Carol falou abaixando o rosto.
- O véu? O véu de mamãe? – Questionei, sem entender nada.

Fez uma pausa, puxando o ar com força, depois continuou a falar.

- Fiquei desesperada naquele dia.… quando foram enterrar mamãe. Queria


prolongar aquele momento, de estar com ela. Então corri e a abracei, beijei,
chorando e gritando. As pessoas me puxavam, tentando me controlar, mas a dor
era tão grande Bel... – Carol falou entre lágrimas e soluços.
- Não me deixaram ver mamãe... – Lembrei.
- Eu sei, todos diziam que você era muito criança, e eu já era uma moça, então devia
ser forte. Mas eu não era forte. Naquele dia eu estava fora de mim, foi quando
papai me puxou com mais força e me abraçou. Então levaram mamãe, mas minhas
mãos arrastaram parte do véu que usava e ela foi enterrada com apenas um lado
do rosto coberto. Assim como você a viu, Bel.

Não respondi nada à minha irmã. Só imaginei o quanto teria sido bom se ela tivesse
acreditado em mim desde o início, e se também poderia acreditar sobre o que eu havia
falado sobre Lúcia, do quanto ela era má.

Mas não falei nada. Continuei olhando através da janela, observando a chuva fina escorrer
pelo vidro, as folhas secas caírem no chão e ali apodrecerem, lembrando dos dias em que
vi o sol nascendo e depois se pondo, nas noites intermináveis e nas estações que vi
chegando e depois partindo. Aquele ano havia passado sem que eu saísse do lugar. Estava
presa dentro do meu sofrimento.

E um dia, antes que o outono fosse embora, antes que a dor pela perda de mamãe
começasse a amenizar, sem que esperássemos, foi a vez de papai partir. Foi o coração,
disseram-me, assim como havia acontecido como mamãe. Eu não quis acreditar, como
poderia suportar mais sofrimento? Lembrei-me dos dias em eu corria pelo quintal com os
braços abertos, enquanto mamãe e papai sorriam para mim. Eu amava correr naquele
jardim, amava o estalar das folhas secas sob seus pés.

Me dei conta de que daquele dia em diante só me restariam as folhas secas e poucas
fotografias. Então eu briguei novamente com Deus. Senti-me como uma margarida
perdendo suas pétalas: primeiro, foi mamãe, agora, papai. Isso era justo? Como podia o
coração de papai também deixar de bater?

Com a alma dolorida perguntei a Deus porque é que ele decidiu levá-los? Será que eu não
era uma boa criança e ele estava me castigando? Eu queria saber como Deus podia
permitir que eu sofresse tanto, e como o coração, que era só responsável por guardar amor,
podia fazer isso comigo? Por que Deus não me levava embora também?

Chorei, sentindo novamente a ferida se abrir. Tive muito medo de ficar sozinha, de não
ter mais quem olhasse por mim, que me cuidasse e protegesse. Apavorava-me a ideia de
que Lúcia resolvesse continuar em nossa casa, que convencesse as pessoas de que cuidaria
de mim e de José. Sabia que a nossa vida seria um inferno se isso acontecesse.

Carolina estava de casamento marcado para o início de julho, e apesar de triste com a
morte de papai não adiou a cerimônia. Casar-se era seu maior sonho. Beto, não conseguiu
estar presente para despedir-se de papai, assim como não pudera vir para o enterro de
mamãe. Paulinho também não estava conosco, tinha ido morar com Beto na Capital.

Então Tia Rosa escreveu-lhes uma carta detalhando tudo o que havia acontecido e
lamentou que a distância impedisse a completa reunião da família naquele momento tão
triste. Na carta contou sobre o casamento de Carolina e os convidou para que viessem nos
visitar com urgência e que nesta ocasião conversariam sobre o destino da família, da casa
e de algumas pequenas propriedades que papai tinha na cidade.
Olhei para nossa casa e constatei que mesmo sendo a mesma - onde eu tinha vivido todos
aqueles anos - nada mais ali era como antes. Estávamos perdidos sem os nossos pais.

Lúcia andava pela casa com altivez, não demonstrando qualquer tristeza. Só quando
estava na presença dos vizinhos e de tia Rosa ela se enchia de condolências.

- Para mim será muito difícil seguir sem Antônio. Mas continuarei a fazer por seus
filhos o que puder, serei como uma mãe. – Disse cinicamente.
- Entendo Lúcia, mas creio que também devo ajudar, afinal são meus sobrinhos.
Carol noivou, deve casar-se em breve, mas falo de Isabel e José, que são os mais
novos, é minha obrigação cuidar deles. – Tia Rosa respondeu.
- No que depender de mim, você não precisará incomodar-se. Se os filhos mais
velhos de Antônio permitirem que eu continue nesta casa tudo continuará como
antes. Apeguei-me muito à Isabel e José. – Dizia Lúcia, em sua encenação.
- Eu não sei se será bom para as crianças continuar vivendo aqui nesta casa, cheia
de lembranças e saudade. Queria Levar Isabel e José para morarem comigo. –
Disse Tia Rosa, para minha surpresa e também de Lúcia. – Mas vou esperar Beto
e Paulinho chegarem da Capital e nos reuniremos com Alfredo e Henrique. Eles,
sendo os filhos mais velhos, decidirão o que for melhor. – Tia Rosa ponderou
- Ah! Sim, são muito sensatos. Com certeza entenderão a forte ligação que Isabel
tem com esta casa e a deixarão aqui comigo. Sei que farão o que deve ser feito. –
Disse Lúcia.

Sempre que ouvia esses diálogos entre Tia Rosa e Lúcia eu sentia arrepios de pavor tomar
conta do meu coração. Eu sabia que Lúcia era dissimulada o suficiente para convencer a
todos, mas, mesmo tempo que não queria ficar ali com Lúcia, a ideia de deixar aquela
casa era realmente dolorosa para mim.

Entendi que a morte era algo ruim, que trazia dor e saudade, nos jogava no escuro, nos
privava do amor e da companhia de quem amávamos. A morte tinha esse semblante triste
e pesado, era ingrata e cruel.

CAPÍTULO 6
FAMÍLIA E OS LAÇOS DE AMOR

“Que eu jamais me esqueça que Deus me


ama infinitamente, que um pequeno grão de alegria
e esperança dentro de cada um é capaz
de mudar e transformar qualquer coisa”
(Chico Xavier)

Da mesma forma como fez quando mamãe morreu, tia Rosa veio para nossa casa ficar
algum tempo conosco. Apesar da insistência de Lúcia em dizer que poderia cuidar de
mim e de José sozinha, tia Rosa insistiu, o que deixou Lúcia muito contrariada.

Tia Rosa era atenciosa conosco, mas, sempre ansiosa, não parava nenhum segundo e
desde que chegou à nossa casa, estava sempre fazendo algo, cozinhando ou limpando ou
cuidando das nossas roupas.

- Tia Rosa, teremos que usar roupas pretas mais uma vez? - Perguntei.
- Sim Bel. Pelo luto de seu pai. – Ela respondeu passando a mão na minha cabeça.

Suspirei com pesar. Ter que usar roupas pretas novamente não me deixava feliz, aliás,
nada mais parecia ser capaz de me trazer felicidade. Lembrei-me de que quando mamãe
morreu, usamos roupas pretas por um ano, depois, pudemos usar algumas peças mais
claras, uma meia, um lenço de cor diferente, até voltarmos a usar roupas coloridas. E
então, tudo se repetia. Lá foi tia Rosa tingir mais uma vez as novas e poucas roupas
coloridas que tínhamos. As roupas pretas de dois anos atrás não nos serviam mais.

Apesar de o momento ser muito triste, eu e José ficamos aliviados em ter Tia Rosa por
perto, assim, Lúcia não poderia nos maltratar. Ao contrário, teria que encenar ser a mais
perfeita madrasta, e ela fazia isso muito bem. Nas raras visitas de Alfredo e Henrique, ela
estampava o seu melhor sorriso para convencer a todos de que era uma boa pessoa, de
que era amável.

Mesmo assim, supostamente protegidos por nossa tia, José havia criado coragem e
pensava seriamente em contar para todos o quanto Lúcia nos fazia sofrer, a privação de
comida e as vezes que nos batia sem o menor motivo. Seria uma tentativa de fazer com
que a expulsassem para sempre de nossas vidas.
Aguardávamos ansiosos pelo dia em que Beto e Paulinho chegariam para o casamento de
Carolina e sabíamos que esta visita mudaria muitas coisas para todos nós.

***

Não me recordo ao certo o tempo que demoraram na viagem. Pareceu-me uma eternidade.
Lembro-me apenas da minha ansiedade, de sempre ir à porta conferir se meus irmãos já
haviam chegado, o que de fato aconteceu no meio de uma manhã bastante gelada, dois
dias antes do casamento de Carolina.

Surpreendi-me com Paulinho. Havia mudado muito na fisionomia nos dois anos em que
estava morando na Capital. Estava com barba e também mais magro, e até mesmo o seu
jeito de falar estava diferente.

Já Beto, apesar de lembrar pouco dele, pois era muito pequena quando ele tinha ido
embora de nossa casa, me passou tanta serenidade. Meu coração se encheu de esperança
e alegria ao vê-lo. Tudo nele lembrava a nossa família. Nossos olhos eram da mesma cor,
esverdeados, como os de papai e tínhamos também os mesmos cabelos castanho-claro e
lisos.

Eu, Carol, tia Rosa, Lúcia e José estávamos na varanda para recepcioná-los.

- Carolina! Bel! José! Nossa! Como vocês cresceram! – Falou Paulinho assim que
nos viu.
- Fizeram boa viagem? Entre, vamos comer alguma coisa, pois devem estar
famintos. Venham, conversamos melhor longe deste frio. – Tia Rosa falou.

Antes de entrarem, Paulinho e Beto cumprimentaram cordialmente Lúcia, sem nenhum


entusiasmo, apenas com gentileza, ao que ela retribuiu estampando um enorme sorriso.

Beto entrou na sala e olhou para as paredes como em reconhecimento, analisando tudo
quase sorrindo, quando de repente, ficou sério e triste.

- Nossa! É muito difícil voltar a esta casa e não encontrar papai e mamãe aqui. Eu
gostaria muito de ter me despedido deles. – Falou, com os olhos na direção da
fotografia de mamãe e papai que ficava na parede da sala.
- Oh, querido. Seus pais tinham muito orgulho de você. Sempre falavam do filho
que foi para a Capital estudar. Era muito importante para eles que o seu futuro
estivesse garantido. – Tia Rosa disse para consolá-lo.
- Eu sei, tia. Obrigado, mas é impossível não lamentar. Essa casa me traz ótimas
lembranças de quando eu era criança. Neste momento, estou tomado por
recordações e saudades. - Beto falou e, no momento que olhou para mim, abriu
verdadeiramente um sorriso, lembrando-me o sorriso de papai. A saudade apertou
um pouco mais nesse momento, com uma pontada de dor trazida com a nova
perda, tão recente.
- Isabel, você era bem menor quando fui embora, sabia? E José, como foi que
cresceu tanto assim? Comeram fermento? – Ele nos perguntou sorrindo e nos
abraçando.
- Não. – Respondi balançando a cabeça em negação, enquanto ruborizava.
- Vocês todos mudaram muito. Vejam só! Até a minha irmãzinha Carolina vai se
casar.... Onde está o seu noivo? Terei que aprová-lo, sabe disso não é, Carolina?
– Beto falou fazendo cara séria.
- Papai nos deu a aprovação. Mas faço muito gosto que o conheça. Vai gostar dele.
Acredito que terão a oportunidade de se conheceram antes do nosso casamento. –
Carol falou.

Beto lançou um olhar divertido para Carol. Ele parecia ser uma pessoa feliz e foi essa a
primeira coisa que notei no meu irmão.

Durante aquele dia ninguém tocou no assunto da casa, das outras propriedades de papai
e do rumo que tomariam as nossas vidas, mas parecia que todo o nosso destino seria
novamente traçado com a vinda dos meus irmãos. Percebia-se o quanto Lúcia estava
nervosa, ansiando pelo momento daquela reunião familiar e também pelo momento em
que todos fossem embora e ela pudesse voltar a ter sua real postura, que era bem diferente
daquela que estava tão dificilmente sustentando.

Depois do almoço vi que Beto foi para o jardim. Fui para a varanda e fiquei observando-
o caminhar pelo pátio, se aproximar do Carvalho e depois ir em direção da Goiabeira. Ele
esticou os braços, apanhou uma fruta e a mordeu. Quando me viu na varanda, chamou.

- Vem aqui, Isabel. Você gosta de goiaba?


Caminhei tímida até meu irmão, afirmando que eu gostava muito de goiaba. Ele colheu
outra fruta do pé e me ofereceu.

- Sabia que fui eu quem plantou esse pé de goiaba? Claro, com a ajuda de papai. Eu
tinha um pouco mais do que a sua idade. – Beto falou.
- É mesmo? Um dia eu também quero plantar uma árvore e vê-la crescer. – Falei.
- É uma coisa muito legal de se fazer, mas você já deve ter plantado algo neste
jardim...
- Eu só plantei algumas mudas de flores. Mamãe gostava de me ensinar. Beto, onde
você mora tem muitas árvores no quintal? – Perguntei curiosa.
- Ah! Bel, e se eu lhe disser que nem quintal eu tenho? Moro numa casa que só tem
uma calçada e uma rua a sua frente. Onde moro é tudo muito diferente daqui. –
Beto falou.
- Mas, se não tem árvores, nem quintal... então, não tem flores? – Perguntei. Para
mim era muito estranho imaginar um lar sem flores e árvores. Com certeza um
lugar assim não podia ser bonito, pensei.
- Não tenho flores nem em vasos, o que é uma pena. Gostaria de ter um jardim
como este lá na Capital. Mas existe uma praça muito bonita perto da minha casa
e lá sim, tem muitas árvores. Bel, você gostaria de conhecer onde moro?
- Eu... não sei... eu ia sentir falta daqui, mas, só se eu levasse algumas flores. – Falei
e Beto sorriu.

***

Quando anoiteceu, Alfredo e Henrique chegaram para o jantar, e por serem os mais
velhos, eram a quem todos aguardavam para conversar sobre o destino da família.

Depois de muitos abraços de saudades, perguntas sobre a viagem e sobre o crescimento


da Capital, sentamo-nos para comer.

- Ah! Como eu gostaria de conhecer o mar. Com toda essa idade que tenho, ainda
não tive esta oportunidade. – Disse Alfredo lamentando-se.
- E o cinema, as praças, tudo deve ser maravilhoso na Capital, não é Beto? –
Perguntou Henrique.
- É bonito, sim. A cidade cresceu muito. Vi muita coisa mudar por lá nestes seis
anos.
- Seis anos? Já tem todo esse tempo que se mudou? – Perguntou tia Rosa. Nossa!
Como o tempo passa rápido. Mas então, você já se formou Advogado?
- Sim, formei-me ano passado e iniciei minhas atividades como advogado logo em
seguida. Até pensei em retornar para esta casa, mas conheci Maria Antônia e então
decidi ficar. Pretendemos nos casar e agora não vejo outra maneira senão
continuar a minha vida por lá. – Disse Beto.
- Ah! Está noivo, meu irmão? – Perguntou Carolina, surpresa.
- Ainda não, mas farei o pedido em breve. – Respondeu Beto.

Bateram à porta e Carolina saltou da cadeira para atender.

- Deve ser meu noivo. Francisco disse que viria esta noite para conhecer vocês. –
Ela disse, referindo-se a Beto e Paulinho.

Todos conversavam à mesa, com exceção de mim, que me achava alheia às conversas dos
adultos, e Lúcia, que parecia sentir-se deslocada, sem conseguir participar de uma
conversa tão familiar.

- Boa noite. – Francisco entrou cumprimentando a todos.


- Boa noite. Sente-se e jante conosco. – Lúcia convidou
- Obrigado. E muito prazer em conhecê-los. A Carol sempre fala muito de vocês,
principalmente de você Paulo. Já sinto como se os conhecesse.

O noivo de Carolina era um rapaz bonito e bem de vida. Vestia-se bem, sempre aprumado,
calças largas com cintura alta e paletós longos. Era a roupa da moda. Carol sempre dizia
que ele era o charme e a elegância em pessoa. Francisco queria estudar para ser
Engenheiro e era filho único de um fazendeiro de soja da nossa região e a empresa do pai
já naquela época, exportava para fora do país. Ou seja, “o partido ideal”, com qual
Carolina sempre havia sonhado. Naquela época eu mal entendia qual a importância que
isso tinha, mas ouvia com atenção todos os comentários elogiosos ao rapaz.

Naquela noite novamente não tiveram a conversa pela qual todos aguardavam. Ficaram
falando sobre outros assuntos. Depois ficou muito tarde e tia Rosa fez como papai
costumava fazer: deu boa noite a todos, agradeceu e apagou a luz do candeeiro. Era hora
de as visitas irem embora e os de casa, dormirem. A cada noite eu lembrava de que em
breve não teria mais também a minha irmã Carolina ao meu lado. Quando pensava nisso,
o quarto parecia mais escuro e a minha vida mais solitária
***

O casamento de Carolina teve uma cerimônia simples e exceto na sua chegada à Capela,
quando chorou, ela manteve-se todo o tempo linda e feliz. O seu vestido tinha cor de
pérola e era cheio de rendas. Usava um véu da mesma cor do vestido e um buquê de flores
do campo. Nesta ocasião, tia Rosa permitiu usarmos outra cor que não a cor preta, era
uma exceção, disse ela.

A celebração foi em uma pequena Capela. Deve ter sido a primeira vez que lá estive e
hoje já não me recordo onde ficava, mas devia ser próximo à nossa residência, pois fomos
de carroça e os noivos no carro de molas, e chegamos sem demora.

Em nossa casa recebemos os convidados, que eram poucos, mas sendo nossa família
muito grande a casa já parecia pequena para tantas pessoas. Dois retratos foram tirados
pelo retratista: um com toda a família próximo ao bolo e outro, apenas com os noivos.
Este último arrancou sorrisinhos de José, tão aterradora foram as feições dos noivos com
o disparo da combustão da pólvora. Os noivos nem devem ter visto os risinhos, tão grande
a "fumaceira" que se instalou em seguida

Foi nesse dia que tirei o meu primeiro retrato, junto aos meus irmãos. Senti um imenso
vazio, um sentimento de incompletude. Eu desejava tanto um retrato com mamãe e papai
e sabia isso jamais seria possível. Deve ter sido este mesmo sentimento que fez Carolina
chorar quando chegou à igreja, antes do casamento. Quem a conduziu ao altar foi Alfredo,
o nosso irmão mais velho.

- Querida, você está tão linda! Desejo que sejam muito felizes. Formam um lindo
casal. – Disse Lúcia ao cumprimentar Carol.
- Obrigada, Lúcia.
- Você fará muita falta nesta casa. Sentirei saudades, assim como Bel certamente
também sentirá, certamente. – Continuou. – Não é mesmo, Isabel? – Falou,
puxando-me para mais perto da conversa.
- Vou sentir muita saudade. Não queria que você fosse embora, Carol. Não gosto
de dormir sozinha. – Falei.
- Oh! Bel! Sentirei muita saudade, mas agora eu terei outra casa. – Carol falou me
abraçando. – E virei lhe visitar muitas vezes. Não é longe onde irei morar e você
poderá me visitar sempre que quiser.
- Mas não é a mesma coisa! Não é a mesma coisa! – Gritei, soltando-me do abraço
de minha irmã e correndo para o fundo do quintal onde não havia ninguém.
Naquele instante eu chorei. Voltei a chorar de medo. Chorar com a sensação de
estar sendo abandonada e de estar desprotegida. Depois de uns minutos Beto
apareceu.
- Bel, está chorando? – Ele perguntou se aproximando. – Está triste? Conte-me o
que aconteceu...
- Eu... não tenho mais ninguém. – Respondi tentando enxugar as lágrimas, mas sem
sucesso já que elas debulharam como uma explosão logo em seguida.
- Mas você tem a sua família, seus irmãos, tem tia Rosa. Não fique assim, estamos
aqui com você. – Beto respondeu tentando me consolar.
- Mas não vão estar aqui o tempo todo! – Respondi.
- E Lúcia? Ela estará! Não é Lúcia que vem cuidando de vocês neste tempo difícil?
– Perguntou, enquanto via crescer em meu rosto a maior expressão de medo que
uma criança poderia mostrar. – Bel, como você sente com Lúcia? – Perguntou
finalmente percebendo minha reação.
- Com medo. – Respondi pulando nos braços do meu irmão, como em um pedido
de socorro enquanto mais lágrimas caiam pesadas.

CAPÍTULO SETE

LIBERDADE

“Leve na sua memória para o resto de sua vida as coisas

boas que surgiram no meio das dificuldades.”

Chico Xavier

O que é a liberdade? Para mim, enquanto criança, ser livre muito tinha a ver com
“sonhar”, experimentar momentos de desamarras, de leveza, onde eu pudesse voar para
onde quisesse. Então, vez ou outra, poderia tentar brincar de ser feliz. Poderia voltar a me
balançar no balanço do Carvalho, rolar na grama e fazer meus anjos de outono. Poderia
tudo o que desejasse.

Mas eu me sentia presa. Rendida aos sentimentos de medo que me tomavam por inteira.
A incerteza, as angústias, a saudade e a dor. Estar preso dentro de uma dor pulsante é algo
desesperador. Por isso eu ansiava por liberdade. Minha alma desejava ser livre, ser feliz.

- Querida, porque não vai brincar lá fora? – Eu, seus irmãos e Lúcia temos que conversar
um pouco. – Falou-me tia Rosa.

- Eu posso conversar também? – Perguntei.

- Desta vez não, Isabel. – Tia Rosa falou. Mas logo que percebeu minha decepção,
ponderou. – Vamos fazer assim, teremos essa conversa em duas partes. Eu lhe chamo
quando for a segunda parte da conversa. Está bem, querida?

Assenti com a cabeça e corri para o lado de fora da casa, circundando-a até chegar à janela
do quarto de José.

- José, Tia Rosa e nossos irmãos irão conversar. Você deve ir também. – Falei como
se fosse uma ordem.
- Mas, me chamaram? Acho melhor não me intrometer.
- Deixa de ser bobo, José! Eles não me deixam participar porque sou criança. –
Falei revirando os olhos. – Mas você não é mais criança.
- Está bem, eu vou. Você acha que devo contar sobre Lúcia?
- Não sei. – Falei erguendo os ombros. – Eu acho que Lúcia também estará na
conversa. Só se você não tiver medo.
- Não sei, mas eu vou tentar. Quem sabe consigo falar a sós com nossos irmãos.
Mas, tenho medo que achem que sou mentiroso.
- Mas você não é. – Falei, encorajando-o.

***

Eu gostava de olhar o céu. Ficava imaginando se ele tinha fim, e aonde aquela imensidão
azul poderia me levar. Eu sabia que o mundo era grande, muito maior do que as minhas
dores. Sabia que existia um mar que podia ser igualmente infindável, que era salgado e
gelado, sem nunca ter colocado meus pés nas suas águas. Sabia que Deus me amava,
embora não tivesse a inteira compreensão desse amor. Eu só não sabia que algumas
mudanças eram necessárias, e que tanto sofrimento um dia me ensinaria coisas tão lindas
e que me marcariam por toda a vida.

-Bel? Beeel?

Tia Rosa me chamava ao longe. Eu estava no final do terreno da nossa casa, recostada no
pé de jabuticabas, admirando o céu, esperando a segunda parte da conversa, da qual eu
poderia participar.

- Oi, Tia. Estou aqui. – Falei ofegante enquanto corria, dando a volta na casa até
chegar à varanda.
- Entre. Venha comigo.

Tia Rosa levou-me até meu quarto. Lá estavam José e Beto, sentados sob a cama que
havia sido de Carolina.

- Agora é segunda parte da conversa? – Perguntei.


- É sim, querida. É a parte na qual você nos contará sobre Lúcia.

Meu corpo congelou. Só de ouvir o nome “Lúcia”, meu coração batia assustado. Olhei
para José e ele balançou a cabeça em afirmação.

- Conta, Bel. – José pediu, mas eu não conseguia proferir uma palavra sequer.

Será que eu deveria contar? E se depois que todos fossem embora Lúcia ficasse com mais
raiva e piorasse o tratamento comigo e José? Eu não sabia o que fazer, estava com muito
medo.

- Vamos querida, fale! José nos contou algumas coisas que eu e seu irmão não
gostamos nada de saber. Mas queríamos ouvir de você também. – Tia Rosa falou.

Oh, não! Tia Rosa estava brava. Será que era comigo e com José? Será que não
acreditariam em nós? Ela disse: “eu e seu irmão não gostamos nada de saber”. Sim,
estávamos muito encrencados. Nada falei. Imediatamente sai correndo daquele quarto,
ouvindo tia Rosa gritar o meu nome.

***
Procuraram-me pelo jardim, mas eu estava no alto do Carvalho, debruçada sobre o galho
mais grosso e forte daquela árvore e certamente ninguém me acharia por detrás das folhas
nas quais eu me escondia.

- Isabel! Menina, onde você está? – Gritava tia Rosa, olhando em todo o jardim. –
Será que ela saiu? Oh, não! Para onde ela iria?

Beto também olhava por todos os lados, mas sem sucesso. Eu estava muito bem
escondida. Espiei através das folhas e vi José. Ele também me viu, mas eu fiz um sinal
para que ficasse calado e ele agiu como se nada tivesse visto.

Do alto do Carvalho eu podia enxergar parte do telhado da nossa casa, os muros, as


plantas mais baixas e até a casa da nossa vizinha, dona Lira. À frente, via a estradinha de
chão, poeirenta. Foi quando avistei o Carro de molas de Francisco se aproximar e entrar
em nosso terreno. Carolina desceu do carro, muito bonita e elegante. Parecia até mais
velha do que realmente era.

- Por que todos estão aqui fora? O que procuram? – Ela disse assim que viu José,
Beto e tia Rosa.
- Estamos procurando Bel. Tivemos uma conversa e ela fugiu. Não a achamos em
parte alguma desde terreno. – Respondeu tia Rosa.
- Oh! Bel sempre age assim quando é confrontada. Aposto que está... – falava
olhando para cima. – Ali, no Carvalho. – Disse apontando em minha direção.

Demorei ainda alguns minutos para descer, custando a acreditar que minha irmã havia me
entregado. “Às vezes os adultos não sabem respeitar os sentimentos das crianças” –
Pensei.

Todos entraram novamente em casa e apenas Beto ficou na varanda me esperando.


Quando finalmente desci, ele me chamou.

- Por que você se escondeu, Bel? – Ele perguntou.

Meu irmão não parecia estar bravo comigo, mas, sim, preocupado. Era isso que seus olhos
me diziam, que ele se importava comigo e com José.

- Eu... tive medo. Não quero que Lúcia se zangue ainda mais. Se o que José disse
chegar até ela.... ela, nos mata. – Falei, exagerando.
- Mata nada! E você acha que eu iria deixar alguém fazer mal a vocês aqui, dentro
da casa nos nossos pais? – Beto disse. – Nem aqui e nem em lugar algum. –
Completou.
- Está bem. – Falei sorrindo timidamente enquanto dava um abraço em meu irmão.
Ele parecia um anjo que viera para nos salvar.
- Então, agora me diga. Aliás, basta balançar a cabeça para me dar uma resposta.
Lúcia maltrata você e José? Ela já bateu em vocês? – Beto perguntou. Balancei a
cabeça assentindo, sentindo meu coração se encher de esperança e coragem.
- E também já nos deixou sem comer muitas vezes. – Falei, e então, meus olhos
marejaram, porém, nenhuma lágrima rolou.
***

Estava quase anoitecendo e tia Rosa nos chamou para jantar. Carol e o esposo jantariam
conosco. Ao sentarmos à mesa dei pela falta de Lúcia. Seu lugar de costume estava vazio.
Estranhei, mas não ousei perguntar. Minhas pernas ainda tremiam em pensar no que ela
poderia fazer quando soubesse que tínhamos falado tudo para nosso irmão e para nossa
tia. Foi quando a vi parada à porta da cozinha.

- Vocês são muito inconsequentes em acreditarem nestes dois. – Lúcia gritou irada,
olhando para mim e José. – Eu sempre os tratei como uma mãe trata seus filhos!
Que ingratidão...
- Lúcia, perdoe-me, mas uma mãe não priva os filhos de comer, nem tampouco lhes
dá com tamancos na cabeça. – Tia Rosa respondeu irritada.

Carolina e Francisco arregalaram os olhos assustados, mas os olhos mais expressivos era
os de Lúcia. Deles saiam faíscas de raiva. Olhava para mim e José como se pudesse nos
partir ao meio só com o olhar. Notamos que estava com uma maleta ao seu lado.

- E me expulsam dessa casa!! Vejam como são ingratos! Eu que muito amei
Antônio, “que Deus o tenha”... Ele não aprovaria tal atitude da sua única irmã e
dos seus filhos.
- Ora, Lúcia. Não sei como não percebi antes. Você pensa que está em um palco,
para fazer toda esta encenação? Pois saiba que você não engana ninguém. – Tia
Rosa bradou.
- Lúcia, acalme-se, já conversamos. – Beto falou. – Você nada mais tem a fazer
nesta casa, e, por favor, evitemos discutir na frente de Isabel. – Pediu.
- Essa menina é mal-educada e mentirosa! Inventou que podia ver a mãe depois de
morta. Uma criança que inventa isso, também pode inventar outras coisas, como
essas que inventou sobre mim. – Disse Lúcia cheia de raiva.
- Já chega! – Beto falou com autoridade. – Você já se mostrou com sua falta de
sensibilidade e com os seus olhos, que revelam muito mais sobre você do que
imaginas. Agora pode ir. – Completou, apontando em direção à saída.

Os olhos de Lúcia voltaram a me encarar com um ódio tão ardente que cheguei a sentir a
minha face ruborizar e esquentar. Não quis mais olhá-la, e Beto, percebendo o medo que
eu sentia, abraçou-me, colocando meu rosto em seu peito, de costas para Lúcia. E ela se
foi.

- Desculpe-me, Bel, por novamente não ter acreditado em você. – Disse-me


Carolina. – Devo também um pedido de desculpas para José. Quando tentaram
contar, deveria ter dado mais atenção. Sinto-me muito mal por não ter enxergado
o que estava acontecendo com vocês. Por que não insistiram em nos alertar? – Ela
disse, olhando para José.
- Eu não sei. Acho que tínhamos medo. – José falou.

Apenas balancei a cabeça confirmando. Sim, tínhamos muito medo. Éramos apenas duas
crianças assustadas, mas, finalmente aquela parte ruim da vida, tinha acabado.

***

“Andei pelo jardim experimentando novamente o sentimento de felicidade e a liberdade


de viver sem sentir medo. De quê adiantariam todas as flores se não houvesse a minha
alegria em percebê-las? Andar em um jardim quando se está triste é muito diferente de
quando se está feliz. Há poesia e mistério nos dois sentimentos, mas a tristeza, eu
precisava que ela fosse embora para dar vez à alegria há tanto não experimentada. ”

- Qual a sua flor favorita? – Beto falou enquanto se aproximava.


- Eu... gosto das Camélias. Essa é a minha Cameleira, Beto. Prometi à mamãe que
sempre cuidaria delas. – Falei apontando na direção do arbusto repleto de flores.
- E tem feito um bom trabalho, pois são as flores mais lindas desse jardim. – Ele
disse. – Você acha que poderia algum dia ficar longe desse jardim Bel? – Beto
perguntou, surpreendendo-me.
- Não! Eu não quero nunca que isso aconteça. – Falei.
- Mas você sabe que não poderá viver nesta casa para sempre, não é? Nenhum de
nós pode! Parece que viver aqui, sem nossos pais já não tem tanto sentido. – Ele
falou cautelosamente.

Comecei a chorar baixinho, olhos e cabeça voltados para o chão. Eu sabia que meu
irmão tinha razão, mas era tão dolorosa aquela constatação.

- Então, terei que ir embora daqui? Eu não quero, Beto. Por favor. – Pedi em
súplica.
- Se eu pudesse, faria com que esse jardim fosse transportado para onde quer que
você fosse Bel. Mas eu não posso. – Disse-me sorrindo.

Quando Beto acabou de falar aquelas palavras, logo, como um sopro de entendimento,
lembrei-me do que mamãe um dia havia me dito:

“Lembre-se Bel, o coração é o melhor lugar para uma boa lembrança viver”.

- Eu acho que vou mesmo levar o jardim comigo para onde eu for. Mas será no meu
coração. – Falei.
- Que belo sentimento, Bel! Você falou com muita sabedoria. Admiro você. – Meu
irmão falou sorrindo, segurando minhas mãos e me abraçando carinhosamente.

CAPÍTULO 8

MUDANÇAS

“Muitas vezes perder algo de valor


em mudanças impostas pelo sofrimento,
é o jeito de encontrar algo de
mais precioso no caminho. ”
Emmanuel

“Acho que toda criança gosta de borboletas. Lembro-me de pensar que as borboletas eram
pétalas, e que podiam voar, por isso eram tão especiais. Como as flores, as borboletas
também podem ser de muitas cores, por isso cada cor de borboleta era para mim uma flor
do meu jardim. As brancas e amarelas eram as margaridas, e as amarelas eram as flores
do Ipê”.
Certa vez, mamãe disse-me que as borboletas significavam transformação, pois elas
vivem esse período em que: de lagarta, viram borboleta, e saem lindas, voando. E este era
o momento que eu estava vivendo, o momento de mudar e tornar decisões, pois eu
também desejava voar. Eu era como uma borboleta, mas só conhecia um jardim, precisava
voar um pouco mais longe, mas, para qual direção?
- Bel, acho que teremos que morar com tia Rosa. – Disse-me José, enquanto riscava
o chão do pátio com um pedaço de graveto.
- Você quer ir? – Perguntei.
- Se tiver que ir, não ficarei tão triste, gosto da nossa tia, ela é séria, mas é cuidadosa,
gosta de nós. – José falou.
Sentei-me no degrau da varanda e olhei para o jardim, quanta saudade eu sentiria. Durante
aqueles dias, foram muitas as vezes em que fiquei por longos minutos olhando cada
detalhe daquele lugar. Não queria jamais esquecer das flores, árvores e cada pedaço de
vida presente ali, então, desenhei tudo em minha mente, como uma fotografia aquele
cenário, que para mim, era todo amor.
– Eu também gosto de nossa tia, mas não me sinto feliz em sair daqui. Só que não
tem outro jeito, então, sim acho que iremos morar com tia Rosa. Nós não temos
outra escolha. – Eu disse, e José apenas concordou.
– Mas e se tivessem uma escolha? – Disse uma voz atrás de mim.
Virei-me e encontrei com Beto, encostado na porta de casa, nos observando.
– Me desculpem, eu não queria ouvir a conversa de vocês. Vim chamá-los para
almoçar e então ouvi sem querer. – Beto falou.
– Não tem problema Beto, você é nosso irmão. – José falou.
– Sim, confiamos em você. Se não fosse por você Lúcia ainda estaria aqui. Só por
isso já temos que lhe agradecer para sempre. – Falei.
– Vocês é que foram muito corajosos em contar tudo, e família serve para isso, para
proteger. Mas, digam, se pudessem escolher, onde gostariam de morar? – Beto
perguntou.
– Mas escolher como? Só temos tia Rosa, nós já sabemos que teremos que ir morar
com ela. – José concluiu e eu concordei, ele estava certo.
– Meninos... Isabel, venham almoçar! – Tia Rosa nos chamou

A comida de nossa tia era uma delícia, ao longe já sentíamos o cheirinho que era
trazida com o vapor da panela. Só pelo aroma do alimento podíamos adivinhar qual o
prato do dia. Eu e José achávamos a hora do almoço a melhor hora do dia, afinal, por
muito tempo ficamos sem esta principal refeição.
- Vamos sentem-se, já lavaram as mãos crianças? - Perguntou referindo-se a mim
e José. Balançamos a cabeça dizendo que não e logo nos dirigimos até o balde
com água limpa que ficava no canto da cozinha.
- Onde está o Paulinho? – Questionou tia Rosa.
- Ele disse que foi até a cidade encontrar-se com velhos amigos. – Disse Beto.
Retornamos à mesa, fizemos a oração e nos servimos. Enquanto almoçávamos, algo
não saia da minha cabeça: “E se pudessem escolher? ”, essas foram as palavras do
meu irmão.
***
A noite estava linda, cheia de estrelas, uma noite agradável para sentar na varanda,
observar o céu e conversar com a família. Foi isso o que fizemos. Sentamos eu,
Paulinho, tia Rosa, José e Beto na varanda, eles eram toda a minha família naquele
instante, com quem eu poderia contar para qualquer coisa.
- Sinto saudade de Carolina. – Falei. – É estranho, antes eu podia vê-la todos os
dias, dormíamos juntas... agora só a verei quando vier nos visitar.
- É, a vida é assim mesmo Bel, as pessoas crescem e se afastam um pouco, não
somente na família, mas os amigos também, é assim a vida, eu mesmo precisei
me afastar de vocês para ir estudar. – Beto falou.
- Bel, agora Carolina é adulta e casada, com uma nova vida, logo terá seus próprios
filhos e construirá outra família. – Disse tia Rosa.
Arregalei os olhos, pensando no quanto eu queria ser criança para sempre. Esse negócio
de casar, ter filhos, ter que abandonar uma vida, família, amigos, tudo por um casamento,
isso eu não conseguia entender.
- Beto, você nos disse que está apaixonado, como é mesmo o nome da moça? –
Perguntou tia Rosa.
- É Maria Antônia, tia Rosa. Ela é portuguesa, a família mudou-se para o Brasil
quando ela era adolescente e acho que pelas mãos do destino, acabamos nos
encontrando. – Disse Beto, suspirando.
- E ela é bonita? – Perguntei.
- Ah, é sim Bel, é linda... e encantadora! E canta divinamente, adoro ouvi-la cantar.
- O Beto está apaixonado. Desde que iniciaram o namoro que ele vive assim
suspirando. Mas agora, o pai dela falou que eles têm que dar um passo a mais no
namoro, que esse negócio de esquentar o sofá por mais de um ano, isso não é com
a filha dele. Filha única ainda por cima – Falou Paulinho, rindo e divertindo-se.
- Saiba que por mim, já teríamos casado, mas sou pobre, não posso casar sem ao
menos ter onde morar. Onde eu e Paulinho moramos é alugado. – Beto falou
olhando para tia Rosa.
- É, isto é mesmo. Não sei como o pai de Maria permitiu que você a cortejasse,
sendo ele um homem tão rico e influente... – Paulinho falou.
- Por certo o que mais importa a ele é ver a filha feliz. Onde me falta em posses,
sobra-me em amor. – Beto filosofou, sorrindo e empurrando Paulinho.
- Bom, quem sabe depois de vendermos esta casa e os outros terrenos que seu pai
lhes deixou, vocês possam conseguir comprar uma casa na capital. Simples, mas
já é um começo. – Disse tia Rosa.
- Vão vender essa casa? Não! Não, vendam, tia, por favor, eu imploro. Não vendam
a nossa casa. – Falei já iniciando o choro. – Beto, não deixem vender a casa...
- Calma Bel, calma. Nós não temos outra saída, Alfredo e Henrique estão cuidando
disso, foi deles mesmo a sugestão de vender a casa, os terrenos.... Eu pouco posso
fazer, logo terei de retornar a Capital, Paulinho também. – Beto seguiu falando.
- Sim, e Carolina está muito bem casada, já tem a própria casa e a família do esposo
é rica, o futuro dela está garantido. Mas o de vocês? Precisamos vender a casa, os
terremos, tudo o que pudermos para garantir boa educação a você e José. – Disse
tia Rosa olhando firme para mim.
- Minha tia, não se importem comigo, por favor. Agora estou formado e
trabalhando, é só uma questão de tempo e as coisas vão dar certo. Então, assim
que venderem, pensem em Isabel e José, apenas. – Disse Beto.
- O mesmo me disseram Alfredo e Henrique. Eles estão organizando os papeis de
venda, encontrando compradores, mas pretendem deixar o dinheiro investido para
José e Isabel. Eu acho justo, são os mais novos, os que mais sofrem com a ausência
de Antônio e Elisa, que certamente seria quem os encaminharia a um futuro digno.
– Disse tia Rosa.
- Tia Rosa, se me dá licença, vou me deitar, eu não estou me sentindo muito bem.
– Falei.
- Tudo bem, querida. Quer um chá? – Perguntou-me.
- Não, apenas dormir. – Falei. “E não acordar mais”, pensei.
***
Mudar exige muita força, cortes, rompimentos. Eu não queria deixar aquela casa, mas
sabia que no fundo, tinham razão. A vida seguia seu curso, eu precisava continuar a
caminhar. Não significava desvalorizar o que já tinha vivido ou esquecer os valores
adquiridos em outros momentos, mas sim, apenas caminhar.
Eu podia até aceitar, mas isso não me impedia de estar triste e de chorar. Eu era imatura,
e era isso mesmo que se podia esperar de uma criança. Dentro de mim, viviam mil
questões, mágoas e muitas cicatrizes. Ao menos não eram mais feridas abertas, eram
cicatrizes.
***

“E se eu fosse um pássaro, voaria para qualquer lugar, mas de que adianta ser um pássaro,
se eu não sei onde quero estar”... Eu pensei que ser um pássaro me faria mais feliz, mas
não, pássaros são livres, eu sou presa, tenho raiz.

- Bel, falando sozinha? – Perguntou Beto.


- Não, eu estava cantando. – Falei timidamente.
- Ora, veja só, gosta de cantar? Qual a música? – Ele perguntou.
- Eu não sei, eu que inventei. Mas já esqueci. – Menti.
- Mas então eu tenho uma irmã compositora? Anote em um papel quando tiver
ideias para músicas. – Sugeriu Beto. – Você sabe escrever, não é? – Perguntou em
seguida.
- Sei sim. Entrei tarde na escola, mas aprendi rápido. Falei.
- E você gosta da sua escola? Tem muitos amigos lá?
- Eu não tenho muitos amigos não, mas eu gosto da escola pois aprendo coisas
novas. – Respondi.
- E está de férias agora?
- Não. Mas tia Rosa achou melhor que não fôssemos na aula por um tempo... –
Falei.
- Entendi, por isso não vi você e José irem na aula nesses dias... Sabe Bel, depois
de amanhã eu e Paulinho vamos embora... você acha vai sentir saudades? – Ele
perguntou.
- Vou, demais. – Aquela informação me pegou de surpresa. – Eu vou sentir
saudades do Paulinho, mas vou sentir mais de você. – Falei sentindo uma lágrima
escorrer.
Beto me abraçou, eu me sentia tão protegida no seu abraço. Era como se mamãe e
papai estivessem me abraçando também. Eu podia ficar ali por horas só deitada no
abraço do meu irmão.

- Eu também vou sentir muita saudade. – Beto falou, e então ele me olhou e todo o
seu rosto se iluminou, ele sorriu. – E se você pudesse escolher Bel?
- Escolher? O que? – Perguntei sem entender.
- Escolher onde morar. Entre ficar aqui com tia Rosa ou ir comigo para a Capital?
Eu levo você Bel, se você quiser, eu levo.

Coloquei as mãos no rosto tapando a boca e os olhos ao mesmo tempo. Eu podia


escolher? O que eu deveria escolher?

CAPÍTULO 9

NOVO LAR

“Quando tudo parece convergir para o que supomos

o nada, eis que a vida ressurge, triunfante e bela!

Novas folhas, novas flores, na infinita benção do recomeço.”

Chico Xavier.

Florianópolis – 1942

A viagem até Capital era longa e as estradas perigosas. Iniciamos primeiramente de


carroça, sentindo os solavancos no meio do caminho, devido ao péssimo estado da
estrada. Depois, seguimos pela estrada de ferro. A locomotiva passava por muitos
lugares, eu estava encantada com os ruídos, a fumaça e o ranger dos trilhos do trem. Mais
da metade da viagem começamos a passar por pequenas vilas e povoados à beira da praia.
As paisagens eram lindas, e foi a primeira vez que vi o mar, lindo e todo azul. Era muito
mais bonito do que nos jornais – que eram em preto e branco.
O único desprazer da viagem era a minha tristeza pelas pessoas que estava deixando para
trás, e mais do que tudo, estava triste por deixar aquele pedacinho de céu que eu chamava
de lar. Porém, fiz o que meu coração ordenou, sem saber qual meu destino, apenas
permitindo-me voar.

- Beto, você acha que esse galho de Camélia vai aguentar a viagem? – Perguntei
preocupada. – Precisará de terra e água em breve.
- Vai sim. Vamos plantá-la em um vaso bem bonito e colocar... Bom, não sei onde
iremos colocar, mas veremos quando chegarmos. – Disse-me Beto.
- Que pena que não deu de trazer mais algumas mudas do jardim, mas eu trouxe a
minha preferida. Se eu pudesse teria trazido todas as flores. E teria trazido José
também. – Falei com tristeza.
- Não fique triste Bel, um dia vocês se encontram. Não sei quando será, mas um dia
todos nós voltaremos a fazer uma reunião em família, com todos os irmãos. E José
vai ficar bem, ele escolheu ficar com tia Rosa e ela cuidará bem dele. – Beto falou
me acalmando.
- Eu sei, só que vou sentir muita saudade dele, da tia Rosa e de Carol também. –
Falei, sentindo algumas lágrimas escaparem sem que eu pudesse enxugá-las.
Estava segurando em uma das minhas mãos o galho de camélias que tia Rosa
havia preparado com um punhado de terra e na outra minha boneca de pano,
Josefina.

***

Ao fim de uma longa viagem chegamos a um bonito sobrado que ficava no meio de outras
quatro construções. A casa chamava atenção por seus detalhes decorativos acima das três
portas e janelas que se combinavam no alinhamento na parte superior e inferior. Beto
apontou a residência e me ajudou a descer do carro que nos levou da estação de trem até
o centro da cidade. Fiquei alguns minutos olhando para aquela casa e sentindo um grande
aperto de saudade em meu peito. Aquele era meu novo lar, aquele grande sobrado, feito
de pedras e tijolos, sem sequer uma flor na sacada.

- E então Bel, gostou da sua nova casa? – Beto perguntou, parado em frente ao
sobrado e pousando minhas duas pequenas maletas no chão.
- Sim. – Respondi sem muita animação.
- Você vai gostar, terá um quarto só para você. Eu e Beto passaremos a dividir o
“mesmo quarto”. – Paulinho falou, colando ênfase na sua frase,

Beto disse-me durante a viagem que o dono do sobrado era um Alfaiate português que
havia comprado o prédio quando se mudou para o Brasil. No piso inferior funcionava a
sua alfaiataria e em cima, separou o sobrado em duas partes, alugando metade do imóvel.
Desta forma, mesmo sendo um bonito sobrado, Beto podia pagar.

- Vamos entrar então? Venha Bel, conhecer a casa por dentro. – Beto chamou.

O Senhor que estava no interior da Alfaiataria nos viu chegar e veio até a porta, com um
grande sorriso nos saudando de braços abertos.

- Beto, Paulinho, que alegria em ver vocês. Fizeram boa viagem? – Disse o senhor,
caminhando em nossa direção.
- Como vai Sr. Ezequiel? A viagem foi cansativa, mas ocorreu tudo bem sim,
obrigado. – Beto respondeu, retribuindo com cordial sorriso.
- Que bom. E a linda menina, quem é? – Perguntou, olhando para mim.
- É nossa irmã, Isabel. Ela veio para morar aqui conosco. – Paulinho falou

Ezequiel me olhou melhor e cumprimentou-me, sem nunca tirar o sorriso dos lábios.
Notei que estava vestido com muita elegância em um terno azul escuro, que contrastava
com o seu bigode que era tão branco quanto os seus cabelos.

- Como vai menina? – Sr. Ezequiel falou. – Seja bem-vinda. – Sinto muito pela
perda de sua mãe e a recente perda do seu pai. – Ele disse, desta vez, com
expressão condolente.
- Obrigada. – Respondi cabisbaixa e também com timidez.
- Bom, eu vou retornar ao trabalho, vocês devem estar cansados da viagem, depois
nos falamos mais. – Sr. Ezequiel falou voltando para a loja e acenando com as
mãos.
- Este é o Sr. Ezequiel Bel. Mais do que apenas nosso vizinho e dono deste sobrado,
ele é como um avô para mim. Na verdade, ele é avô de Maria Antônia. Vive
sozinho aqui e trabalha muito, apesar da idade. – Beto disse.
- E a esposa dele? – Perguntei baixinho.
- Ela morreu há muitos anos, quando ainda moravam em Portugal. Foi depois da
morte da esposa que S.r. Ezequiel mudou-se para o Brasil, ficando em Portugal o
seu único filho; o S.r. Menezes, pai de Maria Antônia. Ela viveu toda a infância
em Portugal. – Beto ia contando enquanto subíamos os degraus do sobrado. – Mas
então um dia... “Ainda bem”, S.r. Menezes também resolveu vir para o Brasil.
Isso foi muita sorte minha, senão como teria conhecido a Maria? – Concluiu
sorrindo.
- Quando vou conhecê-la? – Questionei.
- Em breve. Estou com muita saudade dela. – Beto falou com ar apaixonado.

***

Morar na Capital era muito diferente do que eu estava acostumada e no início estranhei
praticamente tudo. Estranhava as ruas estreitas e com pedras, os carros e toda aquela
movimentação de pessoas. Isso porque, em frente a nossa casa havia uma praça, onde nas
tardes ensolaradas e em finais de semana, casais de namorados passeavam e sentavam-se
nos bancos para conversar e crianças corriam para todos os lados acompanhadas dos pais
e irmãos.

- Quer dar uma volta pela rua Bel? Logo mais irei encontrar Maria Antônia, você
pode vir se quiser. – Beto convidou-me.
- Não Beto, obrigada. Ficarei aqui, não quero atrapalhar vocês. – Falei.
- Mas não irá atrapalhar, de jeito nenhum, quero que se conheçam. Vamos? Não
quero que fique o tempo todo sozinha dentro de casa, você precisar sair, aproveitar
o dia, ver pessoas. Vamos?
- Tudo bem. – Assenti. – Beto, acho que devemos plantar a muda de Camélias que
trouxemos na viagem, ou ela irá morrer. – Falei preocupada.
- Sim, vamos fazer isso ainda hoje. Mas depois que voltarmos do passeio.
Precisamos de um vaso grande, mas sabe que com o tempo a planta irá crescer, o
ideal seria plantá-lo em um jardim Bel. Bom, pensaremos nisso depois, vamos?

Eu percebia o quanto Beto se preocupava comigo, de tudo fazia para que eu ficasse feliz,
para que me sentisse bem. Era meu irmão, mas tinha para comigo cuidados como os de
um pai com um filho. Por isso meu coração decidiu ficar perto dele, sentia-me protegida
ao seu lado, mas por muitas vezes sentia-me triste por não conseguir ser tão feliz quanto
meu irmão queria que eu fosse.
Descemos as escadas do sobrado e encontramos um lindo dia de sol à nossa espera.
Algumas pessoas caminhavam e conversavam alegremente pelas calçadas, crianças
corriam e brincavam de esconde-esconde, pareciam felizes e familiarizadas com todos os
cantos daquela rua, tão diferente de mim.

- Ah! Vamos Bel, tente colocar um sorriso nesse rosto! Sabia que crianças tem
obrigação de sorrirem sempre? E olha só este sol maravilhoso... assim que der eu
vou levar você para ver o mar. Ver não, sentir, colocar seus pés na água. – Beto
falava com muita empolgação, com uma energia extasiante.
- Eu vou adorar, obrigada. – Falei e sorri.
- Eu sei que vai.... Olha, lá vem a dona do meu coração, Maria. – Beto falou
apontando discretamente na direção da jovem que atravessava a rua em nossa
direção.

Eu nada entendia sobre o amor, este que vi brotar dos olhos de Beto e Maria Antônia, mas
foi assim, quando vi como se olharam, que soube que era algo lindo, puro e muito
especial. Através dos seus olhos passavam ondas de carinho, eu podia ver que, apenas
com o olhar, sorriam um para o outro. E isso de verdade, deixou-me feliz.

- Beto, como vai meu bem, senti muito a tua falta. – Maria disse abraçando Beto.
- Eu também, pensei em você todos os dias. – Ele declarou e permaneceram
abraçados, sorrindo.
- Maria, esta é a minha irmã Isabel. – Beto apresentou-nos. – E Bel, esta é Maria
Antônia, minha futura noiva. – E o seu rosto iluminou-se ainda mais quando disse
tais palavras.
- Que alegria te conhecer Isabel, és muito linda. Vem cá, me dá um abraço. – Maria
falou e abraçando-me.

Maria Antônia era realmente bonita, tanto quando Beto havia falado, de tudo os seus olhos
eram ainda mais belos, não somente pela cor, que era de um castanho clarinho como mel,
mas pela luz que irradiava deles, então eles ficavam quase verdes. Gostei de Maria
Antônia de imediato. Tinha um sotaque diferente, que a princípio achei engraçado, mas
consegui entender tudo o que ela dizia.

- Vamos caminhar um pouco e conhecer um pouco do seu bairro Isabel? –


Convidou-me Maria Antônia.
- Vamos. – Concordei.
- Gostas de pipoca? Temos aqui na praça uma que é uma delícia. – Maria falou.
- Eu gosto sim. – Respondi.

A praça contava com um grande espaço, muitas árvores, bancos e um bonita e imponente
árvore ao centro. Muitas pessoas circulavam por ali, de todas as idades, casais de
namorados, idosos que se reuniam para jogar cartas ou dominó e crianças, aproveitando
a sombra para brincar de pique-esconde. Havia também o “Café Royal”, que Maria e Beto
falaram que havia sido inaugurado a pouco tempo e que atraia muitas pessoas.

Sentamos em um banco sob a sombra da gigantesca árvore que eu não conhecia o nome,
mas que chamou minha atenção assim que conheci aquela praça. De todas as árvores do
mundo eu só pensava no Carvalho do meu jardim, era a única grande árvore que eu saberia
reconhecer, por isso resolvi perguntar.

- Qual o nome desta árvore Beto? – Perguntei.


- Eu não sei Bel, você sabe Maria? – Beto perguntou, mas ela também não soube
dizer.

Um senhor que estava próximo a nós ouviu minha indagação e resolveu sanar o meu
questionamento, muito sabiamente.

- Esta é uma Figueira de muitos e muitos anos. Dizem que ela foi plantada em um
jardim e depois transplantada aqui para esta praça. Embaixo desta árvore é
montado um presépio em todos os anos, no natal. – Disse o senhor.

Fiquei encantada com a explicação e olhei novamente para a árvore, com ainda mais
admiração. Os idosos são muito sábios, pensei.

- Minha irmã adora a natureza! Árvores e flores principalmente. – Beto falou ao


senhor – Os dois olharam-me e sorriram. – Maria, sabia que a Isabel é dona de
uma linda Cameleira? Trouxemos um galho de “Rio do Ouro” para enraizar em
um vaso, você podia me ajudar com isso? – Beto perguntou à Maria.
- Mas é claro, minha mãe entende tudo de plantas. Temos uma estufa atrás do nosso
jardim. – Maria Antônia contou-me.
- Sua mãe tem um jardim? Pensei que as casas aqui na Capital não tinham jardins.
– Falei com a mais pura verdade, pois o que eu mais via eram casas sem nenhuma
flor.
- Tem algumas casas com jardins sim, porém é verdade que estão se tornando cada
vez mais raras. – Maria falou e riu. – Vamos ainda esta tarde em minha casa?
Minha mãe te ajudará com isso, quer?
- Quero. – Falei com muita empolgação, era muito importante para mim aquela
Cameleira. – E depois queria enviar uma carta que escrevi para José e Carol. –
Pedi.
- Tudo bem, vamos fazer isso. – Maria assentiu.
***

A casa de Maria Antônia era muito bonita, imensa. Ouso dizer que até aquele momento
era a maior e mais bela casa que eu já havia visto. Era branca, de dois pavimentos, quatro
janelas à frente, uma sacada ao meio e logo abaixo da sacada uma porta arredondada na
parte superior. A varanda era na lateral da casa e era aonde ficava o jardim. No outro lado,
uma garagem com carros estacionados.

Dona Carmem, mãe de Maria Antônia veios nos receber, ela era uma mulher elegante que
eu não saberia dizer a idade, mas parecia tão jovem que poderia dizer que era irmã de
Maria.

- Mamãe, esta é Isabel. Ela é irmã do Roberto, irá morar com ele, já que... perderam
os pais, e... – Maria falava, pausadamente. – Eu a trouxe aqui pois ela tem grande
afeição pela Cameleira que tinha na casa onde viveu toda a infância, este galho é
uma tentativa de que possa plantá-lo aqui. Será que consegues cuidar disso?
- Olá Isabel, meus sinceros sentimentos pela sua perda, querida. Oh, eu sei que não
é fácil, perdi minha mãe quando eu era muito jovem também. A tua planta, pode
deixar que eu cuidarei dela e farei brotar e ficar forte, mas ela precisará ficar aqui
neste jardim, é claro que poderás vir quando quiseres. – Disse-me Dona Carmem.
- Obrigada Dona Carmem, e obrigada Maria, eu estou tão feliz e mais ainda ficarei
se este galho se transformar em uma Cameleira como a que eu tinha na minha
casa. – Falei emocionada.
***
Florianópolis; 05 de julho de 1942
Queridos José e Carolina
Como estão, meus irmãos? Escrevo para contar que fizemos uma boa viagem e chegamos
bem à Capital. Aqui é um tanto diferente, mas estou tentando me acostumar.
Nem parece que já se passaram três anos desde que mamãe nos deixou. Ainda dói como
se fossem ontem, às vezes sinto que papai e mamãe se foram no mesmo dia. Sinto muita
a falta dos dois, sempre sentirei. O mais difícil é ficar longe de vocês, de nossa casa e
ainda assim conviver com as fortes lembranças e constante saudade de tudo que aí vivi.
Como eu disse, aqui é muito diferente, a Capital já tem energia elétrica, fornecimento de
água e rede de esgotos e até para acostumar-me a estas comodidades tenho certas
dificuldades. Parecia-me natural a vida que sempre levei aí em Rio do Ouro, sinto falta
até do lampião para apagar antes de dormir.
Aqui a noite também é silenciosa, os automóveis são raros, mas vez ou outra vemos
alguns passarem. O prédio mais alto da cidade é a catedral, que me deixou encantada,
com tamanha beleza. Conheci Maria Antônia, ela é uma moça linda e encantadora. Sei
que Beto será feliz ao seu lado só pela forma como se olham, estão sempre sorrindo um
para o outro.

Logo irei começar a estudar na nova escola. É uma grande construção perto da nossa casa.
Irei estudar pela manhã e ficarei sozinha em casa à tarde, pois Beto e Paulinho trabalham
o dia todo. Beto tem sido um irmão maravilhoso.

Mande beijos e abraços para tia Rosa e nossos irmãos, diga que sinto saudade de todos e
espero vê-los em breve. Amo vocês, com carinho...

Isabel.

***

Rio do Ouro; agosto de 1942

Querida Isabel, estou feliz em ter recebido sua carta, saiba que também estamos todos
com muita saudade, sentimos sua falta a todo instante.

Eu estou bem, morando com tia Rosa. Pretendo começar a trabalhar no próximo ano,
afinal como você me disse várias vezes antes de viajar “eu não sou mais uma criança”.
Aqui estamos também nos esforçando para ficarmos bem, apesar da saudade que sentimos
de mamãe e papai, seguimos levando. Tia Rosa sempre me diz que “devemos seguir em
frente”, sei que é difícil, mas temos que tentar.

Espero que você também consiga voltar a sorrir e sentir felicidade em sua vida, afinal,
tens apenas 11 anos, deves ainda aproveitar sua infância. Estamos ainda no início da nossa
jornada.

Devo contar que a nossa casa foi vendida. Sei que esta notícia a deixará triste, mas uma
hora iria acontecer. Nosso irmão Henrique tratará de enviar para Beto parte do dinheiro
que deverá ser guardado para seus estudos no futuro e para ajudar vocês três na Capital.
Eu não conheço os novos donos da casa, mas soube que se trata de um casal já idoso que
irão morar sozinhos.

Às vezes passo pela frente da casa, só para matar saudades e parece que ainda a vejo entre
as flores com mamãe no jardim. Ao fim das contas a saudade só aumenta.

Despeço-me e mando lembranças de tia Rosa e Carol, que leram a sua carta e ficaram
muito felizes.

Um abraço do seu irmão, José.

***

Florianópolis; 14 de outubro de 1942


Querido José. Como está?
Preciso ser sincera e dizer que chorei muito lendo a sua última carta. Com meus olhos
fechados me transportei para Rio do Ouro, mais uma vez pude sentir o cheirinho da
comida de mamãe, das plantas, da terra recém molhada pela chuva, quanta saudade....
Aqui até o cheiro da chuva é diferente, logo evapora quando cai sob as pedras quentes da
nossa rua, que ficam expostas ao sol durante todo o dia, sem plantas, sem uma árvore para
contemplar e sonhar.
Mas estou feliz que o ramo da Cameleira que trouxe comigo na viagem, brotou. Quem
me ajudou foi Maria Antônia e sua mãe, Dona Carmem, plantamos no jardim de sua casa
e ela disse-me que em breve teremos um lindo arbusto recheado de Camélias brancas.
Acredito que essas flores poderão me ajudar a permanecer perto de mamãe. Eu nunca
mais a vi, nem em meus sonhos...
Aqui estamos todos bem. A notícia é que Paulinho irá ingressar na Marinha, está muito
contente. Agora seremos apenas eu e Beto em nossa casa, Paulinho irá vir inicialmente
apenas de seis em seis três para a Capital, ficará alguns dias e depois retorna ao mar e a
escola de Marinheiros.
Meus dias aqui são mais felizes pela insistência de Beto e Maria Antônia, que estão
sempre por perto, cercando-me de carinho e atenção! Final de semana me levaram para
conhecer o mar, coloquei meus pés na água, muito gelada e senti os respingos das ondas
no meu rosto, é realmente muito salgado. O mar é lindo, quando o sol está iluminando o
dia, é todo azul e parece ser infinito, tão grandioso é.
Estou gostando da nova escola e fiz até uma amizade, Laura é o seu nome. Ela me lembra
um pouco o jeito de Carolina, sempre falante e alegre. Ter uma amiga me faz bem.
Com saudades, Bel.

Rio do Ouro; 17 de dezembro de 1942

Estimada irmã, hoje as minhas palavras serão breves, porém, cheias de novidades.
Carolina está grávida! Estamos todos felizes com a notícia e ela está radiante de alegria,
a família irá aumentar...
Eu estou trabalhando, adivinhe: consegui uma vaga na fábrica de papel e lá estou
aprendendo muitas coisas, tenho certeza que papai iria se orgulhar, lá todos falam muito
bem dele, sempre com saudades. E você como está?
Aproveito e mando votos de um feliz Natal e ano novo para você, Beto e Maria Antônia!
Com saudades, José.

***

Tempos depois...

Finalmente, tive a imensa alegria de ver a Cameleira florir na casa de Maria Antônia, tão
brancas como pérolas, tão lindas quanto as do jardim da em Rio do Ouro. Precisei de
alguns minutos a sós com aquelas flores, para olhá-las, e tocá-las mesmo sabendo que
não deveria – Ficavam amareladas.

Minutos depois, vendo que Maria Antônia e Dona Carmem não voltavam ao jardim,
resolvi ir até entrada da casa para procurá-las. Já ao longe visualizei mãe e filha próximas
à varanda. Dona Carmem tinha entre as mãos um envelope branco e chorava consternada
lendo uma carta. Maria Antônia também estava visivelmente abalada, mas tentava
consolar a mãe passando as mãos em seus ombros. Não sabendo do que se tratava, resolvi
não me aproximar.

Voltei ao jardim, perto das Camélias, foi quando vi uma senhora parada no portão, ela
olhava paras aquelas flores tão admirada quanto eu.

- Boa tarde jovem, que lindas flores! São Camélias?

- Sim, são! – Respondi.

- São maravilhosas, não vejo muitas dessas por aqui. Essas flores são um ótimo presente
para dar e receber. – Ela me disse.

- Creio que sim, flores sempre alegram, perfumam, encantam. – Falei.

- Você mora nesta casa? Será que sua mãe me venderia algumas destas flores? Estou indo
visitar uma pessoa muito querida. Seria uma alegria levar este presente – a senhora
perguntou.

- Desculpe, mas não posso – procurei recusar com gentileza - essas flores tem um
significado muito forte para mim.

- É uma pena. Mas parabéns pelo lindo jardim. Torna-se cada vez mais raras flores
cultivadas em casa. Tens razão em conservar essas Camélias, elas são maravilhosas. Até
mais. – Disse-me a senhora.

Vi aquela senhora afastando-se da casa de Maria Antônia e fiquei imaginando quem seria
a pessoa que ela queria presentear, no quão feliz ficaria em receber as flores, no quanto
elas também me faziam bem. Sim, definitivamente “flores são um lindo presente para dar
e receber” pensei.
Percebi algumas Camélias caídas, elas já estavam lá desde que eu havia chegado naquela
manhã, mas eu não tinha colocado minha atenção nelas, mas sim, nas flores que estavam
fortes e vivas no arbusto, tão lindas e vibrantes.

Fechei meus olhos e me vi correndo no jardim em Rio do Ouro, vi mamãe no fogão à


lenha, preparando docinhos de Natal e licor, o cheiro da clara em neve batido à mão, do
açúcar derretido, o vinho, tudo isso me trouxe uma lembrança tão boa, mas que também
doía tanto. E foi assim, com estes pensamentos que se arrastaram os dias e os anos, os
outonos e as primaveras e eu ainda parecia uma menina triste, vivendo sem propósito,
sem prazer e com raros momentos de alegria. O que eu podia fazer? Se todo dia era outono
no meu coração?

CAPÍTULO 10

O SONHO E A CARTA

“Tudo o que é seu encontrará uma maneira de chegar até você...”

Chico Xavier.

1952 - Dez anos depois...

Acordei após um sonho entranho, em que eu andava perdida pelas ruas da Capital, não
conseguia encontrar um lugar ou pessoa que fosse conhecida. Um rapaz, vendo o meu
desespero estendeu-me a mão e ofereceu ajuda. Guiou-me de volta para casa e partiu. Não
disse o seu nome, nem de onde viera, apenas ajudou-me e foi embora.

O sonho trouxe-me uma sensação estranha, angustiante. Achei incomum sonhar com
alguém que não conhecia, sem ao menos ter visto antes. Como poderia ter criado um
rosto, uma voz, uma pessoa, na minha imaginação, em um sonho?

Sentei na cama e procurei minha boneca Josefina entre os lençóis, arrumei a cama e
depois a repousei sobre o travesseiro, imaginando o quão estranho era uma garota de vinte
anos ainda guardar a boneca da infância.
- Isabel? Bom dia! Laura está aguardando você na sala, disse que combinaram algo
para hoje... – Disse Maria Antônia entrando no meu quarto.
- Ah! Sim, diga que já estou indo, dormi demais... – Falei.

Quando Maria Antônia e Beto casaram-se, mudei-me com eles para a nova casa. Não
ficava muito longe do antigo sobrado, era uma casa menor, mas muito bonita e o melhor
de tudo é que tínhamos espaço para algumas flores.

Vesti-me rapidamente e prendi os cabelos. Se tudo desse certo, seria um dia muito
especial, um passo importante em minha vida.

- Laura, veio cedo. Obrigada por me acompanhar. – Disse-lhe sorrindo.

Laura era minha única amiga, desde quando cheguei na Capital. Ela aceitou o meu jeito
reservado e era a única que sentava comigo na hora do recreio. Permanecemos amigas
por todos os anos que seguiram e eu sabia que podia confiar nela para conversar e pedir
conselhos.

- Bom dia Belzinha! O dia já está raiando, estamos atrasadas. – Laura anunciou.
- O que vocês estão aprontando, posso saber? – Beto questionou, enquanto tomava
café e lia o jornal.
- Claro! Beto, pensei no que me falou, sobre usar o dinheiro que vocês guardaram
para mim durante todo esse tempo.... Eu pensei muito, sei que vocês esperam que
eu use o dinheiro para estudar, mas penso que minha vocação pode ser outra e é
isso que eu vou descobrir hoje. – Falei.
- E do que você está falando? Está me escondendo alguma coisa Bel? – Beto
perguntou surpreso com a minha afirmação.
- Estou sim. Quer dizer, estava, pois se tudo der certo, hoje mesmo conto a vocês o
que estou idealizando. – Falei com entusiasmo.
- Bel, estou surpresa não teres dividido conosco os teus planos. Sabemos que tu
cresceste, já és uma mulher, mas somos tua família. Podes contar sempre comigo
e com teu irmão. – Disse-me Maria Antônia.
- Eu sei, vocês sempre foram maravilhosos comigo, me protegeram, ficaram ao meu
lado em todos os meus momentos de crise, de choro, de saudade e eu os amo muito
por isso. O que estou escondendo é só até ter certeza de que dará certo. Espero
continuar contando com o apoio de vocês. – Falei.
- Estaremos sempre com você. Então, seja lá o que for, nós te apoiaremos – Beto
falou. – Só se cuide está bem? – Me pediu, enfim.

***

As ruas da Capital já estavam bastante movimentadas, mas ainda tinha o aspecto de cidade
interiorana, comparada com outras capitais brasileiras. Carros e motocicletas formavam
um pequeno trânsito junto com algumas carroças e carros de mola, pessoas entravam nas
lojas, passavam com sacolas vindo da feira e algumas crianças corriam atrasadas para a
escola.

Eu andava pelas ruas sentindo-me confiante. Laura ao meu lado, falando sem parar e
sorrindo à toa e eu tentando me esforçar para acompanhá-la, tentando impedir que o meu
natural talento de me transportar para outro mundo, deixasse a minha amiga falando
sozinha.

- Então, onde fica essa casa? Estou curiosa? – Laura perguntou.


- Olha, aqui diz: “Esquina da Rua Trajano com a Conselheiro Mafra, número 10”.
– Respondi, segurando o pedaço de papel com preciosa anotação, em mãos.
- Fica aqui perto, eu acho. Vamos por aqui, se não acharmos perguntamos no Royal
Café. – Laura sugeriu.

Seguimos pela rua em direção a famosa praça da rua XV de Novembro e logo andando
um pouco mais encontramos o endereço, a bela casa verde, de número dez, tão simples,
mas perfeita. Era onde eu sonhava em abrir o meu próprio negócio, onde eu poderia estar
no meio do que mais me fazia feliz no mundo: as flores.

- Isabel, vai ficar lindo, olha essa fachada, é muito moderna, e essas janelas dará
uma bela vitrine. Você vai ser a florista mais famosa da Capital! – Laura anunciou.
- Estou tão feliz! Acho que tudo vai dar certo. Inicialmente vou alugar a casa e usar
o restante do dinheiro para comprar as flores, móveis, materiais para preparo dos
arranjos. São tantas coisas. Ainda tenho que arrumar contatos de produtores e
estufas.
- Vai dar tudo certo sim, você tem a sensibilidade e a delicadeza necessária para ser
um sucesso. – Laura disse, encorajando-me.
- Marcou hora com o corretor para que ele lhe mostre a casa por dentro?
- Oh! Como sou distraída, não marquei. Esqueci – Respondi colocando as mãos no
rosto, aflita. – Não acredito que viemos até aqui e não poderei ver o interior da
casa. Olha, está tudo fechado.
- Ah, Bel, mas você pode voltar outro dia, essa semana ainda.
- É o jeito. – Lamentei.

Enquanto eu falava com Laura percebi que um homem vinha pela calçada em nossa
direção, olhava um papel que estava em suas mãos e depois olhava para as casas e
sobrados da rua. Com certeza estava procurando um endereço. Por fim, ele checou mais
uma vez o papel e parou ao nosso lado, olhando para a mesma casa verde de número dez.

Permaneceu uns instantes parado, sem se dar conta de minha presença e de Laura até que
percebeu que nós também olhávamos para a casa, então ele se virou e nos cumprimentou
com a cabeça.

- Ele deve estar aqui por causa da casa, Bel. – Laura falou cochichando. Bel? Bel?

Tremi ao ser chamada por Laura, não foi somente o susto, mas a surpresa ao ver que
aquele jovem ao nosso lado era o mesmo com quem eu havia sonhado naquela manhã.
Os mesmos cabelos castanhos, os mesmos olhos cor de mel e a mesma... voz.

- Olá, percebi que estão olhando para esta casa, estão interessadas nela? – Ele nos
perguntou.
- Você é corretor? – Laura retrucou rapidamente.
- Não, eu...
- Então você é um comprador? Ou deseja alugar? – Laura perguntou inquisitiva.
- Para com isso Laura. – Cochichei puxando-a de leve pelas mãos.
- Eu marquei um horário com o corretor, vim ver o imóvel. – Ele respondeu, desta
vez, olhando fixamente para mim, foi quando franziu o cenho. – Eu... não, não
pode ser.
- O que foi? – Laura perguntou – Você ficou estranho, o que não pode ser? Olha,
eu ouvi péssimas coisas sobre esta rua. Dizem que é barulhenta à noite, com
grande movimentação de carros, horrível. Você é português? Percebi pelo
sotaque.
- Laura!! – Repreendi.
- O que foi? Eu só estou perguntando.
- Pois então pare de perguntar – Cochichei puxando-a para o outro lado da rua. –
Vamos embora. Alguém já lhe falou para não falar com estranhos? – Falei em tom
de brincadeira.
- Mas era um estranho bem bonito. – Laura respondeu rindo.
- Mas você não tem jeito mesmo, vamos sair daqui, vem. - Dobramos a esquina e
fomos embora.

***

Cheguei em casa frustrada por não ter conseguido ver o interior da casa, inexperiente
havia esquecido de marcar com o corretor um horário. Entre outras coisas, o fato de ter
encontrado aquele jovem pela manhã não saía da minha mente, qual a razão de ter
sonhado com ele e tão logo tê-lo encontrado? Só que diferentemente do sonho, ele em
nada me ajudou, mas sim poderia estragar os meus planos, se ficasse com o imóvel.

Maria Antônia e Beto não viram quando cheguei. Entrei e fui direto para o meu quarto,
sozinha deitei-me na cama e pus-me a refletir sobre a minha vida. Até então tudo fora
cercado de perdas, lembranças dolorosas, saudades. Eu queria muito uma chance para
trilhar meu caminho e fazer algo importante, que me deixasse feliz e fizesse as pessoas
felizes.

Sempre acreditei que as flores tinham esse poder e além disso, em cada flor eu poderia
sentir com mais força o amor de mamãe, a nossa ligação e afeto que sempre esteve
presente neste universo de cores e perfumes.

Depois de algum tempo meus pensamentos foram interrompidos pelo choro que veio da
sala. Ouvi que Maria Antônia e Beto conversavam e pude entender tudo o que diziam
pois falavam em tom normal, pensando estarem a sós em casa.

- Minha mãe está muito triste Beto, sem saber o que fazer. Aquela carta há dez anos
atrás foi um choque para nós duas. Mamãe pensou que a rasgando eliminaria o
problema, mas não foi assim e agora precisamos lidar com uma situação que é
muito difícil, muito delicada, afinal, nós ocultamos a carta e nunca falamos nada
para meu pai. – Maria falava chorosa.
- Eu sei que estão aflitas, sempre achei que o melhor era ter contado para seu pai
do recebimento da carta naquela época, talvez conversando, tudo se resolvesse. –
Beto falava.
- Mas em relação a isto já não há o que fazer. Minha mãe achou melhor não dizer
nada e a cada ano que passava ficava mais ao longe toda essa história, que no
fundo, queríamos que não existisse. –Disse Maria.
- Mas existe e hoje ela está de volta, vocês precisam ter coragem e contar tudo para
o Sr. Menezes. Seu pai precisa saber, Maria. – Beto falou.

CAPÍTULO 11

A CASA DAS FLORES

Duas semanas mais tarde consegui marcar uma visita com o corretor de imóveis, e
felizmente a casa ainda estava disponível. Falei com Beto sobre o meu desejo de montar
a loja e como sempre, recebi o seu apoio. Conversei também com Maria Antônia, mas ela
estava por demais absorta em seus problemas que mal conseguia demonstrar qualquer
empolgação em me ouvir.

Eu queria pode conversar com ela e saber o que de fato a afligia, mas não queria parecer
intrometida, afinal com certeza o assunto era algo que dizia respeito à sua família e
principalmente aos seus pais. Eu sabia que era algo ligado à carta - àquela que as levou a
chorar há tantos anos atrás – e que eu não sabia do que se tratava.

***

Estávamos em meio à uma tarde quente de janeiro e caminhei em direção do endereço da


casa amarela. Fui sozinha, Laura era espontânea em demasia e falava tanto que temi que
pudesse espantar o corretor. Incrível como esta mesma qualidade lhe era tão admirável
em certas ocasiões e tão inapropriadas em outras.

Minha ansiedade em chegar logo era tamanha que mal percebi como apressei o passo,
quase corri. Não estava atrasada, mas sim nervosa e cheia de expectativas. Cheguei até a
praça XV quase sem ar, coração acelerado e tez suada. Abriguei-me do sol sob a sombra
da velha figueira e esperei alguns segundos para retomar o fôlego, mas mal tive tempo
para isso, pois bem à minha frente, há alguns poucos metros de distância estava ele, o
homem dos meus sonhos, o mesmo que eu encontrara naquela manhã no endereço da casa
amarela.

Vê-lo fez o meu coração palpitar ainda mais forte, não esperava encontrá-lo naquela
ocasião. Ainda ofegava lentamente enquanto tentava desviar meus olhos dos dele. Foi
quando ele levantou e veio em minha direção. Mentalmente desejei que passasse por mim
e seguisse o caminho, afinal o que poderia querer?

- Olá. – Disse estendendo a mão


- Oi. – Estendi minha mão e o cumprimentei, mas não consegui olhar em seus olhos.
- Algum problema? Perguntou educadamente.
- Não, eu, eu só estava... retomando o ar, é que está muito quente hoje. – Respondi
gaguejando e puxando o ar com força.
- Está bem. – Fez uma pausa antes de continuar. – Lembra-se de mim? Eu estava
olhando a mesma...
- Lembro, lembro sim. – Interrompi. – Não gostou da casa?
- Gostei, é muito bonita, mas não era exatamente o que eu procurava. Encontrei um
lugar mais tranquilo.
- Ah! Me desculpe o que minha amiga falou naquele dia. Ela não deveria ter dito
aquilo, que o lugar era barulhento e...
- Não se preocupe, está tudo bem. Colhi algumas informações e parece que o local
é ótimo para comércio, mas para morar nem tanto, e eu estava buscando a segunda
opção, então...
- É, a cidade cresceu muito e tudo ao redor da praça e desta área central está
acompanhando este crescimento. – Falei sem jeito e levantei. – Eu preciso ir, até
mais.
- Espere, qual o seu nome? – Perguntou e enxugou o suor que começava a brotar
em seu rosto. Parecia estar tão nervoso quanto eu.
- Isabel. – Respondi rapidamente, querendo demonstrar mais pressa do que eu
realmente estava.
- Eu sou Joaquim. – Falou e me olhou nos olhos.

Seria o instante em que eu deveria falar “muito prazer” e “até mais”, mas eu nada disse e
tampouco me movi. Os seus olhos pareciam ter me congelado, mesmo em meio ao calor
ardente daquela tarde.
- Você vai fazer algo agora? Disse que precisava ir... – Joaquim falou sem
interromper o mesmo olhar e fui eu quem o desviou primeiro.
- Sim, tenho que ir, vou visitar aquela casa amarela, hoje marquei com o corretor.
– Falei.
- Mas eu pensei que o imóvel era péssimo em localização. – Disse e sorriu.
- Mas como você falou, é ótimo para pontos comerciais. – Falei acenando e
apressando o passo ao endereço. – Foi um prazer falar com você, Joaquim – falei.
- Até mais Isabel... ou até logo.
***

Três Meses depois...

Eu estava feliz, um sentimento tão pouco experimentado, mas que aos poucos trazia-me
de volta um sorriso e uma esperança. Sim, a vida podia ser muito bela e realizar sonhos
era algo que tinha esse poder de colorir a vida

Nos meses que se seguiram tudo o que eu fazia era planejar, sonhar e suspirar. Acertei o
valor mensal do aluguel e combinei que se tudo desse certo, compraria a casa dentro de
um ano. Me vi cheia de tarefas burocráticas e outras administrativas – que se tornaram
mais fáceis de lidar com a ajuda e experiência de Beto – Eu estava empolgada.

Consegui contato com alguns produtores e fornecedores de plantas e comprei móveis e


acessórios para montar a loja, sob o olhar curioso dos moradores e comerciantes, até que
finalmente, depois de três meses, inaugurei a loja sob os aplausos de Beto, Maria Antônia,
Laura e sua mãe Dona Carmem. Mantive a cor amarela e acima da porta coloquei a placa
de madeira, que talhada à mão por um artesão trazia o desenho de camélias, muito bem
esculpidas e depois pintadas de branco. Ao meio lia-se “Casa das Flores”.

Escrevi para Carolina e José – que já sabiam da novidade, pois nos correspondíamos com
frequência - e enviei algumas fotografias da Casa das Flores e também uma minha com
Beto e Maria Antônia. Como resposta, mandaram-me as felicitações e Carol enviou
algumas fotos da sua filha – A pequena Rita, com nove anos de idade.

Na carta, José surpreendeu-nos com a notícia do falecimento de tia Rosa e disse que iria
se mudar para Minas Gerais.
“Preciso viver, e isso inclui sair da zona de conforto, como você fez, minha irmã” Foram
as suas palavras, mas prometeu viajar até a Capital para encontrar-se comigo e Beto antes
de partir.

***

Laura estava certa, em pouco tempo a loja era um sucesso. Muitas pessoas
encomendavam flores para fazerem arranjos e decorar suas casas, muito namorados
compravam rosas para surpreender suas amadas e cada vez mais clientes apareciam e
sempre voltavam, satisfeitos.

Certa tarde, um garoto parou frente a porta, jogou a bicicleta no chão e correu para dentro
da loja trazendo em suas mãos um bilhete. “Uma encomenda”, ele falou antes de sair e
desaparecer. O bilhete, de papel amarelado e dobrado em duas partes continha um pedido
inusitado, com letra bem desenhada fazia o pedido: “Um ramalhete de flores para a jovem
mais bela da Capital. A flores podem ser as que melhor combinam com ela”.

- Olha isso Laura. – Mostrei o bilhete para minha amiga que lia e relia como se
fosse um detetive.
- Muito estranho. Não assinou.
- E quem é “ela”? Deveria ao menos ter colocado a foto, como saberei quais as
flores que “melhor combinam com ela”.
- Se é jovem mais bela da Capital – Laura falou revirando os olhos – e as flores
devem combinar com ela, então creio que deves fazer um ramalhete com as flores
mais bonitas da loja.
- Mas quais são as flores mais bonitas da loja, Laura? Para mim todas são lindas,
como escolher? É tão mais fácil quando o cliente vem até a loja com um pedido
mais convencional – Falei com as mãos no rosto – E agora?
- Quem é a florista aqui? – Laura perguntou rindo. – Você quis me contratar, mas
não sei ainda fazer nem um arranjo simples. Falando nisso, temos muitos pedidos
ainda para hoje? Quer que eu ajude com algo? Cortar raminhos, fazer lacinhos –
Ela falava divertindo-se.
- Não, tudo certo, não temos muitos pedidos. Só este, bem incomum por sinal.
Final de tarde, aproximava-se a hora de fechar a loja e ninguém viera buscar o ramalhete.
Deitei as flores sob o balcão e olhei para a rua, a maioria das lojas já estavam com as
portas fechadas.

- Laura, pode ir, vou aguardar arrumar a minha mesa de trabalho e regar aqueles
vasos e se ninguém vier buscar as flores eu as levarei para mim. – Falei.
- Justo! Realmente, são as flores mais lindas dessa loja, esse é o ramalhete mais
bonito que já vi você fazer desde que abriu a Casa das Flores. Eu vou indo, até
amanhã.

Arrumei minha mesa, reguei as plantas e quando estava prestes a fechar a loja senti uma
mão segurando e barrando o completo fechamento da porta.

- Vim buscar a minha encomenda. – Disse o dono dos olhos castanhos esverdeados.
- Joaquim? Você que enviou o bilhete? Eu... eu... desculpa mas eu estava fechando
a loja e levando comigo as flores. Pensei que o houvessem desistido das flores. –
Falei surpresa.
- Não posso desistir dessas flores, preciso entregá-las a uma jovem... – Disse e
soltou o ar que parecia prender em seus pulmões.
- Ah, claro! São suas, entre. – Tornei a abrir a porta e entreguei-lhe as flores, tomada
por um certo desapontamento momentâneo “ele deveria estar apaixonado”, tão
logo recobrei-me e vi quão sem sentido era aquele sentimento.
- A loja está muito bonita. Parabéns Isabel, que seja um sucesso! – Joaquim disse
enquanto estendia o dinheiro para pagar pelas flores.
- Obrigada, é a realização de um sonho. – Respondi, ainda tomada pela surpresa.
- Eu bem posso ver, pela alegria que demonstras quando estás aqui, entre as suas
flores. – Falou.
- Como assim? Não entendo, como podes saber que estou mais alegre quando estou
na loja, entre as flores? – Perguntei.
- Pois eu tenho... foi um... palpite, pelo que observo... agora. – Falou, atropelando-
se nas palavras.
- Ah! Claro. – Foi só o que consegui dizer, confusa e sem graça. – Bom, eu tenho
que ir. Está na hora de fechar a loja.
- Posso acompanhá-la até a praça? É o caminho que farei também. – Apressou-se
em dizer.
- Tudo bem. – Assenti.

Saímos da loja em silêncio, atravessamos a rua, dobramos a esquina e seguimos em


direção a praça. O sol estava se pondo e era o momento do dia em que eu achava o céu
mais bonito, todo alaranjado, conferia um brilho nostálgico em tudo que refletia, as
árvores, as pessoas, não havia nada que não ficasse mais belo sob aquela luz, era perfeito.

- Chegamos. – Falei interrompendo o silêncio. – Eu... espero que as flores tenham


correspondido as suas expectativas.
- São muito belas, você quem as preparou, pessoalmente?
- Sim. Mas como no bilhete você não especificou as cores, nem quais flores
preferia, fiquei receosa. Afinal, a moça “mais bela da cidade” merece as flores
mais belas também. – Falei e em seguida já estava arrependida do comentário.
- Desculpe pela falta de detalhes, eu não sabia como detalhar uma beleza que ainda
não consegui decifrar. – Falou e fez uma pausa antes de continuar. – Desta forma
devo dizer que mesmo sendo um belo ramalhete... – Novamente uma pausa na
fala e um ar de desapontamento.
- Oh, entendo... mesmo sendo um belo ramalhete, não está à altura da beleza da
jovem que receberá as flores. – Completei e ele sorriu.
- É... Não quando está assim, sob esta luz em que a vejo neste instante. – Disse
mergulhando todo o brilho dos seus olhos dentro dos meus.

Meu coração bateu tão forte que devia ser perceptível o arfar em meu peito. Joaquim
estendeu o braço e ofereceu-me o ramalhete de flores

…..

CONTINUA

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