A realidade apresentada pelo documentário reafirma a urgência de uma questão que vem
sendo discutida internacionalmente e na sociedade brasileira por décadas, que é a reforma
psiquiátrica, que, aliás, se for analisada iniciou-se com o próprio surgimento da Psiquiatria, porém como entendida e vista atualmente é diferenciada e com inicio a partir da segunda metade da década de 1970, baseando-se na crítica do modelo asilar bem como as medidas de normatização e controle. A reforma psiquiátrica brasileira baseia-se na reforma italiana, com algumas diferenças e adaptações, sendo que conta com premissas de prestar diferentes alternativas de tratamento, desmistificar a doença mental e criar uma nova mentalidade a esse respeito. Tais premissas representam uma grande gama de mudanças em várias áreas como a política, administrativa, jurídica, social e técnica para culminarem na restituição da cidadania do louco. Para efeito de análise o caso do hospital Vera Cruz é utilizado aqui como exemplo e parâmetro de tal movimento reformista no Brasil.
Ao assistir o documentário percebe-se um cenário de abandono, demonstrada pela falta
de zelo pela estrutura do hospital, bem como zelo diretamente aos internos, violência manifestada por agressões físicas entre os pacientes e psicológica generalizada, falta de condições de trabalho adequadas e de contingente de técnicos coerente a lotação. Externamente, o hospital apresentava condições regulares e sem maiores problemas aparentemente, porém era apenas uma máscara para as condições gerais, que internamente se mostraram de forma diferente, tanto estruturalmente como em questões de higiene. Foi mostrado que o hospital não possuía camas suficientes a todos os paciente, alguns deles dormiam junto a outros, algumas camas não possuíam colchões sendo que dormiam sobre a estrutura de madeira da cama, alguns deles deitavam-se ao chão. O produtor infiltrado no hospital em uma imagem externa mostra os cobertores em péssimas condições em sua maioria rasgados e desgastados sem condições de atenderem as necessidades de quem os utilizassem. Em várias imagens do documentário foram mostradas fezes pelo chão de corredores e quartos, o que além de ser uma situação desagradável conota implicações em questões básicas de saúde sendo que o produtor sentiu-se mau e com náuseas por vezes. Muitas vezes foi visto que os pacientes andavam nus pela instituição, em outro momento o produtor questiona uma funcionária que revela que havia pacientes que nas próprias palavras dela diz que “namoravam” abertamente e podiam ser vistos em algumas ocasiões “namorando”, em outras cenas vê-se internos sendo impedidos de circularem pelo local e serem trancados em alas por grades e bem como um deles foi visto sendo barrado da fila para realizar a alimentação no refeitório de uma forma inadequada e até agressiva, agressividade que também foi vista entre alguns dos pacientes. Também foi mostrado um dos internos, talvez amenizando a falta de funcionários trabalhando na lavanderia, um local com periculosidade, havendo necessidade de muito cuidado para lidar com o maquinário que apresenta certo risco o que era avisado por sinalizadores nas paredes bem como o cuidado de risco biológico, portanto havendo necessidade de utilização de equipamentos de proteção individual específicos, o que não havia de qualquer forma, estando então exposto livremente aos riscos de saúde e de vida. Para finalizar o relato das condições verificadas no documentário neste texto, mas que não representa um relato integral dos fatos finaliza-se informando que após o desaparecimento de um paciente o corpo de bombeiros foi acionado para localizá-lo nas regiões próximas ao hospital e que outro paciente morreu durante a realização da investigação para o documentário de acordo com o hospital por engasgamento ao se alimentar com um pão.
Considero a reportagem investigativa realizada de grande valia e que corrobora com a
crítica do movimento da reforma psiquiátrica brasileira, pois que mostra os bastidores de um hospital, que embora particular, mas que se baseia num modelo asilar clássico e que retrata as condições possivelmente da maioria dos manicômios brasileiros aonde a exclusão, os maus-tratos, abandono, violências e desprezo são realidades vivenciadas constantemente. O que foi mostrado pelo programa é mais uma prova da falência de um sistema asilar para tratamento de pessoas com doenças mentais, o que, aliás, também está em desacordo com os modelos propostos pelo movimento de reforma que considera essencial a inclusão social, a assistência multidisciplinar e interdisciplinar de variadas formas de tratamento ofertadas aos pacientes de forma coerente aos seus casos e a comunidade as quais fazem parte, bem como está em desacordo com outras questões como a eliminação dos meios de contenção, o restabelecimento da relação do indivíduo com sua identidade através do corpo, a liberdade de expressão, a liberdade de acesso sem grandes restrições, formas propícias da liberação dos sentimentos entre outras e que por fim devolva a cidadania a cada um deles de acordo com as possibilidades específicas. A reportagem mostrou que o hospital não tinha apenas falta de condições materiais, mas também condições técnicas, práticas, de trabalho e contingente, em que nada favorecia aos pacientes a um tratamento mais adequado, sequer digno, bem como os funcionários ao menos de prestarem uma assistência básica, o que mais contribuía para a sobrecarga de trabalho e desgaste emocional destes que retornava de forma negativa aos pacientes como através de falhas de atenção e motivação dos funcionários e que o processo como um todo parece um ciclo vicioso e que estimula a uma dependência por parte dos pacientes, pois que se não têm tratamento adequado, não têm por consequência seus sofrimentos amenizados, menos ainda melhoras que os habilitem a reinserção e reintegração progressiva na sociedade e então permanecem no hospital que por sua vez recebe os recursos financeiros para permanência dos pacientes. Por fim constato que não houve inconformidades somente em relação a novos modelos mais justos, adequados e eficazes que a reforma psiquiátrica preconiza e propõe, contudo inconformidades relacionadas a fatores mais elementares inerentes a qualquer pessoa que é cumprimento dos direitos humanos. Contudo, o Ministério Público a partir da denúncia realizada pelo programa Conexão Repórter executou uma ordem de busca e apreensão no hospital Vera Cruz.