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Carta de Paris
Príncipes e Poderes1
O Congresso dos Escritores e Artistas Negros (Le Congrès des Ecrivains et
Artistes Noirs) teve sua abertura na manhã de quarta-feira, 9 de setembro de
1956, no Anfiteatro Descartes da Sorbonne, em Paris. Era um daqueles dias
claros e quentes, e, às dez horas, a sala de conferências já estava
insuportavelmente quente, as pessoas lotavam as entradas e cobriam os
degraus de madeira. A sala estava agitada com a atividade do atendente na
montagem de gravadores, com o teste dos fones de ouvido, com a
luminosidade dos flashes. A eletricidade, de fato, encheu o salão. Das pessoas
lá, naquele primeiro dia, eu julgo que nem dois terços eram de cor.
Atrás da mesa, na frente do salão, havia oito homens de cor, os quais incluíam
o romancista americano Richard Wright; Alioune Diop, editor da Présence
Africaine (Presença Africana) e um dos principais organizadores da
conferência; os poetas Leopold Senghor, do Senegal, e Aimé Cesaire, da
Martinica; e o poeta-romancista Jacques Alexis, do Haiti. Do Haiti, também,
veio o Presidente da Conferência, Dr. Price-Mars, um homem muito velho e
muito bonito.
Já passava das dez da noite, quando realmente houve a abertura da
Conferência. Alioune Diop, que se assemelha, em sua extrema sobriedade, a
um antigo ministro Batista, fez o discurso de abertura. Ele se referiu ao
presente encontro como uma espécie de segundo Bandung2. Como em
Bandung, as pessoas reunidas aqui tinham em comum o fato da sua
submissão à Europa ou, no mínimo, uma visão europeia do mundo. "A
História", disse ele, "tratou os negros de um modo um tanto arrogante. Eu diria
até que a história tratou os homens negros de um modo firmemente maldoso,
não fosse pelo fato de que essa história com um grande H não é nada mais,
afinal de contas, do que a interpretação ocidental da vida do mundo". Ele se
referiu à variedade de culturas que a Conferência representava, dizendo que
elas eram culturas genuínas e que a ignorância do Ocidente em relação a elas
era, em grande parte, uma questão de conveniência. E, ao falar da relação
entre política e cultura, apontou que a perda de vitalidade, a qual todas as
culturas Negras estavam sofrendo, se devia ao fato de seus destinos políticos
não estarem em suas mãos. Um povo privado de soberania política se
encontra muito perto da impossibilidade de recriar, para si mesmo, a imagem
de seu passado, sendo essa recriação perpétua uma necessidade absoluta, se
não, de fato, a definição de uma cultura viva.
1 Texto traduzido para o português por Angelita Minélio da Silva do original, em inglês, de
BALDWIN, James. Princess and Powers: Letter from Paris. Encounter, 1957.
2 A Conferência de Bandung foi uma reunião de 29 países asiáticos e
africanos em Bandung (Indonésia), entre 18 e 24 de Abril de 1955, com o objetivo de mapear o
futuro de uma nova força política global (Terceiro Mundo), visando à promoção da cooperação
econômica e cultural afro-asiática, como forma de oposição ao que era
considerado colonialismo ou neocolonialismo, por parte dos Estados Unidos e da União
Soviética.
2
Seu discurso ganhou muitos aplausos. No entanto, senti que entre as pessoas
negras no salão havia, talvez, alguma decepção por ele não ter sido mais
específico, mais amargo, em uma palavra, mais demagógico; considerando
que, entre os brancos do salão, os seus aplausos expressavam certamente um
alívio um tanto envergonhado e desconfortável. E, de fato, a atmosfera era
estranha. Todos estavam tensos com a questão sobre a direção que a
Conferência tomaria. Suspensos no ar, tão reais quanto o calor do qual
sofríamos, estavam os grandes espectros da América e da Rússia, da batalha
entre eles pela dominação do mundo. A resolução final desta batalha pode
muito bem depender da população não-europeia da terra, uma população que
supera, em muito, a Europa, e que sofreu tais injustiças nas mãos europeias.
Com a maior boa vontade do mundo, ninguém que vive agora poderia desfazer
o que as gerações passadas realizaram. A grande questão era o que,
exatamente, eles realizaram: se o mal, do qual havia tantos registros e que
ainda eram sentidos depois deles, se o bem, e houve algum, que foi enterrado
com seus ossos.
4 Podendo também ser escrito Iorubá ou Ioruba, é um idioma da família linguística nígero-
congolesa falado secularmente pelos iorubás em diversos países ao sul do Saara,
principalmente na Nigéria e, por minorias, em Benim, Togo e Serra Leoa.
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com um traje muito atraente. O que parecia ser um poncho de renda branca
cobria-o da cabeça aos pés; embaixo disso, ele estava usando um robe de
seda muito discreto, mas muito ornamentado, que parecia chinês; e ele usava
um toque5 de veludo vermelho, um sinal, alguém me disse, de que ele era um
maometano. A língua Yorubá, explicou Lasebikan, só se tornara uma língua
oral em meados do século passado, e isso fora feito por missionários. Seu
rosto expressou alguma tristeza neste momento. Mas – e seu rosto se iluminou
de novo – ele viveu na esperança de que um dia uma escavação trouxesse à
luz uma boa literatura escrita pelo povo Yorubá. Entretanto, com grande boa
vontade, resignou-se a compartilhar conosco a literatura que já existia.
Duvido que eu tenha aprendido muito sobre a estrutura tonal da poesia Yorubá,
mas me encontrei fascinado pela sensibilidade que a produzira. M. Lasebikan
falou primeiro em Yorubá e depois em inglês. Talvez tenha sido porque ele
amou tão claramente seu objeto que ele teve êxito transmitindo a poesia dessa
linguagem extremamente estranha, como também transmitiu algo do estilo de
vida de onde veio. Os poemas citados iam desde o devocional até o que
descrevia o bater de inhame. E de certa forma sentia a solidão e o anseio do
primeiro e a pacífica e rítmica domesticidade do segundo. Parte da poesia
exigia o uso de um tambor maravilhosamente ornamentado, no qual havia
muitos pequenos sinos. Não era o tambor que tinha sido, ele nos disse, mas,
apesar de qualquer coisa que tivesse acontecido, eu poderia ter ouvido ele
tocar pelo resto da tarde.
Ele foi seguido por Leopold Senghor. Senghor é uma figura muito negra e
impressionante de um jeito suave e de óculos, e ele é muito respeitado como
poeta. Ele deveria falar sobre artistas e escritores da África Ocidental. Ele
começou, invocando o que ele chamou de “espírito de Bandung”. Referindo-se
a Bandung, estava se referindo menos, ele disse, à libertação dos negros do
que saudando a realidade e a dureza de sua cultura, que, apesar das
vicissitudes de sua história, recusara-se a perecer. Uma das coisas, disse
Senghor – talvez a coisa – que distingue os africanos dos europeus é a
urgência comparativa de sua capacidade de sentir. "Sentir c'est apercevoir”6.
O raciocínio do africano não é compartimentalizado e, para ilustrar isso,
Senghor usou a imagem da corrente sanguínea na qual todas as coisas se
misturam e fluem para o coração. Ele nos disse que a diferença entre a função
das artes na Europa e sua função na África reside no fato de que, na África, a
função das artes é mais presente e penetrante, é infinitamente menos especial,
"é feita por todos, para todos". Assim, o amor à arte pela arte não é um
conceito que faz algum sentido na África. A divisão entre arte e vida, da qual
esse conceito surge, não existe. A própria arte é considerada perecível, para
ser refeita toda vez que ela desaparece ou é destruída. O que se apega é o
espírito que torna a arte possível. E a ideia africana deste espírito é muito
diferente da ideia europeia.
5 Adereço de cabeça masculino com diversas formas, usado na França desde a Idade Média e,
ainda hoje, pela magistratura francesa, em cerimônias universitárias e por algumas
corporações militares.
6 Trad. “Sentir é aperceber-se”
5
A crise cultural pela qual estamos passando hoje pode ser resumida assim,
disse Cesaire: a cultura mais forte do ponto de vista material e tecnológico
ameaça esmagar todas as culturas mais fracas, particularmente em um mundo
que, à distância não conta, tecnologicamente culturas mais fracas não têm
meios de se proteger. Todas as culturas têm, além disso, uma base
econômica, social e política, e nenhuma cultura pode continuar a viver se seu
destino político não estiver em suas próprias mãos. "Qualquer regime político e
social que destrua a autodeterminação de um povo também destrói o poder
criativo daquele povo". Agora as civilizações da Europa, disse Cesaire, falando
muito clara e intensamente para um salão lotado e atento, evoluiu uma
7 Black Boy (1945) é uma autobiografia do autor americano Richard Wright, detalhando sua
juventude no Sul: Mississippi, Arkansas e Tennessee, e sua eventual mudança para Chicago,
onde estabelece sua carreira como escritor e se envolve com o Partido Comunista nos Estados
Unidos. Unidos.
8 Leia-se Ésquilo: Foi um dramaturgo da antiga Grécia. É reconhecido frequentemente como o
e padrões europeus, e a relação deles com eles próprios, entre si e com o seu
passado havia mudado. Sua relação com seus poetas também mudou, assim
como a relação de seus poetas com eles. O discurso de Cesaire deixou fora de
consideração um dos grandes efeitos da experiência colonial: a criação,
precisamente, de homens como ele.
A sessão da sexta começou em um ambiente bastante tenso e essa tensão
continuou durante todo o dia. Diop abriu a sessão, ressaltando que cada
palestrante falou apenas por si mesmo e não poderia ser considerado como
falando pela Conferência. Imaginei que isso tinha algo a ver com o discurso de
Cesaire do dia anterior e com alguns de seus efeitos, entre os quais,
aparentemente, havia sido uma troca de farpas bastante acentuada entre
Cesaire e a delegação americana.
Esta foi a sessão em que se tornou evidente que havia uma guerra religiosa em
curso na Conferência, uma guerra que sugeria, em miniatura, algumas das
tensões que dividiam a África. Um ministro protestante dos Camarões, Pastor
T. Ekollo fora forçado pela hostilidade do público, no dia anterior, a abandonar
uma dissertação em defesa do cristianismo na África. Ele estava visivelmente
chateado ainda. "Haverá cristãos na África, mesmo quando não houver um
homem branco lá", disse ele, com um desafio tenso, e acrescentou, com uma
ironia inconscientemente desesperada, à qual, no entanto, ninguém reagiu,
"supondo que isto seja possível". Ele havia sido perguntado como poderia
defender o cristianismo em vista do que os cristãos tinham feito em seu país. E
sua resposta foi que a doutrina do cristianismo foi mais momentânea do que os
crimes cometidos pelos cristãos. O público estava extremamente frio e hostil,
forçando-o novamente, de fato, do chão. Mas eu senti que isso também tinha
algo a ver com a atitude petulante e notavelmente não cristã do Pastor Ekollo
em relação a eles.
uma maneira que a fúria não poderia ter feito, quão pouco o Ocidente respeitou
seus próprios ideais ao lidar com os povos sujeitados e sugeriu que havia um
preço que pagaríamos por isso.
M. Wahal, do Sudão, falou à tarde sobre a função da lei da cultura, usando,
como ilustração, a função que a lei havia desempenhado na história do negro
americano. Ele falou longamente sobre o papel da lei francesa na África,
apontando que a lei francesa simplesmente não está equipada para lidar com a
complexidade da situação africana. E o que é ainda pior, é claro, é que
praticamente não faz nenhuma tentativa assim. O resultado é que a lei
francesa, na África, é simplesmente um significado legal de administrar a
injustiça. Também não é uma solução reverter ao costume tribal africano, que
também é desamparado diante das complexidades da vida africana atual.
Wahal falou com a silenciada matéria de fato, que emprestou grande força à
feia história que ele estava contando, e concluiu dizendo que a questão era em
última análise política e que não havia esperança de resolvê-la na estrutura do
atual sistema colonial.
Ele foi seguido por George Lamming. Lamming é alto, magro, desleixado e
intenso, e uma de suas verdadeiras distinções é sua recusa em ser intimidado
pelo fato de ser um escritor genuíno. Ele propôs levantar certas questões
relativas à qualidade de vida a ser vivida pelos negros naquele hipotético
amanhã, quando eles não seriam mais governados por brancos. "A profissão
das letras é desleixada", começou ele, parecendo que ele se vestira para
provar isso. Ele dirigiu seu discurso para Aimé Cesaire e Jacques Alexis em
particular, e citou Djuna Barnes9: "Um senso muito grande de identidade faz um
homem sentir que não pode fazer nada errado. E um muito pequeno faz o
mesmo". Ele sugeriu que era importante ter em mente que a palavra negro
significava preto – e não significava nada mais do que isso; e comentou sobre
a grande variedade de heranças, experiências e pontos de vista que a
Conferência reuniu sob o título deste nome único. Ele queria sugerir que a
natureza do poder não estava relacionada à pigmentação, que a má fé era um
fenômeno independente da raça. Ele encontrou – do ponto de vista de um
homem desleixado de letras – algo que prejudicava a obsessão da qual os
negros sofriam em relação à existência e às atitudes do Outro – esse Outro
sendo todo mundo que não é negro. Os grandes problemas dos negros
certamente não deviam ser negados e, no entanto, o maior problema que
enfrentávamos era o que nós, os negros, faríamos entre nós mesmos "quando
não havia mais nenhum cavalo colonial para cavalgar". Ele ressaltou que esse
era o cavalo em que muitos negros, que estavam no que ele chamava de "o
comércio da pele", esperavam cavalgar até o poder, poder que de modo algum
seria distinguível do poder que eles procuravam derrubar. Lamming insistia na
reverência que é devida à vida privada. Eu o respeitava muito, não só porque
ele levantou essa questão, mas porque ele sabia o que estava fazendo. Ele
estava preocupado com a imensidão e a variedade da experiência chamada
negro. Ele estava preocupado que alguém deveria reconhecer essa variedade
9 Escritora norte-americana. Ficou conhecida pelo seu romance Nightwood, comparado pelo
poeta T.S. Eliot à grande literatura inglesa do século XVI. Teve um relacionamento conturbado
com a artista plástica Thelma Wood.
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como riqueza. Ele citou o caso de Palm Wine Drinkard10 (O bebedor de vinho
de palma) de Amos Tutuola, que ele descreveu como uma fantasia, composta
de lendas, episódios, o produto, intacto, de uma tradição oral de contar
histórias que desapareceu da vida ocidental há gerações. No entanto, "Tutuola
realmente fala inglês. Não é sua segunda língua". Os ingleses não acharam o
livro estranho. Pelo contrário, eles ficaram surpresos com a sinceridade que
parecia falar-lhes de sua própria experiência. Pareceu-me que Lamming estava
sugerindo à Conferência uma ideia sutil e difícil, a ideia de que parte da grande
riqueza da experiência do negro estava precisamente em seu duplo gume. Ele
estava sugerindo que todos os negros eram mantidos em um estado de
suprema tensão entre a relação difícil e perigosa em que se encontrava com o
mundo branco e o relacionamento, não um pouco menos doloroso ou perigoso,
no qual eles se colocavam um para o outro. Ele estava sugerindo que, na
aceitação dessa dualidade, se estabelecesse sua força.
Lamming foi interrompido neste ponto, entretanto, pois havia sido decidido, em
vista do grande número de relatórios, ainda a ser lido, limitar a todos em vinte
minutos. Essa regra bastante irrealista não foi observada muito de perto,
especialmente no que se refere aos delegados francófonos. Mas Lamming pôs
as anotações no bolso e terminou dizendo que, se, como alguém havia dito, o
silêncio fosse a única linguagem comum, a política, para os negros, era o único
terreno comum.
A sessão da noite começou com um filme, que eu perdi, e foi seguido por um
discurso de Cheik Anta Diop, que – em suma – reivindicou o antigo império
egípcio como parte do passado negro. Ele se recusou a permanecer dentro do
limite de vinte minutos e, embora suas alegações de desonestidade deliberada
de todos os estudiosos egípcios possam ser bem fundadas por tudo que sei,
não posso dizer que ele me convenceu. Ele foi, no entanto, um grande sucesso
no salão, perdendo apenas para Aimé Cesaire.
Ele foi seguido por Richard Wright. Wright estava agindo como homem de
ligação entre a delegação americana e os africanos e isso o colocara em uma
posição bastante difícil, já que ambas as facções tendiam a reivindicá-lo como
seu porta-voz. Naturalmente, não havia ocorrido aos americanos que ele
poderia ser qualquer coisa menos que isso, ao passo que os africanos
automaticamente o reivindicavam por causa de seu grande prestígio como
romancista e sua reputação por chamar uma pá de pá – particularmente se a
pá fosse branca. A consciência de sua peculiar, e certamente bastante
cansativa posição, pesava sobre ele, eu penso que bastante.
Ele começou confessando que o papel que ele havia escrito, enquanto estava
em sua fazenda na Normandia, o impressionou como sendo, após os
acontecimentos dos últimos dias, inadequado. Algumas das coisas que ele
havia observado durante o curso da Conferência levantaram questões nele que
10 Romance publicado em 1952 pelo autor nigeriano Amos Tutuola. O primeiro romance
africano publicado em inglês fora da África, esta edição é baseada em Inglês Yoruba ou Inglês
Pidgin (simplificado). Nele, um homem segue seu cervejeiro para a terra dos mortos,
encontrando muitos espíritos e aventuras. O romance sempre foi controverso, inspirando
admiração e desprezo entre os críticos ocidentais e nigerianos, mas emergiu como um dos
textos mais importantes do cânone literário africano.
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seu artigo não poderia ter previsto. No entanto, ele não havia reescrito seu
artigo, mas o leria agora, exatamente como havia sido escrito, interrompendo-
se sempre que o que ele havia escrito e o que ele fizera desde então
parecesse estar em desacordo. Ele estava expondo, em suma, sua consciência
à Conferência e pedindo ajuda a eles em sua confusão.
Antes de tudo, havia uma dolorosa contradição em ser, ao mesmo tempo, um
ocidental e um negro. "Eu vejo os dois mundos de outro, e terceiro, ponto de
vista". Este fato não teve nada a ver com sua vontade, seu desejo ou sua
escolha. Era simplesmente que ele nascera no Ocidente e o Ocidente o havia
formado. Como um ocidental negro, era difícil saber qual deveria ser a atitude
em relação a três realidades que eram de maneira extravagante entrelaçadas
no tecido ocidental. Eram religião, tradição e imperialismo, e em nenhuma
dessas realidades foram levadas em conta as pessoas negras.
Wright, em seguida, passou a falar dos efeitos do colonialismo europeu nas
colônias africanas. Ele confessou ter sempre em mente a grande lacuna entre
as intenções humanas e os seres humanos – que ele considerava ter sido, em
muitos aspectos, libertador, já que esmagou velhas tradições e destruiu deuses
antigos. Uma das coisas que o surpreenderam nos últimos dias foi a percepção
de que a maioria dos delegados da Conferência não se sentia como ele. Ele
sentia, no entanto, que, embora os europeus não tivessem percebido o que
estavam fazendo para libertar os africanos da "podridão" de seu passado, eles
estavam realizando um bem. Em suma, disse Wright, ele achava que a Europa
havia trazido o Iluminismo para a África e que o que era bom para a Europa era
bom para toda a humanidade. Eu senti que essa era, talvez, uma maneira
indelicada de formular uma ideia discutível, mas Wright continuou para
expressar uma noção que eu achei ainda mais estranha. E isso foi que o
Ocidente, tendo criado uma elite africana e asiática, deveria agora "dar-lhes
suas cabeças" e "recusam-se a ficar chocados" com os "métodos que eles se
sentirão obrigados a usar" na unificação de seus países. Presumivelmente, isso
não nos deixou em posição de atirar pedras em Nehru, Nasser, Sukarno,11 etc.,
caso decidissem usar métodos ditatoriais para apressar a "evolução social".
Em todo caso, Wright disse que esses homens, os líderes de seus países, uma
vez que a nova ordem social fosse estabelecida, renderiam voluntariamente o
"poder pessoal". Ele não disse o que aconteceria então, mas eu supus que
seria a Segunda Vinda.
Sábado foi o último dia da Conferência, que deveria terminar com o convite ao
público para se envolver com os delegados no diálogo euro-africano. Foi um
dia marcado por muita confusão, excitação e descontentamento – este último
por parte de pessoas que sentiram que a Conferência havia sido mal
administrada ou que não tiveram permissão para lerem seus relatórios (Muitas
vezes eram as mesmas pessoas.). Também foi marcado por uma boa dose de
clareza, tanto dentro quanto fora, mas principalmente fora do registro. O salão
estava ainda mais quente e lotado do que no primeiro dia e os fotógrafos
estavam de volta.
ligeiramente repetitivo, isso não tornou seu significado menos claro nem
diminuiu sua importância. Falou primeiro da grande importância do inventário
cultural aqui iniciado em relação às várias culturas negras que foram
“sistematicamente mal interpretadas, subestimadas, às vezes destruídas”. Este
inventário confirmou a necessidade urgente de um reexame da história dessas
culturas. ("la verité historique”)12 tendo em vista a sua reavaliação. A
ignorância a respeito deles, os erros e as distorções voluntárias estavam entre
os grandes fatores contribuintes para a crise através da qual eles agora
passavam, em relação a eles mesmos e à cultura humana em geral. A ajuda
ativa de escritores, artistas, teólogos, pensadores, cientistas e técnicos era
necessária para o renascimento, a reabilitação e o desenvolvimento dessas
culturas como o primeiro passo para sua integração na vida cultural ativa do
mundo. Os homens negros, quaisquer que fossem suas crenças políticas e
religiosas, estavam unidos em acreditar que a saúde e o crescimento dessas
culturas não poderiam vir até que o colonialismo, a exploração dos povos
subdesenvolvidos e a discriminação racial cheguem ao fim. (Neste momento a
Conferência expressou seu pesar pela ausência involuntária da delegação sul-
africana e a leitura foi interrompida por aplausos prolongados e violentos.).
Todas as pessoas, o documento continuava, tinham o direito de poder se
colocar em contato frutífero com seus valores culturais nacionais e beneficiar-
se da instrução e educação que lhes poderiam ser oferecidas neste contexto.
Ele falou do progresso que havia ocorrido no mundo nos últimos anos e
afirmou que esse progresso permitia esperar a abolição geral do sistema
colonial e o fim total e universal da discriminação racial. E terminou: "Nossa
Conferência, que respeita as culturas de todos os países e aprecia suas
contribuições para o progresso da civilização, envolve todos os homens negros
na defesa, na ilustração e na disseminação em todo o mundo dos valores
nacionais de seu povo. Nós, escritores e artistas negros, proclamamos nossa
fraternidade para com todos os homens e esperamos deles ('nous attendons
d'eux')13 a manifestação dessa mesma irmandade para com nosso povo”.
Quando os aplausos nas últimas palavras deste documento estavam quase se
terminando, Diop assinalou que isso não era uma declaração de guerra; foi, ao
contrário, uma declaração de amor – pela cultura, europeia, tão importante na
história da humanidade. Mas sentira muito profundamente que agora era
necessário que os homens negros se esforçassem para se definir a si mesmos
"au lieu d'être toujours défini par les autres"14. Os homens negros resolveram
"tomar o seu destino nas próprias mãos". Ele falou de planos para a criação de
uma associação internacional para a disseminação da cultura negra e, em
17:22, o Dr. Price-Mars oficialmente encerrou a Conferência.
James Baldwin