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O que é, para onde vai a literatura?

— ou: Que as gavetas e prateleiras


guardem outros defuntos que não os textos literários.

Cid Ottoni Bylaardt1

A pergunta que ecoa há pelo menos 2500 anos soa no título do livro de Jean-
Paul Sartre: O que é a literatura? Blanchot pergunta: “Para onde vai a literatura?”, e
faz conjecturas sobre “A literatura e o direito à morte”. Antonio Candido reivindica o
direito à literatura e interpreta sua formação no Brasil. Derrida nos surpreende com
"Essa estranha instituição chamada literatura”. Theodor Adorno não escapa dela em
suas Notas de Literatura e em outros textos mais. Deleuze faz conjecturas entre "A
literatura e a vida”, e junto com Guattari apela Por uma literatura menor, concedendo
ao adjetivo uma conotação de singularidade, não de menoscabo. A esterilidade da
literatura se ergue em Inútil poesia, de Leyla Perrone-Moisés. Teorias da literatura,
com ou sem demônios, pululam pelos estudos literários, em saltos maiores ou
menores, para o bem e para "A literatura e o mal”, como investe George Bataille.
Silvina Rodrigues Lopes defende a inquietação, com Literatura: defesa do atrito.
E assim escritores, professores, comentadores, pesquisadores falam e falam e
falamos sobre a literatura, tentando apontar suas tendências, suas especificidades,
sua intangibilidade. Esta fala pretende, então, abordar as linhas mestras de nossa
atividade como professores, pesquisadores, escritores ligados ao Departamento de
Literatura: o ensino da literatura, a crítica literária e — em proporção infinitamente
menor do que os outros dois, mas tão importante quanto eles — a criação literária, a
origem da obra de onde todo nosso trabalho emana.
Poderíamos dizer que o texto literário é um nosso íntimo desconhecido que
acumula revelações e ocultações, e sobretudo renova sempre as possibilidades de
deslindamento. Não se pode continuar amando se se conhece o ser amado. O olhar
amoroso apaixonado não é um ato de reconhecimento, mas de redescobertas. O
amor, o amado erigem-se numa linguagem de inquietação, de estranhamento, sempre
à mostra, sempre oculta. Como continuar dizendo eu te amo, palavra gasta e
precária? Só a poesia pode revigorar o que está cansado, sem precisar recorrer às
coisas do mundo, então o dizer é que importa, mas como dizer, se as palavras são

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Professor Associado III de Literatura Brasileira da UFC. Bolsista de Produtividade do CNPq.

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insuficientes? A linguagem é insuficiente, mas descortina possibilidades, e é a elas
que o escritor tem que descobrir. O amor é uma experiência poética.
Essa manifestação de paixão parece conduzir a algo que nunca se reconhece,
mas sempre se redescobre, e aí passamos a pensar em como falamos da literatura,
em como exercemos nossa faculdade crítica, de pesquisa, de abordagem do texto
artístico. De literatura pouco se entende, pouco se pode explicar, pouco se pode
conhecer, mas estamos sempre entendendo, explicando, conhecendo. Colocamo-nos
então diante do inexplicável, que tem sua existência garantida pela ordem a que não
se pode desobedecer: “Explica!”. Assim fazemos com a literatura, garantindo o
inexplicável, fazendo discursos sobre ele, os quais consistiriam no complemento do
verbo imperativo, e que afinal continuará uma questão, porque seus complementos
não conseguem afirmar muita coisa. São apenas momentos, reduzidos de conteúdo,
que não se sustentam por muito tempo. A poesia, apesar das explicações, continua
lá, sempre poesia, sempre arte, sempre inexplicável. As explicações sobrevoam o
inexplicável como libélulas pairando sobre os nenúfares até a exaustão, quando então
deixam o inexplicável intacto, perfeitamente inexplicado.
Voltamo-nos então para a grande crítica literária, geralmente vista na
Universidade com reverência, como discursos portadores de verdades prontas para
quem ensina e aprende. Retomamos então a pergunta: o que é, para onde vai a
literatura? Que sentido podemos dar a esta palavra, que hoje representa para nós
uma possibilidade concreta de sustento de vida, amparado por uma instituição que
nos cobra uma atitude que legitime a égide? Lidamos com a Literatura, palavra que
se engasta nos manuais e neles se desgasta, revelando-se como texto exemplar,
modelar, fruto suculento de tradições, continuidades e genealogias, transmudando-se
em galhos, arbustos e árvores, frondosas umas, modestas outras, até o polo oposto,
que celebra a escritura que se ergue das ruínas, dos atritos, de rupturas e
singularidades, de fantasmas e sabores. Que literatura reina na Academia? Que
discursos se fazem sobre ela? Há outros possíveis? Uma retrospectiva dos últimos
cem anos das tendências de abordagens do texto literário nos mostra mais de uma
dezena de possibilidades: crítica biográfica, determinista, positivista, sociológica,
impressionista, engajada, formalista, marxista, psicológica, psicanalítica,
fenomenológica, historicista, semiótica, humanista, desconstrucionista, culturalista,
estruturalista, pós-estruturalista, crítica genética, crítica de gênero, hermenêutica, new
criticism, estética da recepção, crítica da diferença... E a literatura, como se situa

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nessa babel? O texto literário sobrevive a essa floresta de rumores, às vezes até se
alimenta deles. E muitas vezes são decretadas mortes e ressurreições de tendências
e textos, ao sabor das abordagens e suas inflexões.
O que se mostra preocupante nessas entonações, dobras e desdobras é a
maneira como são apresentadas abordagens que muitas vezes se autoproclamam
hegemônicas, respaldadas pelo prestígio de certas instituições, como se o texto
literário em si pudesse dobrar-se à erudição dos comentadores. As referidas maneiras
de apresentar os enfoques vêm invariavelmente emolduradas pela palavra “verdade”,
implícita ou explícita, o que confere ao mencionado discurso uma pretensa autoridade
de definir o que pode ser crível ou não. Uma crítica universitária responsável deve ser
capaz de criticar todas as críticas, de desconfiar de todas as declarações categóricas,
uma cautela necessária aos estudiosos de literatura.
O exemplo inicial do que consideramos uma atitude logocêntrica na crítica
literária vem de um dos maiores comentadores da literatura neste país, talvez a maior
figura da crítica literária brasileira do século XX, tanto por seu próprio mérito quanto
pelo prestígio que lhe conferiu a posição de sua universidade na mídia literária
brasileira e particularmente um crítico que procura demonstrar cautela na maioria de
suas afirmações, ainda que finque pé firme e não abra mão de sua postura em defesa
de sistemas literários e seus fundamentos sociais antes de quaisquer outros. O texto
é de Antonio Candido: “É uma constante não desmentida de toda a nossa evolução
literária que a verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando sentimos na sua
mensagem uma certa presença dos homens, das coisas, dos lugares do país”
(CANDIDO, 2006, p. 135). A expressão “verdadeira poesia” define uma concepção
literária que exclui categoricamente outras possibilidades poéticas e estabelece um
critério de qualidade: poesia para ser excelente tem que falar “dos homens, das
coisas, dos lugares do país”. Só e somente só. Os poetas fora da lei dos homens,
coisas e lugares (e isso inclui boa parte da produção de Drummond, Bandeira,
Quintana, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto...) podem até estar
inaugurando uma espécie de cosmopolitismo, admite o autor, mas essas atitudes são
simples experiências, jamais realizações. O real, o verdadeiro, o excelente tem que
seguir a regra estabelecida. É curioso que o mencionado artigo, citado aqui na nona
edição do livro Literatura e sociedade, que ostenta a indicação “revista pelo autor”,
traz uma nota de pé-de-página advertindo que o texto foi escrito em 1950, e por isso
traz “certos erros de avaliação e de perspectiva” (p. 135). O artigo é bem longo, e não

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há nenhuma indicação precisa desses erros; considerando que o autor não se
preocupou em apontá-los, entende-se que eles não comprometem em nada suas
ideias; portanto, o que foi dito fica valendo como compreensão da literatura brasileira
de 1900 a 1945, e é dessa forma que os alunos de literatura aprendem e apreendem
o texto literário. Essa apreciação “sociológico-estética” da obra literária é confirmada
pela frase “Para quem lê com mais atenção a poesia brasileira dos últimos anos,
impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer” (p. 136). E para
quem lê com mais atenção o artigo de Candido percebe que este “pouco ou nada a
dizer” é motivo de demérito dessa poesia, que deveria se mostrar mais empenhada,
deveria possuir maior ressonância humana, o que lhe conferiria mais personalidade,
e evidentemente mais qualidade. Considerando que a crítica foi escrita em 1950, o
que ele denomina “poesia brasileira dos últimos anos” é uma referência manifesta à
combatida “geração de 45”, episódio da literatura brasileira que alguns críticos querem
enterrar, alegando falta de empenho, o que, em nossa avaliação, é um julgamento
equivocado, que interfere de forma desastrosa no ensino da literatura no país. Há
professores que simplesmente ignoram, ou apenas mencionam de passagem este
momento da poesia brasileira, sob a alegação de que é uma poesia ruim, negando
assim aos alunos o direito de ler os poemas que seus próprios professores não leram.
É preciso notar que o próprio Cândido, em outro momento, afirma que o “a análise
estética precede considerações de outra ordem” (p. 12), e que o “ângulo sociológico”
não pode mais “ser imposto como critério único, ou preferencial” (p. 17), que o externo,
ao ser assimilado pela obra, torna-se interno (p. 14), o que não parece ser uma prática
frequente do crítico e de seus seguidores. Nesses casos, o critério sociológico é no
mínimo preferencial.
Outro exemplo de visão contingencial da literatura é o artigo “Falência da
poesia ou uma geração enganada ou enganosa: os poetas de 45”, escrito na década
de 60 por José Guilherme Merquior. Tal texto, que é lido com respeito na academia,
até hoje, atribui verdades depreciativas a um conjunto de obras que se convencionou
chamar “Geração de 45”, na literatura brasileira. Suas considerações “estéticas”
partem da ironia vulgar, como se lê em “Os poetas de 45 eram comportados. Bons
meninos: em nenhuma hipótese, capazes de fazer pipi na cama da literatura” (1996,
p. 49), até a acusação grosseira, que soa a bravata:

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eu acuso a geração de 45 (as exceções que se retirem) pelo crime de ter
traído a poesia, e de ter atrasado em tantos anos o firme florescimento de uma
poética da realidade brasileira.
Écrasez l’infâme!
(1996, p. 56)

O teor do presente texto não comporta uma análise mais minuciosa do artigo
de Merquior, nem pretende defender a poesia de 45, mas percebe-se o desrespeito
com que a literatura é tratada, com argumentos genéricos sem comprovação. O que
o crítico chama de “poética da realidade brasileira” assemelha-se à poesia dos
homens e das coisas do país reivindicada por Candido. Temos aqui, então, mais uma
vez, a apreciação estética subordinada a uma inconformidade (ou conformidade)
temática, isto é, o julgamento da poesia se faz pelo privilégio do fator externo. Em
termos de ensino de literatura, tais textos aparecem como bons motivos para se
resumir as aulas, sonegando tal conjunto de obras. Por outro lado, eles podem ser
lidos de forma crítica, de maneira a aguçar a leitura dos estudantes.
Quando se fala de atitudes logocêntricas, que estabelecem verdades
aparentemente inquestionáveis, é incontornável citar o texto inicial da Formação da
literatura brasileira, de Antonio Candido. Além de excluir da literatura brasileira o
século XVII e quase todo o XVIII, quando, segundo ele, não havia aqui um sistema
literário, o autor estabelece as origens da literatura brasileira recorrendo a uma
alegoria botânica que privilegia um certo sistema diacrônico-continuísta:
"A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de
segunda ordem no jardim das musas..." (2000, p. 9)

Tal afirmação, juntamente com a delimitação da formação da literatura


brasileira somente a partir do Arcadismo, sustenta-se em uma forte estrutura arbórea,
provida de um grosso tronco sustentado por robustas raízes que propiciam o brotar
de galhos e subgalhos. O pensamento de Candido foi firmemente contestado por um
livro surgido em 1989, O sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira,
de Haroldo de Campos. Tal opúsculo surgiu, fez barulho durante algum tempo, mas
parece que a força da obra de Candido, juntamente com o prestígio que emana do
lugar donde ele fala, decretou uma espécie de não-se-fala-mais-disso em tomo do
assunto, e a história dos galhos continua a ser ensinada e a ter força de verdade na
academia.
Outro comentarista literário que vê a literatura nacional numa perspectiva do
logos europeu é Afrânio Coutinho, organizador de A literatura no Brasil, em seis

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volumes e mais de duas mil e quinhentas páginas. Na Introdução Geral da robusta
obra, ele afirma:

Ao contemplar a história da literatura brasileira não fugimos a uma impressão


pessimista. É uma literatura pobre. Ainda não chegamos mesmo à plena posse
de uma literatura. (1971, p. 36)

Para Coutinho, falta personalidade, vigor, originalidade à literatura brasileira. O


autor, assim como Candido, invoca a todo momento as noções de plenitude, de
realização, de maturidade — frequentemente apontadas como as faltas de nossa
literatura, aquilo que é subtraído das obras que não são por não se realizarem
plenamente, por estarem em constante devir, devir que nunca chega. Resta perguntar
o que é realmente plena realização em literatura, quando se lê por exemplo O castelo
de Franz Kafka e O inominável de Samuel Beckett, dois escritores canônicos da
literatura universal. E ainda: “Missa do Galo” de Machado, “A terceira margem do rio”
de Rosa, A obscena Senhora D de Hilst, Os passos em volta de Herberto Helder, O
manual dos inquisidores de Lobo Antunes, que devemos fazer para compreendê-los?
E estamos falando apenas de narrativas. E os poemas? (mas não são poemas
aquelas “narrativas”?) Que fazer com A face lívida de Henriqueta Lisboa, La vie en
close de Leminski, Dois ou mais corpos de Arnaldo Antunes, O livro das ignorãças de
Barros, O poema contínuo de Herberto Helder, O búzio de cós de Sophia Andresen?
Como privilegiar a imagem em detrimento da singularidade? Segundo Deleuze-
Guattari, “A Pantera Cor-de-Rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta o mundo com
sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo, de forma a tornar-se ela mesma
imperceptível, ela mesma a-significante, fazendo sua ruptura, sua linha de fuga,
levando até o fim sua evolução a-paralela” (1995, p. 19). À pergunta de como
encontrar a realização plena da literatura, Bob Dylan, o prêmio Nobel que escandaliza
a literatura respaldada, autorizada, validada pela Academia talvez respondesse: “The
answer, my friend, is blowin' in the wind.”
Voltando à crítica depreciativa de nossa literatura, tais afirmações só são
possíveis dentro de uma metafísica logocêntrica, que constrói em torno da história da
arte e da literatura estruturas sólidas que obnubilam outras formas de ver o texto
literário. “Pobre” e “menor” soam como adjetivos que, para seus autores, definem
criticamente um objeto, considerando uma metafísica incontestável que trabalha com
modelos culturais, sociais e desenvolvimentistas. Talvez por isso eles não se deem

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ao trabalho de esclarecer a natureza da pobreza e da pequenez. Todos os que
respiramos a cultura logocêntrica temos a obrigação de saber por que somos pobres
a balouçar perigosamente em um galho franzino.
Outra semelhança entre as concepções literárias dos dois críticos é a ideia de
evolução, do pior para o melhor, como se se pudesse estabelecer uma diferença de
qualidade, por exemplo, entre Gregório de Matos e Manoel de Barros, considerando
a estrada evolutiva existente entre os dois. Para Coutinho, “ainda não chegamos à
plena posse de uma literatura” (chegaremos algum dia?); para Candido, a evolução
literária é como uma corrida de bastão, que os atletas passam de mão em mão até o
triunfo final.
A ideia de desenvolvimentismo nas artes é sustentada pela noção de centro,
de sistema, de estrutura, que se amplia para a noção de modelo (de cópia, literaturas
periféricas). Esta é uma concepção que ainda hoje nutre parte da crítica brasileira e
do ensino da literatura no Brasil.
As linhas mestras preservadas pela crítica clássica brasileira, que atingem a
literatura de fora para dentro, quais sejam, as noções de continuidade literária, linha
e tendência, movimento conjunto, sistema articulado, tradição e influência, produzem
parâmetros de julgamento também no nível interno das obras, considerando os
modelos hegemônicos (europeus) vigentes. Para Massaud Moisés, por exemplo, o
romance O Guarani, de José de Alencar, um clássico dos clássicos dos romances do
século XIX no Brasil, apresenta um final equivocado. O capítulo em que Ceci e Peri
terminam à deriva sobre as águas é considerado pelo crítico, conforme seus
ensinamentos da estrutura do romance romântico, no caso uma narrativa
“extrospectiva”, como uma “cena desnecessária”, um “apêndice inútil” (2004, p. 92).
O crítico, em sua obediência ao modelo, não conseguiu perceber a genialidade do
autor, que estabelece um violento e belo contraste entre a guerra genocida do
penúltimo capítulo e a dolorosa tranquilidade das águas, que carregam a incerteza de
chegar e a impossibilidade do gozo e da morte. Ceci e Peri boiam até hoje. O mesmo
crítico aponta uma falha de estrutura proveniente de desobediência aos modelos, no
caso o modelo do gênero conto, que deveria preservar a concisão, a ação direta ao
clímax e ao final. No caso, o texto criticado é o canônico “O homem que sabia
javanês”, de Lima Barreto. Massaud denuncia no conto “uma falha no plano de ação”,
que consistiria em “breves deslizes representados por minúcias completamente
dispensáveis” (2004, p. 93), e acrescenta: “pouco significa, do prisma dramático, que

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Castro pergunte a Castelo se bebe cerveja, e o outro responde que sim, e o narrador
arremate informando: “Mandamos buscar outra garrafa, enchemos os copos, e
continuei.”” (2004, p. 93).
Lembremos que o conto envolve a leitura de um livro que ninguém lê, e que a
trama gira em torno dessa ilegibilidade, a qual surpreendentemente trouxe fama e
glória ao protagonista. A escritura, assim, encena uma fala que conta uma história que
envolve um livro ilegível. São vários textos (incluindo escritura na areia) que se
superpõem, confundindo enunciadores e enunciatários, palimpsesto que elimina os
textos anteriores para permitir sua reutilização, sobrepondo-lhe algo novo, mágico,
embriagado. A enunciação regada a cerveja realça o sortilégio das escrituras.
E curioso que a embriaguez da escritura aparece com certa frequência na
literatura brasileira. O narrador machadiano, em dado momento de Memórias
póstumas, acusa seu livro de estar bêbado. O locutor rosiano de “Meu tio o Iauaretê”
bebe cachaça o tempo todo em que narra sua própria metamorfose à felinidade
inumana. Em “Antiperipleia”, de Guimarâes Rosa, o guia de cego é um borracho
contumaz. No romance “Nove noites” de Bernardo Carvalho, um dos locutores
também dá seu depoimento sob a ação do álcool. O reino de Dioniso ronda a literatura,
fazendo-a errar.
Terminamos nossos exemplos de tentativas da crítica de matar a literatura com
a referência a um artigo de Luiz Costa Lima, “O princípio-corrosão na poesia de Carlos
Drummond de Andrade”, que nutre evidente má-vontade para com o livro Claro
enigma, de Drummond, em que o poeta, segundo Lima, apresenta uma “tendência
em sufocar o princípio-corrosão pela opacidade absoluta” (1966, p.174). Voltamos à
velha concepção do poema empenhado, do necessário comprometimento com a
sociedade que Costa Lima chama “princípio-corrosão”.
O objetivo desta fala não é desacreditar a crítica tradicional nem bani-la das
salas de aula, o que além do mais é absolutamente impossível, uma vez que ela se
encontra bem instalada no ambiente escolar, mas de enriquecer as discussões
acadêmicas. Pensemos na literatura brasileira como um todo, cujas manifestações
singulares não se atrelam necessariamente a um modelo, embora dialogue com ele.
Pensemos na liberdade que a arte tem que ter, e luta para ter, sem se conformar a
temáticas pré-estabelecidas como se fossem chamadas de ordem. Ao invés de nós
professores passarmos por cima de certas tendências ou grupos de obras porque
certos críticos as depreciaram, tragamo-las para a sala de aula, leiamo-las com

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intensidade, com carinho e respeito pela literatura. Talvez até possamos dar razão a
certos comentários críticos, mas descobriremos estupefatos que eles não detêm a
verdade do texto literário, e merecem ser discutidos e questionados, até pelo que eles
representam como crítica acadêmica. Propomos que os alunos possam questionar os
professores e os críticos em sala de aula, que os professores questionem seus alunos
e seus colegas, mas entendamos aqui o verbo questionar como produzir o atrito que
a literatura merece, em lugar da conformidade. O texto literário não foi feito para ser
engavetado, categorizado em prateleiras, depositado em urnas funerárias, sepultado
em metodologias acadêmicas.
Com relação à criação literária, talvez esteja aí a grande resistência que a
academia impõe às índoles criativas, como se a literatura já estivesse pronta ao
nascermos e bastasse a quem a estuda apenas louvar o cânone já edificado por
críticos e professores notáveis. Nas escolas de Artes Cênicas, espera-se que os
estudantes atuem; nas faculdades de Música, espera-se que os alunos componham
e interpretem; nos cursos de dança, espera-se que os alunos... dancem; nas escolas
de Artes plásticas os estudantes devem pintar, ou esculpir, as pós-modernas escolas
de design gráfico incentivam igualmente a criatividade, em altas doses. A única
faculdade que lida com arte e não favorece a criação, quando não a rejeita
francamente, é a de Letras. Escrever poesia, narrativa ou drama, na academia das
letras, exceto quando respaldada por um diploma de doutor — como se isso o
autorizasse a criar o que quer que seja — geralmente é visto como um atrevimento
inconsequente, quando não uma atitude sonhadora e inconsistente, que passa com o
amadurecimento. Este estado de coisas se reflete no próprio tratamento que os
órgãos de fomento ligados às universidades costuma dar aos “produtos” da escrita
criativa: eles nada valem como produção intelectual; são quando muito tolerados
como indicadores de inserção social. Não são científicos, portanto não têm valor na
tribo iluminista-racionalista.
Curiosamente, um texto chamado Documento de Área, que engloba Literatura
e Linguística, publicado recentemente (2019) pela CAPES como orientação aos
programas de pós-graduação ressalta que que a vocação da Área não se restringe ao
contexto acadêmico-educacional, uma vez que se compreende que o profissional da
linguagem pode atuar em outros setores, dentre os quais se destacam o tecnológico,
o artístico, o editorial, o forense, o museológico, etc. E elenca dentre outras
possibilidades a formação em Escrita criativa, através do:

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xv. estímulo à ampliação de Cursos e/ou linhas de pesquisa de Escrita Criativa na formação
de ficcionistas, poetas, teatrólogos e roteiristas de cinema; (Documento de Área de 2019)

Isto é altamente motivador, considerando o silêncio que a área de Letras


tradicionalmente devotou à criação literária.
Sabemos que a criatividade de nossos alunos é surpreendente, assim como
sua produção, por menos que sejam incentivados a isso. E talvez o incentivo para a
escrita artística esteja dentro mesmo de cada um de nós. Na UFC em Fortaleza, temos
uma disciplina chamada Laboratório de Criação Literária, oferecida há dez anos na
graduação pelo Departamento de Literatura, que, somada a outras iniciativas dos
alunos, testemunha essa necessidade de criar. Este semestre já estamos
cadastrando uma disciplina chamada Escrita Criativa em nosso PPGLetras, e
deveremos ter em novembro um evento na área. O Ceará tem um grupo significativo
de jovens poetas e escritores, todos muito bons, alguns excelentes. Em Fortaleza,
muitos deles passaram pelo laboratório de criação da UFC. Eles e elas estão
compondo, escrevendo, publicando. Eles e elas se reúnem, debatem, discutem, e a
literatura está aí, viva, pelas praças, ruas, livrarias e bares, à margem da academia.
Isso tem que ser valorizado. Essa literatura viva, que se faz e refaz a todo
momento deve ter seu acolhimento também na universidade, juntamente com a
literatura canônica, que já se encontra bem instalada lá. E que todas elas sejam
discutidas em sala de aula, confrontadas com o que diz a crítica, seja ela antiga,
clássica, moderna ou pós-moderna, que a universidade se torne realmente um espaço
de discussões mais do que de imposições, que a literatura se recrie na vivência de
professores e alunos, que as gavetas e prateleiras guardem outros defuntos que não
os textos literários. Este é o nosso desejo.
Obrigado.

Referências Bibliográficas

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira: o
caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 2000.

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CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2006.
COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editorial Sul
Americana, 1971.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Trad.
Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura: defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira,
2012.
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios de crítica e estética. 2. ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

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