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LITERATURA

NORTE-AMERICANA
Anderson Soares Gomes

2009
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por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G612L

Gomes, Anderson Soares


Literatura norte-americana / Anderson Soares Gomes. – Curitiba, PR: IESDE
Brasil, 2009.
216 p.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-0383-9

1. Literatura americana - História e crítica. 2. Literatura americana - Aspectos


sociais. 3. Literatura e história - Estados Unidos. 4. Estados Unidos - História. 5. Cul-
tura - Estados Unidos. I. Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. II. Título.

09-2430 CDD: 810.9


CDU: 821.111(73).09

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Júpiter Images

Todos os direitos reservados.

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Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Anderson Soares Gomes

Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-


Rio), Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Ba-
charel em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Sumário
Literatura colonial e a América puritana ....................... 11
A chegada do Mayflower .................................................................................... 12
O estabelecimento das treze colônias .................................................................. 14
A literatura colonial: o puritanismo e o Great Awakening.................................... 18

O período revolucionário .......................................... 29


Os conflitos com a Inglaterra e a luta pela independência .................................. 29
Os “Pais Fundadores” ........................................................................................... 33
Os textos revolucionários ..................................................................................... 37

A prosa romântica ..................................................... 47


O ideal romântico e a construção da identidade norte-americana ..................... 47
O transcendentalismo ........................................................................................ 52
A inspiração gótica .............................................................................................. 59

A poesia romântica .................................................... 69


A poesia de Edgar Allan Poe ............................................................................... 69
Walt Whitman: a busca por uma voz norte-americana ........................................ 73
Emily Dickinson: a poesia de cunho metafísico ................................................. 76
A Guerra Civil e a literatura correspondente ................ 87
Diferenças entre o norte e o sul dos EUA ................................................................. 87
A escravidão e os textos abolicionistas .............................................................. 90
Consequências do conflito: textos literários de temática da Guerra Civil ........ 95

O Realismo norte-americano ...................................... 103


As mudanças socioeconômicas ........................................................................ 104
Uma voz nacional: Mark Twain .......................................................................... 107
O Naturalismo .................................................................................................... 112
Henry James: a literatura entre os Estados Unidos e a Europa .......................... 116

A prosa norte-americana
na 1.ª metade do século XX ..................................... 125
F. Scott Fitzgerald e a Jazz Age .......................................................................... 126
Ernest Hemingway e a precisão da escrita ......................................................... 130
William Faulkner e a tradição sulista .................................................................. 133
John Steinbeck e a Grande Depressão ............................................................. 136

A poesia norte-americana
na 1.ª metade do século XX ..................................... 147
Robert Frost: a natureza como poesia ............................................................... 147
T.S. Eliot & Ezra Pound: trilhando caminhos modernos ..................................... 151
Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil ....................................................... 158
O teatro e as vertentes da prosa norte-
-americana na 2.ª metade do século XX .....................167
O teatro de Arthur Miller e Tennessee Williams ................................................ 168
A ascensão da literatura afro-americana ........................................................... 174
Inovações na prosa: J.D. Salinger e New Journalism .......................................... 178

Possibilidades de ensino de literatura


norte-americana no ensino médio .......................... 189
A obra literária como produto de um momento histórico ............................... 190
Abordagens para o ensino da literatura norte-americana ............................... 194

Gabarito ....................................................................... 205

Referências .................................................................. 213


Apresentação

No mundo contemporâneo, onde a cultura norte-americana se encontra prati-


camente onipresente nas formas de expressão ocidentais, é cada vez mais im-
portante investigar as maneiras através das quais os Estados Unidos se desenvol-
veram (historicamente, socialmente e artisticamente) de colônia inglesa à maior
potência mundial.
Tal desenvolvimento pode ser visto especialmente através de sua literatura. É na
literatura norte-americana que podemos aquilatar a quase totalidade do proces-
so histórico cultural dos Estados Unidos. A partir de seus principais textos (fic-
cionais ou não) e do pensamento de seus autores mais significativos, é possível
compreender como a identidade norte-americana foi sendo construída através
dos séculos.
Este material, portanto, se propõe como um estudo das mais relevantes obras
literárias produzidas nos Estados Unidos numa perspectiva histórico-social, para
assim se traçar um panorama do “homem norte-americano” – seus valores, suas
formas de expressão e sua visão de mundo.
Veremos neste trabalho a criação de um ideal para a América através da literatura,
começando com a saída dos peregrinos da Inglaterra e seu estabelecimento nas
treze colônias. Analisaremos então o processo de independência norte-america-
no, suas ideologias, seus principais nomes e textos. Assim, vamos estudar como
se deu a consolidação dos Estados Unidos através da literatura, passando pelo
período da Guerra Civil, o Romantismo e o Realismo. Por fim, no século XX, trata-
remos da ascensão de novos estilos literários que se tornaram essenciais para o
reconhecimento da escrita norte-americana como uma das mais representativas
da contemporaneidade.
O presente trabalho também abordará como a literatura dos Estados Unidos se
relaciona com outras formas de representação artísticas, como o cinema, a música
e o teatro. Dessa forma, será possível estabelecer uma ampla perspectiva das mu-
danças e do desenvolvimento da cultura norte-americana.
Que este trabalho sirva de inspiração e estímulo para que futuros profissionais
da área de Letras possam, de forma crítica e complexa, percorrer os sinuosos –
porém enriquecedores – caminhos traçados pelos principais nomes da literatura
produzida nos Estados Unidos.

Anderson Soares Gomes


Literatura colonial e a América puritana

Refletir sobre as expressões literárias da cultura norte-americana é,


mesmo que de forma subconsciente e intrínseca, refletir sobre a própria
natureza do nome do país que lhe deu origem.

Os Estados Unidos da América são um país que já em seu nome, no


plural, prenunciam uma natureza múltipla e variada, indicador que a for-
mação de seu território, seu povo e sua identidade foi construída através
da união de objetivos comuns e superação de diferenças. Uma das poucas
nações do mundo reconhecida por uma sigla (EUA, ou“USA” em inglês), os
Estados Unidos também têm por hábito referirem-se a si próprios como
“América”, e seus cidadãos como americanos.

Se o fato de se intitular “América” acaba gerando uma insatisfação por


parte de seus vizinhos da América Central e da América do Sul, não há
como negar que os Estados Unidos acabaram criando um novo significa-
do para o termo “América”, que ultrapassa os limites geográficos: a Amé-
rica é a terra da democracia, da liberdade individual e da oportunidade. É
claro, contudo, que nem sempre foi assim. Apesar de existirem evidências
de que o território da América do Norte já havia sido visitado pelos vikings
no século IX, é apenas com Cristóvão Colombo, em 1492, que a Europa
finalmente descobre o novo continente.

A Inglaterra a princípio ocupa um papel secundário na ocupação da


América, já que Portugal e Espanha tomam para si a maior parte do ter-
ritório. Inicialmente, os ingleses se dedicam à pirataria, roubando ouro
e prata de navios espanhóis e portugueses. Posteriormente, no entanto,
a Inglaterra concentra-se na exploração e investigação do território do
Novo Mundo.

Primeiramente com John Cabot e depois com Walter Raleigh (que nomeia
a região a que chega de Virgínia, em homenagem à rainha Elizabeth I, a
“rainha virgem”), há uma tentativa real de colonização da América do Norte
por parte dos ingleses. Porém, as situações extremas a que esses primeiros
colonos foram submetidos (doenças, ataques de nativos, fome) puseram fim
a esse primeiro esboço de uma colônia de domínio inglês na América.
Literatura Norte-Americana

Com outro monarca no poder (James I), a Inglaterra tenta novamente implan-
tar uma colônia na América. A estratégia e a natureza desta nova empreitada,
no entanto, são diferentes daquelas usadas durante o reinado de Elizabeth I. Ao
invés de nobres desbravadores, esses novos colonizadores eram representantes
de empresas inglesas que, num esquema pré-capitalista, tinham autorização da
Coroa para explorar as terras do Novo Mundo. Assim, os ingleses finalmente al-
cançam o sucesso em seu processo de colonização e uma nova fase começa para
a América do Norte.

A chegada do Mayflower
O primeiro povoado inglês de caráter permanente na América do Norte foi
Jamestown (assim chamado em homenagem ao rei James I), na Virgínia em 1607.
Patrocinado pela Virginia Company of London, Jamestown tem outro significado
muito especial: um dos colonos do povoado foi John Smith (1580-1631), um dos
mais importantes personagens da história colonial norte-americana.

Domínio público.

John Smith.

John Smith foi um capitão inglês que, através de seus textos e sua fabulosa
biografia, definiu o perfil dos primeiros colonos americanos: aventureiro, des-
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Literatura colonial e a América puritana

temido e promotor das belezas e das promessas do Novo Mundo. Em sua pro-
dução textual sobre a América (de cunho notadamente propagandista, já que
havia enorme interesse em atrair mais e mais colonos ingleses para o novo con-
tinente), Smith cria cenários, eventos e personagens de natureza quase mítica,
que servem de fundação não só para a literatura, mas também para a identidade
norte-americana. A América de John Smith é a “terra de oportunidades”, expres-
são que até hoje ecoa na mente daqueles que buscam nos Estados Unidos um
horizonte para um futuro de prosperidade.

O trabalho mais significativo de Smith é The General History of Virginia. Esta


obra, escrita quando Smith já havia retornado à Europa, serve não só como re-
gistro de sua permanência na colônia, mas também como artifício para tornar o
novo continente um lugar atraente para prováveis novos exploradores. É com
esse trabalho que Smith consolida a visão da América como o lugar da riqueza
abundante, da vida selvagem, dos prazeres e da liberdade individual.

Também é em The General History of Virginia que John Smith conta uma das
mais famosas narrativas da história norte-americana: sua aventura romântica
com a índia Pocahontas. O livro relata como Smith foi capturado por índios li-
derados pelo chefe índio Powhatan e feito prisioneiro. Pouco antes de ser morto
pelos indígenas, a filha de Powhatan, Pocahontas, se coloca entre Smith e os
índios e salva o capitão inglês da morte. A partir daí é construída uma narrativa
que indica uma história de amor entre os dois, já que a princesa indígena se
torna responsável por um maior contato entre sua tribo e os ingleses. Essa his-
tória de amor, no entanto, não tem um final feliz: Pocahontas se casa com outro
homem – um agricultor inglês – e vai para a Inglaterra, aceitando a fé cristã. Diz-
se que lá viveu infeliz, alimentando um desejo de retornar à América até o
momento de sua morte.

Atualmente, por mais que a história de John Smith e Pocahontas seja questio-
nada por historiadores, e que muito da narrativa de The General History of Virginia
seja vista como ficção, não há como negar que o possível amor entre o capitão
inglês e a princesa indígena representou, de forma mitológica, a possibilidade
de união e prosperidade entre povos tão diferentes nesse Novo Mundo.

Os textos de John Smith sobre essa nova terra repleta de riquezas e oportu-
nidades em muito serviam para criar expectativas em futuros colonos. Contudo,
essa produção de literatura propagandista não foi a única razão para a ida de
ingleses para a América. Na Inglaterra, o crescimento das cidades com o êxodo
rural estava criando um excedente de mão de obra que não interessava à Coroa.
Órfãos e pessoas muito pobres (indo trabalhar em condições de semiescravidão)
13
Literatura Norte-Americana

também partiam em direção ao Novo Mundo. A ida de ingleses para a América


não era apenas uma busca por melhor qualidade de vida, mas também uma
fuga da situação econômico-social predatória em que se encontravam as classes
menos favorecidas.

Outro fator importantíssimo para a ida de ingleses para o novo continente


foi a perseguição religiosa. A Inglaterra, desde o reinado de Henrique VIII, tem
o anglicanismo como sua religião oficial. A criação da igreja anglicana coloca
diferentes grupos religiosos em conflito com a Coroa inglesa, em especial os pu-
ritanos, assim chamados porque acreditavam numa igreja mais simples e pura, e
que tinham como base os textos de Calvino escritos durante a Reforma Protes-
tante. Exercer sua fé na Inglaterra se tornava cada vez mais difícil, já que aqueles
que não praticavam a religião anglicana passaram a ser perseguidos, sendo pu-
níveis até mesmo com a pena de morte. Depois de uma tentativa fracassada de
estabelecimento na Holanda, os seguidores do puritanismo partem então para
o Novo Mundo.

Em 1620 chega ao porto de Plymouth, em Massachusetts, o Mayflower – navio


inglês que traz o primeiro grupo de “peregrinos” para o novo continente. Esses
colonos, conhecidos historicamente como Pilgrim Fathers (Pais Peregrinos) serão
responsáveis por formar a primeira fase da identidade norte-americana e seus
ensinamentos permanecem no imaginário dos Estados Unidos até hoje.

Esses peregrinos chegam à America determinados a fazer da América a “Terra


Prometida”, um novo começo para a história e para sua religião. Ao mesmo
tempo buscando a concretização de sua fé e um despertar de um novo ideal
de sociedade, esses peregrinos – assim chamados porque acentua sua natureza
religiosa – são os pastores, professores e empreendedores responsáveis pelo su-
cesso da colonização na América do Norte.

O estabelecimento das treze colônias


É preciso fazer uma importante distinção aqui no que concerne à colonização
ibérica (Portugal e Espanha) e à colonização inglesa. Portugueses e espanhóis
tinham um modelo de conquista do novo território claramente mais explorató-
rio, o que fazia com que as regiões sob o seu controle (a América Central, a Amé-
rica do Sul e até mesmo algumas partes da América do Norte, como a Flórida)
fossem vistas como grandes áreas de extração de riquezas para serem enviadas
para a Europa. A colonização inglesa na América do Norte, por outro lado, tinha

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Literatura colonial e a América puritana

como objetivo central o povoamento daquela região, especialmente porque a


partir da chegada do Mayflower, as pessoas que chegavam àquela terra pouco
conhecida estavam em busca de um novo recomeço, longe das problemáticas
religiosas que tanto sofriam no velho continente. A terra é conquistada para se
morar nela.

No entanto, pode-se dizer que esses diferentes modelos de colonização não


eram em sua totalidade apenas de exploração ou apenas de povoamento. Nas
regiões controladas por portugueses e espanhóis, mesmo para extrair o ouro, a
prata ou pau-brasil, existia a necessidade de criação de cidades (como o Rio de
Janeiro ou a Cidade do México) e a miscigenação dos povos em muito contri-
buiu para a criação de uma nova identidade nacional. Já nas colônias inglesas, o
povoamento da região foi especialmente difícil, já que não havia um suporte do
Estado como na colonização ibérica (a viagem era feita por companhias particu-
lares) e não haviam riquezas abundantes facilmente encontráveis. Apenas anos
depois, com a expansão para o oeste americano e com a descoberta de ouro e
petróleo, o caráter exploratório da ocupação da terra se intensifica.

O início da colonização por parte dos peregrinos foi bastante difícil. Os inver-
nos eram bem rigorosos na região e vários colonos morriam de frio e de fome.
Além do mais, os variados conflitos com os nativos indígenas ainda era um fator
extra de perigo que os colonos tinham de lidar.

Mesmo assim, o embrião dos Estados Unidos se expande: mais e mais colo-
nos chegam à América, fugindo da perseguição religiosa, buscando melhor con-
dição econômica ou simplesmente em busca de um novo começo numa terra
inexplorada. Na Baía de Massachusetts, em 1630, ocorre uma imensa imigração
puritana que consolida de vez o protestantismo de Calvino por quase todo o
território. Outras regiões, porém, eram adeptas de outras religiões: em 1633, é
fundado na colônia de Maryland um povoado seguidor do catolicismo; em 1681,
William Penn funda na Pennsylvania uma colônia onde a população segue os
preceitos da doutrina Quaker.

Mesmo entre os protestantes calvinistas existiam diferenças que levaram à


expansão do território. Roger Williams, por exemplo, era um puritano em desa-
cordo com a íntima ligação entre a esfera política (o Estado) e a esfera religiosa
(o puritanismo) existente na região de Massachusetts. Ele parte em exílio e funda
uma nova colônia – Rhode Island.

Essa diversidade religiosa, ao contrário do que poderia imaginar, em muito


contribuiu para a necessidade de tolerância entre os territórios e a aceitação das

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Literatura Norte-Americana

diferenças religiosas. Assim, cada cidadão tinha o direito de exercer sua liberdade
religiosa sem correr o risco de sofrer perseguição e discriminação – exatamente
a razão primordial da saída desses peregrinos da Europa, daí a necessidade de
evitar o mesmo erro que os ingleses.

Com a chegada de mais e mais colonos e a criação de novos territórios, os Es-


tados Unidos se expandem e então seu território se estabelece no que é chama-
do de “treze colônias”. É interessante notar que, diferentemente do que aconte-
ceu com outras regiões (como o Brasil, por exemplo), não há apenas uma grande
colônia sob domínio de uma nação europeia. O que existe é uma extensa região
que consiste em treze colônias distintas, cada uma com suas peculiaridades e
características – fator que em muito vai influenciar a história e a literatura dos
Estados Unidos até hoje.

Temática Cartografia.

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Literatura colonial e a América puritana

Mas nem só de colonos europeus e puritanos consistiam os Estados Unidos.


Essa parte da população é o que se costumou chamar de WASP, sigla que signi-
fica White-anglo-saxon-protestant (branco-anglo-saxão-protestante). Membros
desse grupo acabaram constituindo a parte mais rica e representativa do país,
deixando outras partes da sociedade à margem do progresso norte-americano.

Embora a chegada dos “Pais Peregrinos” tenha dado um impulso desenvol-


vimentista à América do Norte, existiam outros grupos também responsáveis
pela criação dos Estados Unidos – através de uma cultura, um estilo de vida e
uma visão de mundo bem distinta daquela apresentada pelos puritanos vindos
da Inglaterra. Talvez o mais importante desses grupos seja o dos índios norte-
-americanos, atualmente chamados de Native-Americans (Nativos-Americanos).
Como o próprio nome já indica, eles eram nativos da terra e já se encontravam
no território da América do Norte bem antes da chegada dos primeiros coloni-
zadores europeus.

O conhecimento que temos hoje da sociedade e da cultura do índio nativo


norte-americano passa inevitavelmente pelo olhar que o homem branco lançou
sobre ele assim que chegou à América. Portanto, é importante que a leitura de
textos que tratem do encontro entre colonizadores e indígenas sempre seja feita
com um olhar crítico, levando em consideração não só o período histórico, mas
também os interesses envolvidos.

Em The General History of Virginia, John Smith fala dos índios utilizando termos
como “bárbaros” e “selvagens”, enfatizando a natureza pagã e violenta dos nativos,
enquanto descreve a si mesmo sempre envolto em termos cristãos. Esse estilo
narrativo é ainda mais notório no episódio em que é salvo da morte por Pocahontas,
como se Smith fosse uma espécie de “novo salvador” posto em calvário.

Essa visão do indígena como selvagem por muito perdurou no imaginário nor-
te-americano. Dentre as várias razões para isso, está o fato de os colonos ingleses
não terem interesse em catequizar os nativos, como ocorreu no Brasil por exem-
plo. Os índios eram sempre mantidos à distância, e o contato com eles era feito
apenas no que se relacionava à troca ou compra de mercadorias. Quando se deu
a expansão para o oeste norte-americano, a relação entre nativos e colonizadores
alcançou seu ponto mais conflituoso, com o extermínio de milhares de indígenas.

Felizmente, boa parte da cultura indígena foi preservada, especialmente atra-


vés da ficção mantida inicialmente através da tradição oral (histórias passadas
de geração em geração), que posteriormente serviriam como base para o sur-
gimento da native-american literature (literatura nativa-americana). Várias das

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Literatura Norte-Americana

obras da literatura indígena norte-americana têm origem anônima, e misturam


mitos de criação de heróis com a própria história da sociedade nativa. Diferentes
tribos também possuem diferentes histórias de criação do mundo e do universo,
como a Gênese da tribo Blackfeet.

Outro grupo cuja importância é crescente nesse período inicial da coloniza-


ção dos Estados Unidos é o dos negros, cuja presença na América se fazia atra-
vés da escravidão. Eles vinham trazidos por navios ingleses que partiam para a
África, capturavam os escravos e os deixavam nas colônias americanas, para lá
buscar algodão, tabaco e outros produtos. A escravidão na América durou até
1861, mas até lá os negros viviam em condições degradantes de servidão, já que
não eram considerados capazes das mesmas atividades sociais e intelectuais
que os brancos e, portanto, não merecedores do termo cidadão.

Esses grupos, todavia, permanecem sempre à margem da sociedade branca


e protestante, que espalha por todas as treze colônias seu estilo de vida e seus
ideais de sociedade. Sociedade esta cuja mais importante característica é a pre-
sença da crença religiosa puritana em todas as esferas, da política ao lazer. É o
puritanismo que molda a vivência dos cidadãos dos Estados Unidos e serve de
impulso para os primeiros textos escritos em solo norte-americano.

A literatura colonial:
o puritanismo e o Great Awakening
O puritanismo é a força motriz da sociedade norte-americana. É através dos
ideais norte-americanos que os primeiros peregrinos constroem não só escolas,
igrejas e universidades: eles constroem também uma ideia da América. Os Esta-
dos Unidos são mais do que um novo lar para esses colonos – são uma região
onde eles finalmente poderão construir a “nova Canaã” bíblica, já que eles acre-
ditam ser as pessoas escolhidas por Deus para concretizar um reino de prosperi-
dade na terra seguindo fielmente às leis cristãs.

Na Europa, os puritanos muito sofreram com a perseguição religiosa, já que


como adeptos do protestantismo calvinista, renegavam a doutrina do catolicis-
mo e do anglicanismo, as duas religiões predominantes da Inglaterra. Vários pu-
ritanos chegaram a ser torturados e até mesmo enforcados por exercer a sua fé.

Mesmo dentro de sua própria religião, existiam diferenças nas formas com que
as pessoas deveriam seguir os ensinamentos da Bíblia. Isso se dava porque, diferen-

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Literatura colonial e a América puritana

temente do catolicismo (em que predomina uma interpretação dos textos bíblicos
e se deve respeitar a palavra do Papa), o puritanismo admite leituras pessoais e
individuais da Bíblia, fazendo com que formas de entendimento distintas surjam
de mesmos textos religiosos. Assim, dentro do movimento puritano surgem dife-
rentes segmentos como os amish e os quakers, que possuem uma outra visão de
como as lições das parábolas da Bíblia devem ser incorporadas no seu cotidiano.

Alguns preceitos religiosos estabelecidos por Calvino, entretanto, estavam


presentes na maior parte da sociedade puritana, dentre eles, a ideia de que o
pecado original manchou toda a existência humana, e por isso o homem era na-
turalmente corrupto e sujeito à maldade. Os puritanos também acreditavam que
o sacrifício de Jesus acabou por garantir o perdão de Deus, mas esse perdão não
é estendido a todos os homens – só alguns eleitos o ganhariam. Além disso, é
clara no puritanismo a ideia de que Deus escolhe, desde o princípio dos tempos,
aqueles que vão para o céu e aqueles que vão para o inferno.

É interessante comparar e contrastar os dogmas puritanos e católicos, espe-


cialmente ao considerarmos como a influência religiosa se fez tão presente no
período colonial das Américas. De forma geral, o catolicismo se volta mais para
o mundo após a morte, em que Deus julga-nos pelos atos que tivemos em vida.
Já a vida puritana se concentra nas provas terrenas da benção de Deus, através
do trabalho e da prosperidade.

O puritanismo também acredita que o bom cristão é aquele que vive bem
com os frutos do trabalho, produzindo, através de seu esforço e seus méritos, seus
meios de subsistência e conforto. Para o catolicismo, existe uma visão subjacente
de que o trabalho é punição, e de que a riqueza carrega em si um estigma
negativo, uma culpa.

Essas crenças calvinistas estiveram presentes em diversos estágios da coloni-


zação dos Estados Unidos. Os puritanos construíram seus vilarejos e depois suas
cidades acreditando que assim estariam realizando, através de seu trabalho, o
desejo de Deus de criar um novo paraíso, onde os homens viveriam seguindo as
leis bíblicas. Assim sendo, o próprio governo tinha o dever de fazer as pessoas
obedecerem à vontade divina. Existiam leis, por exemplo, que obrigavam as pes-
soas a irem à igreja, ou que puniam adúlteros.

Tal comunhão entre religião e governo foi crucial para que um episódio
como o dos julgamentos das bruxas no vilarejo de Salem fosse permitido. Um
dos mais vergonhosos momentos da história dos Estados Unidos, a série de
julgamentos e execuções de dezenas de colonos por bruxaria ocorridos em

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Literatura Norte-Americana

Salem, Massachusetts, hoje é visto como consequência dos excessos da presença


puritana na administração das colônias.

Por outro lado, esse sentido de autodeterminação e trabalho recompensado


ajudou a estabelecer ideais de independência e liberdade que os norte-america-
nos consideram seus principais legados para o mundo ocidental. É através da ex-
periência puritana, com sua promessa de felicidade e recomeço, que os Estados
Unidos se formam sob a égide (amparo) do american dream (sonho americano)
– em linhas gerais, a ideia de que qualquer pessoa, não importa o seu passado
ou condição social, pode ser bem-sucedida.

É através da literatura que os homens e mulheres recém-chegados a essa


nova terra de oportunidades, mas também de perigos, iriam definir a América.
As colônias seriam o local onde não só a fé puritana seria testada, mas também
a língua inglesa e suas narrativas. Com seus textos, os primeiros escritores dos
Estados Unidos procuravam compreender e descobrir a natureza e os propósitos
desse novo mundo que se apresentava a eles.

Uma das figuras mais proeminentes deste período inicial foi William Bradford
(1590-1657). Eleito governador da colônia de Massachusetts por várias vezes,
Bradford também tem uma enorme importância histórica por ser um dos ideali-
zadores do chamado Mayflower Compact, o primeiro documento oficial compos-
to pelos peregrinos da colônia de Plymouth.

A mais importante obra de William Bradford, contudo, foi Of Plymouth Plan-


tation, um diário pessoal escrito entre 1620 e 1647, narrando a permanência dos
colonos na região de Massachusetts. O diário de Bradford conta a história da
partida do Mayflower, a difícil viagem, sua chegada na América e o posterior
povoamento e desenvolvimento da colônia.

Of Plymouth Plantation é uma obra extremamente rica por dois motivos fun-
damentais. Primeiramente, porque é o mais vívido e detalhado documento des-
crevendo o cotidiano, os problemas e o progresso em uma das mais importantes
das treze colônias no século XVII; a outra razão para a natureza complexa dos
escritos de Bradford é a mescla desse aspecto factual com os comentários e as
interpretações do autor, o que leva a um entendimento mais completo do perío-
do. Dessa forma, enquanto do ponto vista histórico, Of Plymouth Plantation pode
ser considerada como anais do período colonial; do ponto de vista literário os
diários de William Bradford são um material que atestam o estilo e a linguagem
de formação da literatura norte-americana.

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Literatura colonial e a América puritana

O subtexto dos escritos dos diários indica uma forte influência dos ideais do
protestantismo calvinista, especialmente no que concernem aos objetivos puri-
tanos para a América. A narrativa de Bradford em muito lembra as grandes nar-
rativas bíblicas, com a busca da Terra Prometida pelo povo eleito, sendo guiado
pela mão divina em sua longa jornada.

O estilo e a linguagem dos escritos de Of Plymouth Plantation é aquele ca-


racterístico de todas as expressões artísticas realizadas por puritanos: simples e
livre de adornos. Bradford afirma que seus relatos vão atestar apenas a “simples
verdade”. Essa crença na unicidade dos fatos e no que é naturalmente verdadeiro
é um reflexo da presença dos ensinamentos da Bíblia no raciocínio do puritanis-
mo, em que é bem clara a distinção do que é certo e errado.

Como o próprio William Bradford pôde ver posteriormente, contudo, a verda-


de não se mostrou de forma tão simples assim. À medida que os colonos se es-
tabelecem de forma mais bem sucedida na América e novas gerações sucedem
os “Pais Peregrinos”, a criação de uma estrutura comercial e lucrativa, o acúmulo
de terras e a busca pelo sucesso econômico são para o autor um distanciamento
do sonho de uma comunidade perfeita sob as leis de Deus.

Assim, ao final de Of Plymouth Plantation, a escrita de Bradford adquire um


tom de lamento e decepção, já que mais e mais as ações das novas gerações se
afastam dos ideais dos primeiros puritanos que desembarcaram do Mayflower.
Sobre essa nova perspectiva da vivência puritana nas treze colônias, o escritor
Malcolm Bradbury afirma:
The puritans persist in writing for themselves a central role in the sacred drama God had
designed for man to enact on the American stage, the stage of true history. In that recurrent
conflict between the ideal and the real, the utopian and the actual, the intentional and the
accidental, the mythic and the diurnal, can be read […] an essential legacy of the puritan
imagination to the American mind. (BRADBURY; ROLAND, 1992, p. 13-14)

A Nova Inglaterra (região nordeste da América do Norte) vinha então crescen-


do e, neste processo, procurava conciliar os preceitos bíblicos com o surgimento
de novas formas de relacionamento em sociedade. Se William Bradford tratou
dessa tensão através de entradas em seu diário, outros autores viram a situação
como uma grande oportunidade para expressar sua subjetividade e imaginação
poética.

A mais bem sucedida nesta tarefa foi Anne Bradstreet (1612-1672), reconhecida
até hoje como um dos maiores nomes da poesia, não só norte-americana, mas
de toda a língua inglesa. Nascida na Inglaterra, Bradstreet chega acompanhada

21
Literatura Norte-Americana

de seu marido ao novo continente em 1630. Embora seu pai e seu marido tives-
sem fortes ligações políticas na América (ambos foram governadores da Baía de
Massachusetts), esse não é um aspecto particularmente importante nos textos
de Anne Bradstreet. Grande parte da riqueza de seus trabalhos poéticos encon-
tra-se na forma que ela escreveu sobre a atmosfera doméstica da vida puritana.
Com extrema sensibilidade ao tratar das adversidades presentes no cotidiano
do novo continente e com um tom metafísico que a permite ultrapassar a mera
descrição de eventos, Bradstreet desperta interesse não só pela importância his-
tórica, mas também pela qualidade de sua escrita.
Os poemas de Anne Bradstreet atestam de forma clara a complexidade da
realidade puritana. Sua escrita revela um pensamento livre, dotado de conside-
rável conhecimento poético (era admiradora de grandes poetas ingleses como
Philip Sidney e Edmund Spenser), mas que contrasta com a rigidez das regras
puritanas, especialmente quando se considera o papel de submissão a que as
mulheres eram relegadas. As regras rigorosas do puritanismo, pelo contrário, não
ofuscam o talento de Bradstreet. Seus poemas sobre o cotidiano e acontecimen-
tos marcantes do período são sempre tocantes porque, através deles, a autora
reforça sua fé nos ideais divinos em busca de consolo, proteção ou coragem.
Os trabalhos mais reconhecidos de Bradstreet, no entanto, são aqueles em que
a autora celebra o matrimônio como instituição, reafirmando o profundo amor
que tinha por seu marido, Simon. Como o marido costumava ficar longe em via-
gens de trabalho, a autora dedicava-lhe grande parte de seus poemas para aplacar
a dor da distância. Um dos mais famosos, To My Dear and Loving Husband, aborda o
relacionamento do casal ligado a elementos da natureza, como se o próprio amor
de marido e mulher fosse necessário a um equilíbrio natural das coisas:
If ever two were one, then surely we.
If ever man were loved by wife, then thee;
If ever wife was happy in a man,
Compare with me, ye women, if you can.
I prize thy love more than whole mines of gold
Or all the riches that East doth hold.
My love is such that rivers cannot quench,
Nor ought but love from thee, give recompense.
Thy love is such I can no way repay,
The heavens reward thee manifold, I pray.
Then while we live, in love let’s so persevere
That when we live no more, we may live ever.
Anne Bradstreet.

22
Literatura colonial e a América puritana

Curiosamente, não foi por vontade própria que Anne Bradstreet se tornou a
primeira poetisa do novo continente a ter seus trabalhos publicados. Na verda-
de, foi seu cunhado que levou os manuscritos de seus poemas para a Inglaterra e
lá os teve publicados sob o título de The Tenth Muse Lately Sprung Up in America,
em 1650. Seus trabalhos desde então permaneceram cruciais para um maior en-
tendimento do período colonial e para o despertar de uma sensibilidade metafí-
sica que tanto influenciaria outros poetas americanos nos séculos seguintes.

A mais popular produção literária do período puritano, no entanto, não foi


nem o relato em forma de diário e nem a poesia – foi o sermão. Considerando a
presença das crenças e do estilo de vida puritano em todas as esferas da socie-
dade, nada mais natural que a forma de expressão máxima da América colonial
fosse a produção de textos religiosos para serem lidos nas pregações.

O centro da vida puritana era a igreja, e era lá que um dos atos mais essenciais
para o homem cristão acontecia: ouvir os sermões. Dada a natureza do puritanis-
mo, toda a atenção da cerimônia religiosa se voltava não para um altar, mas para
o púlpito; a força da fé se revelava não por imagens, mas pela palavra.

O sermão atinge o ápice de sua popularidade durante o movimento chamado


de Great Awakening (Grande Despertar). Fenômeno sociorreligioso ocorrido no
século XVIII, o Great Awakening foi uma reação por parte de pastores e homens
religiosos contra o formalismo a que o puritanismo estava sendo submetido,
com seus principais ideais sendo esquecidos ou adquirindo pouca importância.
Assim, pastores itinerantes iam de cidade em cidade pregando, de forma caris-
mática, sermões que em muito exaltavam os fiéis e renovavam sua fé. Apesar de
vários historiadores afirmarem que o Great Awakening não foi um movimento
organizado, não há como negar que a necessidade por parte de uma nova gera-
ção de pregadores foi essencial para revitalizar o puritanismo.

Uma das mais importantes figuras não só do Great Awakening mas de toda
a América Colonial foi Jonathan Edwards (1703-1758). Pastor, intelectual e teólo-
go, ele é considerado um dos símbolos do puritanismo na América. Uma análi-
se artificial pode classificar Edwards como um estereótipo do rígido pregador
puritano que, do alto de seu púlpito, incutia o medo e a culpa nos fiéis através
de exagerados sermões. Um olhar mais atencioso, todavia, indica que os textos
de Edwards (apesar de ratificarem a doutrina puritana do homem pecador e de
um Deus punitivo) também partilham muito da herança de John Locke e Isaac
Newton, dois nomes cruciais do racionalismo inglês que, entre outros pressu-
postos, acreditavam que o homem poderia trilhar o caminho da bondade.

23
Literatura Norte-Americana

É importante lembrar que os sermões são, essencialmente, textos para serem


lidos em público. Jonathan Edwards talvez tenha sido o pastor que melhor enten-
deu esse propósito da pregação, já que seus textos imediatamente estabelecem
com quem os ouve uma ligação emocional pouco comum em outros sermões
do período. Esses escritos de Edwards seguem, em sua maior parte, o formato
clássico do sermão puritano: primeiramente há o texto, (i.e.)isto é, a passagem
da Bíblia que vai servir de tópico central do trabalho escrito; a seguir, aparece
a doutrina, i.e. a lição que deve ser apreendida do texto; a terceira parte é a das
razões, i.e. provas ou fatos que confirmam a doutrina; finalmente, aparecem os
usos, i.e. a aplicação da doutrina por parte dos fiéis.

Utilizando essa estrutura clássica, o autor enfatiza o caráter irado de Deus e


o pecado inerente a todos os homens, que já nascem culpados. Essa atitude cal-
vinista conservadora, no entanto, é aliada ao pensamento mais racionalista de
Locke. Assim, Edwards também acredita, em seus sermões, que o homem pode
se aperfeiçoar e melhorar seus traços de caráter.

O sermão mais marcante de Jonathan Edwards é Sinners in the Hands of an


Angry God. Nesse texto, dirigido a uma congregação em Massachusetts, Edwards
se utiliza de todo um arsenal imagístico para traduzir para os fiéis o poder e a
ira de Deus que, por um mero capricho, pode lançar todos os pecadores às
fornalhas do inferno. A presença dos homens no plano terreno, afirma Edwards,
se dá apenas pelo prazer de Deus, porque nada o impede de fazer com que os
homens impuros tenham o chão aberto sobre eles para que caiam nas chamas
eternas infernais.

Sinners in the Hands of an Angry God ilustra um dos pontos centrais do purita-
nismo (levado ao extremo pelos pastores do Great Awakening): o poder de Deus
está sempre em eterno contraste com a devassidão e a maldade humana. Essa
tensão é consequência do pecado original, mas também é a grande causadora
da culpa que atormenta o homem. Por outro lado, é essa mesma culpa que leva
o homem a buscar a redenção, o trabalho e o recomeço.

Assim os Estados Unidos, em seu começo, constroem toda uma organização


social em que a religião é ao mesmo tempo uma força motriz, mas também um
agente regulador de seu desenvolvimento. As lições da era puritana permane-
cem até hoje no imaginário norte-americano, promovendo um material vastíssi-
mo para que a literatura do país se tornasse uma das mais ricas e complexas do
mundo.

24
Literatura colonial e a América puritana

Texto complementar

Sinners in the hands of an angry God


(EDWARDS, 1989)

The wrath of God is like great waters that are dammed for the present;
they increase more and more, and rise higher and higher, till an outlet is
given; and the longer the stream is stopped, the more rapid and mighty is
its course, when once it is let loose. It is true, that judgment against your
evil works has not been executed hitherto; the floods of God’s vengeance
have been withheld; but your guilt in the mean time is constantly increasing,
and you are every day treasuring up more wrath; the waters are constantly
rising, and waxing more and more mighty; and there is nothing but the mere
pleasure of God, that holds the waters back, that are unwilling to be stopped,
and press hard to go forward. If God should only withdraw his hand from
the flood-gate, it would immediately fly open, and the fiery floods of the
fierceness and wrath of God, would rush forth with inconceivable fury, and
would come upon you with omnipotent power; and if your strength were
ten thousand times greater than it is, yea, ten thousand times greater than
the strength of the stoutest, sturdiest devil in hell, it would be nothing to
withstand or endure it.

The bow of God’s wrath is bent, and the arrow made ready on the string,
and justice bends the arrow at your heart, and strains the bow, and it is
nothing but the mere pleasure of God, and that of an angry God, without any
promise or obligation at all, that keeps the arrow one moment from being
made drunk with your blood. Thus all you that never passed under a great
change of heart, by the mighty power of the Spirit of God upon your souls;
all you that were never born again, and made new creatures, and raised from
being dead in sin, to a state of new, and before altogether unexperienced
light and life, are in the hands of an angry God. However you may have
reformed your life in many things, and may have had religious affections, and
may keep up a form of religion in your families and closets, and in the house
of God, it is nothing but his mere pleasure that keeps you from being this

25
Literatura Norte-Americana

moment swallowed up in everlasting destruction. However unconvinced


you may now be of the truth of what you hear, by and by you will be fully
convinced of it. Those that are gone from being in the like circumstances
with you, see that it was so with them; for destruction came suddenly upon
most of them; when they expected nothing of it, and while they were saying,
Peace and safety: now they see, that those things on which they depended
for peace and safety, were nothing but thin air and empty shadows.

Dicas de estudo
O site da Biblioteca do Congresso Norte-Americano tem análises bem com-
pletas e interessantes sobre o período colonial dos Estados Unidos, incluindo
textos de fundação do país e biografias dos Founding Fathers. Disponível em:
<http://www.americaslibrary.gov/cgi-bin/page.cgi/jb/colonial>

HYTNER, Nicholas. As Bruxas de Salem. 1992. Baseado na peça do dramaturgo


Arthur Miller, este filme concentra-se no julgamento e execução de vários colo-
nos na colônia de Salem no fim do século XVII, acusados de bruxaria. Exemplo
mais famoso dos excessos do puritanismo, esse triste episódio da história dos
Estados Unidos é sempre lembrado quando o país encontra-se envolto em uma
atmosfera de perseguição e intolerância.

Atividades
1. Como os escritos de John Smith serviram para construir uma visão particular
da América no imaginário europeu?

26
Literatura colonial e a América puritana

2. Qual a importância do puritanismo para o desenvolvimento da literatura dos


EUA?

3. Como a passagem do sermão Sinners in the Hands of an Angry God (texto


complementar) ilustra a relação de Deus com os pecadores de acordo com o
puritanismo?

27
O período revolucionário

Se no século XVII a América começa de forma gradual a desenvolver


uma literatura baseada, entre outros aspectos, no choque civilizatório
entre o Velho e o Novo Mundo, no século XVIII essa literatura vai ter como
matéria-prima uma nova forma de pensamento que levará a grandes mu-
danças políticas – especialmente à independência dos Estados Unidos.
Este foi um período de muita turbulência na Europa, com diversas guerras
e atritos políticos que levaram a diversas mudanças no governo inglês, o
que acabou afetando diretamente a relação que a Inglaterra tinha com as
colônias.

Eventualmente, foi o conflito de interesses entre o governo inglês e os


políticos e pensadores da América (altamente influenciados por uma pers-
pectiva iluminista) que levou ao desejo das colônias declararem indepen-
dência. Foi um processo muito difícil e trabalhoso – não só pelo inimigo
externo (a Inglaterra), mas também pela desconfiança dentro do próprio
território com relação à criação de um país único formado por treze colô-
nias diferentes.

A literatura dos Estados Unidos foi mais que influenciada por essa agi-
tação política – ela exerceu um papel fundamental na divulgação e con-
solidação das ideias revolucionárias que davam legitimidade à indepen-
dência. Foi com essa literatura, altamente baseada em conceitos racionais,
mas também tendo a rebelião contra a injustiça como uma questão cen-
tral, que uma nação finalmente se constituiu.

Os conflitos com a Inglaterra


e a luta pela independência
Em meados do século XVIII, as colônias da América se encontravam
numa situação bem diferente daquela que os primeiros peregrinos viram
quando desembarcaram do Mayflower em 1620. Os primeiros povoados
já tinham se tornado grandes cidades, não só em termos de extensão, mas
Literatura Norte-Americana

também em número de pessoas: na década de 1760, por exemplo, haviam 1,5


milhões de pessoas nas treze colônias – número seis vezes maior que em 1700.

Politicamente, as colônias já se encontravam em um confortável nível de


organização. Depois de décadas de experiência de governo, os americanos já
haviam se acostumado a uma estrutura colonial na qual eles possuíam uma
certa autonomia política. Em termos econômicos, a América também se encon-
trava em um estágio bem desenvolvido. As colônias do norte estabeleceram, por
um lado, um forte mercado interno (com a presença de manufaturas) e por outro
lado, exportavam peles e construíam navios para serem vendidos na Europa. As
colônias do sul também tinham um importante papel econômico, pois delas é
que saíam o principal produto de exportação das colônias: o tabaco.

Dessa forma, as treze colônias desfrutavam de um grau de liberdade e auto-


nomia pouco visto em outras regiões das Américas. Essa prosperidade e capa-
cidade de se autogovernar serviu para criar entre os colonos a sensação de que
todos faziam parte de um grande projeto – o projeto americano. Eles estavam
concretizando, de certa forma, o ideal puritano de construir uma nova socieda-
de, onde um “povo eleito” viveria em paz e igualdade.

Por mais que as treze colônias tivessem diferenças entre si (e em especial se


compararmos as da região norte com as da região sul), começa a se formar um
senso de nacionalidade até então inédito entre os colonos. As razões internas
para esse crescente nacionalismo vão se encontrar então com um motivo exter-
no para unir ainda mais a população: um inimigo em comum, a Inglaterra.

A Inglaterra, na metade do século XVIII, vinha de um grande conflito em terras


norte-americanas: foi a chamada Guerra dos Sete Anos (1756 – 1763). Neste con-
fronto, a França perde seu domínio sobre extensas faixas de terra que possuía na
América do Norte – entre elas, toda a região em torno do rio Mississipi e o atual
território do Canadá.

O fim da Guerra dos Sete Anos também serviu, de certa forma, para marcar
o fim do velho sistema de colonização inglês. A ideia de dotar as colônias de
uma considerável autonomia e de haver pouca influência da Coroa britânica em
assuntos que tivessem relação exclusivamente à população da América é aban-
donada. Passa a haver, por parte da Inglaterra, um maior controle, em diversos
aspectos, da vida colonial norte-americana.

Diversos fatores levaram a essa perda de liberdade política e econômica das


colônias inglesas. Primeiramente, o domínio territorial britânico na América au-

30
O período revolucionário

mentou consideravelmente. O que antes era uma pequena faixa de terra beiran-
do o Atlântico (as treze colônias), tinha se tornado toda a atual região do Canadá
e a região em torno do rio Mississipi. Para manter o controle sobre essa extensa
área, a estratégia de colonização antiga, utilizando empresas privadas para levar
colonos, não seria bem sucedida. Além disso, os ingleses teriam de lidar dessa
vez não com separatistas religiosos, mas com toda uma nova cultura indígena
presente nas novas regiões, assim como a população católica que havia sido co-
lonizada pelos franceses mais ao norte.

As consequências da Guerra dos Sete Anos, em especial, também afetaram


de forma direta a tranquilidade entre a Inglaterra e as colônias. Com o fim da
guerra, várias tropas britânicas permaneceram em território norte-americano,
o que aumentava a presença inglesa e servia para intimidar os colonos. Tributos
maiores também foram impostos para manter os soldados na América.

A interferência britânica em assuntos internos das colônias, até então pouco


vista, passa a ser a regra. Um dos principais conflitos nesse aspecto foi o desejo
de expansão por parte dos colonos para as novas regiões conquistadas, em espe-
cial aquelas que se estendiam até o rio Mississipi. Inicialmente, vários confrontos
surgiram entre indígenas e colonos, até que em 1763 o rei George III da Inglater-
ra, por decreto, afirma que os povos nativos têm soberania sobre as novas áreas
anexadas a oeste. Essa decisão do rei procura não só evitar novas guerras entre
índios e colonos (o que dificultaria a consolidação do império britânico), mas
também garantir o controle administrativo dessa imensa região ainda pouco
explorada. Assim, os colonos norte-americanos são proibidos de migrar para o
oeste e têm sua autonomia altamente ameaçada.

Mudanças no governo e na economia britânica também acabaram por afetar


a forma com que as colônias eram administradas. Com a ascensão da burguesia
a posições de poder, o comércio e a indústria inglesas começam um período de
grande desenvolvimento, com a construção de fábricas e uma crescente neces-
sidade de produção. Apesar de possuírem capital e mão de obra, faltava aos in-
gleses a matéria-prima, que vai ser buscada exatamente na América. Acentua-se
então o caráter exploratório por parte da Inglaterra.

Duas leis marcam de forma definitiva essa nova abordagem da colonização


inglesa. A primeira é a Lei da Moeda, de 1764, que impede que títulos de crédito
sejam emitidos nas colônias. Esses títulos eram usados como moeda corrente e
já estavam em falta. Com a promulgação da lei, a economia colonial é altamen-
te prejudicada. A segunda lei criada pelos ingleses é a Lei do Selo, de 1765. De

31
Literatura Norte-Americana

acordo com essa lei, todos os jornais, panfletos, contratos, licenças e outros do-
cumentos públicos passariam a receber um selo de cobrança e, portanto, seriam
taxados. É a partir dessa lei que ocorre a primeira organização das colônias para
resistir e protestar contra os abusos da Inglaterra. Protestos e passeatas toma-
ram as ruas e a elite colonial (que viu seus negócios serem taxados) ficou contra
os interesses do império britânico. Um massivo boicote aos produtos ingleses foi
realizado, dando imenso prejuízo à Coroa. A Lei do Selo é então revogada e as
colônias mostram a sua força.

No entanto, nenhum evento foi mais fundamental para provar que as colô-
nias estavam firmes em continuar garantindo seus direitos de escolha e liber-
dade que o chamado Boston Tea Party (Festa do Chá de Boston). O chá era um
produto muito consumido nas colônias, não só devido à tradição inglesa, mas
também pelo preço acessível. Todavia, quando a Inglaterra decide dar o mono-
pólio da venda do chá exportado para a Companhia das Índias Orientais (que se
encontrava à beira da falência), os preços inevitavelmente sobem.

Como reação a mais esse abuso praticado pela Inglaterra, um grupo de


homens disfarçados de indígenas sobe a bordo de navios ingleses ancorados
no porto de Boston e despeja todo o carregamento de chá no mar. Esse episó-
dio, conhecido como Boston Tea Party, fez com que a Coroa britânica tomasse
uma série de medidas para punir essa rebeldia por parte dos colonos. Essas me-
didas, que ficaram conhecidas como Coercive Acts (Leis Coercitivas), incluíam o
fechamento temporário do porto de Boston e a proibição de reuniões de assem-
bleias. A situação entre a Inglaterra e as colônias norte-americanas chega então
a um ponto crítico, e a ideia da independência dos Estados Unidos passa a ser
articulada.

Representantes das colônias se reúnem no Congresso Continental da Fila-


délfia para redigir um documento contra as medidas restritivas inglesas. Em res-
posta, a Inglaterra aumentou o número de tropas na América. Assim, em maio
de 1775, é realizado o Segundo Congresso Continental da Filadélfia, em que é
feita uma declaração de guerra. Três meses depois, o rei declara que as colônias
norte-americanas encontram-se em estado de rebelião.

É importante lembrar, porém, que ainda havia certa resistência por parte de
vários setores norte-americanos quando se tratava da questão da independên-
cia. As elites sulistas não estavam totalmente seguras de que a separação com a
Inglaterra seria benéfica, já que o grande mercado consumidor de seus produ-
tos poderia ser perdido. Além disso, havia o receio de que o espírito de justiça

32
O período revolucionário

crescente poderia fazer com que os menos favorecidos (especialmente escravos)


começassem a lutar também por direitos iguais.

Em 4 de julho de 1776, é aprovada a Declaração de Independência dos Esta-


dos Unidos. Os conflitos com a Inglaterra se intensificavam, e os Estados Unidos
tinham formado o seu próprio exército – o chamado Exército Continental, sob
liderança de George Washington, que seria posteriormente o primeiro presiden-
te da nação. A vitória norte-americana nas batalhas não foi fácil. Contudo, três
fatores foram cruciais para a vitória dos agora ex-colonos: maior conhecimento
do território, o apoio das tropas sulistas (que os ingleses acreditavam que se
manteriam leais) e a ajuda militar da França, Espanha e Holanda.

Dessa forma, os Estados Unidos da América se tornam finalmente uma nação


independente. As pequenas treze ex-colônias inglesas têm agora o direito de
exercer a sua liberdade política, assim como a população adquire o direito de se
expandir pelo território da América do Norte. Mais do que a criação de um país, a
independência dos Estados Unidos garantiu o surgimento da primeira revolução
moderna, que serviria de base para várias outras nações do ocidente.

Os “Pais Fundadores”
O processo de independência dos Estados Unidos garantiu aos norte-ameri-
canos mais do que a libertação do controle inglês – ele serviu para unir todos os
estados sob um objetivo comum e criar entre eles um vínculo crucial para que
uma verdadeira nação, com uma identidade única, fosse estabelecida. Mais do
que ter um grande inimigo em comum (a Inglaterra) e ideais que os associas-
sem (liberdade, direitos iguais), era necessário que os Estados Unidos tivessem
figuras públicas representativas que o público não só reconhecesse como indis-
cutivelmente icônicas, mas também as usassem como base para a criação de
um novo homem norte-americano. Esses homens públicos foram fundamentais
para a consolidação dos diferentes estados sob apenas uma nação.

Símbolos do espírito republicano norte-americano, historicamente eles são co-


nhecidos como Founding Fathers (Pais Fundadores). Essa ideia de “pais da nação”
não é inédita na história norte-americana. Os primeiros habitantes das colônias re-
ceberam o nome de“Pais Peregrinos”. É interessante notar a necessidade de marcar
o nascimento de uma nova fase da nação através dessas pessoas que, seja por sua
coragem, determinação, ou senso de justiça, se destacam de todas as outras para
iniciar um período de rompimento histórico com um passado de tirania.

33
Literatura Norte-Americana

No entanto, diferentemente dos peregrinos de Massachusetts que chegaram


a bordo do Mayflower, esses Pais Fundadores vão servir como emblemas de um
país recém-criado em busca de uma identidade própria. Eles serão consagrados
pelo povo norte-americano como os grandes heróis da nação e servirão como
exemplo de retidão e perseverança não só para políticos, mas para qualquer ci-
dadão dos Estados Unidos.

Os Pais Fundadores são reconhecidos como os homens que assinaram a De-


claração de Independência em 1776, participaram como líderes da guerra re-
volucionária contra a Inglaterra, ou foram responsáveis pela criação da Consti-
tuição dos Estados Unidos, em 1787. Eles foram militares, proprietários de terra,
mercadores, cientistas – e não coincidentemente, alguns deles se tornaram os
primeiros presidentes daquele jovem país. Dentre os Pais Fundadores (cujo
número quase chega a uma centena), três merecem destaque especial por sua
contribuição militar, política e filosófica para a realização de um ideal norte-ame-
ricano: George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.

George Washington (1732-1799) foi uma das mais importantes figuras do perí-
odo revolucionário norte-americano. Militar exemplar, participou na Guerra dos
Sete Anos lutando contra os franceses e tornou-se símbolo máximo da vitória
norte-americana sobre os ingleses durante a guerra pela independência. Foi o
presidente da convenção que criou a constituição norte-americana e também
tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos. Domínio público.

George Washington.

34
O período revolucionário

Washington é considerado um modelo para todos os presidentes norte-ame-


ricanos pois, num período crucial do país, conseguiu um acordo de paz com a
Inglaterra, reuniu todos os estados sob um único governo republicano e criou
um banco nacional. Mesmo que representante da elite colonial (era latifundiá-
rio e proprietário de escravos), até hoje George Washington continua sendo um
ícone da formação dos Estados Unidos.

Contudo, se Washington foi responsável por organizar o governo norte-ame-


ricano, Benjamin Franklin (1706-1790) criou grande parte do arcabouço filosófico
e intelectual por trás dele. Talvez o nome mais significativo do século XVIII nos
Estados Unidos, Franklin permanece até hoje como um ícone da política, da lite-
ratura e do pensamento norte-americano, não só pelo papel que desempenhou
no processo de independência, mas também por possuir ideias novas que vão
romper com a influência puritana e conceber ideais que permanecem no imagi-
nário ocidental até hoje.

Jornalista, cientista, diplomata e escritor, Benjamin Franklin nasceu numa fa-


mília pobre de Boston para tornar-se uma das grandes mentes da história dos
Estados Unidos. Começou a trabalhar escrevendo ensaios e gradualmente se
tornou o mais bem-sucedido editor do século XVIII na América do Norte. Ele
possuía seu próprio jornal (o Pennsylvania Gazette), e eventualmente publicava
nele seus artigos e sátiras.

Domínio público.

No entanto, uma das obras mais famosas de Franklin é o Poor Richard’s Alma-
nac (Almanaque do Pobre Ricardo). O almanaque era provavelmente o tipo de
publicação mais popular nos Estados Unidos no século XVIII. Espécie de revista
que incluía diferentes tipos de informação (desde a previsão do tempo até piadas
e receitas culinárias), o almanaque foi a forma de expressão que Franklin utilizou
para articular seu ponto de vista de maneira bem-humorada, porém certeira.

35
Literatura Norte-Americana

O autor começou a publicar o Poor Richard’s Almanac em 1732 sob o pseudô-


nimo de Richard Saunders e até o fim de sua publicação em 1758, ele foi o alma-
naque mais lido do período colonial. Para cada edição do almanaque, Franklin
criava provérbios e frases de efeito para preencher os espaços da publicação. Em
1758 o autor coleta todos os ditados publicados nos 25 anos do Poor Richard’s
Almanac e os reúne no ensaio intitulado The Way to Wealth (O Caminho para a
Fortuna).

Nesse ensaio, o personagem Father Abraham (Pai Abraão) se aproxima de


um grupo de fregueses à porta de uma venda, esperando o momento de aber-
tura do local. A partir daí, Father Abraham começa a disparar suas máximas
sobre dinheiro, sucesso, prosperidade, trabalho e lazer. Pode-se dizer que Father
Abraham é um alter ego de Benjamin Franklin, pois os conselhos proferidos pelo
personagem são um reflexo direto do pensamento do autor.

Franklin é uma “personificação do ideal prático americano” (NABUCO, 2000,


p. 32) e sua visão de mundo serviu para criar uma das mais importantes contri-
buições do pensamento dos Estados Unidos para o ocidente: a ideia do self-made
man, isto é, o homem que triunfa através do seu próprio esforço. Por isso os pro-
vérbios presentes em The Way to Wealth se estabelecem sobre dois pilares funda-
mentais: a frugalidade (ou seja, ser prudente e econômico) e o trabalho duro.

Várias das máximas criadas por Franklin permanecem famosas até hoje no
mundo todo, o que indica como essa tradição do pensamento norte-americano
se tornou universal. Frases como “time is money” (tempo é dinheiro) ou “have you
somewhat to do tomorrow, do it today” (o que tiver para fazer amanhã, faça hoje),
entre outras, servem como exemplos da visão de mundo de Franklin, propa-
gando uma perspectiva de sucesso tipicamente fabricada nos Estados Unidos.
Ainda que essas ideias de Benjamin Franklin também sejam muitas vezes alvo
de críticas (especialmente no que concerne à obsessão dos americanos pelo di-
nheiro e bens materiais), é inegável que os provérbios de seu almanaque servem
como símbolos da estrutura capitalista e foram muito significativos no desenvol-
vimento de uma nova ideia de nação que estava surgindo.

Franklin também se destacou como cientista e inventor, pois sua visão huma-
nista ultrapassava a mera discussão de ideias – sua preocupação com o mundo
e com as pessoas que nele habitavam o impeliam a tomar soluções práticas na
resolução de problemas. Assim, Franklin inventa o para-raios e as lentes bifocais;
idealiza uma nova teoria de eletricidade, provando que os raios são de natureza
elétrica; funda a primeira biblioteca pública e o primeiro corpo de bombeiros da

36
O período revolucionário

Pennsylvania; concebeu inovadores mapas meteorológicos capazes de prever


tornados e tormentas.

Além disso, Benjamin Franklin foi um dos artífices da independência e pode-


-se dizer que sem sua presença ativa e sua perspicácia o processo revolucionário
teria sido ainda mais difícil. Até 1775 Franklin representou os interesses das co-
lônias na Inglaterra, chegando a ser visto como um dos principais propagadores
da rebelião na América. Posteriormente, foi enviado à França com o objetivo de
conseguir apoio para a iminente revolução. Mais do que ter auxiliado na realiza-
ção da Declaração de Independência, Franklin também é o único dos Pais Fun-
dadores a assinar os quatro documentos que propiciaram a criação dos Estados
Unidos: além da Declaração de Independência (1776), o Tratado de Aliança com
a França (1778), o Tratado de Paris (1782) que dava fim à guerra com a Inglaterra,
e a Constituição Norte-Americana (1787).

Com uma vida tão rica, o autor ainda deu aos Estados Unidos o que alguns
críticos consideram o primeiro grande livro norte-americano: a Autobiografia de
Benjamin Franklin. Esta obra, publicada postumamente, é o trabalho mais conhe-
cido de Franklin e uma das mais lidas autobiografias do mundo. Na verdade, o
livro praticamente estabelece a autobiografia como gênero literário, dando-lhe
um estilo e formato próprios.

Na Autobiografia, a escrita de Franklin é simples e direta, narrando desde os


antecedentes puritanos de sua família até o papel que desempenhou na inde-
pendência norte-americana. O livro tornou-se um exemplo da realização do
American Dream (Sonho Americano), tendo Franklin como seu maior exemplo
– de filho de pais pobres passando pelo sucesso no mercado editorial até ser
um dos responsáveis pela criação da nação. A Autobiografia de Benjamin Franklin
pode ser lida como uma obra que serve de exemplo de superação para os jovens
norte-americanos, mas seu significado é ainda mais amplo: ela constitui o pró-
prio processo de desenvolvimento dos Estados Unidos.

Os textos revolucionários
Thomas Jefferson (1743-1826), juntamente com George Washington e Benjamin
Franklin, forma o trio de notáveis entre os “Pais Fundadores” responsáveis
pela criação e consolidação dos Estados Unidos assim que o país se torna
independente. Jefferson, porém, destaca-se por pensar toda a estratégia social e
intelectual que serão os pilares dessa nova nação. A visão nacionalista de Jefferson

37
Literatura Norte-Americana

– humanista, republicana, iluminista – vai estar presente em suas cartas, artigos,


e especialmente no seu principal texto, o mais importante documento do século
XVIII: a Declaração de Independência dos Estados Unidos.

Domínio público.
Thomas Jefferson.

Diferentemente de Benjamin Franklin, Jefferson vinha de uma família proe-


minente da Virgínia. Depois de entrar na universidade, começa a ler avidamen-
te e a colecionar livros com os quais monta uma imensa biblioteca (que pos-
teriormente dariam origem à Biblioteca do Congresso Norte-Americano). Suas
leituras são variadas, mas o jovem Thomas Jefferson desenvolveu um interesse
particular por autores associados ao movimento iluminista europeu, o que de
certa forma moldaria futuramente a forma através da qual os Estados Unidos
seriam formados.

O Iluminismo foi um período do pensamento ocidental em que, de forma


geral, toda a experiência humana foi dominada pela presença da razão. Foi a
época em que os grandes pensadores voltaram-se contra os preceitos religiosos
e das formas de governo tradicionais para tentar explicar o mundo de uma forma
científica. Os mistérios e milagres da Igreja dão lugar às explicações racionais de
Newton e Descartes; as organizações sociais e políticas estabelecidas há séculos
são substituídas por uma nova estrutura governamental, em que os princípios
básicos são a liberdade e os direitos individuais.

Também conhecido como Idade da Razão, o Iluminismo prima pela busca da


ordem e da estabilidade através do empirismo – a ideia de que o conhecimento
surge da experiência. Assim, o que antes era tido como inexplicável ou obscuro
passa a ser investigado, pois acredita-se que o mundo pode ser explicado através de
38
O período revolucionário

evidências e experiências, especialmente através da observação e método científi-


co. É sob esse paradigma que o pensamento revolucionário americano se forma.

O mais influente de todos os filósofos iluministas foi John Locke (1632-


1704). Parece uma grande ironia que foi exatamente um pensador inglês o
responsável por dar às colônias a base intelectual para começarem o movimento
de rebelião contra a Inglaterra. Mas fato é que suas principais teorias sobre o
governo, a sociedade e a noção de propriedade terão um impacto profundo
nos revolucionários norte-americanos e, especialmente, nos ideais de Thomas
Jefferson presentes na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Vários
dos pensamentos de Locke responderam diretamente aos anseios e necessidades
da revolução norte-americana. Uma de suas mais importantes obras, Treatises
of Civil Government (Tratados sobre o Governo Civil), de 1690, vai fornecer uma
nova forma de organização político-social para aqueles que desejam se ver livres
das amarras dos colonizadores.

O principal conceito desenvolvido por Locke é o do contrato social. De acordo


com este princípio, haveria um acordo implícito entre os governos e o povo com
o objetivo de manter a ordem social e garantir a estabilidade de uma nação.
Dessa forma, a população deveria abrir mão de alguns direitos e seguir certas
leis, assim como o Estado deveria usar a estrutura governamental sem cometer
abusos de poder. Pode-se dizer portanto que, de acordo com o contrato social, a
legitimidade da autoridade do Estado é garantida apenas com o consentimento
da população governada.

Quando o contrato social é estabelecido e respeitado, o homem pode usu-


fruir de seus direitos naturais, como a felicidade e a liberdade. Nota-se aqui uma
diferença fundamental em relação ao pensamento calvinista presente durante
o período puritano. Se para os protestantes calvinistas o homem já nasce mau,
manchado pela culpa do pecado original, para o pensamento iluminista de
Locke o homem nasce como uma tábula rasa (uma folha de papel em branco) –
o que vai definir se ele se tornará bom ou mau é a sua experiência de vida.

Esse conceito da tábula rasa, presente em Essay Concerning Human Unders-


tanding (Ensaio sobre o Entendimento Humano), também de 1690, faz possível
a articulação de que os “homens bons” só seriam formados se inseridos em so-
ciedades também “boas” – ordenadas, bem-estruturadas, com direitos e deveres
definidos, ou seja, sociedades nas quais está presente o contrato social. Nessas
sociedades, portanto, o homem tem o direito de ser livre, buscando a prosperi-
dade e o bem-estar.

39
Literatura Norte-Americana

As ideias de Locke sobre a humanidade e a sociedade são sintomáticas do pe-


ríodo iluminista, em que a razão toma o lugar do místico e do inexplicável, espe-
cialmente no aspecto religioso. A noção de “direito divino dos reis”, através dos
quais acreditava-se que os monarcas eram escolhidos por Deus para governar
um povo, é refutada por Locke. No lugar da presença de Deus, o filósofo inglês
coloca uma estrutura racional bem definida – o contrato social.

Como todo acordo, todavia, o contrato social pode vir a ser quebrado. Se
o Estado abusa de seu poder de governo, é incapaz de garantir à população a
ordem social, ou seja, não garante aos cidadãos seus direitos naturais, é dever
dos membros dessa sociedade organizar uma revolução e substituir o governo.
Não é uma rebelião, mas uma luta em respeito à permanência do contrato social,
à liberdade e à felicidade. Tais preceitos estabelecidos por John Locke vão for-
necer um arcabouço filosófico para as colônias se libertarem do jugo (controle)
inglês. A partir do pensamento iluminista, os revolucionários norte-americanos
vão transformar o processo de independência dos Estados Unidos em algo muito
maior: a luta do homem pela preservação de seus direitos mais básicos.

Thomas Jefferson, como grande leitor que era, percebeu isso melhor do que
qualquer outro dos Pais Fundadores da nação – e não é coincidência que foi
ele o escolhido para redigir o texto básico da Declaração de Independência dos
Estados Unidos. Nesse documento, o mais importante de toda a história norte-
americana, Jefferson faz mais que anunciar ao seu povo e ao mundo o surgimen-
to de uma nova nação – ele faz da independência norte-americana o símbolo
máximo dos direitos naturais da humanidade.

Em suas emblemáticas primeiras frases, a Declaração de Independência ecoa


os pensamentos de Locke – remetendo diretamente ao princípio de contrato
social – e transforma a luta contra a Inglaterra na luta universal do homem pelo
seu próprio direito à vida:
When in the Course of human events it becomes necessary for one people to dissolve the
political bands which have connected them with another and to assume among the powers
of the earth, the separate and equal station to which the Laws of Nature and of Nature’s God
entitle them, a decent respect to the opinions of mankind requires that they should declare
the causes which impel them to the separation.

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed
by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the
pursuit of Happiness. – That to secure these rights, Governments are instituted among Men,
deriving their just powers from the consent of the governed, – That whenever any Form of
Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to
abolish it, and to institute new Government, laying its foundation on such principles and
organizing its powers in such form, as to them shall seem most likely to effect their Safety and
Happiness. (JEFFERSON, 1989, p. 689-691)

40
O período revolucionário

Jefferson estabelece, em seu texto, que é um direito do povo norte-america-


no tornar-se independente da Inglaterra, já que sua estrutura de governo não
torna mais possível aos cidadãos garantirem seus princípios básicos de segu-
rança e felicidade. Ao mesmo tempo documento oficial e texto revolucionário,
a Declaração de Independência dos Estados Unidos é o ápice do pensamento
filosófico norte-americano aliado a um senso prático de humanidade.

A Declaração de Independência, no entanto, foi um produto não só da influ-


ência iluminista nos ideais revolucionários norte-americanos, mas também de
uma sequência de outros textos escritos no século XVIII com o objetivo de infla-
mar a sociedade contra o domínio inglês. Esses textos revolucionários, de cunho
propagandista, foram fundamentais no período que antecede a guerra com a
Inglaterra e também durante o conflito em si.

De toda a produção do período, o autor mais significativo em se tratando de


convergir a população para o interesse comum da independência foi Thomas
Paine (1737-1809). Nascido na Inglaterra, Paine foi um dos principais defenso-
res da causa norte-americana. Após passar por uma série de crises financeiras
e pessoais, o autor chega à América em 1774 com uma carta de recomendação
de Benjamin Franklin e passa a trabalhar na Pennsylvania Magazine. O processo
revolucionário começava a se desenvolver, com a Inglaterra endurecendo mais
sua política controladora, prejudicando a autonomia e os interesses econômicos
das colônias.

Tomado pelo espírito rebelde da época, Paine publica em janeiro de 1776


um folheto de 50 páginas intitulado Common Sense (Senso Comum). Lançado
quando os colonos ainda discutiam sobre como responder aos abusos de poder
da Inglaterra, Common Sense propôs abertamente a separação com a Coroa bri-
tânica. O texto de Paine foi crucial para exaltar os revolucionários e apresentar
argumentos que validassem a independência.

O título do folheto remete à ideia central apresentada por Paine: as revoltas e


os conflitos na América não seriam resolvidos com a submissão dos colonos às
leis inglesas, quer eram notoriamente insultantes. A solução para o problema era
a busca instintiva por um “senso comum”, o que ele afirma na primeira frase: “In
the following pages I offer nothing more than simple facts, plain arguments and
common sense.” (PAINE, 1989, p. 694)

Essa atitude simples foi em parte a grande responsável pela popularização


de Common Sense e sua rápida aceitação nas colônias. Com seu estilo direto e
pontual, o autor ataca diretamente a monarquia inglesa, não só em relação aos

41
Literatura Norte-Americana

tributos e leis impostas aos colonos, mas também tendo em vista a própria razão
para a ida dos primeiros peregrinos para a América.
This New World hath been the asylum for the persecuted lovers of civil and religious liberty
from every part of Europe. Hither have they fled, not from the tender embraces of the mother,
but from the cruelty of the monster; and it is so far true of England, that the same tyranny which
drove the first emigrants from home, pursues their descendants still. (PAINE, 1989, p. 695)

Tal argumento, que relacionava a Inglaterra a um verdadeiro histórico de tira-


nia, em muito serviu para despertar os ânimos revolucionários.

De forma sistemática, Paine articula em seu texto as diferentes razões pelas


quais a relação com a Inglaterra é extremamente prejudicial às colônias. Sobre
a economia colonial, afirma: “Whenever a war breaks between England and any
foreign power, the trade of America goes to ruin, because of her connection with
Britain.” (PAINE, 1989, p. 696). Um dos pontos mais enfáticos levantados pelo
autor, contudo, é o próprio desejo de Deus que essa união entre a Inglaterra e a
América seja desfeita:
The blood of the slain, the weeping voice of nature cries, ‘TIS TIME TO PART. Even the distance
at which the Almighty hath placed England and America is a strong and natural proof that the
authority of the one over the other, was never the design of Heaven [...] The Reformation was
preceded by the discovery of America: as if the Almighty graciously meant to open a sanctuary
to the persecuted in future years, when home should afford neither friendship nor safety.
(PAINE, 1989, p. 696-697)

Assim, Paine associa o fato de a Inglaterra e o continente americano estarem


separados por um oceano e o acontecimento da Reforma Protestante antes da
descoberta do Novo Mundo a sinais divinos, indicando que a América deveria
deixar de ser uma colônia.

O ponto principal levantado por Thomas Paine em Common Sense é que


apenas a independência será capaz de manter um estado de paz na América, já
que se um acordo fosse feito com a Inglaterra ele seria inevitavelmente seguido
por outros tipos de revoltas:
But the most powerful of all arguments is, that nothing but independence, i.e. a continental
form of government, can keep the peace of the continent and preserve it inviolate from civil
wars. I dread the event of a reconciliation with Britain now, as it is more than probable that it
will be followed by a revolt somewhere or other, the consequences of which may be far more
fatal than all the malice of Britain. (PAINE, 1989, p. 700)

Assim, o autor estabelece a independência não só como o único caminho para


a autonomia, mas também para a paz continental. Seis meses depois, a Declara-
ção de Independência é assinada. A função desempenhada por Paine foi trans-
formar o ideal de liberdade americana numa luta real pelo direito à soberania.

42
O período revolucionário

Os Estados Unidos constituem-se então como uma nação livre e autônoma,


livres das amarras inglesas e procurando estabelecer suas próprias tradições
através de uma identidade própria. Mas o que definiria esse novo homem nor-
te-americano? Mais especialmente, de que natureza seria a cultura dos Estados
Unidos? Qual o papel de uma literatura escrita na América? Essas seriam as ques-
tões que ecoariam por toda a nova república durante o século XVIII.

Texto complementar

The way to wealth


(FRANKLIN, 1989)

“Friends,” said he, “the taxes are indeed very heavy, and, if those laid
on by the government were the only ones we had to pay, we might more
easily discharge them; but we have many others, and much more grievous
to some of us. We are taxed twice as much by our idleness, three times as
much by our pride, and four times as much by our folly; and from these taxes
the commissioners cannot ease or deliver us, by allowing an abatement.
However, let us hearken to good advice, and something may be done for us;
God helps them that help themselves, as Poor Richard says.

“I. It would be thought a hard government, that should tax its people one-
tenth part of their time, to be employed in its service; but idleness taxes many
of us much more; sloth, by bringing on diseases, absolutely shortens life. Sloth,
like rust, consumes faster than labor wears; while the used key is always bright, as
Poor Richard says. But dost thou love life, then do not squander time, for that is
the stuff life is made of, as Poor Richard says. How much more than is necessary
do we spend in sleep, forgetting, that The sleeping fox catches no poultry, and
that There will be sleeping enough in the grave, as Poor Richard says.

“If time be of all things the most precious, wasting time must be, as Poor Ri-
chard says, the greatest prodigality; since, as he elsewhere tells us, Lost time
is never found again; and what we call time enough, always proves little enough.
Let us then up and be doing, and doing to the purpose; so by diligence shall
we do more with less perplexity. Sloth makes all things difficult, but industry
all easy; and He that riseth late must trot all day, and shall scarce overtake his

43
Literatura Norte-Americana

business at night; while Laziness travels so slowly, that Poverty soon overtakes
him. Drive thy business, let not that drive thee; and Early to bed, and early to rise,
makes a man healthy, wealthy, and wise, as Poor Richard says.

“So what signifies wishing and hoping for better times? We may make
these times better, if we bestir ourselves. Industry need not wish, and he that
lives upon hopes will die fasting. There are no gains without pains; then help,
hands, for I have no lands; or, if I have, they are smartly taxed. He that hath
a trade hath an estate; and he that hath a calling, hath an office of profit and
honor, as Poor Richard says; but then the trade must be worked at, and the
calling followed, or neither the estate nor the office will enable us to pay our
taxes. If we are industrious, we shall never starve; for, At the working man’s
house hunger looks in, but dares not enter. Nor will the bailiff or the constable
enter, for Industry pays debts, while despair increaseth them. What though you
have found no treasure, nor has any rich relation left you a legacy, Diligence is
the mother of good luck, and God gives all things to industry. Then plough deep
while sluggards sleep, and you shall have corn to sell and to keep. Work while it
is called to-day, for you know not how much you may be hindered to-mor-
row. One, to-day is worth two to-morrows, as Poor Richard says; and further,
Never leave that till to-morrow, which you can do to-day. If you were a servant,
would you not be, ashamed that a good master should catch you idle? Are
you then your own master? Be ashamed to catch yourself idle, when there
is so much to be done for yourself, your family, your country, and your king.
Handle your tools without mittens; remember, that The cat in gloves catches
no mice, as Poor Richard says. It is true there is much to be done, and perhaps
you are weak-handed; but stick to it steadily, and you will see great effects;
for Constant dropping wears away stones; and By diligence and patience the
mouse ate in two the cable; and Little strokes fell great oaks.

Dicas de estudo
O filme Jefferson em Paris (James Ivory, 1995) aborda uma das mais obscu-
ras fases da vida do autor da Declaração da Independência dos Estados Unidos:
antes de se tornar presidente, Thomas Jefferson teria tido um relacionamento
com uma escrava que teria engravidado dele. O filme também traça um panora-
ma histórico bem interessante do final do século XVIII, com foco na relação entre
a França e os Estados Unidos.

44
O período revolucionário

O episódio do Boston Tea Party é tão marcante no ideal de formação dos Es-
tados Unidos que possui até mesmo um próprio museu. Com documentação da
época e até mesmo com as caixas de chá originais lançadas no porto de Boston
pelos colonos, visitar o site do museu é ter um panorama bem completo dos
primórdios do período revolucionário dos Estados Unidos.

Disponível em http://www.bostonteapartyship.com/index.asp

Atividades
1. Quais foram as principais causas do início da guerra revolucionária contra a
Inglaterra?

2. Como o pensamento iluminista influenciou as principais mentes por trás do


processo de independência dos Estados Unidos?

45
A prosa romântica

Os Estados Unidos da América adquirem sua independência em 1776,


no final do século XVIII. A guerra revolucionária com a Inglaterra garante
aos ex-colonos a tão sonhada autonomia política e econômica capaz de
garantir a esses agora cidadãos norte-americanos o direito à “vida, liber-
dade e à busca da felicidade”, como tão explicitamente está exposta em
sua Declaração de Independência.

Após essa ruptura no âmbito governamental, o próximo passo para


essa jovem nação seria se autoafirmar e definir a sua identidade. Ao invés
de se reconhecer pelo que não era (colônia ligada às tradições do Velho
Mundo), havia chegado a hora de os Estados Unidos se reconhecerem
pelo que eram. Essa compreensão da totalidade de seu potencial é
adquirida através de uma nova literatura que começa a ser produzida na
América. Essa produção literária vai desempenhar um imenso papel no
posicionamento único que a cultura norte-americana terá no decorrer de
todo o século XIX.

Mas qual será a forma e, especialmente, o conteúdo dessa nova


literatura que surge nos Estados Unidos? No âmbito da prosa, como os
romances, os ensaios, os contos e as críticas servirão para representar de
forma literária uma existência essencialmente norte-americana? Essas são
perguntas que vão ecoar por todo o chamado “Romantismo” nos Estados
Unidos – e os grandes escritores do período vão buscar as respostas
através das brilhantes obras que produzem.

O ideal romântico e a
construção da identidade norte-americana
É no século XIX que surge a primeira grande geração de escritores nos
Estados Unidos. Nomes como Washington Irving, James Fenimore Cooper,
Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe, Ralph Waldo Emerson, Henry David
Thoreau e Herman Melville formarão o primeiro grupo de autores que vão
Literatura Norte-Americana

dar legitimidade à prosa norte-americana e iniciarão uma tradição literária que


vai influenciar autores não só na América, mas no mundo inteiro.

O surgimento dessas grandes mentes que vão, pela primeira vez, consagrar
elementos culturais notadamente norte-americanos num âmbito global, é con-
sequência de dois aspectos distintos que ultrapassam os limites da literatura.
Um é de caráter interno e sociopolítico: o desenvolvimento e a expansão territo-
rial dos Estados Unidos. Outro é de caráter externo e artístico: a presença de uma
estética romântica na mentalidade europeia.

No século XIX, a população norte-americana aumenta em quase cinco vezes,


chegando a mais de 30 milhões de habitantes. Grande parte dessa população
parte para as novas terras conquistadas a oeste e o poder se descentraliza, com
a costa do Atlântico perdendo sua posição privilegiada de centro do poder e da
cultura dos Estados Unidos. Essa expansão territorial era justificada pela ideia do
Destino Manifesto. De acordo com esse conceito, os Estados Unidos tinham o di-
reito divino (ou seja, era o desejo de Deus) de se expandir por praticamente toda
a América do Norte. Surge um novo nacionalismo, em que os Estados Unidos
passam a representar toda a “América”. Seus ideais de liberdade e felicidade são
protegidos pela Providência.

Industrialmente, o país crescia de forma impressionante. As primeiras linhas


de produção em fábricas eram estabelecidas, assim como novas invenções (o
telégrafo, a máquina de costura) surgidas nos Estados Unidos alavancaram seu
desenvolvimento. As cidades prosperavam, e a população do campo cada vez
mais migrava para os centros urbanos. O nível educacional do país também
passava por uma onda de crescimento, em que cada vez mais revistas, jornais
e livros eram publicados para serem consumidos por um ávido público leitor.
No entanto, com a popularização do romance, mais escritores passam a ter seus
trabalhos publicados, inicialmente em capítulos inseridos em revistas semanais.
É assim que os grandes nomes da literatura norte-americana começam a ter seu
trabalho reconhecido.

Uma das maiores influências para a literatura norte-americana do século XIX,


no entanto, teve origem na Europa – o Velho Continente – cujas tradições os ex-
-colonos tanto ansiavam por romper. Foi especialmente (e ironicamente) na In-
glaterra que o mais importante movimento literário daquele período se desen-
volveu: o Romantismo. Na verdade, o Romantismo inglês surge ao final do século
XVIII e permanece relevante durante o século seguinte. As ideias básicas do pen-
samento romântico, ao chegarem à América, alteram profundamente a relação
que o homem desse Novo Continente tinha consigo mesmo e com a natureza.
48
A prosa romântica

De modo geral, as características básicas do Romantismo podem ser descritas


como “entusiasmo moral, fé no valor do individualismo e na percepção intuitiva,
e a ideia de que o mundo natural é uma fonte de bondade e a sociedade é uma
fonte de corrupção.” (McMICHAEL et al., 2001, p. 441). A crença no valor do indi-
vidual em muito combinava o histórico revolucionário do país, especialmente a
sua luta pelos direitos naturais de todo o homem. Da mesma forma, uma ênfase
nos aspectos da natureza era essencial ao período de expansão que a nação
vivia. Ao cruzar o Vale do Rio Mississipi e se desbravar por entre montanhas, pla-
nícies e rios desconhecidos, o explorador norte-americano pôde se deparar com
uma variedade natural totalmente nova que merecia ser interpretada e discuti-
da, servindo de pano de fundo para a criação de uma literatura.

A mais profunda contribuição do movimento romântico para a literatura nor-


te-americana do século XIX, contudo, foi a já mencionada fé “na percepção intui-
tiva”. O Romantismo é a escrita da emoção e da subjetividade. Assim, os grandes
autores do período rejeitavam fontes de conhecimento fundadas exclusivamen-
te na razão ou na experiência científica; pelo contrário, o aspecto misterioso da
natureza, os eventos inexplicáveis e a abundância de emoções era o que mais
interessava à literatura da época. Isso vai ser importante até mesmo no aspecto
religioso, em que o intelectualismo calvinista vai dar lugar a ideais de sociedade
em busca de um encontro com Deus através do que há de natural no mundo.

Os preceitos e as características do Romantismo, surgidos na Europa para ser-


virem de resposta a um neoclassicismo decadente, ganham uma outra conota-
ção ao chegarem aos Estados Unidos:
Coming to the United States at the moment of an awakening national consciousness, (the
Romantic movement) assumed an even more ardent nationalism than it had in the older
countries abroad. This attitude was expressed in the denial of tradition and of the European
inheritance, a delight in the grand scale and the infinite mysteries of nature on the unexplored
western continent and a pride in the “American ideas” which had so successfully created
the Republic [...] The creation of an American myth out of the new materials was its first and
greatest task. (SPILLER, 1967, p. 23)

A partir da citação acima, podemos entender que a inspiração no individualis-


mo e em elementos da natureza tinha um propósito bem específico quando pen-
samos no Romantismo inglês. Autores como William Wordsworth e Percy Shelley
buscavam, entre outros aspectos, um contraponto ao racionalismo exacerbado
e aos problemas sociais causados pela revolução industrial na Inglaterra.

Nos Estados Unidos a situação é bem diferente. O século XIX foi o período
em que os Estados Unidos, após o processo de independência, tentam achar
uma forma de representação artística que seja capaz de exprimir uma identidade

49
Literatura Norte-Americana

nova, norte-americana, condizente com seus ideais revolucionários. É o momen-


to em que a cultura torna-se a expressão máxima do nacionalismo, e a arte torna-
-se o elemento crucial para definir o contexto dessa jovem nação. As músicas têm
um forte apelo patriótico; a pintura tem como tema as paisagens da América do
Norte; a arquitetura é monumentalmente inspirada em ideais gregos republica-
nos, em contraste com o estilo gótico inglês. A literatura deixa de ter temas polí-
ticos e religiosos como suas bases principais – “no lugar de sermões e manifestos,
surgem romances, contos e poemas” (McMICHAEL et al., 2001, p. 441).

Essa onda nacionalista, ao unir-se com as principais ideias românticas, vai ser a
força motriz na formação de uma literatura essencialmente norte-americana que vai
dar voz aos anseios e pensamentos de toda uma geração. O amadurecimento literá-
rio dos Estados Unidos, todavia, se dará de forma gradativa. O romance foi a forma
literária adotada pela maioria dos autores da época, e as primeiras obras norte-ame-
ricanas ao final do século XVIII ainda procuravam um estilo de narrativa único, que
pudesse ao mesmo tempo interessar e representar aos leitores da época.

O primeiro autor que atinge esse propósito é Washington Irving (1783-1859).


Pode-se dizer que Irving é o escritor que desperta o interesse do mundo para
a produção literária que estava se desenvolvendo nos Estados Unidos. Ainda
assim, as obras do autor funcionam como um meio termo entre a sensibilidade
romântica importada da Inglaterra e da Alemanha e a necessidade de construir
uma mitologia na qual uma narrativa norte-americana pudesse se sustentar.
Muitos autores consideram Irving um verdadeiro embaixador das letras, buscan-
do “estabelecer conexões entre a escrita norte-americana e a tradição europeia.”
(BRADBURY; RULAND, 1992, p. 92)

O primeiro triunfo de Washington Irving é exatamente uma obra, em tom


irônico, que procura arquitetar uma tradição para a mais nova metrópole dos
Estados Unidos: Nova York. Como nativo da cidade, Irving conhecia muito bem
a origem holandesa da região e suas excentricidades. Assim, sob o pseudônimo
de Diedrich Knickerbocker, o autor publica em 1809 History of New York. Trabalho
de narrativa histórica, mas ao mesmo tempo satírico, esse livro dá origem a uma
geração de escritores inspirados pela paródia de Irving que viria a ser conhecida
como a “Escola Knickerbocker” de literatura, muito conhecida em Nova York nas
primeiras décadas do século XIX.

Em 1815 o autor faz uma viagem à Europa, onde entra em contato direto com
a tradição romântica do Velho Continente. O Romantismo inglês, com seu elogio

50
A prosa romântica

ao passado e à experiência medieval, assim como os contos populares alemães,


serviram de grande inspiração para o trabalho mais reconhecido de Washington
Irving: The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent., publicado de forma seriada
entre 1819 e 1820. Usando dessa vez o pseudônimo de Geoffrey Crayon, o autor
escreveu 34 ensaios e contos na tentativa de transpor o espírito folclórico do
conto europeu para os Estados Unidos. O Sketch Book foi o primeiro livro norte-
-americano a ter sucesso não só na América, mas também na Europa. Os escritos
de Irving conseguiram criar uma mitologia popular para uma literatura em fase
de consolidação através de uma herança europeia.

Dos textos presentes no Sketch Book, dois vão se destacar e praticamente


fundar o imaginário popular da América. O primeiro é Rip Van Winkle, a história
de um camponês que, depois de beber um vinho mágico oferecido por fantas-
mas, dorme por 20 anos. Ao acordar, ele fica surpreso ao ver todas as mudanças
ocorridas em sua família e no seu vilarejo, mas o principal acontecimento de
todos foi a guerra revolucionária que culminou na independência dos Estados
Unidos. O próprio personagem Rip Van Winkle se torna uma lenda então, ao ter
vivenciado os acontecimentos anteriores à guerra e por não ter presenciado o
momento mais importante da história da nação.

Outro conto muito famoso de Washington Irving presente no Sketch Book é


The Legend of Sleepy Hollow. Assim como Rip Van Winkle, é baseado num conto
folclórico alemão sobre um cavaleiro sem cabeça que assombra um vilarejo.
Como geralmente faz, Irving transporta essa história popularesca europeia para
os Estados Unidos, situando a narrativa em Nova York e fazendo o cavaleiro
perder a cabeça com uma bala de canhão disparada numa batalha durante a
guerra pela independência.

Se Washington Irving concentrou sua produção nos contos e histórias po-


pulares inspirados pela tradição folclórica europeia, James Fenimore Cooper
(1789-1851) vai dedicar-se ao desenvolvimento de um formato para o romance
norte-americano instituindo seus próprios mitos de criação. Usando a recente
história e política dos Estados Unidos, Cooper vai fundar um estilo romântico
norte-americano que servirá de molde para que o público leitor passe a reco-
nhecer o seu passado através de moldes literários.

O primeiro romance aclamado de Cooper é The Spy, de 1821, e é a partir dessa


obra que o autor vai receber o título que de certa forma vai persegui-lo até hoje: o
“Walter Scott da América”. Scott foi um dos grandes escritores ingleses do século
XIX, fundador do gênero romance histórico – de forma geral, uma narrativa fic-

51
Literatura Norte-Americana

cional que se desenrola tendo como pano de fundo um evento real do passado.
O que Cooper faz é modelar a forma do romance histórico como definido pelo
autor inglês para a realidade norte-americana e assim “Cooper, trilhando o cami-
nho de Scott, soube revestir a história das mais brilhantes roupagens e cercá-la
dos mais pitorescos cenários.”(NABUCO, 2000, p. 41)

The Spy (O Espião) é uma história que se passa durante o período revolucio-
nário e, mesmo que em termos históricos tenha sido um momento bem recente
quando o livro foi lançado, Cooper soube tirar proveito do crescente interesse
do público em ler narrativas que dissessem respeito à sua própria experiência e
aos eventos que levaram à formação da identidade da nação. A forma satírica de
ver o passado, como ilustrada por Irving, é substituída por uma perspectiva séria
e com um viés político na escrita de James Fenimore Cooper.

Da mesma forma que Walter Scott tem como ícone de seus romances
históricos o personagem Waverley, Cooper também vai compor uma figura
histórica que vai se tornar a sua principal criação: Natty Bumppo, também
chamado de Leatherstocking. O autor escreve cinco romances sobre a vida de
Bumppo – conhecidos como Leatherstocking Tales – sendo o principal dele The
Last of the Mohicans (O Último dos Moicanos). Leatherstocking é o arquétipo do
herói romântico e norte-americano do século XIX: ele se aproxima das tradições
indígenas, tem um forte espírito de justiça e localiza-se na mítica “fronteira” dos
Estados Unidos, a região onde termina a civilização e começa o desconhecido,
geralmente associado à área oeste do país.

Cooper foi o primeiro a dar o devido valor a cenas e eventos realmente nor-
te-americanos, com seus romances que ao mesmo tempo exaltavam o passado
revolucionário da nação e também reconheciam a importância da contribuição
indígena para a formação de uma cultura em crescimento, porém já tão rica. Sua
preocupação com uma narrativa que fosse genuinamente norte-americana, seja
em tons políticos ou em ritmo de aventura, foi primordial para a confirmação do
potencial da literatura dos Estados Unidos.

O transcendentalismo
Com a formação de uma identidade nacional norte-americana, os principais
pensadores dos Estados Unidos tentaram encontrar uma filosofia que fosse
capaz de representar os anseios da nação de forma nova e genuína. A mais sig-
nificativa foi certamente o transcendentalismo, que não só rompe com as tra-

52
A prosa romântica

dições puritanas e “lockeanas” do pensamento norte-americano, mas também


inaugura uma visão de mundo condizente com a perspectiva de uma nação no
processo de consolidação de seus valores.

O transcendentalismo abrange esferas políticas, filosóficas, religiosas e, es-


pecialmente, literárias numa nova abordagem da vivência norte-americana. In-
fluenciada pela filosofia alemã e pelo Romantismo inglês, o transcendentalismo
foi talvez a primeira escola de pensamento surgida nos Estados Unidos. O pri-
meiro traço distintivo do movimento é a negação de uma perspectiva lockeana
da religião delineada pelo unitarianismo.

O unitarianismo acreditava numa aproximação entre o empirismo de John


Locke e os mistérios da Bíblia, para que assim a religião pudesse ter sua verda-
de comprovada. Os transcendentalistas se afastam dessa visão de mundo, pois
para eles a fé não pode ser explicada pela razão – a natureza empírica dos ensi-
namentos de Locke e Newton não condizem com a experiência religiosa; pelo
contrário: o sentimento é que merecia a exaltação, e era muito mais importante
na vivência de um indivíduo que a sua racionalidade.

O pensamento transcendental interessa-se muito mais pelo inexplicável, pelo


misterioso, e é por isso que a natureza torna-se tema fundamental dos textos ins-
pirados pelo movimento. O universo seria um grande símbolo, em que a natu-
reza seria o elemento mais simbólico de todos, repleto de signos. Assim, através
do contato com os mistérios da natureza, e não com explicações racionais sobre
ela, é que se pode ter acesso às verdades da vida. Numa jovem nação, iniciando
a exploração de seu território com uma vasta riqueza natural, essa forma de pen-
samento encontra eco em vários escritores da mesma geração.

O conceito que de certa forma vai definir a mentalidade transcendentalista


é o self. Os principais pensadores do movimento realizam em seus escritos uma
grande celebração do individualismo, em que a essência de cada pessoa (o “self”,
ou seja, o próprio “eu”) é o valor mais importante que existe. É através da ex-
pressão individual, em oposição às restrições impostas pelas convenções e leis,
que o homem pode se conhecer e também conhecer o universo. Há uma busca
constante pelo autoconhecimento pois, quanto mais o homem descobre sobre
si, mais claramente entende os mistérios do universo:

“An individual is the spiritual center of the universe - and in an individual can
be found the clue to nature, history and, ultimately, the cosmos itself. It is not a
rejection of the existence of God, but a preference to explain an individual and
the world in terms of an individual.” ((McMICHAEL et al., 2001, p. 442)

53
Literatura Norte-Americana

Para o transcendentalismo, o indivíduo funciona como uma reprodução em


escala menor (micro) da imensa estrutura do universo (macro). Ao conhecer um,
se conhece o outro.

Assim, o pensamento transcendentalista compreende que o verdadeiro self


só se constitui de forma completa – espiritualmente e filosoficamente – quando
consegue transcender o mundo material através da emoção e da intuição. Os
preceitos religiosos (especialmente aqueles herdados do protestantismo calvi-
nista) são deixados para trás em favor de uma maior crença na realização de uma
individualidade capaz de elevar o homem além da experiência empírica.

A figura central do movimento transcendentalista e de certa forma de toda


uma nova estrutura filosófica norte-americana do século XIX foi Ralph Waldo
Emerson (1803-1882). É através de seus ensinamentos que se fundam as bases
do pensamento transcendental e os Estados Unidos declaram definitivamente
sua independência intelectual da estética europeia. Mesmo tendo sido leitor
de pensadores alemães e se encontrado pessoalmente com grandes nomes do
Romantismo inglês, Emerson utiliza de seu conhecimento para construir a lite-
ratura norte-americana através de uma visão única de sua natureza, de sua indi-
vidualidade e de sua qualidade poética.

Antes de revolucionar a escrita norte-americana, Emerson era um pastor


bem-sucedido em Boston, até o momento em que passou a duvidar de alguns
dogmas cristãos que tinha que pregar. Ele então se desliga da igreja e parte para
uma temporada na Europa. No Velho Continente, absorve os fervilhantes ideais
românticos em voga no século XIX, além de ter o privilégio de conhecer pesso-
almente os principais nomes do Romantismo inglês como William Wordsworth
e Samuel Taylor Coleridge.

Ao retornar para os Estados Unidos, o autor se estabelece em Concord, no


estado de Massachusetts. Aquela pequena cidade tornaria-se, em pouco tempo,
a capital da produção intelectual norte-americana, com a presença não só de
Emerson mas também de outros grandes nomes do período, como Henry David
Thoreau e Nathaniel Hawthorne. A transferência do centro literário dos Estados
Unidos da knickerbocker Nova York para o estado de Massachusetts foi mais que
geográfico. A partir dela, a literatura dos Estados Unidos dá um grande salto no
estabelecimento de uma literatura genuína. A região da Nova Inglaterra, tão im-
portante na formação do período puritano do país, vai novamente ter um papel
fundamental nessa nova fase da construção da mentalidade norte-americana.
Esse período ficou conhecido como o Renascimento da Nova Inglaterra.

54
A prosa romântica

Em Concord, Emerson funda o Clube Transcendentalista, onde reúne-se infor-


malmente com outros escritores e pensadores do local para discutir as inovado-
ras ideias relacionadas à filosofia, teologia e literatura. Em 1836, o autor publica
Nature (Natureza), ensaio fundamental que serviu como manifesto do transcen-
dentalismo. Nessa obra, todo o imaginário romântico que serviu como pano de
fundo para a literatura do período encontra pela primeira vez com uma realidade
essencialmente norte-americana. Nature é a expressão máxima do pensamento
transcendental de Emerson de que a natureza não pode ser explicada em termos
materiais, pois é através das sensações que o seu principal valor é mostrado. A
natureza é um reflexo do mundo espiritual, uma escritura divina, que pode ser
lida pelo homem quando ele é capaz de acessar sua individualidade.

A razão e o empirismo não podem representar a natureza em sua totalidade.


É a experiência individual, através da expressão do“self”, que aproxima o homem
da essência da natureza e da mensagem divina inserida na sua criação. Por isso,
Emerson afirma:
Every natural fact is a symbol of some spiritual fact. Every appearance in nature corresponds
to some state of the mind, and that state of the mind can only be described by presenting that
natural appearance as its picture [...]. Who looks upon a river in a meditative hour, and is not
reminded of the flux of all things? Throw a stone into the stream, and the circles that propagate
themselves are the beautiful type of all influence. Man is conscious of a universal soul within
or behind his individual life, wherein, as in a firmament, the natures of Justice, Truth, Love,
Freedom, arise and shine. This universal soul, he calls Reason: it is not mine, or thine, or his,
but we are its; we are its property and men [...]. That which, intellectually considered, we call
Reason, considered in relation to nature, we call Spirit. Spirit is the Creator. (EMERSON, In:
McMICHAEL et al., 2001, p. 622)

Esta aproximação do homem com a natureza estava no centro do pensamen-


to romântico inglês, mas nunca foi expressa com a complexidade espiritual dos
escritos de Emerson, tornando-o o escritor mais representativo na expressão de
uma sensibilidade norte-americana que vai influenciar grande parte da literatu-
ra produzida não só no século XIX, mas também posteriormente.

Outro texto de Emerson que vai deixar uma marca na produção literária norte-
-americana é o ensaio Self-Reliance, de 1841. Como o próprio título indica, nessa
obra o autor intensifica o discurso a favor da valorização do self, de si próprio
e das crenças individuais. Em linhas gerais, o argumento básico de Self-Reliance
(Autoconfiança) deve combater o conformismo e as falsas convenções e confiar
nos próprios instintos. Emerson, mesmo que de forma subconsciente, faz um
comentário sobre a tradição do pensamento de Benjamin Franklin ao mesmo
tempo que a renega, afirmando que: “Self trust is the first secret of success, the
belief that, if you are here, the authorities of the world put you here, and for cause,

55
Literatura Norte-Americana

or with some task strictly appointed you in your constitution, and so long as you
work at that, you are well and successful.” (EMERSON, In: NABUCO, 2000, p. 36)

Ao contrário de Franklin, portanto, Emerson crê que o sucesso surge, antes


de mais nada, na capacidade individual que cada um tem de acreditar em suas
ideias e em seu próprio potencial. Acreditar e confiar em si mesmo de forma ina-
balável está intimamente ligado ao não-conformismo, o que para o autor é uma
grande qualidade. Essa ideia está presente em uma das mais famosas citações
de Self-Reliance, que afirma que “a foolish consistency is the hobgoblin of little
minds.” (EMERSON, In: McMICHAEL et al., 2001, p. 660). Isso significa que a busca
por uma consistência, ou pela compreensão por parte da sociedade, geralmente
está atrelada a mentes pouco férteis que não tem fé na própria habilidade. A
confiança no próprio eu sempre é mais importante, mesmo que isso leve à into-
lerância e incompreensão daqueles em volta. Como Emerson mesmo afirma: “To
be great is to be misunderstood.”

Essa crença no sucesso baseado no individualismo será crucial para um mo-


mento dos Estados Unidos em que a nação está formando sua consciência cul-
tural. O que Emerson ensina é que não é necessário um modelo pré-formado
para realizar grandes obras, literárias ou não. O imprescindível se encontra na
autoconfiança, no autoconhecimento e na comunhão do homem com a nature-
za e o universo.

A filosofia de Ralph Waldo Emerson vai servir de influência para vários escrito-
res do período, mas nenhum deles vai representar melhor o espírito do transcen-
dentalismo do que Henry David Thoreau (1817-1862). O que Emerson expressava
através de um idealismo filosófico fundado na esfera teórica, Thoreau realizava
através da experiência com o mundo natural e prático. Se Emerson foi o principal
pensador do movimento transcendentalista, Thoreau foi aquele que melhor pôs
seus ideais em prática. Tome-se, por exemplo, a primeira passagem de Nature,
de Emerson:
To go into solitude, a man needs to retire as much from his chamber as from society. I am not
solitary whilst I read and write, though nobody is with me. But if a man would be alone, let
him look at the stars. The rays that come from those heavenly worlds, will separate between
him and what he touches. One might think the atmosphere was made transparent with this
design, to give man, in the heavenly bodies, the perpetual presence of the sublime. (EMERSON,
In: McMICHAEL, 2001, p. 615)

No trecho acima, Emerson constrói um elogio à necessidade do homem entrar


em contato com seu próprio eu longe da sociedade e buscar uma comunhão
maior com a natureza. Tal pensamento pode ter servido de inspiração direta

56
A prosa romântica

para a experiência de Thoreau, que viveu recluso durante mais de dois anos
numa cabana distante da cidade, à beira do lago Walden. Amigo e discípulo de
Emerson, Thoreau nasceu em Concord e lá viveu a maior parte de sua vida. Sua
notória paixão pela natureza, vista na época como excentricidade e hoje tida
como um dos primeiros símbolos da consciência ambiental, é a concretização
dos escritos do autor de Nature. Assim sendo, é possível afirmar que: “Thoreau
was the symbolist; Emerson could only describe, seeing simultaneously the
thing before him and the spiritual analogue he held equally real. He was the
adventurous pioneer who turned woods and pond into a frontier of the spirit.”
(BRADBURY; RULAND, 1992, p. 129)

Em 1845, Thoreau começa a construir uma cabana às margens do lago Walden,


próximo a Concord. A terra pertencia a Emerson, que autorizou que seu amigo ali
permanecesse. Na simbólica data de 4 de julho, Thoreau se muda para a cabana e
lá permanece por dois anos, dois meses e dois dias. Durante esse período, o autor
vive solitário de forma simples e modesta, em contato direto com a natureza do
local. É nesse local que Thoreau começa a escrever sobre sua fascinante experiên-
cia no livro que viria a se tornar sua obra-prima: Walden, or Life in the Woods.

Publicado apenas em 1854, Walden não teve grande sucesso quando lança-
do. O próprio Thoreau durante muito tempo foi visto como um mero aluno de
Emerson, passando a ter seu valor reconhecido já na virada do século. Uma das
razões para a importância literária de Walden é a forma que Thoreau alia a rea-
lidade material que o rodeia à sua própria expressão individual. Combinando o
contato direto com a natureza a uma sensibilidade própria, sua escrita se desen-
volve através de uma simples narrativa, focando especialmente na passagem
das estações do ano como um reflexo do crescimento do homem.

Numa célebre passagem, Thoreau explica o que o compeliu a passar pela ex-
periência de mais de dois anos à beira do lago Walden:
I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of
life, and see if I could not learn what it had to teach, and not, when I came to die, discover that I
had not lived. I did not wish to live what was not life, living is so dear; nor did I wish to practice
resignation, unless it was quite necessary. I wanted to live deep and suck out all the marrow of
life (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 877).

Esse desejo de viver a vida em toda a sua profundidade é, para Thoreau, o


oposto do materialismo e da ganância, atitudes que além de empobrecerem
o homem, ainda são responsáveis pela destruição da natureza. Como ele afir-
mou em uma de suas mais famosas citações, “A man is rich in proportion to the
number of things he can afford to let alone.” Ou seja: a verdadeira riqueza não

57
Literatura Norte-Americana

está em possuir uma determinada quantidade de bens materiais, mas sim em


conseguir viver sem eles. Quando fala várias vezes em Walden sobre “simplificar”
a sociedade e a forma em que era constituída, Thoreau não está apenas fazendo
uma crítica, mas também propondo uma saída pelas vias transcendentalistas,
nas quais o encontro com o divino é também o encontro consigo mesmo, e este
se dá através do contato com a natureza.

No meio do período em que esteve na cabana de Walden, Thoreau é cobrado


sobre o pagamento de impostos atrasados. Recusando-se a pagar, o autor passa
uma noite na cadeia de Concord. A partir dessa experiência, o autor vai escrever
o seu ensaio mais conhecido: Civil Disobedience. De forma geral, Thoreau afirma
que não se deve permitir que o governo, através de leis e convenções, force os
cidadãos a traírem sua própria consciência. Caso contrário, a população apenas
propagará a injustiça instituída pelas estruturas de poder.

Para o autor, a autoridade do governo é garantida pelo poder individual dos


integrantes de uma nação e só assim ela se justifica: “There will never be a really
free and enlightened State until the State comes to recognize the individual as
a higher and independent Power, from which all of its own power and authority
are derived.” (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 826)

Em muitos casos, o governo não reconhece a consciência individual de seus


cidadãos e os obriga a praticar atos dos quais eles discordam profundamente. A
prisão de Thoreau foi um desses atos. O autor recusou-se a pagar as taxas que devia
pois acreditava que não devia dinheiro a um país que usaria aqueles recursos para
financiar a escravidão, ou a guerra contra o México que estava se desenrolando.
Numa passagem marcante de Civil Disobedience, Thoreau escreve (não sem ironia)
como a cadeia é de certa forma o melhor lugar para pessoas como ele ficarem:
Under a government which imprisons any unjustly, the true place for a just man is also a prison.
The proper place today, the only place which Massachusetts has provided for her freer and less
desponding spirits, is in her prisons, to be put out and locked out of the State by her own act, as
they have already out themselves out by their principles. (THOREAU, In: McMICHAEL, 2001, p. 818)

É interessante notar que a prisão, na visão de Thoreau, é o local para onde vão
os homens verdadeiramente livres, pois lá podem exercer sua individualidade.
Para o autor, não é que os cidadãos discordantes tenham sido trancados dentro
das cadeias, mas na verdade eles foram trancados do lado de fora da estrutura do
Estado, daí sua liberdade.

Emerson e Thoreau terão por toda a história da literatura dos Estados Unidos
o papel de profetas de uma nova perspectiva narrativa e temática, por mais que
essa não fosse a intenção original dos autores. Seus principais ideais, fundamen-
58
A prosa romântica

tais para a construção de um pensamento norte-americano, ecoarão por vários


locais (até mesmo fora de seu país de origem) em diferentes momentos. Prati-
camente 50 anos depois do 4 de julho de 1776, a América encontra, nesses dois
pensadores, sua independência intelectual.

A inspiração gótica
Na tentativa de buscar uma voz genuína para uma literatura em formação,
outros autores decidiram experimentar estilos de escrita que nem sempre se re-
lacionavam diretamente com a natureza ou temas essencialmente norte-ameri-
canos. Ao contrário de Emerson, Thoreau e Cooper, por exemplo, alguns escrito-
res voltaram-se para o estudo de aspectos mais sombrios da natureza humana,
em que a valorização do self não aproxima o homem do divino, mas de seus
temores e aspectos mais sombrios.

A realização dessa forma de literatura em muito deve à ficção gótica, um


gênero surgido no final do século XVIII, mas que vai achar sua expressão máxima
no século XIX. O gótico caracteriza-se pela presença do terror em sua narrativa,
através de elementos de mistério (labirintos, ruínas) ou sobrenaturais (fantas-
mas, vampiros). Uma das principais contribuições da ficção gótica é a ênfase nos
processos psíquicos dos personagens, geralmente figuras que se encontram à
beira da loucura mas que mesmo assim têm todo o seu esquema mental estru-
turado pelo escritor.

A inspiração gótica vai ser um dos elementos criadores de um dos mais proe-
minentes escritores norte-americanos do século XIX: Edgar Allan Poe (1809-1849).
Muito criticado em sua época, rechaçado por não pertencer a uma tradição de
escrita verdadeiramente norte-americana, tido como vilão e homem sem virtu-
des, a obra de Poe supera todos os estereótipos construídos em torno de sua
figura para fazer dele um dos autores mais populares do mundo.

A imagem do gênio atormentado, do autor maldito, do viciado em álcool e


ópio que vagava pelas ruas vestido de preto e que morre literalmente na sar-
jeta aos 40 anos é tão forte que é quase impossível vislumbrar a qualidade de
sua obra sem considerar o pano de fundo pessoal da mente que criou tão belos
poemas, ensaios, críticas e contos.

Órfão aos três anos de idade, Poe é criado por uma família adotiva com a qual
teria uma série de desavenças durante toda a vida, especialmente em relação
às dívidas com o jogo que o autor adquire no futuro. Alista-se no exército, mas

59
Literatura Norte-Americana

ao perceber que não se sujeita àquela vida cheia de regulamentações e ordem,


força sua dispensa e se lança no mundo da literatura. Começa a escrever para jor-
nais e assim adquire algum reconhecimento, mesmo sendo muito criticado por
ignorar temas que fossem ao encontro da literatura de cunho transcendental e
naturalista em voga no período.

Em 1838, Poe lança seu único romance: The Narrative of Arthur Gordon Pym,
a história das aventuras marítimas de um jovem, repleta de elementos misterio-
sos. A maior contribuição do autor para a prosa norte-americana, no entanto,
foi o seu talento como contista. Os contos de Edgar Allan Poe permanecem até
hoje como um marco na estruturação da narrativa, no uso preciso da linguagem,
na descrição do estado mental dos personagens e nos aspectos macabros dos
enredos. Bradbury e Roland assim definem os contos de Poe:
Discarding the properties of American space and time, the tales [...] seek an imaginary world in
which to function. Thus they, too, refuse that employment of familiar American life that Emerson
demanded. Here then was an essential difference: for Poe, the imagination held rich symbolizing
potential, but it led toward obscurity and solitude. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 137)

O mundo das criações de Poe, portanto, é também um mundo de emoções


e da imaginação, mas a natureza de sua subjetividade é bem diferente: ele se
concentra no que é decadente, sombrio, se concentrando e enfatizando no que
amedronta o homem. A qualidade de suas criações é tão impressionante que
em muitas vezes os narradores enlouquecidos de seus contos foram confundi-
dos com o próprio autor. Um dos mais fascinantes exemplos da capacidade de
Poe em descrever a atormentada mentalidade de seus personagens/narradores
é o parágrafo inicial do conto The Black Cat:
For the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor
solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their
own evidence. Yet, mad am I not – and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-
day I would unburthen my soul. My immediate purpose is to place before the world, plainly,
succinctly, and without comment, a series of mere household events. In their consequences,
these events have terrified – have tortured – have destroyed me. Yet I will not attempt to
expound them. To me, they have presented little but Horror. (POE, 2007, p. 19)

O narrador, que está às vésperas da execução da sentença de pena de morte


por ter assassinado a esposa, afirma que sua narrativa não é produto de sonho
nem de devaneios de um louco. Ele afirma que o que contará será apenas uma
série de eventos domésticos, mas do tipo que destruíram a sua vida. A ruptura
do inconsciente também é presente em The Tell-Tale Heart:
TRUE! – nervous – very, very dreadfully nervous I had been and am; but why will you say that I
am mad? The disease had sharpened my senses – not destroyed – not dulled them. Above all
was the sense of hearing acute. I heard all things in the heaven and in the earth. I heard many
things in hell. How, then, am I mad? Hearken! and observe how healthily – how calmly I can tell
you the whole story. (POE, 2007, p. 3)

60
A prosa romântica

Novamente, o personagem/narrador aqui nega sua loucura, embora o tom


da narrativa ilustre uma mente desesperada, capaz de ouvir “muitas coisas no
inferno”. Essa habilidade que Poe tem de aguçar o interesse do leitor ao colocá-
lo em contato direto com a esfera psíquica de seus protagonistas é o que torna
seus contos únicos.

A importância de Edgar Allan Poe também em muito se deve ao seu papel


na criação e afirmação de um dos mais populares gêneros literários do mundo
contemporâneo: o romance policial. The Murders in Rue Morgue, um conto de
1841, é considerada a primeira história de detetive moderna ao estabelecer as
regras que ditariam o gênero: um crime misterioso, um investigador perspicaz
em busca do assassino (Auguste Dupin, um dos grandes personagens de Poe),
o uso do raciocínio lógico para se chegar à solução do caso, e a revelação final
do responsável seguida da explicação metodológica do detetive. Arthur Conan
Doyle, que anos depois criaria o célebre investigador Sherlock Holmes, deve em
muito a Poe sua popularidade.

Em suas brilhantes críticas literárias para jornais da época, Poe reconhece em


Nathaniel Hawthorne (1804-1864) outro mestre da prosa do século XIX. Hawthorne,
mais um membro do renascimento literário da Nova Inglaterra, foi inicialmente
um seguidor do pensamento transcendentalista (chegando até mesmo a viver em
uma vila utópica criada para aqueles que acreditavam na filosofia estabelecida por
Emerson), mas que depois soube como nenhum outro escritor estabelecer uma
conexão entre a mentalidade do protestantismo calvinista que formou o país com
aspectos mais sombrios da imaginação romântica.

A obra-prima de Nathaniel Hawthorne é também o primeiro grande romance


escrito nos Estados Unidos: The Scarlet Letter (A Letra Escarlate). Tratando do amor
adúltero entre um pastor e a personagem Hester Prynne, uma mulher casada de
sua congregação, The Scarlet Letter é um romance histórico que serve ao mesmo
tempo como uma análise e um acerto de contas de Hawthorne com sua herança
puritana. Seu mais famoso ancestral foi o magistrado John Hathorne, um impla-
cável juiz que teve papel fundamental no episódio dos julgamentos das bruxas
de Salem. Essa mancha no passado é, de certa forma, análoga à imensa letra “A”
da cor vermelha que Hester Prynne tem de carregar no peito para indicar o seu
adultério.

O romance é o ápice do talento criativo de Hawthorne e onde o autor aperfei-


çoa seu estilo. Uma característica central de sua obra é uma escrita alegórica, re-
pleta de símbolos, que geralmente remonta a um estudo da moral e da habilida-

61
Literatura Norte-Americana

de que o homem possui de compreendê-los. É geralmente na tradição puritana


que o autor vai encontrar o arsenal de símbolos tão presente em sua literatura:
The puritan imagination interested Hawthorne not just as a historical subject but because it
raised the essential moral issues of his writing, indeed of his existence as a writer. He returned to
it again and again in his stories and essays [...] The result was symbolic creation, where the moral
and religious principles behind the initial allegory do not die in reductive translation but become
imbued with the strange contradictions of human life. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 147)

Dessa forma, é possível dizer que essa criação simbólica, que é característica
de seu estilo, não é apenas uma sucessão de metáforas e alegorias remetendo
a lições de moral. O autor transforma e dá vida a esses símbolos ilustrando pro-
fundamente o aspecto psicológico de seus personagens. A escolha pelo período
puritano em algumas de suas histórias se deve, em grande parte, ao seu interes-
se pela ambiguidade presente na época, e que vai servir de reflexo para repre-
sentar a duplicidade da consciência e do comportamento humano.

Essa ambiguidade se revela na obra de Hawthorne de diferentes maneiras:


as dúvidas e as certezas protestantes, a redenção e a queda do homem, o ima-
ginativo e o material, o comunitário e o individual, o aspecto soturno do gótico
e a bondade divina e, especialmente, o pecado e a culpa opondo-se à retidão
e à salvação. É no meio dessa atmosfera dual que o autor constrói seus perso-
nagens, encontrados geralmente num momento de dúvida que vai abalar suas
ideias sobre a moral cristã.

Especialmente em seus contos, os personagens de Hawthorne não conseguem


ler os símbolos apresentados em sua totalidade, e daí sua dificuldade em convi-
ver em um mundo moralmente complexo. A solução, desse modo, acaba sendo a
punição ou o isolamento. O melhor exemplo disto está no conto Young Goodman
Brown, no qual Hawthorne alia um tema polêmico do período puritano dos Estados
Unidos (a comunhão maligna na floresta) com uma escrita tensa, misteriosa, reple-
ta de elementos góticos (o pôr do sol, um ser estranho da floresta que pode ser o
próprio demônio, etc). A simbologia moral cristã está presente de forma clara nos
nomes dos personagens principais: o jovem Goodman Brown (o “bom homem”)
e sua esposa, Faith (“fé” em inglês). Ao se dirigir no meio da noite para a floresta
e lá encontrar as pessoas de sua vila, tidas como cristãos exemplares, envolvidas
num ritual satânico, Goodman Brown vê sua certezas desabarem. No entanto, ao
perceber que a própria Faith (símbolo máximo de sua fé) também está envolvida
no episódio, o personagem entra em transe, acorda só no meio da mata e, até o
momento de sua morte, é atormentado pelas visões que teve – reais ou não.

Com uma riqueza de descrição psicológica e uma escrita alegórica fundada nas
bases do puritanismo, Hawthorne permanece até hoje como o responsável pelo
62
A prosa romântica

amadurecimento da prosa norte-americana através de seus romances e contos.


Assim como Poe, sua contribuição para a variedade narrativa de uma literatura
em fase de consolidação deixou um legado para os autores que os seguiram.

Hawthorne serviu de inspiração para outro grande autor das letras norte-
-americanas no século XIX – Herman Melville (1819-1891), de quem foi conselhei-
ro e amigo. Pouco reconhecido em sua época, o verdadeiro valor da literatura de
Melville só veio a ser compreendida no início do século XX, quando o gosto mo-
derno finalmente revestiu de glórias e penetrou fundo nas esferas de obsessão
na qual o autor arquitetou boa parte de suas narrativas.

Durante muito tempo a obra de Melville foi vista como mera literatura de
aventura, uma perspectiva reducionista que em muito reduzia a complexidade
de seus romances e contos. Isso se deu porque inicialmente seus trabalhos mais
populares tinham como tema peripécias no mar que retratavam experiências
vividas pelo próprio autor. Nascido em Nova York, Melville vê a família perder
tudo quando o pai vai à falência. Depois de uma curta carreira no magistério, o
autor embarca em um navio e parte durante boa parte de sua vida em trabalhos
relacionados à vida marítima.

Seus trabalhos iniciais, de tom autobiográfico, fazem relativo sucesso pelo


exotismo dos eventos narrados e pela curiosidade do público em saber dos inci-
dentes vividos pelo autor. É quando Melville decide se entregar à investigação da
presença do mal na natureza (inclusive a humana) com uma simbologia adquirida
através da herança gótica de Hawthorne que ele cria sua obra-prima: Moby-Dick,
um do clássicos da literatura norte-americana e mundial lançado em 1851.

Moby-Dick começou a ser escrito como mais um romance em que Melville


daria um relato pessoal de suas aventuras no mar. Mas as leituras de Hawthorne
e Shakespeare, juntamente com a necessidade de confrontar um espírito de
inocência que supostamente predominava na época, levou o autor a investigar
as regiões mais obscuras da mentalidade humana. O romance se concentra
basicamente em três personagens: Ishmael, um jovem marinheiro e narrador;
Ahab, o capitão do navio Pequod, e a enorme baleia branca que dá título ao
romance. Ahab é obcecado por Moby-Dick, que já destruiu seu antigo navio e
arrancou uma de suas pernas – por isso parte numa procura atormentada para
se vingar e matar a baleia.

Essa grande saga em busca de Moby-Dick adquire ares mitológicos na escrita


de Melville, que usa a própria realidade como tela para pintar um arcabouço de
símbolos em que é central o embate entre o homem e a natureza: “The nature of

63
Literatura Norte-Americana

good and evil, the power of will to defy fate, the validity of those insights which
contradict the apparent laws of experience, the eternal conflict of God and
Nature in which man in caught – these are the issues that are raised by Ahab’s
defiance.” (SPILLER, 1967, p. 73)

Todos esses temas de certa forma evidenciam a dualidade presente no pen-


samento transcendentalista do século XIX. A ênfase na individualidade pode
aproximar o homem de Deus e da natureza, mas nem sempre essa aproximação
é benéfica. O autoconhecimento pode levar à descoberta de traços assustadores
da personalidade que desafiam a própria compreensão. E esse é um dos fatores
que fazem da jornada de Ahab em busca da vingança uma viagem à procura de
seu próximo self – e aí se encontra a dimensão trágica de Moby-Dick.

Texto complementar
Young Goodman Brown (trecho)
(HAWTHORNE, 2001)

Young Goodman Brown came forth at sunset into the street at Salem villa-
ge; but put his head back, after crossing the threshold, to exchange a parting
kiss with his young wife. And Faith, as the wife was aptly named, thrust her
own pretty head into the street, letting the wind play with the pink ribbons
of her cap while she called to Goodman Brown.

“Dearest heart,” whispered she, softly and rather sadly, when her lips were
close to his ear, “prithee put off your journey until sunrise and sleep in your
own bed to-night. A lone woman is troubled with such dreams and such
thoughts that she’s afeard of herself sometimes. Pray tarry with me this night,
dear husband, of all nights in the year.”

“My love and my Faith,” replied young Goodman Brown, “of all nights in
the year, this one night must I tarry away from thee. My journey, as thou
callest it, forth and back again, must needs be done ‘twixt now and sunrise.
What, my sweet, pretty wife, dost thou doubt me already, and we but three
months married?”

“Then God bless you!” said Faith, with the pink ribbons; “and may you find
all well when you come back.”

64
A prosa romântica

“Amen!” cried Goodman Brown.“Say thy prayers, dear Faith, and go to bed
at dusk, and no harm will come to thee.”

So they parted; and the young man pursued his way until, being about
to turn the corner by the meeting-house, he looked back and saw the head
of Faith still peeping after him with a melancholy air, in spite of her pink
ribbons.

“Poor little Faith!” thought he, for his heart smote him. “What a wretch
am I to leave her on such an errand! She talks of dreams, too. Methought as
she spoke there was trouble in her face, as if a dream had warned her what
work is to be done tonight. But no, no; ‘t would kill her to think it. Well, she’s
a blessed angel on earth; and after this one night I’ll cling to her skirts and
follow her to heaven.”

With this excellent resolve for the future, Goodman Brown felt himself
justified in making more haste on his present evil purpose. He had taken a
dreary road, darkened by all the gloomiest trees of the forest, which barely
stood aside to let the narrow path creep through, and closed immediately
behind. It was all as lonely as could be; and there is this peculiarity in such a
solitude, that the traveller knows not who may be concealed by the innume-
rable trunks and the thick boughs overhead; so that with lonely footsteps he
may yet be passing through an unseen multitude.

“There may be a devilish Indian behind every tree,” said Goodman Brown
to himself; and he glanced fearfully behind him as he added, “What if the
devil himself should be at my very elbow!”

His head being turned back, he passed a crook of the road, and, looking
forward again, beheld the figure of a man, in grave and decent attire, seated
at the foot of an old tree. He arose at Goodman Brown’s approach and walked
onward side by side with him.

“You are late, Goodman Brown,” said he. “The clock of the Old South was
striking as I came through Boston, and that is full fifteen minutes agone.”

“Faith kept me back a while,” replied the young man, with a tremor in
his voice, caused by the sudden appearance of his companion, though not
wholly unexpected. […]

65
Literatura Norte-Americana

Dicas de estudo
O filme A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Tim Burton, 1999), apesar de al-
gumas mudanças na história originalmente concebida por Washington Irving,
é uma interessante releitura da virada do século dos Estados Unidos. Repleta
de uma simbologia gótica que surgiria na literatura norte-americana posterior-
mente com Edgar Allan Poe, a produção retrata de forma criativa as tradições
folclóricas alemãs incorporadas por Irving na narrativa norte-americana.

A obra de J. HAYES, Kevin. The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe.


(Ed.), New York: Cambridge University Press, 2002 é um estudo vasto sobre a com-
plexidade da produção desse gênio atormentado. Abordando desde aspectos bio-
gráficos à contribuição de Poe para a cultura popular contemporânea, é um traba-
lho que lança luz sobre uma das figuras mais misteriosas da literatura mundial.

Atividades
1. De que forma o movimento romântico europeu contribuiu para o desenvol-
vimento da literatura dos Estados Unidos no século XIX?

66
A prosa romântica

2. Como a filosofia transcendentalista ajudou a definir uma literatura essencial-


mente norte-americana?

67
A poesia romântica

A literatura norte-americana produzida no século XIX foi profundamen-


te marcada pela influência do movimento romântico europeu. A expressão
de emoções, a aproximação com a natureza e a linguagem simples foram
características herdadas especialmente do Romantismo inglês. Nos Esta-
dos Unidos, essas marcas românticas foram aliadas a um forte sentimento
nacional, à releitura de contos folclóricos e à filosofia transcendentalista.
Mesmo assim, é importante mencionar que o Romantismo europeu teve
como expressão máxima do seu desenvolvimento a poesia. Os grandes
nomes do movimento romântico inglês (Wordsworth, Coleridge, Blake)
eram poetas e é através de suas obras que se pode ter acesso às principais
ideias desse estilo literário.

Nos Estados Unidos, portanto, a influência romântica auxilia no surgi-


mento de uma safra de poetas nunca antes vista no país. São vozes únicas
que, com um estilo próprio, oferecem diferentes perspectivas para se
observar a literatura norte-americana e também a nação. Juntas, porém,
servem como estímulo para enriquecer uma visão nacional usando a lin-
guagem e a forma poética de uma maneira nova e bem particular.

Nomes como Edgar Allan Poe, Walt Whitman e Emily Dickinson cons-
truíram, no século XIX, uma estrutura poética cujo lirismo ecoa até hoje
na produção literária do país. A contribuição de seus trabalhos foi funda-
mental para que os Estados Unidos encontrassem uma expressão subjeti-
va que representasse seus anseios nacionalistas e seu desejo de produzir
uma literatura representativa de toda a nação.

A poesia de Edgar Allan Poe


Um dos pontos altos da poesia norte-americana foi com as obras de
Edgar Allan Poe (1809-1849). Mestre do conto e da ficção no século XIX, o
trabalho poético de Poe também deixou uma marca definitiva na literatu-
ra do período. Além de seu impressionante talento lírico (que infelizmen-
te só viria a ser totalmente reconhecido após sua morte), Poe também
Literatura Norte-Americana

contribuiu com uma teoria poética para os Estados Unidos que durante muito
tempo ecoou nos trabalhos de autores não só norte-americanos, mas também
europeus.

Um dos conceitos centrais de Poe sobre a natureza poética é o que procura


definir o próprio conceito de poesia. Para o autor, a essência do trabalho poé-
tico encontra-se na poesia em si – na sua estrutura, composição e leitura. Não
haveria a necessidade de constituir o significado da poesia com relação a um
conceito de verdade exterior a ela:
The simple fact is, that, would we but permit ourselves to look into our own souls, we should
immediately there discover that under the sun there neither exists nor can exist any work more
thoroughly dignified – more supremely noble than this very poem – this poem per se – this
poem which is a poem and nothing more – this poem written solely for the poem’s sake. (POE
In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 131)

Essa noção de que um poema é um poema e “nada mais” afasta as obras de


Poe de uma verdade exterior que precisaria necessariamente estar atrelada a seu
trabalho. Isso afetaria profundamente a composição poética, pois marcaria a as-
censão de um certo moralismo que certamente prejudicaria a qualidade imagi-
nativa de sua produção. O verdadeiro valor da poesia encontra-se nela própria.

A poesia de Poe tem como síntese o tormento e a melancolia causada pela


aproximação de uma esfera sobrenatural ao tema da beleza e da paixão. É nesse
espaço limítrofe que o poeta vai traçar toda uma rede simbólica que em muito
vai influenciar especialmente poetas franceses do fim de século e vai servir de
base para um forte movimento simbolista após a morte de Poe. A atmosfera
altamente imaginativa e um tanto surreal de suas obras em muito se distingue do
transcendentalismo, que aproxima o homem da atmosfera natural que o cerca.
Por isso, a obra de Poe é considerada visionária – além de escrever os poemas, o
poeta ainda descrevia seu método de composição.

O melhor exemplo disso é The Raven (O Corvo). Um dos poucos poemas de


Poe reconhecidos durante sua vida, este trabalho se tornou o símbolo máximo
da obra do autor. O eu lírico de The Raven em muito se assemelha aos narradores
dos contos de Edgar Allan Poe: ele encontra-se no limite entre a sanidade e a
loucura, é assombrado por um evento do passado e está inserido num contexto
de profunda melancolia.

The Raven é um poema narrativo cuja ação principal se desenrola em apenas


uma noite, quando o narrador encontra-se lendo para tentar esquecer a morte
de sua amada, Lenore. Primeiramente, ele escuta um barulho como se alguém
estivesse a bater à sua porta, mas ao abri-la, não encontra ninguém. A seguir, ele

70
A poesia romântica

escuta outras batidas, dessa vez mais fortes, na janela. Ao investigar o som, um
corvo entra no seu quarto e vai pousar diretamente no busto de mármore da
deusa Pallas em cima de sua porta:
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But with mien of lord or lady, perched above my chamber door.
Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door,
Perched, and sat, and nothing more.

Inicialmente, o narrador acha divertido o inusitado da cena e, quase como


piada, pergunta ao pássaro o seu nome, ao que o corvo responde: “nevermore”,
ou seja, “nunca mais”:
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum
of the countenance it wore, “Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no
craven, Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore. Tell me what thy
lordly name is on the Night’s Plutonian shore.” Quoth the raven, “Nevermore.”

Surpreso pela capacidade de fala do animal, o narrador presume que aquela


deva ser a única expressão que o corvo consegue emitir, provavelmente apren-
dida por causa de um antigo dono que assim o ensinou. Ele acredita então que,
assim como amigos que já partiram de sua vida, o corvo também partirá, ao que
ao pássaro responde: “Nevermore”. Essa palavra servirá como refrão do poema, e
a partir de então para toda a pergunta e comentário feita pelo narrador o corvo
responderá“Nevermore”. A atmosfera sobrenatural do poema se torna mais clara,
com o ar do quarto se tornando pesado e o personagem sentindo a presença de
anjos, cada vez mais atormentado pela ausência de sua amada. Ao perguntar ao
corvo se ele um dia se reencontraria com Lenore, ele responde “Nevermore”.

O narrador então se enraivece e pede ao corvo para retornar para o lugar de


onde veio:
“Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, upstarting – “Get thee back into the
tempest and the Night’s Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul
spoken! Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door! Take thy beak from out
my heart, and take thy form from off my door!”

O pássaro então responde mais uma vez:“Nevermore”. E assim o poema termina,


provavelmente com o pássaro ainda em cima do busto de mármore no momento
em que o narrador conta sua história, afirmando que a sua alma nunca mais se tor-
naria livre da sombra daquele corvo presente em seu quarto e na sua vida.
A leitura de The Raven, no entanto, é praticamente indissociável da leitura de
um dos mais significativos ensaios de Edgar Allan Poe, The Philosophy of Compo-
71
Literatura Norte-Americana

sition, de 1846. Esse texto tem ao menos duas funções fundamentais que ajudam
a mapear o método e o pensamento do autor: organizar uma teoria crítica em
relação à escrita da poesia e servir de análise para The Raven. Com esse ensaio,
o autor procurou mostrar o processo de criação de sua obra mais famosa não
como um produto da inspiração ou meramente associado a sentimentos intuiti-
vos (teoria em voga durante o Romantismo), mas sim como fruto de intenso tra-
balho e raciocínio lógico, chegando a comparar o poema a uma equação mate-
mática: “It is my desire to render it manifest that no one point in its composition
is referrible either to accident or intuition – that the work proceded, step by step,
to its completion with the precision and rigid consequence of a mathematical
problem.” (POE In: McMICHAEL et al., 2001, p. 605)
Usando então o método de criação de The Raven como melhor exemplo, Poe
estabelece em The Philosophy of Composition uma série de regras através das
quais a poesia de qualidade seria produzida.
Primeiramente, o autor afirma que todo trabalho literário deve ter um limite
sobre sua extensão, portanto ele não deve ultrapassar the limit of a single sitting,
ou seja, o leitor deve ser capaz de ler uma obra entre o momento em que decide
sentar para lê-la e antes de levantar-se. Portanto, um número de linhas ideal para
um poema seria 108 linhas. Sobre o tema final de um trabalho poético, não havia
dúvidas para Poe de que este era a beleza. E a forma mais completa de manifes-
tação da beleza é através de um tom triste e melancólico.
No poema, o efeito artístico que melhor representa essa atmosfera seria
o refrão, mas esse refrão consistiria na repetição de uma palavra, aplicada de
formas variadas – daí o constante uso da palavra nevermore. No entanto, teria
que haver uma razão plausível para que a palavra fosse continuamente repeti-
da, e Poe afirma que imediatamente lhe veio a ideia de uma criatura irracional
responsável pela repetição de nevermore. O poeta pensou primeiro em um pa-
pagaio, a escolha mais natural, mas em seguida escolheu definitivamente pelo
corvo por ser um animal cuja conotação sinistra condizia mais com o tom do
poema. Como uma grande estrutura arquitetônica, Poe já possui então os pi-
lares de sua poesia construída de forma completamente racional e metódica: “I
had now gone so far as the conception of a Raven – the bird of ill omen – mono-
tonously repeating the one Word, ‘Nevermore’, at the conclusion of each stanza,
in a poem of melancholy tone, and in length about one hundred lines.” (POE In:
McMICHAEL et al., 2001, p. 608)
Poe passa então a discutir o tópico do poema. Considerando que o tom esco-
lhido para o poema é o da melancolia, não havia dúvida de que o assunto central
de The Raven seria a morte. Para o autor, a forma mais poética de se abordar a
72
A poesia romântica

morte é relacionando-a a bela mulher. A partir daí, ele vai passo a passo anali-
sando as estratégias temáticas estruturais através das quais resolveu construir o
poema, desde a organização das estrofes à presença do busto da deusa Pallas.

É interessante notar que Edgar Allan Poe, em The Philosophy of Composition,


constrói uma narrativa baseada em princípios lógicos assim como vários dos
personagens que se encontram à beira da loucura em seus contos. É através do
raciocínio totalmente estruturado que o narrador de The Philosophy of Compo-
sition planeja sua poesia, assim como de certa forma os narradores da ficção de
Poe planejam seus crimes (The Tell-Tale Heart) ou a investigação sobre eles (The
Murders of Rue Morgue). Porém, fato é que o grande protagonista desse famoso
ensaio de Poe é o próprio escritor: “The importance of the piece is its penetration
of the poetic process and its protagonist: the writer himself, in his imaginative
quest for meaning and signification.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 136)

Walt Whitman:
a busca por uma voz norte-americana
Essa visão racional e trágica da poesia encontrou representação na literatura
norte-americana nos trabalhos de Edgar Allan Poe, mas não foi a única. Os ideais
transcendetalistas ainda eram muito fortes e muito se questionava se haveria
uma forma poética ideal que servisse para representar os Estados Unidos em
sua totalidade. A resposta viria quase 10 anos depois da publicação do ensaio
de Poe, com um livro de poesias que não só vai marcar a maturidade artística da
produção literária norte-americana, mas também vai revolucionar a poesia do
país: Leaves of Grass (Folhas na Relva), de Walt Whitman.
Walt Whitman (1819-1892) é um dos nomes mais influentes da literatura nor-
te-americana. Seu trabalho foi definitivo para a criação de uma poesia ao mesmo
tempo inovadora e clássica, onde a nação poderia se identificar e avaliar a rique-
za de uma linguagem repleta de frescor e vitalidade, assim como o jovem país
que lhe deu origem. Leaves of Grass, sua obra-prima, permanece o mais impor-
tante trabalho poético produzido por norte-americano e um dos mais estuda-
dos da língua inglesa.
Diferentemente de Edgar Allan Poe, que em muito se opunha às ideias presen-
tes na filosofia transcendentalista, Whitman procurou em sua poesia se aproximar
do imaginário poético apresentado por Ralph Waldo Emerson, o principal nome do
transcendentalismo. Ficou famosa a história em que Emerson recebeu pelo correio
um livro de poesia de um Whitman ainda desconhecido. Em resposta, ele escreveu:
73
Literatura Norte-Americana

I am not blind to the worth of the wonderful gift of Leaves of Grass [...] I find incomparable things
said incomparably well [...] I find the courage of treatment that so delights us and which large
perception only can inspire [...] I greet you at the beginning of a great career, which yet must have
had a long foreground somewhere, for such a start. (EMERSON, In: SPILLER, 1967, p. 74)

Emerson, o profeta das letras, reconhecia então em Walt Whitman uma nova
voz digna de levar adiante o legado do transcendentalismo. No entanto, Whitman
iria muito além – de muitas formas, o trabalho do poeta serviria de ponte para
unir diferentes esferas da experiência norte-americana com uma forma (como
disse Emerson) “incomparável”. É com Whitman que a tradição romântica vai se
aliar a temas do estilo realista em ascensão no fim do século XIX; seu trabalho vai
aproximar uma sensibilidade rural à agitada vivência urbana dos Estados Unidos;
suas poesias marcaram um encontro entre aspectos abertamente sexuais com
os tons fúnebres da Guerra Civil. Em resumo: a obra de Walt Whitman vai ser a
comunhão de um espírito individualista único com a amplitude dos diferentes
homens e mulheres que habitam os Estados Unidos.

Esse “início de uma grande carreira”, como afirmou Emerson, não parecia ter
nenhuma base sólida aparente que indicasse que ali estava a nascer um dos
mais significativos trabalhos da história da literatura norte-americana. Primei-
ramente porque em 1855, quando a primeira edição de Leaves of Grass foi pu-
blicada, Whitman já tinha 36 anos. Nascido em Nova York, o então futuro poeta
não pertencia claramente a nenhuma tradição literária. Trabalhou como editor,
jornalista e professor por um certo período antes que, com seu próprio dinheiro,
imprimisse e publicasse Leaves of Grass, originalmente com 12 poemas. O traba-
lho vendeu pouco, mas Whitman insistiu numa segunda edição, que foi lançada
no ano seguinte com 20 poemas adicionais. O livro chamou muita atenção na
época pelos já mencionados elogios de Emerson e pela natureza “obscena” de
sua poesia, como nesse trecho de Song of Myself:
Tenderly will I use you curling grass,
It may be you transpire from the breasts of young men,
It may be if I had known them I would have loved them,
It may be you are from old people, or from offspring taken soon out of their mothers’ laps.
And here you are the mothers’ laps.

Ao falar tão abertamente sobre “peitos transpirantes de rapazes” ou “crian-


ças retiradas do colo de mulheres”, a poesia de Whitman não estava de acordo
com o gosto da época, o que fez com que seu trabalho fosse muito criticado
inicialmente.

Leaves of Grass, contudo, foi escrito e reescrito por Whitman durante toda a
sua vida. Outras edições do livro foram lançadas, com diversos poemas adicio-
nados ou alterados. A recepção foi altamente positiva primeiramente na França
74
A poesia romântica

(assim como também ocorreu com a obra de Edgar Allan Poe), para depois ter
seu valor amplamente reconhecido nos Estados Unidos. Mesmo depois de um
derrame que o deixou seriamente incapacitado em 1873, Whitman continuou a
aperfeiçoar Leaves of Grass e a versão final do livro foi publicada praticamente ao
mesmo tempo em que o autor faleceu. O pequeno livro que tinha inicialmente
12 poemas terminou com quase 400. E aquele autor que Emerson disse que teria
uma grande carreira a sua frente havia se tornado crucial no desenvolvimento da
poesia norte-americana.

A principal inovação de Whitman na poesia foi a abolição de convenções po-


éticas no que diz respeito à forma. Suas obras eram em verso livre, ou seja, não
existe um padrão predefinido para rimas ou organização das estrofes. Isso ga-
rantiu aos poemas presentes em Leaves of Grass uma liberdade para a exposição
do “eu lírico” como nunca antes na literatura norte-americana. A novidade estéti-
ca de Whitman também está presente no seu uso da linguagem, que em alguns
poemas pode tender ao exótico ou até mesmo ao vulgar. Assim, os poemas de
Whitman são característicos de um vigor próprio que tanto fascinou ou ultrajou
leitores e críticos do século XIX.

A tradição dos ideais transcendentalistas na poesia de Walt Whitman está en-


raizada especialmente na ênfase da questão do self em sua literatura. Em nenhum
poema isso se faz mais claro do que nos primeiros versos de Song of Myself:
I celebrate myself, and sing myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.

Esse “eu” do poema não deve ser confundido com o próprio Walt Whitman –
ele seria na verdade uma representação de um “eu”, de uma individualidade pre-
sente em cada ser humano. É como se fosse um “eu” múltiplo, que serve como
símbolo para a própria essência da humanidade.

Esse “eu” poético representado em Song of Myself também ultrapassa os limites


de apenas uma figura central, ou um ego individualista completo em si. O poema
também é um épico que estabelece uma relação em que a própria América fun-
ciona como reflexo do self, e o individual e o universal estão perenemente liga-
dos: “My tongue, every atom of my blood, form’d from this soil, this air, Born here
of parents born here from parents the same, and their parents the same, I, now
thirty-seven years old in perfect health begin, Hoping to cease not till death.”

Portanto, ao dizer que o solo e o ar foram responsáveis por formar cada


átomo de seu corpo, alia a voz do “eu” à voz da terra. No decorrer de seus versos,

75
Literatura Norte-Americana

Song of Myself continua a ilustrar cada elemento individual como símbolo das
massas que garantem o futuro democrático dos Estados Unidos, assim como são
os direitos democráticos das massas que dão legitimidade a cada cidadão para
exercer sua individualidade.

A obra de Whitman estabelece uma poesia norte-americana que é capaz de


aproximar os anseios de cada ser (inclusive os sexuais) com o potencial demo-
crático de uma jovem nação. Os poemas de Leaves of Grass são essenciais no
estabelecimento de uma voz lírica autenticamente norte-americana, e encon-
trarão ecos em vários outros momentos da literatura do país. Um exemplo é a
chamada Geração Beat que, no final dos anos 50, busca uma maior liberdade na
exploração de temas que reflitam o estado de espírito da nação, especialmen-
te nos aspectos sociais e sexuais. Autores do movimento como Jack Kerouac e
Allen Ginsberg rompiam com as convenções literárias do período e, assim como
Whitman no século XIX, criavam trabalhos que tentavam conectar esse novo self
norte-americano (nesse caso, pós-Segunda Guerra Mundial) a um país com uma
efervescente produção cultural.

Emily Dickinson: a poesia de cunho metafísico


Se Walt Whitman deu origem a um discurso poético que representou a
realidade dos Estados Unidos de forma completa, podemos dizer que Emily
Dickinson (1830-1856) foi a mãe da poesia moderna norte-americana. No entanto,
é curioso pensar nesses dois grandes poetas como um par, já que há muito
pouco em comum entre eles além de terem produzido sua obra no século XIX.
Onde Whitman é épico e grandioso Dickinson é íntima e minimalista; enquanto
Whitman se volta para o mundo externo e suas constantes mudanças, Dickinson
se concentra no mundo interno e nos conflitos de sua própria personalidade.

Emily Dickinson é a autora que os leitores acreditam conhecer através de


seus poemas sobre a morte, a natureza, a solidão, o amor, a derrota, mas cuja
vida enigmática continua a intrigar até os mais dedicados biógrafos. Nascida
em Amherst, no estado de Massachusetts, ela fez de sua cidade o seu mundo,
reduzindo no decorrer da vida a sua presença social, se limitando somente à
sua casa, ao seu quarto. A imagem de Dickinson, a reclusa, capaz de criar um
universo através de uma meditação interiorizada, está eternamente atrelada à
sua produção poética.

A opção por uma vida solitária (teve poucos amores, nenhum que tenha efe-
tivamente se tornado um relacionamento) faz com que Dickinson não tenha
76
A poesia romântica

lugar no mundo exterior, uma pária (excluída) por opção. Sua obra é um reflexo
artístico do comportamento da autora, já que é difícil lançar sobre ela o rótulo
de “romântica”, “transcendentalista” ou “calvinista”. As influências de diferentes fi-
losofias e estilo de escrita se fazem presentes em seus poemas, mas nunca o de-
finem em totalidade. Ao ler a poesia de Emily Dickinson, sempre se tem acesso
primeiramente ao universo íntimo do “eu lírico”, o que torna o trabalho da autora
único em todo o século XIX.

Há sem dúvida algo do transcendentalismo na poesia de Dickinson, especial-


mente porque ela teve acesso à obra de Emerson, chegando até mesmo a assis-
tir a uma de suas palestras. Especialmente importante parece ter sido o conceito
do self-reliance para autora, já que muitos de seus poemas são o reflexo de uma
dependência profunda do “eu” interior, pouco interessado em opiniões externas.
Isso afetou até mesmo a publicação de sua obra, já que apenas oito poemas seus
foram lançados em vida. Apenas em 1890, seus trabalhos (encontrados arquiva-
dos depois de sua morte) foram finalmente publicados.

Nem o transcendentalismo de Emerson e nem a tradição puritana de sua


cidade, contudo, encerram a complexidade da obra de Emily Dickinson. Talvez
a convenção artística mais notória em seus poemas tenha sido o tom metafí-
sico presente em autores ingleses como John Donne, de quem ela era grande
leitora. Assim, noções como a beleza e a morte tornam-se os grandes temas de
sua poesia, que aliados a uma sensibilidade incomum, são capazes de descrever
emoções complexas com poucas palavras. Robert E. Spiller resume bem essa
marca da escrita de Dickinson:
Like John Donne and the English metaphysical poets whom she so resembled, Dickinson’s
understanding of the meaning of words was subtle and complex, her ear for music could
assimilate discord as well as concord, and her images were drawn from life and from books with
a sure but infinitely authority. Only the most complex art could be made to include the depths
and variety of those things for which she demanded expression. (SPILLER, 1967, p. 127)

Esta “arte complexa” mencionada por Spiller, no entanto, não foi amplamente
reconhecida quando o trabalho de Dickinson veio a público. Como outros auto-
res norte-americanos do século XIX, Dickinson mostrou que estava além de seu
tempo e que somente um gosto mais apurado seria capaz de avaliar a totalidade
de sua riqueza literária. Sua poesia se aproximava mais de um gosto moderno, e
é por isso que seus temas e seu estilo vão ser consagrados a partir das primeiras
décadas do século XX.

A poesia de Dickinson era notadamente distinta do individualismo grandio-


so de Whitman e da complexidade mística de Poe. A primeira característica que

77
Literatura Norte-Americana

chama a atenção em seus poemas é que eles são na maioria das vezes bem curtos,
e há neles um senso de urgência peculiar, auxiliado por uma escrita pontual, como
se reprimida e reclusa como a própria autora. Muitas vezes, esses poemas se as-
semelham a charadas ou hinos protestantes e tem um ritmo um tanto irregular,
com rimas nem sempre perfeitas e uma gramática truncada, o que fez com que
muito críticos da época vissem Dickinson como uma autora inculta.

O uso da pontuação nos poemas de Emily Dickinson é característico. Suas


frases são às vezes incompletas, e o uso do travessão para ditar o ritmo subverte
convenções da norma culta que em muito enriquecem o significado dos versos.
Sem títulos, seus poemas são reconhecidos ou por uma numeração ou simples-
mente pelo primeiro verso. Um caso exemplar é Wild Nights:
Wild nights – Wild nights!
Were I with thee
Wild nights should be
Our luxury!

Futile – the winds –


To a heart in port –
Done with the Compass –
Done with the Chart!

Rowing in Eden –
Ah, the sea!
Might I but moor – Tonight –
In Thee!

O poema pode ser interpretado como o desejo de concretização de um amor


reprimido. Ao ser realizado, esse amor teria características selvagens (“wild”) e
sem controle (“done with the Compass!”). Assim, o eu lírico se encontraria no pa-
raíso (“rowing in Eden”), e o amor fluiria como uma explosão tão violenta como
o mar (“Ah, the sea!”). É interessante o uso dos travessões, como se os versos se
encontrassem incompletos assim como o “eu lírico” encontra-se incompleto sem
o seu amor. O ritmo também é peculiar, com rimas alternadas e nem sempre
com o som vogal se repetindo (“winds”/”compass”).

A complexidade da poesia de Dickinson se faz presente num estilo altamen-


te concentrado, em que cada verso é altamente significativo. Sua linguagem
muitas vezes é paradoxal, chegando a aliar o concreto e o abstrato para cons-
truir imagens incomuns, porém marcantes. Um bom exemplo é encontrado no
poema I’m nobody:
I’m nobody! Who are you?
Are you nobody, too?
Then there’s a pair of us – don’t tell!
They’d banish us, you know.

78
A poesia romântica

How dreary – to be – somebody!


How public, like a frog
To tell your name the livelong day
To an admiring bog!

Esse poema parece refletir claramente o desejo de reclusão por parte da


autora, decidindo ser uma “ninguém” (“nobody”). A primeira surpresa do poema
é a pergunta direta ao leitor, “Você é ninguém, também?” (“Are you nobody
too?”). Já presumindo que a resposta será positiva, o eu lírico pede para que o
leitor não se revele como “ninguém” já que ambos poderiam então ser banidos
(“They”d banish us, you know”). A segunda surpresa do poema é a aversão suge-
rida a ser “alguém” (“somebody”), pois assim a pessoa teria de ser pública “como
um sapo” (“How public, like a frog”). A comparação aqui entre “público” e “sapo”
combina elementos bem diferentes, numa relação intrigante. Isso só se explicará
nos dois versos seguintes, quando ficará clara a criatividade de Dickinson, pois
assim como um sapo, as pessoas que são “alguém” têm sempre que ficar repetin-
do seu nome para se fazerem conhecidas – assim como os sapos coaxam – para
um pântano de admiradores (“to an admiring bog!”).

Um dos temas mais presentes da poesia de Emily Dickinson é a morte – e a


variedade da abordagem utilizada pela autora impressiona:
Her greatest lyrics concentrated on the theme of death, which she typically personified as a
monarch, a lord, or a kindly but irresistible lover, yet her moods varied wildly, from melancholy, to
exuberance, grief to joy, leaden despair to spiritual intoxication. (McMICHAEL et al., 2001, p. 605)

Ao ilustrar a morte como uma figura sedutora, Dickinson aproxima a ideia


do amor à da finitude, o que torna a aceitação do fim da vida mais tolerável e às
vezes até mesmo desejável. Muitas vezes, a morte é vista em seus poemas com
uma certa naturalidade mórbida:
I died for beauty – but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room. –

He questioned softly “Why I failed?”


“For Beauty,” I replied –
“And I – for truth – Themself are One –
We bretheren are,” he said.

And so, as kinsmen met a night,


We talked between the rooms –
Until the moss had reached our lips –
And covered up – our names –

Esse poema em muito se aproxima do estilo do Romantismo inglês – especial-


mente a segunda geração de poetas românticos como John Keats, para quem a

79
Literatura Norte-Americana

relação entre beleza e verdade é inalterável – e dos poemas metafísicos de John


Donne. Nessa mórbida alegoria sobre morte e companheirismo, o eu lírico narra
o momento em que é enterrado, para logo depois perceber que outra figura é
logo em seguida colocada na tumba ao seu lado (chamado de “quarto”). O eu
lírico afirma que morreu pela beleza, enquanto aquele a seu lado diz que morreu
pela verdade e, por isso, é como se fizessem parte de uma mesma irmandade
(“bretheren”), já que a beleza e a verdade são uma coisa só. As duas vozes do
poema então estabelecem um diálogo por algumas noites até que o limo do
além-túmulo cobrisse suas bocas e seus nomes. Nota-se aqui que uma interes-
sante dualidade: aqueles que acreditam na beleza e na verdade até mesmo ao
morrerem encontram uma companhia fraterna. A morte, todavia, acaba saindo
vencedora, pois lhes impede que exerçam sua identidade através de seus dois
maiores símbolos: a voz (“until the moss had reached our lips”) e seus nomes
(“and covered up – our names”).

A poesia norte-americana encontra-se no final do século XIX num estágio


de amadurecimento até então inédito. O talento dessa geração, contudo, só
viria a ser reconhecido completamente décadas depois, com a consagração de
Poe, Whitman e Dickinson como as grandes vozes líricas capazes de ao mesmo
tempo compreender o potencial literário da nação e representá-lo de maneira
individual e única.

Texto complementar

The raven
(POE, 2001)

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,


Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
“ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door;

Only this, and nothing more.”

Ah, distinctly I remember, it was in the bleak December,


And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.

80
A poesia romântica

Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow


From my books surcease of sorrow, sorrow for the lost Lenore,
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore,

Nameless here forevermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain


Thrilled me – filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating,
“ ‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber door,
Some late visitor entreating entrance at my chamber door.

This it is, and nothing more.”

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,


“Sir,” said I, “or madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is, I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you.” Here I opened wide the door –

Darkness there, and nothing more.

Deep into the darkness peering, long I stood there, wondering, fearing
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word,
“Lenore?”, This I whispered, and an echo murmured back the word,

“Lenore!” Merely this, and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,


Soon again I heard a tapping, something louder than before,
“Surely,” said I, “surely, that is something at my window lattice.
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore.
Let my heart be still a moment, and this mystery explore.

“ ‘Tis the wind, and nothing more.”

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven, of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But with mien of lord or lady, perched above my chamber door.

81
Literatura Norte-Americana

Perched upon a bust of Pallas, just above my chamber door,

Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,


By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
“Though thy crest be shorn and shaven thou,” I said, “art sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore.
Tell me what the lordly name is on the Night’s Plutonian shore.”

Quoth the raven, “Nevermore.”

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,


Though its answer little meaning, little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door,
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,

With such name as “Nevermore.”

But the raven, sitting lonely on that placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered; not a feather then he fluttered;
Till I scarcely more than muttered,”Other friends have flown before;
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.”

Then the bird said, ”Nevermore.”

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,


“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master, whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster, till his songs one burden bore –
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore

Of “Never – nevermore.”

But the raven still beguiling all my fancy into smiling,


Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore,
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore

82
A poesia romântica

Meant in croaking, “Nevermore.”

Thus I sat engaged in guessing, but no syllable expressing


To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er,
But whose velvet violet lining with the lamplight gloating o’er

She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.
“Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee – by these angels he hath
Sent thee respite – respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, O quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!”

Quoth the raven, “Nevermore!”

“Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!


Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate, yet all undaunted, on this desert land enchanted –
On this home by horror haunted – tell me truly, I implore:
Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me I implore!”

Quoth the raven, “Nevermore.”

“Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil!


By that heaven that bends above us – by that God we both adore –
Tell this soul with sorrow laden, if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden, whom the angels name Lenore –
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?”

Quoth the raven, “Nevermore.”

“Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, upstarting –
“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul spoken!
Leave my loneliness unbroken! – quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”

Quoth the raven, “Nevermore.”

83
Literatura Norte-Americana

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting


On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming.
And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

Shall be lifted – nevermore!

Dicas de estudo
Uma forma interessante de se estudar o poema The Raven, de Edgar Allan
Poe, é através das traduções que ganhou para o português. O livro O Corvo e
Suas Traduções, organizado por Ivo Barroso, traz versões da obra-prima poética
de Poe traduzidas por nomes como Machado de Assis e Fernando Pessoa. Este
trabalho é uma oportunidade valiosa para se compreender a riqueza da forma
e da escolha de palavras utilizadas pelo poeta norte-americano, assim como as
diferentes maneiras que a linguagem do poema ganhou na língua portuguesa.

O filme Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir, aborda como um profes-
sor de literatura com ideias inovadoras desafia a estrutura conservadora de uma
escola ao mesmo tempo em que inspira os alunos a viverem a vida em sua com-
pletude. As aulas deste professor, interpretado por Robin Williams, são em sua
maioria voltadas para os poetas e pensadores do Romantismo norte-americano,
como Walt Whitman e Henry David Thoreau. Os comentários feitos com relação
aos textos românticos são iluminadores, lançando uma nova perspectiva aos
clássicos do século XIX.

Atividades
1. De acordo com as ideias de Edgar Allan Poe em The Philosophy of Composi-
tion, quais as características de um bom poema?

84
A poesia romântica

2. Como Walt Whitman e Emily Dickinson inovaram na escrita da poesia norte-


-americana?

85
A Guerra Civil
e a literatura correspondente
O século XIX foi um período de transição para os Estados Unidos. Ao
passar de treze colônias beirando o Oceano Atlântico para uma grande
nação estabelecida economica e politicamente, o país necessitaria passar
por uma série de ajustes, negociações e conflitos para que tivesse a
grandeza que hoje tem garantida. Das transformações e fatos históricos
ocorridos no período, nenhum foi mais importante do que a Guerra Civil,
também conhecida como Guerra de Secessão. Este conflito armado, que
opôs os estados do Norte aos estados do Sul, foi crucial para que todo o
território norte-americano se organizasse em prol dos mesmos objetivos,
com o intuito de promover o crescimento e desenvolvimento do país.

Outra razão para a importância da Guerra Civil foi a discussão sobre


o papel dos escravos na sociedade norte-americana, e é durante este
embate entre o Norte e o Sul que a escravidão é abolida. É também duran-
te a guerra, o maior conflito armado da história dos Estados Unidos, com
quase 600 mil mortos, que surge um dos mais populares presidentes do
país: Abraham Lincoln.

A Guerra Civil também marcou profundamente grande parte da literatu-


ra norte-americana em meados do século XIX e nas décadas seguintes. Há
praticamente toda uma tradição literária que se relaciona ao conflito – seja
ela relacionada às terríveis consequências diretas da guerra para a popula-
ção, ou até mesmo servindo de causa para que o confronto se iniciasse.

De qualquer forma, é inegável o reconhecimento da Guerra Civil nor-


te-americana como o evento histórico que melhor serviu para definir os
rumos da nação. É através dessa guerra que os ideais da população se
fortalecem e os Estados Unidos finalmente ganham uma uniformidade
social, política e econômica digna do nome do país.

Diferenças entre o norte e o sul dos EUA


A América do século XIX está entre uma das mais ricas e complexas regiões
domundo. Desdea Declaraçãode Independênciaem 1776, os Estados Unidos
Literatura Norte-Americana

são um país em constante crescimento em diferentes aspectos. Territorialmente, a


ideia do Destino Manifesto continua sendo o argumento principal para a expansão
territorial do país por toda a parte continental da América do Norte. Assim, regiões
consideradas pouco civilizadas ou atrasadas teriam acesso aos princípios básicos
da democracia norte-americana, como a liberdade e o direito à felicidade. Sendo
assim, até aproximadamente 1860 o país adquire novos territórios através de
compras, negociações e até mesmo guerras – é assim que a Louisiana, a Flórida e o
Texas, por exemplo, passam a fazer parte dos Estados Unidos.

Economicamente, a chegada de estrangeiros para trabalhar na região norte


do país alavancou o crescimento da indústria e do comércio. Na região sul, quase
que completamente baseada na produção agrária, a colheita de tabaco vinha
gradualmente sendo substituída pelo plantio do algodão, que em pouco tempo
tornou-se o produto-base do sistema econômico local. Essa prosperidade na
economia, no entanto, dependia do escoamento da produção e da movimenta-
ção do dinheiro por uma nação que começava a adquirir proporções continen-
tais. Assim, foi criado um extenso esquema de rodovias capaz de ligar o centro
industrial do leste à região do meio-oeste e, posteriormente, à costa do Pacífico,
o que proporcionou uma revolução no transporte e um crescimento fenomenal
das riquezas do país.

Diante dessa imensa expansão, tornava-se cada vez mais difícil manter uma
unidade por uma vasta região que, com a adesão da Califórnia aos Estados
Unidos, se estendia de um oceano a outro. Especialmente quando os estados do
Norte e do Sul, já mais historicamente consolidados, eram tão diferentes levan-
do em consideração os aspectos políticos, econômicos e sociais. Qual modelo as
novas regiões conquistadas deveriam seguir? Encontra-se aqui então a principal
razão para a Guerra Civil norte-americana: a profunda distinção e o conflito de
interesses entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos.

O antagonismo entre o Norte e o Sul não surge, contudo, às vésperas da


Guerra Civil. Na verdade ele já vinha sendo delineado desde a independência
da nação, quando os grandes proprietários de terra sulistas acreditavam que os
Estados Unidos seriam um país de pequenos fazendeiros, focado na agricultura,
enquanto a elite nortista propunha um país centrado na produção manufaturei-
ra e no comércio. No século XIX, essas diferenças, a princípio de cunho aparente-
mente econômico, ganham tintas ideológicas e políticas.

O norte dos Estados Unidos (basicamente a região da Nova Inglaterra, o nor-


deste e alguns estados do meio-oeste) possuía aproximadamente 22 milhões de
habitantes, a maior parte da população do país. Essa área possuía um clima mais
88
A Guerra Civil e a literatura correspondente

frio, por isso a agricultura era limitada a pequenas fazendas cuja produção era
de subsistência. A força da economia nortista se encontrava nas suas fábricas e
manufaturas, com a produção de tecidos, ferramentas, armas, entre outros pro-
dutos. O comércio também era bem desenvolvido, o que garantia que grande
parte dos produtos manufaturados se voltasse para o mercado interno.

A mão de obra utilizada nas pequenas fazendas e especialmente na indústria


consistia de muitos imigrantes europeus (irlandeses em particular) que partiram
para a América em busca de melhores oportunidades e condições. A classe do-
minante do Norte, por outro lado, era formada de empresários e comerciantes,
que de certa forma investiram em um maior grau de desenvolvimentos urbano
e social da região. A crescente classe média também garantia um maior avanço
ao dinamismo comercial e cosmopolita do Norte.

O sul dos Estados Unidos (compreendido entre a Carolina do Norte até o


Texas) possuía em torno de nove milhões de habitantes, com aproximadamente
quatro milhões desse total constituído de negros escravos. Os estados do sul
tinham a mão de obra escrava e negra como sua principal força de trabalho, e
não pretendia abandonar essa estrutura de produção. O trabalho escravo era
largamente usado na agricultura da região, que formava a base da economia su-
lista. O esquema de plantio era chamado de plantations – grandes propriedades
rurais controladas pela elite latifundiária responsável pelo plantio de um único
produto agrícola que depois seria voltado à exportação. Inicialmente usado para
a plantação de tabaco, os latifúndios rapidamente se voltaram durante o século
XIX para a produção de algodão, especialmente devido à crescente procura do
mercado inglês por essa matéria-prima e pela invenção da máquina descaroça-
dora de algodão, que em muito facilitou o processo de seu manuseio.

Apesar de possuir uma população menor em relação ao Norte, o Sul tinha


mais peso político no governo federal. Historicamente, os membros da elite su-
lista é que foram, de forma geral, os responsáveis pelo processo de independên-
cia dos Estados Unidos, se tornando os Pais da Nação, como George Washington
e Thomas Jefferson (que eram proprietários de latifúndios que se utilizavam de
trabalho escravo). Assim, os congressistas do Sul tinham muita influência nas
decisões que afetariam todo o país. Na questão tributária, por exemplo, os re-
presentantes sulistas muito lutaram pela redução nas taxas de importação, já
que o Sul precisava adquirir produtos manufaturados de outros países devido
à ausência de uma forte indústria na região. Isso foi motivo de muitos conflitos
políticos com o Norte, que propunha um aumento nas taxas de importação para
que pudesse competir com as manufaturas estrangeiras.

89
Literatura Norte-Americana

No entanto, nenhuma questão foi mais importante para definir o antagonis-


mo entre as duas regiões dos Estados Unidos do que a escravidão. Enquanto
o Norte tinha um interesse claramente abolicionista, o Sul pretendia preservar
sua instituição escravocrata e senhorial, além de estendê-la aos novos territórios
conquistados. Esse conflito de interesses que se relacionava aos escravos, mas
que tinha inúmeros desdobramentos políticos, econômicos e sociais é que levou
ao desencadeamento da Guerra Civil.

A escravidão e os textos abolicionistas


A escravidão nos Estados Unidos existia desde os primórdios do período co-
lonial do país. Navios vinham da África e em 1650, contavam-se cerca de 300
escravos nas colônias. Em 1860, às vésperas da Guerra Civil, a população negra
e escrava, responsável pela maior parte da produção agrícola norte-americana,
chegava à praticamente quatro milhões.

Os negros inicialmente chegavam à América no chamado tráfico de escravos


triangular. De acordo com esse esquema, navios partiam da Inglaterra em dire-
ção à Àfrica com o objetivo de comprar escravos. Em seguida, eles eram trans-
portados para a América. Nas colônias norte-americanas, então, os negros eram
desembarcados e substituídos por produtos agrícolas que eram levados pelos
mesmos navios de volta à Inglaterra.

Essa estrutura de transporte de escravos só foi finalmente proibida em 1808


pelo governo norte-americano, e três anos depois a Inglaterra passou a decla-
rar como criminoso o tráfico de escravos realizado por navios britânicos. Essas
decisões, todavia, pouco serviram para enfraquecer a escravidão nos Estados
Unidos, que agora só precisava contar com a reprodução do imenso número de
quatro milhões de negros já em seu território.

A escravidão por si só já é uma situação indigna e brutal, mas é ainda mais


curioso pensar nessa questão quando inserida no contexto de um país cuja De-
claração de Independência afirma que todos os homens são criados iguais. No
entanto, há de se considerar que a independência americana foi um episódio
arquitetado prioritariamente pelas elites do país. O direito à vida, liberdade, e à
busca da felicidade não se estendia à população mais pobre, muito menos aos
negros. Primeiramente porque os negros não eram considerados pessoas, eles
eram considerados propriedade, e como tal garantiam o status daqueles que os
possuíam. A superioridade da raça branca era indiscutível, e só ela era digna de
tornar real o sonho americano.
90
A Guerra Civil e a literatura correspondente

Para o sul dos Estados Unidos, a escravidão já era parte inerente à sociedade
e uma das forças motrizes de sua economia. Em algumas regiões como a
Virgínia, a estrutura escravocrata já existia por um período de dois séculos no
ano de 1850. À medida que o século XIX prosseguia, ficava claro que o Sul e
Norte tinham ideias diferentes na forma que o país seria conduzido. Além
disso, os latifundiários sulistas não ficavam nada contentes com os altos lucros
(considerados excessivos) que a elite do Norte conseguia com o comércio de
algodão. Por outro lado, o Norte tinha certeza de que o Sul – sempre visto como
a região mais atrasada dos Estados Unidos – jamais se tornaria completamente
desenvolvido enquanto continuasse a se apoiar numa sociedade escravocrata.

Com a expansão territorial do país e o ingresso de novos estados à União, a es-


cravidão torna-se o tema central da discussão política norte-americana. O Sul in-
sistia que essas novas regiões deveriam basear-se na sua estrutura de escravidão
e de plantations, já que os latifundiários precisavam de novas terras para expandir
o cultivo do algodão, sua principal fonte de renda. O Norte, por outro lado, acredi-
tava que a instituição peculiar – como era ironicamente conhecida a escravidão –
era um símbolo do atraso, e por isso tinha uma proposta de indústrias e trabalho
assalariado para as novas regiões, que funcionariam como “solo livre”.

No Norte havia um crescente movimento abolicionista que muito ajudou a


mostrar a dura realidade do trabalho escravo para grande parte da população
norte-americana. Os grandes pensadores do transcendentalismo como Ralph
Waldo Emerson, por exemplo, se opunham veementemente contra a escravidão.
Alguns membros da sociedade acreditavam que, de forma gradativa, o trabalho
escravo seria extinto, especialmente a partir do fim do tráfico ultramarino no
início do século XIX e com uma negociação com os latifundiários sulistas. No
entanto, havia defensores mais radicais do abolicionismo, que pregavam o fim
imediato da escravidão.

Dentre os membros deste grupo mais ativo, um dos principais nomes é o de


William Garrison. Em 1831, Garrison funda o jornal abolicionista The Liberator,
que se ocupava exclusivamente da afirmação do antiescravismo e dos males aos
quais os negros eram submetidos. Dotado de um estilo de escrita extremado e
até mesmo sensacionalista, Garrison disse sobre a escravidão:
Assenting to the “self-evident truth” maintained in the American Declaration of Independence,
“that all men are created equal, and endowed by their Creator with certain inalienable rights
– among which are life, liberty and the pursuit of happiness,” I shall strenuously contend for
the immediate enfranchisement of our slave population. [...] I am aware, that many object to
the severity of my language; but is there not cause for severity? I will be as harsh as truth, and
as uncompromising as justice. On this subject, I do not wish to think, or speak, or write, with
moderation. No! no! [...] I will not equivocate – I will not excuse – I will not retreat a single inch

91
Literatura Norte-Americana

– AND I WILL BE HEARD. The apathy of the people is enough to make every statue leap from its
pedestal, and to hasten the resurrection of the dead. (O’CALLAGHAN, 2002, p. 47)

As frases bombásticas de William Garrison iriam exatamente diminuir a apatia


com relação ao tema da escravidão mencionada no artigo. Apesar de inicialmen-
te possuir apenas leitores negros livres (ou seja, um pequeno grupo), o jornal
The Liberator posteriormente passou a atrair um consistente grupo de leitores
brancos do norte do país.

Na literatura, nenhuma obra foi mais fundamental para a discussão sobre o


fim da escravidão do que Uncle Tom’s Cabin (A Cabana do Pai Tomás), de Harriet
Beecher Stowe. Publicado em 1852, foi o romance mais lido de todo o século
XIX, com mais de 300 mil cópias vendidas. Foi com o imenso apelo popular desse
livro que grande parte da população norte-americana teve acesso à crueldade
submetida aos escravos e à necessidade do estabelecimento de uma sociedade
totalmente livre.

Uncle Tom’s Cabin conta, de forma geral, a história da fuga da escrava Eliza e
seu filho depois de descobrir que ele seria vendido e separado dela. Escrito num
tom sentimental e melodramático muito popular na época, o livro serviu como
combustível para o movimento abolicionista por retratar os males que a servi-
dão humana causava aos escravos e por finalmente mostrar negros não como
propriedade, mas como pessoas dotadas de sentimento e identidade.

Inicialmente, o romance seria escrito como uma reação da autora contra a Lei
do Escravo Fugitivo de 1850. De acordo com essa lei, não só os escravos fugitivos
mas também aqueles que também os auxiliassem na fuga ou lhes oferecessem
asilo seriam severamente punidos. No entanto, à medida que foi desenvolvendo
a sua narrativa, o escopo de Uncle Tom’s Cabin foi aumentando, abordando a si-
tuação extremada dos escravos fugidos e até mesmo o suicídio das mães negras
ao serem separadas de seus filhos. O romance foi usado como base para diferen-
tes produções teatrais que apoiavam a causa abolicionista, e sua repercussão foi
tão grande que chegou a ser proibido no sul dos Estados Unidos.

Atualmente, o romance é muito criticado por ter dado origem a uma série de
estereótipos que em muito prejudicaram a imagem dos negros norte-america-
nos no decorrer dos anos. A figura do Uncle Tom (o velho escravo sofredor e fiel
ao seu proprietário branco) e da mammy (a empregada negra, gorda, e de voca-
bulário chulo) empregados no romance permanecem até hoje como exemplos
da forma preconceituosa que o negro pode ser retratado. Mesmo assim, não se
pode negar a importância do romance Uncle Tom’s Cabin para a humanização da
causa abolicionista para além da questão política.
92
A Guerra Civil e a literatura correspondente

A eleição de Abraham Lincoln, um jovem advogado do Kentucky (o que fazia


dele o primeiro presidente norte-americano nascido fora das treze colônias ori-
ginais) acirrou os ânimos entre o Norte e o Sul. Um dos mais populares presiden-
tes da história do país, Lincoln defendia o trabalho livre e o modelo nortista de
economia – industrial e baseado no comércio. Foi durante seu governo que os
Estados Unidos viveram o período mais sangrento de sua existência.

Em 1861, a Carolina do Sul decide se desligar dos Estados Unidos, seguida por
outros estados (Alabama, Flórida, Texas, Mississipi e Georgia), formando assim os
Estados Confederados da América, ou simplesmente Confederação. Sob a pre-
sidência de Jefferson Davis, o Sul resolve criar seu próprio governo, em que a
escravidão não corre o risco de ser abolida e os interesses dos grandes latifundi-
ários não são ameaçados.

O Norte então representa o lado da União, e assim vai ser conhecido durante
a guerra. É interessante notar que o termo guerra civil, geralmente aplicado a um
embate entre dois lados diferentes do mesmo do país para obter o seu contro-
le, parece não compreender o aspecto separatista do conflito. Daí a preferência
de alguns historiadores pelo termo Guerra de Secessão, ou seja, uma guerra de
separação. O Sul queria se tornar independente, enquanto o Norte não tinha
nenhum interesse nisso. Os estados do Sul, além de terem dívidas com os bancos
do Norte, também eram os principais fornecedores de matéria-prima para as in-
dústrias e manufaturas nortistas.

O conflito se inicia propriamente porque os estados da Confederação se


acharam no direito de apossar de fortes, bases navais e arsenais dos Estados
Unidos dentro de seus territórios. O estopim da guerra foi a exigência feita pelos
confederados de que as tropas da União saíssem do forte Sumter, na Carolina do
Sul. O presidente Lincoln então enviou um reforço de quase 80 mil soldados para
manter o forte seguro. Assim, a Guerra Civil norte-americana é declarada.

É interessante notar que tanto a União quanto a Confederação acreditavam


em uma guerra curta, em que o resultado seria rapidamente decidido a seu favor.
O conflito, contudo duraria ainda mais quatro anos. O Norte tinha claramente
uma maior vantagem: em número de soldados era bastante superior ao Sul,
além de possuir uma maior quantidade de suprimentos e a maioria das fábricas
de armas. O exército sulista, contudo, tinha dois aspectos centrais a seu favor:
além de possuir os mais competentes estrategistas militares do seu lado, tinha
um conhecimento maior do território, já que não era preciso invadir o Norte para
conquistar a independência, diferentemente do exército inimigo. Mais do que
tudo, a população do Sul acreditava que ao lutar na guerra estava defendendo
93
Literatura Norte-Americana

mais do que seus lares, mas suas próprias tradições. Portanto, mesmo em des-
vantagem, os soldados sulistas lutaram com muita determinação.

Mesmo que, de forma mais objetiva, a Guerra Civil tenha ocorrido por razões
políticas e econômicas, de certa maneira a causa moral do conflito foi a escravi-
dão. E durante todo o período das batalhas, a estrutura escravocrata ia perdendo
a força. Cada vez que uma tropa nortista invadia uma região confederada, um
enorme contingente de negros fugia das fazendas. Em 1862, Lincoln lança uma
versão preliminar da Proclamação de Emancipação e, em 1.º de Janeiro de 1863,
os escravos negros da América se tornam livres. Mesmo tendo um impacto ime-
diato reduzido, a libertação dos escravos foi uma questão vitoriosa para a União.

Em 1863, ocorre a maior batalha de toda a Guerra Civil: a Batalha de Gettys-


burg. Soldados da Confederação tentaram romper as linhas do exército da União
em Gettysburg, Pennsylvania, e o resultado foi o mais sangrento confronto de
toda a guerra, com aproximadamente 42 mil mortos. A Batalha de Gettysburg
também é considerada um momento decisivo da guerra, pois foi a partir dela
que a União passa a acumular um histórico de vitória e os exércitos Confedera-
dos passam a recuar.

Alguns meses após o fim da Batalha de Gettysburg, o presidente Lincoln reali-


zou no mesmo local onde havia ocorrido o confronto, aquele que é talvez o mais
famoso discurso da história norte-americana: o Discurso de Gettysburg. Inaugu-
rando um cemitério nacional onde estavam enterrados aqueles que deram sua
vida pela consolidação dos Estados Unidos, Lincoln proferiu um curto discurso,
mas cujo significado marcou profundamente o imaginário sobre a Guerra Civil.
Em seu trecho mais famoso, ele afirma:
The brave men, living and dead, who struggled here, have consecrated it, far above our poor
power to add or detract. The world will little note, nor long remember what we say here, but
it can never forget what they did here. It is for us the living, rather, to be dedicated here to the
unfinished work which they who fought here have thus far so nobly advanced. It is rather for us
to be here dedicated to the great task remaining before us – that from these honored dead we
take increased devotion to that cause for which they gave the last full measure of devotion –
that we here highly resolve that these dead shall not have died in vain – that this nation, under
God, shall have a new birth of freedom – and that government of the people, by the people, for
the people, shall not perish from the earth. (McMICHAEL et al., 2001, p. 1.014)

Em suas palavras, Abraham Lincoln invoca a memória daqueles que tão bra-
vamente lutaram pela preservação do país ao dizer que aqueles que ali morre-
ram não morreram em vão. Além disso, cita a herança cristã da América (“this
nation, under God”) e os principais valores que ditam as regras de sua sociedade
(“a new birth of freedom”). Porém, a passagem mais conhecida do Discurso de
Gettysburg é quando Lincoln afirma que o governo norte-americano é “of the

94
A Guerra Civil e a literatura correspondente

people, by the people, for the people” – ou seja, é do povo dos Estados Unidos
que surge a força da nação, é pelo povo que se luta na guerra e é para o povo que
se quer manter a união.

Em 1865, depois de uma série de derrotas, a Confederação declara sua rendi-


ção e a União garante que os Estados Unidos são apenas uma nação, em que o
trabalho livre e assalariado é presente em todos os estados. Mas o fim da guerra
foi o início de um longo e doloroso processo de reconstrução para o país, que
teria reflexos na literatura produzida a partir de então.

Consequências do conflito:
textos literários de temática da Guerra Civil
Com o fim da Guerra Civil, os Estados Unidos precisavam se reerguer como
uma nação forte. Para isso era necessária não só uma reconstrução em termos
estruturais mais práticos (especialmente cidades inteiras devastadas pelo con-
flito), mas também em termos políticos: a nação deveria se reerguer mais forte
e mais unida. Em 1864, Abraham Lincoln foi reeleito presidente, e seu principal
objetivo era a reestruturação do país. Em seu último discurso público, em abril
de 1865, o presidente afirmou:
[A reconstrução] será repleta de dificuldades. Ao contrário do que ocorre na guerra entre
nações independentes, não há um órgão autorizado com o qual possamos tratar. Nenhum
homem tem autoridade para renunciar à rebelião por outro homem. Devemos simplesmente
começar e prosseguir a partir de elementos desorganizados e discordantes. Nem é pouco,
como embaraço adicional, que nós, o povo leal, difiramos entre nós mesmos quanto ao
método, à maneira e aos meios da reconstrução. (WRIGHT, 2008, p. 207)

Lincoln, em sua fala, está mais do que alertando sobre o longo e complicado
processo à frente do país. Na verdade, ele também está se referindo a alguns
políticos que acreditavam que o Sul deveria sofrer uma série de medidas puni-
tivas por ter se separado da União e causado a guerra. O presidente era contra
a punição aos estados sulistas, pois assim a própria reconstrução dos ideais da
nação estaria comprometida.

No entanto, uma crise maior viria a surgir. Dias depois de proferir o discurso
acima, o presidente Lincoln leva um tiro enquanto assistia a uma peça em
Washington. O assassino era um extremista sulista chamado John Wilkes Booth,
que se ressentia da derrota da Confederação e considerava Lincoln um tirano. O
assassinato de Lincoln foi um duro golpe não só para a política e para toda uma
mentalidade norte-americana, como bem escreveu o poeta James Russel Lowell:

95
Literatura Norte-Americana

Nunca, antes daquela sobressaltada manhã de abril, uma multidão tão numerosa de homens
e mulheres derramara tantas lágrimas pela morte de alguém que nunca tinham visto, como se
com sua partida tivesse desaparecido também uma presença amiga, deixando suas vidas mais
frias e mais sombrias. Nunca um panegírico fúnebre foi mais eloquente do que aqueles olhares
de comiseração trocados por estranhos ao se encontrarem naquele dia. A humanidade havia
perdido alguém muito próximo. (LOWELL, In: CINCOTTA, 1994, p. 169-170)

Com a morte do presidente-símbolo da justiça e dos ideais norte-americanos,


a reconstrução do país se encontrou numa situação delicada. O vice-presidente
Andrew Johnson assumiu o cargo e, com ele, uma série de problemas decorridos
da Guerra Civil: os termos da reunificação sulista, a reconstrução das cidades
praticamente devastadas, a reestruturação da economia dos estados do Sul e a
definição do papel dos ex-escravos na sociedade pós-guerra.

De todos esses casos, a situação dos negros era a mais complexa. Embora a
escravidão tivesse terminado e alguns políticos republicanos apoiassem a causa
dos ex-escravos, os negros não eram vistos como iguais aos brancos, e a segrega-
ção racial se tornou uma característica da sociedade norte-americana, só sendo
questionada na segunda metade do século XX (ou seja, 100 anos depois) com os
movimentos de luta pelos direitos civis. Apesar da promulgação da 14.ª emenda
da Constituição em 1866, que tornava os negros cidadãos norte-americanos (in-
clusive dando a eles direito ao voto), o preconceito permaneceu muito forte no
país, dando origem até mesmo a organizações secretas que espalhavam violên-
cia contra os negros, sendo a mais famosa a Ku Klux Klan.

As tropas federais permaneceram no sul por um período de aproximadamen-


te 11 anos, e os estados sulistas foram governados por grupos pouco competen-
tes e corruptos nesse período. Ao término da reconstrução das cidades (o sul foi
a região mais afetada já que a Guerra Civil se deu no seu território), no entanto, a
situação não seria amplamente satisfatória:
Os republicanos, firmemente estabelecidos no Norte, abandonaram os eleitores do Sul, inclusive
seus adeptos negros. Isso permitiu que o Sul desarticulasse o programa de reconstrução muito
rapidamente. Os brancos tornaram-se uma vez mais dominantes e a estrita segregação das
raças continuaria até a segunda metade do século XX. (WRIGHT, 2008, p. 215)

Não foi só apenas a questão racial que teve de esperar até o século XX para
ser amplamente discutida. A maior parte da literatura produzida sobre a Guerra
Civil só veio a ser publicada anos depois do fim do conflito. As grandes vozes
literárias do período (Hawthorne, Whitman, Dickinson) estiveram à margem da
guerra, incluindo pouca ou nenhuma referência a ela em seus trabalhos. Não é à
toa que o mais importante texto produzido durante a Guerra Civil foi o Discurso
de Gettysburg feito por Abraham Lincoln, pois esse é o tipo de produção textual
que floresce no campo de batalha: discursos, canções de guerra, relatos de

96
A Guerra Civil e a literatura correspondente

soldados, sermões. Whitman teria afirmado: “The real war will never get into the
books.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 185)

Uma das primeiras obras a ser considerada uma reflexão profunda sobre a
Guerra Civil através da experiência direta de um soldado no campo de batalha foi
The Red Badge of Courage (O Emblema Rubro da Coragem), de Stephen Crane, pu-
blicado em 1896. Crane nasceu seis anos depois do fim do conflito, mas seu roman-
ce permanece até hoje um estudo da guerra em seu estado bruto, especialmente
porque o autor (mesmo não tendo presenciado a Guerra Civil) viu guerras muito
de perto trabalhando como correspondente jornalístico em Cuba e na Grécia.

The Red Badge of Courage é um dos primeiros trabalhos da fase realista da lite-
ratura norte-americana, e por isso tem uma abordagem verossímil e até mesmo
chocante que vai marcar época. Nunca um romance havia sido tão direto em
seu retrato da brutalidade da guerra. Mesmo que muitas vezes a narrativa evite
aspectos mais sangrentos e mórbidos, a vitalidade da descrição das batalhas
garante que a obra permaneça até hoje como o principal romance de guerra
norte-americano.

Os personagens do romance são em sua maioria anônimos, lutando por uma


causa coletiva que não compreendem totalmente e que, tentando se tornar
heróis românticos, acabam se deparando com o mais cruel realismo. Um deles
é o protagonista Henry Fleming, um jovem soldado que em dois dias de guerra
passa por momentos de extrema covardia até chegar a representar o mais alto
heroísmo. No entanto, a coragem de Fleming é mostrada não com tintas honra-
das, mas tratada como algo necessário à sobrevivência num mundo que perdeu
a noção do racional:
At the conclusion [...] the world Henry has at last come to terms with is hellish and irrational,
inhabited by smudged jabbering creatures“with their swaying bodies, black faces, and glowing
eyes, like strange and ugly fiends jigging heavily in the smoke.” The words Crane repeatedly
falls back upon to describe the man-made clamor of war are “wild”, “mad”, “insane”, “crazy”,
“delirium”, “enthusiasm”, “frenzy”, “frantic”. (AARON, 1987, p. 217)

É esta visão insana que torna The Red Badge of Courage o trabalho mais con-
tundente sobre a Guerra Civil norte-americana. A narrativa de Crane despe o
conflito das palavras pomposas e causas nobres que sempre foram associa-
das a esse evento histórico. A atmosfera de combate constante, mas também
altamente generalizada (poderia ser qualquer guerra, poderiam ser quaisquer
jovens soldados) são um retrato (que quer se fazer) fiel do período mais san-
grento da história dos Estados Unidos. Mas foi a partir da Guerra Civil que uma
nação realmente unida se lançou obstinadamente no caminho do sucesso e da
prosperidade.
97
Literatura Norte-Americana

Texto complementar

Uncle Tom’s Cabin


(STOWE, 2003)

It is impossible to conceive of a human creature more wholly desolate and


forlorn than Eliza, when she turned her footsteps from Uncle Tom’s cabin.

Her husband’s suffering and dangers, and the danger of her child, all
blended in her mind, with a confused and stunning sense of the risk she was
running, in leaving the only home she had ever known, and cutting loose
from the protection of a friend whom she loved and revered. Then there was
the parting from every familiar object – the place where she had grown up,
the trees under which she had played, the groves where she had walked many
an evening in happier days, by the side of her young husband – everything,
as it lay in the clear, frosty starlight, seemed to speak reproachfully to her,
and ask her whither could she go from a home like that?

But stronger than all was maternal love, wrought into a paroxysm of frenzy
by the near approach of a fearful danger. Her boy was old enough to have
walked by her side, and, in an indifferent case, she would only have led him
by the hand; but now the bare thought of putting him out of her arms made
her shudder, and she strained him to her bosom with a convulsive grasp, as
she went rapidly forward.

The frosty ground creaked beneath her feet, and she trembled at the sound;
every quaking leaf and fluttering shadow sent the blood backward to her heart,
and quickened her footsteps. She wondered within herself at the strength that
seemed to be come upon her; for she felt the weight of her boy as if it had been
a feather, and every flutter of fear seemed to increase the supernatural power
that bore her on, while from her pale lips burst forth, in frequent ejaculations,
the prayer to a Friend above – ”Lord, help! Lord, save me!”

If it were your Harry, mother, or your Willie, that were going to be torn
from you by a brutal trader, tomorrow morning, – if you had seen the man,
and heard that the papers were signed and delivered, and you had only from
twelve o’clock till morning to make good your escape – how fast could you
walk? How many miles could you make in those few brief hours, with the

98
A Guerra Civil e a literatura correspondente

darling at your bosom – the little sleepy head on your shoulder – the small,
soft arms trustingly holding on to your neck?

For the child slept. At first, the novelty and alarm kept him waking; but
his mother so hurriedly repressed every breath or sound, and so assured him
that if he were only still she would certainly save him, that he clung quietly
round her neck, only asking, as he found himself sinking to sleep:

“Mother, I don’t need to keep awake, do I?”

“No, my darling; sleep, if you want to.”

“But, mother, if I do get asleep, you won’t let him get me?”

“No! so may God help me!” said his mother, with a paler cheek, and a
brighter light in her large dark eyes.

“You’re sure, an’t you, mother?”

“Yes, sure!” said the mother, in a voice that startled herself; for it seemed to
her to come from a spirit within, that was no part of her; and the boy dropped
his little weary head on her shoulder, and was soon asleep. How the touch
of those warm arms, the gentle breathings that came in her neck, seemed to
add fire and spirit to her movements! It seemed to her as if strength poured
into her in electric streams, from every gentle touch and movement of the
sleeping, confiding child. Sublime is the dominion of the mind over the body,
that, for a time, can make flesh and nerve impregnable, and string the sinews
like steel, so that the weak become so mighty.

The boundaries of the farm, the grove, the wood-lot, passed by her dizzily,
as she walked on; and still she went, leaving one familiar object after another,
slacking not, pausing not, till reddening daylight found her many a long mile
from all traces of any familiar objects upon the open highway.

She had often been, with her mistress, to visit some connections, in the
little village of T —, not far from the Ohio river, and knew the road well. To go
thither, to escape across the Ohio river, were the first hurried outlines of her
plan of escape; beyond that, she could only hope in God.

When horses and vehicles began to move along the highway, with that
alert perception peculiar to a state of excitement, and which seems to be a
sort of inspiration, she became aware that her headlong pace and distracted

99
Literatura Norte-Americana

air might bring on her remark and suspicion. She therefore put the boy on
the ground, and, adjusting her dress and bonnet, she walked on at as rapid a
pace as she thought consistent with the preservation of appearances. In her
little bundle she had provided a store of cakes and apples, which she used
as expedients for quickening the speed of the child, rolling the apple some
yards before them, when the boy would run with all his might after it; and
this ruse, often repeated, carried them over many a half-mile.

After a while, they came to a thick patch of woodland, through which


murmured a clear brook. As the child complained of hunger and thirst, she
climbed over the fence with him; and, sitting down behind a large rock which
concealed them from the road, she gave him a breakfast out of her little
package. The boy wondered and grieved that she could not eat; and when,
putting his arms round her neck, he tried to wedge some of his cake into her
mouth, it seemed to her that the rising in her throat would choke her.

“No, no, Harry darling! mother can’t eat till you are safe! We must go on-
on-till we come to the river!” And she hurried again into the road, and again
constrained herself to walk regularly and composedly forward.

Dicas de estudo
O clássico E o Vento Levou é um dos filmes mais famosos a retratar as conse-
quências devastadoras da Guerra Civil para o sul dos Estados Unidos. Através
da saga de Scarlett O’Hara, o filme (baseado no romance de Margaret Mitchell)
traça um retrato do estilo de vida sulista antes e após o conflito, incluindo a rela-
ção com os escravos e a estrutura latifundiária.

O filme Deuses e Generais aborda o aspecto militar e político da guerra, desde


a agitação política sulista com o intuito separatista até as primeiras batalhas sig-
nificativas da Guerra Civil. Tratando de aspectos biográficos dos principais líde-
res militares do Norte e do Sul, o filme é rico na descrição do pano de fundo
histórico e também nas grandiosas cenas de guerra.

100
A Guerra Civil e a literatura correspondente

Atividades
1. Qual a importância do romance Uncle Tom’s Cabin para a Guerra Civil norte-
-americana?

2. Quais as principais consequências da Guerra Civil norte-americana?

101
O Realismo norte-americano

Após a fase de reconstrução que sucedeu a Guerra Civil, os Estados


Unidos tiveram o principal período de crescimento de sua história. Consi-
derando-se a economia, o desenvolvimento científico, a reorganização do
espaço social e os avanços na agricultura, o país vai ser marcado por uma
expansão em termos grandiosos que vai persistir de maneira praticamen-
te ininterrupta até a 1.ª Guerra Mundial.

Em termos territoriais, os Estados Unidos finalmente chegam à última


fronteira, se estabelecendo definitivamente no oeste. Para isso, dois ele-
mentos que mudaram toda a estrutura comercial da virada do século são
fundamentais: a máquina a vapor e as ferrovias. As planícies centrais da
América do Norte são ocupadas, e uma nova era de oportunidades se con-
figura para essa nação que vai do Atlântico ao Pacífico.

Esse desenvolvimento aparentemente sem limites, contudo, tem con-


sequências graves. O avanço industrial norte-americano e o crescimento
dos centros urbanos inauguram problemas sociais até então nunca vistos
no país. Enquanto surgem os primeiros magnatas em suas mansões nova-
-iorquinas, também aparece uma população extremamente pobre, traba-
lhando em condições indignas nas fábricas que garantem o progresso. Os
negros, mesmo sendo considerados cidadãos, são figuras à margem da
sociedade, segregados e sofrendo todo o tipo de discriminação. E mesmo
a expansão territorial dos Estados Unidos só vai existir devido ao extermí-
nio de grande parte das tribos indígenas que ocupavam há muito tempo
a região centro-oeste do país.

É nesse contexto de profundos contrastes que vai emergir uma nova


tradição literária norte-americana: o Realismo. Procurando representar a
realidade cotidiana da população, muitas vezes intrincada e complexa, a
literatura realista vai segurar um espelho para a América, revelando os seus
preconceitos e suas problemáticas. Os pontos de vista lançados sobre essa
fase dos Estados Unidos são variados: alguns autores, como Mark Twain,
vão se concentrar na escrita que concerne a aspectos regionais; certos es-
critores como Theodore Dreiser verão o país através de uma perspectiva
Literatura Norte-Americana

naturalista; enquanto Henry James usará o requinte narrativo para traçar um rico
panorama social do país.

As mudanças socioeconômicas
O fim da Guerra Civil em 1865 proporcionou não apenas uma mudança na
estrutura política norte-americana, mas também em sua proposta de modelo
econômico. Isso porque, com a vitória dos estados do Norte, a visão dos Esta-
dos Unidos como um país fundamentalmente agrário e baseado em latifúndios
(como sonhou Thomas Jefferson) tornou-se impraticável. O Norte, ao vencer a
guerra, impôs uma nova perspectiva para o país: uma economia baseada na in-
dústria e no comércio, nos avanços científicos e no desenvolvimento de uma so-
ciedade urbana, em que os resultados da Revolução Industrial ocorrida na Ingla-
terra algumas décadas antes fossem adaptados à realidade norte-americana.

A indústria tornou-se a principal força da economia norte-americana. De certa


forma, a Guerra Civil serviu para o progresso tecnológico das fábricas. Enquanto
o conflito se desenrolava, vários operários do Norte partiram para o campo de
batalha e a força de trabalho da região se viu diminuída. Por outro lado, era ne-
cessário que armas e roupas (entre outros produtos) fossem fabricadas. Assim, a
mecanização da produção mostrou-se a melhor solução, e como resultado desse
processo a organização do trabalho nos Estados Unidos jamais seria a mesma.

O trabalho manual, anteriormente indispensável à produção manufatureira,


foi substituído por máquinas. Trabalhadores passaram a ser vistos como menos
importantes que o maquinário industrial, de alto custo mas também extrema-
mente eficiente. Ainda assim, a população migrava para as grandes cidades em
busca de emprego. Surgem as grandes corporações, onde a relação entre em-
pregado e empregador é cada vez mais impessoal.

Certamente que esse salto industrial necessitava de muita matéria-prima. Em


especial as fábricas do ramo da siderurgia, já que para alavancar todo esse de-
senvolvimento, aço e ferro eram essenciais. A expansão para o oeste em muito
ajudou nesse sentido, pois novas descobertas geológicas revelaram à indústria
novas jazidas (em especial de minério de ferro) que serviriam de base para a
indústria siderúrgica do país. A produção de carvão também era imensa, o que
proporcionou a consolidação da máquina a vapor como a tecnologia-símbolo
do século XIX. Com ferro e carvão, os Estados Unidos tinham a sua industrializa-
ção garantida.

104
O Realismo norte-americano

Além da mão de obra e da matéria-prima, as indústrias do país também ne-


cessitavam de um volumoso investimento. Dados afirmam que “entre 1869 e
1898, estima-se que cerca de 13% da renda nacional foi aplicada na expansão da
indústria” (KARNAL et al., 2008, p. 154). Grande parte desse capital veio de alguns
empresários que em pouco tempo se tornariam os primeiros magnatas em solo
norte-americano – verdadeiros milionários, cujas fortunas acompanharam o
crescimento dos Estados Unidos em uma potência industrial. A origem dessas
riquezas, novamente, começa a ser delineada no período da Guerra Civil:
Alguns poucos – já ricos – ficaram riquíssimos após a guerra. O conflito favoreceu a concentração
de capital. Por exemplo: os banqueiros e empresários que haviam concedido empréstimos ou
firmado contratos vantajosos com o governo da União para o abastecimento dos soldados, a
construção de pontes ou estradas de ferro obtiveram grandes lucros e puderam ampliar seus
negócios. Também durante a guerra ocorreram várias fusões de empresas; o que a princípio
visava agilizar os transportes e as comunicações acabou engolindo as pequenas firmas,
favorecendo os monopólios e fortalecendo grandes capitalistas. (JUNQUEIRA, 2001, p. 96)

Embora boa parte desses empresários tenha lucrado bastante com o período
de reconstrução pós Guerra Civil e outros tenham feito fortuna como banquei-
ros, vários dos homens que fizeram milhões investindo na alavancada industrial
dos Estados Unidos tiveram origem humilde, até mesmo na pobreza. No entan-
to, com uma visão empreendedora, trabalho duro, muita ambição e em muitas
vezes, exploração da força de trabalho, eles serviram como personificação do
“sonho americano”.

Cada grande indústria norte-americana parecia estar concentrada nas mãos


de um só homem: o ferro e o aço tinham como barão Andrew Carnegie; as fer-
rovias eram controladas por William H. Vanderbilt; e mais especialmente, John
D. Rockefeller tornou-se um dos homens mais ricos do mundo controlando a
indústria petrolífera do país. Essa riquíssima produção industrial sob controle
de poucos se fez possível através de um engenhoso esquema de monopólios
e cartéis. Surgem as corporações – grandes empresas com uma imensa reserva
de capital, continuidade de controle e segurança de investimento. Essas corpo-
rações geralmente se associavam em trustes – organizações que controlavam
tanto a produção quanto os mercados. Concentradas em trustes, as corporações
tinham mais força para combater a concorrência, além de ter vantagens em ne-
gociações trabalhistas. Dessa forma, esses “capitães da indústria”, como eram
chamados, controlaram não só a produção das fábricas norte-americanas mas
toda a economia dos Estados Unidos.

No final do século XIX, o lucro vindo das indústrias já era superior ao da agri-
cultura, o que consolidava de vez o país como potência desenvolvida. Nas pri-
meiras décadas do século XX, mais de um terço da produção industrial do pla-

105
Literatura Norte-Americana

neta vinha dos Estados Unidos. Contudo, a indústria por si só não seria capaz de
proporcionar o salto rumo ao desenvolvimento dado pelo país naquele período.
O investimento nas fábricas caminhou lado a lado a importantes invenções e
uma próspera indústria de patentes possibilitou aos norte-americanos estarem
sempre na vanguarda da tecnologia.

Um dos nomes mais significativos do período é o de Thomas Edison. Inventor


e empresário, Edison vai ser a personificação do norte-americano trabalhador e vi-
sionário que, isolado em seu laboratório, vai criar tecnologias que vão revolucionar
o mundo. A mais importante dela, a lâmpada elétrica, vai mudar a forma com que a
sociedade se organizava. Suas descobertas com relação à eletricidade vão se fazer
presentes no cotidiano dos Estados Unidos e garantir o sucesso de sua indústria.

Entre outras inúmeras invenções norte-americanas do período (a máquina


de escrever, a máquina registradora etc), chama atenção o especial desenvolvi-
mento de tecnologias que facilitassem a comunicação, como a invenção do te-
légrafo e o aperfeiçoamento do telefone. Para um país que adquirira dimensões
continentais, era essencial que todas as regiões fossem interligadas através de
uma rede de comunicação mais rápida que os meios de postagem tradicionais.
Mas se o problema de envio de informações estava de certa forma resolvido,
como se solucionaria a questão do envio da imensa produção industrial para
diferentes áreas de tão vasto país?

Surgem então as ferrovias. Juntamente com o aço e o carvão, as ferrovias são


o símbolo do período de crescimento industrial dos Estados Unidos. Foi através
delas que comerciantes, compradores e empresários foram conectados por todo
o país. Além disso, as ferrovias proporcionaram o crescimento de centros comer-
ciais como Pittsburgh e Chicago. Em 1869, é criada a primeira ferrovia transcon-
tinental, ligando o Atlântico ao Pacífico. Em 1889, os Estados Unidos têm o mais
extenso sistema ferroviário do mundo.

As cidades cresciam como nunca antes, e Nova York se torna a capital desse
novo mundo urbano e industrializado. Essa expansão das metrópoles se deu em
grande parte devido à grande onda de imigração ocorrida no final do século XIX.
Irlandeses, eslavos, poloneses e outros povos europeus partiram para a América
em busca de prosperidade e oportunidades de emprego – desde então, o país
foi visto como a “terra das oportunidades”. Em 1910, mais de um terço da popu-
lação das grandes cidades norte-americanas era estrangeira.

Diante desse progresso urbano e tecnológico, não havia espaço para um estilo
de vida tido como inferior e atrasado – o indígena. Os índios norte-americanos

106
O Realismo norte-americano

(ou “Native-Americans”) habitavam em sua maioria a região centro-oeste do


país, nas chamadas “Grandes Planícies”. A princípio, essa área era usada apenas
como passagem para aqueles que dirigiam para a costa do Pacífico. No entanto,
quando se descobriu o potencial da região para a criação de gado e, posterior-
mente, ouro foi encontrado, o centro-oeste foi ocupado pelo homem branco.
Isso criou constantes conflitos com os nativos que, embora tivessem algumas
vitórias, foram finalmente massacrados ou confinados a reserva indígenas em
áreas rochosas que não interessavam aos rancheiros ou mineradores.
Nas cidades, os negros estavam longe de ser considerados “cidadãos” em
toda a dimensão da palavra. Eles permaneciam em subempregos, viviam em
condições deploráveis e segregados pela sociedade. Vários operários também
trabalhavam em condições insatisfatórias nas fábricas, e a diferença entre os
mais ricos e os mais pobres nunca havia sido tão grande.
É nesse choque entre a prosperidade e a miséria que vai se localizar grande parte
da literatura realista. Procurando retratar não só o século XIX, mas toda a realidade
de forma fiel e objetiva, esse estilo literário vai quebrar com a tradição romântica,
tão forte no imaginário norte-americano, para fundar uma nova forma de escrita.

Uma voz nacional: Mark Twain


O termo realismo tem sua origem na palavra latina res, que significa “coisa”.
Uma literatura realista, portanto, seria aquela ligada diretamente às coisas do
mundo. Desde que surgiu, o termo Realismo (especialmente na literatura) é visto
como o oposto ou até mesmo uma reação ao Romantismo. O que a escrita ro-
mântica teria de transcendental e emotiva, a escrita realista teria de racional e
material. Enquanto os românticos concentravam sua narrativa em aventuras dra-
máticas ou no culto ao passado, os realistas se ocupavam dos problemas reais de
pessoas comuns, usando o contexto histórico do presente.
A primeira vez que um estilo literário foi considerado “realista” foi na França,
em meados do século XIX. De acordo com uma revista literária exatamente in-
titulada Réalisme, esse estilo literário pode ser definido da seguinte forma: “Art
should give a truthful representation of the real world, [...] it should study con-
temporary life meticulously in order to provide a exact, complete, and sincere
reproduction of the social milieu, and [...] it should do so dispassionately, imper-
sonally and objectively.” (DAVIDSON; WAGNER-MARTIN, 1995, p. 749)
Esse desejo em reproduzir meticulosamente a realidade social pode parecer
para leitores do século XXI um tanto ingênua, já que um dos pontos centrais dos
107
Literatura Norte-Americana

estudos da literatura atualmente é de que forma a subjetividade se faz presen-


te na ficção. No entanto, é importante lembrar que a escrita realista, por mais
que tente se fazer objetiva e impessoal, também é a criação de um autor – com
seus pontos de vista, preconceitos e opiniões. Portanto, as obras pertencentes
ao gênero realista não são meramente relatórios do que ocorre no mundo fac-
tual, mas reflexões lançadas sobre ele. Podemos resumir essa ideia da seguinte
forma: “Realists do more than passively record the world outside; they actively
create and criticize the meanings, representations, and ideologies of their own
changing culture.” (BELL, 1993, p. 7)

Essa changing culture (mudança cultural) citada por Bell cabe perfeitamen-
te no contexto dos Estados Unidos ao final do século XIX. Com a passagem do
modelo econômico do país para um esquema industrial, a consolidação de um
estilo de vida urbano e uma reorganização das classes sociais (agora incluindo
negros e imigrantes), a paisagem da sociedade norte-americana mudou profun-
damente – e a literatura acompanhou essa transição de perto.

A Guerra Civil foi o evento nos Estados Unidos que marcou uma transição de
um ideal romântico para uma perspectiva realista. Ao fim do período mais san-
grento da história norte-americana, ficou evidente que os princípios transcen-
dentais de Ralph Waldo Emerson, os devaneios macabros de Edgar Allan Poe ou
as temáticas puritanas de Nathaniel Hawthorne não mais representavam a maior
parte do interesse artístico. A guerra deu ao país um choque de realidade, e a pro-
dução literária do período percebeu que narrar fielmente os novos aspectos de-
correntes do conflito era uma das melhores formas de lidar com essa realidade.

A mudança no estilo literário causou diretamente uma mudança também na


forma com que a literatura era produzida. À medida que os escritores buscavam
descrever objetivamente a realidade, perceberam que o romance era uma forma
mais adequada para seus novos propósitos do que a poesia. A escrita poética
consistia na descrição da vida apenas em seus momentos mais intensos, não em
seus aspectos cotidianos, ou como ela era de verdade. Assim, a poesia no perío-
do realista perde muito de sua importância.

O Realismo também traz uma mudança na ênfase geográfica dada pela lite-
ratura norte-americana até então. Praticamente toda a produção literária do país
havia se dado na região leste – portanto a maioria dos autores, do público-leitor
e das temáticas abordadas pertencia à região da costa do Atlântico dos Estados
Unidos. Isso se deu especialmente durante o Romantismo, quando a Nova In-
glaterra praticamente monopolizou a literatura. Com a expansão territorial pelo

108
O Realismo norte-americano

meio-oeste até chegar à costa do Pacífico, percebeu-se que, para se desenvol-


ver, a escrita norte-americana deveria ampliar seus horizontes além da visão de
mundo da costa leste.

Dessa forma, a literatura ganha forma, um novo estilo de escrita baseado em


narrativas de viagem, contos de fronteira e histórias interessadas em representar
a realidade norte-americana através de uma “cor local”: o regionalismo. Entre os
principais fatores para o surgimento da escrita regionalista podemos citar:
[...] the domination in book-length publication of European authors (not until 1891 did
American writers acquire the protection of an international copyright law), the emergence
of mass periodicals as a market for short fiction, postwar curiosity about disparate sections of
the country and a growing nostalgia for simpler times and tales of an ever-more-strange past.
(BRADBURY; RULAND, 1992, p. 191)

Dessa forma, o regionalismo foi uma das mais importantes vertentes da


escrita realista. Seu principal propósito era resgatar as peculiaridades e aspectos
particulares de certas regiões dos Estados Unidos que estavam começando a ser
desbravadas – seus costumes, hábitos, dialetos, e estilo de vida. De certa forma,
o regionalismo coloca o chamado Realismo norte-americano em uma nova
perspectiva ao nos indagar: qual realidade? e quais Estados Unidos?

Nesse contexto de novas vozes e por vezes conflitantes realidades, nenhum


escritor se mostrou mais capaz do que Mark Twain (1835-1910). Sua literatura traz
uma diferente vitalidade às letras norte-americanas ao desenvolver narrativas
que, mesmo que em boa parte fundada em um estilo humorístico, consegue
trazer à tona uma forte crítica social e moral. Seja através de contos folclóricos,
lembranças da infância ou um irônico pessimismo, Twain foi um dos grandes
inovadores da literatura dos Estados Unidos ao final do século XIX.

Mark Twain (pseudônimo de Samuel L. Clemens) começou a ter contato com


textos literários ao trabalhar com seu irmão mais velho em uma editora na cidade
em que passou grande parte de sua juventude, Hannibal, no estado do Missouri.
Depois de algum tempo, Twain parte para uma experiência que vai definir boa
parte de sua vida e suas principais obras: depois de um período de aprendizado
e treinamento, ele torna-se piloto de um barco a vapor no Rio Mississippi. Nesse
período, teve uma breve porém bem-sucedida carreira, de onde tirou seu pseu-
dônimo, referente a duas marcas – twain – que indicam quando uma embarca-
ção pode navegar com segurança).

Sua fase no Mississippi terminou com a chegada da Guerra Civil, e Twain


lutou por um curto período no conflito do lado da Confederação Sulista. Depois
de uma tentativa frustrada de enriquecimento ao explorar as minas de prata do

109
Literatura Norte-Americana

oeste, ele é empregado pelo jornal Territorial Enterprise e começa sua carreira
como notório humorista e principal nome da fronteira norte-americana.

Mark Twain ganha reputação nacional com o livro The Celebrated Jumping
Frog of Calaveras County (O Celebrado Sapo Saltador de Calaveras County), uma
coletânea de contos. Nessa obra, o autor remete a tradições folclóricas do oeste
norte-americano, já que praticamente todas as histórias contadas ali já eram co-
nhecidas como anedotas regionalistas. Depois desse sucesso inicial, Twain parte
para o leste para, como o próprio afirmou, “atender a um chamado da literatura
de ordem inferior – i.e. humorística”. Nesse período, tornou-se ainda mais conhe-
cido com suas notícias de jornal em tom burlesco e sua veia cômica.

O espírito regionalista (fundado no meio-oeste dos Estados Unidos) ao reu-


nir-se com uma experiência urbana e industrial do leste, dá origem a uma litera-
tura que funciona como síntese de uma cultura em rápida mudança. A partir de
então, as obras de Mark Twain podem ser descritas da seguinte maneira:
His [Twain’s] materials were always to lie in the world of the West and the rural Mississippi Valley
of the period before the war; but the essential conditions and primary spirit of his writing were
to come directly from the rapidly changing world that was to follow it. The prewar world was
agrarian, the postwar world industrial; the prewar world he knew was based on black slavery,
the postwar world he would come to explore depended increasingly on wage slavery. The
world of the river frontier was the world of innocent, individual morality; the world of the new
industrial and urban frontier was the world of the Genteel Tradition. (BRADBURY; RULAND,
1992, p. 196)

Em 1884 é publicado o trabalho mais aclamado de Mark Twain: The Adventures


of Huckleberry Finn (As Aventuras de Huckleberry Finn). É com essa obra que Twain
se torna o primeiro autor efetivamente popular dos Estados Unidos. Na verdade,
esse romance é o ápice criativo do talento genuíno do autor em transpor para a
literatura a chamada “cor local” regionalista.

Esse processo já havia começado antes com dois outros importantes traba-
lhos: The Adventures of Tom Sawyer (As Aventuras de Tom Sawyer), de 1876, e Life
on the Mississippi, (A Vida no Mississippi), de 1883. No primeiro, Twain realiza uma
evocação do período de sua infância ao morar na região do Vale do Mississippi.
O protagonista, o jovem Tom Sawyer, é a representação do menino travesso que,
no meio de diversas aventuras e amores infantis, serve como símbolo da liberda-
de inerente àqueles de coração bom. Já em Life on the Mississippi, o autor narra o
período em que trabalhou como piloto de um barco a vapor naquele rio. Apesar
de ser um passado altamente idealizado, Twain trata sua experiência com um
cunho realista, criando uma vívida transcrição de como era navegar pelo cami-
nho fluvial mais famoso dos Estados Unidos antes da Guerra Civil.

110
O Realismo norte-americano

Com a experiência desses dois romances anteriores sobre recordações da


juventude no Vale do Mississippi é que se torna possível para Twain a realização
de The Adventures of Huckleberry Finn, sua obra-prima. O protagonista-narrador
do romance é o jovem garoto Huckleberry (também chamado de “Huck”)
Finn, que já havia tido uma participação em The Adventures of Tom Sawyer. A
história começa com a fuga de Huck da cabana de seu pai, uma figura abusiva e
controladora, através de uma jangada. Posteriormente, ele é acompanhado por
Jim, um escravo fugido. Ambos então partem juntos na jangada descendo o rio
Mississippi, sem saber as diferentes aventuras que os esperam.

Diferentemente de Tom Sawyer, Huckleberry Finn é um personagem constru-


ído sob um forte dilema moral. O tema central do romance é a tensão existente
entre uma noção preestabelecida de civilização e a liberdade que emana da ino-
cência juvenil em contato com o natural. As decisões tomadas por Huck podem
até ser vistas como simples e ingênuas, mas na verdade elas são representativas
de uma pureza além da civilização, livres das amarras morais da consciência em
que o certo nem sempre é o melhor. A jangada que percorre o Mississippi onde
navegam um menino de espírito livre e um escravo fugido serve como microcos-
mo de uma jornada maior em busca de uma realidade mais humana.

Uma interessante passagem que ilustra esse conflito moral orquestrado


pela narrativa de Twain é quando Huck, em uma situação difícil, não consegue
rezar. Ele pensa então que a razão desse fato é porque está tomando as decisões
erradas, tentando escapar de uma vida civilizada e ainda por cima ajudando
um escravo fugitivo. O personagem decide então escrever um bilhete para a
proprietária de Jim, informando seu paradeiro. Após ler o que tinha escrito, o
alívio moral de Huck contrasta com o que lhe diz o coração livre:
I felt good and all washed clean of sin for the first time I had ever felt so in my life, and I knowed
I could pray now. But I didn’t do it straight off, but laid the paper down and set there thinking-
thinking how good it was all this happened so, and how near I come to being lost and going to
hell. And went on thinking. And got to thinking over our trip down the river; and I see Jim before
me, all the time; in the day, and in the night-time, sometimes moonlight, sometimes storms, and
we a floating along, talking, and singing, and laughing. But somehow I couldn’t seem to strike no
places to harden me against him, but only the other kind. I’d see him standing my watch on top
of his’n, stead of calling me, so I could go on sleeping; and see him how glad he was when I come
back out of the fog; and when I come to him agin in the swamp, up there where the feud was; and
such-like times; and would always call me honey, and pet me, and do everything he could think
of for me, and how good he always was [...]

It was a close place. I took it up, and held it in my hand. I was a trembling, because I’d got to
decide, forever, betwixt two things, and I knowed it. I studied a minute, sort of holding my
breath, and then says to myself:

“All right, then, I’ll go to hell” – and tore it up. (TWAIN, 2008, p. 319)

111
Literatura Norte-Americana

Embora sinta-se “limpo do pecado” (washed clean of sin), Huckleberry Finn


sabe que está fazendo algo de errado ao decidir entregar uma figura tão bon-
dosa que o acompanha há tanto tempo. A lembrança dos momentos de alegria
ao lado de Jim e a percepção do que é verdadeiramente “certo”, de acordo com
seu espírito livre, o fazem rasgar o bilhete e dizer que vai para o inferno (I’ll go
to hell). Nem a moral social (escravos têm de saber o seu lugar) nem a religiosa
(ao fazer o que é errado ele será punido) impedem Huck de ver o mundo sob o
prisma da inocência e também da humanidade.

Em The Adventures of Huckleberry Finn, Mark Twain explora o regionalismo


literário não apenas na temática, mas também na forma de escrita. Ao colocar
Huck como o narrador, o leitor é inevitavelmente lançado na história pelo ponto
de vista do personagem e, especialmente, pela maneira em que ele se expressa.
A gramática e o vocabulário do romance, portanto, ilustram o vernáculo do
meio-oeste, com seu dialeto peculiar e despretensioso coloquialismo.

Embora o restante de sua carreira seja escrito em tom mais crítico e pessi-
mista, a literatura de Mark Twain será para sempre lembrada como um misto
de diário de viagens, autobiografia, romance de aventura e relato regional. Suas
obras estão entre as mais populares da história dos Estados Unidos e seu legado
vai influenciar vários dos escritores do início do século XX, em busca do talento
de Twain para narrar a realidade de diferentes partes do país.

O Naturalismo
Apesar de uma forte ênfase na representação das histórias locais e no estilo
de vida de novas regiões dos Estados Unidos, a literatura realista norte-ameri-
cana sofreu uma notável influência do Realismo europeu. O romance Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, é a obra máxima da literatura realista francesa, no
qual a narrativa explora um tema polêmico para a época (adultério) através da
descrição da vida provinciana e burguesa dos personagens. O fato do narrador
não julgar moralmente os personagens e retratar fielmente tanto a hipocrisia
quanto a dura realidade da vida em sociedade acabou por ter um impacto em
grande parte da literatura escrita no século XIX.

A produção literária francesa, no entanto, iria ter uma influência ainda maior
nos romances norte-americanos com o desenvolvimento de uma nova forma
de escrita: o Naturalismo. Em linhas gerais, o Naturalismo é o movimento lite-
rário que pretende explicar a realidade cotidiana através de um entendimento
biológico e leis naturais disponíveis em termos científicos. O Naturalismo pode
112
O Realismo norte-americano

ser visto como uma continuação do Realismo, mas enquanto a escrita realista
pretende descrever a realidade como ela é de verdade, o Naturalismo pretende
demonstrar de forma científica como diferentes forças (a atmosfera social, a he-
reditariedade etc) atuam na realidade e nos indivíduos.

O Naturalismo como gênero literário é um produto das ideias de Charles


Darwin: o evolucionismo e o conceito de seleção natural. De certa forma, o
darwinismo enfatizava o aspecto animalesco dos seres humanos, colocando-os
como sujeitos ao movimento implacável da evolução. Com o impacto das ideias
de Darwin, os escritores passaram a se interessar não apenas pelos fatos que
compunham a realidade, mas especialmente das leis por trás dela –“a constituição
biológica do homem, as operações mecânicas e impessoais da sociedade, as
funções do processo evolutivo.” (BRADBURY; RULAND, 1991, p. 224)

O principal nome do Naturalismo europeu foi o escritor francês Emile Zola,


e seu estilo em muito influenciou a literatura norte-americana do fim do século
XIX. Para Zola, a experiência humana tinha de ser analisada despindo-a de con-
ceitos absolutos como moralidade e livre-arbítrio; pelo contrário, a experiência
do homem é ditada por leis naturais e pelo contexto social, tornando-o um ser
sempre controlado pelo determinismo. As características presentes nos roman-
ces de Emile Zola podem, de forma geral, servir como elementos presentes na
literatura naturalista em geral:
Controlled by heredity and environment, man was the product of his temperament in a social
context [...]. Temperament was more important than character; setting could not be separated
from a naturalistic theory of environment, nor plot from theories of evolution. Man was in a
halfway house between the realm of the animals and some more perfect realm of being which
future development would reveal. (LEHAN, Richard In: PIZER (Ed.), 1995, p. 47)

A partir desse ponto de vista, a própria natureza da escrita do romance é alte-


rada. O conceito tradicional de sequências de ações realizadas por personagens
que desenvolvem um enredo ficcional é substituído. No Naturalismo, o que há é
a ideia do homem como uma pequena figura em meio a um vasto sistema deter-
minista que o envolve num processo evolucionário, onde forças como livre-arbí-
trio e individualidade estão em grande parte ausentes. Isso torna o Naturalismo
um gênero literário imbuído de um alto grau de pessimismo.

Nos Estados Unidos, o Naturalismo foi profundamente influenciado histori-


camente pela Guerra Civil e pelas profundas mudanças sociais pelas quais o país
passava. A era da fé em si mesmo e de grandes ideais – propagados por Emerson
e Thoreau, entre outros – deu lugar a um período em que ações brutais e a força
esmagadora da natureza eram constantes na vida cotidiana dos indivíduos.

113
Literatura Norte-Americana

A literatura norte-americana teve em Theodore Dreiser (1871-1945) o seu prin-


cipal escritor naturalista. A infância de Dreiser é um retrato de grande parte da
população do país no final do século XIX: seu pai era um imigrante alemão e
sua família vivia em condição de extrema pobreza; seus irmãos (de um total de
13 filhos) estavam constantemente envolvidos com problemas relacionados ao
álcool ou com a justiça. Na adolescência, teve diversos empregos com baixo sa-
lário (lavou pratos, foi vendedor, pintor de paredes) mas sonhava em um dia sair
da condição de miséria a que estava predestinado. De certa forma, essa origem
pobre e o desejo de ascender socialmente vai ser um dos elementos mais carac-
terísticos de suas principais obras.

Quando consegue um emprego como jornalista é que a vida de Dreiser


começa a mudar. É promovido a editor de uma revista e passa a se dedicar ao
estudo de Filosofia e Literatura. Dois teóricos lidos por ele nesse período terão
muita importância no desenvolvimento dos principais temas de seus romances:
Thomas Huxley (biólogo inglês e um dos mais importantes defensores do evolu-
cionismo) e Herbert Spencer (filósofo inglês e o responsável por cunhar a expres-
são sobrevivência do mais forte após ler as teorias de seleção natural de Darwin).

O primeiro romance de Theodore Dreiser é Sister Carrie, publicado no ano


1900. Parece pontual a obra ser publicada exatamente na virada do século, pois
a partir dela a literatura norte-americana vai ter acesso a temas e um estilo de
construir personagens até então inéditos. Dreiser lutou muito com seu editor
para publicar o romance, já que seu texto era considerado ofensivo e o autor teve
de fazer algumas mudanças. Mesmo assim, a mescla de inocência e experiência
social que permeia a narrativa trouxe um frescor ao romance norte-americano,
mesmo que o livro quando lançado tenha sido um fracasso de vendas.

A protagonista de Sister Carrie é Carrie Meeber, uma simples moça do meio-


-oeste que, cansada de sua vida provinciana, parte para Chicago (uma das cida-
des símbolo da expansão urbana do final do século XIX) atraída por uma vida
mais cosmopolita e de menor repressão moral. A personagem então passa por
uma mudança de personalidade, colocando o senso prático à frente de um ide-
alismo moral; assim, ela perde sua virgindade e usa de seu corpo e sua força de
vontade para atingir o sucesso. A escrita de Dreiser, nesse romance, é legitima-
mente herdeira da tradição do Naturalismo francês, no qual as forças sociais e as
motivações humanas são a energia dupla que leva à degeneração:
The corruption of the individual finds a natural correspondence in the corruption of the family
and society itself. Everything is corrupt and capable of degeneration and debasement, from
the highest order of the government and the salon to the workers in the mines and the people
in the street. (LEHAN, In: PIZER (Ed.), 1995, p. 47)

114
O Realismo norte-americano

Essa “corrupção do indivíduo”, que vai servir como elemento correspondente


à corrupção da família e da sociedade, vai se fazer presente em outros romances.
Em Jennie Gerhardt, de 1911, Dreiser novamente fala de uma mulher que desafia
as convenções morais. Seguindo a tradição naturalista, o narrador do romance
não julga as decisões da protagonista, por mais que suas atitudes sejam repre-
ensíveis para a época, especialmente o fato de decidir ser mãe solteira.

O melhor romance de Theodore Dreiser, todavia, seria publicado apenas em


1925: An American Tragedy (Uma Tragédia Americana). Aliando a tradição da es-
crita naturalista a uma afiada análise crítica do sonho americano, o autor traça
um panorama social e psicológico dos Estados Unidos até então nunca visto.

O romance conta a história de Clyde Griffiths, um jovem de origem humilde


que sonha em se tornar membro da alta sociedade. O personagem se envolve
sexualmente com Roberta, uma inocente moça do interior, mas sem a menor
intenção de ter algum relacionamento com ela. Na verdade, Clyde tem maior
interesse em Sondra, uma jovem elegante e de família rica. Ao mesmo tempo
em que suas investidas são bem recebidas por Sondra e o casamento com uma
moça de elevada classe social se torna possível, Clyde descobre que Roberta está
grávida. Desesperado, o protagonista leva Roberta para um passeio de canoa
em um lago, com o objetivo de matá-la. Ao chegar lá, Clyde perde a coragem,
mas acaba por empurrar a moça (o romance não deixa claro se propositalmente
ou não), fazendo o barco virar. Roberta morre afogada, e Clyde é acusado de
homicídio e condenado à cadeira elétrica.

O enredo de An American Tragedy é baseado em um caso real, e Dreiser parece


ter visto nesta história a possibilidade de mostrar o outro lado do sonho ameri-
cano, em que o desejo de sucesso muitas vezes vai de encontro a um implacável
determinismo social. Por outro lado, o romance amplia a visão naturalista em
que a ausência de livre-arbítrio impera. Clyde é uma vítima de forças sociais, mas
também de suas próprias decisões morais. Mesmo assim, o romance questiona
até que ponto é justo culpar um homem por um crime se as suas ações são mero
produto das circunstâncias e da condição social em que ele está inserido.

Assim, o Naturalismo funciona como um reflexo para as principais questões


presentes na estruturação de uma nova sociedade norte-americana da virada do
século. Apresentando um estilo narrativo e temas inovadores, esse gênero lite-
rário apresentou uma visão complexa sobre uma nova percepção da realidade e
sua própria representação.

115
Literatura Norte-Americana

Henry James:
a literatura entre os Estados Unidos e a Europa
À medida que termina o século XIX e começa o século XX, a literatura norte-
-americana começa gradualmente a passar por um período de transição. Embora
ainda marcada pela necessidade de descrever a realidade como ela é, os roman-
ces escritos nos Estados Unidos deixam de enfatizar exclusivamente a ideia da
“cor local” ou o caráter determinista. Em seu lugar, nota-se a ascensão de uma es-
crita mais sofisticada, aliada a um desenvolvimento mais complexo da narrativa
e uma profunda exploração dos limites da consciência.

O maior representante desta fase das letras norte-americanas é Henry James


(1843-1916). Um dos mais produtivos escritores do Ocidente, James tem uma
carreira que compreende contos, romances, peças de teatro, autobiografias, di-
ários de viagem e críticas literárias. Embora tenha conseguido razoável fama du-
rante a vida, a verdadeira apreciação do estilo do autor se deu após a 1.ª Guerra
Mundial, quando suas obras vão inspirar novas gerações de escritores do país.

Henry James nasceu em uma família rica, pertencente à alta sociedade nova-
-iorquina. Seu pai era um intelectual, com ensaios publicados sobre filosofia e
teologia; a educação era um assunto prioritário, e seus filhos foram criados com
tutores e levados desde a infância para passar longas temporadas na Europa,
onde foram expostos aos hábitos e estilos de vida de uma sociedade interna-
cional. O irmão mais velho de Henry James, Wiliam, posteriormente tornou-se
um dos mais influentes filósofos dos Estados Unidos e um notável estudioso de
Psicologia. O jovem Henry, por outro lado, vai usar sua experiência visitando os
principais museus, teatros e bibliotecas da França, Inglaterra e Suíça como base
para definir uma nova perspectiva literária.

Em 1864 Henry James publica o seu primeiro conto e desde então sua pro-
dução ficcional e crítica passa a circular em grandes jornais. O autor continuava
viajando constantemente para a Europa até que, em 1876, ele decide fixar resi-
dência na Inglaterra, onde vai viver pelo resto de sua vida. O fato de ser um autor
norte-americano escrevendo em solo inglês vai ser primordial para a escrita de
sua obra, já que um dos temas centrais da maioria de seus trabalhos é o encon-
tro entre ingenuidade norte-americana e a vivência europeia.

Durante muito tempo, essa escolha de James pela Europa foi vista como uma
recusa do autor à herança cultural de seu próprio país. Contudo, James acredi-
tava que a combinação da tradição europeia à norte-americana dava-lhe uma
116
O Realismo norte-americano

condição mais cosmopolita do que se fizesse parte apenas de uma esfera cultu-
ral. Em uma carta a seu irmão, o autor afirma:
I aspire to write in such a way that it would be impossible to the outsider to say whether I am at
a given moment an American writing about England or an Englishman writing about America
(dealing as I do with both countries), and so far from being ashamed of such an ambiguity
I should be exceedingly proud of it, for it would be highly civilized. (JAMES, In: RULAND;
BRADBURY, 1992, p. 213)

Essa aspiração de ter sua nacionalidade dificilmente reconhecível foi alcança-


da por James em sua vasta obra, ao mesmo tempo coesa e ricamente variada. O
conjunto de seu trabalho geralmente pode ser estudado levando-se em conta
três distintas fases de produção: a primeira é a que mais diretamente explora a
sua temática internacional, tratando dos aspectos trágicos e cômicos de ameri-
canos na Europa (e às vezes europeus na América); a segunda fase trabalha com
a relação entre a arte e a sociedade, além de apresentar personagens oprimidos
e com um rico arcabouço psicológico; a terceira e última fase é a chamada “fase
principal”, em que o autor retoma a temática internacional, mas usando técnicas
narrativas que o aproxima de uma escrita mais modernista.
A primeira fase da obra de Henry James apresenta o escritor como observa-
dor e espectador dos acontecimentos que formam o seu enredo. Narrando as
situações decorrentes do choque entre a vivência norte-americana e a europeia,
ele apresentava aspectos da cultura herdada presente nos Estados Unidos e da
cultura nascida na Europa. O lado norte-americano era simples e ingênuo; o eu-
ropeu era experiente e por vezes corrupto. Assim como o leitor, os personagens
americanos na Europa de Henry James começam como meros observadores
para depois se tornarem desbravadores, mesmo que paguem um preço alto por
isso. A intenção por trás da aproximação entre América e Europa nas obras do
autor pode ser explicada da seguinte forma:
In most of early James’s novels, the large mythology persists, drawing on the old literary
polarities: innocence and experience, ordinary American life and the rich art of Europe, plain
present and dusky deep past. James suggests that the romantic and innocent American will
always risk defeat in Europe’s ambiguous, social and often tainted air while enlarging his or
her knowledge and vision. At the same time the innocent and unencumbered American
“balloon of romance”, as a kind of fiction, would need to be made more profound and grainier
by incorporating some of the experiential, moral and social subtlety, the denser registration of
life, to be found in the greater European novels. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 191)

O mais aclamado romance dessa primeira fase é The Portrait of a Lady (Retrato
de uma Senhora), de 1881. A protagonista, Isabel Archer, é uma norte-americana
que parte para a Europa e lá fica fascinada com uma nova realidade. A persona-
gem recebe uma herança generosa, mas o dinheiro ao invés de libertá-la acaba
por torná-la vítima de uma trama perversa executada por dois expatriados nor-
te-americanos vivendo no Velho Continente.
117
Literatura Norte-Americana

The Portrait of Lady é o trabalho de James que melhor exemplifica a temática


do espírito livre norte-americano versus a corrupção europeia. Isabel Archer, ao
cair num esquema maquiavélico, alcança a maturidade que os Estados Unidos
parecem desconhecer, mas que é conseguida após se pagar um alto preço. A
prosa elegante e refinada do autor combina curiosamente com o tema da deca-
dência e confinamento que a protagonista encontra na Europa.

Na segunda fase da literatura de Henry James, o autor aventurou-se na escrita


de peças de teatro. Embora algumas fossem produzidas, nenhuma apresentou
verdadeiro sucesso. De certa forma, James nunca mais alcançou a popularidade
que obteve com os seus trabalhos anteriores, especialmente nesse período in-
termediário de sua produção literária. No entanto, a ficção desta fase seria muito
mais apreciada e estudada posteriormente.

As obras do autor nesse período são caracterizadas por serem mais curtas
(ele se especializou na escrita de novellas, ou seja, romances de menor exten-
são). Esses trabalhos se concentram, de maneira geral, em três temas específicos:
artistas problemáticos ou incompreendidos, fantasmas ou aparições, e crianças
em situações de risco correndo grande perigo. São romances que abordam as
profundezas da consciência, a culpa e uma sexualidade reprimida como nunca
antes visto em sua literatura.

Dessa fase, uma de suas mais ricas obras é o pequeno romance The Turn of
the Screw (A Volta do Parafuso), de 1898. A história envolve uma governanta con-
tratada para tomar conta de duas crianças numa casa de campo que passa a ser
assombrada por fantasmas dos antigos funcionários do local. Há toda uma natu-
reza obscura em The Turn of the Screw que remete ao gótico, mas vai além. Desde
sua narrativa em primeira pessoa altamente manipulativa (acompanhamos os
acontecimentos pelos olhos da governanta) até as atitudes suspeitas das crian-
ças, há no romance uma atmosfera de mistério em que os fantasmas são o que
há de menos intrigante. As sugestões apresentadas na prosa de James de que a
governanta é reprimida sexualmente, talvez enlouquecendo, e que as aparições
podem ser frutos de sua imaginação, são símbolos de uma escrita labiríntica que
envolve o leitor até o momento da derrocada da personagem.

O período mais significativo da produção literária de Henry James, contudo,


é o último, que ocorre na virada do século. É nesse momento que o escritor vai
desenvolver sua técnica narrativa em sua totalidade e, embora pouco reconheci-
das em seu tempo, suas obras vão servir como grande influência para a o desen-
volvimento de uma nova prosa norte-americana. Em termos de enredo, James

118
O Realismo norte-americano

retorna à temática internacional e ao choque entre Estados Unidos e Europa,


mas com uma nova abordagem: mostrando como as pessoas, através de suas
impressões e visões de mundo, são capazes de criar sua própria realidade.

Um dos mais complexos romances desta terceira fase é The Wings of the Dove
(As Asas da Pomba). A entrada de uma milionária norte-americana na vida de um
pobre e muito apaixonado casal inglês é o ponto de partida para James exercitar
todo o seu requinte estético e contrastá-lo com uma ausência de moral. Assim
como em outras obras desse período, o narrador se distancia cada vez mais do
enredo, forçando o leitor a fazer parte do processo criativo e tentar resolver as
ambiguidades de cada personagem. É uma leitura quase minimalista, mas inten-
sa. Como bem descreveu Carolina Nabuco:
O método serpentino de escrever e o pequeno uso que fazia de imagens tornam Henry
James um dos escritores menos aptos para citação de trechos. Seu estilo é onduloso como os
desenhos nos papéis que, em sua época, forravam as paredes. Começa o olho por perceber as
linhas gerais do traçado e depois, lentamente, descobre as pequenas variantes e enfeites que
lhe enriquecem os padrões. (NABUCO, 2000, p. 183)

Essa abordagem distanciada do narrador e a construção da prosa repleta de


símbolos e variantes foram algumas das principais contribuições da escrita de
Henry James para autores da primeira metade do século XX. O espetacular con-
junto de sua obra é minuciosamente estudado até hoje, especialmente consi-
derando-se que ele irá fornecer os pilares para uma nova literatura que estava
prestes a surgir nos Estados Unidos.

Texto complementar

The portrait of a lady


(JAMES, 2003)

On the morrow she said to Isabel that her definition of success had been
very pretty, but frightfully sad. Measured in that way, who had succeeded?
The dreams of one’s youth, why they were enchanting, they were divine!
Who had ever seen such things come to pass?

“I myself – a few of them,” Isabel ventured to answer.

“Already? They must have been dreams of yesterday.”

119
Literatura Norte-Americana

“I began to dream very young,” said Isabel, smiling.

“Ah, if you mean the aspirations of your childhood – that of having a pink
sash and a doll that could close her eyes.”

“No, I don’t mean that.”

“Or a young man with a moustache going down on his knees to you.”

“No, nor that either,” Isabel declared, blushing.

Madame Merle gave a glance at her blush which caused it to deepen.

“I suspect that is what you do mean. We have all had the young man with
the moustache. He is the inevitable young man; he doesn’t count.”

Isabel was silent for a moment, and then, with extreme and characteristic
inconsequence –

“Why shouldn’t he count? There are young men and young men.”

“And yours was a paragon – is that what you mean?” cried her friend with
a laugh. “If you have had the identical young man you dreamed of, then that
was success, and I congratulate you. Only, in that case, why didn’t you fly with
him to his castle in the Apennines?”

“He has no castle in the Apennines.”

“What has he? An ugly brick house in Fortieth Street? Don’t tell me that; I
refuse to recognise that as an ideal.”

“I don’t care anything about his house,” said Isabel.

“That is very crude of you. When you have lived as long as I, you will see
that every human being has his shell, and that you must take the shell into
account. By the shell I mean the whole envelope of circumstances. There is
no such thing as an isolated man or woman; we are each of us made up of a
cluster of appurtenances . What do you call one’s self? Where does it begin?
where does it end? It overflows into everything that belongs to us – and then
it flows back again. I know that a large part of myself is in the dresses I choose
to wear. I have a great respect for things! One’s self – for other people – is

120
O Realismo norte-americano

one’s expression of one’s self; and one’s house, one’s clothes, the book one
reads, the company one keeps – these things are all expressive.”

This was very metaphysical; not more so, however, than several observa-
tions Madame Merle had already made. Isabel was found of metaphysics, but
she was unable to accompany her friend into this bold analysis of the human
personality.

“I don’t agree with you,” she said. “I think just the other way. I don’t know
whether I succeed in expressing myself, but I know that nothing else expresses
me. Nothing that belongs to me is any measure of me; on the contrary, it’s a
limit, a barrier, and a perfectly arbitrary one. Certainly, the clothes which, as
you say, I choose to wear, don’t express me; and heaven forbid they should!”

“You dress very well,” interposed Madame Merle, skillfully.

“Possibly; but I don’t care to be judged by that. My clothes may express


the dressmaker, but they don’t express me. To begin with, it’s not my own
choice that I wear them; they are imposed upon me by society.”

“Should you prefer to go without them?” Madame Merle inquired, in a


tone which virtually terminated the discussion.

Dicas de estudo
Um grande clássico do cinema norte-americano, o filme Um Lugar ao Sol, é uma
brilhante adaptação para o romance An American Tragedy, de Theodore Dreiser. Es-
trelando Montgomery Clift e Elizabeth Taylor, o filme consegue representar visual-
mente as principais ideias presentes no Naturalismo (especialmente a questão do
determinismo social), além de incluir uma forte crítica ao sonho americano.

Várias obras de Henry James já foram levadas ao cinema, mas uma das mais
bem-sucedidas é Asas do Amor, adaptação de The Wings of the Dove. Apresentan-
do um requinte visual que consegue ser uma fiel transposição da sofisticação da
obra de James, o filme é uma intrincada história de amores e interesses, através
de uma complexa construção de personagens.

121
Literatura Norte-Americana

Atividades
1. Explique como a literatura realista serviu como representação das grandes
mudanças socioeconômicas ocorridas nos Estados Unidos do final do século
XIX.

122
O Realismo norte-americano

2. Como a literatura de Theodore Dreiser apresentou as principais ideias pre-


sentes no gênero naturalista?

123
A prosa norte-americana
na 1.ª metade do século XX
Com o alvorecer do século XX, os Estados Unidos viam surgir a possi-
bilidade de assumir um papel central no cenário mundial. O nível de de-
senvolvimento do país era altíssimo, as cidades prosperavam, a economia
mantinha-se forte e a definição do caráter nacional tinha alcançado a ma-
turidade. Estava começando o “século americano” e, com ele, uma nova
visão de mundo, em que os Estados Unidos ditaram tendências e modifi-
caram o panorama da arte e da cultura.

Os ventos da mudança nos primeiros anos do século passado, contudo,


continuavam a vir da Europa. Foi no velho continente que novas e fervi-
lhantes ideias romperam paradigmas caducos para trazer um frescor inte-
lectual para pintores, escultores e escritores. Mas a influência europeia na
literatura norte-americana se daria a partir de um diferente contexto: ao
invés de os escritores simplesmente receberem passivamente esse novo
estilo residindo na América, eles decidiram partir para a Europa, e lá pre-
senciar a revolução cultural que ocorria.

Essa necessidade de vários escritores norte-americanos fixarem re-


sidência na Europa no início do século XX – a chamada Lost Generation
(Geração Perdida) – não pode ser entendida literalmente como uma ex-
patriação. Por outro lado, foi uma busca da afirmação de uma identidade
norte-americana, que curiosamente se fortaleceu quando esses artistas se
estabeleceram no estrangeiro. A capital da intelectualidade dos Estados
Unidos (que já havia sido Boston e Nova York) havia curiosamente se des-
locado para Paris. No período entre a 1.ª Guerra Mundial e a Crise de 1929,
a cidade francesa foi o local onde poderia se encontrar os grandes nomes
da literatura norte-americana do século XX.

As primeiras décadas deste novo século que começava foram um pe-


ríodo de acontecimentos superlativos, com grandes invenções, a primei-
ra grande guerra e a primeira grande crise econômica mundial. Portanto,
não havia mais espaço para tradições artísticas que já vinham ditando há
séculos a forma com que a subjetividade humana poderia ser represen-
tada. O próprio conceito de “arte” tinha de ser reformulado radicalmente,
Literatura Norte-Americana

seja na sua forma ou em seu conteúdo. Esta era a empreitada do Modernismo, e


os principais ideais desse movimento foram primordiais para o desenvolvimen-
to de uma nova literatura norte-americana.

Dentre os vários nomes do Modernismo literário norte-americano, quatro


merecem especial destaque: F. Scott Fitzgerald, com sua profunda análise social
e representação precisa da década de 1920; Ernest Hemingway e sua escrita
minimalista e altamente simbólica; William Faulkner, aliando temáticas do sul
dos Estados Unidos a uma imensa riqueza psicológica; e John Steinbeck, um dos
grandes críticos dos abusos cometidos contra as classes menos favorecidas após
a Crise de 1929. Juntamente com outros escritores, eles levaram as letras norte-
-americanas a uma fase de amadurecimento e ruptura como nunca vista, tor-
nando a literatura norte-americana a mais influente do século XX.

F. Scott Fitzgerald e a Jazz Age


Um dos períodos mais ricos para a produção artística nos Estados Unidos foi
a década de 1920. Foi uma era de prazer, diversão e hedonismo como raramente
vista no país. Na verdade, o espírito da década de 20 começa após o fim da 1.ª
Guerra Mundial e vai até a Crise de 1929. É no espaço de tempo comprimido
entre esses dois negros eventos ocorridos logo no início do século que os Es-
tados Unidos se tornariam o local para onde iriam convergir diferentes esferas
representativas do dinamismo social e artístico abundante no período.

A década de 1920 ficou conhecida como The Jazz Age (A Era do Jazz), embora
alguns críticos prefiram o termo Roaring Twenties (Fervilhantes Anos 20). Esses títu-
los ilustram de forma bem direta o espírito da época. A década de 1920 foi quando
o jazz se popularizou, deixando de ser uma música de gueto para se popularizar e
ter entrada nas festas da alta sociedade. O jazz foi o símbolo máximo de uma era
em que o entretenimento parecia ser o propósito da existência. Os night clubs se
popularizaram e, tendo o jazz como atração principal, se tornaram o centro da vida
social das classes mais abastadas em seus salões fechados e exclusivos.

Essa explosão de diversão e prazer foi uma forma de se expressar social e


culturalmente depois dos sinistros anos da 1.ª Guerra Mundial. A população
norte-americana também alcançou um imenso nível de autoconfiança, pois o
país atravessava uma época de prosperidade e novas invenções que garantiam
que uma fase genuinamente moderna havia se estabelecido. A classe-média,
adquirindo um poder de compra inédito, se tornou um dos principais motores

126
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

da economia, que a partir de então passou ter um maior foco no consumo. O


automóvel, saindo do inovador modelo de linha de produção criado por Henry
Ford, se torna o bem mais cobiçado pela população. A rede de comunicação e
informação passa a alcançar todos os cidadãos, com linhas telefônicas sendo
instaladas em diversos estabelecimentos. O rádio se torna o principal meio de
ter acesso a notícias, além de se provar a forma mais efetiva de anunciar novos
produtos. O cinema dá os primeiros passos para se tornar a maior indústria de
entretenimento do mundo, empregando vários dos principais artistas da época.
É possível sintetizar a atmosfera dos anos de 1920 da seguinte maneira:
America modernized and in so doing swept away many of the values ordinary Americans
thought central to the meanings of their national life. As the economy shifted its center from
production to consumption, as the focus moved from country to city, as credit ran free and
personal spending boomed, as new technologies brought autos, telephones, radios and
refrigerators to the growing members of middle-class homes, change moved at an ever-faster
pace. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 297)

Nenhum nome da literatura norte-americana soube captar melhor a Jazz Age


e seus habitantes do que F. Scott Fitzgerald (1896-1940) – afinal, foi ele que criou
tal expressão. Sua literatura está para sempre ligada às altas rodas da sociedade
da costa leste, às festas intermináveis dos ricos e famosos, à sofisticação e ao
glamour característicos de toda uma geração. No entanto, Fitzgerald usa o pano
de fundo de intensa animação da década de 1920 não apenas para ilustrar seu
aspecto de fervilhante entretenimento e vida social. Suas obras também eram
o retrato de uma era sedenta de prazer, mas que possuía de forma inerente um
elemento trágico, especialmente quando o autor mostrava que o sonho ameri-
cano de sucesso, felicidade e prosperidade geralmente vinha acompanhado de
um preço altíssimo.

Fitzgerald é ao mesmo tempo o cronista e a personificação dos Roaring


Twenties, e é difícil pensar em um sem o outro. Profundamente inserido nos
bares, cafés, salões e festas da alta sociedade, seu charme e beleza, além de uma
eterna atitude de bon vivant, colocavam o autor sempre no centro das atenções.
Ele soube como poucos retratar em suas obras o artificialismo de uma época
ao mesmo tempo em que desfrutava de seus prazeres. Fitzgerald era o profeta
desse mundo de entretenimento e maneirismo e, de certa forma, acabou sendo
uma vítima dele.

De uma família relativamente pobre, Fitzgerald cursou a Universidade de


Princeton até partir para o exército, onde pretendia servir lutando na 1.ª Guerra
Mundial. A guerra, contudo, terminou pouco tempo depois que ele ingressou na
carreira militar. Foi durante o período de treinamento no exército que Fitzgerald

127
Literatura Norte-Americana

conheceu o grande amor de sua vida, Zelda, com quem o autor viveu um dos
mais famosos e conturbados relacionamento da história da literatura.

Depois de sair do exército, Fitzgerald passou a trabalhar numa agência de publi-


cidade, e foi nesse período que passou a escrever contos e um romance, This Side
of Paradise (Este Lado do Paraíso), de 1920. Esses trabalhos iniciais adquiriram um
sucesso estrondoso. Nesse mesmo ano, Fitzgerald e Zelda se casaram. O casal se
tornou um dos mais festejados de seu tempo, presença garantida em festas emba-
ladas pelo som do jazz. Homem belo e carismático, Fitzgerald tinha sua fama literá-
ria para fazê-lo frequentar as rodas mais exclusivas da costa leste norte-americana.

Fitzgerald também passou um tempo na França, onde vai se tornar um nome


importante da Lost Generation. O autor lança outros romances e escreve contos
regularmente para jornais e revistas, já que o autor tinha de estar constante-
mente produzindo para pagar seu extravagante estilo de vida. É durante essa
fase na Europa que Fitzgerald vai concluir ideias que depois dariam origem a sua
principal obra: The Great Gatsby (O Grande Gatsby), de 1925.

Considerado por muitos críticos o melhor romance da literatura norte-ameri-


cana, The Great Gatsby captou como nenhuma outra obra o sentido da Jazz Age.
A sofisticação e o entretenimento constante da década de 1920 são retratados
lado a lado com o acentuado materialismo, a imoralidade e um latente artificia-
lismo do período. No entanto, mais do que o retrato de uma época, o que salta
das páginas de The Great Gatsby é uma descrição feroz, porém melancólica, dos
limites (ou da ausência deles) para a realização do sonho americano.

O romance começa com o personagem-narrador Nick Carraway, um jovem do


meio-oeste que vai passar uma temporada no distrito de Long Island. Nick então
passa a habitar o sofisticado porém frívolo círculo social de sua prima Daisy, e
o marido desta, Tom Buchanan. Todos os personagens, contudo, são intrigados
pela figura misteriosa do vizinho de Nick, um milionário excêntrico chamado
Jay Gatsby, que todos os sábados dá as mais grandiosas festas em sua mansão
gótica.

À medida que a narrativa se desenvolve, o leitor descobre que Daisy é um


antigo amor de Gatsby, quando ele era pobre. As festas e o seu estilo de vida ex-
travagante são estratégias para atrair e impressionar Daisy, ganhando finalmen-
te o seu amor. Quando Gatsby finalmente reecontra seu amor do passado e eles
começam um relacionamento, a realização do sonho do personagem origina
uma sequência de acontecimentos trágicos que revelam a podridão escondida
atrás do glamour e do dinheiro da alta sociedade na Jazz Age.

128
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

A prosa de Fitzgerald é sedutora como seu tema, com descrições sofisticadas


e riqueza de símbolos. No entanto, ela se torna cada vez mais áspera à medida
que a derrocada do protagonista vai se tornando inevitável. Jay Gatsby, o milio-
nário misterioso e cobiçado, mostra-se na verdade um homem que quer apenas
impressionar seu grande amor do passado. O “grande” Gatsby do título pressu-
põe uma figura icônica, simbolizando poder e força. Mas a grandiosidade do
personagem como delineado por Fitzgerald está em sua complexidade psicoló-
gica e na atitude um tanto romântica de Gatbsy, que o leva a um fim trágico e ao
mesmo tempo trivial.

Gatsby é um dos mais ricos personagens da literatura mundial pois a ele es-
capam definições simples. Ao revelar que a origem da fortuna de Gatsby se deu
através de meios ilícitos, o personagem pode ser visto como mais um elemento
característico da corrupção e da imoralidade desse mundo altamente materialista.
À medida que a história se desenvolve, porém, vemos como ele na verdade está
alheio àquela realidade, tanto que ao final se torna vítima dela, especialmente por
ter uma natureza essencialmente inocente rodeada por um meio sem escrúpulos.

The Great Gatsby é uma profunda reflexão sobre como na década de 1920 o
sonho americano é corrompido. Originalmente um conceito fundado na nobreza e
na busca por um ideal de felicidade, o sonho americano se torna uma busca frívola
por dinheiro e status, em que não há limites para se alcançar a ascensão social e o
prazer irresponsável. Ao final do romance, o personagem-narrador Nick Carraway
faz um nostálgico e pontual comentário sobre essa nova perspectiva usando como
exemplo o ocaso do universo de sofisticação da Nova York da década de 1920:
I spent my Saturday nights in New York because those gleaming, dazzling parties of his were
with me so vividly that I could still hear the music and the laughter, faint and incessant, from
his garden, and the cars going up and down his drive. One night I did hear a material car there,
and saw its lights stop at his front steps. But I didn’t investigate. Probably it was some final
guest who had been away at the ends of the earth and didn’t know that the party was over. [...]
As the moon rose higher the inessential houses began to melt away until gradually I became
aware of the old island here that flowered once for Dutch sailors’ eyes – a fresh, green breast
of the new world. Its vanished trees, the trees that had made way for Gatsby’s house, had once
pandered in whispers to the last and greatest of all human dreams; for a transitory enchanted
moment man must have held his breath in the presence of this continent, compelled into an
aesthetic contemplation he neither understood nor desired, face to face for the last time in
history with something commensurate to his capacity for wonder. (FITZGERALD, 2004, p. 179)

É interessante notar como essa belamente descrita passagem compara o fim


da época das festas da mansão de Gatsby com a chegada dos primeiros holan-
deses a Nova York, como se a atmosfera de fascínio e surpresa dos dois períodos
estivesse intimamente ligada. No entanto, enquanto os sonhos dos primeiros
exploradores da região eram fundados na possibilidade genuína de se estabele-

129
Literatura Norte-Americana

cer ali, os sonhos dos cidadãos abastados da Jazz Age era consumir o prazer que
tinham à mão da forma mais rápida e irresponsável.

Dessa forma, The Great Gatsby serve como representação máxima de um perí-
odo em que os Estados Unidos pareciam estar vivendo um incessante espetácu-
lo, cujas luzes e cores acabavam por esconder a futilidade que o permeava. Essa
foi a matéria-prima de F. Scott Fitzgerald na composição de suas principais obras,
e através dela realizou uma das mais ricas narrativas da literatura mundial.

Ernest Hemingway e a precisão da escrita


Nenhum escritor norte-americano foi mais representativo da chamada Lost
Generation do que Ernest Hemingway (1899-1961). O estilo de escrita único de
seus romances e contos pareciam ser o reflexo de uma rica biografia na qual a
presença da guerra, da esterilidade e da morte eram frequentes. Ainda assim,
Hemingway conseguia (mesmo que com uma escrita notadamente pessimista)
construir suas histórias com um vigor narrativo que não encontra comparação
na literatura norte-americana.

Hemingway começou sua carreira como repórter para um jornal, mas lá ficou
por pouco tempo. Com o início da 1.ª Guerra Mundial, ele tentou fazer parte das
forças do exército combatendo na Europa, mas acabou não passando no exame
médico devido a uma fraca visão. Decidido a estar presente no conflito, Hemingway
se alista na Cruz Vermelha e parte para o front como piloto de ambulância. Já
no campo de batalha, ele se torna o primeiro americano ferido em solo italiano
durante a guerra e ganha uma medalha de honra ao mérito por bravura.

De volta aos Estados Unidos, Hemingway retoma seu trabalho como jornalis-
ta, mas seu desejo de estar inserido nos principais conflitos da época não dimi-
nui, mesmo que seja narrando seus acontecimentos. Ele parte então novamente
para a Europa, onde trabalha como correspondente internacional cobrindo a
guerra entre a Grécia e a Turquia. Sua residência oficial passa a ser Paris, e é lá
que Hemingway começa a definir o estilo de sua futura produção literária.

Paris era a capital mundial da criatividade, da vida intelectual e da expressão


de uma nova visão artística. Em contato direto com os expatriados norte-ame-
ricanos na Europa, como Gertrude Stein, F. Scott Fitzgerald e John dos Passos,
Hemingway passa a escrever seus contos e depois um romance, The Sun Also
Rises (O Sol Também se Levanta), que retrata a rica experiência que teve ao viver
na capital francesa.

130
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

A prosa de Ernest Hemingway é uma das mais bem estruturadas de toda a


literatura; a forma com que seus textos são construídos é facilmente reconhecida
e desde então vem sendo muito imitada, mas nunca igualada. A escrita de suas
narrativas é orquestrada de forma minimalista, tendo em vista o que o autor cha-
mava de one true sentence, ou seja, uma frase verdadeira. Isso significava que seus
textos tinham como característica uma economia de palavras (especialmente
adjetivos). Seu método acompanha a estética literária do Modernismo, que pre-
conizava uma prosa “áspera”, impessoal e vista com um distanciamento objetivo.
Seu modo de expressão era comprimido, com uma estrutura de orações simples,
geralmente com um vocabulário restrito, porém preciso. Esta forma estilística
tinha como objetivo captar a realidade no que ela tinha de mais puro e único, mas
também era a representação de uma ambição do autor de produzir uma literatu-
ra que conseguisse ser atemporal. Como ele próprio descreveu em Death in the
Afternoon (Morte na Tarde), de 1932, a escrita deve expressar: “[...] the real thing,
the sequence of motion and fact which made the emotion and which would be
as valid in a year or in ten years or, with luck and if you stated it purely enough,
always.” (HEMINGWAY, In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 306)

Essa abordagem concisa da literatura que produziu, contudo, não quer


dizer que a literatura de Ernest Hemingway acabou sendo empobrecida. Pelo
contrário, isso tornou a sua prosa ainda mais densa e complexa, já que através de
frases curtas e um vocabulário preciso, o autor trabalhava ricamente no terreno
do simbólico. Os textos do autor já foram comparados a icebergs – assim como
aqueles imensos blocos de gelo que habitam as regiões mais frias do oceano,
só é possível ver claramente uma pequena parte deles; no entanto, existe uma
outra imensa parte escondida que não está facilmente visível, que temos que
nos esforçar para ver. A simplicidade e a concentração de suas narrativas são o
primeiro nível de uma literatura repleta de símbolos, metáforas e representações
que apenas os leitores mais atentos conseguem captar. Isso, contudo, não se trata
apenas de maneirismo estético: é a forma perfeita orquestrada por Hemingway
para desenvolver alguns dos principais temas de sua literatura.

Há nas obras de Hemingway uma preocupação existencialista até então iné-


dita na literatura norte-americana. Os personagens presentes nas obras do autor
parecem estar ausentes de orientação num mundo cada vez mais sem senti-
do, onde estar perdido parece ser a única condição possível quando a vivên-
cia cotidiana torna-se cada vez mais absurda. Em Hemingway, esse questiona-
mento existencial aproxima-se de um extremo niilismo, ou seja, a percepção de
que a vida não tem nenhum sentido intrínseco, portanto não há propósito na
existência.

131
Literatura Norte-Americana

Em termos narrativos, esses conceitos filosóficos são desenvolvidos pelo


autor através de duas ideias presentes em várias de suas obras. A primeira é o
moment of truth (hora da verdade), que seria o momento decisivo na vida de
um indivíduo em que ele tem de tomar uma decisão definitiva. Essa noção foi
apropriada por Hemingway das touradas, espetáculos sangrentos e grandiosos,
muito admirados pelo autor – também ali, o toureiro se via frente a frente com
a sua hora da verdade, em que ele poderia alcançar a morte ou a glória. Outra
ideia característica em sua literatura é a de grace under pressure (graciosidade sob
pressão). Para Hemingway, essa era a maior realização de um indivíduo, e muitos
de seus personagens mesmo quando se deparam com extremas dificuldades,
conseguem permanecer seguros de si. Isso mostra que, mesmo que imbuído de
pessimismo e uma obsessão pela morte, também é possível encontrar nas obras
de Hemingway uma afirmação de coragem e firmeza de caráter.

Seus romances raramente se passam nos Estados Unidos, tendo na maioria das
vezes um pano de fundo repleto de grandes eventos ou acontecimentos tendo a
morte como constante: a Guerra Civil Espanhola, safáris na África, histórias de gran-
des caçadas ou pescaria, a 1.ª Guerra Mundial. Mesmo assim, o que se destaca deles
é sua natureza meditativa, uma análise sucinta mas bem direta sobre a existência.

No entanto, foi em seus contos que o estilo econômico e altamente simbólico


de Hemingway alcançou a sua glória. Suas frases curtas e vocabulário concentrado
em muito combinavam com a própria estrutura do conto, dando origem a brilhan-
tes reflexões sobre o sentido da vida e a iminência da morte. Um de seus melhores
trabalhos é o conto A Clean, Well-Lighted Place (Um Lugar Limpo, Bem-Iluminado).

Nessa narrativa, temos a história de dois garçons (um jovem e outro mais velho)
que travam numa madrugada uma discussão sobre expulsar ou não um velho clien-
te que permanece no bar mesmo depois da hora do fechamento. Esse enredo
aparentemente simples, todavia, é o artifício utilizado por Hemingway para dis-
cutir o vazio da existência e a necessidade que os homens (especialmente os mais
velhos) têm de encontrar um“lugar limpo e bem-iluminado” ao se verem perdidos
na escuridão e podridão que permeia o mundo que habitam. O niilismo presente
na narrativa se mostra contundente, especialmente nessa enigmática passagem
onde o leitor tem acesso aos pensamentos do garçom mais velho:
What did he fear? It was not a fear or dread, It was a nothing that he knew too well. It was all a
nothing and a man was a nothing too. It was only that and light was all it needed and a certain
cleanness and order. Some lived in it and never felt it but he knew it all was nada y pues nada y
nada y pues nada. Our nada who art in nada, nada be thy name thy kingdom nada thy will be
nada in nada as it is in nada. Give us this nada our daily nada and nada us our nada as we nada
our nadas and nada us not into nada but deliver us from nada; pues nada. Hail nothing full of
nothing, nothing is with thee. (HEMINGWAY, 1998, p. 291)

132
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

A repetição do termo “nada” ilustra a própria ausência de propósito na vida.


Assim, se a existência é um grande “nada”, o homem também é um nada. A ne-
cessidade de buscar a limpeza e a luz dos bares e cafés nas madrugadas é uma
tentativa de suportar o peso da falta de sentido que na verdade é o que constrói
a realidade. Nem mesmo a religião dota a vivência de algum significado, como
Hemingway parece ilustrar quando na passagem cita o “Pai Nosso”, substituindo
as referências a Deus e à esfera divina por “nada”.

Eventualmente, Ernest Hemingway foi tomado por esse espírito niilista quando
cometeu o suicídio em 1961. Mesmo assim, sua obra permanece mais viva do que
nunca, mostrando um novo caminho (na forma e no conteúdo) para uma literatu-
ra norte-americana em busca de temáticas mais complexas e intensas.

William Faulkner e a tradição sulista


Embora tenha sido um movimento de certa forma bem definido e facilmen-
te identificável, o Modernismo literário norte-americano caracteriza-se por uma
variedade temática e uma multiplicidade de estilos pouca vezes vista na prosa
produzida nos Estados Unidos. Chama atenção que num espaço de poucos anos,
escritores tão brilhantes, mas ao mesmo tempo criando enredos tão diferentes,
tenham surgido num único país.

Ainda assim, alguns nomes da literatura norte-americana apresentam certa


homogeneidade, como os escritores da Lost Generation escrevendo em Paris.
Fitzgerald e Hemingway, mesmo que com narrativas bem distintas, se conhece-
ram e se respeitavam mutuamente, um reconhecendo no outro a evolução da
produção literária dos Estados Unidos.

Alguns outros nomes, contudo, não pertenceram à Lost Generation. Não fi-
xaram residência em Paris nem viviam em meio às celebrações da boemia mo-
dernista do início do século. Mesmo assim, foram fundamentais para a concre-
tização de uma estética literária inovadora que competiria em qualidade com
o Modernismo francês e inglês. Desses, nenhum foi mais significativo do que
William Faulkner (1897-1962), considerado por muitos o maior ficcionista em
prosa da literatura dos Estados Unidos. Com seus trabalhos, o romance e o conto
norte-americano se desenvolvem apontando o caminho para uma vanguarda
literária, mesmo que usando de base uma temática bastante tradicional.
William Faulkner nasceu no estado do Mississippi, no sul dos Estados Unidos,
e lá viveu durante toda a vida. Sua família vinha de uma longa tradição de anti-

133
Literatura Norte-Americana

gos senhores de escravos e militares que lutaram pelo lado da Confederação na


Guerra Civil. Como vários autores consagrados do período modernista, ele não
se graduou em uma universidade, contudo seu vasto conhecimento surgiu de
uma leitura ávida de Shakespeare, dos clássicos da Grécia e de Roma, e da Bíblia.
Essa literatura canônica se juntou ao interesse que Faulkner tinha na leitura de
autores que produziam em sua época, como James Joyce, T.S. Eliot e Joseph
Conrad. Boa parte da riqueza literária das obras do autor vai ser resultado exata-
mente dessa união entre o consagrado e o inovador.
No entanto, o que torna os trabalhos de William Faulkner notáveis e únicos
no meio da estética modernista é a presença (e praticamente ressurreição) de
visão de mundo sulista. Quando o autor começa a escrever, a Guerra Civil já se
encontrava a mais de 60 anos no passado. Contudo, a derrota do Sul permanecia
muito viva na consciência e no dia a dia da população da região, pois o des-
mantelamento da Confederação significou o fim do estilo de vida legitimamente
sulista, a imposição de um modelo econômico industrial vindo do Norte, e um
período de reconstrução que foi marcado por corrupção e ilegalidade.
O sul dos Estados Unidos é o local onde se desenrolam suas narrativas, mas
seus temas, mesmo que fortemente enraizados em temas regionais, alcançam
patamares mais elevados ao lidar com os aspectos mais profundos da natureza
humana. A obra de Faulkner é tão densa porque, partindo de um microcosmo
bem específico, atinge questões universais, aliando o tradicional ao moderno:
“It was by linking the classic Southern romance [...] with the modern sense of
experimental form, by merging a deep-seated sense of regional history with an
awareness of the fracture of historical time, that he (Faulkner) became a major
novelist.” (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 309)
Essa presença do sul em sua literatura se dá em diferentes formas, mas a
mais clara é a presença em seus romances da cidade de Jefferson, localizada no
mítico condado de Yoknapatawpha, no estado do Mississippi. Esse lugar total-
mente fictício foi criado por Faulkner usando como modelo a cidade de Oxford,
no mesmo estado sulista, onde o autor residia. É em Jefferson que vão habitar os
personagens de Faulkner: aristocratas arruinados, ex-escravos negros, brancos
pobres (white trash), entre outros tipos. É criando nessa atmosfera fictícia que o
autor pretende desenvolver o seu tema central: como ele próprio definiu, “the
problems of the human heart in conflict with itself.”
As obras de Faulkner nunca adquiriram status de best-seller, e até mesmo o
valor do seu trabalho só foi devidamente reconhecido depois que o autor rece-
beu o Prêmio Nobel de Literatura em 1949. Seus dois primeiros romances foram
muito pouco lidos, e neles o autor ainda não tinha estabelecido seu estilo mar-
134
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

cante. Isso começa a mudar com seu terceiro trabalho, Sartoris, de 1929. Nele, o
autor utiliza o condado de Yoknapatawpha como a tela onde se desenrola todo
o drama da sociedade sulista servindo de símbolo para questões universais.

É com The Sound and the Fury (O Som e a Fúria), também de 1929, que Faulkner
finalmente encontra sua voz literária. O romance é construído de quatro partes
distintas, cada uma ocorrendo no período de um dia, sendo que uma delas
se passa em 1910 e as outras três em 1928. Cada um desses segmentos tem
um personagem central e uma voz narrativa diferente: a primeira tem como
protagonista Benjy Compson, um homem de 33 anos com retardamento mental;
a segunda é um monólogo de Quentin Compson no dia de seu suicídio em 1910;
posteriormente, é a vez de Jason Compson, através de seu ponto de vista cínico
e oportunista; e finalmente o quarto segmento é focado na empregada negra da
família Compson, Dilsey.

Essa escrita labiríntica e fragmentada de The Sound and the Fury é representa-
tiva não só da produção literária de William Faulkner, mas também serve como
emblema das principais estratégias narrativas utilizadas pelo Modernismo. A
mais evidente é uma prosa fundada no uso do fluxo da consciência, um dos re-
cursos mais famosos da literatura modernista. De acordo com o Dictionary of
Literary Terms and Literary Theory, o fluxo da consciência (em inglês, stream of
consciousness) pode ser definido da seguinte forma:
[Stream of consciousness] refers to that technique which seeks to depict the multitudinous
thoughts and feelings which pass through the mind [...] Virginia Woolf and William Faulkner are
two of the most distinguished developers of the stream of consciousness method. (CUDDON
ed., 1999, p. 866)

Em linhas gerais, portanto, o fluxo da consciência é uma técnica narrativa que


consiste em expressar de forma literária o processo mental dos personagens.
Obras que fazem uso do fluxo da consciência se caracterizam por uma maior
ênfase no aspecto psicológico dos personagens e uma peculiar construção de
frases, na maioria das vezes curtas e indiretamente relacionadas.

Outro elemento usado por Faulkner em The Sound and the Fury que o coloca
na vanguarda modernista é a construção intrincada de seus romances, que por
vezes lembram um labirinto. Manipulando a noção temporal da narrativa, o
autor a torna fragmentada e, por vezes, extremamente complexa. A própria ideia
de conhecimento histórico em seus romances e contos é sujeita a uma espécie
de reconstrução imaginativa, em que o tempo não é linear, mas lacunar.

Os textos de William Faulkner também se caracterizam pela forte presença de


algum elemento gótico ou grotesco, o que torna sua literatura mais densa e en-
135
Literatura Norte-Americana

volve o leitor numa atmosfera fundada no inexplicável. O sul dos Estados Unidos
estava constantemente assombrado pelo passado, e raramente o presente em evo-
lução dava conta dele. Um notável exemplo disso é o conto A Rose for Emily (Uma
Rosa para Emily), uma história de assassinato com um final surpreendente, no qual
se presume que a assassina possa ter tido relações íntimas com o corpo da vítima.

Assim como a Europa terá em James Joyce e Virginia Woolf seus nomes mais
icônicos do movimento modernista, William Faulkner vai representar, nos Esta-
dos Unidos, uma nova forma de escrita que vai quebrar vários paradigmas lite-
rários e inaugurar estratégias narrativas vanguardistas. Contudo, o que torna as
obras de Faulkner tão relevantes é a união desse espírito moderno com a tradi-
cional atmosfera da região sul norte-americana.

John Steinbeck e a Grande Depressão


Todo o excesso, sofisticação, festas e frivolidade da década de 1920 teriam um
dia de chegar ao fim. A conclusão da Jazz Age, todavia, não poderia ter sido mais
chocante do que com a Crise de 1929. Um dos momentos definitivos do século
XX e até hoje a mais devastadora crise econômica da era moderna, a Grande De-
pressão causada pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York iniciou um proces-
so de penúria em grande parte da sociedade e reestruturação da mentalidade
norte-americana.

Em 24 de outubro de 1929, uma queda brusca no valor das ações na Bolsa


de Valores de Nova York iniciou uma crise de âmbito mundial, que duraria quase
uma década. Esse período, chamado de Grande Depressão, teve efeitos devas-
tadores na organização socioeconômica dos Estados Unidos. Várias razões são
apontadas para que as ações despencassem e causassem o crash da Bolsa: a exa-
gerada especulação financeira, a disparidade entre a capacidade produtiva do
país e a capacidade de consumo da população, a distribuição desigual da renda
e a pouca variedade industrial norte-americana (dependente basicamente da
indústria automobilística e da construção civil).

A era da prosperidade da década de 1920 havia terminado. Em 1932 a si-


tuação atinge seu pior nível. Milhares de bancos faliram. Dezenas de milhares
de pessoas perderam tudo e algumas se suicidaram. Mais de 100 mil negócios
fecharam as portas e o nível de desenvolvimento industrial tinha caído mais de
90% se comparado ao período antes da crise. Nas fábricas, os produtos eram em-
pilhados, já que não haviam consumidores suficientes com poder de compra.

136
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

Nas cidades se concentravam os mais de 15 milhões de norte-americanos


desempregados. Ao contrário de países como Alemanha, não havia seguro-
-desemprego, e logo essas pessoas se viram sem comida e sem moradia. Tornou-
-se uma imagem comum da época a chamada “fila do pão”, onde milhões de
pessoas passavam horas na fila para receber como caridade um pedaço de pão
ou um prato de sopa.

Se nos centros urbanos a situação era difícil, no campo a população vivia em


condições ainda mais difíceis. Com a queda do poder aquisitivo, os fazendei-
ros não tinham para quem vender seus produtos. E mesmo que vendessem, era
apenas pelo menor preço possível. Uma enorme massa saída do interior partia
para as cidades em busca de oportunidades ou tentava a sorte trabalhando em
plantações onde os salários eram baixíssimos.

Nenhum autor retratou melhor a natureza da Grande Depressão do que John


Steinbeck (1902-1968). Seus romances são de certa forma uma análise dos pro-
blemas de grande parte da população norte-americana. Até hoje, os principais
trabalhos de Steinbeck são vistos como obras de protesto contra a exploração
capitalista e a favor dos marginalizados e destituídos.

Steinbeck nasceu na Califórnia, e é em seu estado natal que grande parte de


sua ficção é situada. Desde muito jovem, trabalhou muito em diferentes áreas:
foi marinheiro, repórter, pedreiro, farmacêutico, entre outros. Em termos de es-
tudos, durante algum tempo foi aluno da Universidade de Stanford, onde come-
çou a escrever. Sua experiência de trabalho árduo na juventude teve um reflexo
direto em sua produção literária, com protagonistas geralmente tendo uma re-
lação conflituosa com seu manejo diário.

A obra-prima indiscutível de Steinbeck é The Grapes of Wrath (As Vinhas da


Ira), de 1939. Mesmo sendo lançado ao final dá década de 1930, nenhum livro
representou melhor a situação dos Estados Unidos após a Crise de 1929. O ro-
mance é um épico sobre a Grande Depressão e desde a sua publicação teve
enorme popularidade e foi amplamente discutido. Narrando as atribulações de
uma família de camponeses e sua longa jornada em direção à Califórnia, o autor
representa a angústia de toda uma nação.

The Grapes of Wrath se concentra na família dos Joads, trabalhadores agríco-


las do estado de Oaklahoma. Juntamente com vários outros homens do campo,
eles veem grande parte de suas safras destruídas por tempestades e uma grande
seca que se estende pela região central dos Estados Unidos nos primeiros anos
da década de 1930 – esse período ficou conhecido como Dust Bowl, ou “Bacia

137
Literatura Norte-Americana

de Poeira”. Esses trabalhadores – conhecidos como Okies, de Oaklahoma – além


do mais, sofrem com a crise já que não conseguem vender seus produtos e os
bancos ameaçam tomar suas terras. Em busca de melhores oportunidades, eles
partem então para a Califórnia. No caminho, contudo, encontram várias outras
famílias em busca do mesmo sonho.

É interessante notar que The Grapes of Wrath trabalha sua contundente narra-
tiva em dois níveis distintos. Primeiramente, é um romance de forte crítica social,
mostrando como os excessos do capitalismo podem ser responsáveis pela misé-
ria de um povo que quer apenas cultivar a terra e trabalhar honestamente. Por
outro lado, a obra tem um evidente sentimento de esperança, dotando as pes-
soas simples do campo de uma inesgotável perseverança e habilidade de resistir
aos piores problemas. A importância desta obra em sua época (e também nos
dias de hoje) pode ser explicada da seguinte forma:
A tract against social injustice, which aroused vigorous protest and defense from those who
thought of it only as fictionalized propaganda, it remained, after the controversy had died
down, an American epic, a culminating expression of the spiritual and material forces that had
discovered and settled a continent (SPILLER, 1967, p. 216).

John Steinbeck, assim como outros gigantes da ficção em prosa norte-ameri-


cana da primeira metade do século XX, mostrou que a literatura do país entrava
numa fase de crescente vigor criativo e maturidade narrativa. A partir de então,
os Estados Unidos passaram a se encontrar no centro da produção literária mun-
dial e sua influência se tornou indiscutível.

Texto complementar

A rose for Emily


(FAULKNER In McMICHAEL et al., 2001)

[...] She was sick for a long time. When we saw her again, her hair was cut
short, making her look like a girl, with a vague resemblance to those angels
in colored church windows – sort of tragic and serene.

The town had just let the contracts for paving the sidewalks, and in the
summer after her father’s death they began the work. The construction
company came with niggers and mules and machinery, and a foreman

138
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

named Homer Barron, a Yankee – a big, dark, ready man, with a big voice
and eyes lighter than his face. The little boys would follow in groups to hear
him cuss the niggers, and the niggers singing in time to the rise and fall of
picks. Pretty soon he knew everybody in town. Whenever you heard a lot of
laughing anywhere about the square, Homer Barron would be in the center
of the group. Presently we began to see him and Miss Emily on Sunday
afternoons driving in the yellow-wheeled buggy and the matched team of
bays from the livery stable.

At first we were glad that Miss Emily would have an interest, because the
ladies all said,“Of course a Grierson would not think seriously of a Northerner,
a day laborer.” But there were still others, older people, who said that even
grief could not cause a real lady to forget noblesse oblige – without calling it
noblesse oblige. They just said, “Poor Emily. Her kinsfolk should come to her.”
She had some kin in Alabama; but years ago her father had fallen out with
them over the estate of old lady Wyatt, the crazy woman, and there was no
communication between the two families. They had not even been repre-
sented at the funeral.

And as soon as the old people said, “Poor Emily,” the whispering began.
“Do you suppose it’s really so?” they said to one another. “Of course it is. What
else could . . .”This behind their hands; rustling of craned silk and satin behind
jalousies closed upon the sun of Sunday afternoon as the thin, swift clop-
clop-clop of the matched team passed: “Poor Emily.”

She carried her head high enough – even when we believed that she was
fallen. It was as if she demanded more than ever the recognition of her dignity
as the last Grierson; as if it had wanted that touch of earthiness to reaffirm
her imperviousness. Like when she bought the rat poison, the arsenic. That
was over a year after they had begun to say “Poor Emily,” and while the two
female cousins were visiting her.

“I want some poison,” she said to the druggist. She was over thirty then,
still a slight woman, though thinner than usual, with cold, haughty black
eyes in a face the flesh of which was strained across the temples and about
the eyesockets as you imagine a lighthouse-keeper’s face ought to look. “I
want some poison,” she said.

“Yes, Miss Emily. What kind? For rats and such? I’d recom –”

139
Literatura Norte-Americana

“I want the best you have. I don’t care what kind.”

The druggist named several. “They’ll kill anything up to an elephant. But


what you want is –”

“Arsenic,” Miss Emily said. “Is that a good one?”

“Is . . . arsenic? Yes, ma’am. But what you want –”

“I want arsenic.”

The druggist looked down at her. She looked back at him, erect, her face
like a strained flag.“Why, of course,” the druggist said.“If that’s what you want.
But the law requires you to tell what you are going to use it for.”

Miss Emily just stared at him, her head tilted back in order to look him
eye for eye, until he looked away and went and got the arsenic and wrapped
it up. The Negro delivery boy brought her the package; the druggist didn’t
come back. When she opened the package at home there was written on the
box, under the skull and bones: “For rats.”

So the next day we all said, “She will kill herself”; and we said it would
be the best thing. When she had first begun to be seen with Homer Barron,
we had said, “She will marry him.” Then we said, “She will persuade him yet,”
because Homer himself had remarked – he liked men, and it was known that
he drank with the younger men in the Elks’ Club – that he was not a marrying
man. Later we said, “Poor Emily” behind the jalousies as they passed on
Sunday afternoon in the glittering buggy, Miss Emily with her head high and
Homer Barron with his hat cocked and a cigar in his teeth, reins and whip in
a yellow glove.

Then some of the ladies began to say that it was a disgrace to the town
and a bad example to the young people. The men did not want to interfere,
but at last the ladies forced the Baptist minister – Miss Emily’s people were
Episcopal – to call upon her. He would never divulge what happened during
that interview, but he refused to go back again. The next Sunday they again
drove about the streets, and the following day the minister’s wife wrote to
Miss Emily’s relations in Alabama.

So she had blood-kin under her roof again and we sat back to watch
developments. At first nothing happened. Then we were sure that they

140
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

were to be married. We learned that Miss Emily had been to the jeweler’s
and ordered a man’s toilet set in silver, with the letters H. B. on each piece.
Two days later we learned that she had bought a complete outfit of men’s
clothing, including a nightshirt, and we said, “They are married. “ We were
really glad. We were glad because the two female cousins were even more
Grierson than Miss Emily had ever been.

So we were not surprised when Homer Barron – the streets had been finished
some time since – was gone. We were a little disappointed that there was not
a public blowing-off, but we believed that he had gone on to prepare for Miss
Emily’s coming, or to give her a chance to get rid of the cousins. (By that time it
was a cabal, and we were all Miss Emily’s allies to help circumvent the cousins.)
Sure enough, after another week they departed. And, as we had expected all
along, within three days Homer Barron was back in town. A neighbor saw the
Negro man admit him at the kitchen door at dusk one evening.

And that was the last we saw of Homer Barron. And of Miss Emily for some
time. The Negro man went in and out with the market basket, but the front
door remained closed. Now and then we would see her at a window for a
moment, as the men did that night when they sprinkled the lime, but for
almost six months she did not appear on the streets. Then we knew that this
was to be expected too; as if that quality of her father which had thwarted her
woman’s life so many times had been too virulent and too furious to die.

When we next saw Miss Emily, she had grown fat and her hair was turning
gray. During the next few years it grew grayer and grayer until it attained an
even pepper-and-salt iron-gray, when it ceased turning. Up to the day of her
death at seventy-four it was still that vigorous iron-gray, like the hair of an
active man.

From that time on her front door remained closed, save for a period of six
or seven years, when she was about forty, during which she gave lessons in
china-painting. She fitted up a studio in one of the downstairs rooms, where
the daughters and grand-daughters of Colonel Sartoris’ contemporaries were
sent to her with the same regularity and in the same spirit that they were sent
to church on Sundays with a twenty-five-cent piece for the collection plate.
Meanwhile her taxes had been remitted.

Then the newer generation became the backbone and the spirit of the
town, and the painting pupils grew up and fell away and did not send their

141
Literatura Norte-Americana

children to her with boxes of color and tedious brushes and pictures cut from
the ladies’ magazines. The front door closed upon the last one and remained
closed for good. When the town got free postal delivery, Miss Emily alone
refused to let them fasten the metal numbers above her door and attach a
mailbox to it. She would not listen to them.

Daily, monthly, yearly we watched the Negro grow grayer and more
stooped, going in and out with the market basket. Each December we
sent her a tax notice, which would be returned by the post office a week
later, unclaimed. Now and then we would see her in one of the downstairs
windows – she had evidently shut up the top floor of the house – like the
carven torso of an idol in a niche, looking or not looking at us, we could
never tell which. Thus she passed from generation to generation – dear,
inescapable, impervious, tranquil, and perverse.

And so she died. Fell ill in the house filled with dust and shadows, with only
a doddering Negro man to wait on her. We did not even know she was sick;
we had long since given up trying to get any information from the Negro. He
talked to no one, probably not even to her, for his voice had grown harsh and
rusty, as if from disuse.

She died in one of the downstairs rooms, in a heavy walnut bed with a
curtain, her gray head propped on a pillow yellow and moldy with age and
lack of sunlight.

The negro met the first of the ladies at the front door and let them in, with
their hushed, sibilant voices and their quick, curious glances, and then he
disappeared. He walked right through the house and out the back and was
not seen again.

The two female cousins came at once. They held the funeral on the second
day, with the town coming to look at Miss Emily beneath a mass of bought
flowers, with the crayon face of her father musing profoundly above the bier
and the ladies sibilant and macabre; and the very old men – some in their
brushed Confederate uniforms – on the porch and the lawn, talking of Miss
Emily as if she had been a contemporary of theirs, believing that they had
dancedwithherandcourtedherperhaps, confusingtimewithitsmathematical
progression, as the old do, to whom all the past is not a diminishing road, but,
instead, a huge meadow which no winter ever quite touches, divided from
them now by the narrow bottleneck of the most recent decade of years.

142
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

Already we knew that there was one room in that region above stairs which
no one had seen in forty years, and which would have to be forced. They waited
until Miss Emily was decently in the ground before they opened it.

The violence of breaking down the door seemed to fill this room with
pervading dust. A thin, acrid pall as of the tomb seemed to lie everywhere
upon this room decked and furnished as for a bridal: upon the valance curtains
of faded rose color, upon the rose-shaded lights, upon the dressing table, upon
the delicate array of crystal and the man’s toilet things backed with tarnished
silver, silver so tarnished that the monogram was obscured. Among them lay
a collar and tie, as if they had just been removed, which, lifted, left upon the
surface a pale crescent in the dust. Upon a chair hung the suit, carefully folded;
beneath it the two mute shoes and the discarded socks.

The man himself lay in the bed.

For a long while we just stood there, looking down at the profound
and fleshless grin. The body had apparently once lain in the attitude of an
embrace, but now the long sleep that outlasts love, that conquers even the
grimace of love, had cuckolded him. What was left of him, rotted beneath
what was left of the nightshirt, had become inextricable from the bed in
which he lay; and upon him and upon the pillow beside him lay that even
coating of the patient and biding dust.

Then we noticed that in the second pillow was the indentation of a head.
One of us lifted something from it, and leaning forward, that faint and invisible
dust dry and acrid in the nostrils, we saw a long strand of iron-gray hair.

Dicas de estudo
O romance The Great Gatsby recebeu uma famosa adaptação para o cinema
com roteiro de Francis Ford Coppola, estrelando Robert Redford como Jay
Gatsby e Mia Farrow como Daisy. O filme capta muito bem o espírito da Jazz Age,
ao mesmo tempo em que analisa a derrocada do protagonista em decorrência
da subversão do conceito do sonho americano.

DONALDSON, Scott. The Cambridge Companion to Hemingway. Cambridge-


USA, 1996. A relação entre a vasta e riquíssima vida de Ernest Hemingway (que

143
Literatura Norte-Americana

viveu na França, na Espanha, nos Estados Unidos e em Cuba) e suas obras pode
ser melhor compreendida com o livro. Esta obra de estudo analisa diferentes
aspectos da literatura do grande profeta da Lost Generation e também apresenta
os pontos de vista políticos e sociais do escritor.

Atividades
1. Por que a literatura de F. Scott Fitzgerald é extremamente representativa do
período conhecido como The Jazz Age?

144
A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX

2. Quais elementos narrativos utilizados por William Faulkner caracterizam suas


obras como exemplos literários do Modernismo?

145
A poesia norte-americana
na 1.ª metade do século XX
Com uma nova perspectiva econômica, social e cultural, o século XX
abalou fortemente conceitos preestabelecidos sobre a literatura e a forma
com que era produzida. O Modernismo, como amplo movimento artísti-
co que foi, procurava romper com os paradigmas da criação literária para
inaugurar um período de vanguarda, em que inovações no desenvolvi-
mento do processo artístico se realizaram. Na prosa, os diferentes ventos
da mudança aproximaram os autores das transformações sociais pelas
quais passavam os Estados Unidos. Além disso, grande parte da escrita foi
fortemente marcada por uma influência da psicologia e do existencialis-
mo do período.

Pode-se dizer, de certa forma, que a poesia produzida nos Estados


Unidos do início do século XX foi ainda mais representativa das inovações
estéticas do Modernismo. A subjetividade poética moderna sofreu uma
série de alterações na forma e no conteúdo com o qual era transformada
em verso. Novas ideias mereciam uma nova maneira de escrita, e assim
todo um inédito questionamento sobre a natureza da experiência da
poesia foi sendo delineada.

Autores como Robert Frost, Elizabeth Bishop e, especialmente, T.S. Eliot


e Ezra Pound, transformaram a forma com que a poesia era escrita e lida.
Seus poemas estão entre os mais importantes não só do século XX, mas
também de toda a história da literatura. Esta marcante vanguarda poética
foi um dos mais importantes símbolos artísticos de uma nova visão de
mundo que (tirando notáveis exceções) tinha como característica ser no-
tadamente norte-americana.

Robert Frost: a natureza como poesia


A formação de uma nova poesia norte-americana passou, no início do
século XX, pelas páginas da Poetry, uma revista literária de Chicago na
qual os principais poetas do país procuravam definir, através da publica-
ção de seus trabalhos e da discussão das escolhas editoriais, uma estética
Literatura Norte-Americana

modernista para a poesia dos Estados Unidos. Traduzir a experiência modernis-


ta, contudo, não foi tarefa fácil. Dentro da própria Poetry, duas diferentes versões
do moderno coexistiam:
One drew on the cosmopolitan inheritance, with its decadence, symbolism, critical questioning
of modern culture and quest for a new supreme fiction; the other stood on native ground,
Emerson and Whitman, local color and progressive romantic confidence. Both lines were
to prove crucial to American poetry and indeed became most forceful when they began to
interact with each other. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 280)

O mais proeminente poeta do grupo ligado a uma escrita romântica e a uma


maior aproximação da natureza foi Robert Frost (1874-1963). A inclusão da pro-
dução poética de Frost no movimento modernista norte-americano até hoje é
motivo de debate entre críticos, já que suas obras diferem bastante em estilo
do que foi produzido por outros poetas da primeira metade do século XX. No
entanto, mesmo que o radicalismo moderno (na forma e no conteúdo) não seja
encontrado em suas poesias, a vitalidade de sua expressão poética está em sin-
tonia com um novo tempo que começava nos Estados Unidos.

Apesar de ter nascido em São Francisco, Robert Frost e sua poesia são para
sempre associados à região rural da Nova Inglaterra, onde passou a viver a partir
de sua juventude. Cursou a Universidade de Harvard por apenas dois anos, para
depois abandonar o curso e trabalhar como professor e pequeno fazendeiro;
mas Frost já escrevia poesia, e tinha grande interesse em seguir uma carreira
literária. Em 1912, decidido a dar uma guinada em sua vida, o autor se muda
com sua família para a Inglaterra. Na Europa, apesar de expatriado, Frost não se
junta diretamente à geração de escritores norte-americanos em busca de uma
vanguarda moderna. Seu trabalho se aproxima mais dos poetas da natureza
ingleses. Mesmo assim, figuras icônicas do Modernismo, como Ezra Pound, se
tornam grandes admiradores da poesia de Frost, e ajudam o escritor a publicar
seus primeiros trabalhos em Londres: A Boy’s Will, de 1913, e North of Boston,
de 1914. Esses primeiros trabalhos, que deram origem a uma prolífica carreira,
proporcionaram grande reputação a Robert Frost. O autor decide então retornar
aos Estados Unidos e em seu país finalmente passa a receber o reconhecimento
merecido.

Em Frost, é latente a permanência do legado do Romantismo. Assim como


Whitman e Emerson, ele encontra na natureza a matéria-prima de sua escrita,
tirando dela a essência de sua subjetividade poética. A paixão pela natureza ex-
pressa em sua poesia pode ser considerada um reflexo de sua vivência tão pró-
xima dos elementos da terra. Essa relação é explicada por Carolina Nabuco da
seguinte forma:

148
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

Frost foi na poesia o que era na vida, um farmer, um lavrador. Viveu com as mãos cheias de terra
e os olhos cheios de deslumbramento para cada momento da natureza. Cantou-a em todos os
aspectos, cantou a neve, as árvores, os bichos, a água e as quatro estações. Seu talento imbuía-
-se do que a natureza tem de mais inspirador. (NABUCO, 2000, p. 208)

Assim, aspectos simples e cotidianos da natureza e de sua relação com o


homem – a colheita de maçãs, a neve, os caminhos cobertos de folhas, as es-
tações do ano – são descritos por Frost em toda a sua singeleza. A voz de seus
poemas, geralmente com uma linguagem direta e nem um pouco rebuscada,
pode fazer pensar num poeta com pouca técnica. Essa aparente ingenuidade,
contudo, é uma face do rico simbolismo presente nos poemas de Robert Frost.
Os acontecimentos triviais da natureza envolvendo o homem são representa-
ções de grandes verdades que só podem surgir da simplicidade poética.

A comunhão do homem com a natureza, apesar de ser um tema-chave da


poesia romântica, se dá nos poemas de Frost em outra ordem. Nos trabalhos do
autor, não há a completude, a certeza e a autoconfiança herdados do transcen-
dentalismo de Emerson; pelo contrário, encontramos a incerteza e o mistério
com o qual se depara o homem ao se relacionar com o que vem da natureza.
Portanto, se é possível falar de uma influência temática do Romantismo na litera-
tura de Frost, uma postura romântica do autor diante da natureza já é algo mais
distante. A realidade conturbada do século XX, com sua crescente urbanização,
aceleração da vivência cotidiana e diminuição da ênfase religiosa se faz presente
nos poemas do autor não de forma objetiva, mas através da mudança de pers-
pectiva que o indivíduo tem com a natureza:
One of the key questions for the poets of Frost’s generation was whether a Whitmanian or
Emersonian Romantic posture was recoverable in the modern urban and secular world.
Frost gives us little of that world as a place, but he responds to its poetic condition. [...] He is
concerned both with the difficulty of finding meaning in the thing perceived and the danger
of unacknowledged sellf-shaped perception. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 283)

É interessante que essa “dificuldade de achar um significado” ocorra em


poemas tão curtos e aparentemente tão simples como os de Robert Frost – mas
daí flui sua riqueza literária. O poema mais famoso de Frost – The Road Not Taken
(A Estrada Não Trilhada) – ilustra isso muito bem:
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,


And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;

149
Literatura Norte-Americana

Though as for that the passing there


Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay


In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh


Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I –
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

No poema, o eu lírico encontra-se na mata quando se depara com uma divi-


são do caminho que seguia. Existem, portanto, duas estradas a seguir. Ele fica um
tempo a olhar para uma delas, mas decide seguir a outra, embora ambas sejam
praticamente iguais. Ao final, ele afirma que no futuro, ao narrar esse aconteci-
mento, dirá que tomou a estrada menos usada, e isso fez toda a diferença.

Até hoje, The Road Not Taken é usado como uma espécie de manifesto poéti-
co sobre a independência, a autoafirmação e o não-conformismo. Baseando-se
estritamente nos dois últimos versos, muitos acreditam que ao escolher o cami-
nho menos usado, o poeta estabelece um ideal em favor do livre-arbítrio e que
a “diferença” que isso fez é extremamente positiva, levando a um crescimento
individual e à reafirmação de suas crenças.

Apesar de aparentemente simples, The Road Not Taken (assim como a nature-
za que ele representa) escapa a explicações cristalizadas. O próprio Robert Frost
afirmou que era um tricky poem (poema complicado). Primeiramente, o poema
ilustra uma situação-chave: a tomada de uma decisão que pode definir o seu
futuro. Nesse caso, existe sim a presença do livre-arbítrio na escolha do caminho,
mas não há em seus versos atitude moralizante sobre o melhor caminho. Isso
porque na verdade as estradas apresentadas no poema são praticamente iguais,
o que torna o elemento natural do poema ainda mais obscuro, e a decisão ainda
mais difícil. Ao fazer sua escolha final, o eu lírico chega a afirmar que um dia vai
trilhar o outro caminho, embora duvide que um dia ainda retornará a ele. Essa
sensação de arrependimento é clara no poema, muito mais forte que qualquer
sinal de elogio ao não-conformismo. Até mesmo o título do poema, The Road
Not Taken, ilustra isso – o mistério do caminho não-trilhado é maior do que a
certeza de saber que estrada percorrer.

Mesmo a tão citada última estrofe pode ser lida ironicamente. O eu lírico
afirma que irá suspirar quando recontar esse acontecimento na mata, e esse

150
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

suspiro – que muitos veem como alívio – também pode ser a expressão de um
profundo arrependimento. Daí sua preferência em dizer que tomou a estrada
menos viajada, mesmo que antes tenha afirmado que ambas eram iguais. Assim,
a “diferença” que isso fez no futuro ganha um caráter moralmente ambíguo.

T.S. Eliot & Ezra Pound:


trilhando caminhos modernos
Embora tenha sido um dos poetas mais respeitados de sua geração, Robert
Frost era uma voz dissonante na literatura norte-americana do início do século XX.
Sua sensibilidade romântica já era considerada datada, e vários poetas procuravam
uma nova forma de representação da condição humana no período que sucedeu
a 1.ª Guerra Mundial. Foi o momento em que as ilusões românticas deram lugar a
uma percepção mais fria e cética da realidade, em que o mundo transcendental
de Emerson e Whitman foi substituído pelo local da angústia e desesperança. Essa
nova perspectiva moderna necessitava de uma forma poética de vanguarda, rom-
pendo com os paradigmas românticos considerados já ultrapassados.

Toda a geração poética moderna encontrou em T.S. Eliot (1888-1965) a sua


voz, e em suas obras, um modelo. Eliot foi a figura dominante da poesia norte-
-americana (e de certa forma, de toda a poesia em língua inglesa) na primeira
metade do século XX. Seus poemas contemplavam de maneira insuperável os
principais temas da arte da época que procurava compreender, analisar e discu-
tir uma experiência de vida moderna, urbana e pós-guerra.

Eliot vinha de uma família proeminente da Nova Inglaterra, cujos antepassa-


dos remetiam aos primeiros colonos dos Estados Unidos. Na juventude, cursou
a Universidade de Harvard, onde estudou Filosofia e Literatura. Posteriormen-
te, fez o seu doutorado, quando consolidou seu gosto pelos poetas simbolistas
franceses, como Rimbaud e Verlaine. Quando eclode a 1.ª Guerra Mundial, ele se
estabelece em Londres onde trabalha em um banco, mas já se dedicava à escrita
de poemas.

Em 1917, Eliot publica seu primeiro livro de poesia: Prufrock and Other Obser-
vations (Prufrock e Outras Observações). É nesta obra que se encontra o primeiro
grande poema do autor: The Love Song of J. Alfred Prufrock (A Canção de Amor de
J. Alfred Prufrock). Com esse trabalho o autor inova na sua descrição simbólica da
realidade e com originais técnicas literárias que se tornariam características do
Modernismo. O eu lírico (representado na figura de J. Alfred Prufrock) do poema
151
Literatura Norte-Americana

aparenta ser um homem de meia-idade tomado por um forte sentimento de


frustração. A “canção de amor” que dá título à obra é na verdade uma ironia, já
que o Prufrock raramente age e não consegue dizer o que pretende. Os primei-
ros versos do poema são um bom exemplo:
Let us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question . . .
Oh, do not ask, “What is it?”
Let us go and make our visit.

In the room the women come and go


Talking of Michelangelo.

Nessa passagem, chama atenção o tom melancólico da descrição de Prufrock,


utilizando metáforas que exprimem um mundo desolado e estéril. A comparação
da noite estendida sobre o céu com um paciente coberto de éter sobre uma mesa
é morbidamente chocante (“the evening is spread out against the sky / Like a
patient etherized upon a table”), mas representativa da visão que Prufrock tem
do mundo e que os próprios leitores podem vir a ter de Prufrock, já que ele não
age, como se estivesse dopado. A atmosfera lúgubre (escura, negra) é reforçada
por uma série de imagens (ruas semidesertas, restaurantes empoeirados, noites
inquietas) que leva o protagonista a tentar fazer uma pergunta reveladora
(“overwhelming question”), mas que não consegue ser enunciada.

Assim com as ruas da cidade vazia que existem numa sucessão labiríntica
“como uma tediosa discussão”, o poema também recusa uma progressão linear e
claramente definida, e esse efeito é construído por T.S. Eliot usando importantes
recursos literários da poesia moderna. O primeiro é o fluxo da consciência
– a descrição dos acontecimentos feita por J. Alfred Prufrock não tem uma
sequência lógica, como se as frases fossem sendo organizadas de acordo com
a sua confusão mental. Além do mais não fica claro se as imagens apresentadas
por Prufrock são reais – ele realmente está caminhando pelas ruas observado o
céu – ou se elas são representações de seu inconsciente.

Outro recurso usado por Eliot em The Love Song of J. Alfred Prufrock é a frag-
mentação poética, que enfatiza o sentido de deslocamento do indivíduo com
relação ao mundo. Isso pode ser demonstrado nas sucessivas descrições da at-

152
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

mosfera urbana feitas pelo eu lírico, mas também nas diversas referências feitas
pelo poema (Shakespeare, Dante, poetas metafísicos) que ilustram a abundância
de antigas tradições literárias numa época que não consegue definir sua própria
identidade. Essa fragmentação chega ao nível da forma, como quando Eliot usa
a técnica conhecida como enjambement (a quebra da estrutura sintática entre
dois versos) ou na irregular estrutura de rimas.

Em 1922, T.S. Eliot chega à maturidade artística com a publicação de The Waste
Land. Considerado por vários críticos o principal poema da primeira metade do
século XX, The Waste Land vai ilustrar como nenhuma outra obra do período o
pensamento e a estética modernista. É com esse poema que toda uma gera-
ção literária vai se consolidar como realmente moderna, além de confirmar Eliot
como o principal poeta dos Estados Unidos. Como afirma Carolina Nabuco sobre
o autor: “Esse longo poema, em que procura o destino e o traçado do homem
do século XX à luz de todo o passado humano na história e no mito, colocou-o
definitivamente entre os maiores poetas do século.” (NABUCO, 2000, p. 240)

The Waste Land é um poema extenso, dividido em cinco partes. Extremamente


denso e arquitetado de maneira complexa, ele tem como tema principal a situa-
ção de decadência e ausência de sentido em que se encontra a cultura ocidental
(e o próprio homem) após a 1.ª Guerra Mundial. Assim como em The Love Song
of J. Alfred Prufrock, Eliot vai usar diversos artifícios poéticos que se tornariam
típicos do Modernismo, como o monólogo dramático, o fluxo da consciência e
alusões literárias. No entanto, em The Waste Land o escopo de sua empreitada
é mais grandiosa, envolvendo aspectos religiosos, psicológicos e artísticos que
serão o retrato poético da humanidade que se encontra num estado de torpor.
De forma geral, o poema pode ser interpretado da seguinte forma:
This five-part work distills what we now know was a personal psychic crisis into a vision of a
wasted world of lost religious faith and total cultural decline, of clinics and breakdowns, sterile
sexual liaisons and futile entertainments, of Babylonish cities of degeneration where all faces
are blank and where commerce dominates. It was [...] a quest for feeling, faith and prophecy
in an age that felt itself cut off from history and meaning [...] It deals at once with historical,
spiritual, religious and psychic crisis. (BRADBURY; RULAND, 1992, p. 264-265)

Os primeiros versos da primeira parte do poema, intitulada The Burial of the


Dead, servem de exemplo para representar a visão de Eliot de um mundo em
declínio em diferentes esferas:
April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering

153
Literatura Norte-Americana

Earth in forgetful snow, feeding


A little life with dried tubers.
Summer surprised us, coming over the Starnbergersee
With a shower of rain; we stopped in the colonnade,
And went on in sunlight, into the Hofgarten,
And drank coffee, and talked for an hour.
Bin gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.
And when we were children, staying at the archduke’s,
My cousin’s, he took me out on a sled,
And I was frightened. He said, Marie,
Marie, hold on tight. And down we went.
In the mountains, there you feel free.
I read, much of the night, and go south in the winter.
What are the roots that clutch, what branches grow
Out of this stony rubbish? Son of man,
You cannot say, or guess, for you know only
A heap of broken images, where the sun beats,
And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,
And the dry stone no sound of water. Only
There is shadow under this red rock,
(Come in under the shadow of this red rock),
And I will show you something different from either
Your shadow at morning striding behind you
Or your shadow at evening rising to meet you;
I will show you fear in a handful of dust.

O primeiro verso do poema pode ser interpretado como uma referência ao


livro The Canterbury Tales (Os Contos da Cantuária) de Geoffrey Chaucer. Na obra
de Chaucer, abril é o mês do recomeço, da felicidade que surge com o fim do
inverno (no hemisfério norte) e do início das peregrinações religiosas. No poema
de Eliot, com o verso “April is the cruellest month” (abril é o mês mais cruel),
temos uma inversão de sentido. Em um mundo caracterizado pela melancolia
e pela ideia de finitude, a esterilidade do inverno é mais desejada do que uma
ideia falsa de fertilidade. O inverno, como mencionado no poema, é que deixou
as pessoas aquecidas (“winter kept us warm”), especialmente porque cobria as
memórias com a neve, que não deixava os indivíduos se lembrarem dos perío-
dos de felicidade que um dia tiveram – e assim os faria ver a situação de deses-
pero que se encontravam no presente.

As imagens usadas para representar a situação atual da sociedade são repre-


sentativas da perspectiva que Eliot tinha da modernidade: lixo rochoso (“stony
rubbish”), imagens fragmentadas (“broken images”), árvores mortas que não
oferecem abrigo (“dead tree gives no shelter”). Nessa atmosfera árida, o homem
que procura a redenção só encontra a agonia e o medo (“I will show you fear in
a handful of dust”). Essa atmosfera de desalento ecoou em praticamente toda a
poesia moderna nos Estados Unidos e também na Europa, marcando um pro-
fundo pessimismo no pensamento da literatura ocidental.

154
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

Se T.S. Eliot foi a figura central do Modernismo, Ezra Pound (1885-1972) foi
aquele que deu a base teórica e formal ao movimento. Mais do que isso – sem o
apoio e a influência de Pound, os primeiros livros de Eliot e Robert Frost teriam
encontrado muito mais dificuldade para serem publicados. Considerado por
muitos o “pai” do movimento moderno, foi Pound o principal responsável por
unificar as poesias europeia e norte-americana sob uma nova revolucionária es-
tética literária.

Pound nasceu no estado de Idaho, mas foi criado na Pennsylvania. Na univer-


sidade, era proficiente em latim e estudou boa parte dos clássicos europeus. Foi
durante esse período que o poeta começou a articular um plano para revitali-
zar a poesia norte-americana. No entanto, ele concluiu que a solução era iniciar
uma revolução das letras através da expatriação, renegando os modelos nativos
preexistentes. Assim, Pound vai para Londres e lá promove, junto com outros
escritores europeus e norte-americanos, o surgimento da experiência moderna
em literatura.

Nesse período, a escrita de Ezra Pound é associada ao movimento conhecido


como Imagismo, que ele ajudou a criar. O Imagismo teve extrema importância
para a poesia moderna porque, através dele, foi possível definir uma direção e
os principais elementos de uma nova forma de escrita em verso que surgia. Foi
na revista Poetry de Chicago, em que Pound era co-editor, que ele anunciou o
surgimento do Imagismo e seus principais preceitos:
Use no superfluous word, no adjective which does not reveal something…
Go in fear of abstractions. Don’t tell in mediocre verse what has already been done in good
prose…
Don’t imagine that the art of poetry is any simpler than the art of music…
(POUND In: BRADBURY; RULAND, 1992, p. 260)

Assim sendo, a poesia imagista (e, por conseguinte, a modernista) deveria ter
uma linguagem direta, precisa, despida do sentimentalismo romântico. Nenhuma
palavra deveria ser usada em vão, e seu sentido deveria se relacionar diretamente
à apresentação da ideia central do poema. O Imagismo foi um movimento essen-
cialmente concretista. Nele, o simbolismo, a alegoria e a abstração do Romantismo
são substituídos por um significado direto, concreto e até mesmo impessoal.

O estilo imagista dos trabalhos de Pound também foi influenciado pela


poesia chinesa e japonesa que tanto interessavam ao poeta. As técnicas de es-
crita orientais posteriormente se tornariam moda entre os modernistas, já que a

155
Literatura Norte-Americana

escrita direta dos haikus1 muito tinha a ver com a proposta concretista de Pound
e seus contemporâneos. Isso pode ser notado no curtíssimo poema de duas
linhas In a Station of the Metro:

“The apparition of these faces in the crowd;


Petals on a wet, black bough.”

Num estilo reminiscente do ideograma japonês, o poeta lida aqui com um


conceito abstrato através de elementos concretos. Existe a justaposição dos
dois objetos centrais – os rostos (“faces”) e as pétalas (“petals”) – e aí cria-se uma
imagem que prescinde de metáforas ou comparações. A visão simbólica é cons-
truída precisamente através da forma da poesia.

A 1.ª Guerra Mundial abala fortemente a crença de Ezra Pound na civilização


ocidental moderna. Em 1920, o poeta parte de Londres para morar em Paris, mas
não sem antes escrever o claramente satírico poema Hugh Selwyn Mauberley.
Neste longo poema dividido em 18 partes, Pound analisa e critica parte de
seu trabalho anterior. A primeira parte é ironicamente intitulada E.P. Ode Pour
L’Election De Son Sepulchre, ou seja, “Ezra Pound, Ode à Escolha de Seu Túmulo”.
Não é à toa que esse poema marca um novo começo para a carreira do poeta.
Em seus versos iniciais, o poema diz:
For three years, out of key with his time,
He strove to resuscitate the dead art
Of poetry; to maintain “the sublime”
In the old sense. Wrong from the start –

No, hardly, but seeing he had been born


In a half savage country, out of date;
Bent resolutely on wringing lilies from the acorn;
Capaneus; trout for factitious bait

O tom do poema é crítico não só pela suposta luta vã do autor em tentar reno-
var a poesia, que se encontrava praticamente morta (“He strove to resuscitate the
dead art / Of poetry”). No entanto, ele havia nascido num país praticamente sel-
vagem (“he had been born / In a half savage country”), ou seja, os Estados Unidos,
o que prejudicava sua intenção de articular uma poesia realmente nova.

Esse afastamento de Pound de seu país de origem vai ser um tema recorren-
te na obra e na biografia do autor. Ainda em sua fase londrina, o poeta tentou
reconhecer suas origens norte-americanas através de um pacto poético com a

1
Haiku é um tipo de poema japonês bastante curto, com apenas dezessete sílabas. Através dele é apresentada uma única ideia, imagem ou
sentimento.

156
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

principal figura com a qual o movimento modernista procurava romper: Walt


Whitman. No poema exatamente intitulado A Pact, Pound deixa claro sua rela-
ção conflituosa com o autor de Leaves of Grass:
I make a pact with you, Walt Whitman –
I have detested you long enough.
I come to you as a grown child
Who has had a pig-headed father;
I am old enough now to make friends.
It was you that broke the new wood,
Now is a time for carving.
We have one sap and one root –
Let there be commerce between us.

Embora deixe clara a desavença estética que existe entre os dois (“I have
detested you long enough”), Pound reconhece que foi Whitman o criador de uma
primeira vanguarda norte-americana (“It was you that broke the new wood”) e
que, já que são fruto da criação literária norte-americana (“We have one sap and
one root”), a relação entre ambos deve ser ricamente inspiradora (“Let there be
commerce between us”).

Depois de sua temporada em Paris, Pound parte para a Itália onde, sob a influ-
ência das ideias de Mussolini, passa a se dedicar ao estudo de teoria econômica.
A partir daí, se torna bastante crítico em relação ao capitalismo norte-americano
e se revela antissemita. Durante a 2.ª Guerra Mundial, faz campanha a favor do
fascismo. Com o fim do conflito, é condenado por traição e preso num campo
de prisioneiros na Itália. Posteriormente, é declarado louco e internado em uma
instituição psiquiátrica nos Estados Unidos.

Durante sua prisão na Itália, Pound consegue escrever os mais famosos


poemas de sua monumental obra The Cantos. Embora o mérito dessa obra tenha
sido muito discutido – já que tinha sido composta por um traidor – a qualidade
artística dos The Pisan Cantos (assim chamados porque foram compostos em um
campo de prisioneiros perto da cidade de Pisa) supera a polêmica.

The Cantos é uma obra inspirada na Odisseia de Homero e nas poesias orien-
tais que tanto fascinavam Pound. No entanto, o poeta usa essas referências para
traçar um panorama de suas memórias, dos amigos que já se foram e dos bons
momentos e arrependimentos de sua vida. Misturando um tom mítico, lírico e
profundamente pessoal, os Cantos de Pound são a confirmação final do talento
e da importância do poeta para a poesia do século XX.

157
Literatura Norte-Americana

Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil


A partir da década de 50 do século XX, o Modernismo se desenvolveu. A ne-
cessidade de demolir paradigmas e criar uma vanguarda literária já não era prio-
ridade – até porque a estética modernista já tinha deixado de ser revolucionária
para se tornar o estilo poético dominante. O pessimismo de Eliot e o concre-
tismo de Pound, apesar de presentes, tinham deixado de ser as características
dominantes da poesia. Dentro do movimento modernista, vários poetas procu-
ram um estilo próprio, capaz de expor a sua subjetividade estendendo os limites
dentro da forma poética moderna.
Dentre esses autores, uma das vozes mais significativas foi a de Elizabeth
Bishop (1911-1979). Bishop nasceu no estado de Massachusetts, mas foi uma
mulher do mundo. Viajou durante muito tempo pelo Canadá, Europa e América
do Sul. Teve residência fixa no Brasil, onde viveu por 17 anos. Grande parte de
sua poesia é em resposta a essas viagens e às experiências no estrangeiro. Atu-
ante no meio universitário e em revistas literárias, a autora gradualmente cons-
truiu sua carreira até tornar-se um dos nomes mais importantes da fase tardia do
movimento modernista.
Após a morte de seu pai, Elizabeth Bishop recebe uma herança considerá-
vel que lhe permite levar uma vida confortável viajando ao redor do globo. Ela
era grande leitora de T.S. Eliot e conhecia as teorias e o estilo do mais notório
dos poetas modernistas. No entanto, a condição peculiar de Bishop lhe permi-
tiu criar uma poesia mais pessoal. Há em seus poemas um forte sentimento de
desapego, mas ao mesmo tempo de busca por um terreno seguro. Mulher, órfã,
lésbica, estrangeira e – mais tarde em sua vida – sujeita a crises de depressão e
alcoolismo, Bishop tinha a sua própria maneira de encarar os diferentes mundos
a que tinha acesso em suas viagens.
Um bom exemplo da poesia de Elizabeth Bishop é em The Map, que provavel-
mente foi escrito em 1933, mas só publicado anos depois. Os primeiros versos são:
Land lies in water; it is shadowed green.
Shadows, or are they shallows, at its edges
showing the line of long sea-weeded ledges
where weeds hang to the simple blue from green.
Or does the land lean down to lift the sea from under,
drawing it unperturbed around itself?
Along the fine tan sandy shelf
is the land tugging at the sea from under?

Embora se utilizando de uma voz claramente descritiva, há uma rica subjetivi-


dade nessa passagem que ilustra o processo mental da autora. Embora essa per-

158
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

cepção da consciência autoral seja característica do Modernismo, Bishop faz isso


não através de construções concretistas, mas utilizando metáforas e até mesmo
se questionando (“Shadows, or are they shadows”). Essa construção metafórica
vai sendo delineada aos poucos em The Map para que, em sua última estrofe,
Bishop trace uma belíssima analogia entre o mapa de um viajante e um poema:
Mapped waters are more quiet than the land is,
lending the land their waves’ own conformation:
and Norway’s hare runs south in agitation,
profiles investigate the sea, where land is.
Are they assigned, or can the countries pick their colors?
– What suits the character or the native waters best.
Topography displays no favorites; North’s as near as West.
More delicate than the historians’ are the map-makers’ colors.

Nessa passagem, a menção às cores (um dos aspectos mais recorrentes da


poesia de Elizabeth Bishop) chama a atenção, porque são elas que vão diferenciar
o trabalho de um historiador ao de um cartógrafo. De acordo com o poema, as
cores usadas por um cartógrafo são mais delicadas que as do historiador (“More
delicate than the historians’ are the map-makers’ colors”). Assim, o mapa deixa de
ser apenas uma forma de representar o mundo para se tornar um mundo em si só
– da mesma forma que a poesia arquiteta subjetivamente o seu próprio mundo.

Um dos períodos mais produtivos para a poesia de Elizabeth Bishop foi


quando residiu no Brasil, entre 1952 e 1969. Seu contato com uma cultura tão
diferente da sua, assim como uma literatura em ebulição (Bishop tinha entre seu
círculo de conhecidos Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector) contri-
buiu para um amadurecimento literário. A sociedade e a história do Brasil foram
temas constantes da produção poética de Bishop. Um dos de seus poemas mais
conhecidos dessa fase é Brazil, January 1, 1502, cujo título é a data em que os
portugueses avistaram e exploraram pela primeira vez a cidade do Rio de Janei-
ro, onde morava a autora. A primeira estrofe é característica do estilo de Bishop:
Januaries, Nature greets our eyes
exactly as she must have greeted theirs:
every square inch filling in with foliage –
big leaves, little leaves, and giant leaves,
blue, blue-green, and olive,
with occasional lighter veins and edges,
or a satin underleaf turned over;
monster ferns
in silver-gray relief,
and flowers, too, like giant water lilies
up in the air – up, rather, in the leaves –
purple, yellow, two yellows, pink,
rust red and greenish white;
solid but airy; fresh as if just finished
and taken off the frame.

159
Literatura Norte-Americana

Primeiramente, o estilo descritivo e a presença das cores vívidas também se


fazem presentes nas primeiras estrofes do poema. Os versos são em forma livre,
praticamente despidos de uma métrica formal. Um estrangeiro que chegasse em
meados do século XX ao Rio de Janeiro veria a cidade da mesma forma que os
primeiros exploradores portugueses a devem ter visto no século XVI: um grande
espetáculo da natureza, com uma flora tão vasta e impressionante (“big leaves,
little leaves, and giant leaves”) que parece ser uma pintura que acabara de ser
concluída (“fresh as if just finished and taken off the frame”).

No entanto, esse belíssimo aspecto da natureza é contrastado com a chegada


dos conquistadores europeus. Primeiramente, o eu lírico afirma que nessa “pin-
tura” natural há a presença do pecado: “Still in the foreground there is Sin / five
sooty dragons near some massy rocks.” (“Ainda assim, à frente existe o Pecado/
cinco lagartos negros perto de algumas rochas”). Essa presença do simbolismo
cristão transforma o poema de narrativa de viagens em uma complexa análise
do papel do ambiente na identidade do viajante e vice-versa. A última estrofe do
poema reforça essa ideia:
Just so the Christians, hard as nails,
tiny as nails, and glinting,
in creaking armor, came and found it all,
not unfamiliar:
[...]
Directly after Mass, humming perhaps
L’ Homme arme or some such tune,
they ripped away into the hanging fabric,
each out to catch an Indian for himself –
those maddening little women who kept calling,
calling to each other (or had the birds waked up?)
and retreating, always retreating, behind it.

Já no primeiro verso, há uma comparação entre os lagartos e o explorado-


res cristãos (“Just so the Christians”) – ou seja, os portugueses também chegam
como figuras responsáveis pela propagação da ruína e do pecado. Primeiro eles
realizam uma missa (“Mass”), mas logo depois rompem a mata – novamente
comparada a uma pintura, através da palavra fabric, significando tecido ou tela –
em busca de mulheres nativas, que tentam se esconder por trás da vegetação. A
presença do colonizador como uma figura de dominação e escravização ganha
tintas sexuais, já que a mulher se torna a vítima central dessa nova estrutura
homem-natureza.

Elizabeth Bishop foi das mais representativas vozes poéticas de um período


em que o Modernismo como movimento já começava a perder sua força, mas
mesmo assim deixava uma marca profunda na subjetividade norte-americana.

160
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

Ao compor poemas de uma posição na maioria das vezes exterior ao que descre-
ve, Bishop conseguiu realizar uma obra totalmente individual – uma das razões
de sua permanência no cânone da literatura dos Estados Unidos.

Texto complementar
The hollow men
(ELIOT In: ABRAMS, 2000)
I
We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are quiet and meaningless
As wind in dry grass
Or rats’ feet over broken glass
In our dry cellar

Shape without form, shade without colour,


Paralysed force, gesture without motion;

Those who have crossed


With direct eyes, to death’s other Kingdom
Remember us – if at all – not as lost
Violent souls, but only
As the hollow men
The stuffed men.

II
Eyes I dare not meet in dreams
In death’s dream kingdom
These do not appear:
There, the eyes are
Sunlight on a broken column
There, is a tree swinging

161
Literatura Norte-Americana

And voices are


In the wind’s singing
More distant and more solemn
Than a fading star.

Let me be no nearer
In death’s dream kingdom
Let me also wear
Such deliberate disguises
Rat’s coat, crowskin, crossed staves
In a field
Behaving as the wind behaves
No nearer –

Not that final meeting


In the twilight kingdom

III
This is the dead land
This is cactus land
Here the stone images
Are raised, here they receive
The supplication of a dead man’s hand
Under the twinkle of a fading star.

Is it like this
In death’s other kingdom
Waking alone
At the hour when we are
Trembling with tenderness
Lips that would kiss
Form prayers to broken stone.

IV
The eyes are not here
There are no eyes here
In this valley of dying stars
In this hollow valley
This broken jaw of our lost kingdoms

162
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

In this last of meeting places


We grope together
And avoid speech
Gathered on this beach of the tumid river

Sightless, unless
The eyes reappear
As the perpetual star
Multifoliate rose
Of death’s twilight kingdom
The hope only
Of empty men.

V
Here we go round the prickly pear
Prickly pear prickly pear
Here we go round the prickly pear
At five o’clock in the morning.

Between the idea


And the reality
Between the motion
And the act
Falls the Shadow

For Thine is the Kingdom

Between the conception


And the creation
Between the emotion
And the response
Falls the Shadow

Life is very long

Between the desire


And the spasm
Between the potency
And the existence
Between the essence

163
Literatura Norte-Americana

And the descent


Falls the Shadow

For Thine is the Kingdom

For Thine is
Life is
For Thine is the
This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.

Dicas de estudo
Uma interessante visão sobre a vida, os amores e as opiniões de Elizabeth
Bishop é a peça Um Porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes. Baseada nas
cartas que a poetisa escreveu durante o período em que viveu no Brasil, a peça
mostra um outro lado de Bishop, especialmente no que trata de sua relação com
o país que tanto serviu de inspiração para seus mais ricos poemas.

T.S. Eliot, além de muito conhecido como a principal figura da poesia mo-
dernista, também foi considerado o principal crítico literário do movimento. Em
Selected Essays, é possível ter acesso às principais ideias de Eliot sobre Filosofia,
Teatro e Literatura. No seu ensaio mais famoso, Tradition and the Individual Talent
(Tradição e Talento Individual), Eliot discute o papel da tradição numa era que
enfatiza a ruptura intelectual.

Atividades
1. Como a poesia de Robert Frost se relaciona com o Romantismo norte-ameri-
cano?

164
A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX

2. Quais as principais características da poesia de T.S. Eliot?

165
O teatro e as vertentes da prosa norte-
-americana na 2.ª metade do século XX
Com o século XX, a literatura norte-americana se firmou como uma das
mais influentes do mundo. As criações literárias de artistas nascidos nos
Estados Unidos serviram como base para uma nova forma de escrita. Nos
romances e contos, os principais nomes da Lost Generation haviam defini-
do inovadoras maneiras de construir textos em prosa. Na poesia, a ruptura
apresentada pelo movimento modernista apresentou ao mundo diferen-
tes formas de expressão em verso.

Por outro lado, faltava à produção literária dos Estados Unidos uma
cena teatral relevante capaz de acompanhar o desenvolvimento das artes
no país. Apesar de algumas peças produzidas no século XIX, o teatro nor-
te-americano não tinha peso considerável na cena cultural. Essa situação
começa a mudar no século XX, quando dramaturgos surgidos na década
de 1920, pertencentes à mesma geração de T.S. Eliot e Ezra Pound, come-
çam a ganhar destaque.

Especialmente a partir do final da 2.ª Guerra Mundial, a qualidade da


dramaturgia norte-americana alcança seu nível mais alto. Mesmo com a
crescente competição da televisão e o alto custo das produções teatrais,
as peças apresentadas apresentavam uma riqueza simbólica e uma com-
plexa construção de personagens até então inédita. Desse período, dois
dramaturgos se destacaram: Arthur Miller e Tennessee Williams.

A partir das décadas de 1960 e 1970, a prosa norte-americana acom-


panha a crescente agitação social que começava a ocorrer na sociedade
dos Estados Unidos. O movimento por direitos civis, reivindicando, entre
outras coisas, maior igualdade racial entre os cidadãos foi o pano de fundo
para o surgimento da literatura afro-americana, concentrando-se espe-
cialmente na situação atual e na história dos negros dos Estados Unidos.
Chama atenção que dois dos grandes nomes da literatura afro-americana
são mulheres: Alice Walker e Toni Morrison.

Nesse mesmo período, surge nos Estados Unidos uma nova forma de
literatura que realiza uma espécie de fusão entre a narrativa literária com
técnicas jornalísticas – surge assim o jornalismo literário ou New Jornalism.
Literatura Norte-Americana

Ao mesmo tempo não-ficção e escrita imaginativa, o jornalismo literário teve


grande influência na forma de desenvolver narrativas na 2.ª metade do século
XX, especialmente através de nomes como Tom Wolfe e Truman Capote.

O teatro de Arthur Miller e Tennessee Williams


Durante o período colonial, os Estados Unidos já possuíam pequenos grupos
teatrais itinerantes que faziam apresentações viajando de cidade em cidade. É no
século XIX, contudo, que surgem os primeiros teatros realmente importantes e a
dramaturgia passa a ser considerada uma forma de alto entretenimento. As peças
produzidas naquele período eram fortemente marcadas pelo romantismo vindo
da Europa, várias vezes traduções ou adaptações de obras alemãs ou francesas.
Mesmo assim, vários dos temas abordados eram próximos da realidade norte-
-americana, como os conflitos com os nativos indígenas e a intolerância puritana.
Os personagens da maioria dessas peças seguiam à risca o estilo do melodrama,
o mais popular estilo teatral do século XIX: construídos de forma estereotipada,
eram sempre heróis indomáveis, vilões terríveis ou donzelas indefesas.

Com o fim do século XIX e início do século XX, o teatro dos Estados Unidos
passa a ter uma preocupação mais realista. O sentimentalismo e o melodrama
deram lugar a uma preocupação com as tensões sociais e com os problemas
da família norte-americana. Especialmente a partir da década de 1920, nomes
como Eugene O’Neill e Thornton Wilder levam a dramaturgia do país à matu-
ridade, com peças que constroem ricamente a natureza psicológica de seus
personagens.

É no período após a 2.ª Guerra Mundial, no entanto, que o drama norte-


americano dá o seu maior salto qualitativo. Novos dramaturgos apresentam um
diferente olhar sobre as questões sociais da nação e a importância do sonho
americano no período pós-guerra. O realismo psicológico é uma das marcas re-
gistradas do teatro dessa fase, com a presença de personagens extremamente
complexos e um tom melancólico que poucas vezes dá lugar à esperança.

Uma figura central do teatro dos Estados Unidos do pós-guerra é Arthur Miller
(1915-2005). Miller, como outros dramaturgos do período, usava de vários aspec-
tos biográficos na construção do enredo e dos personagens da maioria de suas
peças. Assim sendo, aspectos profissionais (sua relação problemática trabalhan-
do como comerciante no início de carreira), políticos (a acusação e perseguição
por parte do governo devido ao liberalismo de suas ideias) e pessoais (seu confli-

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O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

tuoso casamento com Marilyn Monroe) acabaram por servir de base para alguns
de seus trabalhos mais famosos.

Arthur Miller era filho de um próspero comerciante norte-americano e viveu a


infância e a adolescência numa condição financeira extremamente confortável.
No entanto, no fim da década de 1920 – especialmente após a crise de 1929 – os
negócios da família entraram em decadência e a vida do jovem Arthur mudou
completamente. Ele passou a trabalhar numa série de empregos pouco com-
pensados, geralmente relacionados ao comércio. Seu pai tentou recomeçar um
novo negócio no ramo das manufaturas, mas para novamente decretar falência.
Como consequência, “Miller grew to hate the demeaning life of a salesman: the
ceaseless demands for sales, the constant abuse and humiliations one had to
accept from customers.” (McMICHAEL et al., 2001, p. 1.928)

Lavando pratos para se sustentar, Miller consegue entrar na Universidade de


Michigan, onde começa a ganhar prêmios com suas primeiras peças. Depois de
se graduar, o autor se dedica inteiramente à literatura, escrevendo romances, ro-
teiros e, especialmente, peças de teatro. É após a 2.ª Guerra Mundial que o autor
atingirá o seu ápice criativo, e os trabalhos que depois viriam a ser seus maiores
sucessos são encenados pela primeira vez.

Em 1949, estreia Death of a Salesman (A Morte do Caixeiro-Viajante), a obra-


-prima de Miller e considerada por muitos críticos o melhor texto teatral norte-
-americano. A peça conta a história de Willy Loman, um comerciante idoso que
viaja longas distâncias para fazer negócios, ganha apenas por comissão e tem
de fazer constantes empréstimos pra sobreviver. O personagem apresenta sinais
de senilidade e seu comportamento afeta toda sua família: sua esposa Linda e
seus filhos Biff e Happy. Willy Loman acredita cegamente no sonho americano,
na riqueza fácil e no sucesso que virá para aqueles que nascem vencedores. Con-
tudo, suas ilusões de grandeza nunca se concretizam, e a dureza da realidade
fracassada em que vive acaba por afetar seriamente seu estado mental. Miller
utiliza a família Loman como microcosmo para discutir os valores nacionais nor-
te-americanos, especialmente a busca incessante por sucesso (especialmente o
material) que leva inevitavelmente a uma derrocada moral.

Com Death of a Salesman, Arthur Miller recontextualiza os elementos clássicos


da tragédia para uma perspectiva moderna, familiar e tipicamente norte-ameri-
cana. A queda do herói devido a uma falha de caráter, apresentada em diferentes
peças do teatro grego, ganha em Willy Loman uma nova representação. Miller é
abrasivo em sua análise do sonho americano. A crença nesse conceito fundamen-

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Literatura Norte-Americana

tal de formação dos Estados Unidos leva os personagens à morte, à loucura e a


uma percepção ilusória do mundo a seu redor. Para Willy Loman, ser admirado e
carismático é suficiente para alcançar o sucesso, mas isso o impede de compreen-
der claramente que sua própria vida está em irrevocável declínio. Daí as inúmeras
tentativas de suicídio do personagem (cujo nome Loman, ou seja, o low man, o
“homem inferior”, já indica o tipo de personalidade que ele possui) e a sua neces-
sidade de justificar seus atos tendo como molde anseios do passado.

Em uma tocante passagem, Willy Loman tem uma alucinação em que vê seu
irmão Ben Howard, já falecido. Howard, que aos 21 anos fez fortuna com dia-
mantes na África, é a personificação do sucesso que Loman sempre tentou al-
cançar. Conversando com essa imagem de seu irmão já morto, o protagonista
explica porque escolheu a sua profissão – a influência de um mítico vendedor,
cuja vida e morte influenciaram Loman:
[...] I met a salesman in the Parker House. His name was Dave Singleman. And he was eighty-
four years old, and he’d drummed merchandise in thirty-one states. And old Dave, he’d go
up to his room, y’understand, put on his green velvet slippers – I’ll never forget - and pick up
his phone and call the buyers, and without ever leaving his room, at the age of eighty-four,
he made his living. And when I saw that, I realized that selling was the greatest career a man
could want . `Cause what could be more satisfying than to be able to go, at the age of eighty-
four, into twenty or thirty different cities, and pick up a phone, and be remembered and loved
and helped by so many different people? Do you know? When he died – and by the way, he
died the death of a salesman, in his green velvet slippers in the smoker of the New York, New
Haven and Hartford, going into Boston - when he dies, hundreds of salesmen and buyers were
at his funeral. Things were sad on a lotta trains for months after that. In those days there was
personality in it, Howard. There was respect, and comradeship, and gratitude in it. Today, it’s all
cut and dried, and there’s no chance for bringing friendship to bear – or personality. You see
what I mean? They don’t know me anymore. (MILLER, In: McMICHAEL et al., 2001, p. 1.989)

A admiração que Willy Loman tinha por Dave Singleman é a mesma admira-
ção que ele associa a uma ideia de sucesso e prosperidade. A felicidade suprema
seria ser apreciado como um excelente vendedor, o que por conseguinte signifi-
caria que era apreciado também como um grande homem. Até mesmo a morte
de Singleman ilustra um fim honrado, “he died the death of a salesman”, que
posteriormente no caso de Loman vai ter implicações menos respeitosas.

O interesse de Arthur Miller em expor as feridas do pensamento norte-ame-


ricano é ainda mais latente em The Crucible (O Caldeirão), também conhecido
como As Bruxas de Salem, de 1953. Nesse trabalho, que posteriormente viria a
ser o mais encenado de Miller e alcançaria ainda mais popularidade com uma
bem-sucedida adaptação para o cinema em 1996 (roteirizada pelo próprio dra-
maturgo), existe um enredo cuja construção funciona historicamente em dois
níveis. O primeiro é a história de um dos eventos mais vergonhosos da histó-
ria dos Estados Unidos: os chamados “Julgamentos das Bruxas de Salem”, em

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O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

que mais de 150 pessoas foram acusadas e presas no vilarejo de Salem, em


Massachusetts, por participarem de supostos atos de bruxaria. Vários foram con-
denados à morte por enforcamento devido à histeria coletiva iniciada por uma
jovem chamada Abigail Williams.

O segundo nível com que The Crucible pode ser interpretado é como uma res-
posta de Arthur Miller ao Mcarthyismo da década de 1950 nos Estados Unidos.
O Mcarthyismo foi um movimento liderado pelo senador Joseph McCarthy e seu
Comitê de Atividades Antiamericanas contra qualquer pessoa que tivesse ideias
liberais que a aproximassem do comunismo. A perseguição e o clima de acusa-
ção eram constantes, especialmente no meio artístico. Vários atores e diretores
foram presos e forçados a acusar outros supostos comunistas. O próprio Arthur
Miller foi acusado e teve de prestar depoimento ao Comitê de Atividades Anti-
americanas. Assim sendo, The Crucible é representativo de dois tipos de “caça às
bruxas” da história norte-americana: o literal e o metafórico.

Se a parábola e a estrutura simbólica são características da obra de Arthur


Miller, elas são centrais nas peças de Tennessee Williams (1911-1983), um dos mais
importantes dramaturgos norte-americanos do século XX que também alcança
o sucesso no período após a 2.ª Guerra Mundial. Assim como Miller, Williams
usou abertamente elementos de sua vida pessoal para construir de forma ex-
tremamente realista a atmosfera e os personagens de suas peças. Temas como a
repressão do desejo, alcoolismo, e loucura estiveram presentes na vida do autor
assim como em seus mais importantes trabalhos. Mesmo muito densos e por
vezes brutais, seus diálogos são construídos simbolicamente, com ricas metáfo-
ras que deixam transparecer a complexidade psicológica de suas criações.

Em praticamente todas as suas peças, Tennessee Williams iria retratar o sul


dos Estados Unidos que conhecia tão bem. Nascido no estado do Mississippi,
tendo vivido em St. Louis e Nova Orleans, ele soube transpor para os palcos a
variedade social daquela região do país. Em 1938, Williams é aceito na univer-
sidade, ao mesmo tempo em que trabalha como comerciante e se dedica a es-
crever suas peças à noite. Sua vida pessoal foi muito conturbada, especialmente
com sua tendência à depressão e ao alcoolismo, sua homossexualidade velada
e, especialmente, a triste relação com sua irmã Rose, diagnosticada com esqui-
zofrenia e de quem Williams cuidou até o fim da vida.

O ápice criativo do autor foi nas décadas de 1940 e 1950. Em 1947, estreia nos
teatros sua obra-prima: A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo).
Até hoje, permanece um dos textos mais ousados da dramaturgia norte-ameri-
cana, com sua mistura de atmosfera gótica, falsas ilusões e latente sensualidade.
171
Literatura Norte-Americana

É um trabalho sobre a perda da razão num mundo onde a dureza da realidade


molda as personalidades dos indivíduos ao mesmo tempo em que as destrói.

A peça conta a história da chegada de Blanche DuBois, uma mulher sonhado-


ra e com um passado problemático, à casa de sua irmã Stella e seu rude cunha-
do Stanley Kowalski, em Nova Orleans. Nesse mesmo ambiente, os devaneios
românticos de Blanche vão se chocar duramente com a realidade dura e ríspida
da cidade sulista, com seu calor constante, onde pulsa a sensualidade. Esse con-
traste vai sendo construído num crescendo trágico, até que as falhas de caráter
de Blanche sejam reveladas e sua derrocada rumo à loucura seja irreparável.

Assim como praticamente todas as peças de Tennessee Williams, A Streetcar


Named Desire apresenta uma natureza realista na ambientação e na construção
dos personagens. A descrição do relacionamento entre Stanley Kowalski e Stella
é feita com tintas animalescas, com os personagens se agredindo (às vezes fisi-
camente) de forma recorrente para depois resolverem suas diferenças através
do ato sexual. Isso é retratado de forma clara em um dos momentos mais fa-
mosos da peça, quando Stanley, depois de agredir Stella violentamente, pede
que a mulher retorne para a casa gritando seu nome. Stella, que está na casa de
uma vizinha no andar de cima, não resiste aos apelos de seu marido. A descrição
que Williams faz do reencontro do casal retrata um desejo sexual pouco visto no
teatro norte-americano:
The low-tone clarinet moans. The door upstairs opens again. Stella slips down the rickety stairs
in her robe. Her eyes are glistening with tears and her hair loose about her throat and shoulders.
They stare at each other. Then they come together with low, animal moans. He falls on his
knees on the steps and presses his face to her belly, curving a little with maternity. Her eyes go
blind with tenderness as she catches his head and raises him level with her. He snatches the
screen door open and lifts her off her feet and bears her into the dark flat. (WILLIAMS, 2000,
p. 154)

Essa forte conexão sexual entre Stella e Stanley vai de encontro às ilusões de
superioridade de Blanche, que não consegue entender como a relação entre o
casal é baseada em um forte desejo. Este desejo desmedido, que está no título
da peça, é apenas um dos símbolos usados por Williams. Para chegar à casa de
Stella no início da peça, Blanche tem de pegar um bonde chamado “Desejo”,
depois outro chamado“Cemitérios”, para descer na rua chamada“Campos Elísios”
(na mitologia grega, o lugar onde as almas dos mortos descansavam). Pode-se
interpretar que o desejo era o caminho para a ruína e a morte, como diferentes
passagens da peça mostram.

Um deles é o trágico casamento que Blanche teve quando era muito jovem.
Pela forma em que é feita a descrição, a personagem tinha um grande desejo por

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O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

seu marido, que acaba se revelando homossexual. Quando Blanche o confronta,


humilhando-o, ele se suicida. Outro exemplo máximo da marca destruidora do
desejo ocorre no final da peça, quando Stanley confronta Blanche e a estupra,
levando a personagem à insanidade completa. Novamente, é o desejo que toma
conta do indivíduo e funciona como marca fundamental da tragédia.

O desejo também se faz presente em outra brilhante obra de Tennessee


Williams, Cat on a Hot Tin Roof (Gata em Teto de Zinco Quente), de 1955. No entan-
to, o desejo sexual nessa peça está intimamente ligado a um desejo pela verdade, já
que os personagens parecem se proteger e até mesmo se definir pela atmosfera de
mentira e falsidade que possa garantir uma privilegiada situação financeira.

Novamente trabalhando com o tema da decadência sulista, Williams desta


vez aborda uma rica família do Mississippi em crise. O patriarca, Big Daddy, está
com uma doença terminal, mas todos o iludem, fazendo com que ele acredite
que está bem de saúde; o filho dele, Brick, tem uma relação conflituosa com
a esposa Maggie, “A Gata”, especialmente por causa de um segredo do passa-
do envolvendo o melhor amigo de Brick. Com a morte iminente de Big Daddy,
inicia-se um confronto sobre quem vai ficar com a fortuna da família.

No entanto, Brick, o filho favorito de Big Daddy, não tem o menor interesse
pelas propriedades do pai. Um fracassado jogador de futebol americano, Brick
apenas passa os dias e noites bebendo e se recusando a ter relações com sua
esposa, o que a deixa enfurecida, porém aumentando a tensão sexual entre os
dois. Brick (cujo significado do nome, “tijolo”) já atesta a dureza e a rigidez do
nome, e o personagem funciona como um símbolo da masculinidade. No en-
tanto, à medida que a peça se desenvolve, começam a aparecer as primeiras
rachaduras no muro aparentemente sólido da personalidade de Brick, especial-
mente devido à fuga e repressão de um grande sentimento de culpa pela morte
de Skipper, seu melhor amigo do passado com o qual ele pode ter desenvolvido
um relacionamento homossexual.

As verdades indesejáveis que pouco a pouco vêm à tona (a doença de


Big Daddy, o suposto relacionamento de Brick e Skipper, o passado pobre de
Maggie) são camufladas pela grande mentira orquestrada pelo ideal de uma
família feliz do sul dos Estados Unidos. Na peça, o termo usado para ilustrar essa
situação é mendacity (que pode ser traduzido como “hipocrisia” ou “falsidade”).
Brick afirma que toda a sua existência é regrada por essa falsidade e que ele não
consegue mais suportá-la. Big Daddy então deixa claro como não é possível
viver sem essa falsidade:

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Literatura Norte-Americana

What do you know about mendacity? I could write a book on it...Mendacity. Look at all the
lies that I got to put up with. Pretenses. Hypocrisy. Pretendin’ like I care for Big Mama, I haven’t
been able to stand that woman in forty years. Church! It bores me. But I go. And all those
swindlin’ lodges and social clubs and money-grabbin’ auxiliaries. It’s-it’s got me on the number
one sucker list. Boy, I’ve lived with mendacity. Now why can’t you live with it? You’ve got to
live with it. There’s nothin’ to live with but mendacity. Is there? (WILLIAMS, 1955, p. 170)

Mesmo assim, o mesmo Big Daddy que na passagem acima afirma que“não há
nada para viver a não ser a falsidade” passa a buscar posteriormente a verdade – e
é através dela que descobre tragicamente que tem pouco tempo de vida. A menti-
ra, de certa forma, o corroeu até a morte, assim como oprimiu Brick e o levou ao al-
coolismo. Em Cat on a Hot Tin Roof, Tennessee Williams investiga como a hipocrisia
corrompe o indivíduo e como a verdade, por mais cruel e ríspida que seja, sempre
acaba se revelando como o aspecto mais genuíno de humanidade.

A ascensão da literatura afro-americana


A partir do final da década de 1950 nos Estados Unidos, diferentes setores
da sociedade começaram a se mobilizar com o intuito de alcançar uma maior
igualdade de direitos. A maior conscientização de grupos sociais minoritários
fez com que se iniciasse no país um movimento organizado que combatesse a
segregação e o preconceito, visando aumentar a participação das minorias nas
decisões políticas norte-americanas.

É importante enfatizar o caráter plural da agitação social e cultural ocorrida na


década de 1960. Apesar de um objetivo básico comum (a igualdade de direitos),
cada grupo tinha interesses bem específicos em seus protestos. Stuart Hall afirma:
Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo
apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento
antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que
veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento.
(HALL, 1999, p. 45)

Assim sendo, é importante notar que além de uma forte consciência social,
cada movimento tinha a sua própria identidade, que viria a ser definida por
formas culturais específicas – especialmente na literatura.

O Movimento dos Direitos Civis, como ficou conhecido, teve nos negros
norte-americanos sua força inicial e mais significativa. Lutando por reformas na
sociedade e na política contra a discriminação, o braço afro-americano do movi-
mento (que teve em Martin Luther King sua figura mais proeminente) conseguiu
diminuir a opressão e os abusos exercidos por brancos, especialmente no sul dos
Estados Unidos, quase 100 anos depois do fim da escravidão.
174
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

A década de 1960 também foi o período em que o papel da mulher em socie-


dade passou e ser discutido devido ao impacto de teorias feministas. Mais do que
qualquer outro grupo lutando por maiores direitos civis, as mulheres colocaram
a esfera doméstica e pessoal no centro da discussão política. Tópicos como a di-
visão do trabalho no lar, o balanço de poder na família, a criação dos filhos, entre
outros, passaram a ser questionados como nunca antes. As mulheres, que duran-
te muito tempo propunham igualdade de direitos por serem iguais aos homens,
passaram a reconhecer que eram diferentes – e aí residia o seu verdadeiro valor.

Nos Estados Unidos, a identidade cultural dos afro-americanos e das mulheres


vai se mesclar de forma especial na literatura. As produções literárias que tinham
como foco a experiência de vida dos negros norte-americanos têm um notável
crescimento nas décadas de 1960 e 1970, assim como aumenta o número de
mulheres escritoras nesse período. Surge então um terceiro grupo que vai ter
uma influência fundamental na nova perspectiva social e literária dos Estados
Unidos: o das mulheres negras escritoras. Apesar de temas específicos mais vol-
tados para questões da identidade negra e feminina, figuras como Alice Walker
e Toni Morrison já saíram do nicho de “literatura afro-americana” ou “literatura
feminista” para serem reconhecidas como grandes autoras da literatura norte-
-americana em geral.

Alice Walker (1944-) nasceu no estado da Georgia, a mais jovem de oito irmãos.
Seu pai trabalhava na agricultura e sua mãe como empregada doméstica. Depois
de um acidente com uma arma de fogo, a jovem Alice ficou cega de um olho.
Não podendo ajudar nas atividades domésticas, ela ganhou uma máquina de
escrever, o que a despertou para o mundo da ficção. Conseguiu uma bolsa de es-
tudos que a permitiu cursar a universidade e, assim que terminou a graduação,
tornou-se engajada no movimento pelos direitos civis e passou a publicar seus
trabalhos em prosa e poesia.

O trabalho mais aclamado de Alice Walker é The Color Purple (A Cor Púrpu-
ra), de 1982. É um romance epistolar – ou seja, a narrativa é construída através
de cartas – que tem como foco a situação da mulher negra no sul dos Estados
Unidos na primeira metade do século XX. Os principais personagens do roman-
ce (em especial a protagonista Celie) passam por uma longa trajetória de sofri-
mento (incluindo abusos físicos, mentais e sexuais), mas ainda assim conseguem
afirmar sua identidade e encontrar motivos para ter esperança.

The Color Purple é uma obra que trabalha com as questões de raça e gênero
de forma inovadora. Racismo e sexismo são questões que falam diretamente à
mulher negra, colocando-a numa posição duplamente inferior – ao sexo mas-
175
Literatura Norte-Americana

culino e aos brancos. As personagens de Alice Walker, contudo, são figuras li-
bertárias que procuram se livrar das amarras dos estereótipos da figura sofrida
e vitimizada. Sofia, por exemplo, é uma mulher de personalidade forte que é ex-
tremamente assertiva em sua atitude, chegando a bater no marido; Shrug Avery
é uma cantora de blues autoconfiante que não esconde sua vibrante sexualida-
de; e Celie, que começa como vítima de uma sociedade opressora, encontra sua
própria personalidade à medida que o romance se desenvolve, se tornando um
símbolo de perseverança e determinação.

De certa forma, cada personagem é a representação de um dos temas cen-


trais do romance: a necessidade da autoexpressão e de uma voz única como ins-
trumentos para construir a identidade de um grupo social. O próprio fato de The
Color Purple ser narrado por Celie – que inicialmente não consegue se afirmar
a não ser escrevendo cartas a Deus – caracteriza essa busca. O próprio “Deus” a
quem Celie escreve vai tendo sua concepção alterada no desenrolar do roman-
ce. Inicialmente, o Deus pensado por Celie é a figura estereotipada do homem
branco que observa as ações do homem por entre as nuvens. Posteriormente,
ela percebe que a presença de Deus independe de cor ou gênero, e que sua obra
está em seu redor: “Well, us talk and talk about God, but I’m still adrift. Trying to
chase that old white man out of my head. I been so busy thinking bout him I
never truly notice nothing God make. Not a blade of corn (how it do that?) not
the color purple (where it come from?)” (WALKER, 2003, p. 24).

Esta diferente e madura percepção sobre Deus é prova de como os persona-


gens se tornam cada vez mais densos psicologicamente à medida que realizam
a jornada entre o silêncio (causado por forças raciais e de gênero) e a habilidade
de construir, literalmente, sua própria história.

Mesmo com o crescente reconhecimento de suas obras e do trabalho de


outras mulheres negras, Alice Walker acredita que a crítica ainda tem muito que
evoluir para compreender a complexidade da representação feminina e afro-
-americana na literatura:
There are two reasons why the black woman writer is not taken as seriously as the black male
writer. One is that she’s a woman. Critics seem unusually ill-equipped to intelligently discuss
and analyze the works of black women. Generally, they do not even make the attempt; they
prefer, rather, to talk about the lives of black women writers, not about what they write. And,
since black women writers are not – it would seem – very likeable – until recently they were
the least willing worshippers of male supremacy – comments about them tend to be cruel.
(EAGLETON, 1992, p. 80)

É interessante notar que essa falta de habilidade da crítica em lidar com os


valores de uma literatura produzida por mulheres negras é ainda mais clara

176
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

quando se reconhece o talento de determinada autora. Durante muito tempo


houve um entendimento da crítica de que algumas autoras eram muito boas
para se dedicar apenas ao tópico da vida de mulheres afro-americanas, mesmo
se essas próprias escritoras fossem mulheres afro-americanas – ou seja, esse é
um tema menor, e elas deveriam tratar de temas mais universais que envolves-
sem o universo branco e/ou masculino.

Uma autora muito criticada sob essa perspectiva foi Toni Morrison (1931-).
Considerada uma das grandes vozes da literatura norte-americana contem-
porânea, Morrison conseguiu romper as barreiras preconceituosas da crítica e
do cânone literário para se tornar uma ardente defensora da identidade femi-
nina e afro-americana nos Estados Unidos atuais. Formada na Universidade de
Harvard, Morrison prosseguiu na carreira acadêmica, se tornando uma grande
estudiosa da literatura norte-americana moderna e contemporânea, especial-
mente William Faulkner, de quem é grande admiradora.

De forma geral, o principal tema dos romances da autora é a opressão, espe-


cialmente aquela voltada para, segundo a autora, “a mais vulnerável unidade da
sociedade – uma mulher negra e seu filho.” Racismo, pobreza e degradação são
fortemente marcados na vida de suas protagonistas, o que gera neles um senti-
mento de autocomiseração e até mesmo raiva, por serem mulheres e negras.

Essa temática já se faz presente em seu primeiro e inesquecível romance, The


Bluest Eye (O Olho Mais Azul), de 1970. Nesta obra, Morrison nos apresenta à pro-
tagonista Pecola Breedlove, uma jovem menina negra que vive num lar proble-
mático nos difíceis anos após a Grande Depressão. Além das constantes brigas
de seus pais e das imensas dificuldades financeiras, Pecola tem de lidar com uma
grande carga de rejeição em relação à sua aparência. Assim como Celie, a prota-
gonista de The Color Purple, Pecola é considerada feia e estranha, seja na escola ou
na sua própria casa. Isso leva a um imenso desejo da protagonista de ser branca e
ter olhos azuis, o que para ela seria a solução ideal para seus problemas.

Com The Bluest Eye, Morrison analisa uma das questões fundamentais abor-
dadas pelo Movimento dos Direitos Civis das décadas de 1960 e 1970 – o sur-
gimento de um ideal de beleza negra. A partir do slogan “Black is Beautiful”, os
negros norte-americanos procuraram abolir os paradigmas do cinema, da tele-
visão e da cultura de massa em geral de que a beleza só pode ser associada a
pessoas brancas. Em seu romance, a autora mostra como a autorrejeição e o sen-
timento de inferioridade surgem quando os modelos aceitos e admirados pela
sociedade (nesse caso, ser branco e olhos azuis) não se estendem a todos. O que

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Literatura Norte-Americana

Morrison analisa em sua obra, e o movimento negro propôs, é que em vez de se


criar o desejo de mudar a identidade, é necessário que se mudem os modelos.

Nas entrelinhas, contudo, The Bluest Eye usa a questão da beleza como me-
táfora para questões mais complexas, especialmente uma espécie de racismo
subjetivo que os próprios negros carregam consigo e não conseguem perceber.
Quando Pecola passa a acreditar que só tendo olhos azuis vai ser amada, essa
não é uma visão sua, mas sim da sociedade em que vive. Portanto, a personagem
é incapaz de distinguir o que é representativo de sua própria identidade e o que
é ditado pelas regras sociais, construindo nela um racismo internalizado:
It had occurred to Pecola some time ago that if her eyes, those eyes that held the pictures, and
knew the sights – if those eyes of hers were different, that is to say, beautiful, she herself would
be different. Her teeth were good, and at least her nose was not big and flat like some of those
who were thought so cute. If she looked different, beautiful, maybe Cholly would be different,
and Mrs. Breedlove too. Maybe they’d say, “Why, look at pretty-eyed Pecola. We mustn’t do bad
things in front of those pretty eyes.” (MORRISON, 2000, p. 46)

Além do mais, com seus olhos azuis Pecola não só seria vista como mais
bela pelo mundo, como também ela própria veria o mundo com “outros olhos”
– menos opressor, mais receptivo e repleto de oportunidades. Na passagem
acima isso fica claro, quando os pais de Pecola se recusam a brigar já que nada
de mal deveria ser visto por aqueles belos olhos azuis. Mas com seus olhos e pele
negras, o mundo para ela é sempre visto como o lugar da discriminação e dos
problemas. Esta intrincada dissociação que Pecola não se permite realizar é uma
das razões que leva a personagem à completa loucura ao final do romance.

Inovações na prosa:
J.D. Salinger e New Journalism
O surgimento da literatura afro-americana e feminista foi apenas uma das várias
facetas do desenvolvimento do romance norte-americano na segunda metade
do século XX. Com a consolidação da estética modernista como forma preponde-
rante de escrita, outros autores procuravam novas formas de expressão em prosa
que servisse como reflexo dos Estados Unidos pós 2.ª Guerra, assim como o Mo-
dernismo representou o pensamento cultural do país após a 1.ª Guerra.

Um dos melhores exemplos de uma nova perspectiva literária na prosa norte-


-americana a partir da década de 1950 é The Catcher in the Rye (O Apanhador
no Campo de Centeio), de J.D. Salinger (1919-). Este romance, o único publicado
pelo autor, reflete muito da experiência de Salinger em sua infância e adoles-

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O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

cência: pertencia a uma família de classe alta, e vivia sendo transferido de uma
escola para outra. Essa é, de certa forma, a realidade do protagonista e narrador
de The Catcher in the Rye, Holden Caufield. Ele é um adolescente de 16 anos que
começa o romance no seu último dia na escola preparatória de Pencey, mais
uma instituição de ensino de onde é expulso. O personagem parte então no
meio da noite para Nova York onde fica por dois dias até ir finalmente para o
apartamento de seus pais.

The Catcher in the Rye, lançado em 1951, permanence um dos livros mais po-
pulares do século XX. Quando do seu lançamento, despertou imensa polêmica
devido a sua narrativa adolescente repleta de gírias e palavras de baixo calão,
referências abertamente sexuais e subversão de valores tidos como corretos. Em
certos meios, chegou a ser censurado e até mesmo proibido. Mesmo assim, é um
romance que seduz menos pelos acontecimentos narrados do que por quem
os conta: Holden Caufield tornou-se um personagem maior que a obra, servin-
do de símbolo para o inconformismo e a alienação de uma crescente cultura
adolescente. Na passagem abaixo, por exemplo, Holden assiste a uma palestra
de um dos principais patrocinadores de sua escola. É chocante notar a postura
irônica do personagem com relação à moral religiosa do palestrante e a forma
insolente com que narra os eventos.
He started off with about fifty corny jokes, just to show us what a regular guy he was. Very
big deal. Then he started telling us how he was never ashamed, when he was in some kind
of trouble or something, to get right down his knees and pray to God. He told us we should
always pray to God – talk to Him and all – wherever we were. He told us we ought to think of
Jesus as our buddy and all. He said he talked to Jesus all the time. Even when he was driving
his car. That killed me. I just see the big phony bastard shifting into first gear and asking Jesus
to send him a few more stiffs. The only good part of his speech was right in the middle of it. He
was telling us all about what a swell guy he was, what a hotshot and all, then all of a sudden
this guy sitting in the row in front of me, Edgar Marsalla, laid this terrific fart. It was a very crude
thing to do, in chapel and all, but it was also quite amusing. (SALINGER, 1991, p. 16-17)

Holden Caufield é um anti-herói cuja individualidade contrasta fortemente


com uma sociedade opressora. No entanto, ele é um narrador pouco confiável,
já que seu ponto de vista muitas vezes exprime seus próprios preconceitos e
experiências traumáticas. Uma das palavras mais usadas pelo personagem para
descrever as pessoas com as quais ele se relaciona é phony, que pode significar
“falso” ou “insincero”. Sua atitude cínica, mas ao mesmo tempo extremamente
crítica da sociedade foi ao encontro de uma geração artística nos Estados Unidos
voltada para a contracultura e a abolição de valores preestabelecidos.

Se The Catcher in the Rye foi um dos poucos trabalhos realmente inovadores
na prosa da década de 1950, as décadas de 1960 e 1970 veriam o surgimento de
uma verdadeira escola literária, ameaçando até mesmo a posição do Romance

179
Literatura Norte-Americana

como o maior dos gêneros da literatura. Esse novo movimento das letras ficou
conhecido como New Journalism ou Jornalismo Literário. Como o próprio nome
indica, o jornalismo literário consistia em uma escrita jornalística na qual se em-
pregavam recursos e técnicas características da literatura ficcional.

Os principais textos do New Journalism foram publicados em conceituadas


revistas e jornais norte-americanos, e neles os jornalistas exercitavam uma forma
até então inédita de narrar os fatos. Diferente de outras matérias, as reportagens
do jornalismo literário possuem um alto grau de subjetividade, com o ponto
de vista do jornalista/escritor ficando claro e acentuando o lirismo da escrita.
Mesmo que partindo de eventos reais, essas reportagens alçavam os dramas
humanos aos limites da tragédia ou da comédia, dependendo do enfoque dado
pelo narrador.

O que o jornalismo literário propôs, em última instância, foi uma aproxima-


ção entre os terrenos do fato e da ficção, até então estritamente separados. A
transformação do “fato” em “evento” passa obrigatoriamente por recursos imagi-
nativos que só a literatura consegue dotar. No entanto, as grandes reportagens
do New Journalism das décadas de 1960 e 1970 não eram ficção – elas eram aba-
lizadas por intensas pesquisas e investigações. Contudo, a forma com que eram
escritas evidenciava uma ambição literária de seu autor que, conscientemente
ou não, ajudou a criar um imenso vínculo entre a realidade e a ficção. Nesse
artigo do jornal The New York Times de 1973 sobre o New Journalism, fica clara a
importância desse estilo na aproximação entre o factual e o literário:
The most general feature of the New Journalism is its insistence on the resemblances
between fact and fiction – whereas the older journalism worked hard at playing those
resemblances down. With its heavy reliance on the technical resources of novels and short
stories, the New Journalism is not suggesting that its stories are not true – on the contrary,
we are always told that an immense amount of research has gone into getting the facts
straight. Consequently, it is not suggesting, either, that we cannot distinguish any more
between fact and fiction. What it is suggesting is that fiction is the only shape we can give
to facts, that all shapes are fictions. (WOOD, 1973)

Um dos principais escritores e teóricos do jornalismo literário é Tom Wolfe


(1931-). Vindo de uma família de classe média alta, desde muito jovem apre-
sentava interesse para o mundo das artes e da escrita. Quando jovem, recebeu
várias ofertas para trabalhar no meio acadêmico, mas escolheu a carreira de re-
pórter. Escrevendo para revistas que depois se tornariam a base do New Journa-
lism (Esquire, The New Yorker, The New York Magazine), o autor começa a utilizar
características literárias em seus artigos e reportagens, tornando-os mais vívidos
e urgentes, fazendo até de acontecimentos pouco importantes grandes leituras,
como se estivesse produzindo um conto ou um pequeno romance.

180
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

Wolfe, como nenhum outro escritor do período, soube aliar aspectos ficcio-
nais a uma escrita baseada em fatos. Diferentemente de textos jornalísticos tra-
dicionais, os leitores praticamente se inserem em sua narrativa, como se fizes-
sem parte dela. O ponto de vista do autor é claro, e sua manipulação do tempo
dos acontecimentos (passado e presente se misturam) é um dos aspectos fun-
damentais para dar um caráter literário à escrita. Por outro lado, o uso de diá-
logos reais e a natureza descritiva (dos lugares, das roupas, dos hábitos) firma
a reportagem como sendo feita a partir de dados factuais. Mas a presença de
elementos pouco comuns em artigos jornalísticos, como reticências, pontos de
exclamações abundantes e onomatopeias causavam estranhamento ao público
leitor. Um exemplo disso é o ensaio Las Vegas (What?) Las Vegas (Can’t hear you!
Too noisy) Las Vegas!!!!, considerado um dos primeiros exemplos do jornalismo
literário. Nesse texto, que fala das crescentes transformações na cidade de Las
Vegas até se tornar a Meca do jogo e do materialismo, o autor abusa de seu estilo
peculiar, começando com uma repetição de palavras aparentemente sem senti-
do para depois apresentar as principais figuras de seu artigo:
Hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia,
hernia, HERNia; hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, hernia, HERNia, HERNia, HERNia; hernia,
hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, hernia, eight is the point, the point is eight; hernia, hernia,
HERNia; hernia, hernia, hernia, hernia, all right, hernia, hernia, hernia, hernia, hard eight, hernia,
hernia, hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, HERNia, hernia, hernia, hernia, HERNia, hernia,
hernia, hernia, hernia
“What is all this hernia hernia stuff?”
This was Raymond talking to the wavy-haired fellow with the stick, the dealer, at the craps
table about 3:45 Sunday morning. The stickman had no idea what this big wiseacre was talking
about, but he resented the tone. He gave Raymond that patient arch of the eyebrows known
as a Red Hook brush-off, which is supposed to convey some such thought as, I am a very tough
but cool guy, as you can tell by the way I carry my eyeballs low in the pouches, and if this wasn’t
such a high-class joint we would take wiseacres like you out back and beat you into jellied
madrilene. (WOLFE, 1999, p. 3)

Posteriormente, Tom Wolfe escreveu romances em que continuou a utilizar


técnicas literárias numa escrita de ênfase jornalística. Seu livro de não-ficção lan-
çado em 1979 The Right Stuff (A Coisa Certa), sobre o início do programa espacial
norte-americano é um marco na estruturação de uma extensa pesquisa histórica
e entrevistas na formação de uma obra coesa. Seu primeiro romance de ficção
foi o aclamado best-seller de 1987 The Bonfire of Vanities (A Fogueira das Vaida-
des), onde à maneira de autores britânicos como Charles Dickens, Tom Wolfe
pretendeu delinear um panorama das questões sociais, econômicas e raciais da
sociedade – no seu caso, a explosiva Nova York da década de 1980.

Outro expoente importante do jornalismo literário norte-americano ao lado


de Tom Wolfe e outros foi Truman Capote (1924-1984). Capote ficou conhecido

181
Literatura Norte-Americana

pela sua atribulada biografia (homossexual assumido, vida boêmia ao lado de


figuras-chave do século XX como Andy Warhol e Jaqueline Kennedy Onassis,
vício em drogas), mas também por ter escrito a obra máxima do New Journalism:
In Cold Blood (A Sangue Frio), de 1966. Desenvolvendo um interesse pela escri-
ta, aos 17 anos Capote já tinha um emprego na revista The New Yorker. Como
escritor, Capote começou a fazer relativo sucesso com seus contos e romances,
especialmente Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de Luxo), de 1958, que poste-
riormente ganharia uma bem-sucedida versão para o cinema. No entanto, foi
com In Cold Blood que o escritor colocou seu nome definitivamente na história
da literatura dos Estados Unidos.

Até a publicação dessa obra, a forma de escrita do jornalismo literário sofria


diversas críticas de setores mais conservadores do jornalismo norte-americano
(que acreditava que os artigos e reportagens de Tom Wolfe e companhia não
retratavam os fatos de forma correta) e também da crítica literária (que se recu-
sava a considerar artigos de cunho jornalístico como literatura). O que chamou
a atenção e marcou o diferencial de outros autores do New Journalism foi que
Truman Capote era um nome da literatura que decidiu escrever de acordo com
as características do jornalismo literário, e não ao contrário, como era o usual.

Em 1959, uma notícia nas páginas policiais do The New York Times desperta a
atenção de Capote: no estado do Kansas, um fazendeiro, sua esposa e seus filhos
são encontrados brutalmente assassinados. O autor então partiu para o local do
crime e começou a investigar, reconstituir e pesquisar a história daquele brutal
acontecimento – o que durou mais de cinco anos. Capote entrevistou e teve
acesso direto aos dois homens responsáveis pelo assassinato, o que renderam
inúmeras entrevistas e uma profunda análise psicológica dos motivos que os
levaram a realizar o crime.

O livro só foi publicado depois que os assassinos já tinham sido mortos (foram
condenados à pena capital) e inaugurou um novo gênero literário: o Romance
de Não-Ficção. Transitando entre a literatura e o jornalismo, o romance trata de
acontecimentos reais narrados de forma literária, ou seja, utilizando elementos
como foco narrativo, fluxo da consciência, clímax etc. Na passagem abaixo, Perry
Smith e Dick Hancock, os dois criminosos, estão fugindo da cena do crime dias
depois do ocorrido. É interessante notar como a estrutura narrativa é construída
de fatos (datas e locais são mencionados), mas também aspectos subjetivos (a
consciência dos assassinos, a forma de usar a linguagem) ilustram uma influên-
cia nitidamente literária:

182
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

Hawks wheeling in a white sky. A dusty road winding into and out of a white and dusty village.
Today was his second day in Mexico, and so far he liked it fine – even the food. (At this very
moment he was eating a cold, oily tortilla.) They had crossed the border at Laredo, Texas, the
morning of November 23, and spent the first night in a San Luis Potosti brothel. They were now
two hundred miles north of their next destination, Mexico City.
“Know what I think?” said Perry. “I think there must be something wrong with us. To do what
we did.”
“Did what?”
“Out there.”
Dick dropped the binoculars into a leather case, a luxurious receptacle initialed H.W.C. He was
annoyed.
Annoyed as hell. Why the hell couldn’t Perry shut up? Christ Jesus, what damn good did it do,
always dragging the goddam thing up? It really was annoying. Especially since they’d agreed,
sort of, not to talk about the goddam thing.
Just forget it.
“There’s got to be something wrong with somebody who’d do a thing like that,” Perry said.
“Deal me out, baby,” Dick said. “I’m a normal.” (CAPOTE, 2003, p. 108)

In Cold Blood é prova não só da evolução da literatura, mas também da pró-


pria forma de se apreender a realidade que vinha se desenvolvendo nos Estados
Unidos no período posterior à 2.ª Guerra Mundial. De certa forma, o New Journa-
lism foi uma das últimas tradições literárias uniformes surgidas no país, antes da
fragmentação e pluralidade artística de uma escrita considerada pós-moderna que
começa a se estabelecer especialmente a partir da década de 1980. Mesmo assim,
sua influência no âmbito da escrita ficcional e jornalística é sentida até hoje.

Texto complementar

A streetcar named desire


(WILLIAMS, 2000)

BLANCHE (drawing back): What are you doing in here?

STANLEY: Here’s something I always break out on special occasions like


this! The silk pyjamas I wore on my wedding night!

BLANCHE: Oh.

STANLEY: When the telephone rings and they say “You’ve got a son!” I’ll
tear this off and wave it like a flag! (He shakes out a brilliant pyjama coat.) I
guess we are both entitled to put on the dog. (He goes back too the kitchen
with the coat over his arm.)

183
Literatura Norte-Americana

BLANCHE: When I think of how divine it is going to be to have such a thing


as privacy once more – I could weep with joy!

STANLEY: This millionaire from Dallas is not going to interfere with your
privacy any?

BLANCHE: It won’t be the sort of thing you have in mind. This man is a
gentleman and he respects me. (Improvising feverishly.) What he wants is my
companionship Having great wealth sometimes makes people lonely!

STANLEY: I wouldn’t know about that.

BLANCHE: A cultivated woman, a woman of intelligence and breeding,


can enrich a man’s life – immeasurably! I have those things to offer, and this
doesn’t take them away. Physical beauty is passing. A transitory possession.
But beauty of the mind and richness of the spirit and tenderness of the heart
– and I have all of those things – aren’t taken away, but grow! Increase with
the years! How strange that I should be called a destitute woman! When I
have all of these treasures locked in my heart. (A choked sob comes from her.)
I think of myself as a very, very rich woman! But I have been foolish – casting
my pearls before swine!

STANLEY: Swine, huh?

BLANCHE: Yes, swine! Swine! And I’m thinking not only of you but of your
friend, Mr Mitchell. He came to see me tonight. He dared to come here in his
work-clothes! And to repeat slander to me, vicious stories that he had gotten
from you! I gave him his walking papers ...

STANLEY: You did, huh?

BLANCHE: But then he came back. He returned with a box of roses to


beg my forgiveness! He implored my forgiveness. But some things are not
forgivable. Deliberate cruelty is not forgivable. It is the one unforgivable
thing in my opinion and it is the one thing of which I have never, never been
guilty. And so I told him, I said to him, Thank you, but it was foolish of me to
think that we could ever adapt ourselves to each other. Our ways of life are
too different. Our attitudes and our backgrounds are incompatible. We have
to be realistic about such things. So farewell, my friend! And let there be no
hard feelings ...

184
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

STANLEY: Was this before or after the telegram came from the Texas oil
millionaire?

BLANCHE: What telegram? No! No, after! As a matter of fact, the wire came
just as -

STANLEY: As a matter of fact there wasn’t no wire at all!

BLANCHE: Oh, oh!

STANLEY: There isn’t a goddam thing but imagination!

BLANCHE: Oh!

STANLEY: And lies and conceit and tricks!

BLANCHE: Oh!

STANLEY: And look at yourself! Take a look at yourself in that worn-out


Mardi Gras outfit, rented for fifty cents from some rag-picker! And with the
crazy crown on! What queen do you think you are!

BLANCHE: Oh - God ...

STANLEY: I’ve been on to you from the start! Not once did you pull any
wool over this boy’s eyes! You come in here and sprinkle the place with
powder and spray perfume and cover the light-bulb with a paper lantern,
and lo and behold the place has turned into Egypt and you are the Queen of
the Nile! Sitting on your throne and swilling down my liquor! I say – Ha - Ha!
Do you hear me? Ha - Ha! (He walks into the bedroom)

BLANCHE: Don’t come in here!

Dicas de estudo
Alice Walker ganhou muita visibilidade com seu romance The Color Purple es-
pecialmente depois que ele ganhou uma versão cinematográfica (“A Cor Púrpu-
ra”, em português) dirigida por Steven Spielberg em 1985. O filme é relativamen-
te fiel ao romance de Walker, apesar de algumas mudanças narrativas utilizadas
para transpor uma história de cunho epistolar (em forma de cartas e diários) para
a linguagem do cinema. Whoopi Goldberg, como a protagonista Celie, tem uma
atuação estelar em seu primeiro papel no cinema.

185
Literatura Norte-Americana

Uma das mais famosas adaptações cinematográficas de uma peça norte-


-americana é o filme Gata em Teto de Zinco Quente dirigida por Richard Brooks em
1958. O filme teve alguns diálogos da peça omitidos por seu caráter subversivo,
como os que sugeriam mais claramente a relação homossexual de Brick (vivido
por Paul Newman) ou a sensualidade explosiva de Maggie (interpretada por
Elizabeth Taylor). Ainda assim, a versão para cinema da obra de Tennessee
Williams representa com extrema vitalidade a atmosfera ficcional do dramaturgo.

Atividades
1. Como as obras de Alice Walker e Toni Morrison podem servir como reflexo da
agitação social nos Estados Unidos das décadas de 1960 e 1970?

186
O teatro e as vertentes da prosa norte-americana na 2.ª metade do século XX

2. Quais as principais inovações narrativas criadas pelos autores do “New


Journalism”?

187
Possibilidades de ensino de literatura
norte-americana no ensino médio
A literatura, desde a alvorada da construção do pensamento individu-
al, é a mais rica e completa forma de transpor conceitos (pessoais e/ou
universais) subjetivamente através da palavra. Seja ela transmitida de ma-
neira oral ou escrita, a palavra é ao mesmo tempo um repositório cultural
de uma identidade, um tempo e um lugar, assim como também funciona
como elemento difusor da qual está imbuída.

Símbolo máximo de uma escrita criativa capaz de construir, reconstruir,


e até mesmo demolir mundos, a literatura tem em seu cerne a pluralidade
e a multiplicidade de vozes que uma arte tão antiga como essa pode abar-
car. Isso garante que uma obra literária, por mais trivial que possa parecer,
sempre seja representativa de uma forma única de ler e interpretar a realida-
de em que foi produzida. Por outro lado, essa diversidade artística que carac-
teriza a literatura acaba por impedir que se chegue a uma definição precisa
sobre sua verdadeira natureza. A essência da obra literária, ainda que seja
sentida e captada de forma subjetiva, ultrapassa tentativas de uma concei-
tuação mais objetiva. Toda sociedade é tão forte e consolidada quanto mais
importante for sua literatura – mas o propósito da literatura (se é que há
algum realmente específico) escapa a leitores, críticos e estudiosos.

Por isso, a literatura permanece através dos séculos como forma de arte
preponderante na preservação e transmissão do pensamento humano
através da palavra. As formas em que o texto literário se mantém e se pro-
paga se multiplicam com a passagem do tempo – ainda que o livro per-
maneça o instrumento mais popularmente relacionado à literatura, outros
meios de difusão da escrita criativa (especialmente associados à tecnolo-
gia da informação) surgem a todo o momento. Pode-se falar na morte do
livro, mas jamais na morte da literatura.

Essa complexidade, que é inerente à literatura, é um dos aspectos que


a torna tão vasta e insubstituível. Contudo, essa ausência de uma demar-
cação bem definida sobre a sua conceituação acaba por dificultar uma
estratégia generalizada para seu ensino. O aprendizado da literatura é ine-
gavelmente uma das melhores maneiras de transmitir um conhecimento
Literatura Norte-Americana

social, histórico e cultural, seja do presente ou do passado, da realidade local


ou estrangeira, usando estratégias ficcionais ou não. Mas se sua importância é
indiscutível, a apresentação formal da literatura em instituições de ensino, como
matéria curricular, oferece diferentes desafios.

Especialmente considerando o ensino de uma literatura estrangeira (nesse


caso, a literatura produzida nos Estados Unidos) para alunos do ensino médio,
há que se considerar uma variada rede de estratégias para:

 abordar o assunto proposto;

 manter os alunos interessados e motivados;

 despertar a curiosidade para que eles busquem outras fontes de informação.

A partir dessas estratégias, os alunos terão acesso a essa natureza múltipla


da literatura, compreendendo sua importância no desenvolvimento cultural e
artístico da sociedade norte-americana.

A obra literária como


produto de um momento histórico
A qualidade múltipla da literatura é o principal fator complicador para sua
aprendizagem no ensino médio. Para ultrapassar a barreira é importante que o
professor utilize diferentes estratégias para que a transmissão do conhecimento
se dê de forma sistematizada, clara, mas sem reduzir totalmente a complexidade
e a riqueza de análise presente em qualquer boa discussão sobre um autor, uma
obra ou um período literário. Gilda Neves da Silva Bittencourt afirma que:
O impasse que se estabelece [...] é que, para transformar qualquer área do conhecimento em
disciplina do ensino formal, é necessário, antes de mais nada, estabelecer uma metodologia
de estudo, capaz de traçar os rumos do seu desenvolvimento e fixar os princípios basilares
que a definirão como objeto de investigação. A literatura, em sua essencialidade heterogênea
[...] dificulta esse tipo de procedimento, já estabelecendo, a priori, uma diferenciação sobre as
demais matérias que compõem o currículo escolar. (BITTENCOURT, 1997, p. 261)

Essa dificuldade apresentada com relação ao ensino da literatura na passa-


gem acima é transposta, como a própria autora afirma, através do estabeleci-
mento de uma metodologia de estudo, e é a partir dela que o professor vai guiar
suas aulas. Antes de traçar sua metodologia, porém, o professor deve atentar
para algumas questões fundamentais de cunho prático que o auxiliarão no de-
senvolvimento de uma estratégia de ensino bem-sucedida.

190
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Primeiramente, é importante tomar conhecimento do programa/ementa/


plano que apresenta o conteúdo a ser ensinado no ano ou semestre letivo. É es-
sencial que o professor tenha ou adquira familiaridade com os assuntos propos-
tos, estudando-os em profundidade com o intuito de apresentá-los da melhor
forma possível aos alunos. Assim, ele não só apresentará maior desenvoltura na
discussão do conteúdo, como também será capaz de prever possíveis dúvidas
dos alunos. Também é necessário ressaltar que a matéria apresentada não deve
ser vista em termos de aulas isoladas, mas como uma construção gradual do
conhecimento dos alunos durante todo o semestre ou ano letivo.

Outro ponto relevante na estruturação de uma estratégia de ensino compe-


tente é levar em consideração o público para o qual está se falando – ou seja, os
alunos. O professor deve estar ciente e analisar para que tipo de aluno ele está
ensinando, levando em conta aspectos como faixa etária, classe social e conhe-
cimento prévio. Assim, maiores problemas serão evitados especialmente no que
concerne à didática do professor e à linguagem utilizada.

Em terceiro lugar, o professor deve considerar o papel da língua estrangeira


no aprendizado. Como se trata do estudo da literatura norte-americana, o en-
tendimento dos textos estudados passa por um conhecimento prévio da língua
inglesa, e o professor deve estar atento à fluência dos alunos nesse sentido. Caso
não haja a possibilidade de se trabalhar com um texto literário na sua forma
original em inglês (o que é sempre altamente aconselhável), o professor deve
buscar traduções conceituadas, publicadas por editoras renomadas que possam
garantir que o aluno, mesmo que não possa ler o texto original, tenha acesso a
uma versão de qualidade. Dessa forma, o ensino não será prejudicado e não há
risco de empobrecimento na análise literária realizada pelo professor.

Depois de pensar criticamente sobre esses aspectos acima mencionados,


chega a hora de apresentar o conteúdo programático do período letivo. O ca-
ráter fluido da literatura já se mostra na variedade através da qual ela pode ser
abordada: através de estilos literários (Romantismo, Realismo etc), através de um
determinado autor e características de sua biografia ou através de uma obra lite-
rária específica que, em si só, pode se caracterizar como poesia, conto, romance,
ensaio, peça teatral etc.

O ponto fundamental do ensino da literatura norte-americana no Brasil é a


sua contextualização. A literatura não funciona como um evento artístico isola-
do, mas é sempre um produto ou representação de um tempo histórico e um
local específico. Portanto, no ensino de literatura, é crucial que antes mesmo

191
Literatura Norte-Americana

da análise da escrita literária em si, algumas perguntas sejam feitas – “onde?”


“quando?”“como?”“por quê?” É a partir do entendimento de que a literatura faz
parte de uma rede social, histórica e cultural complexa que é possível ultrapas-
sar as barreiras de seu ensino e aproximar os alunos de uma realidade nacional
diferente da sua – a dos Estados Unidos.

Levando em conta esse critério, o professor passa a ter então dois caminhos
através dos quais pode decidir ensinar a literatura norte-americana. O primeiro
deles é apresentar um determinado momento histórico dos Estados Unidos a
partir da obra literária escolhida. Assim sendo, o professor tem a possibilidade
de discutir a obra como representação artística de um período específico da
história do país. O texto literário funcionará como um mapa onde, através do
pensamento subjetivo do escritor e da análise crítica do leitor, pode-se ler nas
entrelinhas as características e os eventos históricos retratados, seja na prosa ou
na poesia. Portanto, parte-se do específico para o geral.

O outro caminho possível é exatamente o inverso, ou seja, propor o estudo da


literatura a partir do momento histórico em que ela foi produzida. Dessa forma,
o professor primeiramente vai traçar um apanhado histórico-social de um de-
terminado período dos Estados Unidos, retratando de maneira crítica o espírito
da época. Após estruturado, o conhecimento específico sobre aquele momento
singular da história, o texto literário é estudado como seu produto artístico. A
obra literária funciona então como um espelho subjetivo da época, refletindo
uma realidade histórica de acordo com a visão pessoal do autor. Portanto, parte-
-se do geral para o específico.

A escolha feita pelo professor entre essas duas estratégias depende muito do
que ele acredita que vai ser mais bem-sucedido tendo em vista o seu conheci-
mento sobre o material abordado e sobre os seus alunos. Somente depois de con-
siderar qual obra será estudada e o caráter de seu momento histórico (lembrando
que é sempre aconselhável ponderar sobre o papel de determinado assunto em
todo o período letivo), o professor pode ter certeza de qual método vai ser mais
facilmente compreendido e vai despertar maior interesse em seu público.

No entanto, se julgarmos de maneira generalizada o ensino da literatura nor-


te-americana, a segunda opção acaba sendo privilegiada, tendo efeitos mais sa-
tisfatórios no entendimento por parte dos alunos. Ou seja, quando têm primei-
ramente o acesso a uma explicação sobre determinado momento histórico dos
Estados Unidos (e seu correspondente arcabouço artístico e social) os alunos
conseguem articular um entendimento mais claro da obra literária e o porquê
de sua importância.
192
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Essa preferência pela análise do momento histórico antes de apresentar a


obra literária, todavia, não significa que o estudo da literatura fica em segundo
plano. Pelo contrário – o texto literário (assim como seu autor e seu estilo) acaba
sendo realçado. Isso se dá basicamente porque, fazendo uso dessa estratégia de
ensino, o professor consegue expressar de maneira simples a complexidade da
literatura, o que poderia ser visto como uma barreira para aprendizagem. A obra
literária passa a ser vista de maneira dupla: ela é importante por ser produto de
uma determinada época; mas por outro lado permanece relevante exatamente
porque conseguiu ultrapassar o gosto e a apreciação daquele momento históri-
co específico, tornando-se atemporal.

É importante realçar também que, ao se fazer um apanhado da realidade his-


tórica dos Estados Unidos em primeiro lugar, o aluno brasileiro vai ter mais fami-
liaridade com o universo retratado na obra literária analisada em seguida. Assim,
seu entendimento do assunto será mais completo, além de proporcionar uma
visão do texto estudado que vai além das questões narrativas e subjetivas.

A abordagem histórica em muito auxilia o professor na construção de um ra-


ciocínio lógico ao apresentar um texto literário e propicia ao aluno uma compre-
ensão mais ampla da literatura norte-americana; e o mais importante: o pano de
fundo histórico é capaz de enriquecer a análise de uma obra independentemen-
te de seu gênero literário. Seja na prosa ou na poesia, no conto ou no romance,
no ensaio ou no sermão, no discurso ou na peça teatral, o contexto em que o
trabalho foi escrito acaba sendo de extrema relevância.

Se tomarmos como exemplo o sermão Sinners in the Hands of an Angry God,


de Jonathan Edwards, se torna evidente a necessidade de uma conceituação
histórica para uma melhor apreciação do referido trabalho. Um estudo do
texto de Edwards por si só fica empobrecido se não for associado ao contexto
da realidade puritana norte-americana em que foi produzido. É a partir da
compreensão do funcionamento, da organização e da moral religiosa presente
na sociedade puritana que se pode apreender a força dos argumentos levantados
por Edwards em seu sermão.

Da mesma forma, é difícil falar de The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald,


sem explicar como esse trabalho encontra-se inserido no contexto da Jazz Age.
É através do espírito festivo e próspero dos chamados roaring twenties que se
pode chegar à razão pela qual os personagens no romance parecem viver num
mundo de ilusão, onde a celebração nunca termina – e o preço que pagam por
isso. The Great Gastby foi escrito durante a Jazz Age e tem esta época como assun-

193
Literatura Norte-Americana

to, portanto o contexto histórico é indissociável tanto de sua produção quanto


de sua narrativa.

Na poesia, o mesmo ocorre, só que de maneira ainda mais significativa. É


possível ler os poemas de T.S. Eliot e compreender que há uma certa atmosfera
melancólica em sua escrita. No entanto, a razão da desesperança presente nos
versos de Eliot só é revelada quando vista sob a perspectiva do período posterior
à 1.ª Guerra Mundial, quando grande parte da intelectualidade norte-americana
encontra-se imersa em um estado de grande angústia. Assim sendo, a poesia,
como escrita essencialmente subjetiva, traduz em termos literários o contexto
histórico em que está inserida.

A partir da abordagem histórica, é possível construir um estudo muito mais


denso da literatura, tornando o ensino e o aprendizado não só mais preciso (já que
envolve elementos da história e da sociedade) como também mais interessante.
Essa, no entanto, é só uma primeira estratégia. A partir dela, é possível articular
diferentes maneiras em que a literatura norte-americana pode ser apresentada.

Abordagens para o ensino


da literatura norte-americana
Tendo em perspectiva a importância da análise da obra literária como produ-
to de um momento histórico, é possível organizar aulas bastante interessantes
utilizando a literatura norte-americana. Vale ressaltar que, além de apresentar o
conteúdo de forma coerente e crítica, o professor deve manter os alunos motiva-
dos no processo de aprendizagem, além de incentivá-los a buscar outras fontes
de informação sobre os assuntos apresentados na aula.

Assim sendo, trataremos agora de estratégias e recursos específicos que


podem ser usados em sala de aula para que o ensino de literatura norte-ameri-
cana se dê de forma relevante, mas também atraente para os alunos. Algumas
obras literárias servirão de exemplo para ilustrar as vantagens da utilização das
diferentes atividades.

Obras cinematográficas
O cinema é um grande aliado do professor de literatura. Como representa-
ções visuais relacionadas a trabalhos literários, os filmes possibilitam o desenvol-

194
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

vimento de uma visão crítica não só sobre a obra escrita, mas também sobre si
mesmos. Além do mais, os filmes podem iluminar aspectos do texto não obser-
vados pelo leitor e trazer uma nova abordagem para a discussão literária.

No caso da literatura norte-americana, existe uma grande variedade de adapta-


ções cinematográficas de suas obras, assim como filmes retratando especificamente
momentos da história do país que serviram como pano de fundo para importantes
trabalhos literários. Uma das vantagens de se trabalhar com produções cinema-
tográficas relacionadas à literatura norte-americana é que o cinema dos Estados
Unidos é o mais popular do mundo, e assim seus filmes não só são de fácil acesso
como também se utilizam obras literárias do país para construir seus roteiros.

Bom exemplo disso é a quantidade de filmes sobre o período colonial norte-


-americano, da chegada dos primeiros aventureiros ingleses ao puritanismo. Para
ilustrar o uso do cinema em aulas de literatura norte-americana, vamos utilizar
o texto de John Smith, The General History of Virginia, e dois filmes: Pocahontas
(produção da Disney de 1995), de Mike Gabriel e Eric Goldberg, e O Novo Mundo,
dirigido por Terence Malick em 2005.

O primeiro passo para se fazer uso do cinema em sala de aula é ter claro o ob-
jetivo a ser alcançado. No caso aqui exemplificado, os principais propósitos são:
demonstrar de que forma John Smith vê a América, como o cinema representa a
mitologia em torno de sua relação com a princesa indígena Pocahontas, e como
as duas versões cinematográficas diferem na abordagem do encontro dos euro-
peus e da população nativa do Novo Mundo.

Depois de definida a função da obra cinematográfica, o professor deve ela-


borar questões para que os alunos, ao assistirem a cenas do filme (ou ao filme in-
teiro, dependendo do interesse ou disponibilidade de tempo de que se propõe),
o façam tendo objetivos claros em mente, para que assim prestem atenção aos
pontos que realmente importam e sirvam para enriquecer a aprendizagem do
aluno sobre a literatura e o momento histórico em que ela está inserida.

Assim sendo, os alunos de literatura norte-americana, antes de assistirem


trechos pré-selecionados dos filmes Pocahontas e O Novo Mundo receberão as
seguintes questões:

 Compare e contraste a maneira com que cada filme aborda a


chegada d
ocolonizador europeu.

 Compare e contraste a maneira com que cada filme retrata


visualmente aAmérica.

195
Literatura Norte-Americana

 Compare e contraste a maneira com que cada filme trata a relação entre
John Smith e Pocahontas.

Os alunos são informados de que eles devem assistir às cenas tendo as ques-
tões em mente e que, em seguida, eles deverão apresentar oralmente o que
conseguiram apreender dos filmes. Após a exibição, os alunos primeiramente
discutem entre si em pequenos grupos as possíveis respostas para as questões.
Posteriormente eles as apresentam para toda a classe.

Após a realização da atividade, os alunos já estão familiarizados com os per-


sonagens, o pano de fundo histórico e o enredo do texto literário que irão ler:
The General History of Virginia, de John Smith. Dessa forma, eles já leem a obra
com um conhecimento prévio e motivados pela exibição dos filmes. Ao lerem
o texto de Smith, que é ao mesmo tempo narrador e personagem, o professor
pode traçar um estudo comparativo entre a produção literária e a produção fílmi-
ca, especialmente na forma com que o aspecto selvagem da América colonial é
mostrado, assim como a visão romântica lançada sobre a figura de Pocahontas.

Uma outra atividade utilizando o cinema tem como obra de análise a peça
The Crucible, de Arthur Miller. Um dos grandes manifestos contra a opressão e a
favor da livre expressão, a peça se relaciona a dois períodos históricos diferentes.
Seu enredo se passa no período colonial norte-americano, quando no vilarejo
de Salem um surto histérico leva indivíduos a acusarem uns aos outros de bru-
xaria, fazendo com que vários sejam acusados e mortos. No entanto, a peça foi
escrita na década de 1950, quando o Comitê de Atividade Antiamericanas perse-
guia especialmente membros da classe artística por uma possível aproximação
de ideais comunistas, o que leva várias pessoas a acusarem colegas de trabalho
para não perderem a carreira ou serem presos.

Uma das grandes vantagens de se trabalhar com The Crucible é a sua excelen-
te adaptação para o cinema de 1996, chamada no Brasil de As Bruxas de Salem,
dirigida por Nicholas Hytner e roteirizada pelo próprio Arthur Miller. Enquanto
este filme serve como representação da perseguição religiosa na sociedade pu-
ritana, outra produção cinematográfica poderia ser usada para retratar a per-
seguição política no período histórico em que The Crucible foi escrito. Trata-se
de Culpado por Suspeita, filme de 1991, dirigido por Irwin Winkler, que conta a
história de um diretor de cinema que é perseguido ao ser acusado de atividades
liberais e antiamericanas.

Nessa atividade, a exibição dos trechos dos filmes tem mais efeito depois que
os alunos já leram, já ouviram a explicação do professor e estão familiarizados

196
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

com o enredo da peça. Assim, ao assistirem aos filmes eles serão capazes de
identificar os principais temas discutidos metaforicamente na peça de Miller: a
intolerância, a moralidade, e a permanência do caráter. O professor, então, pode
propor as seguintes questões para serem debatidas:

 Em que a “caça às bruxas” comunista da década de 1950 se


assemelha à de Salem?

 Como o clima de paranoia é retratado em As Bruxas de Salem e


Culpado por Suspeita?

 Qual é a importância da confissão de seus “pecados” nos dois contextos?

Dessa maneira, os alunos usam a literatura e o cinema não só como produtos


de um pensamento artístico, mas também como instrumentos para a análise de
temas abrangentes de formação da identidade e da sociedade.

Documentários
Ao contrário de filmes de longa-metragem, os documentários geralmente
têm uma duração menor e uma abordagem mais realista. Esse tipo de obra fa-
vorece a apresentação do contexto histórico em relação ao trabalho literário, já
que tende a revelar dados factuais sobre a escrita da obra, do momento em que
ela foi produzida ou sobre a biografia do autor.

Uma espécie de atividade que enriquece o uso de documentários em sala


de aula é o preenchimento de um questionário sobre as informações essenciais
contidas no vídeo. Esse recurso pode ser usado como atividade de introdução à
obra literária, para que assim os alunos tenham conhecimento dos dados e do
pano de fundo de onde surgiu o trabalho que eles posteriormente estudarão
mais profundamente.

Inicialmente, o professor distribui o questionário para os alunos, informando


que ali estão perguntas cujas respostas estarão presentes no documentário que
eles irão assistir em seguida. O professor lê o questionário juntamente com os
alunos, explicando e esclarecendo dúvidas. Posteriormente, os alunos assistem
ao vídeo, localizando as respostas e escrevendo-as na folha do questionário. Ao
fim da exibição, o professor pode checar as respostas juntamente com os alunos,
exibindo novamente o documentário e parando nas passagens em que as res-
postas foram apresentadas (essa possibilidade depende do tempo disponível
da aula). Outra possibilidade é a correção da atividade oralmente e, à medida

197
Literatura Norte-Americana

que ele confere as respostas, o professor desenvolve o tema apresentado, dando


informações extras que depois servirão de base para um melhor entendimento
do trabalho literário a ser estudado.

Um bom exemplo deste tipo de atividade é a série de documentários pre-


sente na edição especial do DVD do filme Uma Rua Chamada Pecado, dirigido
em 1951 por Elia Kazan. Baseado na peça A Streetcar Named Desire de Tennessee
Williams, o filme permanece a mais vibrante adaptação cinematográfica deste
grande trabalho do teatro norte-americano. A edição especial (DVD duplo) do
filme traz um excelente documentário sobre a peça, intitulado “Uma Rua na
Broadway”, em que aspectos importantes da primeira encenação de A Streetcar
Named Desire são detalhados. Com relação a esta produção, os alunos respon-
dem então ao seguinte questionário:

 Quem é o autor da peça?

 Quais foram as inspirações do autor para escrever a peça?

 Quem é o diretor da peça?

 Quais os nomes dos atores principais da peça?

 Em que ano a peça foi encenada pela primeira vez?

 Quais as qualidades da peça mencionadas pelos


entrevistados?

 Qual atuação da peça é mencionada como a mais marcante? Por


quê?

198
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Essa atividade atinge o objetivo de contextualizar A Streetcar Named Desire


para os alunos, além de criar um interessante diálogo entre um recurso visual (de
tom documental) a uma obra literária (claramente ficcional).

Outros recursos
Com o intuito de envolver os alunos no assunto abordado e enriquecer seu
aprendizado, outros recursos podem ser utilizados. É importante ressaltar que
quanto maior a variedade de material oferecida ao professor pela instituição de
ensino (retroprojetor, datashow, televisão, aparelho de DVD), mais dinâmica e envol-
vente será a aula. Todavia, se o professor não tiver desses materiais à sua disposição,
as atividades abaixo podem auxiliá-lo no ensino da literatura norte-americana.

Algo simples que em muito aumenta a efetividade da apresentação do pro-


fessor é a exposição de imagens, fotos ou figuras que ilustrem a obra literária
ou o período histórico sendo abordado. A representação visual não só valida
como também extrapola a explicação dada, abrindo uma nova perspectiva para
os alunos interpretarem o tópico em questão. Essas imagens são de grande valia
em aulas em que o tema tratado é muito distante da realidade cotidiana do
aluno (como o puritanismo, por exemplo, em que imagens de trajes e constru-
ções do período podem servir de exemplo), quando o assunto envolve pessoas
importantes da história norte-americana (como Benjamin Franklin ou Abraham
Lincoln) ou quando um evento marcante é crucial para o entendimento de uma
obra literária (fotos da Guerra Civil norte-americana ou do movimento pelos di-
reitos civis, por exemplo).

Também é importante estimular os alunos a buscar eles próprios o conheci-


mento, por isso é sempre interessante solicitar pesquisas em livros ou na inter-
net sobre determinado assunto. A partir das informações coletadas pelos alunos,
o professor então os guia na construção de uma análise crítica sobre aqueles
dados e a obra estudada. É de vital importância que o professor seja específico
na solicitação do tipo de informação que os alunos devem pesquisar e também
sugira as fontes que considere mais confiáveis. Sobre o tipo de pesquisa, é alta-
mente aconselhável que seja sobre a biografia do autor (especialmente quando
fatos de sua vida têm ligação direta com a obra estudada) ou algum comentário
específico sobre o texto literário. Uma pesquisa sobre o estilo de vida de Henry
David Thoreau no campo e sua influência na criação de Walden, ou analisando
os comentários de Abraham Lincoln sobre Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher
Stowe, seria de grande valia para o processo de aprendizagem.

199
Literatura Norte-Americana

Com relação a peças de teatro, atividades específicas para esse gênero podem
ser desenvolvidas. Uma delas seria recortar os diálogos de uma cena específica
em pequenas tiras, para que os alunos (em pares ou pequenos grupos) os co-
locassem na ordem correta. Posteriormente, os alunos receberiam uma folha
com a versão correta e comparariam suas respostas. A partir daí, o professor lê o
diálogo juntamente com os alunos e tenta elicitar seu entendimento, antes de
apresentar o tópico central da aula. Essa atividade também pode ser usada em
uma parte de romance ou conto em que haja um longo diálogo ou pequenos
parágrafos. Um bom exemplo de exercício com uma peça de teatro seria algum
diálogo entre Willy Loman e seus filhos em Death of a Salesman, de Arthur Miller,
em que fica clara uma das ideias centrais da peça – a ilusão proporcionada pelo
sonho americano – através da conversa dos personagens.

Dependendo do interesse dos alunos e da disponibilidade do professor,


também é possível encenar trechos de peças de teatro estudadas. Assim, os
alunos não só estudariam os diálogos da peça com o seu propósito final (serem
encenados), mas também vivenciariam o universo dos personagens. Uma peça
em que não há muita dificuldade de encenação – pela variedade de persona-
gens, ausência de cenários muito elaborados e diálogos de fácil memorização –
é Cat on a Hot Tin Roof, de Tennessee Williams. Os alunos, em grupo, escolheriam
uma cena da obra (entre algumas predeterminadas pelo professor) e fariam uma
breve encenação. Ao final das apresentações, eles poderiam falar da experiência
de atuar em uma peça clássica, as dificuldades que sentiram e até mesmo esco-
lher o melhor grupo. Isso não só motivaria os alunos, mas os faria experimentar
a literatura de uma forma diferente da simples leitura.

Levando em consideração o contexto histórico e usando como exemplo al-


gumas das atividades e obra mencionadas, o professor será capaz de fazer com
que seus alunos sejam despertados para o mundo da realidade cultural e artísti-
ca norte-americana. A literatura, antes de ser uma matéria da grade curricular, é
um meio prazeroso de aquisição de conhecimento, e esse é um dos pensamen-
tos centrais que o professor deve ter ao ensinar qualquer texto literário.

200
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

Texto complementar
Full circle: O’Neill , Hemingway
(SPILLER, 1967)

The younger generation of writers, most of whom in the final decade of


the old century and nurtured in the years when the nation was reaching its
maturity as a world power, were quite ready to consider themselves “lost”
when they were plunged, at the moment of manhood, into what looked
like the collapse of Western civilization. The world they had known, a world
in which peace, prosperity and progress had been taken for granted as the
evidences of an achieved humanity, was suddenly challenged by barbari-
ties that had supposedly been laid aside for all time. Shocked and dismayed,
they first were seized with the spirit of the Crusades and rushed out to set
things right, to make the world once more “safe for democracy”, to fight
“the war to end wars”, to care for the wounded, and to arouse the people of
Europe against their misguided leaders. […] [President] Woodrow Wilson led
the campaign and provided most of the slogans, but Theodore Dreiser […]
and the iconoclasts and critics of France, Russia, and England provided their
reading. On the surface they appeared to be a company of idealists and re-
formers, but at heart they knew that the evil they were fighting lay closer to
home than they cared to admit.

When the war ceased as suddenly as it had started, these young men
looked back to their country only to find that it had suffered the shock but
few of the actualities of war, and that its people had profited by war indus-
tries and the sense of power and self-righteousness that comes with victory.
A second disillusionment then turned them against this insensitive country
of theirs, and they took up, with all the enthusiasm they had put into the
military crusade, a battle for literary and moral integrity both in America and

201
Literatura Norte-Americana

in themselves. The vigor they had thrown into the driving of the wounded
back from the front in Red Cross ambulances, or fighting in the air or in soggy
trenches, they now put into writing. Many – almost a majority – of them
rejected the vigorous materialism of post-war prosperity in the United States
and returned, after discharge from military service, to Europe, there to haunt
the ateliers of Paris, to discuss art rather than politics, and, if one may judge
from their own accounts, to waste their disillusioned minds and bodies in
drink and dissipation. Even though the pose and decadence did not suit
them as well as it had the sad young men of the nineties, the outlook was
not promising for a new American literature that could offer solutions to the
problems of humanity.

But the literature of power asks rather than answers question. In the
American writers who reached maturity between wars, what at first had
seemed an irresponsible flight from reality turned out to be the means toward
a realization of their true calling. These young men needed the perspective
of distance as well as of time in order to discover new forms of art for the
expression of man’s dilemma in the twentieth century. The older writers had
posed the problems with which literary art must deal; the younger must learn
to write. Whether they stayed abroad or came home and retreated from their
society they slowly taught themselves their art.

Dicas de estudo
Em História-Ficção-Literatura, Luiz Costa Lima investiga os pontos de ligação
entre a ficção e a história. Discutindo os limites do discurso ficcional e do discur-
so historiográfico, o livro é uma rica fonte de estudo para professores pensarem
criticamente sobre o papel da história na escrita da literatura e, especialmente,
nos recursos literários que podem ser utilizados para se ter acesso ao passado.

O processo de investigação e pesquisa realizado por Truman Capote para es-


crever In Cold Blood é um história rica por si só – esse é o pensamento por trás
do filme Capote, dirigido por Bennett Miller em 2005. O trabalho aborda de que
forma Capote se interessou pela história brutal de assassinato ocorrida no Kansas
e como funcionou o processo criativo por trás da escrita de In Cold Blood. Um dos
aspectos mais interessantes do filme é a abordagem dada à estranha fascinação
de Truman Capote (vivido excepcionalmente por Phillip Seymour Hoffman) por

202
Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio

um dos assassinos, Perry Smith. Capote é uma obra que retrata não só uma obra
literária, mas todo o contexto histórico-social envolvido na sua criação.

Atividades
1. Qual a importância de ensinar a literatura norte-americana através de seu
contexto histórico?

2. No texto complementar, como o autor articula o momento histórico pós 1.ª


Guerra Mundial com a literatura produzida no período?

203
Gabarito

Literatura colonial e a América puritana


1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 os textos de John Smith tiveram um caráter


propagandista, com oobjetivo de atrair os colonos para a América;

 Smith constrói a América como um lugar selvagem e


exótico, mastambém repleto de oportunidades e onde as pessoas
podem exer- cer sua liberdade individual;

 a história do relacionamento de Smith e Pocahontas


serviu como símbolo da possibilidade de prosperidade entre colonos
e nativos.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 os puritanos são os responsáveis pela publicação dos


primeiros tex-tos escritos na América;

 os puritanos são responsáveis pela produção de uma


variedade edformas de escrita: diários, poesia, sermões;

 os ideais puritanos de prosperidade seguindo as leis


divinas, auto- determinação e o “sonho americano” se tornaram
grandes temas da literatura norte-americana e serviram de símbolos
da América no imaginário ocidental.

3. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 o Deus apresentado no sermão é um Deus irado e


punitivo, que pode lançar os pecadores ao inferno quando quiser;

 o homem é naturalmente culpado, e assim nunca se


encontra total- mente a salvo das chamas infernais e da punição de
Deus.
Literatura Norte-Americana

O período revolucionário
1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 um novo modelo de colonização por parte da Inglaterra,


procurando u
mmaior controle das colônias;

 as colônias começam a perder autonomia de governo;

 a Lei da Moeda;

 a Lei do Selo;

 a questão da taxação do chá.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 a questão do “contrato social”;

 a ideia de que o homem nasce mau perde a força;

 os homens têm o direito natural à liberdade e à felicidade.

A prosa romântica
1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 maior aproximação com a natureza;

 ênfase no sentimento e na subjetividade;

 estímulo ao nacionalismo.

2. A resposta deve incluir os seguinte pontos:

 uma literatura voltada à exploração dos mistérios da natureza;

 desenvolvimento do aspecto psicológico dos personagens devido à


maiorênfase na individualidade;

 construção de uma literatura alegórica, reflexo de um mundo


natural re-pleto de símbolos.

206
Gabarito

A poesia romântica
1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 o poema deve conter em torno de 100 versos;

 o poema deve ser lido de uma só vez;

 o poema deve ter a beleza como um de seus temas;

 o poema deve ser construído racionalmente e não apenas ser fruto ed


inspiração.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 Whitman construiu uma poesia épica para os EUA;

 Whitman inovou na forma da poesia, com versos livres;

 Whitman expressou aspectos sexuais em seus trabalhos;

 Dickinson apresentou uma estrutura poética nova e criativa, com


diferen- tes usos da pontuação e da gramática;

 Dickinson construiu imagens incomuns em seus poemas aliando


ideaisabstratos a figuras concretas.

A Guerra Civil e a literatura correspondente


1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 o romance mostrou a crueldade a que os negros eram


submetidos a u
mmaior número de pessoas;

 o romance sensibilizou a maior parte do público, fazendo com


que o ne-gro passasse a ser visto como ser humano e não como
propriedade;

 deu ânimo ao movimento abolicionista para lutar pelo fim da


escravidãoeaumentar o antagonismo entre o norte e o sul dos EUA.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 destruição das cidades e da economia sulista;

207
Literatura Norte-Americana

 adoção da estratégia de desenvolvimento nortista (indústria e


comércio)por todos os Estados Unidos;

 expansão dos direitos de cidadania aos negros, mas gerando uma


fortesegregação racial.

O Realismo norte-americano
1. A resposta deve incluir os seguintes tópicos:

 fim da crença em ideais românticos;

 crescimento do romance como principal forma literária em


detrimento d
apoesia;

 movimento cultural em direção ao oeste dos Estados Unidos;

 contato com novas regiões do país até então pouco exploradas.

2. A resposta deve incluir os seguintes tópicos:

 seus romances apresentam personagens marcados por um forte


determi-nismo social;

 sua obra mostra aspectos mais negativos do sonho americano;

 o narrador de suas obras não apresenta julgamento de moral.

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX


1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 o autor viveu intensamente o período;

 o autor em suas obras (especialmente The Great Gatsby) vai ilustrar o as-
pecto entusiástico mas também frívolo do período;

 o autor vai usar o período como símbolo de como o ideal do sonho


ame-ricano foi corrompido.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 o fluxo da consciência;

208
Gabarito

 construção fragmentada da narrativa;

 a manipulação imaginativa do tempo em seus romances.

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX


1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 a natureza é um dos principais temas de sua poesia;

 seus poemas abordam a relação do homem com a natureza;

 ao contrário da filosofia de Emerson, Frost faz da natureza uma


força enig-mática, em que é difícil achar um significado.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 pessimismo e melancolia;

 temas voltados à esfera urbana;

 fragmentação na estrutura dos versos e nas ideias apresentadas;

 fluxo da consciência;

 alusões a outras obras da literatura.

O teatro e as vertentes da prosa norte-


-americana na 2.ª metade do século XX
1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela luta de diferentes


setoresconsiderados minoritários da sociedade por direitos civis. Entre esses
gru- pos estavam os afro-americanos e as mulheres;

 a literatura produzida por Walker e Morrison tem como forte


característica a expressão da realidade da mulher negra, em especial sua
dificuldade em achar o seu lugar numa sociedade dominada por indivíduos
brancos e masculinos;

209
Literatura Norte-Americana

 ambas autoras estiveram envolvidas direta ou indiretamente no


movi-mento por direitos civis;

 alguns dos temas das obras de Walker e Morrison são questões centrais
levantadas pelos movimentos dos anos 60 e 70: a discriminação racial, a
opressão das mulheres, a procura da valorização da beleza negra e, espe-
cialmente a busca de uma identidade feminina e afro-americana.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 aproximação entre a linguagem literária e a linguagem jornalística;

 mescla entre fato e ficção;

 uso excêntrico de pontuação e onomatopeias;

 surgimento do Romance de Não-Ficção: In Cold Blood.

Possibilidades de ensino de
literatura norte-americana no ensino médio
1. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 fazer com que os alunos entendam que a literatura está sempre


inseridaem um momento específico da história;

 familiarizar os alunos com algumas características da obra literária;

 aproximar o aluno de elementos da cultura e da história norte-americana;

 propiciar uma apreciação mais ampla da obra literária.

2. A resposta deve incluir os seguintes pontos:

 primeiramente, o autor compara o espírito da época antes da 1.ª Guerra


Mundial com o espírito da época após a 1.ª Guerra Mundial;

 a seguir, o autor fala da desilusão dos jovens soldados (e futuros escrito-


res) com a realidade norte-americana ao fim da guerra;

 posteriormente, o autor fala que a mesma energia usada por esses


indiví- duos durante a guerra foi empregada na criação de uma nova
perspectiva literária, quando eles partem para a Europa.

210
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