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SOCIOLOGIA DO DIREITO

ENSAIOS

Manuela Fialho Galvão

Ideia
João Pessoa
2018
SOCIOLOGIA DO DIREITO
ENSAIOS
LIVRO PRODUZIDO PELO PROJETO
Para Ler o Digital: reconfiguração do livro na Cibercultura – PIBIC/UFPB
Departamento de Mídias Digitais – DEMID / Núcleo de Artes Midiáticas – NAMID
Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas – Gmid/PPGC/UFPB

Coordenador do Projeto Alunos Integrantes Editoração Digital Capa


Marcos Nicolau Bruno Gomes Bruno Gomes Bruno Gomes
Lívia Macêdo

Atenção: As imagens usadas neste trabalho o são para efeito de estudo,


de acordo com o artigo 46 da lei 9610, sendo garantida a propriedade
das mesmas aos seus criadores ou detentores de direitos autorais.

Galvão, Manuela Fialho.


Sociologia do direito: ensaios. [recurso eletrônico] /
Manuela Fialho Galvão - João Pessoa: Ideia, 2018.
317 p.
ISBN: 978-85-463-0335-9
Tipo de Suporte: E-book - Formato Ebook: PDF
1. Sociologia do direito 2. Ciência jurídica 3. Ensaios

EDITORA

Av. Nossa Senhora de Fátima, 1357, Bairro Torre


Cep.58.040-380 - João Pessoa, PB
www.ideiaeditora.com.br
Sociologia do direito

SUMÁRIO

Apresentação..................................................................................06 PARTE III:


Práticas judiciárias e justiça do consumidor
Prefácio.............................................................................................12 I - Julgar e conciliar:
práticas formativas da justiça pública..................................150
Oração................................................................................................22 II - Justiça de camaleônico:
o fluxo das interações sociais..................................................173
Introdução: sociologia, direito e educação....................28
PARTE IV:
PARTE I: Teoria social da dádiva, redes e constituição social
Estratificação social e igualdade jurídica I - O sistema de direito e o reconhecimento social.......232
I - Estratificação social e ciência social...................................36 II - Teoria dos sistemas, redes e associativismo...............256
II - Sobre a igualdade:
o discurso dos moços da faculdade de direito...................51 PARTE V:
Ciências sociais, direito, literatura, arte, recreação
PARTE II: e a constituição
O urbano em estudo, cotidiano e direitos humanos I - Capoeira, literatura e ciências sociais:
I - João pessoa, o bairro da torre e as os desafios do fairplay................................................................279
Capa comunidades em estudo.............................................................74 II - Ciências sociais, direito e literatura:
II - Cotidiano e direitos humanos...........................................98 arte e recreação na compreensão da constituição.........291
Sumário
eLivre

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Sociologia do direito

APRESENTAÇÃO

Ensaios de Sociologia Jurídica de Manuela Fialho Galvão nos brinda com


um conjunto de dez escritos teóricos e empíricos cuja matriz central é a Ci-
ência Jurídica. Os Ensaios escritos entre Joao Pessoa e Recife revelam a traje-
tória acadêmica da autora que remetem os leitores a partir de uma belíssima
narrativa a uma viajem epistemológica, teórica e metodológica no tempo e
no espaço. Nesta perspectiva Ensaios nos apresentam as várias dimensões
que orbitam ao redor do direito a partir das lentes de sociólogos clássicos,
contemporâneos e de autores de nossa literatura nacional, contemplando
temas e problemas contemporâneos, como por exemplo, as políticas de
transferência de renda e a sua relação com a moral no sentido maussiano
(tema do capítulo terceiro). Ensaios de Sociologia Jurídica é composto por
uma breve introdução e cinco capítulos cada qual dividido em duas sessões.
Na introdução a autora articula os campos disciplinares do Direito, da Socio-
Capa
logia e da Educação – matriz para a composição dos ensaios. Após descrição
Sumário do contexto político e das condições históricas e políticas que possibilitaram
o surgimento da Sociologia e do Direito – Revolução Científica, Revolução
eLivre
Industrial Inglesa e a Revolução Política Francesa, Manuela nos apresenta
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Sociologia do direito

autores clássicos da Sociologia, as principais questões à época e as suas li-


gações com o campo da educação: educação como solução para as anomias
sociais (Émile Durkheim) exploração da classe trabalhadora, alienação, mais-
-valia e a educação para emancipação política (Karl Marx) e o direito positivo
em consonância com o capitalismo industrial. O capítulo que inicia Ensaios
de título “Das desigualdades sociais e estratificação social” trata da visão dos
três autores supracitados do processo de estratificação social e da desigual-
dade nas sociedades industriais do tipo capitalista a partir da categoria tra-
balho. Karl Marx claramente anuncia um princípio ontológico na sociedade
de classes a alienação e a exploração do trabalho como motor do processo
de produção do valor e da própria história; Durkheim analisa os conflitos
sociais como patologias e Weber transcende a explicação economicista e
anuncia a esfera da religião – a ascese protestante. Neste capítulo a autora
traz reflexões de autores pós-estruturalistas sobre o fenômeno da desigual-
dade social, transcendendo as correlações mecanicistas entre classe social e
estratificação social até reflexões recentes que anunciam o questionamento
da centralidade do trabalho nas sociedades atuais. Ao longo do percurso a
Capa autora demonstra mutações na própria teoria social que se enriquece agre-
gando em sua reflexão elementos novos, como a distinção cultural, as esfe-
Sumário ras do agir comunicativo e o mundo da vida, as relações de consumo e as
eLivre identidades cuja centralidade no mundo contemporâneo é inegável, assim

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Sociologia do direito

como a luta pelo reconhecimento de direitos baseados em sinais diacríticos,


um exemplo claro é o sistema de cotas para negros e índios no Brasil e a luta
de minorias étnicas, como os catalães na Espanha, a formação do Estado Is-
lâmico e seus efeitos nefastos principalmente para as meninas e mulheres,
dentre outros casos.
O segundo texto intitulado: “Sobre a igualdade: o discurso dos moços
da faculdade de direito”, trata dos resultados de pesquisa (de opinião) em-
pírica realizada com alunos da faculdade de direito da Universidade Federal
da Paraíba no ano de 2003 a finalidade era captar as representações dos
alunos sobre “políticas de igualdade que buscassem resolver ou compensar
as diversas desigualdades – econômicas (assistência judiciária gratuita, dis-
tribuição gratuita de medicamentos, isenção de imposto para baixa renda),
sociais (reserva de vagas no estacionamento para deficientes físicos, perma-
nência nas escolas normais para portadores de necessidades especiais, fila
preferencial para idosos/gestantes/pessoas com crianças, meia-entrada para
estudantes em cinemas e espetáculos), étnica (reservas de vagas na univer-
sidade para negros e índios) e de gênero (cotas de representação para mu-
Capa lheres em partidos políticos); guardando, pois, a igualdade enquanto valor”
(GALVÃO, 2014, p. 16 e 17). Resultados da pesquisa sinalizaram para opini-
Sumário
ões divergentes sobre as políticas sociais que tem como finalidade assegurar
eLivre a igualdade de direitos.

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Sociologia do direito

A parte II apresenta inicialmente uma belíssima descrição da cidade de


João Pessoa, quase um tributo à cidade, a reconstitui brevemente a sua his-
toricidade, a sua longa ligação com Recife – afinal Paraíba fora território per-
nambucano (?). Destaque é conferido ao bairro da Torre e as comunidades
Padre Hildon e São Rafael, um pouco de suas histórias, seus locais tradicio-
nais, o contraste entre bairro e comunidade e as suas clivagens sociais. A
autora discute de forma elegante os problemas sociais, a cultura assisten-
cialista que se revela nas políticas públicas, em especial, o Bolsa Escola, fruto
da pesquisa realizada pela autora no campo das análises e avaliações das
Políticas Públicas, contudo, a partir de uma lente crítica e de um referencial
teórico sociológico, metodologia antropológica, demonstrando a solidez da
formação acadêmica da autora e a sensibilidade para as questões sociais.
Neste caso a referência à Hannah Arendt é bastante feliz! Valiosa contribui-
ção para o campo de avaliação das políticas públicas. Na segunda seção nos
traz reflexões analíticas sobre interfaces entre campo e cidade, o cenário é
a região Nordeste, o acesso a direitos fundamentais do Homem que nos re-
metem a Revolução Francesa, a raiz da pobreza e novamente, a referencia a
Capa Paulo Henrique Martins e a Telles e que nos remete às reflexões de Marilena
Chaui no livro Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, a alusão indire-
Sumário ta ao Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss – as modalidades do sistema
eLivre de dádivas, e, finalmente, a dádiva hierárquica e assimétrica, a referencia a

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Sociologia do direito

Roberto da Matta e o nosso dilema brasileiro, reflexões pertinentes para o


Nordeste e o Brasil, a questão agrária não resolvida até os dias de hoje.
Na parte III- seção I a autora aborda as práticas judiciarias e a justiça do
consumidor problematizando as questões de julgar e conciliar, a partir de
um diálogo entre autores como Ortner, Habermas, Foucault, Cardoso de
Oliveira, Bourdieu, Alain Caillé e Paulo Henrique Martins. Trata-se de uma
reflexão teórica de peso e na reflexão da prática judiciária e de justiça à luz
da teoria habermasiana sistema e mundo da vida, onde o autor propõe uma
razão comunicativa baseada no melhor argumento e na figura do mediador.
A prática judiciaria leva a uma reflexão sobre o modelo de Estado. A seção II
são dados e análise da pesquisa de campo da autora realizada entre 2006 e
2007 dos cadernos processuais do Procon estadual.
Neste quartoe quinto capítulo a autora demonstra a contribuição dos
esportes para a Sociologia, dito de outro modo, os esportes “são bons para
pensar”, como diria Claude Lévi-Strauss, questões vitais da disciplina, a exem-
plo, dos códigos nativos, da linguagem, o esporte paradigmático é o fairplay,
uma alegoria para pensarmos nossas instituições e o Estado de Direito em
Capa que a liberdade individual e o respeito a alteridade é uma das pedras fun-
Sumário dantes: “Com efeito, a regra geral é o fairplay, isto é, o respeito sobre o jogo
do outro e o conjunto dialógico” (GALVÃO, p.123). A autora aborda brilhan-
eLivre temente as ligações entre literatura, sociologia e direito e suas implicações
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Sociologia do direito

recíprocas, suas inspirações teóricas são Max Weber e as obras literárias


de Augusto de Anjos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rêgo. A partir dos
autores realizamos uma viagem ao cenário regional e às tramas históricas
que configuram a nossa identidade; com Augusto dos Anjos, inicialmente
a escravidão, as relações raciais e o sistema agrário plantation; Raquel de
Queiroz introduz a mulher no pensamento social brasileiro, particularmen-
te a condição da mulher no mundo do trabalho- duplamente punida por
ser mulher e pobre, talvez negra? José Lins do Rego nos traria novamente
a gênese agrária da nação, seus contrastes e por isso mesmo sinaliza para
a questão social, o cangaço! Deus e o Diabo na terra do sol de Glauber Ro-
cha sinaliza para nossas questões sociais a desigualdade de renda fruto da
concentração de renda e do latifúndio, afinal são as questões contemporâ-
neas, a concentração da renda, mas “para não dizer que não falei das flores”
(Geraldo Vandré), a autora sinaliza em seus Ensaios que o exercício pleno da
cidadania assegurariam condições de vida mais felizes. Recomendo forte-
mente a leitura destes Ensaios redigidos afetivamente entre Paraíba e Recife
aos estudantes de Direito, Ciências Sociais, Serviço Social e Políticas Públicas
Capa e todos interessados nas temáticas.
Sumário
Alicia Ferreira Gonçalves
eLivre
João Pessoa
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Sociologia do direito

PREFÁCIO

Os anos de 1980/1990 proporcionaram o enlace definitivo das Ciências


Sociais e do Direito no Brasil. A abrangência e ao mesmo tempo especificida-
de dos campos de pesquisa, os lócus de intervenções e as elaborações epis-
temológicas em Sociologia Jurídica (ou Sociologia do Direito, para alguns o
debate ainda persiste) convergiram – ou são frutos – também do período de
transição entre a ditadura militar para o dito/ escrito Estado democrático de
direito.
Esse mesmo período adensou mais uma vez a “crise do ensino jurídico”
- apontada por Rui Barbosa um século atrás – o tema retorna desta vez am-
parado por um ideal de realização dos ditames constitucionais de 1988 em
seus princípios, objetivos, garantias e liberdades fundamentais (direitos civis
e políticos), direitos sociais, econômicos e trabalhistas, direitos ambientais e
Capa culturais e por fim o reconhecimento constitucional da importância dos po-
vos indígenas e da população negra para uma sociedade pluriétnica, ou seja,
Sumário a centralidade dadas está em torno da proteção, promoção e efetivação dos
eLivre direitos humanos com base no princípio da dignidade humana.

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Sociologia do direito

Na Sociologia Jurídica os conceitos de democracia, política, história, cul-


tura, economia, sociedade, direito, participação, metodologia, direitos hu-
manos, institucionalidades, movimentos sociais e “lutas pelo direito” ganham
contornos teóricos/práticos que abarcam pesquisas, extensões e práticas di-
dáticas de relevo no campo do ensino jurídico.
A Sociologia Jurídica brasileira no decorrer dos anos conquistou o sta-
tus de produtora de conhecimento, discursos e racionalidades institucionais,
também é fonte de interpretação/produção normativa pelo tribunais e afins,
porém, sua característica enraizada de problematização da realidade ju-
rídica-social permanece, não apenas por ser parte de um horizonte pro-
gressista da Lei de Diretrizes e Bases (1993) ou do giro humanista na forma-
ção dos bacharéis em direito a partir de 1997, ela continua a ampliar suas
possibilidades na pesquisa (graduação, mestrado e doutorado), na extensão
(preferencialmente popular), na produção acadêmica (livros, artigos e artes)
e na criação das intervenções metodológicas – didáticas, sendo estas as di-
mensões trabalhadas a partir da obra Ensaios de Sociologia Jurídica de
Manuela Fialho Galvão (Manu).
Capa A obra revela a concretização de uma geração que ousou ler, ver, intera-
Sumário gir e relacionar o direito (ciências jurídicas) com a sociologia, antropologia,
filosofia, artes, cultura e política, geração (de)formada na universidade (fora
eLivre dela também) dos anos de 1990 que em sendo parte de um processo de
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Sociologia do direito

transição paradigmática se viu vinculada ao passado que não vivenciou –


tempo, ao mesmo desterritorializada em presente que não consegue intervir
– espaço e com as incertezas em relação aos futuros que as memórias irão
ajudar a constituir – novos saberes.
O livro Ensaios de Sociologia Jurídica remete ao tempo recente quando
leitura dos textos críticos do direito eram na maioria das vezes empréstimos
de cópias rabiscadas, desgastadas e de raro acesso, geralmente demoravam
meses e até anos para a discussão da obra em grupos de estudo e extensão
universitária, e grande parte da formação crítica era feita com leituras da
Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense em especial as Obras: O que
é Capital (DOWBOR, Ladislau, 1982), O que é Candomblé (CARMO, João Clo-
domiro, 1987), O que é Cidadania (COVRE, Maria de Lourdes Manzini, 1991),
O que é Etnocentrismo (ROCHA, Everardo.1984), O que é Feminismo (ALVES
e PITANGUY, Branca Moreira e Jacqueline. 1981), O que é Dialética (KONDER,
Leandro, 1981) e O que é Direito (Roberto Lyra Filho, 1982), destas obras se
tentava relacionar com o direito, ciência política, democracia e Estado com
temas atuais vinculados nos jornais de circulação nacional ou local.
Capa A geração que não estava nos movimentos contra a ditadura, mas sofreu
Sumário os efeitos e consequências das distensões, a geração que não estava nos es-
paços de decisão e poder, mas percebeu as mudanças em curso é nesse tem-
eLivre po que Manuela Galvão diz em sua obra sobre uma possibilidade de ação co-
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Sociologia do direito

municativa entre a geração que leu Karl Marx, Max Weber, Michael Foucault,
Boaventura Souza Santos, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Amilton Bueno
de Carvalho, Eliane Junqueira, Luciano Oliveira, Joaquim Falcão, Luiz Alberto
Warat, Solange Souto, Cláudio Souto, João Maurício Adeodato, Roberto Da-
Matta, Alba Zaluar e temas contemporâneos que estão presentes desde a In-
trodução : Sociologia, Direito e Educação, Capítulo I Estratificação Social e
Ciência Social e Igualdade Jurídica : 1. Estratificação Social e Ciência Social e
Sobre a Igualdade: O Discurso dos Moços da Faculdade de Direito e a preocupa-
ção central dos ensaios que fazem parte da composição do livro: perspectivas
metodológicas e teóricas em descrição lúdica-didática.
Estas são questões aparentemente elementares e de cunho generalista
que são raramente bem elaboradas em manuais, livros com temas específi-
cos ou de revisão de literatura em sede acadêmica destinados para pesqui-
sadores(as), professores(as), extensionista, neófitos no campo sócio-jurídico
e curiosos(as) da interdisciplinaridade, mas que na presente obra concretiza
um espaço de potencialidades pouco referenciadas e mais intuitivas da for-
mação geralmente elementar dos bacharéis de direito no diálogo com outros
Capa campos de saberes., merece atenção para além das discussões , talvez após
10 anos revisitar o Centro de Ciência de Jurídica – atualmente composto por
Sumário
dois cursos, Campus I e DCJ – Santa Rita (este último fruto do programa de
eLivre expansão universitária – REUNI e da forte incidência das ações afirmativas de

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Sociologia do direito

cunho étnico-racial e econômico – social) e replicar a pesquisa sobre ações


afirmativas, mas esses são futuros que por certo virão.
Por futuros que virão um dos momentos fortes da obra de Manuela Gal-
vão é o Capítulo V – Ciências Sociais, Direito e Literatura: Arte, Recreação
e a Constituição: 2. Ciências Sociais, Direito, Literatura: Arte e Recreação na
Compreensão da Constituição, onde aponta o desafio que ainda está posto
no campo da produção do conhecimento: “O desenvolvimentismo carece de
uma leitura humanizada. As falhas de cálculos não denunciam uma formação
reificada e dogmática? E quando neste domínio somos discutidos, não somos
apenas seus dispositivos mal reflexionados? O que é a permanência senão o
acumulado da nossa sensibilidade?” (GALVÃO, p.130)
Das promessas não cumpridas pela transição dos 1980/2000 são necessá-
rias teses, livros e outras referências para adensamento, no campo das ciências
jurídicas um arejamento metodológico que permita equacionar quais as novas
escalas foram abertas com as transformações das utopias no Brasil, na Améri-
ca Latina e no mundo após 1989 com a rápida (re)criação de uma nova ordem
mundial que revelou um sentimento de desconforto com entre a teoria e a prá-
Capa tica, do tempo – espaço e a necessidade de dialogar com futuros novos saberes,
Sumário ou seja, a transitoriedade entre o local – global se tornou uma constante, as ci-
ências jurídicas passados anos do século XXI ainda precisa da Sociologia Jurídica
eLivre para alertar que “the times they are a-changin’” como profetiza Mr. Bob Dylan.
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Sociologia do direito

Para que esse se tenha a compreensão dessas mudanças a leitura do


Capítulo II O Urbano em Estudo, Cotidiano e Direitos Humanos: 1. João
Pessoa, o Bairro da Torre e as Comunidades em Estudo e 2. Cotidiano e Direito
Humanos apresenta essa relação local – global através da nítida percepção
que ao atravessas da Usina Cultural até o Espaço Cultural, ou atravessar a Av.
José Américo (Beira-Rio) do centro até a praia é possível deslocar toda uma
parte da cidade através das narrativas de um Bairro da Torre na cidade de
João Pessoa – Estado da Paraíba para uma dinâmica global que é capaz ser
reproduzida em várias escalas.
Ao encontrar nos escritos uma marcar de transterritorialidade nas opções
de Manuela Galvão principalmente no que é visível entre os Estados da Para-
íba – Pernambuco (Augusto dos Anjos – João Cabral de Melo Netto), também
são bem caracterizadas as questões que estão para além da ciência jurídica e
da sociologia, que fazem parte de uma percepção ampliada dos fenômenos
culturais e compilação teórica de densidade e qualidade produzida pela au-
tora que nos remete para linhas bem caracterizadas que expõe a potenciali-
dade da Sociologia Jurídica e do Futebol, Capoeira, Direito do Consumidor,
Capa Direitos Humanos, Marxismo, Multiculturalismo, História Social, Etnografia,
Filosofia do Direito, Teoria da Educação, o Bairro e Mundo, de Habbermans
Sumário
a Offe, de Foucault ao Mestre Raposão, em forte composição intelectual que
eLivre aproxima por várias vezes a autora de Mauss, Durkheim, Bourdieu e outros.

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Sociologia do direito

Neste sentido o Capítulo III Práticas Judiciárias e Justiça do Consumidor:


1. Julgar e Conciliar: Praticas Formativas da Justiça Pública e 2. Justiça de
Camaleônico e o Fluxo das Interações Sociais e Capítulo IV Teoria Social da
Dávida, Redes e Constituição Social: 1. O Sistema de Direito e o Reconhe-
cimento Social e 2. Teoria dos Sistemas, Redes e Associativismo, são as bases
para novos pilares.
A criatividade é a boa amiga da curiosidade, sem elas não há capacidade
de encontrar (se perder) em outro e no outro, porém, não são apenas es-
ses elementos que constituem uma pesquisadora, é preciso ter uma opção
metodológica sempre bem definida e nos textos do Capítulo V – Ciências
Sociais, Direito e Literatura: Arte, Recreação e a Constituição: 1. Capo-
eira, literatura e ciências sociais: Os desafios do fairplay e 2. Ciências Sociais,
Direito, Literatura: Arte e Recreação na Compreensão da Constituição, além
da criatividade e curiosidade – disponibilidade, a metodologia se encontra
com o rigor teórico, ao mesmo tempo que faz intervenção no campo da so-
ciologia da educação demonstrando algo didático.
A aplicação constante de aportes filosóficos, sociológicos, normativos, da
Capa história social em perspectiva local – global (campo – cidade) ao costurar dimen-
Sumário sões do uso da ação comunicativa, dos conceitos de direitos humanos, das en-
trevistas abertas ou na pesquisa de arquivos / cadernos em no Procon estadual
eLivre e Juizado de Camaleônico permitem a autora transitar com coerência e consis-
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Sociologia do direito

tência teórica com Sérgio Adorno, Rachel de Queiroz, Pierre Bourdieu, Nobert
Elias, Émile Durkheim, Michel Foucault, Nancy Fraser , Boaventura de Souza,
Gilberto Freyre, Augusto dos Anjos, José de Sousa Martins, Wiliam Shakespe-
are, Jessé Souza e Adélia Prado, assim como, por documentos produzidos pelo
Conselho Nacional de Justiça, Ministério da Justiça e obras literárias.
Em síntese pode-se afirmar que a Sociologia Jurídica no campo das ciên-
cias jurídicas se tornou uma promotora, denunciadora e guardiã das pers-
pectivas não cumpridas que acompanharam as transformações do Estado e
da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, ao mesmo tempo – espaço que
o mundo foi alterado substancialmente em suas formas de lidar com novos
(velhos) saberes é preciso celebrar a obra Ensaios de Sociologia Jurídica de
Manuela Galvão enquanto promessa cumprida e sinalização de que ainda
as mudanças do(s) tempo(s)-espaço(s) estão vindo conforme Mr. Bob Dylan
insiste : “Come writers and critics/ Who prophesize with your pen/ And keep
your eyes wide/ The chance won’t come again/ And don’t speak too soon/ For
the wheel’s still in spin/And there’s no tellin’ who/That it’s namin’./For the loser
now/Will be later to win/For the times they are a-changin’ “.
Capa
Sumário Eduardo Fernandes de Araújo (Edu - Paraibucano)
eLivre Coimbra, Portugal.

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Sociologia do direito

Nota a esta edição: Estes ensaios que aqui levam este nome se tratam de
leituras teóricas e pesquisas de campo realizadas durante o percurso aca-
dêmico em universidades nordestinas e em um centro universitário. Escritos
não apenas acadêmicos para disciplinas curriculares e monografias, mas fo-
ram também acatados em sociedades científicas pós-estruturalistas, socie-
dades nacionais, e locais. Contaram ainda com financiamentos para pesqui-
sa, a exemplo do CNPQ, CAPES e FACEPE. Tratam-se ainda e principalmente
de pesquisas de campo, realizadas nos muros e extramuros da universidade.
Desta feita em contato com instituições da sociedade como Juizado Especial
do Consumidor, Centro Intergeracional Sinhá Bandeira e Museu José Lins do
Rego na cidade de João Pessoa. Alguns estão publicados e disponíveis em
jornais e livros eletrônicos. Mas a forma com que neste livro são reunidos é
inédito, escolhidos entre os melhores papers e editados da melhor maneira
que houver.
A temática dominante é proveniente do direito e da sociologia. Estas
temáticas por sua vez configuram um campo do saber especializado que
é a sociologia do direito. Com este campo do saber estabeleci no percurso
Capa acadêmico apartes importantes que configuram com o passar do tempo a
fronteira do conhecimento! No ano de dois mil e dez ao aceitar o convite
Sumário
para o I Congresso Nacional de Sociologia do Direito na cidade de Niterói,
eLivre estabeleci o contato com as pesquisas que se desenvolveram no país, e a

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Sociologia do direito

perspectiva “legal culture”. No campus de Gragoatá na Universidade Federal


Fluminense, recebemos uma espécie de comenda e de título de sócio-fun-
dadores, apenas enunciado no ato de assinatura da ata de fundação, e a
partir daquele momento fomos chamados sócio-fundadoresda Associação
Nacional de Pesquisadores em Sociologia do Direito, a ABRASD. Tem inspi-
ração assim a organização desta coletânea selecionando para o público lei-
tor e estudioso os melhores ensaios produzidos até o dia de hoje, o que nos
dispensará os breviários.

Manuela Fialho Galvão

Capa
Sumário
eLivre

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Sociologia do direito

ORAÇÃO

Muito foi feito até aqui quando somos marcados pela profissão. Para in-
gressar nesta Universidade pública, inúmeros esforços coletivos foram des-
tinados por nossa família e por nossos amigos! Muitos dos nossos amigos
se fizeram presentes e, de forma compreensiva, souberam respeitar as horas
de leitura, de testes, e de estudo. Quantas ciências nós tivemos que conhe-
cer com o coração aberto antes de aqui chegar, a literatura, a matemática, a
cultura dos autores, e a sociologia em seu regresso escolar, nós tivemos que
nos deter atentamente por horas e horas a fio. Fizemos provas e simulados
para nos habilitar aos seus caminhos. Tínhamos que ser os melhores, e o pa-
râmetro era esta Casa das Ciências, das Letras, e das Artes.
Ao chegar, tivemos a Praça da Alegria por descoberta - quantas pessoas
novas, diferentes, quanto o nosso coração se deixou cativar pelas faces de
Capa cada pessoa que a este lugar dedica sua existência - muitas vezes acordados,
vigiando os caminhos do nosso direito e da nossa liberdade. Quantos com-
Sumário partilharam de nossa condição e como somos conhecedores da identidade
eLivre paraibana e do conhecimento das diversas nacionalidades, gêneros, e gera-

22
Sociologia do direito

ções! Nesta cidade de João Pessoa, e neste campus, quanto nos inspiramos,
quando parávamos para contemplar a beleza e a alegria que é estar junto no
cotidiano, e inventamos festas, e comemoramos o sentimento do mundo, e
acompanhamos as mobilizações sociais.
Muito me orgulha hoje concluir esta caminhada, e futuramente retornar
a esta casa tendo a tudo isto contemplado e, com o mesmo sentimento, a
ela jurar a fiel amizade. A casa de Mauro Koury, a casa de Amador e a casa de
Nívia Cristiane Pereira da Silva. Mas a minha casa, a casa dos meus amigos.
Nada do que se passou em seus muros nos foi alheio ou desinteressante,
tudo o que se moveu, nela se retratou na memória, tudo o que nesta Casa
brilha, brilha porque brilharam os humanos seres. É uma comunidade, um
congraçamento, uma empatia, e uma filiação inscrita na alma de seus alu-
nos. Esta mesma comunidade que media, conhece, orienta o imaginário, e
os serviços humanos.
Nesta Casa nos sentimos em casa, a nós se ofereceram o elogio da juven-
tude, as rimas poéticas da literatura, a graça do romance, as culturas teóri-
cas, a acolhida da alma em toda a sua plenitude. Os sentimentos que eram
Capa incontornáveis assim permaneceram, esperando que a letra e que a contra-
Sumário dição elaborasse a estória. E a vida se encheu de pessoas como os mares que
contemplam esta cidade estão cheios de águas. Sentimos não apenas ser a
eLivre nossa existência singular, mas a existência se tornou, ao redor destes muros,
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Sociologia do direito

e além deles, supremamente interessante. A dor, o sofrimento, a dificulda-


de, o obstáculo, encheram de graça o encontro. Este encontro que é com o
semelhante, e com os outros, as gerações, e os antepassados significativos,
aqueles que um dia nos convidaram a entrar na vida. É o encontro com o Eu,
aquele augusto que marca de sentido e cumplicidade a memória da gente,
aquele augusto que nos singulariza como cidadãos.
Quando pensávamos, pela velocidade dos meios, um lugar diferente do
habitual, a presença da comunidade nos fixava o cotidiano, e chamava para
a responsabilidade e profissionalismo junto à sociedade paraibana. Com
professores, poetas e contistas desta casa tivemos a graça de compartilhar
o sentimento, o simples olhar, a quantos deles teremos que responder com
a nossa formação ética e a nossa especialidade? Quantos de nós, cientistas
sociais, teóricos da pesquisa, e herdeiros da tradição científica, reconhece-
mos nesta convivência a prática do outro curso – a prática da justiça pelo
serviço social, aprendemos a tecer a constituição da política e do trabalho
ao escutar a humilde prece daqueles que são os silenciosos habitantes de
nossa cidade.
Capa E nós, os cientistas sociais, que pretensamente conhecemos a totalidade
Sumário da cultura – as músicas, as danças, e o costume alimentar do povo? Desco-
brimos que o tecido e a trama das relações sociais são delicados, e nossa
eLivre tarefa não se intimida em nenhum momento ao lhe defender - o dom e as
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Sociologia do direito

motivações da existência - diante dos problemas e desafios que lhes foram


opostos pelo desengano e pela a exploração do gênio individualista. Se a
ciência por um lado é cálculo duro e experimento na lógica matemática, por
outro lado, a ciência humana é intuitiva, artística e emocional. Mas qual é
a pergunta, qual é o logos? No abandono dos saberes não metódicos, dos
saberes doces, e dos saberes tradicionais, diante do ceticismo sobre a vida,
entre o acolhimento e a rejeição, o medo e a admiração, a ansiedade de ser,
a angústia patológica, a constatação problemática, a religião, a terapia, a
gratidão, a confiança, a farmacologia e a medicina, como pensar as motiva-
ções iniciais? O que controla e limita o pensamento? Como os paradigmas
e as possibilidades se fecham? O diálogo quer dizer atravessar a tudo isto e
partilhar o dia, a complexidade, e com o outro pensarmos a realidade que
nos envolve.
Entendemos que o tempo é relativo, uma medição arbitrária, que a nova
verdade é a impermanência. As anomalias, a busca das soluções, contornar
o incontornável. O que é o mais básico - a vida, o corpo, a existência iludem
o funcionamento da agenda. Todas as pessoas que aqui se fazem presentes
Capa nesta noite são pessoas ricas, responsáveis, éticas, críticas, a fim de não per-
mitirem que na sociedade paraibana finquem raízes a ilusão e a imperma-
Sumário
nência. Este é o desafio dos que estão reunidos aqui, a defesa da sociedade
eLivre paraibana, a compreensão de suas raízes, dos seus dilemas, e da cultura, o

25
Sociologia do direito

compromisso com o espírito humano através da leitura, da escrita, e da cria-


tividade, a decisão partilhada de seus caminhos.
Estamos certos que temos colaboradores que pensam os nossos dile-
mas, e que são pensados por nós – nossos costumes, hábitos, organização,
e conflitos, que não são uma mera aparência, mas um acúmulo de fatos e de
acontecimentos que compartilhamos e que são mais ou menos previsíveis
pelo conhecimento. O conhecimento que é a causa e o meio com que dialo-
gamos. Assim, praticamos a dialética desde Sócrates, do diálogo em rodas,
círculos, e jardins, onde o saber é posto em suspeição na relação de alteri-
dade – o meu saber, o saber do outro, e o saber sobre as coisas. O conhe-
cimento imaginado não é igual, como os corações não são iguais. Cada so-
ciedade reflete uma memória, cada sociedade não pode ser concebida sem
os cidadãos personalíssimos - homens e mulheres têm nome e sobrenome,
uma consciência que é centenária. Pois que venham as próximas gerações,
pois se já estávamos inscritos na história desta Casa, agora é que assinamos
este compromisso.
As ciências humanas, com que nos damos às mãos, em suas modalidades
Capa e profissões, é uma resposta positiva a condição do ser humano. As ciências
Sumário humanas trazem ao seu tempo o conforto de uma justa explicação e com-
preensão, esta mesma exposição que nos assegura a perpetuação da casa,
eLivre da família, da associação, da infância, da meninice, e o mundo do trabalho.
26
Sociologia do direito

A vida que conduzimos com tanto zelo e afeição é gestada no ventre de to-
dos, compartilhada cotidianamente, uma experiência gerativa do aluno, do
professor e da instituição – quatro, cinco, e demais anos que se fazem neces-
sários para ensejar esta cerimônia. Consideramos completa a nossa tarefa e
a tarefa desta Universidade. Na Paraíba, somos apenas uma nau no triângulo
das humanidades. Um triângulo infinito, cujos vértices estamos empenhados
e firmes por conhecer. Justo agora, saímos desta casa para o encontro com
o augusto, certos da fluência e fluidez das águas. Temos a certeza de que
apenas conjuntamente seremos eloquentes na tarefa de elaborar o territó-
rio da sociedade, a Casa das Palavras, a língua materna, e as práticas sociais
que nela se ambienta. Levamos esta condição gerativa como os princípios
da vida ética, fraterna, livre, gentil, e calorosa. No momento mesmo em que
somos chamados a condução da própria vida, no exato instante em que a
vivemos personalissimamente.

Manuela Fialho Galvão, Oração Geral

Capa
Sumário
eLivre

27
Sociologia do direito

INTRODUÇÃO:
SOCIOLOGIA, DIREITO E EDUCAÇÃO

Estes escritos reunidos marcam a trajetória das ciências sociais, espe-


cialmente a contribuição da sociologia clássica, não apenas para o proces-
so social considerado em si mesmo enquanto reflexividade inclusiva para
a configuração do direito contemporâneo. Sobretudo é a relação entre a
sociologia clássica e o processo educacional que está contemplada nestes
escritos. Como a leitura dos clássicos responde os problemas contemporâ-
neos da educação brasileira? Como as noções críticas, consciência coletiva,
alienação, anomia, classe social, status, e solidariedade configuraram com o
passar do tempo a microssociologia?
O contexto de surgimento da sociologia é importante desde logo desta-
car. A sociologia é de origem recente, o termo foi batizado apenas em 1830
Capa por Comte; como sabemos data do século XIX o processo que a fundamen-
tou. São processos revolucionários que retiraram a sociedade do medievo
Sumário e a conduziram paradigmaticamente à chamada sociedade moderna. São
eLivre notórias as explicações causais dos processos sociais; e a religião como gér-

28
Sociologia do direito

men da sociedade é uma das explicações preferidas dos sociólogos como


Durkheim e Weber, provenientes ainda do medievo. Uma explicação que é
totalmente recusada por Karl Marx, que entendia existir assuntos humanos
bem diversos da matriz religiosa.
Mas na modernidade a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, assim
como a Revolução Científica normatizaram a sociedade e formularam para ela
um novo direito. Mas esta história não é tão linear quanto parece. A Revolu-
ção Industrial é um processo alarmante, como a película de Chaplin, Tempos
Modernos, nos deixa entrever: um sujeito consumido e arrastado pelas má-
quinas... uma revolução acelerada que retirava do sujeito moderno a eman-
cipação, uma vez que o capital se desligava do tempo de maturação social,
alienando o operariado fabril com relação a própria constituição humanitária.
Muitos problemas urbanos apareceram. Este sujeito era marcado pela aliena-
ção e, com relação a dinâmica do self, pela anomia. Muitas normatividades não
se sustentavam com eficácia e validade, assim como não dialogavam entre si.
Isto porque o direito produzido confluía com o capital explorando a força de
trabalho, e buscando converte-lo em mais valia e lucro.
Capa A Revolução Francesa veio restabelecer os princípios normativos: o prin-
Sumário cípio da igualdade, da liberdade e da fraternidade, andando pari passu com a
sociedade e o direito que deve correspondê-la como a união do casamento.
eLivre Estes princípios devem ser a priori confrontados com as instituições da so-
29
Sociologia do direito

ciedade, não podendo esta se abster de observá-lo desde que foram inscri-
tos nas constituições modernas. Mas esta Revolução entrevia algo inédito: a
mudança da sociedade e do Estado com a mudança do modo de produção;
a mudança do capitalismo para o socialismo. Assim como o papel nascente
do proletariado na solução dos problemas urbanos.
Finalmente foi a Revolução Científica que ensejou o nascimento da so-
ciologia como a conhecemos hoje. Platão, Aristóteles, Descartes, Pascal,
Kant, Hegel, Feuerbach e a filosofia constituem a herança científica e o re-
pertório crítico da sociologia. Apenas com base na filosofia helênica é que
reconhecemos as formulações sociológicas e metodológicas como o fato
social por Durkheim. A ciência não é inteiramente nova, e Durkheim não é
apenas um autor ingênuo e positivista; nos dias atuais, ele mesmo em suas
afirmações hipotéticas - indiscutivelmente científicas - configura a sociolo-
gia da cultura.
O trabalho da sociologia e das ciências sociais, como a ciência política e
a antropologia, são dotados de três estágios: “regarder, écouter, lire”, ao qual
acrescentaria “écrire”. Deve-se observar a constituição da casa, do meio, as
Capa pessoas, a sociedade e o parentesco; deve-se ouvir os cantos, os ritos, as
Sumário crenças; deve-se ler os idiomas, e os encontros etnográficos; e escrever es-
tando aqui e estando lá (Oliveira, 2006). Este é, com efeito, o trabalho do
eLivre cientista social do qual Durkheim era exímio articulador. Não apenas obser-
30
Sociologia do direito

vou processos microssociólogicos como integrou estes processos ao rela-


cioná-los sistematicamente.
Assim, Durkheim foi o único dos sociólogos fundadores que ministrou
um curso sobre Educação. Neste curso enfatizou a educação enquanto uma
instituição integradora, articulando sobre esta, debates sobre igualdade, jus-
tiça e liberdade, o que o retiram de um viés conservador. Vislumbra-se uma
política educacional, com o objetivo de remediar os males urbanos, como
marginalidade e prostituição, assim como aqueles apontados no estudo so-
ciológico do suicídio. Durkheim estava marcado pelo pragmatismo norte-
-americano e existia para ele a ideia de que uma situação problema deveria
ser conciliada. Apenas por meio da educação se chegaria a uma consciência
coletiva e ao ser social em sua plenitude reflexiva.
O caminho traçado por Marx é bem diferente do sociólogo francês, mas
não é inteiramente: nas três fontes do marxismo estão a metodologia ale-
mã, a economia política inglesa e a revolução francesa. Marx a sua época leu
um importante filósofo - Hegel sobre o Estado de direito, especialmente a
filosofia do direito, de onde entendeu ser o Estado uma entidade artificial
Capa e desmaterializada, mais do que isto, como aparelho de classe o Estado era
Sumário alienante para as massas. A primeira fonte do marxismo, Marx estabeleceu
uma dialética fenomenológica, onde a alienação se sucedia o estranhamen-
eLivre to; e um senso de percepção sobre valoração e humanização da economia.
31
Sociologia do direito

Para Marx deveria valer a relação de capital e trabalho, e deveria ser confi-
gurado o trabalho de valor social. Neste sentido, relata que à época deveria
existir a educação da classe trabalhadora, ainda que esta sofra com a aliena-
ção, deveria ser esclarecida ou educada para a emancipação e a produção
da vida material.
Por sua vez o terceiro dos sociólogos fundadores, Max Weber, onde este
refletiu processos educativos o fez de forma a criticar a reprodução social.
Para o sociólogo alemão a educação esteve voltada para processos técnicos
e de especialização característicos do Estado e sua dominação burocrática. A
ética docente neste sentido deveria estar refletindo a neutralidade sobre os
juízos de valor, no sentido de estabelecer análises ponderadas, o que equi-
valeria ao máximo de observações que seria possível estabelecer na prática
docente. É importante destacar como contribuição do sociólogo a sacralida-
de que reveste a noção de pessoa no ocidente, isto é, para ele deveria haver
uma consideração sobre o público, e esta consideração equivale a conceder
os mesmos lugares de fala, e de respeito a esta fala do público, o que confi-
guraria uma esfera pública como a conhecemos nos dias de hoje, sobretudo
Capa nas formulações contemporâneas de Habermas e Richard Sennet.
Sumário Finalmente, para concluir este aparte discursivo sobre a educação e uma
sociologia da educação como área comum a uma sociologia do direito, gos-
eLivre taríamos de referenciar um importante sociólogo que nos chama a atenção
32
Sociologia do direito

para o fato de que a sociologia clássica nos oferece o repertório crítico para
compreender os processos educacionais contemporâneos, e este autor se
chama Bernard Lahire. A perspectiva clássica que é adotada pelo autor é a
mesma que Pierre Bourdieu sendo este antecessor de Lahire na crítica da
educação como reprodução social. Eles envolvem as formulações não ape-
nas de classe em Marx, mas de status ou de habitus; em Weber e Bourdieu,
assim como as noções de parentesco que são proposições do conhecimento
da sociologia francesa.Propõe assim Lahire a determinação não apenas de
classe no investimento escolar mais ou menos duradouro, mas a influência
da origem e da família dos sujeitos da educação. As tecnologias e as redes
de pertencimento neste sentido são capazes de determinar as disposições
no processo educacional.

Referências

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Capa 2004.
Sumário ______. O Suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
eLivre FREDERICO, Celso. A Sociologia da Cultura. São Paulo: Cortez, 2006.

33
Sociologia do direito

______. O Jovem Marx 1843-1844: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Ex-
pressão Popular, 2009.
KAUTSKY, Karl. As três fontes do marxismo. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2002.
NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins. A abordagem de Bernard Lahire e suas con-
tribuições para a sociologia da educação.36ª Reunião Nacional da ANPEd – 29 de
setembro a 02 de outubro de 2013, Goiânia-GO2
LAKATOS, E.M. & MARCONI, M.A. Sociologia Geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
LOPES, Paula Cristina Lopes.Educação, Sociologia da Educação e Teorias Sociológicas
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bocc.ubi.pt>
MARTINS, C. B. O que é sociologia. Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2004
MARX, Karl. Manuscritos: economia e filosofia. Madrid: Altaya, S.A, 1993.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo”. 3. Ed. Brasília: Paralelo 15,
São Paulo: Editora Unesp, 2006.
WEBER, Max. Avaliações Práticas no Ensino Acadêmico. In Metodologia das Ciências So-
ciais. Parte 2. São Paulo: Cortez, Campinas: Ed.Unicamp, 2001.
Capa
Sumário
eLivre

34
Sociologia do direito

PARTE I:
ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E IGUALDADE JURÍDICA

Capa
Sumário
eLivre

35
Sociologia do direito

I
DAS DESIGUALDADES SOCIAIS NO ESTUDO
DE ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL

Teorias Sociais Clássicas em torno do Trabalho

Das contribuições de Durkheim, o primeiro sistematizador das ciências so-


ciais, as diferenciações estruturais da sociedade são resultados da divisão do
trabalho - característica fundamental para a compreensão da sociedade mo-
derna. Com o desenvolvimento da especialização da produção, os indivíduos
ou grupos se tornam interdependentes em relações sistemáticas de troca uns
com os outros. Em outras palavras, cada vez mais as pessoas se especializam
conforme suas aptidões e capacidades e, agindo solidariamente, a partir da
partilha de crenças e valores, conseguem manter uma coesão social. Nas pa-
Capa lavras de Giddens (1981:17) “a solidariedade orgânica não pressupõe a simila-
ridade dos indivíduos, mas o crescimento das diferenças entre eles”.
Sumário
O raciocínio acima se refere às sociedades complexas, de solidariedade
eLivre orgânica. Estas possuem o que Durkheim chamou de “desigualdades inter-
36
Sociologia do direito

nas” aos indivíduos, ou seja, aquelas que os diferenciam através da capaci-


dade e talento de cada um. Essa idéia é feita em contraposição às de “desi-
gualdades externas” aos indivíduos, próprias das sociedades primitivas, de
solidariedade mecânica, onde a distribuição de recompensas material e in-
dividual deriva de circunstâncias sociais do nascimento do indivíduo.
Para o professor francês, o desajuste entre a lei e o comportamento mo-
ral (anomia) são circunstâncias de transição, que reorganiza o sistema legal,
ajustando-se com as formas morais recém-desenvolvidas. A moral durkhe-
miana vai se tornando mais densa e dinâmica à medida que se intensificam
as diferenciações sociais, necessitando ser efetivada no sistema legal que
garante às partes uma confiabilidade mútua. Essas diferenciações sociais ou
especializações profissionais funcionam como as partes de um sistema bio-
lógico dentro da unidade do corpo orgânico-social.
A partir do exposto, uma discussão em Durkheim sobre igualdade pare-
ceria estar resolvida, uma vez que garantida pelas implicações que a transi-
ção necessária de uma solidariedade mecânica (das sociedades primitivas)
para uma solidariedade orgânica (das sociedades complexas) traria. Isto é,
Capa a constituição de uma moral ou sistema legal, que se refere igualmente a
Sumário todos, ainda que diferenciados, por si só garantiria o acesso igual de opor-
tunidades numa sociedade cada vez mais madura e justa (perfeita).
eLivre

37
Sociologia do direito

Trazendo um diagnóstico acurado das condições históricas em que se pro-


duzem as desigualdades, foram os estudos de Marx sobre o modo de produ-
ção capitalista na sociedade moderna, que marcaram o início e desenvolvi-
mento das teorias de estratificação social. Para Marx é o trabalho, entendido
estritamente como a relação do homem com a natureza e com os outros ho-
mens, que funda a sociedade. Através dessa fundamentação antropológica,
este autor criou um modelo de transformação social onde as sociedades se
desenvolveriam através de duas classes essenciais, a dos proprietários e não
proprietários da terra, no feudalismo, e posteriormente no capitalismo dos
proprietários (burguesia) e não-proprietários (proletariado) do capital.
Entretanto, o materialismo-dialético presente na teoria do autor alemão
permitiu-lhe perceber a existência de “classes de transição” nos processos
de transformação histórica, ou seja, aquelas classes que ainda não comple-
taram as mudanças que o modelo capitalista engendrou ou ainda não de-
sapareceram completamente. Para Marx o domínio dos meios de produção
pela burguesia implicaria também no seu domínio ideológico sobre o prole-
tariado, veículo que permitiria àquela manter as diferenças estruturais entre
Capa ambas. Mas o antagonismo inerente a esta relação estrutural terminaria por
fazer com que o capitalismo, como todas as demais formas de produção, se
Sumário
extinguisse, dando lugar a uma sociedade que aboliria a dominação de uns
eLivre pelos outros, ou seja, aboliria a própria estrutura de classes.

38
Sociologia do direito

Não obstante a não concretização do seu modelo de transformação do


capitalismo para o socialismo-comunismo, em Marx a visão de que as de-
sigualdades e os conflitos suscitados pelo capitalismo são estruturais, pró-
prios ou inerentes a ele, assim como a criação do conceito de classes sociais
(depois ampliadas por marxistas e weberianos), representaram a alavanca
para a teoria da estratificação social. Convém assinalar que esta concepção
é diversa da durkhemiana, onde essas desigualdades constituem uma pato-
logia social a ser curada, portanto transitórias.
Apesar do método marxiano apontar a necessidade de situar historica-
mente todas as transformações estudadas numa sociedade, o marxismo en-
quanto escola cuidou de substancializar os conceitos do seu modelo original
que, por sua vez, terminaram por tornar suas análises estanques. Corrobo-
rou também para a crítica crescente que se fez a essa teoria o determinismo
econômico que apresentava limitação sentida principalmente à medida que
a sociedade moderna capitalista vai se complexificando e se diferenciando.
Neste ponto se apresentam relevantes as contribuições de Max Weber
para os estudos de estratificação social. Ao fazer sua crítica ao determinismo
Capa econômico, Weber ultrapassou a compreensão da instância de classes econô-
Sumário micas como diferenciador fundamental e exclusivo na sociedade capitalista.
Para Weber existem várias formas possíveis e concorrentes de estratifi-
eLivre
cação ou distribuição de poder dentro da sociedade, não necessariamente
39
Sociologia do direito

atrelados à dominação econômica – as classes e o status. “As classes sociais,


no sentido de Weber, é formada por um aglomerado de situações de clas-
se ligadas pelo fato de que envolvem chances comuns de mobilidade tanto
dentro da carreira dos indivíduos quanto através das gerações” (GIDDENS,
1981:53-4). A identificação de “uma situação de classe” com “posição no
mercado” torna possível distinguir uma multiplicidade ou pluralidade daque-
la, já que existem inúmeros interesses de mercado tanto dentro das “classes
proprietárias”, quanto nas “classes de aquisição”. Dessa forma, o sistema de
classes e de status constituem formas potencialmente independentes de es-
tratificação. Segundo Giddens (1981), enquanto as classes se expressariam
nas relações de produção, os grupos de status se expressariam por relações
de consumo, determinantes dos estilos de vida, que faz com que os indi-
víduos interajam como iguais em termos de status. Portanto, na estrutura
social daquelas sociedades onde o comércio e a manufatura estão bem de-
senvolvidos serão mais relevantes os grupos de status que as classes.

Eram as ´situações de mercado´ e as ´oportunidades de vida´ as responsá-


Capa veis pela estratificação social, que com isso se tornava plural: dependendo
do produto que o indivíduo pudesse levar ao mercado – produtos para con-
Sumário sumo, terra, força de trabalho, habilidades profissionais específicas -, sua si-
tuação no desenho da estratificação se alterava. Além disso, outras formas
eLivre de estratificação social devem ser contempladas, em particular aquelas ca-

40
Sociologia do direito

racterizadas pelos estamentos, cujo principal elemento definidor são os di-


ferentes ´estilos de vida´e a ´honra´devida aos ocupantes de determinadas
posições. (DOMINGUES, 1999, p. 53)

Principalmente a partir do pós-guerra, a teoria social sofreu transforma-


ções que implicaram numa visão do social, não mais substancial ou ontológica,
mas fundada na linguagem e, portanto, relacional. Nesta perspectiva, as idéias
de Bourdieu (1997) possuem uma contribuição significativa para os estudos
de Estratificação Social. A partir da síntese entre Marx e Weber, Bourdieu criou
novas categorias que ampliaram a compreensão acerca das desigualdades so-
ciais. Segundo ele, a construção da individualidade moderna se realiza a partir
de processos de distinção que leva em conta os diversos recursos – o “capital”
cultural, econômico e social. Estes recursos irão dizer que relações dispõem
os sujeitos, ou a que grupo pertencem, ou seja, como se inserem no espaço
social ou nos diversos tipos de estratificação conhecidos.
O espaço social é então o espaço “objetivo” dos grupos, que somente se
distinguem através de um espaço simbólico. Esse espaço simbólico se cons-
Capa trói sobre disposições dos indivíduos ou grupos, suas práticas e bens que
possuem, os produtos culturais/econômicos com que convivem. Assim, o
Sumário tipo de música (mais ou menos sofisticada) que se ouve, sua postura corpo-
eLivre ral, regime alimentar, além da educação formal e o aprendizado de padrões

41
Sociologia do direito

culturais contam muito para a diferenciação das pessoas e sua classificação


em grupos.
As teias simbólicas (culturais) que estruturam a vida social foram articu-
ladas numa ampla concepção de classes sociais. Em outras palavras, é a dis-
tinção cultural entre as classes sociais que desempenha papel fundamental
em sua análise.
Assim como as críticas weberianas e neoweberianas, também o próprio
marxismo, às voltas com as crescentes transformações do capitalismo, pas-
sou a reformular suas concepções tradicionais, principalmente aquelas que
afirmavam a centralidade da categoria trabalho para a compreensão das
sociedades. Este descentramento, que a seguir apontaremos, foi decisivo,
como um divisor de águas, para a teoria social contemporânea.

Mudanças na Esfera do Trabalho e o Declínio da sua Centralidade

Nas tradições clássicas acima expostas o trabalho constituiu o fato social


Capa principal, ora dotado de um status ético (Weber), ora de um status auto-
ritário (Marx), ou ainda responsável pela solidariedade e integração social
Sumário (Durkheim) na dinâmica das estruturas da sociedade industrial.
eLivre

42
Sociologia do direito

O modelo de sociedade burguesa consumista preocupada com o trabalho,


movida por sua racionalidade e abalada pelos conflitos trabalhistas, apesar
de suas abordagens metodológicas e construções teóricas diferentes, é o
foco da produção teórica de Marx, Weber e Durkheim. (OFFE, 1995:168).

Não obstante o trabalho tenha sido categoria central nestes estudos,


Claus Offe aponta para diferenciações dentro do seu conceito, que modifi-
cam o tipo de racionalidade que o organizava. Por exemplo, o trabalho de
serviços. Para o autor, este tipo de trabalho criou uma “nova classe” de pes-
soas com capacidade de interação, consciência da responsabilidade, empa-
tia e experiência prática adquirida, que processam e mantém o próprio tra-
balho, desafiando e questionando a sociedade do trabalho e seus critérios
de racionalidade (realização, produtividade, crescimento) em nome dos cri-
térios de valor substantivos, qualitativos e mais humanos. Ou seja, em lugar
dos critérios de racionalidade estratégico-econômicos incertos, encontra-se
estimativas baseadas no costume, no discernimento político ou no consenso
profissional.
Contemporaneamente também se observa um declínio na ética do traba-
Capa
lho. Os estudos que constatam mudanças na estrutura do tempo e da renda
Sumário (para menos) no trabalho mostram, em contrapartida, que aumentaram os
eLivre espaços para experiências paralelas, orientações e outras necessidades que

43
Sociologia do direito

sirvam à interpretação do contexto da vida. “A descontinuidade na biogra-


fia do trabalho e o declínio da parte do tempo de trabalho na vida de uma
pessoa podem reforçar a concepção do trabalho como um interesse “entre
outros” e relativizar sua função como pedra de toque da identidade pes-
soal e social.” (OFFE, 1995, p. 186). Outro grande desestruturador, segundo
Offe, da importância do trabalho foi a segurança promovida pela política de
bem estar social. Uma vez que o Estado garantia a sobrevivência, ainda que
temporária, de um trabalhador recém-desempregado, as motivações que o
levariam a reivindicar sua reinserção coletivamente se tornam cada vez me-
nos determinantes. Além disso, nos lugares onde o desemprego estrutural é
concentrado, desenvolve-se uma “economia informal” ou “economia parale-
la”, que tornam seus membros pelo menos hostis aos valores e regras legais
da “sociedade do trabalho”.
Estes indícios que o autor resumidamente expõe, passando pelas des-
cobertas e reflexões científico-sociais, mostram que o trabalho perdeu sua
condição de posição chave para a teorização sociológica contemporânea.
Resta então perguntar como Offe (1995, p. 194): “quais os conceitos so-
Capa ciológicos de estrutura e de conflito apropriados para descrever uma so-
ciedade que, no sentido aqui abordado, deixou de ser uma ‘sociedade do
Sumário
trabalho’?”
eLivre

44
Sociologia do direito

Novas Dimensões Diferenciadoras e a Teoria Social Contemporânea

Com Durkheim, vimos que a solidariedade é a característica que permite


a existência da Modernidade, uma vez que nela a coesão social só se tornou
possível através da cooperação de diversos planos individuais de ação que a
divisão do trabalho engendra. A partir das contribuições de Marx, Weber e
mais contemporaneamente com Bourdieu, apontou-se para um quadro ge-
ral da estratificação social um “modelo pluralista”, onde o sistema de classes
vem se representando de maneira multidimensional para dar conta de uma
sociedade que se complexifica.
Não obstante, constatamos na argumentação de Offe, o esgotamento
da instância de classes como diferenciador fundamental, já que a categoria
trabalho que a fundamenta perdeu sua centralidade, como demonstra inclu-
sive a produção sociológica contemporânea. Para Habermas, isso acontece
porque o trabalho se pautou neste período histórico em um agir estratégico
de razão instrumental, que necessariamente se constitui em uma distorção
transitória do agir comunicativo. O agir estratégico funcionaria, segundo ele,
Capa por intermédio de um engodo discursivamente sustentado por um agente,
Sumário que indica ilusoriamente um fim como objetivo de sua ação, mas desejando
subjetivamente um fim diverso. Aqui a interação social se produz com a in-
eLivre fluência que um sujeito exerce sobre o outro. No entanto, uma vez desven-
45
Sociologia do direito

dado o engodo ou as razões veladas no discurso do agente por um terceiro,


esse agir estratégico e instrumental fracassaria.
Estas questões nortearam o pensamento marxista, e ficou demonstra-
do que as construções utópicas em torno do trabalho no capitalismo mo-
derno não são mais satisfatórias no sentido de produzir uma integração.
A integração que se pretende agora deverá pressupor novos mecanismos
de diferenciação e conflito na sociedade contemporânea. Neste sentido, as
contribuições de Habermas são, pois, significativas, ao estudar o mundo da
vida, e seus mecanismos de agir comunicativo, que pautarão a solidariedade
contemporânea.

“uma proposta teórica elaborada, fundamentada na história da teoria socio-


lógica, caracterizado pelo abandono os paradigmas teóricos clássicos, Ha-
bermas retrata a estrutura e dinâmica das sociedades modernas não como
um antagonismo enraizado na esfera da produção, mas como um choque
entre os ´subsistemas de ação racional intencional´, mediado, de um lado,
pelo dinheiro e pelo poder e, por outro, por um ´mundo vivido´, que ´obs-
tinadamente´ resiste a estes sistemas”. (OFFE, 1995, p. 195)
Capa
Sumário Em contrapartida do “modo de produção”, no “modo de vida” se de-
senrolam diferenciações em torno de questões identitárias, que engendra-
eLivre
ram as desigualdades sociais. Estas questões vêm mobilizando indivíduos
46
Sociologia do direito

através de objetivos coletivos, pautados sobre uma razão e agir comuni-


cativos. O agir comunicativo, por sua vez, não deverá buscar influenciar o
outro, mas a um entendimento ou consenso, alcançado através do discur-
so. Nesta linha de raciocínio, pode-se inferir que as forças diferenciadoras
de sexo e de raça , constitutivas de dimensões identitárias, provenientes
1

das diferenciações de origem étnica ou nacionalidade, uma vez articulada,


constroem seus argumentos e reivindicações, com pretensões de validade,
para o intercâmbio público. Tal situação pressupõe duas características do
agir comunicativo:

a) os atores participantes comportam-se cooperativamente e tentam co-


locar seus planos (no horizonte de um mundo da vida compartilhado) em
sintonia uns com os outros na base de interpretações comuns de situação;

1 Tornou-se consenso na sociologia que a idéia raça é, sobretudo uma construção social, situada no plano da cultura
e do imaginário, uma vez que seus fundamentos biológicos não tiveram comprovação científica a partir dos estudos
de genética. Sobre a questão de gênero: “Em todas as sociedades humanas, homens e mulheres têm sido tratados
de forma diferente (em geral sem equidade), e muitos cientistas sociais do século XIX apontaram que a divisão eco-
nômica do trabalho começou com a divisão de tarefas entre os sexos, fontes de muitas diferenças sociais e culturais
posteriores, incluindo o domínio masculino na vida política. Nas novas sociedades industriais do século XIX, ainda
eram negados às mulheres muitos direitos políticos básicos; embora estes direitos fossem sendo lentamente adquiri-
Capa dos em sociedades mais modernas, persistem formas variadas de dominação injusta”. (BOTTOMORE & OUTHWAITE,
1996, p. 208). Sobre a questão de raça: “A diferenciação por raça ou origem étnica é também uma característica im-
Sumário portante nas sociedades modernas, e distinções semelhantes ocorrem em muitas sociedades pós-coloniais e multitri-
bais do Terceiro Mundo. Nos países industriais, porém, em parte como legado do colonialismo, mais particularmente
no período do pós guerra, como conseqüência da imigração em grande escala, essa diferenciação está freqüente-
eLivre mente associada a uma substancial desigualdade econômica e social e a manifestações de RACISMO”. (BOTTOMORE
& OUTHWAIT, 1996, p. 208).

47
Sociologia do direito

b) os atores envolvidos estão dispostos a atingir os objetivos mediatos da


definição comum da situação e da coordenação da ação assumindo os pa-
péis de falantes e ouvintes em processos de entendimento, portanto, pelo
caminho da busca sincera. (HABERMAS apud GALUPPO, 2002, p. 131).

Para Habermas, nesta estrutura social há uma nova solidariedade res-


ponsável pela sua coesão, alcançada através da linguagem que comunicam
nossas pretensões. Por sua vez, estas pretensões (de verdade, de veracidade,
de correção normativa) se ligam a respectivamente três mundos em que vi-
vemos contemporaneamente: mundo objetivo, dos seres naturais ou cien-
tífico; mundo intersubjetivo, dos seres racionais ou da moral e do direito, e
mundo subjetivo, individual ou da arte e expressão de sentimentos.
Assim, no “mundo vivido”, os indivíduos se articulam para a afirmação de
suas identidades coletivas. A mobilização desses grupos acontece no Estado
Democrático de Direito através de lutas por reconhecimento (HABERMAS,
1996). Dessa forma, as lutas por reconhecimento se dão através de fenôme-
nos aparentados entre si – feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a
luta contra a herança eurocêntrica do colonialismo.
Capa
Sumário Seu parentesco consiste em que as mulheres, as minorias étnicas e cultu-
eLivre rais, as nações e culturas, todas se defendem da opressão, marginalização
e desprezo, lutando assim pelo reconhecimento de identidades coletivas,
48
Sociologia do direito

seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade


dos povos. São todos eles movimentos de emancipação cujos objetivos
políticos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as depen-
dências políticas e desigualdades sociais e econômicas também estejam
sempre em jogo. (HABERMAS, 1996, p. 238)

Não obstante, estes fenômenos não devem ser confundidos, podendo


ser elucidados através de planos analíticos. As lutas políticas por reconheci-
mento travadas pelo feminismo (embora as mulheres não constituam uma
minoria em seu conjunto) se voltam contra uma cultura dominante que in-
terpreta a relação dos gêneros de uma maneira assimétrica e desfavorável à
igualdade de direitos.

A diferenciação de situações de vida e experiências peculiares ao gênero


não recebe consideração adequada, nem jurídica, nem informalmente; tan-
to a autocompreensão cultural das mulheres quanto a contribuição que eles
deram à cultura comum estão igualmente distantes de contar com o devido
reconhecimento e com as definições vigentes, as carências femininas mal
podem ser articuladas de forma satisfatória. (HABERMAS, 1996, p. 238)
Capa
Sumário Para Habermas, esta luta ainda não cessou, e à medida que logra êxito,
eLivre vai também modificando a identidade das mulheres, assim como na relação

49
Sociologia do direito

entre os gêneros e com os homens. Toda a escala de valores da sociedade


vai sendo problematizada, desde a esfera privada, até a pública, bem como
os limites entre ambas.
Outro fenômeno diverso são as lutas emancipatórias de minorias étni-
cas e culturais pelo reconhecimento de sua identidade coletiva em face de
uma cultura dominante. Esses movimentos podem ser provocados tanto por
minorias endógenas, quanto por aquelas surgidas a partir da imigração. O
plano de referências em que estes fenômenos podem ser vistos, segundo
Habermas, está embasado no direito e na política. O problema das lutas por
reconhecimento de grupos culturalmente definidos é também um problema
jurídico, uma vez que eles reivindicam a “igualdade jurídica” para a manu-
tenção e desenvolvimento de suas distintas identidades no Estado Demo-
crático de Direito.

Capa
Sumário
eLivre

50
Sociologia do direito

II
SOBRE A IGUALDADE:
O DISCURSO DOS MOÇOS DA FACULDADE DE DIREITO

Considerações Metodológicas

No tempo em que se amplia a democracia, e que a igualdade se faz


presente em tantos discursos reivindicatórios, faz-se no mínimo curioso
buscar perceber qual o discurso jurídico atual acerca da igualdade. Uma
vez que o legislador, atento às demandas sociais, já tenha encaminhado
medidas de discriminação positiva, são juristas que decidem acerca da sua
adequação ou constitucionalidade, bem como da interpretação que garan-
tirá ou não a sua eficácia restauradora. Neste sentido, quisemos consultar
os alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba, no
Capa intuito de perceber que noção da igualdade lhes foi transmitida através do
ensino do direito.
Sumário
A pesquisa de opinião foi realizada entre os estudantes da Faculdade
eLivre de Direito da Universidade Federal da Paraíba, que possui 15 turmas de 40
51
Sociologia do direito

alunos em sistema anual, totalizando um número de 600 alunos. Buscando


delimitar mais o universo desse estudo, foram consultados os alunos das
turmas do quinto ou último ano acerca da temática escolhida, o que equi-
valeria ao número de 120 alunos que hipoteticamente teriam sua forma-
ção jurídica mais completa dentro da faculdade. O espaço amostral ficou
definido então em 18 alunos, o que corresponde a 15% do total de alunos
do quinto ano.
Escolheu-se a entrevista para o levantamento dos dados, porque poderia
ser analisada tanto quantitativamente, com uma posterior tabulação; como
também qualitativamente, em atenção aos aspectos mais subjetivos das fa-
las dos entrevistados. Na elaboração do roteiro de entrevistas, prezou-se
pela simplicidade e praticidade de questões, e que estas girassem em tor-
no do valor igualdade, categoria central desse estudo. Assim, organizou-se
a entrevista em três partes. A primeira parte se destinou à identificação do
aluno dentro da faculdade (turno), seu sexo (masculino ou feminino) e con-
dição social (se proveniente do ensino médio público ou privado), e ainda
de como ele se percebia diante de um critério de cor (branco, preto, pardo,
Capa amarelo ou outros).
Sumário A segunda parte da entrevista se constitui de três perguntas abertas e se
destinou a perceber do estudante da faculdade, se a igualdade é valor fun-
eLivre damental dentro do Estado Democrático; se a igualdade foi tema ministrado
52
Sociologia do direito

nas disciplinas do curso, e ainda qual o conceito ou definição de igualdade


que ele daria.
A terceira parte foi elaborada no sentido de perceber a opinião e po-
sicionamento dos alunos diante de políticas de igualdade que buscassem
resolver ou compensar as diversas desigualdades – econômicas (assistên-
cia judiciária gratuita, distribuição gratuita de medicamentos, isenção de
imposto par baixa renda), sociais (reserva de vagas no estacionamento
para deficientes físicos, permanência nas escolas normais para portadores
de necessidades especiais, fila preferencial para idosos/gestantes/pessoas
com crianças, meia-entrada para estudantes em cinemas e espetáculos),
étnica (reservas de vagas na universidade para negros e índios) e de gêne-
ro (cotas de representação para mulheres em partidos políticos); guardan-
do, pois, a igualdade enquanto valor. Certamente que estas desigualdades
– econômica, étnica e de gênero - são também desigualdades sociais; no
entanto, para fins de organização do roteiro, elas ficaram caracterizadas
distintamente.
Ainda nesta última parte, as opiniões e posicionamentos dos estudantes
Capa em face dessas políticas de igualdade se pautaram segundo quatro graus
Sumário entre acordo/desacordo, criados e dispostos no roteiro. Desses, dois são de
acordo, pleno e com reservas, sendo os outros dois para desacordo, defi-
eLivre nitivo e com aceitação (ver roteiro de entrevista em anexo). Ao final, foram
53
Sociologia do direito

destinados espaços para observações e sugestões acerca das práticas cor-


riqueiras e políticas de igualdade, ampliando assim as discussões em torno
das mesmas.
Dando prosseguimento à pesquisa, foram feitas visitas à faculdade, situ-
ada no Centro da cidade, nos seus três turnos, no intuito de aplicar as entre-
vistas, sempre com o cuidado de explicar que se tratava de um trabalho de
conclusão de curso, orientado pelo professor Eduardo Rabenhorst, docente
da própria faculdade. Com esta explicação inicial, as entrevistas foram em
geral bem recebidas, não obstante a dificuldade de encontrar as turmas as-
sistindo aula na faculdade. Isso porque os alunos já se dispersavam, ao pas-
so que se aproximava do recesso escolar na segunda metade de outubro,
justamente o mês escolhido para o trabalho de campo. Esse imprevisto, to-
davia, não se constituiu em empecilho, antes em maior disponibilidade dos
alunos entrevistados.
A faculdade se encontrava ainda na primeira metade do ano letivo de
2003 (2003.1), porque aderiu, juntamente com o campus e demais universi-
dades federais, à greve contra a Reforma da Previdência protagonizada pelo
Capa governo Lula. Assim, a turma concluinte estava redefinindo seu calendário
Sumário de conclusão do curso de Direito.

eLivre

54
Sociologia do direito

Resultados

Tendo escolhido pessoas aleatoriamente, verificou-se entre os entrevis-


tados que 75% eram homens, sendo os outros 25% mulheres. Inferiu-se pois
que o universo dessa pesquisa é predominantemente masculino.
Buscando avaliar a condição social dos entrevistados, perguntou-se em
que tipo de escola fizeram ensino médio, se público ou privado. Nesse caso,
o resultado obtido foi que 87,5% dos estudantes são provenientes do ensino
médio privado, sendo o restante 12,5% proveniente do ensino médio pú-
blico. Entre os que marcaram ensino médio público, todos os alunos entre-
vistados discriminaram que fizeram curso técnico na Escola Técnica Federal
da Paraíba, não obstante isso não fosse pedido no roteiro. Desse resultado,
concluiu-se que a faculdade, cuja concorrência para ingresso de alunos é das
mais altas, comporta uma fatia específica de alunos que pagam/investem na
sua formação média. Se não pagam, ingressam na faculdade pelo fato de
terem estudado em escola pública de excelência, de acesso também restrito,
como fizeram questão de assinalar.
Capa Quando perguntados acerca da forma pela qual se percebiam diante
Sumário de um critério de cor, 50% se viram como pardos, 37,5% se consideravam
brancos, restando 6.25% que marcaram outros, e 6.25% que se abstiveram
eLivre
de responder. Entre os que ficaram em menor percentual, alguns demons-
55
Sociologia do direito

traram certa resistência diante da pergunta ou uma menor facilidade em


respondê-la se comparada às demais, tendo um deles ficado visivelmente
incomodado, outro tendo demonstrado indiferença, e outro que teve dúvida
e não marcou. Da amostra, ninguém se identificou como preto ou amarelo.
Quando perguntados se a igualdade constitui um valor fundamental para
o Estado Democrático, 100% dos entrevistados responderam que sim. Al-
guns ofereceram justificativas, embora não tivessem sido perguntados. As
justificativas se pautaram pela equivalência entre os conceitos de igualdade
e de democracia (“sem igualdade, não há democracia”). Outras constataram
a necessidade da igualdade como princípio já que socialmente não teríamos
igualdade plena, que “as desigualdades são responsáveis pelas mazelas so-
ciais”, “que o convívio em sociedade traz implícito o valor igualdade”. E ain-
da: “a igualdade é fundamental, desde que haja previsão e amparo legal”.
Se alguma disciplina enfatizou o tema da igualdade, 100% dos entrevis-
tados responderam que sim. A ampla maioria citou Direito Constitucional,
Direitos Humanos, Ciência Política, Introdução ao Direito e Direito do Consu-
midor. Houve ainda quem dissesse todos os ramos, vendo na própria criação
Capa de ramos do direito uma necessidade de estabelecer a igualdade – o direito
Sumário do trabalho, o direito civil, o direito processual. Um deles citou um módulo
da igualdade trabalhado em projeto de extensão. Tendo sido (projeto de ex-
eLivre tensão) a menos comum das respostas, perguntou-se ao entrevistado qual
56
Sociologia do direito

a contribuição dessa atividade para sua formação, tendo o mesmo dito ser
uma experiência culturalmente interessante, além do contato que estabele-
ceu com estudantes de outras áreas “mais politizados”, mas que não via uma
grande contribuição para o conhecimento jurídico, já que o trato (teórico)
com os temas se dava de maneira superficial.
Perguntados sobre uma definição da igualdade, 62% dos entrevistados
responderam a definição clássica, cuja autoria é, segundo eles, de Rui Barbo-
sa: “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na proporção
de suas desigualdades”. Outros 23% responderam variações desse conceito:
“tratar da mesma forma os que estão no mesmo patamar e procurar igualar
os que se encontram em disparidade”; 7.5% responderam citando o texto
constitucional: “é ser tratado igualmente, independente de cor, raça, credo,
religião”; 7.5% definiram “é o respeito pelas diferenças e oferecer condições
para o exercício da cidadania”. Foram recolhidas também definições pouco
precisas ou vagas, que não constam nos números acima: “a igualdade é for-
ma de buscar a justiça social”; “é formal e substancial”; “é isonomia relativa”.
Na terceira parte do roteiro de entrevistas, buscou-se organizar os resul-
Capa tados a partir da ideia de tendências – positiva ou de mais acordos, dividida
Sumário entre acordo e desacordo e negativa ou de maior desacordo. Sobre a opinião
ou posicionamento dos estudantes acerca daquelas políticas de igualdade,
eLivre na maioria dos itens dispostos no roteiro, registrou-se uma tendência posi-
57
Sociologia do direito

tiva. No entanto, registrou-se tendência dividida entre acordo/desacordo na


turma da manhã, e negativa ou de maior desacordo na turma da noite para
o item reserva de vagas na universidade para negros, índios e estudantes de
escola pública (ver anexo quadro 1).
Os entrevistados tiveram ainda tendência dividida no turno da noite para
o item cotas para mulheres em partidos políticos. Somente uma mulher foi
entrevistada, tendo manifestado seu desacordo; um homem que manifestou
desconhecimento acerca do item; outros acharam irrelevante a destinação
dessas cotas, uma vez que as mulheres já estão emancipadas, contado inclu-
sive com a segurança do texto constitucional, bem como amparo do Novo
Código Civil.
Como na maioria dos itens se obteve uma tendência predominantemente
positiva, fez-se novo recorte, onde foram eliminados os desacordos, ressaltan-
do os acordos pleno e com reservas (quadro 2). Neste novo quadro, foram en-
contrados três itens com tendências negativas ou de mais acordos com reser-
vas, que acordos plenos: reserva de vagas na universidade para negros, índios
e escola pública; escolas normais para portadores de necessidades especiais
Capa e cotas para mulheres em partidos políticos. Todos os outros mantiveram sua
Sumário tendência positiva. Daqui se pode inferir que o valor igualdade se justifica ou
se define pelo reconhecimento das desigualdades econômicas (justiça gra-
eLivre tuita, medicamentos gratuitos, isenção de impostos). Todavia, os estudantes
58
Sociologia do direito

da Faculdade de Direito resistem em estender esse conceito de igualdade, to-


mando por referência as desigualdades étnica (reserva de vagas para negros
e índios) e de gênero (cotas para mulheres em partidos políticos).
Quanto ao item vagas na universidade para negros, índios e escola pú-
blica nenhum acordo pleno foi anotado, contando 100% de acordos com
reserva. As discussões ou reservas aqui giram em torno do ensino público
e a necessidade de sua melhoria, onde todos competiriam com igualdade.
Assim, reservar vagas na universidade se constitui em “paliativo”, que “ni-
velaria por baixo”, já que o problema central seria melhorar o ensino públi-
co. Percebe-se aqui que as justificativas convergem para o reconhecimento
da má qualidade do ensino público, donde se infere que destinar vagas na
universidade para estes estudantes provenientes das escolas públicas seria
aceitável ou tolerado.
Não obstante, para esses alunos, como a lei (a Constituição Federal, que
define o crime de racismo como imprescritível e inafiançável) protege “até
severamente” os negros no Brasil, não há nada mais que os desiguale (como
havia no passado legislação discriminatória), além da capacidade individual
Capa de cada um em conquistar, através dos próprios esforços, sua vaga na uni-
Sumário versidade. A questão do índio aparece como verdadeiro enigma (quem são
e onde estão?), não havendo nenhuma discussão, mas silêncios, uma vez
eLivre que todos os pontos da entrevista eram abertos a considerações.
59
Sociologia do direito

Quanto às reservas acerca da permanência nas escolas “normais” de por-


tadores de necessidades especiais, 57% das respostas se uniformizaram em
recomendações temerosas, de uma gradação que vai da inserção com res-
salvas, até a necessidade de completa separação dos mesmos: “se a neces-
sidade especial for compatível (com a escola)”; “poderia complicar a pe-
dagogia”; “eles precisam de atenção especial, senão prejudicaria ambos”.
Aqui interessa comparar a tendência positiva (94% de acordos plenos) por
estrutura física pública urbana (vagas no estacionamento) que aceitem ou
comportem os deficientes físicos. Não obstante, verificou-se um tendência
negativa (57% de acordos com reservas) para que as escolas adequassem
sua estrutura material e pedagógica no sentido de receber portadores de
necessidades especiais.
Quanto às cotas para mulheres em partidos políticos, 64% dos entrevistados
se cercaram de reservas diante de tal prática. Alguns se justificaram dizendo da
política partidária “uma questão de vocação”, que a igualdade entre homens e
mulheres já estaria garantida constitucionalmente, e que a discriminação con-
tra a mulher “já está resolvida na minha cabeça”. No caso das mulheres, as-
Capa sim como no caso dos portadores de necessidades especiais, senão ignorância,
identificou-se uma ambiguidade no conceito legalista de igualdade oferecido
Sumário
pelos mesmos, já que se tratam de práticas amparadas e previstas por lei, não
eLivre obstante tenham obtido uma tendência negativa na opinião dos estudantes.

60
Sociologia do direito

No espaço destinado às sugestões de outras práticas já implementadas,


observou-se um grande número de abstenções e de pessoas satisfeitas com
aquelas já dispostas no roteiro, outras que acrescentaram: “a formação de
um novo paradigma cultural”, “reformas de base na economia e educação”,
“política específica de saúde para pessoas que precisam de transplante”,
“melhorar a estrutura e aumentar postos de trabalho para deficientes”, “não
autoritarismo no trato dos professores com os alunos”.

Discussão

A “Oração aos Moços” é um discurso de Rui Barbosa proferido em 1920


aos bacharelandos da Faculdade de Direito de São Paulo. Este discurso traz
entre outras recomendações aos jovens, a recomendação da igualdade:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos


desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da
igualdade. (...) Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igual-
Capa
dade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites huma-
Sumário nos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não
dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como
eLivre se todos se equivalessem. (...) Mas, se a sociedade não pode igualar os que

61
Sociologia do direito

a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode
reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseve-
rança. Tal a missão do trabalho. (RUI BARBOSA, 2003, p. 39)

Esta noção de igualdade em Rui Barbosa constata a existência das desi-


gualdades sociais e naturais, no entanto numa relação de equivalência. As
desigualdades sociais existem, porque naturalmente as pessoas são desi-
guais. Assim, esta situação somente poderá ser amenizada na ideia liberal,
através do esforço pessoal no estudo e no trabalho. Esta é também a noção
de igualdade predominante nas nossas entrevistas com os “moços” bacha-
relandos da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
A igualdade em Rui Barbosa citada pelos estudantes de direito nos repor-
tou ao conceito complexo que viemos tratando até aqui, de proporcionalida-
de aristotélica, ou da igualdade geométrica. Não obstante, queremos ressaltar
que este conceito se refere a um contexto histórico específico, e que chamado
contemporaneamente adquire nova conotação, que buscaremos significar.
Então, a pergunta que ainda fazemos é quem são iguais e quem são os
desiguais, em cada contexto específico? Poderíamos perguntar qual a re-
Capa
lação entre Atenas, na Grécia Antiga de que cuida Aristóteles, e João Pes-
Sumário soa, na Paraíba contemporânea dos jovens alunos? Certamente em termos
de organização social e jurídica são poucas, embora haja quem reúna mais
eLivre
semelhanças, e queira estudar o novo direito civil através dos institutos do
62
Sociologia do direito

direito romano. Nada contra esta fecunda e resistente atividade intelectual


ou didática de ensino difundida entre professores, se isto não importar em
desmerecer nos estudos jurídicos a compreensão acerca da dinâmica das
transformações sociais.
Queremos dizer que a noção de igualdade geométrica assume conteúdo
diferente contemporaneamente, uma vez que os desiguais são classicamen-
te os trabalhadores, ou os consumidores que recebem tratamento desigual;
mas também grupos de formas de vida culturais – os negros ou índios, e
descendentes. Não somente eles, no estado atual da democracia, outros
grupos identitários vêm travando lutas por reconhecimento e, entre os que
alcançaram maiores conquistas historicamente em termos de legislação são
as mulheres e homossexuais. Também os portadores de deficiência trazem
as suas demandas por participação e inclusão. Assim, a ideia de lei abstra-
ta e pessoal, que somente discrimina negativamente, está sendo revista ou
passando a discriminar positivamente, segundo critérios ou argumentos ra-
cionais que a sociedade organizada reclama.
Neste caso, se a Teoria do Direito não for capaz de compreender estas
Capa demandas coletivas, e conciliá-las com sua orientação tão individualista, de
Sumário que a pessoa portadora de direitos fundamentais é o indivíduo, colocará em
risco a concepção democrática do direito ou a ideia de Estado Democrático
eLivre de Direito (HABERMAS, 1996).
63
Sociologia do direito

Na “sociedade meritocrática” (SILVA JR, 2002), os bens são distribuídos


desigualmente aos desiguais, ou seja, a vaga na universidade pública para
um dos cursos mais concorridos está destinada a poucos selecionados pro-
venientes do ensino privado. A seleção ou vestibular pela qual os estudantes
se submeteram foi legítima, porque eles se mostraram capazes durante a
realização dos exames. De maneira que os estudantes de escola pública se
mostraram incapazes. Além de mais pobres, contam com um ensino de qua-
lidade ruim, que os desnivela na competição por uma vaga na universidade.
Eles são desiguais. A estes seria razoável destinar cotas, ou preferencialmen-
te deveria ser destinado investimento para a melhoria do ensino público. A
questão econômica é um critério aceitável para tratar desigualmente os de-
siguais – ricos e pobres. Assim, tivemos uma tendência positiva ou de maior
aceitação para a assistência judiciária gratuita, distribuição de medicamentos
gratuita e isenção de impostos para os pobres. Na literatura jurídica proces-
sual que consultamos, a desigualdade social é indiscutivelmente provenien-
te das desigualdades econômicas (PORTANOVA, 1999; CINTRA, GRINOVER,
DINAMARCO, 1998).
Capa O critério de gênero para um tratamento desigual, ou seja, tratar desi-
gualmente desiguais – homens e mulheres, recebeu uma tendência negativa
Sumário
ou de desacordo. Realmente como a lei as tratava diferenciadamente dos
eLivre homens, as lutas das mulheres (feministas) por emancipação perseguiram

64
Sociologia do direito

principalmente a equiparação no sentido de participação política e de espa-


ço no mercado de trabalho. Na Carta Constitucional de 1988, finalmente re-
ceberam igualação constitucional. No entanto, as lutas por reconhecimento
das mulheres ainda não conseguiram romper com uma cultura dominante
que ainda as exclui desses espaços. De onde situamos as medidas de discri-
minação positiva: a idade menor para aposentadoria, que reconhece a dupla
jornada de trabalho da mulher (SILVA, 2000), e a lei de cotas para partidos
políticos que, não obstante, receberam o desacordo dos estudantes. Formal
ou textualmente, as mulheres estão equiparadas perante a lei, mas prosse-
guem as suas lutas por igualdade de participação no processo democrático,
por igualdade material ou substancial.
O critério étnico para o tratamento desigual recebeu predominantemen-
te desacordos. Assim, para os “moços”, o tratamento dispensado diferen-
ciadamente pela lei às questões de raça ou de cor é severo demais. Mesmo
que venha em atendimento de disposições de organismos internacionais,
no Brasil esta lei resta inaplicável, porque é equivocada e excessiva (TEJO,
1988, SHECAIRA, CORRÊA JR, 2002). O equívoco talvez não esteja na lei, mas
Capa na noção corrente de identidade brasileira, fundada no mito da democracia
racial ou na ideias de que cultivamos relações interetnicamente harmonio-
Sumário
sas. Esta noção pode mesmo ser refutada nos limites deste trabalho, na re-
eLivre ferência silenciosa feita pelos entrevistados acerca do índio. De tal maneira,

65
Sociologia do direito

os “moços” carecem de serem apresentados como atividade curricular às


comunidades indígenas. Aos índios, a legislação assegurou proteção e res-
peito, através das lutas travadas por reconhecimento e por demarcações de
seus territórios. Não obstante, isso não tenha sido alcançado sem conflitos,
como ainda existem acerca dos seus limites, os índios foram mantidos terri-
torial e culturalmente segregados do “mundo dos brancos”. Assim também
com os deficientes ou portadores de necessidades especiais. Embora tenham
alcançado reconhecimento do direito acerca da educação que lhes deve ser
dispensada, os mesmos continuam sua luta por inclusão no mercado de tra-
balho ou ao acesso e gozo dos mesmos bens compartilhados socialmente,
sem que se veja e esteja realmente segregado.

Quadro-resumo por turno das tendências entre acordo/desacordo


Grau de acordo Manhã Tendência Tarde Tendência Noite Tendência
% % %
Concordo plenamente 83.3 100 66.6
Justiça gratuita Concordo com reservas 16.7 33.4

Positiva

Positiva

Positiva
p/ carentes Não concordo, mas aceito
Não concordo
definitivamente
Capa
Concordo plenamente 100 75 100
Reserva de
Sumário estacionamento Concordo com reservas 25
Positiva

Positiva

Positiva
p/ deficientes Não concordo, mas aceito
Não concordo
eLivre definitivamente

66
Sociologia do direito

Concordo plenamente 83.3 100 50


Fila preferencial Concordo com reservas 16.7 50

Positiva

Positiva

Positiva
p/ gestantes, etc. Não concordo, mas aceito
Não concordo
definitivamente
Concordo plenamente
Reserva de vagas Concordo com reservas 50 75 33.3

Negativa
Dividida

Positiva
na universidade. Não concordo, mas aceito 33.3
Não concordo 50 25 33.3
definitivamente
Concordo plenamente 16.7 75 33.3
Escolas normais Concordo com reservas 66.6 25 50

Positiva

Positiva

Positiva
p/ deficientes Não concordo, mas aceito 16.7
Não concordo 16.7
definitivamente
Concordo plenamente 83.3 100 83.3
Medicamentos Concordo com reservas 16.7 16.7

Positiva

Positiva

Positiva
gratuitos p/ Não concordo, mas aceito
carentes Não concordo
definitivamente
Concordo plenamente 66.6 75 66.6
Isenção de
impostos p/ Concordo com reservas 33.4 25 33.4

Positiva

Positiva

Positiva
carentes Não concordo, mas aceito
Não concordo
definitivamente
Concordo plenamente 100 100 83.3
Concordo com reservas 16.7
Positiva

Positiva

Positiva
Meia entrada p/
Capa estudantes Não concordo, mas aceito
Não concordo
definitivamente
Sumário
eLivre

67
Sociologia do direito

Concordo plenamente 16.7 50 16.7


Cotas p/
Concordo com reservas 50 50 33.4

Dividida
mulheres em

Positiva

Positiva
part. políticos Não concordo, mas aceito 16.7 16.7
Não concordo 16.7 33.4
definitivamente

Quadro comparativo das tendências exclusivas de acordo

Concordo plenamente
Justiça gratuita p/ carentes 81
Positiva
Concordo com reservas
19
Reserva de estacionamento p/ Concordo plenamente
deficientes 94
Positiva
Concordo com reservas
6
Concordo plenamente
Fila preferencial p/ gestantes, etc. 75
Positiva
Concordo com reservas
25
Concordo plenamente
Reserva de vagas na universidade. 0
Negativa
Concordo com reservas
100
Concordo plenamente
Escolas normais p/ deficientes 43
Negativa
Concordo com reservas
57
Concordo plenamente
Capa Medicamentos gratuitos p/ carentes
87.5
Positiva
Concordo com reservas
Sumário 12.5

eLivre

68
Sociologia do direito

Concordo plenamente
Isenção de impostos p/ carentes 69
Positiva
Concordo com reservas
31
Concordo plenamente
94
Meia entrada p/ estudantes Positiva
Concordo com reservas
6
Concordo plenamente
36
Cotas p/ mulheres em part. políticos Negativa
Concordo com reservas
64

Referências

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
BOTTOMORE, Tom, OUTHWAITE, Wlliam. Dicionário do Pensamento Social do Século
XX. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. Campi-
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Capa
Sumário
eLivre

72
Sociologia do direito

PARTE II:
O URBANO EM ESTUDO,
COTIDIANO E DIREITOS HUMANOS

Capa
Sumário
eLivre

73
Sociologia do direito

I
JOÃO PESSOA, O BAIRRO DA TORRE
E AS COMUNIDADES EM ESTUDO

Breve história de João Pessoa

A cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba, localiza-se na Região


Nordeste do Brasil, fazendo divisa com o estado de Pernambuco e o estado
do Rio Grande do Norte. Fundada no século XVI, em 5 de agosto de 1585, sua
santa padroeira é Nossa Senhora das Neves. Parte do sistema de capitanias
hereditárias, a cidade se destaca por uma vocação religiosa, e uma coloniza-
ção predominantemente portuguesa, este último aspecto que a distingue da
cidade-capital vizinha Recife, esta de colonização predominantemente holan-
desa. Ao caminhar nas referidas cidades, percebemos as mesmas compõem
Capa um processo de descolonização política e cultural através da constituição e
demarcação pelos que nelas habitam dos espaços públicos e privados.
Sumário
Este processo de descolonização conjunto compõe também as deci-
eLivre sões das instituições de Justiça em caráter regional. Mas sem tomar conhe-
74
Sociologia do direito

cimento destas decisões por enquanto, queremos lembrar alguns aspec-


tos relativos à história pessoense. A começar pelo nome da cidade: “João
Pessoa” homenageia o ex-ministro do Tribunal Superior Militar, político
paraibano, e ex-presidente da província Parahyba durante o período da
República Velha, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque. Este político que
foi morto na cidade do Recife em 26 de Julho de 1930. João Pessoa Ca-
valcanti de Albuquerque é proveniente de família pertencente a elite rural
pernambucana, cujo proprietário é o senhor de engenho José da Silva Pes-
soa (1837) (MELO, 2003).
Conforme a descrição genealógica de Fernando Melo (2003), a união da
família Pessoa à família do Barão de Lucena, deu início à formação militar,
jurídica e política da família Pessoa, sobretudo através dos estudos iniciados
em escola militar por José (1861) com incentivo do Barão de Lucena. O mes-
mo incentivo que levou o irmão de José, Epitácio Pessoa, a estudar na Casa
de Tobias Barreto, na Faculdade de Direito do Recife, e a seguir a carreira e
vocação jurídica, participando de episódios da vida política brasileira e insti-
tucional: da elaboração da Constituição de 1891, do Ministério da Justiça, do
Capa Supremo Tribunal Federal, do Senado, da Conferência de Paz em Versalhes,
da Corte Permanente de Justiça Internacional. Além da carreira jurídica, se-
Sumário
gundo Melo (2003), o Presidente Epitácio foi incentivador do sobrinho João
eLivre Pessoa a carreira política na Parahyba.

75
Sociologia do direito

Esta carreira jurídica sob inspiração militar, transmitida do tio ao sobri-


nho, foi, contudo “interrompida” pelo trágico assassinato de João Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque, na Confeitaria Gloria, na cidade do Recife. As
causas deste assassinato são provenientes da desorganização social e em
razão da proclamada liberdade de expressão de direitos da época sob o
regime do colonialismo e do entre-guerras, uma instabilidade de caráter
local e mundial que ficou escrito na história. A cidade então atualmente
denominada de João Pessoa (sobrinho de Epitácio Pessoa) procura home-
nagear a memória política local, ressaltando o contexto nacional e interna-
cional, intelectualmente efervescentes, iniciado sob a égide republicana no
início do século XX.
O atual processo de descolonização requer para a cidade de João Pes-
soa o antigo nome de Parahyba, que data de primeiro de fevereiro de 1654,
ou de Cabo Branco, bairro que margeia o ponto mais oriental das Américas.
Esta decisão acerca do nome da cidade versa igualmente sobre as consequ-
ências que a homenagem a João Pessoa tem legado a Paraíba em termos da
cultura e das artes, por seu viés trágico, assim como da relação política que
Capa se estabeleceu após este episódio que envolveu as oligarquias nordestinas
no período republicano nos “cuidados” com o povo - a relação de caridade
Sumário
e assistencialismo, que marcam igualmente a concepção das grandes obras
eLivre que caracterizam a interiorização das ações políticas pelo Estado, levada

76
Sociologia do direito

a efeito pelo sucessor de João Pessoa, o ministro e então presidente José


Américo de Almeida.
Se sob o signo de José Américo de Almeida, encontramos uma herança
cultural inestimável em termos de literatura regionalista, por outro lado na
política paraibana este acenou com ações no governo do Estado, no sentido
de “erradicar” a seca sertaneja, resultando esta numa ação de permanen-
te “Dívida Divina” do estado para com o interior, descentrando a cidade de
João Pessoa para a sua vocação moderna e de sua orientação para a liberda-
de e para o cultivo das diversas artes e atividades econômicas e sociais. João
Pessoa na atualidade se destaca na literatura por ser uma cidade de funcio-
nários públicos, marcada pela orientação interiorana da economia pública e
pela reclusão de orientação religiosa. Em outras épocas, sombria, e aos pou-
cos, iluminada pela exploração nacional na aventura do turismo como forma
de sociabilidade. João Pessoa retoma a sociabilidade de caráter interiorano
dos coretos através da revitalização das praças e da cultura dos bairros, de
forma mais autônoma e independente, mas sem olvidar suas raízes que são,
sobretudo, literárias e regionalistas.
Capa
Sumário
eLivre

77
Sociologia do direito

O Bairro da Torre e as comunidades urbanas


Padre Hildon Bandeira e São Rafael
O bairro da Torre, situado a sudeste do Centro Antigo da cidade de João
Pessoa, foi um dos últimos bairros centrais criados, ligado por uma grande
avenida denominada Ministro José Américo de Almeida, aos bairros da praia,
como Cabo Branco e Tambaú. Ao longo desta avenida no sentido praia-cen-
tro, do lado direito, situam-se os quarteirões residenciais e o Mercado da
Torre, do lado esquerdo, as comunidades urbanas Padre Hildon Bandeira e
São Rafael.
Além das residências e do crescente comércio, o bairro da Torre é marca-
do por sua centralidade, próximo do centro e das praias, e sobre ele avança
o comércio. Tradicionalmente marcado pela presença das igrejas, entre elas
o santuário São Judas Tadeu, e por diversas escolas, estaduais, municipais, e
a escola de dança e Studio de Ballet José Enoch. Este Studio, que tem cerca
de trinta e cinco anos de existência e de formação de bailarinos, oferta aulas
de ballet a crianças matriculadas em escolas municipais. O bairro também é
Capa marcado pela proximidade e pelas ações da Fundação Espaço Cultural José
Lins do Rego (Funesc), fundada sob os auspícios da década de oitenta pelo
Sumário então jurista e governador da Paraíba, Tarcísio de Miranda Burity. Esta Fun-
eLivre dação, ao lado da Usina Cultural Energisa faz parte do cotidiano do bairro da

78
Sociologia do direito

Torre, movimentando a cena local, através de sua inserção no circuito cultu-


ral nacional e internacional.
Anterior à influência cultural da Funesc, da Usina e do Studio, o bairro
da Torre vivenciou diversas transformações, que o colocam dentro de um
processo de crescente urbanização. De raiz notadamente rural, os sítios que
existiam no bairro cederam espaço a inúmeras residências, delimitadas pelos
quarteirões. Na depressão do terreno situadas às margens do Rio Jaguari-
be, situam-se as comunidades marcadas pela ocupação e pauperização das
condições de moradia, habitação e vida, cujo surgimento data de meados
da década de 70, juntamente a construção de “novos bairros” durante o pe-
ríodo militar, como Castelo Branco, Geisel, Cristo, Bancários, Mangabeira e
Valentina de Figueiredo (CAMPOS, 2010). Segundo catalogação da Funda-
ção de Ação Comunitária (2002), órgão pertencente ao Governo do estado
da Paraíba, como as comunidades Padre Hildon Bandeira e São Rafael exis-
tem mais cento e nove “aglomerados subnormais” em João Pessoa. Entre
estas áreas identificadas, escolhemos para o nosso estudo as comunidades
Padre Hildon Bandeira e São Rafael, devido ao fato destas comunidades
Capa se enquadrarem nos espaços de permanente desigualdade e precarização
social. Segundo Campos (2010), isto acontece devido aos processos de pri-
Sumário
vatização social e da lógica da exclusão que caracteriza a estrutura urbana
eLivre de João Pessoa, marcados pela ausência de infra-estrutura. Além de ter um

79
Sociologia do direito

acesso facilitado para o grupo de pesquisa, as comunidades se situam nas


proximidades da universidade, entre a Rodovia BR-230 e Avenida Beira Rio,
denominação popular da Avenida Ministro José Américo de Almeida.
As comunidades se distribuem por bairros residenciais: São Rafael se li-
mita também com o Castelo Branco, e a Padre Hildon Bandeira com a Torre,
Expedicionários e Tambauzinho. As comunidades são contíguas, separadas
pelo Rio Jaguaribe, sendo este o principal vale que corta o município e onde
se verifica a maior concentração de “aglomerados subnormais” (FAC, 2002).
As áreas de precarização geralmente se situam em bacias, estuário e man-
guezais, falésias, dutos e vias, ou em lugares de alta tensão (FAC, 2002, p.
34); as comunidades escolhidas para este estudo expressam igual vulnerabi-
lidade físico-natural, uma vez que situadas em bacias fluviais, nos seus vales
e encostas, além das vias de grande circulação, aspectos que apresentam
diversos riscos a vida e sociabilidade de seus moradores.
Assentadas neste terreno de depressão, já nas margens do Jaguaribe, as
famílias que ali moram, em aproximadamente trezentos domicílios, possuem
procedência predominantemente rural, mas também urbana, conforme dados
Capa de pesquisa direta realizada em 2002. Inicialmente construídas de forma rudi-
Sumário mentar, as casas com o passar do tempo vão passando por melhoras, porém
situadas em área de constante risco - risco representado pelas chuvas e cheias
eLivre periódicas do rio Jaguaribe. O rio Jaguaribe, em outros tempos, serviu às mu-
80
Sociologia do direito

lheres lavadeiras de roupa, para banhos, e pesca, tendo perdido estas funções
e características, servindo hoje ao escoamento de dejetos, e depósito de en-
tulhos que, na época das chuvas intensas, provocam inundações com conse-
quências gravosas, sobretudo para aqueles que residem nas áreas ribeirinhas.
Embora de perfis sócio-econômicos semelhantes, ao olhar para o cotidiano
dos moradores dessas comunidades, percebe-se que suas trajetórias de vida
apontam para uma diversidade de elementos analíticos, não tendo se revela-
do homogênea a condição de cada um como geralmente se pode pressupor,
havendo ali a presença simultânea de diversas inserções e temporalidades. A
rua e a situação das casas parecem indicar a gama de relações dos indivíduos,
construídas na solidariedade de compadres e familiares, e por esta razão, con-
figura-se como um espaço ecológico, de reestruturação e revitalização. Não
obstante, a melhoria das casas, realizadas a partir de doações de materiais,
revela algumas vezes a prática comum de campanhas eleitoreiras, recebidas
com gratidão pelos indivíduos moradores e cuja contrapartida é o voto.

A orientação dos indivíduos e dos sujeitos das relações de reciprocidade


Capa
Sumário Nas primeiras visitas exploratórias que fizemos às comunidades, ainda
eLivre em conversas informais, uma discussão sobre direitos aflorou no relato de

81
Sociologia do direito

uma moradora que processava civilmente um indivíduo que havia provo-


cado acidente de trânsito na BR-230, causando a moradora grave lesão e a
morte de sua vizinha.
O depoimento da moradora orientou a posterior entrevista com a mesma
e com outros moradores. Neste sentido, procuramos realizar entrevistas com
aqueles moradores que estiveram, no passado antigo ou recente, envolvidos
com problemas relacionado à esfera de direitos, sendo parte direta ou indi-
retamente em processos e procedimentos judiciais, efetivamente ou como
testemunhas de algum fato ocorrido no espaço em estudo. Não apenas es-
tes, mas procuramos entrevistar moradores que receberam formalmente os
direitos de moradia, saúde e educação. Outra via exploratória que procura-
mos seguir consistiu em consultar as entidades comunitárias, não obstante
tivéssemos percebido algum descrédito e desinteresse dos moradores para
com estas organizações. A Associação de Moradores da Comunidade Pe.
Hildon Bandeira, segundo a fala do líder-presidente, preocupa-se em enca-
minhar alguns moradores a solucionar seus problemas judiciais, mas este
“atendimento” acontece segundo um diálogo ritual que pratica a exclusão
Capa dos argumentos dos moradores.
Sumário Dessa forma, ao procurar entrevistar moradores individualmente, perce-
bemos que havia entre um morador e a indicação de outrem, o comparti-
eLivre lhamento solidário de experiências processuais comuns, de informações, de
82
Sociologia do direito

sentidos, e do linguajar jurídico. Este compartilhamento pareceu importante


e procuramos nos orientar por ele. Fomos então, a cada visita, desenrolan-
do este fio (por vezes interrompido, e refeito em outra situação) que faz dos
espaços em estudo comunidades no sentido próprio do termo, devido à
partilha de situações, de sentidos e de direitos comuns. Apesar de nos dedi-
car mais às entrevistas com moradores do que aos processos judiciais, estes
últimos se caracterizavam conforme os relatos pela simplificação do jargão
jurídico, mas também e o que é preocupante reduzia o espaço de escuta,
reclamação, e a desconsideração dos moradores, revelada por uma série de
tentativas inquisitoriais de aproximação da Justiça.
Assim, a distribuição de direitos elementares de existência civil se dava
por meio da política assistencialista, marcada pela ausência do Estado. Por
outro lado, a aproximação do Estado, através da justiça inquisitorial, des-
cortina, muito timidamente, face ao quadro de destituição de direitos fun-
damentais, o horizonte de autonomia e atuação cidadã dos moradores. Os
moradores das comunidades urbanas Padre Hildon Bandeira e São Rafael
são procedentes de áreas rurais, ou assim se denominaram. A maioria destes
Capa se encontra a disposição da comunidade de origem ou da comunidade con-
jugada, isto é, encontram-se aposentados ou desempregados, vivendo um
Sumário
cotidiano onde o lazer, o bar, e os jogos são dominantes durante o período
eLivre da tarde.

83
Sociologia do direito

Tendo estas raízes rurais, de seus filhos não se pode dizer o mesmo,
uma vez que os mais moços que participaram desta pesquisa nasceram na
cidade de João Pessoa, tendo por este motivo uma escolaridade avançada,
a mesma escolaridade que organiza o cotidiano da casa em que residem, e
que define as relações entre pais e filhos. Mas não apenas a escolaridade,
um ofício é transmitido das mães aos filhos, assim como uma conduta ou
comportamento civil. Aqueles que deixaram os estudos, e que não estão tra-
balhando partilham com alguma discrição “do pecado da tarde”, forma pela
qual distraem os pequenos que chegaram da escola, ou aqueles que visitam
a comunidade, provenientes de outros bairros.
Os deslocamentos pelos moradores que ali residem ou para aqueles ami-
gos e familiares que visitam os moradores, isto é a entrada e saída das co-
munidades estudadas, não são de maneira nenhuma à época que iniciamos
a pesquisa um trajeto normal ou fácil. Ao contrário dos dois lados as comuni-
dades são cercadas por duas avenidas de grande fluxo de carros. Além destes
riscos, a ponte que divide e que liga as duas comunidades e que ajudam os
moradores a atravessarem o Rio Jaguaribe, é a mesma ponte onde alguns co-
Capa legas de pesquisa nos chamaram a atenção para os horários de passagem.
Sumário Ao transitar novamente no final de tarde pela Avenida Beira Rio, percebe-
mos que a calçada se transformou mais a frente em uma grande praça (em
eLivre construção pela Prefeitura da Cidade de João Pessoa). Este espaço à época
84
Sociologia do direito

que iniciamos este estudo era destinado pela Associação de Moradores para
a organização das festas, sobretudo juninas. Além deste espaço, um terreno
baldio elevado junto a Avenida, ao lado dele, os moradores passavam a tar-
de conversando até o anoitecer, observando a passagem de carros, e con-
versando uns com os outros sobre o assunto do dia, num comportamento
que consideramos tranquilo e bastante contemplativo.
Ao transitar pela Avenida Pedro II e BR-230, descobrimos uma relação
eco-social dos moradores com a “Mata do Buraquinho” (reserva de Mata
Atlântica), uma relação espontânea e voluntária, mas que passou a ser me-
diada após a realização desta pesquisa por instituições, o que viabilizou a
construção de uma ponte de transição, evitando os riscos do transito pelos
moradores, riscos que envolveram diversos processos e vida e de morte,
com os quais compartilhamos e tivemos conhecimento. Não obstante, estes
melhoramentos e intervenções são na maioria exteriores, sendo as comuni-
dades e os moradores no nosso entendimento em muitos aspectos “aban-
donados” pela administração pública, no sentido de incluí-los de forma efe-
tiva e permanente na organização deste espaço.
Capa Relativamente às casas de propriedade privada, algumas são adquiridas
Sumário por ocupação do terreno (usucapião), e outras por relação de compra e ven-
da. Ambas são construídas de maneira muitas vezes assistencialista, pela
eLivre doação de materiais, na maioria das vezes estas doações foram realizadas
85
Sociologia do direito

no período de campanha política. Assim como estas doações são positivas


para os moradores, elas também são assistencialistas, uma vez que além
de corruptas, estas “ações” não implementam para os moradores do bairro
um projeto comunitário, mas antes mesmo de concebê-lo o descaracteriza.
Estas ações não fazem parte apenas do período eleitoreiro, a participação
dos alunos na escola através de bolsa, a distribuição de alimentos – do pão
e do leite pelo Estado, e da sopa pela Associação – todas estas ações têm
raízes assistencialistas. De outra maneira, os moradores procuram organizar
o trabalho com o comércio de alimentos, uma vez que o bairro da Torre é
um bairro de feira, tanto no sentido de diversificar os alimentos consumidos,
quanto no sentido de organizar o cotidiano da comunidade. Neste sentido,
o comércio se revela como um organizador importante, no sentido de um
cotidiano elementar – de autonomia e independência com relação às políti-
cas assistencialistas.
Este comércio, de caráter familiar, não gera emprego, mas renda da fa-
mília, e organização da comunidade. Por outro lado, perguntamos se a bol-
sa escola poderá representar uma política de natureza diferente da questão
Capa assistencialista, isto é, se esta bolsa poderá se organizar como uma renda
de cidadania. Esta relação que a bolsa escola propõe é suspeita, porque ain-
Sumário
da não se pode avaliar com que frequência ela se converte em uma dádiva
eLivre completa, em uma formação superior, por exemplo. Isto é, não se pode ava-

86
Sociologia do direito

liar o que a justiça e a educação podem ofertar aos moradores destas comu-
nidades em termos de perspectiva de vida. Senão, vejamos os diagnósticos
que alcançamos onde as dádivas não se completam, por uma miríade de
violências presenciadas no cotidiano. Não pretendemos avaliar o estatuto
da bolsa escola, mas colocá-la em avaliação e suspeição enquanto uma ren-
da de cidadania segundo o modelo sociológico.

Elaboração do Roteiro de Entrevistas

Procuramos no conteúdo das conversas de forma contemplar o campo do


direito, quando os próprios moradores não o faziam. Percebemos antes mes-
mo da elaboração que os moradores manifestaram disposição e satisfação
pela oportunidade de se colocarem em conversa, orientando muitas vezes a
própria elaboração do roteiro de entrevista. Dada esta situação inicial, tive-
mos muita facilidade em encontrar moradores com experiências semelhantes
para serem entrevistados. Concebemos filosoficamente e sociologicamente o
roteiro de entrevistas segundo a concepção de vida cotidiana elaborada por
Capa
Agnes Heller. Para esta autora, o homem se revela acima de sua cotidianidade.
Sumário Ao elaborarmos o roteiro esboçamos o que seria uma “semicotidianidade”,
isto é, uma vida espontânea, mas pautada pela normatividade das instituições,
eLivre
refletindo com centralidade a Justiça, especialmente a questão das práticas da
87
Sociologia do direito

Justiça. Pela particularização que a Justiça impõe aos moradores no proces-


so, procuramos fazer o caminho inverso, desparticularizando, concebendo-o
individualmente, mas em interação com a comunidade em que vivem. Dessa
forma, situamos a comunidade através da individualidade dos moradores re-
lativamente aos processos em que foram parte no passado antigo ou recente.
E, por sua vez, o problema entre a comunidade e a sociedade em seu conjun-
to. Segundo Agnes Heller (1985, p.80):
“Com efeito, a individualidade humana não é simplesmente uma singu-
laridade. Todo homem é singular, individual-particular e, ao mesmo tempo,
ente humano-genérico. Sua atividade é, sempre e simultaneamente, indi-
vidual-particular e humano-genérica. Em outras palavras: o ente singular
humano sempre atua segundo seus instintos e necessidades, socialmente
formados, mas referidos ao seu Eu e, a partir dessa perspectiva, percebe, in-
terroga, e dá respostas à realidade; mas ao mesmo tempo atua como mem-
bro do gênero humano e seus sentimentos e necessidades possuem caráter
humano-genérico. Todo homem se encontra, enquanto ente particular-sin-
gular, numa relação consciente com seu ser humano-genérico nessa relação,
Capa o humano-genérico é representado para o indivíduo como algo dado fora
de si mesmo, em primeiro lugar através da comunidade e, posteriormente,
Sumário
também dos costumes e das exigências morais da sociedade em seu con-
eLivre junto, das normas morais abstratas, etc.”

88
Sociologia do direito

A expressão “vida genérica” está presente em “A questão Judaica”, onde.


Karl Marx considera o homem genérico em consciência universal (de acordo
com a declaração de direitos), uma consciência que se define por ser uma
consciência sobre as coisas e assuntos humanos de natureza não religiosa.
Não obstante, a consciência genérica é instrumental e indica para o homem
que ele é objeto da consciência de outrem. Consideramos assim o ser gené-
rico positivamente: um “ser social” com relação ao Estado político, deixando
de lado neste momento o conflito de natureza religiosa.
Nesta parte das atividades, escolhemos a entrevista com roteiro semi-
-estruturado porque permite uma maior liberdade dos sujeitos na expressão
de suas imagens e evocações. Procuramos prezar pela simplicidade, clareza
e abertura das questões, buscando uma maior fidedignidade das informa-
ções. Para efeito de organização, dividimos o roteiro em três partes, não
estando, entretanto, nenhuma delas isoladas umas das outras. Foram, pois,
elaboradas para compreender a condição do indivíduo em interação com a
comunidade em que vivem.
Assim, elaboramos a entrevista: técnica que permite o desenvolvimento
Capa de uma estreita relação entre as pessoas Richardson (1999). Procuramos uma
Sumário maior flexibilidade de nossas questões, formulando um roteiro semi-estru-
turado, e ao mesmo tempo não diretivo, pois em certo momento, como nas
eLivre narrativas acerca dos procedimentos policiais e judiciais, é correto intervir
89
Sociologia do direito

minimamente, buscando assumir a função de orientação e estimulação dos


entrevistados, deixando-os desenvolverem opiniões livremente.
Na primeira parte do roteiro de entrevistas, procuramos fazer a identifi-
cação dos indivíduos através de categorias objetivas como idade, sexo, cor,
estado civil, escolaridade, procedência ou naturalidade, situação de moradia e
ocupação. Na segunda parte, procuramos perceber na subjetividade dos indi-
víduos, suas histórias e cotidiano em torno da situação de moradia, educação,
trabalho, lazer, saúde. Ainda aqui, buscamos verificar a percepção de direitos
desses indivíduos, e a aplicação desse senso às suas realidades. Na terceira e
última parte, quisemos perceber a continuidade ou não entre suas percepções
de direitos e seus acessos à justiça, com interesse de identificar os fatos que
impossibilitaram a continuidade entre estas dimensões. As perguntas nesta
parte procuraram compreender a ideia que fazem de direitos fundamentais e
sociais, a informação de que dispõem, e o que pensam da Justiça.

Observação Participante e Aplicação do Roteiro de Entrevistas


Capa
No sentido de compreender a forma pela qual acontecem acessos ao
Sumário direito e à Justiça pelos sujeitos, em suas descontinuidades, fomos primeira-
eLivre mente anotando impressões, e objetivamente recolhendo elementos que de

90
Sociologia do direito

alguma forma respondessem ao nosso problema inicial. Como a nossa inser-


ção tivesse acontecido de forma tranquila, uma vez que estive acompanha-
da de um grupo de pesquisadores2 que já vinham desenvolvendo trabalhos
naquele espaço, fomos conhecendo seus moradores, contando de antemão
com uma receptividade e disponibilidade dos mesmos que iam discorrendo
de suas vidas e até das últimas notícias que se tornaram jornalísticas dali,
como a morte de um menino devido sua pequena dívida com traficantes de
drogas. Mas deste fato, que nos impressiona, foi importante afirmar certo
distanciamento, uma vez que estas áreas são por todas caracterizadas pelo
tráfico, aspecto que estigmatiza os moradores, e que marca as relações com
a sociedade em geral - seja pelo temor e receio de uns, seja pelo consumo
de drogas por outros.
Este período de observação participante foi também intensificado na fase
de implementação do projeto de extensão “Ações integradas em busca de
cidadania” 3. Dessa forma, também fomos conhecendo um pouco dos jo-
vens, problemas e aspirações dos meninos e meninas com suas crianças de
colo, principalmente o grupo que se reunia para dançar no espaço cedido
Capa
2 Desenvolvi esta pesquisa empírica, com incentivo do PIBIC/CNPQ, enquanto integrante do grupo de pesquisa “Pre-
carização, Desenraizamento e Desigualdade Social”, liderado pela Dra. Eliana Monteiro Moreira, cujos integrantes da
Sumário graduação eram Chistina Gladys, Gisânia Carla,Lourdes Souza.
3 Este trabalho foi inicialmente realizado junto aos jovens da comunidade Padre Hildon Bandeira. Nossa atividade
eLivre consistia em conhecer estes jovens, saber o que praticavam, se se reuniam em grupos, ou o que gostariam de fazer
para, junto deles, organizar oficinas culturais.

91
Sociologia do direito

pela associação de moradores em algumas manhãs da semana. Este grupo


pequeno se reunia para ensaiar coreografias das músicas de forró, axé e ca-
poeira. Foi nesta fase de reconhecimento que fomos reunindo, buscando
o contato, e nos familiarizando com as expressões, algumas muito sisudas,
porém não fechadas ao diálogo, quando fomos apresentando e explicando
com clareza e simplicidade a proposta do projeto, acatando sugestões e in-
teresses.
Logo nesta entrada, chamava nossa atenção uma placa que de certa for-
ma afirmava a comunidade por nós procurada, com os seguintes dizeres
colocados aos passantes da avenida: “a comunidade Padre Hildon Bandeira
oferece: eletricista, pedreiro, marceneiro, lavadeira...”: uma placa na Beira Rio
com estes dizeres e um número de telefone público que fica em frente à casa
do presidente da associação. Foi comum no final ou início de nossas visitas,
ficarmos, como fazem alguns moradores, sentados na calçada da avenida
(de frente ao busto do Padre Hildon, entre a comunidade e o asfalto) con-
versando, ou simplesmente vendo os carros velozes passarem, observando
o cotidiano, as atividades, e a passagem das pessoas ali.
Capa Esta placa percebida já sinalizava o lugar daqueles sujeitos que depois
Sumário conhecemos, e que se define através da posição que ocupa na divisão do
trabalho, encontrando-se na informalidade de serviços muitas vezes dispen-
eLivre sáveis na vida moderna, e onde não há garantias, nem direitos agregados,
92
Sociologia do direito

mas que os mantém no limite da subsistência, repensada e improvisada to-


dos os dias. Quando existe esta situação de trabalho que os mantém na
miséria, verificamos assim as políticas de assistência da miserabilidade, para
não deixar morrer de fome, ou de dor, e de solidão; como pão e leite, distri-
buição de medicamentos, de correspondências com americanos do norte,
entre outras. Estas políticas, inclusive por alguns moradores rejeitadas são
pela maioria aceitas como providência divina, mantendo-os na fatalidade de
um destino naturalizado, onde cada um tem o lugar que merece, ou que é
capaz de conquistar, garantido por um direito natural.
Na São Rafael, percebemos a presença de instituições, como a igreja ca-
tólica, evangélica, espírita, umbanda, instituições sinalizadoras da atuação
do poder público estatal, como uma escola estadual de ensino fundamental
e a Fundação de Ação Comunitária, além de uma rádio comunitária. Nesta
comunidade, conhecemos uma moradora que se tornou fundamental para
a delimitação da nossa pesquisa, e depois nossa informante, ao fazer uma
narrativa sobre o processo judicial que levava adiante, depois de ter sofrido
tentativa de homicídio por motorista que dirigia em alta velocidade na BR-
Capa 230, que cerca a comunidade. Os nossos contatos foram frequentes, onde
observamos por tardes inteiras suas atividades na barraca, e as pessoas que
Sumário
se reúnem em torno dela para jogar dominó. Nestas circunstâncias, perce-
eLivre bemos características da vida diária da comunidade daqueles aposentados,

93
Sociologia do direito

crianças, mulheres, e jovens desempregados. Achamos pertinente apresen-


tar os fragmentos de algumas entrevistas que introduzem elementos da his-
tória e eventos cotidianos dos sujeitos moradores das comunidades, como
de seus iguais.
No universo pesquisado, fizemos um número total de quinze entrevistas,
onde aproximadamente, a metade dos entrevistados se situa no intervalo de
44-73 anos, e parte deles se situam no intervalo de 18-26 anos. Entre aque-
les entrevistados que se situam no primeiro grupo, o nível de escolaridade
é mais baixo, sendo a maioria procedente de área rural, tendo no início da
vida trabalhado em roça, e encontrado depois ocupação como vigilantes,
autônomos, lavadeira, e ajudante de obra, encontrando-se atualmente apo-
sentados. O segundo grupo, em sua maioria, é procedente de área urbana,
estudaram por mais tempo que seus pais, não havendo nenhum deles, toda-
via, ingressado no estudo superior, e se encontram desempregados. Dessa
maneira, detivemo-nos no primeiro grupo, uma vez que o relato e compre-
ensão de direitos nos pareceram mais reais e factíveis, do que entre os mais
jovens, salvo o relato de um morador, que havia cumprido pena privativa de
Capa liberdade.
Sumário Foi um procedimento comum a todos nas entrevistas uma conversa ini-
cial e anterior, onde explicamos os objetivos da pesquisa, e pedíamos auto-
eLivre rização do entrevistado para a utilização do gravador. Encontramos em geral
94
Sociologia do direito

a disponibilidade dos entrevistados, no entanto alguma prudência em dizer


de sua relação com delegacias e justiça, porque esta situação poderia ma-
cular a ideia que a entrevistadora faria dos entrevistados, situação superada
quando explicávamos a importância daqueles fatos e circunstâncias, assim
como dos sentimentos neles envolvidos, para o prosseguimento de nossa
pesquisa.
As entrevistas ocorriam nas ruas das comunidades, ou nas casas peque-
ninas, que acolhem tantos sujeitos. Como observamos, os sujeitos das co-
munidades são tomados em suas carências e fragilidades para serem “alvos
certos” de políticas indignas4. Estas políticas são aceitas pela condição de
precarização dos sujeitos sem maiores discussões ou criticidade, ou mesmo
a participação dos mesmos na sua elaboração. Procuramos nas entrevistas
buscar ou mesmo despertar o posicionamento crítico dos mesmos acerca
das políticas com que mantinham contato.
Ao longo das visitas, observamos que os moradores da São Rafael são
alvo de tratamento assistencial de instituições governamentais e não-gover-
namentais na forma de políticas indignas5. Trata-se de políticas de intervenção
Capa de natureza pontual, aceitas pelo estado de precarização em que vivem estes
Sumário
4 Fazemos alusão à obra de Hannah Arendt, “A Dignidade da Política”.
eLivre 5 Fazemos alusão a idéia trabalhada por Hannah Arendt (1993), de resgate da dimensão política na obra “A Dignidade
da Política: ensaios e conferências”.

95
Sociologia do direito

sujeitos sem maiores discussões ou criticidade. Em nossos contatos, vimos que


estas ações de cunho filantrópico/assistencialista estão longe de criarem con-
dições dignas a estes sujeitos, ao contrário, terminam por reforçar seus senti-
mentos de fraqueza, desamparo e inferioridade, impedindo que busquem por
si próprios as saídas para as negações/privações que vivenciam.
Diante de tal constatação, procuramos construir as perguntas do roteiro
de forma que provocassem o posicionamento crítico dos entrevistados acer-
ca de assuntos em que geralmente não são chamados a refletir. Procuramos
dar um tratamento ao conteúdo das conversas de forma a contemplar o
campo do direito, quando os próprios entrevistados não o faziam. Percebe-
mos no final das entrevistas, que estes manifestaram satisfação pela oportu-
nidade de se colocarem, orientando muitas vezes o próprio rumo da entre-
vista, sentimento pela pesquisadora igualmente partilhado e discretamente
incentivado. Daí a facilidade que tivemos em encontrar outros sujeitos para
serem entrevistados.
Terminadas as entrevistas, um entrevistado nos fez um pedido para es-
cutar a fita de gravação, porque se sentia “fortalecido” ao contar sua história
Capa daquela maneira. Somente duas entrevistas não tomaram este rumo ressal-
Sumário tado. Nelas, os indivíduos eram um senhor e uma senhora de idade, ambos
viúvos, tendo a morte de seus companheiros ocorrido de forma igualmente
eLivre trágica. Estes foram tímidos em suas falas e expressões, resignados em suas
96
Sociologia do direito

vidas, tendo ainda demonstrado de outras formas sua simpatia conosco,


preocupando-se com a nossa segurança enquanto estávamos na vila, com-
parando o cuidado que tinham conosco ali ao mesmo que tinham com as
suas netas.
No processo de entrevista é que percebemos como se elabora a face.
Segundo Goffman (1980), a face é um valor positivo reclamado pela pessoa
durante os encontros sociais. A face não está no corpo da pessoa, mas está
difusamente no fluxo de eventos que se desenrolam no encontro, conside-
rando o lugar ocupado pela pessoa no mundo social. Uma pessoa está na
face errada quando um seu valor social não se adequa com a linha sustenta-
da por ela. Quando está em face, sente-se confiante e segura. Mantém sua
cabeça erguida, está aberto aos outros. Fora da face, sente-se envergonhada
e inferior. Salvar a face é a maneira como a pessoa sustenta para os outros
a impressão de não ter perdido a face (conhecida como diplomacia e habi-
lidade social). Ainda segundo Goffman (1980), a face, apesar de pessoal, é
empréstimo feito à sociedade, que poderá inclusive ser retirada por ela. Na
elaboração da face, a pessoa tenta tornar qualquer coisa que esteja fazendo
Capa consistente com a face. “Incidentes” são eventos cujas implicações simbóli-
cas ameaçam a face.
Sumário
eLivre

97
Sociologia do direito

II
COTIDIANO E DIREITOS HUMANOS

Por uma história social dos direitos no continnum campo-cidade

Ao evidenciarmos a experimentação real ou concreta pelos atores em


estudo acerca dos direitos politicamente instituídos pelo Estado, preten-
demos fazer uma leitura política em contrapartida às formulações neu-
tras dos direitos. A partir das histórias de vida, apresentaram-se a nós
trajetórias marcadas pela migração, que entendemos como a destituição
em algum momento de direitos e a busca destes em algum lugar onde
também mora a esperança. Entre os atores estudados, o momento inicial
da destituição de todos os direitos acontece no campo, lançando-se de
igual maneira na cidade. Estas mobilidades internas são de todos conhe-
Capa cida, revelando-se, sobretudo, nas lutas por reconhecimento, uma busca
por um sonho de dignidade, cuja imbricação lógica inclusive dos direitos
Sumário de cidadania está no bem coletivo do trabalho, mas que se revela nos mo-
eLivre radores de que cuidamos de forma precarizada, na informalidade muitas

98
Sociologia do direito

vezes, com menos direitos, garantias e seguridade, estendendo-se estas


mesmas condições aos seus.
Dessa forma, o não reconhecimento de direitos no campo parece ante-
ceder e complementar a compreensão do urbano e a condição de indivídu-
os que nele morrem-vivem6 privados de direitos fundamentais7. A condição
precária de vida, moradia, educação, trabalho, lazer, e saúde dos indivídu-
os moradores das comunidades pesquisadas são os aspectos que colocam
esta população à margem de direitos e garantias constitucionais que tornam
possível uma existência cidadã. O continuum campo-cidade em que figura
este estado de coisas não é tão evidente, nem as instituições responsáveis
pela distribuição de direitos parecem sensíveis a este aspecto da nossa his-
tória social.
Gerações inteiras de indivíduos e famílias empobrecidas no campo, atra-
vés do não reconhecimento de seus direitos pela terra, e ao trabalho nela,
vêm protagonizar outro drama social na cidade, ocupando terras de nin-

6 Utilizamos aqui a mesma inversão feita pelo autor do poema: “Ao inverter o sintagma natural vida e morte, o poeta
registra bem a qualidade de vida que seu poema visa a descrever: uma vida a que a morte preside. E ambas, morte
Capa e vida, têm por determinante o adjetivo “severina”. Igualam-se nisso de serem ambas pobres, parcas, anônimas. O
substantivo Severino é originariamente diminutivo do adjetivo severo. No auto cabralino há, pois, a reversão da pa-
lavra a sua origem, enriquecido em sua carga semântica.” SENNA, Marta de; João Cabral: tempo e memória; Rio de
Sumário Janeiro: Antares; Brasília: INL; 1980, pp. 58 e 59.
7 Direitos fundamentais no nosso entendimento abarcam também os chamados direitos sociais. A divisão crono-
eLivre lógica que separa as chamadas gerações de direitos somente é válida no nosso entendimento para marcar as lutas
históricas travadas em tornos dos mesmos.

99
Sociologia do direito

guém, quase encruzilhadas, em busca de sua dignidade humana. A procura


desses indivíduos por dignidade parece ser a motivação das migrações di-
versas e o horizonte-fim de “morte-vidas”. Segundo Martins (1993, p.48):

(...) é também a luta por objetivos que não são imediatamente econômi-
cos, nem políticos. Isso é compreensível num país em que grande número
de pessoas vive no limiar do urbano, da política, do direito, da justiça, da
moral, num país em que ainda não se tornaram reais algumas conquistas
elementares da Revolução Francesa.

Acerca do campo e de suas transformações, os estudos de Martins (1993)


apontam para uma diferença entre Brasil e Inglaterra, onde não tivemos a ex-
periência das corporações de ofício extintas pela Constituição de 1824, que nos
levasse a exigir o reconhecimento de um direito anterior a grande expansão do
capital. Para este autor, os camponeses, por sua vez, nunca tiveram direito, nem
mesmo a propriedade, que pertencia ao rei. Segundo Martins (1993), o direito
de usar e de ter eram direitos separados, e combinados. Com a grande expansão
do capital em meados do século XIX, a crescente importância da renda fundiária
Capa
ensejou despejos e violências. Esse processo transformador converteu o agre-
Sumário gado e posseiro em força de trabalho na grande propriedade ou suas simples
eLivre expulsões. “Os direitos que tinham eram morais e dependiam da exclusividade
da vontade e da benevolência do proprietário” (MARTINS, 1993, p. 67).
100
Sociologia do direito

Na observação de Martins acerca do universo pesquisado, a luta campo-


nesa reafirma um direito costumeiro, de praticar sua agricultura de roça. A
terra livre fazia parte do direito, e era o pressuposto da expansão agrícola,
resguardada a propriedade do rei, e teve vigência até a promulgação da Lei
de Terras em 1850. Portanto, orienta-se por um direito, embora revogado,
que permaneceu inscrito nas concepções e experiência dos trabalhadores
que não eram escravos. Segundo descreve os choques com o novo direito
produzido a partir da agricultura de exportação da cana e do café estabele-
ceu um direito absoluto de propriedade e de posse das terras.
Embora estas leis tenham passado por constantes atualizações no sentido
de absorverem as tensões, estava estabelecido historicamente o choque en-
tre a agricultura tradicional camponesa e as concepções dos que têm acesso
ao poder, à produção das leis e à criação do direito. Estas mudanças legais
no direito de propriedade vieram suprimir, ainda segundo Martins (1998), as
concepções populares sobre direitos, e foram revestidas de violentas inva-
sões de terras camponesas (e territórios indígenas).
Não obstante estes processos de história lenta que acontecem no cam-
Capa po, estudados por Martins (1993), e que colocam camponeses e índios como
Sumário seus sujeitos fundamentais, tenham avançado na construção da bandeira da
reforma agrária e no argumento do cumprimento da lei, não perdemos de
eLivre vista a amplitude dessa luta por reconhecimento de direitos como também
101
Sociologia do direito

se referindo aos sujeitos pobres da cidade, em algum momento expulsos do


campo pelas transformações legais acima discutidas.
Na cidade, todavia, a questão da pobreza não está posta em termos tão
diversos daqueles que viemos nos referindo até aqui. Os espaços de origem
rural que nos contam a trajetória dos indivíduos são explicadores das formas
pelas quais acontecem seus acessos descontinuados e precários à educação,
trabalho, saúde, lazer. Os indivíduos das comunidades urbanas precarizadas
são reconhecidos por programas assistenciais de naturezas diversas em suas
fraquezas e incapacidades para existirem em determinados espaços sociais,
características que os fazem pobres. Segundo Telles, vivemos sob uma tradi-
ção tutelar, onde o pobre comparece no cenário público brasileiro pela sua
obediência, merecendo em contrapartida o favor e a proteção.

A justiça social brasileira não foi concebida no interior de um imaginário


igualitário, mas no interior de um imaginário tutelar que desfigura a própria
noção moderna de direitos, formulados que são no registro da proteção
garantida por um Estado benevolente. (TELLES, 2002, p. 29)
Capa
Nas reflexões de Telles (2001) estes termos através dos quais a questão
Sumário social comparece no cenário público brasileiro constituem a chave de eluci-
eLivre dação para o enigma da persistência da pobreza entre nós. Assim, existe um

102
Sociologia do direito

imaginário persistente que fixa a pobreza como marca de inferioridade, ou


de descredenciamento para o exercício de direitos.
Algumas leis constitucionais, como a regra da igualdade, carregam a in-
terpretação de seus criadores, que prosseguem em condutas que restringem
o reconhecimento de direitos os camponeses, indígenas, como os pobres
citadinos. Dessa forma, as mesmas instituições que formalizam a igualdade,
excluem determinados grupos, tratando-os numa hierarquia inferior de pré-
-cidadãos, ou indivíduos destituídos de autonomia e soberania. Este, alerta
Telles (2001), é um dos aspectos mais desconcertantes da sociedade brasi-
leira, onde a igualdade prometida pela lei reproduz e legitima hierarquias e
desigualdades.
Ainda em Telles, o lugar da pobreza na sociedade brasileira está para
além da sociedade e da história, ou na naturalização da história, constituído
fora da interação humana. A pobreza figura como atraso, um fardo pesado
sem autores e responsabilidades, como a incivilidade e amoralidade, o con-
traste de um Brasil urbano sob o signo do progresso e da civilização. Afinal
de contas, éramos também naturalmente e generosamente um país de re-
Capa cursos, de possibilidades e mobilidade social.
Sumário
A questão social era negada (no período republicano) sob argumentos que
eLivre forjavam a imagem de um país transformado em pura natureza – natureza

103
Sociologia do direito

generosa: um país cheio de recursos, de possibilidades e chances de traba-


lho e mobilidade social (TELLES, 2001, p. 41).

Com vivemos numa cidadania restrita, onde os direitos não se universa-


lizaram; somente com o reconhecimento dos direitos para além do forma-
lismo que atravessa e oculta as diferenças, e através dessa linguagem, é que
poderíamos vislumbrar os diversos interesses em discussão e seus conflitos.
O que preocupa nesse horizonte simbólico é a figuração natural das desi-
gualdades que impede a construção de um princípio de equivalência, e que
pode conferir ao outro a identidade e estatuto de sujeito. Somente a regra
que define os atributos que qualificam os indivíduos como cidadãos confe-
re, ao mesmo tempo, legitimidade às suas formas de vida e modos de ser.
A legislação trabalhista formulada durante o período Getulista significou
a intervenção estatal quebrando com exclusividade, arbítrio e favores do
mando patronal, mas serviu ainda de instrumento de manipulação do mes-
mo arbítrio. Aqui, são os postos de trabalho que definem o lugar de cada
um na sociedade, sua existência civil e cidadania. O trabalhador é uma figura
Capa honesta, tendo esta imagem neutralizado os efeitos da pobreza. Quem não
conseguiu seu lugar ao sol numa sociedade generosa, vivendo os dramas da
Sumário
sobrevivência, devem contar com o amparo do Estado.
eLivre

104
Sociologia do direito

A figuração política do trabalho se confundia, portanto, com a figuração do


próprio poder no interior de um discurso que fazia da justiça social a obra
civilizadora por excelência, que tirava o trabalhador do estado de natureza,
o redimia da pobreza através da proteção ao trabalho e o dignificava en-
quanto Povo e Nação. Sob o silêncio imposto pela repressão e pela razão
totalizadora do Estado, esse discurso acompanhava a regulamentação da
vida fabril, construindo a ficção da lei que garante direitos pela força que
emana do lugar de sua enunciação e que prescinde da ação coletiva, en-
quanto luta, conquista e representação (PAOLI, apud TELLES, 2001, p. 48)

Apesar destas figurações, Telles (2001) entrevê um horizonte igualitário


e democrático na criação de espaços de negociação de interesses e de for-
mação de uma opinião pública plural que recusa a exclusividade da voz do
poder. Citando Wefort, ela explica como se deram estas mudanças, como a
formação de uma “consciência do direito a ter direitos”:

A “descoberta da sociedade” se fez na experiência dos movimentos sociais,


das lutas operárias, dos embates políticos que afirmavam, perante o Estado,
a identidade de sujeitos que reclamavam sua autonomia, construindo um
Capa espaço público informal, descontínuo e plural por onde circularam reivindi-
cações diversas (WEFORT, apud TELLES, 2001, p. 51).
Sumário
eLivre

105
Sociologia do direito

Como não deixamos nos enganar pela lentidão destes processos, que
podem confundir o observador, sabemos que eles provocam resíduos imen-
sos de incompreensões, e sentimentos de injustiça, porque estes indivíduos
não se sujeitam simplesmente e, atomizados ou organizados, não compre-
endem totalmente o contexto que vivenciam. Dessa forma, e sem negocia-
ção em nenhuma instância, ensaiam e reagem de forma igualmente violenta
aos processos de negação que os inferioriza e os descredencia para o exer-
cício de direitos. São reconhecidos nessa ocasião como potencialmente pe-
rigosos à ordem social, devendo ser justamente punidos porque passaram a
condição de devedores de um Estado penal.
O papel de cidadão, segundo DaMatta (1997), é vivido nestas circuns-
tâncias, de modo diferente do que dizem amplamente a Constituição e o
direito. Ainda segundo este autor, quando alguém é chamado de “cidadão”
está se complicando, encaminhado-se às vias certas de sujeição, às obriga-
ções da lei e suas penalidades brutais. Neste sentido, a cidadania costuma
ser evitada. E o que dizer acerca da compreensão de direitos, esta categoria
tão abstrata na percepção dos indivíduos? Quando não, os direitos se de-
Capa finem na concretude de uma situação crítica ou trágica, que os coloca em
contato primeiro com a Justiça, através de prisão, homicídio em legítima
Sumário
defesa, acidente ou morte banal numa rodovia. Situações que conseguem
eLivre resolver na providência divina e na ajuda caridosa de um conhecido que

106
Sociologia do direito

se solidarize. Essa mesma prática “solidária” que lhes custam as cruezas da


vida cotidiana.
Não obstante, as instituições penais foram criadas para confinar quase que
exclusivamente os pobres, tendo sido intensificado esse seu mister com a pro-
gressiva diminuição do Estado Social. Nas suas análises sobre a instituição da
prisão, Wacquant (2001) considera que as políticas policiais e penitenciárias não
podem ser compreendidas nas sociedades avançadas sem que sejam recoloca-
das no quadro de transformações mais amplas do Estado. Para ele, a ascensão
do salário precário e a retomada do Estado punitivo seguem juntos: “a ‘mão
invisível’ do mercado de trabalho encontra seu complemento institucional no
‘punho de ferro’ do Estado que se reorganiza de maneira a estrangular as de-
sordens geradas pela difusão da insegurança social” (WACQUANT, 2001, p. 135).

Dimensões e Alternativas à Cidadania Brasileira

Conforme ensina DaMatta (1997), existem duas dimensões ou planos em


Capa que podemos realizar a discussão acerca da cidadania brasileira – uma jurí-
dico-político-moral e outra sociológica. Esta última dimensão, por retirar o
Sumário caráter natural do conceito, pode nos indicar caminhos de aproximação da
eLivre perpetuação da nossa realidade desigual e hierarquizada.

107
Sociologia do direito

O conceito de cidadania implica considerar a ideia de indivíduo como


uma entidade genérica, universal e abstrata, dotado de igualdade e dignida-
de, com direitos e deveres no seu espaço de pertencimento. Todavia, devido
aos processos estruturais, históricos e culturais brasileiros, esta mesma no-
ção engendra práticas e tratamentos sociais diversos. Existem outras formas
de filiação à sociedade brasileira, ou outras formas de cidadania, construídas
nos espaços relacionais da casa, e que realizam compensações sociais. Estas
relações de família e suas teias de amizade se constituem em lealdades sem
compromisso legal ou sociológico; estão “fora da lei”, mas não se pode abrir
mão delas e de suas identidades para chamar direitos e deveres universais.
Senão, vejamos:

E: O que é a justiça para você?


F: Continua sendo a mesma coisa. Ela foi importante para eu receber os
meus direitos, bom demais. Agora eu gostaria que existisse uma lei assim
que procurasse sinalizar mais as coisas antes de tomar qualquer atitude,
sabe? Do meu ponto de vista acho que deveria ser mais analisado as coisas,
sabe, eu sei, tudo bem eu entendo, que o mundo que a gente vive hoje em
Capa dia está completamente dominado pela violência, existe muitos lugares já
dominados onde não existe policial, não existe juiz e não existe promotores.
Sumário Existe a justiça, mas acho que a violência está de uma forma, que as pessoas
fossem punidas de uma forma sem haver tanta violência. (MANOEL, dados
eLivre da entrevista direta, agosto de 2004)

108
Sociologia do direito

Nesta fala é recorrente a relação da casa e da rua. A casa como o lugar


da familiaridade e domesticidade, daquilo que é permitido, e a rua como o
lugar da lei, da proibição, e dos “funcionários da lei”. A questão da violência
levantada por Manoel é carregada pelas relações dos moradores com as ins-
tituições, as práticas eleitoreiras realizadas nos espaços de pobreza, estabe-
lecendo aproximações com moradores não só na troca de objetos e votos,
mas na garantia de lealdade e gratidão.
Através de mecanismos eleitoreiros, portadores da corrupção e violên-
cia nas relações sociais, que se valem também os moradores que acionam
conhecidos para conseguir precariamente moradia, emprego, atendimento
médico, ajuda em necessidade, enfim estes aspectos garantidores e urgen-
tes à vida, e na qual a própria sorte de cada um os fez desamparados. Este
círculo que estamos chamando de reciprocidade hierárquica inaugura um
sistema onde o poder e a violência são os princípios e a injustiça um senti-
mento relacional o resultado.
A cidadania política brasileira não conseguiu romper com os vícios que
a sustenta – compra de votos, concessões e favores. Estes aspectos vêm de
Capa longe, e são considerados por Sales (2002) como a raiz rural de nossa cida-
Sumário dania. O voto expressa entre nós, portanto, menos o direito de participar do
exercício do poder político, e mais instrumento de manipulação que alimen-
eLivre ta as relações de favor.
109
Sociologia do direito

Uma insuficiência da teoria damattiana apontada por Souza (2001) es-


taria no fato de que ele busca compreender os valores independentemente
da vida institucional. Para Souza (2001), podemos realizar uma interpretação
alternativa do dilema brasileiro, ou do constante paradoxo entre a via insti-
tucionalista e culturalista dos usos e costumes. Para ele, não é peculiaridade
brasileira a tendência à corrupção e refração da lei geral (o jeitinho brasilei-
ro), ao contrário a grande política é considerada amoral para a maioria das
pessoas, sendo um dado estrutural da esfera política moderna.
A alternativa apresentada por Souza (2001) parte da ideia de que a misé-
ria e a permanência das desigualdades sociais são resultados da seletivida-
de e não de um paradoxo do mesmo processo de modernização. Em outras
palavras, uma concepção do processo de modernização brasileiro estaria
na consideração da relação entre valores e instituições, vinculando-a a es-
tratificação social. Dessa forma, a política não seria somente uma atividade
intra-estatal, quando consideramos uma terceira instituição, além do Estado
e do mercado: a esfera pública teorizada por Habermas. Para Souza (2001)
uma forma de resgatar os miseráveis seria começar a discutir a função dessa
Capa esfera a partir dos mesmos.
Sumário Nos estudos de teoria política e de inclusão do outro, Habermas (2002)
procura apresentar uma modificação paradigmática do direito, através da
eLivre sua concatenação com a democracia. Para o autor alemão, esta preocupa-
110
Sociologia do direito

ção não constitui uma nova teoria, mas a simples afirmação de que é preciso
levar a sério o Estado Democrático de Direito: “apesar de todas as mudanças
de minha posição teórica, vinculo à teoria do discurso do direito um sentido
radicalmente democrático” (HABERMAS, 2002, p. 373)
Esta compreensão diferenciada constitui aquele caminho alternativo
apontado por Souza (2001), de pensar a relação entre valores e instituições.
No nosso estudo, relacionar valores democráticos às instituições de direito é
também o caminho para a inclusão, através do reconhecimento de direitos
e da dignidade humana àqueles deserdados no campo e na cidade, em suas
diversas formas de vida.
Não obstante a cidade de João Pessoa participe de uma mesma coreo-
grafia com relação aos países em desenvolvimento, esta cidade não é consi-
derada segundo a perspectiva adotada uma metrópole, individualista como
padrão de vida. A cidade é retomada segundo as suas especificidades locais,
isto é, segundo as biografias ou as histórias de vida de seus moradores em
suas diversas inserções e espacialidades o que valoriza sua identidade, a re-
gionalidade e a nacionalidade. Assim, a cidade de João Pessoa, e o bairro da
Capa Torre que nela se ambienta, não cuidam de um estudo “fácil”, mas de uma
Sumário realidade bela, pulsante e fluida, e contraditoriamente, difícil de determinar
pelas relações que estabelece com o “estrangeiro” ou com o “estranho” nos
eLivre moldes analisados pelo sociólogo Zigmunt Bauman.
111
Sociologia do direito

Embora sua sociabilidade seja marcada por um processo de “desenrai-


zamento” do campo e pela precariedade e desigualdade do urbano subsiste
por outro lado na cidade de João Pessoa as redes sociais de diversas ordens e
valores – de família, religiosidade, educação, e política, ativando uma ciranda
de direitos a balizar como marco social a organização e economia do espaço
– que articulam a interação cotidiana, os costumes, e o modo de vida. Não
obstante, estas redes simbolizadas por marcos regulatórios-simbólicos do
sistema social como um todo sejam difíceis de serem apreendidas perma-
nentemente no cotidiano em sua constituição, uma vez que os moradores
são dispostos segundo as virações ocupacionais e da informalidade social.
Geralmente estas redes sociais são mediadas pelos valores compartilhados
pelo campo onde o morador se desenraizou social e economicamente, sub-
sistindo a memória e a afetividade; o trabalho qualquer que ele seja possui
centralidade como produção de renda de cidadania e os direitos constitu-
cionais apenas tangenciam esta relação na existência singular do “sujeito”.
Dessa maneira, “a rearticulação destas redes de cultura”, de forma per-
manente e válida, constitui uma política social de regulação da instabilidade
Capa a que os moradores se expuseram em razão última de sua desagregação fa-
miliar pela exposição econômica e cultural a que estão submetidos durante
Sumário
sua existência do nascimento a morte civil. Mas estas estes não são capazes
eLivre de sustentar de forma permanente o cotidiano e a ciranda de direitos, ao

112
Sociologia do direito

contrário, elas conformam as desigualdades hierárquicas. Estas redes “con-


traídas e contrastivas” internas à comunidade, isto é, próprias a ela mesma,
ao seu cotidiano, são desarticuladas pela manipulação imagética da mídia
nacional voluntariosa e centralista como modo de entretenimento, conjuga-
da pela disposição aversiva do espaço, pela forte regulação legalista e não
conciliadora que caracteriza a política urbana em países latino-americanos.
Finalmente, a política de sociabilidade através das praças constitui ao lado
das redes de direitos, além de um resgate da memória urbana cujos laços
remontam a origem predominantemente rural do que a origens citadinas e
globalistas, um modo autêntico de exercício da cidadania nas comunidades
estudadas, de exercício da vida e da virtude no “novo espaço” no tradicional
bairro da Torre, e na cidade de João Pessoa, modos de valorização do coti-
diano local e de alternativas a cidadania brasileira. Na discussão que segue,
considerando que a noção de rede social ou de “network analyses” é insufi-
ciente para articular permanentemente sociedades de raízes rurais, e de co-
lonização portuguesa, procuramos analisar segundo as falas dos moradores
as trocas de dádivas presentes no circuito cultural de direitos, procurando
Capa neste destaque, afirmar segundo a política de renda para a cidadania, consi-
derando a história de vida dos moradores, as dádivas positivadas no cotidia-
Sumário
no urbano da cidade de João Pessoa. Mas para isto precisamos antes acertar
eLivre o que é a dádiva no sentido teórico, em segundo lugar tentar “traduzir” o

113
Sociologia do direito

que é a dádiva nas ciências sociais e, finalmente qual a extensão dos direitos
na sociedade em estudo segundo este paradigma.

As ambivalências da Justiça

Exploramos o problema da justiça em suas ambigüidades. Estes proble-


mas que envolvem a esfera da justiça se referem às limitações e aos desafios
da democracia para uma nova leitura dos direitos. Conforme ensina Bourdieu
(2001), podemos encontrar princípios explicativos da realidade em campos
diversos do próprio local de observação. Por esta orientação metodológica,
poderemos nos reportar tanto para as comunidades em estudo, quanto ao
campo diverso da instituição jurídica, no que ambos podem nos dizer acerca
de um estado de coisas ou dos problemas que não são de maneira alguma
fáceis de serem percebidos e com clareza. Vejamos:

E: O senhor acha que tem direitos, seu José?


J: Olha, eu tenho sim. Muita gente daqui da comunidade não sabe os direi-
Capa tos que tem, porque a gente não conhece das leis, mas a gente sabe que a
Sumário gente tem direito. Há alguns anos atrás eu fui numa audiência lá no Geisel
(grifo meu: justiça dos bairros na cidade de João Pessoa, além do centro,
eLivre e afora a organização dos conselhos e conselheiros, começa pelo Geisel) e

114
Sociologia do direito

quando eu cheguei lá o juiz não fez o que era certo e eu procurei e a gente
processou ele – o juiz, a gente processamos ele. (JOSÉ, Dados da Entrevista
direta, agosto de 2004)

Nestes campos tão diversos, e até incomparáveis esferas da vida social,


o que se mostra são programas políticos interferindo e modificando a vida
da comunidade e de seus moradores, nem sempre de forma positiva; no ju-
diciário, uma gama de procedimentos são quase sempre opostos às preten-
sões urgentes das comunidades. Estes são, no entanto, somente os aspectos
estruturais e explicadores da permanência das desigualdades que podem
ser percebidas, ainda que individualmente, como a miséria de todos. Dessa
maneira, naquela indicação de Bourdieu (2001), buscamos as séries causais
que estreitam às regiões mais deserdadas do mundo social aos lugares mais
centrais do Estado para levantar as possibilidades de refazer uma história
não desejada e para o bom funcionamento das instituições democráticas.

E: Qual era a discussão?


J:A discussão era o seguinte: esse senhor de idade vendia o pão na esquina
Capa daqui de casa e esse senhor de idade disse que eu tinha ficado devendo a
Sumário ele, ta entendendo, porque eu botava o pão e a gente descontava daque-
le dinheiro, e eu não paguei aquela promissória que eu tinha assinado. Eu
eLivre deixei de botar o pão para ele, e ele pegou a promissória e levou para o

115
Sociologia do direito

juiz quando eu cheguei lá eu não podia falar e eu fiquei meio aperriado na


hora lá, eu conversei expliquei, mas não fizeram o acordo, e foi mandado
eu calar a boca. Aí, quando eu saí de lá de dentro da sala eu disse, olhe, eu
vou saber se eu tenho direito, que eu não sou nenhuma criança e eu sei que
o senhor não agiu certo. E quando eu cheguei lá fora da sala eu procurei o
cartório e a moça disse tem um juiz lá dentro que manda neste que está na
audiência. (JOSÉ, Entrevista direta, agosto de 2004)

Conforme a fala do morador, percebem-se as dificuldades internas na


concepção e administração do poder judiciário para orientar os indivíduos
de comunidades populares, como aqueles do bairro da Torre. Como de-
monstra o trabalho de Telles (2001), a pobreza figura nos espaços públicos
como um atraso devido às nossas origens patrimoniais, ou como um fardo
pesado a ser “administrado” nestas instâncias racionalistas e burocráticas.
Este horizonte político se apresenta ainda segundo esta autora como aten-
tatório ao exercício da cidadania por estes atores, e das suas disposições ou
motivações, também institucionalmente despertadas, para a reivindicação
de direitos, que se expressam por conta disso, de forma difícil, nervosa ou
Capa reativa. A partir desse imaginário político, referente à questão social da po-
breza no Brasil moderno e que atravessa as ações do Estado, nas políticas
Sumário públicas, como igualmente as práticas da Justiça que estamos descrevendo,
eLivre importa-nos destacar a fala de um magistrado entrevistado por Bourdieu:

116
Sociologia do direito

“o social não tem nada de interessante; é chato e de segunda categoria, não


se trata de judicial nobre (...) O Judiciário é a redação dos atos judiciais (...)
são os problemas jurídicos (...) Mas quanto a acompanhar as pessoas em
suas vidas para saber o que se passa com elas e tentar ajudá-las, isso é...”
(BOURDIEU,2001)

Trata-se segundo Jessé Souza de um consenso transclassista, cuja pano


valorativo de fundo é europeu, a ser enfrentando na esfera pública. Pensan-
do com Bourdieu estas questões estruturais, procuramos levantar alguns
dos aspectos institucionais que colocam determinados atores como incapa-
citados para a vida pública. Entre estes aspectos, destaca-se a fala de uma
moradora da comunidade que se percebe como pouco sábia para a expo-
sição das questões significativas que instruiu o processo em que é autora; e
do qual comumente poderia ser ré, condição que pesa habitualmente sobre
os seus e que deveria ser evitada por ela. Ainda que apresentada de forma
individual, nós consideramos importante destacar os limites da fala com a
instituição, e o não reconhecimento ou consideração adequada das ques-
tões levadas pela moradora. A consequente desarticulação moral e a inibi-
Capa ção, ao invés da ampliação de direitos, são aspectos provocados ambigua-
Sumário mente pela própria Justiça aos atores moradores de contextos de pobreza
urbana; é esta a justiça institucional que tem reproduzido a condição ampla
eLivre da subcidadania entre nós (Souza, 2003).
117
Sociologia do direito

A dimensão do reconhecimento ou da consideração adequada dos pro-


blemas que integraria moralmente a identidade dos moradores fica a re-
boque ou totalmente excluída dos processos judiciais, uma vez que estes
moradores possuem limites para o equacionamento das causas – calculadas
segundo o valor monetário, e por reparação deste valor, cálculo este imposto
pela filtragem - do modo judicial de “reduzir a termo”, situação “de balcão”
onde se enquadram as demandas em categorias jurídicas e se encaminham
administrativamente as mesmas (Cardoso de Oliveira, 2004). Neste procedi-
mento corriqueiro, exclui-se da apreciação das causas uma série de deman-
das, preocupações, e aspectos das disputas que são significativas para as
partes. Esta justiça convive com uma hiperealidade, a mesma que inspirou
a literatura kafkiana, com o absurdo e a incompreensão provenientes das
ações dos funcionários do Estado na esfera da Justiça relativamente às clas-
ses populares. Senão, vejamos o que a entrevista direta com os moradores
acerca das questões relativas a justiça institucional nos revelam acerca do
cotidiano e como elas podem orientar uma justiça dos bairros, no bairro da
Torre e na cidade de João Pessoa:
Capa
E: Alguma vez aqui o senhor se sentiu desrespeitado nestes direitos?
Sumário J:Me senti uma vez só. Onde a gente mora ali a rua é estreita e o carro vinha
eLivre em alta velocidade inclusive este carro era de um cara de fora do vizinho da
segunda casa, aí chamou um palavrão com meu filho, aí eu perguntei se ele
118
Sociologia do direito

tinha chamado ele disse que não tinha chamado aí eu disse tudo bem, aí
ele puxou uma faca pra mim estava bêbado chamaram a polícia a mãe dele
é uma pessoa excelente, começou a passar mal, pediu pra policia não levar
ele, quando a polícia saiu ele me chamou eu sou um pai de família e que
eu não ia perder a minha cabeça com ele. Até hoje não falo com ele porque
não sou amigo, mas não tenho raiva dele fiquei chateado, a primeira vez
que aconteceu isto
E: O senhor fez o que para resolver na ocasião? Precisou da ajuda de al-
guém?
J: Olha, eu chamei ele pra conversar numa boa, mas ele saiu com uma faca
e ele não tava querendo me atender quando a policia chegou ele disse que
tava com uma faca e que ia me matar, e eu disse que não era pra levar ele
estar com uma arma branca é inafiançável, eu contei com a ajuda de Jesus
que é o pai criador, e é isso aí
E: O senhor precisou da Justiça, a instituição, em alguma circunstância?
J: Já precisei, porque a gente trabalhava nuns prédios aí e o engenheiro fez
uma divida lá no restaurante lá e ele não pagou aí o dono do restaurante de-
pois de um ano queriam me levar de cinco horas da manha preso, aí eu disse
que não estava em casa ai eu fui na curadoria do cidadão, primeiro eu fui
numa delegacia, a divida não era minha que era um engenheiro, eu disse ao
delegado que o senhor me desse a oportunidade de falar ai ele perguntou se
Capa eu podia pagar a divida aí eu disse que ia pagar de duas vezes aí na primei-
ra semana eu paguei eu atrasei quando chegou na segunda ele buzinou na
Sumário minha casa eu disse que era abuso de poder porque dívida não era para um
delegado estar cobrando fui na curadoria do cidadão chegando lá manda-
eLivre
ram uma intimação para o delegado e agi no meu direito foi abuso de poder
119
Sociologia do direito

E: Deixa eu entender, o delegado foi na sua casa e entrou com uma ação
judicial contra o senhor?
J: Não, não, não, o caba do restaurante era amigo do delegado ele mandou
a polícia ir lá em casa me buscar o pessoal tudo armado aí eu tava em casa
mas disseram que eu não tava. Aí eu troquei de roupa e fui na delegacia,
chegando lá fui no delegado, aí eu acatei o que ele disse para não ser preso,
tenho que dar comer aos meus filhos, aí foi e mandou a policia lá em casa
de novo e dessa vez eu não tava em casa não. Vá na curadoria, falei com
o curador mandei a intimação para lá. (JOÃO, Dados da Entrevista Direta,
agosto de 2004)

Nesta fala, uma série de denúncias é acionada pelo morador, relativamente


à ética das profissões jurídicas e relativamente ao leque de sua competência.
Por outro lado, são confidenciados pelo morador os valores que se relacionam
a sua vida, e que se revelam numa série turbulenta que marca a semicotidia-
nidade. Voltando às mesmas lições de Bourdieu (2001), a Justiça se inscre-
ve enquanto instituição desconsiderando o cotidiano de classes populares,
considerando apenas o ser genérico em sua abstração e desconsiderando a
semicotidianidade, isto é, das relações valorativas que se inscrevem intitucio-
Capa nalmente e que são despertadas pelas instituições. Dessa maneira, a Justiça
Sumário funciona contra si mesma, na forma de um duplo jogo, ou dupla-consciência,
coletivamente assumidos, e contrária à vocação oficial do Estado. Conforme
eLivre
destaca Lenoir (2001) num estudo de caso com um magistrado:
120
Sociologia do direito

Como se trata de um setor da atividade social com posição dominante na


ordem social, esta condição o faz converter seus problemas em problemas
gerais: “a crise da lei”; “o crescimento da insegurança. A utilização de de-
nominações tão genéricas leva a omitir que os fatores de manutenção da
ordem são bastante diversificados e que as crises ou dificuldades que co-
nhecem resultam de diferentes fatores...” (LENOIR, 2001, p. 268-269)

As consequências de uma semicotidianidade como esta que vem sen-


do despertada nas comunidades do bairro da Torre é a desmotivação dos
moradores, a ausência afirmativa da identidade e da autoestima, sobretu-
do entre os mais jovens. Neste sentido, entre a percepção de direitos e os
acessos à justiça se apresentaram aspectos diversos: no nível cognitivo, en-
contramos na esfera da justiça alguma confusão nas expressões, bastante
vagas ou pouco claras, acerca do próprio cotidiano, e do que seja os direitos
relativos às classes populares; e ainda que estes moradores mais jovens ao
refletirem sobre a esfera da justiça revelem o conhecimento das classes ou
gerações de direitos, no entanto sem correspondência ou sem “precisão”
para as vidas de cada um. Ao contrário, aqueles emancipados e que tiveram
Capa uma experiência judicial anterior, algumas vezes incentivados pela pesqui-
sadora, refletiram acerca de direitos com bastante precisão, e consciência de
Sumário
detalhes, todos eles reflexões e detalhes relativos a procedimentos, sejam
eLivre aqueles correlatos a um vínculo empregatício, ou originados por um serviço

121
Sociologia do direito

de saúde que lhe fora prestado de forma satisfatória, e pela privação da li-
berdade, a percepção do direito à liberdade.
Destaca-se o caso da moradora Luana, que sentiu “vergonha” depois de
vivenciar um processo judicial, ao agir em legítima defesa contra seu marido.
Esta fala de Luana destaca tanto a honra a ser defendida quanto a vergo-
nha nesta defesa. Entendemos que a moradora reivindica na explicação do
ocorrido em sua vida o “código de mulheres”, o que é diferente da fala atual
onde a normatividade se dá pela Lei Maria da Penha e onde a vergonha não
deveria existir em tese, uma vez que na lei se afirmam os direitos das mu-
lheres em contrapartida a violência doméstica sofrida no ambiente familiar
da casa. Dessa maneira, neste caso vivenciado pela moradora, revela-se ao
observador uma dupla normatividade, a normatividade do passado, que re-
media os efeitos do acontecido (o homicídio do próprio marido em legítima
defesa), e a normatividade que se antecipa evitando o acontecido, isto é, a
Lei Maria da Penha, que vem garantir uma série de direitos especiais dirigi-
dos às mulheres enquanto gênero no atendimento da justiça.
Nas populações estudadas, os acessos à justiça não parecem acontecer
Capa de forma individual, exceto nas questões de natureza penal que são indivi-
Sumário dualíssimas, recaindo exclusivamente sobre a pessoa que comete ato con-
trário à lei e ofende a moral coletiva. Não obstante, esta condenação mui-
eLivre tas vezes recaia sobre seus parentes, e lhes pese na sua própria identidade
122
Sociologia do direito

partilhada com o imputado. De maneira geral, nos processos de especiali-


dades jurídicas diversas, de natureza civil ou trabalhista, os acessos à justiça
apareceram sempre como uma situação ou experiência comum aos demais
companheiros de trabalho, amigos de vizinhança, familiares, uma forma ge-
neralista motivada em razão da propriedade, necessariamente desvinculada
do espaço da moradia e do cotidiano das partes.
Dentre os problemas que apontamos, a maior teia de compartilhamento
de questões jurídicas com que tivemos contato se referem aos atropelamen-
tos que acontecem nas vias de grande circulação e que cercam as áreas es-
tudadas. Estes atropelamentos aparecem como o principal problema, entre
outros aspectos que a localização da área e suas condições de precariedade
apresentam de risco à vida de seus moradores. Este é um aspecto abordado
por Jessé Souza (2003), na sua obra A Construção Social da Subcidadania,
onde o autor analisa a maneira com que se encaminha uma questão de atro-
pelamento da “subgente” por um cidadão de classe média numa sociedade
modernamente periférica como o Brasil, e o faz comparativamente aos paí-
ses europeus:
Capa
Sumário Se um brasileiro de classe média atropela um brasileiro pobre da “ralé”, as
chances de que a lei seja efetivamente aplicada nesse caso é, ao contrá-
eLivre rio, baixíssima. Isto não significa que as pessoas neste último caso, não se

123
Sociologia do direito

importem de alguma maneira com o ocorrido. O procedimento policial é


geralmente aberto e segue seu trâmite burocrático mas o resultado é, na
imensa maioria dos casos, simples absolvição ou penas dignas de mera
contravenção (SOUZA, 2003, p. 174).

De forma semelhante ao que aconteceu com a moradora, o procedimen-


to policial investigativo não segue a contento, colocando-nos a moradora a
maneira pela qual ocorreu a interpelação do delegado, que disse pensar que
a mesma não existia, quando ela, em condições muito traumáticas, depois
de sofrer tal acidente prestava a Justiça a sua queixa. Na verdade, como se
acumulam os casos de natureza semelhante, o observador afirma existir um
“consenso transclassista”, que aceita a condição de subcidadania, ao não
buscar contornar os aspectos práticos que envolvem a aplicação da lei e o
exercício profissional.
Dessa maneira, os moradores das áreas estudadas encontram dificulda-
des de reconhecimento dos problemas que o “habitus precário” (SOUZA,
2003) lhes colocam e, devido a um comportamento em rede que os desqua-
lifica a condição inferior na escala de estratificação social, modernamente
Capa
institucionalizado, são selecionados e colocados num grau inferior de cida-
Sumário dania, a subcidadania, pela mesma instituição que deveria lhes servir, mas
eLivre cuja administração é inconscientemente burocrática com relação às partes

124
Sociologia do direito

moradoras de comunidades urbanas (áreas ecológicas) envolvidas no pro-


cesso. Este é, segundo o mesmo autor, um fenômeno de massa em socie-
dades periféricas, onde a Justiça perdeu a identificação com a localidade.
Senão, vejamos:

E: Para o senhor, o que é a Justiça?


J: A justiça em nosso país é tudo, mas ao mesmo tempo deixa falhas, tem
muitas coisas que a justiça falha, em alguma coisa, deixa brecha para muitas
coisas erradas, sabe... deixa muito para a gente que não tem estudo não vê,
mas os advogados eles sabem aonde é que a justiça deixa aquela brecha
para os advogados entrar Isso aí aparece muita coisa errada, vejo gente, na
televisão, e-mail também, sempre na lei tem aquela brechazinha para acon-
tecer alguma coisa. (JOSÉ, Dados da Entrevista direta, agosto de 2004).

Assim, a ideia que fazem da Justiça, afirma-se pela negação da mesma,


passando-se por um cotidiano onde a normatividade é indireta, e a afirma-
ção da identidade não é necessariamente partilhada com a Justiça, e neste
espaço se formula uma carta de direitos sociais onde a economia e a renda
Capa é solidária. Esta resposta é equivalente ao tratamento igualmente negativo
que lhes fora dispensado na circunstância ou evento em que tiveram alguma
Sumário
interação exclusiva. Ao mesmo tempo, os moradores como seres genéricos,
eLivre mostram-se conscientes dos problemas dos fóruns, varas do trabalho, tribu-

125
Sociologia do direito

nais de justiça, identificados por magistrados, que são a lentidão geral dos
processos para aqueles que precisam contar com um trâmite burocrático
impessoal. Ao refletirem sobre seus problemas e do valor de suas vidas para
a sociedade em geral e para a Justiça, foi comum entre os moradores pas-
sarem a uma prece, chamando a justiça divina depois de terem conhecido a
Justiça (da sua terra ingrata). A divindade, sim, existe piedosa, e ameniza a
dor da injustiça para a gente pobre que eles são.
Segundo Koury, é através da emoção ou do sofrimento que se pode pen-
sar o cotidiano de homens pobres e o processo de exclusão social. O luto e as
representações da morte são resultantes da situação onde os indivíduos in-
vestigados se encontram e do mundo da imaginação e da espiritualidade ao
qual recorrem e para o qual, inclusive, retrocedem. Dessa forma, Koury analisa
dois casos: um grupo de mendigos que perdeu um dos seus elementos, uma
família que perdeu pai e marido para uma prisão brasileira. Nos dois casos, foi
observada a ausência da cidadania e do luto. Foram consideradas a exclusão
social em relação aos processos sociais da cidadania, no urbano mais cruel, e
as ações da violência e da prepotência institucional no trato dos homens co-
Capa muns. As narrativas de sofrimento compreenderam a complexidade da situ-
ação do processo de individualização no Brasil atual. Processo que referencia
Sumário
a ambivalência entre os costumes tradicionais e as sensibilidades emergen-
eLivre tes, mas principalmente a prática autoritária e de exclusão social que marcam

126
Sociologia do direito

a sociabilidade brasileira, na ordem das manifestações econômica, política e


ideológica. Estas configuram a ampliação da solidão e do não lugar dos ho-
mens comuns, pobres, ao retirar deles a possibilidade de exercício de vivência
do luto, deixando um rastro de tragédia e desilusão (KOURY, 2003).

Da Justiça Liberal à Justiça Comunitária e Solidária

Uma das questões que consideramos importante marcar para a transição


entre uma justiça da propriedade e uma justiça da solidariedade é o aspecto
da leitura individualista dos direitos, problematizada por Habermas (2002).
Por esta leitura, presente nas constituições modernas através dos conceitos
de direito subjetivo e da pessoa do direito enquanto indivíduo portador de
direitos, tem-se por mister assegurar na dimensão do direito a integridade
individual, ainda que esta dependa das relações de reconhecimento mútuo
numa dimensão moral.
Segundo Habermas há uma arena política e o âmbito do tribunal; naquela
Capa se discute acerca da distribuição dos bens coletivos; neste, acerca de direitos
individuais. No entanto se quer exercer o poder político, segundo Habermas,
Sumário faz-se necessário entender sua codificação: entender o processamento ins-
eLivre titucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação dos

127
Sociologia do direito

respectivos interesses, regrada a procedimentos claros. Habermas está se


perguntando se a compreensão dos direitos subjetivos, de caráter liberal é
operante no sentindo de reconhecer o status e sobrevivência de movimen-
tos pautados segundo tradições culturais marginalizadas e a despeito de
uma cultura e uma forma de vida historicamente predominantes.
São contraditórias ou conciliáveis a perspectiva individualista e as de-
mandas coletivas? Se se respeita o indivíduo em particular, ou o coletivo;
esta questão pode aparecer de forma concorrente e, nesse caso, é preciso
decidir sobre a precedência de um ou do outro e, por qualquer um, deve-se
considerar o princípio do tratamento equitativo. Segundo Habermas (2002),
não se faz necessária nenhuma transformação radical ou inventar novos di-
reitos estranhos ao sistema; se fizermos a concatenação interna entre o Es-
tado de direito e a democracia, o enfoque seletivo (que define que direitos
cabem a quem, ou seja, os direitos são para alguns que possuem uma auto-
nomia juridicamente apoiada, estando o Judiciário à disposição para o uso e
realização de projetos de vida pessoal) com que o direito faz sua leitura da
realidade se corrigiria ao atribuirmos aos portadores de direitos subjetivos
Capa uma identidade concebida de maneira intersubjetiva.
Sumário Para Habermas na transformação paradigmática do direito é importante
assegurar a concepção procedimental do mesmo, articulado ao processo
eLivre democrático para assegurar a um só tempo a autonomia privada e a pública;
128
Sociologia do direito

os direitos subjetivos, cuja função é uma organização particular e autônoma


da própria vida, não podem ser formulados de maneira adequada sem que
os próprios atingidos possam articular e fundamentar em discussões pú-
blicas, os aspectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual. “É
apenas pari passu com a ativação de sua autonomia enquanto cidadãos do
Estado que se pode assegurar, a cidadãos de direitos iguais, sua autonomia
privada” (HABERMAS, 2002, p. 237).
Ainda acerca da leitura individualista, Chanial (2004) chama atenção para a
relevância desta discussão para aqueles que não discutem esta lógica, e uma
vez que não se beneficiam de direitos. Chanial acerta que, uma vez satisfeito
o indivíduo de direitos por uma leitura individualista, tendo-os afirmados e re-
conhecidos, mais o mesmo se isola em sua esfera privada, o que desfavorece
a coisa pública. É fácil perceber as consequências de tal processo. A liberdade
adquirida poderá se revelar ilusória, à medida que uma sociedade sem cida-
dãos é uma sociedade que ameaça ser invadida por novos poderes, novos
mestres, e novas servidões, diante desta sociedade nos encontramos funda-
mentalmente desarticulados. Uma sociedade sem cidadãos depende sempre
Capa do Estado e de suas burocracias, sendo sempre mais vulnerável à hegemonia
do mercado e dos interesses econômicos e financeiros (CHANIAL, 2004, p. 59)
Sumário
Por esta constatação, ainda segundo Chanial, não se pode pensar que há
eLivre uma articulação automática e necessária entre direitos e cidadania. Como o
129
Sociologia do direito

sistema de direitos não é auto-suficiente, para acessá-lo se intensificam os


processos de luta que caracterizam uma cidadania ativa. Como a bandeira
de luta das associações é “todos os direitos para todos”, esta possui o sen-
tido, apontado por Chanial, de assegurar a ampliação e universalidade dos
direitos em face da mundialização neoliberal.
Chanial discute esta divisibilidade que comumente fazemos entre os di-
reitos civis, políticos e sociais; uma vez que não se trata de uma conquista
sucessiva e cumulativa, de uma cronologia impecável e universal. Para ele,
o que se sustenta com estas separações são hierarquizações mantidas por
cada tradição política na história das democracias modernas, fazendo-se
necessária a rearticulação das três tradições, liberalismo político, republi-
canismo e social democracia numa síntese mais larga, e só derivadamente
justificadora da legitimidade dos direitos sociais.
Dessa maneira, para os liberais, os direitos sociais são justificados por-
que reforçam as liberdades individuais, constituindo-se como meios de au-
tonomia privada, inscrevendo estes direitos no registro diverso da caridade
e dependência, do paternalismo e compaixão. Para os republicanos, os di-
Capa reitos sociais reforçariam a liberdade política, constituindo-se como meios
Sumário de autonomia pública, para o aprofundamento da cidadania política ativa.
A síntese liberal-republicana seria garantidora da liberdade do indivíduo e
eLivre do cidadão, resolvendo o paradoxo de nossa democracia, tornando possível
130
Sociologia do direito

a coexistência da liberdade e da igualdade. Indicadores de uma cidadania,


medida no controle do próprio destino dentro do grupo. E arremata Chanial
(p.64), “os direitos de cidadania designam então poderes, prerrogativas ins-
titucionalmente reconhecidas, que reforçam esta possibilidade de controle”.
No entanto, a radicalização da democracia não é suficiente face o advento
de novos mestres e de novas servidões no contexto da globalização. Para
Chanial, uma sociedade livre de dominação parece inseparável da exigência
de solidariedade e reciprocidade.

Resumidamente, desde o momento em que não se acredita mais na ino-


cência da ciência, nos benefícios naturais da economia e do mercado, no
papel por essência salvador do Estado, não cabe aos cidadãos a função de
desempenhar este papel crítico, de assegurar o desdobramento desta outra
força de regulação social que constitui a solidariedade? (CHANIAL, 2004,
p.65).

Por esta leitura política ou perspectiva dos direitos, há um desafio con-


corrente de se democratizar os três polos, Estado, mercado, favorecendo a
Capa sociedade civil, no reforço dos compromissos e das solidariedades voluntá-
Sumário rias, quebrando quadros hierárquicos tradicionais de dominação e retiran-
do as instituições políticas de uma domesticação mercantil. Sendo a vida
eLivre associativa na sociedade civil marcada pela desigualdade, fragmentação e
131
Sociologia do direito

descontinuidade, aqui se constitui sua dependência do reconhecimento re-


alizado pelo Estado. Vejamos o que diz o relato de morador, relativamente à
noção entre democracia, direito, dádiva, e economia; e finalmente, se não é
possível pensar a partir deste relato sobre uma economia moral que sustente
a noção de direito; e que oriente a Justiça. E se esta relação entre a economia
moral e direito social não guarda e assegura uma relação de conquista e de
dádiva:

E: O senhor acha que foi dado este direito? E se não tem, porque não foi
dado?
C: Esse direito foi dado, eu tinha todo o direito, agora não recebi, é porque
não recebi, hoje em dia quem vale é quem tem né, quem tem, hoje em dia
um homem tem muito advogado e pronto, e ta o advogado em cima, fala-
ram para ele vender para pagar, ele vendeu um parte pagou o pessoal e o
resto...
(CRISTOVÃO, Dados da Entrevista Direta, agosto de 2004)

Considerações
Capa
Sumário O trabalho de iniciação científica acerca dos estudos urbanos e seus pro-
blemas nos fez voltar os olhos para o nosso lugar familiar, mas nem por isso
eLivre conhecido, como também acerca das desigualdades que sustentam as dis-
132
Sociologia do direito

tâncias sociais. As distâncias não terminam neste aspecto interpessoal. Nes-


te trabalho, além do distanciamento social, de várias formas organizado e
estabelecido, consideramos também o distanciamento científico, ou aquela
recomendação necessária ao pesquisador das ciências humanas, que asse-
gura a objetividade e cientificidade às suas pesquisas. Achamos difícil, para
não dizer insustentável, a manutenção destas distâncias, como exigir o dis-
tanciamento, nas instâncias sociais e científicas, de espaços familiares, onde
certamente temos experiências comuns partilháveis?
Este também é o entendimento de uma pesquisa das ciências sociais e
que esteve vinculada a um projeto extencionista, ou seja, com o compro-
metimento de seus resultados com os atores das comunidades na ação uni-
versitária. Pensamos ser positiva a criação da uma justiça no bairro da Torre,
considerando o privilégio do lugar e das premissas populares. Ao lado da
ação indissociável, de pesquisa e de extensão, deve-se orientar a conquista
pelos próprios moradores de sua condição cidadã, através da compreensão
e reivindicação pelos mesmos da efetivação de direitos humanos fundamen-
tais, livre de turbações e violências. Esta conquista, entre outras realizações,
Capa materializa a igualdade de participação democrática, formalmente assegu-
rada no caderno de direito moderno, como na lei positiva.
Sumário
Desta forma, embora trabalhando objetivamente, sabemos que carre-
eLivre gamos valores. E nossos esforços neste trabalho consistem em colabo-
133
Sociologia do direito

rar criticamente para que estes moradores, conquistem democraticamente


os direitos e a cidadania que a nossa cultura política historicamente lhes
destituiu. Desde que foi iniciado este trabalho e, por semelhança com os
sujeitos que falam nesta pesquisa, reportamo-nos a literatura moderna co-
nhecida de todos. Na verdade um poema8, levado a cabo por um sujeito
anônimo, que se apresenta como Severino, e que passa a contar de onde
veio, e para onde vai, ou de sua viagem em busca de novas paragens. Este
sujeito sai do seu lugar de nascimento, em busca de trabalho e de vida,
e por onde passa até chegar a cidade, vai retratando a condição de seus
iguais.
Ainda pela coincidência de nomes, e muito mais por suas trajetórias
de “morte-vida”, estes moradores, migrantes em seu próprio estado, con-
tam sobre os lugares por onde passaram de onde vieram, onde estão, e o
que conseguiram recolher - estes sujeitos moradores da cidade procura-
ram vencer nestas andanças, as desigualdades. No caminho se deparam
com um cotidiano diferente, mas de semelhantes negações. Nunca foram
abandonados por Deus nas dificuldades de toda vida, pelo contrário, Deus
Capa sempre lhes valeu. Apesar da vida, que é morte, e onde há esperança de
ser vida, conforme nos conta o auto de natal pernambucano, de João Ca-
Sumário
bral de Melo Neto. Entre aspectos do cotidiano e dos direitos humanos
eLivre
8 MELO NETO, João Cabral (1979), “Morte e Vida Severina: auto de natal pernambucano”

134
Sociologia do direito

que nos foram revelados por estes moradores não diferem da literatura de
tanta ciência que se aproxima em muito da realidade da justiça que busca-
mos aqui significar.
Como nos indicou José de Souza Martins, o fortalecimento dessa imagem de
vítima e de incapaz desses indivíduos, feita por empresários, missionários, fun-
cionários do Estado, e cientistas sociais, “empobrece a todos em padecimentos
desnecessários, privando a todos das possibilidades históricas de renovação e
transformação da vida”. Ao cabo desta iniciação científica, queremos nos referir
principalmente à postura do pesquisador em face de uma temática onde tudo
parece já ter sido dito e explorado. E mesmo assim, as iniquidades figuram como
dados e perduram, justificando políticas pontuais em todos os níveis. Restou-
-nos, desde a escolha de teorias, até a investigação empírica, buscar o enfren-
tamento científico e alternativo das tragédias que sabemos ser cotidianas em
sociedades periféricas, como a brasileira. Numa sociologia política, buscamos
uma reflexão corajosa e transformadora. Esta reflexão, aprendemos, costuma
ser cunhada de ingênua e utópica, como se diz do preceito constitucional que
sinaliza para a “erradicação da pobreza”. No entanto, há um jogo, se podemos
Capa chamar assim sem o perigo da superficialidade, há um comportamento institu-
cionalizado, em redes invisíveis e objetivas a desqualificar indivíduos e grupos
Sumário
sociais, que deve ser revertido ou modificado, e isto começa no momento mes-
eLivre mo em que na nossa ação vamos retirando suas obscuridades e seus véus.

135
Sociologia do direito

Queremos ainda pontuar este trabalho de campo com questões relati-


vas à orientação teórica e metodológica. Ficou demonstrado na história que
quando o Estado não alcança o cotidiano é a religião e a espiritualidade que
justificam a ação humana. É o cristianismo que justifica, tanto na explicação
por parte de moradores, quanto na explicação por parte de altos funcio-
nários do Estado. Marx continua certo ao destacar que a religião é um dos
meios do Estado, que a ela se conforma ou é aceita como sistema da (des)
organização social. Por sua vez, o homem é um refugo humano, não sendo
ainda considerado um real ser genérico, devendo ser restituído do mundo
e das relações humanas. Não obstante, concordamos com Marx quando ele
afirma que o homem atua politicamente, mesmo quando, religioso, pede
direitos civis. Por outro lado, consideramos injusto utilizar exclusivamente as
imagens do outro carente para inscrevê-lo em uma rede de solidariedade,
devendo no nosso entendimento ser levado em consideração o lado ativo e
participativo do vínculo social, de forma responsável.
Passados dez anos da teoria da dádiva no Brasil, valores coletivos foram
construídos, ao refletir sobre a dominação hierárquica e o problema da igual-
Capa dade diante das políticas instrumentalmente inclusivas, esta teoria continua
dominante elaborando questões em torno da liberdade, da fraternidade e
Sumário
da conciliação. Não obstante, este momento seja de separação relacional
eLivre e divisão social, afastando o cumprimento e a conciliação como forma de

136
Sociologia do direito

permanência e sociabilidade, nas comunidades, no bairro, e em João Pessoa,


verifica-se uma centralização da política de esquerda devido a problemas
não resolvidos na esfera relacional e um processo lento de descolonização
em relação ao país e ao mundo, estas questões se referem à formação da
parentela, e ao gênero. Mas, se este quadro se parece transitório, os proble-
mas que ele revela parecem resolvidos com o cumprimento das obrigações
cotidianas com a parentela (solidariedade) e pelo reconhecimento da afilia-
ção ou da cidadania através de uma renda, ele tem aprofundado, por outro
lado, uma classe pobre, tornando esta ainda mais pobre pela tolerância da
direita com as contradições relativas ao desempenho do poder.
Quando aliamos este “desempenho da direita” ao cenário da história re-
cente de privatizações sociais promovidas pelo neoliberalismo o quadro se
torna ainda mais alarmante, uma vez que as classes sociais mais pobres foram
alijadas deste “processo de reforma econômica e social”, pela devastação que
a privatização provocou para o exercício da cidadania. Este processo sujeitou
as classes populares ao domínio de um mercado concorrendo com a econo-
mia pública com maior agressividade. Estas questões deixaram a esquerda
Capa muito próxima a direita devido a imposições de existência dos mercados,
sobretudo relativas às concessões públicas. Dessa maneira, pensamos que
Sumário
existe uma fragilização da esquerda ao implantar projetos de emancipação
eLivre ecológica e social em áreas de risco como as que estudamos. Na Paraíba, a

137
Sociologia do direito

esquerda dependeria da orientação regionalista do estado vizinho, Pernam-


buco, uma das estruturas hierárquicas mais excludentes - não obstante a
cidade do Recife tenha se emancipado através da cultura do carnaval, dis-
tâncias sociais alarmantes se mantêm intocadas. A exposição política assusta
as classes sociais de baixa renda, que a testemunham silenciosamente, uma
gama de preconceitos são elencados. Embora a universidade não tenha sido
privatizada, ela sofre com os influxos deste processo neoliberal, devendo ser
avaliada não apenas a dádiva entre nós, mas a incorporação da lógica da
dádiva pelo pensamento liberal.
Percebemos que a justiça social para os moradores representa um mo-
mento de elaboração da face, mas que os problemas do cotidiano e as con-
tradições que a justiça engendra no seu atendimento, com relação a este
cotidiano, na fase procedimental são motivos de perda da face enquanto
uma construção de valores. Vimos que o sistema de direito encontra dificul-
dade na particularização nacional, devido ao seu diálogo interativo crítico e
inquisitivo, que este sistema repousa sobre um conjunto seletivo e criterioso
que tem a comunidade familiar em primeira instância e a divisão do trabalho
Capa em segunda instância. Muitas vezes o desmembramento familiar ocorre pela
divisão do trabalho e a justiça acorda sobre este desmembramento. Pensa-
Sumário
mos ao contrário que o sistema de direito deverá se fundar numa relação
eLivre de solidariedade, de doação, e de associação, ao invés de uma relação de

138
Sociologia do direito

cálculo e de lucro. Praticando a regra da reciprocidade e da solidariedade


orgânica o reconhecimento social se torna a orientação limite do sistema de
direito. A relação de trabalho por sua vez não permite a livre expressão, mas
a expressão dentro dos limites normativos, isto é, dentro dos limites norma-
tivos se expressa a justiça nas relações de trabalho. Que este trabalho não
cuida de um trabalho de natureza social. Esta expressão daquilo que é justo
dizer não abarca o trabalho social, cuja finalidade é a organização local, o
equacionamento familiar e o reconhecimento social. O sistema de direito no
novo paradigma é avaliado segundo a densidade relacional e dos vínculos
constituídos, onde o que eu recebo equivale ao que eu tenho direito.
O sistema de direito se redefine segundo as políticas sociais que estão
sendo implementadas para as classes populares como a renda de cidadania.
Esta renda promove uma crítica do trabalho que o desvincula da questão
do lucro, assim como desvincula a justiça do reconhecimento e anuência da
exploração capitalista. A questão da renda de cidadania não é incompatível
com outras rendas, e o lucro não é o critério inspirador desta política. A ren-
da de cidadania promove a dádiva, a anti-troca, a gratuidade e assimetria e
Capa atravessa a questão do trabalho formal. Caillé afirma é uma renda para as-
sociação, isto é, no nosso entendimento, uma renda para constituir direitos
Sumário
fundamentais e sociais.
eLivre

139
Sociologia do direito

Não apenas as questões trabalhistas, mas as questões penais clássicas,


assim como as controvérsias do cotidiano são rituais de iniciação a lingua-
gem dos direitos e da cidadania. Que estes rituais revelam a luta de classes
na fase procedimental – inclusiva - que os sujeitos no processo como o juiz,
o delegado e morador são assegurados pelos princípios republicanos, mas
que entre estes não há necessariamente uma identidade partilhada. Que os
procedimentos inclusivos são burocratizados e que nesta burocratização a
justiça não pratica os rituais sociais como o luto e uma vez que o luto é um
ritual de assimilação de novos direitos e obrigações, e que esta condição é
negligenciada pela Justiça, na desconsideração pelo procedimento do coti-
diano de classes populares.
É a partir dos direitos subjetivos que se reclama a coletividade, por uma
identidade que é concebida de maneira intersubjetiva, e que se deve aliar
a teoria do direito a política de reconhecimento. Segundo Habermas, são
nas instâncias políticas e no momento mesmo da realização dos seus pro-
cedimentos que se exerce a cidadania e que de forma autônoma ocorre a
subjetivação de direitos. A Justiça consiste com efeito na instituição política
Capa de reconhecimento operando a partir da história dos conflitos e das recla-
mações sociais.
Sumário
Finalmente, concluímos que a renda de cidadania deve ser avaliada para
eLivre o julgamento de direitos nas comunidades, concluímos que se faz necessá-
140
Sociologia do direito

rio um juizado especial no bairro a fim de conciliar as controvérsias sociais e


sociológicas, sobre o conflito de classes, a genealogia das famílias e sobre a
divisão do trabalho. Dessa maneira, acreditamos que estas medidas vão de
encontro no sentido de reverter o crescente processo de privatização social,
onde as classes sociais, sobretudo as classes populares não participam da
elaboração do direito, mas que se conta com a tutela do Estado nas comu-
nidades em risco.
É preciso enfim várias etnografias para dar conta de problemas no que
se refere aos nativos e às questões do humano-genérico, tais como justiça,
trabalho e renda. Em sede das questões teórico-metodológicas, no que se
refere ao humano genérico, é preciso que as etnografias avaliem quem es-
tava dizendo o que, os autores do pensamento, os sentidos que circulam
informalmente, e inclusive o que circula entre nós em termos de sentidos
formais e de sentidos institucionais. Estas nomeações de sentidos não de-
vem, contudo, oporem-se umas as outras ou se sobreporem, elas devem ser
escutadas e compreendidas de forma autêntica, mas, sobretudo humana.
Uma pesquisa com base nestes pressupostos é capaz de dar conta do que é
Capa meramente discursivo, dos problemas eventuais, e envolve aspectos relati-
vos à comunicação e a desinformação técnica e institucional.
Sumário
A justiça no bairro deverá subescrever as técnicas e práticas corporais, o
eLivre entretenimento, e ainda os confrontos entre gênero e geração, todas estas
141
Sociologia do direito

envolvem as práticas de justiça social nas comunidades do bairro da Torre.


É preciso defender, construir e revitalizar o espaço das comunidades como
uma forma de defender e assegurar o assentamento, a propriedade e a casa
como construção de valores. Esta prática da justiça com que tivemos conta-
to envolve a defesa das edificações, sejam edificações urbanas residenciais,
sejam comerciais, sejam religiosas ou de natureza educacional. O estudo das
comunidades como a que estudamos diferem em muito do estudo dos con-
domínios fechados, onde existe, sobretudo, uma organização formal e ins-
titucional, para então existir uma organização de valores. As comunidades
envolvem a espontaneidade e a informalidade na construção dos valores
da casa, envolvem a improvisação e o entretenimento. Ambas, no entanto,
possuem um cotidiano e uma identidade, a pluralidade das inserções, e a
convivência pacífica, não obstante o distanciamento das classes sociais.
Os administradores da justiça devem ser justos com o período de assen-
tamento e de apropriação que somam em torno de vinte a trinta anos cada
um. Nestes períodos circulam a história, a memória, a cultura e a identidade,
os rendimentos, as moradias, os movimentos e as instituições, assim como
Capa os aspectos relativos ao lazer e ao entretenimento, à individualização dos
núcleos, enfim, todos estes aspectos que compõem a etnografia. A partir
Sumário
destas é que se avaliam a recepção, avaliam-se as posturas e os comporta-
eLivre mentos em reativos e positivos ou discriminatórios; estes aspectos devem

142
Sociologia do direito

ser considerados em maior grau do que as disciplinas que conformam os


comportamentos.
Não obstante a importância das disciplinas é preciso, em se tratando da
apropriação dos espaços, avaliar o que é referenciado, o reconhecimento das
historias e das ideias que circulam no estudo do urbano, da cidade, do bairro
e das comunidades significativas, da associação e de seus comitês-gestores;
estes últimos, mais do que o interacionismo e as redes que os envolvem, são
representativos para a universidade e para tradição como forma de sociabi-
lidade. A Justiça, por sua vez, deverá revisitar a tradição regionalista e a raiz
rural de nossa cidadania, no sentido de desafiar o assistencialismo, esta rela-
ção que é fruto de sua ausência positiva, mas que também se reproduziu por
sua prática impessoal. Ao retirar os obstáculos para a ampliação de direitos,
assegurar o princípio da reciprocidade nas relações sociais, desafiando o as-
sistencialismo, a Justiça toma para si as questões da sociedade, e a Justiça se
concretiza localmente, e se pratica, com reflexividade, e alteridade.

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148
Sociologia do direito

PARTE III:
PRÁTICAS JUDICIÁRIAS E JUSTIÇA DO CONSUMIDOR

Capa
Sumário
eLivre

149
Sociologia do direito

I
JULGAR E CONCILIAR:
PRÁTICAS FORMATIVAS DA JUSTIÇA PÚBLICA

Julgar e Conciliar:
as práticas judiciárias numa perspectiva comparativa

Segundo Ortner (1993), os teóricos da prática compartilham a visão de


que o“sistema” é “determinante” sobre a ação e a forma dos acontecimen-
tos: “expresa másbien la urgente necesidad de entender de donde viene “el
sistema” – como es producidoy reproducido -, y como cambió em el pasado
o como será su cambio em el futuro”(ORTNER, 1993, p 41). A prática tem
para a autora a forma da ação humana - onde hápessoas envolvidas, indi-
víduos históricos efetivos ou tipos sociais, tendo dessa maneira implicações
Capa políticas intencionais ou não intencionais (ORTNER, 1993).
Sumário Neste sentido, Foucault ofereceu uma contribuição importante ao estu-
do do direito, entendendo as formas jurídicas enquanto uma prática puni-
eLivre tiva, momento de regulação da ação e dos costumes pelas instituições, de
150
Sociologia do direito

influência violenta e assimétrica sobre a liberdade de movimento de outros


participantes da interação (Habermas, 2002).Na Idade Média, o inquérito
aparece como pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica, uma “in-
venção” em sua pequenez meticulosa e inconfessável que, segundo Foucault
(1996), tornou-se enciclopédica.
A inquisição consiste na lembrança da verdade utilizada pelo direito gre-
go e do qual se produziu um saber e um governo - com técnicas complexas
de determinar exatamente quem fez o quê, em que condições e momento,
num jogo de prova e de analítica da palavra, da frase, ou de uma narrativa.
Através das práticas judiciárias, o Estado mantém o controle da sociedade na
trama de poderes disciplinares, pautando-setanto por um saber elaborado
sobre os indivíduos, quanto um saber elaborado pelos próprios, a partir de
suas vivências acumuladas e segundo novas normas, o que também pode se
constituir em nova forma de controle (FOUCAULT, 1996).
Por esta história do direito ocidental são fundamentais as propriedades e
bens que colocam os indivíduos em disputa, sendo a justiça a instituição que
ratifica a verdade do mais forte, influenciando na organização da economia,
Capa da propriedade ou do sistema de riqueza e de estabelecimento do poder. O
Sumário controle dos litígios pelos poderosos foi importante uma vez que as ações
e litígios judiciários consistiam numa maneira de fazer circular os bens, nas
eLivre monarquias nascentes, através de aplicação de multas e confiscações.
151
Sociologia do direito

Segundo Foucault (1996), as principais mudanças neste período são: a)


os indivíduos não resolvem seu litígio, mas deverão se submeter a um poder
exterior, judiciário e político; b) surge a figura do procurador como represen-
tante do poder lesado, permitindo que o poder político se aposse do poder
judiciário; c) a infração uma submissão sistemática a teoria marxista per si,
há na verdade uma fusão entre as concepções marxistas e weberianas (ORT-
NER, 1993).
Ainda segundo Foucault, o inquérito administrativo consiste numa téc-
nica de perguntas, reatualizando coisas acontecidas, tornando-as sensíveis,
imediatas, verdadeiras geralmente numa reunião livre de notáveis, sábios etc.,
um ritual regular, no qual o procurador não se colocaria em pé de igualdade
com o litigante, não se valeria dos meios belicosos, nem poria em risco nos
litígios a sua vida. O inquérito foi também utilizado pela igreja na gestão de
seus bens, e impregnado de categorias religiosas, de dano, mas também de
infração, falta, pecado e culpabilidade moral. Neste sistema de conhecimento
e controle, os populares são expiatórios de questões de ordem moral, numa
justiça onde a ideia de público e de participação na lide perdeu seu espaço,
Capa sendo a tendência do poder judiciário ser confiscado dos indivíduos para o
Estado, reduzindo por outro lado as formas de composição negociadas.
Sumário
No sistema inquisitorial, o réu enquanto sujeito do conflito se torna in-
eLivre visível, “intocável”, importando ao juiz averiguar aquilo que está escrito - os
152
Sociologia do direito

fatos no inquérito e investigação policial, presumidos verdadeiros, quando


há conformação sem questionamento autorizado, num ritual sistemático de
perguntas exclusivas que devem suscitar respostas certas e a sujeição do ou-
tro. Segundo Kant de Lima (1991, p. 27):“outra característica do nosso pro-
cesso penal é que ele mantém procedimentos de caráter inquisitorial (...) o
caráter inquisitorial do processo está presente na significativa interpretação
do silêncio do réu”. Para o autor, esta forma de resolução de conflitos nos é
imposta publicamente através de um processo de produção da verdade em
fórmulas tradicionais que encontram sua explicitação mais clara nos siste-
mas jurídicos processuais, no conjunto de princípios e regras que esclarecem
como se chega a uma verdade jurídica ou a uma certeza jurídica, capaz de
informar uma decisão legítima que resolva o conflito.
Nos interrogatórios de uma justiça comum, este procedimento é tipica-
mente penal, mas utilizado com frequência no âmbito civilista, sendo recor-
rente a autuação de infração na relação consumerista de bens essenciais,
no caso de energia elétrica. Na passagem do sistema inquisitorial para ao
sistema de acordos ou sistema arbitral, a “Resposta de Jó” parece ser emble-
Capa mática no questionamento da justiça que se quer, constituindo-se enquan-
to uma oração queixosa, a reclamar inocência aos ouvidos de Deus, que é
Sumário
ao mesmo tempo juiz e promotor, imputando a Jó acusações e objeções,
eLivre tomando-o por inimigo. Jó vislumbra a passagem desse sistema onde não

153
Sociologia do direito

se pode comparecer com razão diante de Deus, para o sistema arbitral, que
realiza uma justiça mútua sobre as cabeças: Ele não é um humano como eu,
para eu responder e juntos comparecermos em juízo. Se ao menos houvesse
um árbitro entrenós, para pôr sua mão sobre os dois! Então eu falaria sem o
temer, mas não é assim o que se passa comigo (Jó, 9, 32-35).
Com efeito, remonta a este período o sistema arbitral ou a prática de for-
mular acordos comuns no desenvolvimento do mercado, nas suas primeiras
formas corporativas, isto é, pertinentes às relações regidas pela economia,
derivadas da liberdade de contratar. Segundo Weber (1999) há relações ele-
mentares entre o direito e a economia, tendo o direito moderno se especia-
lizado justamente ao conceder autorizações que servem ao desenvolvimen-
to da ordem econômica, pondo-se ao serviço de seus interesses, baseando
suas expectativas em acordos50. Para o autor de “Economia e Sociedade”, a
ideia de acordo jurídico corresponde a troca de mercado:

A troca, sob o domínio de uma ordem jurídica, é um “acordo jurídico”: aqui-


sição, cessão, renúncia, cumprimento de pretensões jurídicas. Com toda a
Capa ampliação do mercado, estas aumentam diversificam-se. Mas em nenhuma
ordem jurídica a liberdade de contrato é de tal modo ilimitada que o direito
Sumário ponha a disposição de sua garantia coativa para acordos de qualquer con-
teúdo... (Weber,1999, p. 15-6)
eLivre

154
Sociologia do direito

Todo contra poder move-se no horizonte de poder combatido por ele


(HABERMAS, 2004). Por outro lado, o acordo livre diminui sua importância
até o seu desaparecimento na medida em que se cuida de direito público
e processual, do direito familiar e de sucessão - direitos que foram se ins-
crevendo pela sua indisponibilidade, distanciando-se do livre arbítrio. Iden-
tifica-se uma afinidade eletiva do direito moderno com o desenvolvimento
econômico e político na criação e manutenção dos mercados e na transfor-
mação conscientemente desejada da atividade econômica, segundo uma
política democrático liberal (e instrumentalismo legal):

Como uma rede de eletricidade ou um sistema de transportes, direito mo-


derno é visto na concepção nuclear (“core conception”) como um pré-re-
quisito funcional de uma economia industrial (...) direito moderno é o ins-
trumento através do qual tais metas desenvolvimentistas são traduzidas em
normas específicas e passíveis de ser postas em vigor. Quanto mais efeti-
vamente estas normas definem e canalizam o comportamento, tanto mais,
provavelmente, o crescimento econômico ocorrerá (TRUBEK, 1999, p.220)

Capa Enquanto diferenciação e ruptura da prática inquisitorial, na perspectiva


Sumário habermasiana, a conciliação consiste na forma jurídica generalista, onde se
realiza a integração social através da linguagem, na prática que “vivifica” a
eLivre relação dialógica, o entendimento intersubjetivo e os vínculos meramente
155
Sociologia do direito

intuitivos do sujeito com seu mundo circundante (HABERMAS, 2002). Com-


parando estas práticas de poder, na prática inquisitiva o sujeito está voltado
para si monologicamente, com razão centrada, transformado em objeto um
do outro (HABERMAS, 2002).De forma central a prática da conciliação se de-
fine na modernidade segundo a racionalidade comunicativa, um tipo de ra-
zão que guarda o potencial emancipatório na modernidade, colocando em
evidência além das questões enfeixadas no poder, questões interpretativas
(hermenêuticas) e interacionistas dos atores sociais, reatualizando problemas
contextuais em parte determinados pelo avanço da economia capitalista, e a
dimensão do político, na dinâmica republicana em sua forte carga princípio
lógica – da liberdade, igualdade, e dignidade; além de questões em torno
da dominação burocrática, segundo princípios da competência e eficiência;
mas também na economia do dom, na prática do altruísmo e do amor.
Nesse sentido, a figura do mediador/conciliador é diferente do “procu-
rador”, na medida em que participa da comunidade dos litigantes, tendo
vidas publicamente partilhadas, em interação cooperativa com usuários nas
sessões de audiência lançam/ouvem propostas, registram/pactuam acordos
Capa num sentimento partilhado de justiça mútua, para si e para o outro, ou do
que Laniado (2001) chama de uma experiência de reciprocidade pública.
Sumário
Para Cardoso de Oliveira (2005), a reciprocidade é fundamental na compre-
eLivre ensão da comunicação entre atores e grupos e das trocas substantivas de

156
Sociologia do direito

palavras, e gestos simbólicos. No espaço público e na prática conciliadora


se exercita o direito com precedência do sistema de trocas de bens sociais,
considerando na fixação da justiça a circulação de bens e de valores no pla-
no material-simbólico.
Esta prática permite, portanto, que o sistema de reciprocidade atravesse
de maneira geral as instituições e tribunais, tornando permeável de forma
direta e não representada a participação popular no exercício do direito legal
e o sistema procedimental de direito secularmente estabelecido. Conforme
aponta Alves (2003), este modelo de justiça abre espaço às relações pesso-
ais nos interstícios do Estado (ALVES, 2003) - da pessoalidade que comunga
com o outro tanto aspectos da vida privada quanto um significado público.
Dessa maneira, aspectos subjetivos, e a expressão dos sentimentos são
importantes de serem observados na tese de Cardoso de Oliveira (2004).
É frequente observar no sistema de justiça um ir e vir ou as superposições
de práticas, que se interpenetram e se diferenciam de forma complexa. Por
exemplo, se ainda adotamos no sistema especial as provas, e a intimação, e
as testemunhas no processo inquisitorial, as diferenças entre práticas saltam
Capa aos olhos. Enquanto a
Sumário inquisição consiste numa técnica instrumental, com uma tecnologia e ar-
quitetura desenvolvida para o fim do controle e da disciplina corporal, calcu-
eLivre
lada de forma utilitária na gestão dos bens, na “intrusão arbitrária”, manteria
157
Sociologia do direito

cegamente as desigualdades e o status quo entre o inquisidor e o interroga-


do com diferente capital cultural na sociedade estratificada e assimétrica. A
reciprocidade pública, segundo a autora, consiste num compromisso inter-
pessoal de caráter amplo, entendemos neste caso como um compromisso
com a vida comum, o direito legal e a rede de instituições.
Segundo Martins (2006), se por um lado, este sistema se abre para ele-
mentos de incerteza na regra tripartite - do dar-receber-retribuir, e que le-
vam os homens a passarem da paz para a guerra e vice-versa; por outro
lado, ao possuir regras próprias, deve-se reconhecer que o sistema da dá-
diva é estruturado: “enquanto fato social total por excelência, mais precisa-
mente enquanto operador de totalizações sociais ele é redutível às funções
e estruturas instituídas na medida em que é ele quem desenha o meio no
qual funções e estruturas se desenvolvem e ganham sentido” (CAILLÉ, apud
MARTINS, 2006). Mas ao observar a experiência direta e inter-individual, a
dádiva ou o dom reorganiza o sentido e a direção do bem circulante, refa-
zendo as estruturas e funções estabelecidas. O autor percebe o aspecto da
dignidade com precedência ao aspecto econômico no juizado do Paranoá.
Capa De outra maneira, a forma conciliadora tornou secundária a pirâmide
Sumário vertical e autoritária herdada do direito romano (representativos da con-
quista e dominação humana) para os casarios antigos (espaço de vida e do
eLivre cotidiano). Estes casarios mais aptos para o atendimento do público nas
158
Sociologia do direito

redes interativas numa gestão compartilhada, recentram as atividades insti-


tucionais nos objetivos humanos. A conciliação se fundamenta numa comu-
nicação não-violenta, buscando reduzir ao máximo a violência simbólica e
as diferenças de recursos na escuta ativa e metódica (BOURDIEU, 1998), em
atenção da constituição e permanência recíproca do vínculo social, agindo
sobre a própria estrutura da relação, enquanto forma original de conciliar as
demandas, o que a firma autonomia pessoal do indivíduo e seu meio social,
e recusa uma estrita equivalência entre os homens e partes na relação (CHA-
NIAL, 2001).
Finalmente, por esta forma, a balança da justiça teria agora um signifi-
cado diverso e penderia muito mais para uma experiência de pessoalidade
e solidariedade do que para a impessoalidade e indiferença racional da po-
sição original. Ou para uma regra moral que nos identificaria com os des-
favorecidos, um “dispositivo simpático” (CHANIAL, 2001). De outra parte, a
conciliação assemelha-se aos processos reparadores eterapêuticos da justiça
restaurativa. De inspiração anglo-saxônica, a “J.R” é um “modelo eclodido”,
ao assimilar diversas orientações como o comunitarismo, o vitimismo, e o
Capa movimento de descriminalização, tendo se expandido a partir dos anos no-
venta e, a depender do local onde se pratica, adquiriu conotações diferentes
Sumário
(Jaccoud, 2005).A justiça restaurativa é uma aproximação que privilegia toda
eLivre a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências

159
Sociologia do direito

vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a


reconciliação das partes ligadas a um conflito (JACCOUD, 2005, p.169).
Na proposta comparativa, na forma inquisidora, as decisões judiciais so-
bre conflitos populares estão previamente formadas segundo um saber e
uma política hegemônica, impostas na composição do sábio especializado
como a melhor ideia, que irá valer para a parte independente do que delibe-
ra ou do significado da demanda. Diferentemente, na decisão conciliadora,
gerada espontaneamente, ou por “liberalidade” no sistema social, as partes
analisam o conflito reciprocamente sob a perspectiva do outro e criam as
possíveis soluções, ainda que sob a perspectiva de um julgamento futuro
pelo judiciário e com as informações necessárias sobre a duração do rito
processual e seus recursos (DUBUGRAS, 2006).
Bourdieu apresenta situações interativas de interrogatório ou investiga-
ções administrativas no sentido de medir a contrário o esforço que se deve
fazer na condução de uma entrevista para neutralizar os efeitos de violência
simbólica inerente à dissimetria entre os interlocutores (BOURDIEU, 1998).
Semelhante questionamento propõe Boltanski (2000): se a linguagem da
Capa justiça é feita de perguntas, dúvidas, reprovações, queixas, de trazer coisas
Sumário esquecidas, oferecer razões, confirmar demandas, o retorno ao questiona-
mento pelos indivíduos e o uso da linguagem é também a passagem ao
eLivre amor puro, ainda que na forma canônica – porque não foi processada ami-
160
Sociologia do direito

nha demanda? Porque não recebi segundo o que me correspondia? (BOL-


TANSKI, 2000, p. 221).
A atividade conciliadora tem o mister de restaurar as partes em acordo
comercial - pelos acadêmicos da área jurídica e advogados na recomenda-
ção de lei, que vêm gradualmente transformando conciliadores/mediadores
em funcionários públicos, em cargos e funções para este fim. Comum a or-
dem de relações na regulação do mercado, ou quando o litígio versar sobre
questões de direito patrimonial e de caráter privado, chamamos a “Justiça
participativa”, “Justiça relacional”, “Justiça transformadora”, “Justiça recupera-
tiva”, “Justiça restaurativa comunal” etc. (JACCOUD, 2005). A conciliação em
movimento ou a mediação conciliatória, as práticas conciliadoras colocam
em evidência os mecanismos pelos quais se produz ajustiça contemporânea,
enquanto uma nova cultura institucional, legítima aos tribunais de todo o
país e nos Juizados Especiais. O projeto “conciliar é legal” instituiu no último
semestre de dois mil e seis diversas ações utilizando a estrutura administrati-
va dos Tribunais já criados, buscando a mobilização dos gestores, no sentido
de reverter resistências diagnosticadas, embora a conciliação seja instituída
Capa por lei, sendo esta uma síntese composta de sentimentos humanos comple-
xos – combativos e adversarias ou políticos e simpáticos.
Sumário
A sessão de conciliação é o primeiro “procedimento”, anterior aos pro-
eLivre cedimentos ordinários do processo, e no qual o conciliador está investido
161
Sociologia do direito

enquanto uma prática da justiça diferenciada. O papel do conciliador na


formação da justiça consiste no reforçada solidariedade e da regra da reci-
procidade na base social, não sendo exigida a reverência unilateral do ato-
res como é comum se observar nos procedimentos da justiça comum. Com
efeito, os termos finais de conciliação têm a mesma força normativa de uma
sentença no sentido de seu cumprimento rigoroso, prezando pelas razões
das partes, na própria lógica do vínculo legitimamente constituído.
O conciliador tem a função de simplificar o rito comum processual, pri-
vilegiando uma justiça mútua entre os atores. Nas sessões de conciliação se
colocam os atores e grupos, consumidores e empresas, com potencial de
normalizarem condutas entre si, a encontrar numa discussão de ambos, as
formas mais acertadas para reger essas relações, configurando nisto o que
se poderia denominar de justiça consensual ou coexistencial. Neste sentido,
a prática conciliadora seria uma nova forma jurídica de dominação ou a ges-
tação de um contra-poder, ao fundar-se na sabedoria dos potencialmente
mais fracos, os consumidores, etc.? Ao ter institucionalizado os acordos nos
seus limites, garantindo a perspectiva do outro com igualdade na relação,
Capa o Estado não estaria cumprindo seu papel altruísta e solidário com os con-
tratantes livres? Ao se expandir institucionalmente, será um substituto que
Sumário
se diferencia a cada dia da prática inquisitorial que marcou grande parte da
eLivre história do direito ocidental moderno?

162
Sociologia do direito

Qual o papel do Estado na administração da justiça?

Tendo estas práticas judiciárias como integrantes do modelo de justiça


contemporânea: qual o conceito anterior do Estado onde vigoram estas prá-
ticas? E qual o seu papel na administração e regulação dos conflitos? Que
mudanças importantes podemos observar? Encontramos nas “Lições de So-
ciologia”, algumas respostas fundamentais. Segundo Durkheim (1983), o Es-
tado mantém relações recíprocas com os cidadãos numa sociedade política.
Os grupos secundários, os funcionários, as administrações, uma pluralidade
de sociedades elementares (clãs, famílias etc.), se não originaram umas às
outras, mantêm entre si uma relação de solidariedade, condicionando-se
mutuamente:

“Em alguns conflitos, a solução judicial contenciosa pode ser a pior de to-
das, sendo a justiça coexistencial aquela que leva a uma reaproximação das
posições, as soluções nas quais não há necessariamente um perdedor e um
vencedor, mas antes há uma recíproca compreensão, uma modificação bi-
lateral (ou multilateral) dos comportamentos (CAPELLETI, 1993).
Capa
Sumário O Estado não é simples instrumento de canalizações e concentrações; é,
eLivre em certo sentido, o centro organizador dos próprios subgrupos. Eis o que

163
Sociologia do direito

define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, onde se elaboram


representações e volições que envolvem a coletividade. As representações
vindas do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas causas
e de seus fins (Durkheim, 1983, p. 45-6). O Estado possuiria funções múltiplas
e não se restringiria à administração da justiça de maneira negativa, ou seja,
no papel de velar pelos direitos individuais. Come feito, esta é a doutrina do
individualismo utilitário dos economistas, e o desenvolvimento do indivíduo
é possível junto ao do Estado, sendo a instituição dos direitos individuais
obra do Estado e sua vocação buscar a realização de um fim verdadeiramen-
te social, ou seja, desempenhar papel dos mais extensos em todas as esferas
da vida coletiva, renunciando o culto do indivíduo, para restaurar, sob nova
forma, o culto da cidade (Durkheim, 1983).
O desenvolvimento do Estado deve acontecer ao lado dos grupos se-
cundários(família, corporação, igreja, distrito), a fim de garantir a liberdade
dos indivíduos, dizendo que há um direito acima do direito destes grupos
e seus particularismos coletivos: “cumpre, portanto, que se misture à vida
delas, lhes vigie e lhes controle a forma de funcionamento (...) não se pode
Capa encerrar nos pretórios dos tribunais; cumpra esteja presente em todas as es-
feras da vida social, e nelas aja” (DURKHEIM, 1983, p.60).Segundo Durkheim
Sumário
(1983), a sociedade é uma massa ou multidão inconsciente que carece dos
eLivre grupos secundários para uma relação satisfatória com o Estado, e para que

164
Sociologia do direito

este não seja opressivo aos indivíduos, e da mesma maneira que o Estado
seja liberado dos indivíduos. O Estado não é, portanto, um antagonista do
indivíduo, mas seu dever fundamental é o de chamar o indivíduo progressi-
vamente à existência moral. Esta consiste numa atividade interna que não é
econômica ou mercantil, no sentido de multiplicar as trocas; uma atividade
moral pressupõe uma disciplina, uma obrigação e um dever necessariamen-
te vinculados a forma democrática do Estado, e que as ações sejam de acor-
do com regras mais justas, e segundo o grau de generalidade:

“os deveres cívicos não passarão de forma mais particular dos deveres ge-
rais da humanidade (...) as sociedades, porém, podem consagrar seu amor
próprio não a ser as maiores ou as mais abastadas, e sim a ser as mais
justas, as mais bem organizadas, a possuir a melhor constituição moral”
(DURKHEIM, 1983, p. 68).

Segundo Durkheim (1983), o Estado democrático é aquele que estabele-


ce a maior comunicação possível com a sociedade, funcionando como uma
“consciência governamental”, esta característica o distingue das demais for-
Capa
mas de Estado, como monarquia e a aristocracia, onde o Estado possui uma
Sumário transcendência, isolado em si mesmo e com um mínimo de extensão da
eLivre sociedade: “em vez de permanecer ensimesmado, o poder governamental
desceu às camadas mais profundas da sociedade o que se passa nos meios
165
Sociologia do direito

chamados políticos é observado, controlado por todos, e o resultado das


reflexões decorrentes reage sobre os meios governamentais”(DURKHEIM,
1983, p. 75).Até onde este autor observou o desenvolvimento do Estado no
início do século XX, estes grupos se limitaram aos distritos territoriais e aos
grupos profissionais, consistindo a ação política na criação desses grupos in-
termediários. O que os autores contemporâneos têm observado é o número
crescente desses grupos, novas formas sociais, organizações e associações
de variadas naturezas, vinculando pessoas e agindo em sua defesa e, ao
mesmo tempo, liberando o Estado de um caráter individualista.
Esta tese de um Estado solidário aos grupos que permite ao mesmo tem-
po o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos constituintes é, nos
mesmos termos, defendida por Chanial (2001, 2004) e Martins (2004). Com
efeito, segundo Chanial (2004), a comunidade política pressupõe os víncu-
los constitutivos tradicionais ou familiares, ou seja, esta não existe sem as
outras formas de comunidade, sendo a ideia de público aquela que realiza
a conversão da democracia primária em democracia secundária. Em outras
palavras é a partir das mobilizações e engajamentos ordinários, ou seja, as
Capa competências morais cotidianas que favorecem a generalização das práticas
infrapolíticas de cooperação, de comunicação e de participação existentes já
Sumário
nas relações face a face:
eLivre

166
Sociologia do direito

E quando este público inicialmente informal se organiza a fim de proteger


e por em prática essa regulação, ele cria mandatários, representantes (o
governo), mas também recursos materiais (o bem comum), ele forma um
Estado (...) O público constitui uma formação intermediária que se distingue
e se articula às comunidades locais (grupos primários) e às instituições go-
vernamentais (os grupos secundários) (CHANIAL, 2004, p.36-7)

Chanial chama a atenção para o fato de que o Estado é uma tarefa prá-
tica e contínua, um “processo experimental” que “deve sempre ser reco-
meçado”, pois “o Estado deve sempre ser redescoberto”. Ela deriva então
de um “processo de busca” coletivo pelo qual a sociedade, através de seus
públicos, se esforça para identificar e tratar os problemas que decorrem das
ações humanas (CHANIAL, 2004). Segundo Martins(2004), a gestão estatal
tem enfrentado desafios no contexto da ordem pós-nacional, que implica
na descentralização e nas alianças do Estado com os grupos que lhe fazem
parte, as associações não governamentais e associações locais, contribuindo
para estimular diversas mobilizações cívicas e autonomizantes. Com efeito,
segundo este autor, o paradigma da dádiva oferece recursos para repensar
Capa o Estado e a gestão pública na perspectiva local:
Sumário
Desde logo podemos avançar que este conceito (dom da cidadania) exige,
eLivre de um lado, a revalorização do papel do Estado na organização dos pres-

167
Sociologia do direito

supostos da cidadania, de outro, o envolvimento ativo de todos os atores


sociais e agentes institucionais na criação de redes sociais politicamente ar-
ticuladas e na difusão de ideais solidários e democráticos (MARTINS, 2004)

Para Martins (2004), a lógica da dádiva não é exclusiva da sociedade civil,


mas também uma lógica do Estado, que vinculam dirigentes e autoridades à
obrigação de generosidade, a considerar os mecanismos de reciprocidade,
ou as trocas interpessoais que não podem ser observadas apenas pela aná-
lise dos procedimentos formais, burocráticos e jurídicos: “a dádiva constitui
o operador simbólico que traduz a decisão burocrática em ação solidária”
(MARTINS, 2004, p. 82). Há, no entanto, uma posição histórica que afirma ser
o Estado o usurpador da dádiva e da espontaneidade do social no momento
mesmo de sua constituição. Este argumento defendido por Goudbout, des-
considera o Estado enquanto organização de um aparelho de administração
dos conflitos, e as diversas funções positivas assumidas pelo Estado desde
sua constituição, como a defesa do bem público (MARTINS, 2004).
Neste sentido, os gestores públicos agem com um sentimento de “devo-
Capa tamento mútuo”, apostando suas ações sem a garantia de retorno, numa dí-
vida simbólica que, repassada pelos atores sociais, reinventa os laços sociais
Sumário perdidos e cria novos. Dessa maneira, pode-se concluir, que nem mesmo a
eLivre regra legal enquanto emanação do Estado segundo demandas populares

168
Sociologia do direito

deixa de estar imbuída do dom, eis que no momento de suas fixação o dom
está nos interstícios do Estado. De outra maneira, se a regra legal é uma
forma impessoal que cria dádiva entre estranhos, vincula igualmente de-
mandantes, ares ou concidadãos, se participaram ou não de sua elaboração,
com maior ou menor interesse individual, o corpo legal regula as relações
interpessoais e numa escala mais ampla, equalizando simetrias e posições
de classe.

Democracia e participação: o que o judiciário tem a ver com isso?

Além das ações individuais, o Estado experimentalmente democrático


tem por mister ouvir, solidariamente, as organizações e associações na ad-
ministração da justiça. A questão da escuta das demandas engloba desde o
acesso às instituições judiciárias, tendo em vista as diferentes posições a se-
rem equalizadas numa sociedade assimétrica, até a questão da efetiva par-
ticipação dos cidadãos na solução espontânea dos conflitos e formação dos
acordos políticos. O desafio do nosso tempo seria justamente equacionar
Capa
categorias como o direito, a cidadania, e participação.
Sumário Nesse sentido, a cultura jurídica se integra e faz parte na cultura mais
eLivre ampla da sociedade, uma parte extremamente importante porque nela se

169
Sociologia do direito

desenvolvem as normas básicas do comportamento e da ação social (MA-


CHADO, 1981). Na sociedade democrática, a cultura dos práticos jurídicos
não deixa de ter a sua autonomia ao se aproximar da cultura judiciária po-
pular, e não poderia prescindir desta última a não ser na dominação do ma-
gistrado (WEBER, 1999), uma vez que aquela está enraizada e teria por tarefa
modificar as condições econômicas, sociais e políticas da sociedade:

Referi-me à função política do judiciário. Este tema é central e deveria me-


recer atenção especial em tal agenda de estudos. Pois os juízes e tribunais
ao aplicarem as leis (...) participam da tarefa de estabelecer os limites do que
pode e do que não pode ser demandado dentro da ordem vigente... Esta ta-
refa pedagógica tem óbvia natureza política. (MACHADO, 1981, p. 25)

Por outro lado, a ampliação da participação no processo democrático de


tomada de decisão, implica na inclusão de temáticas em demandas excessi-
vas até então ignoradas pelo sistema político, e a redefinição de vínculos a
nível local. Segundo Santos e Avritzer (2002), as vulnerabilidades e ambigui-
dades dessa participação são pautadas pela prioridade da acumulação sobre
Capa
a redistribuição, na tensão entre a democracia e a globalização neoliberal. Se
Sumário por um lado, temos uma nova gramática de inclusão social, por outro lado,
eLivre estas demandas são frontalmente descaracterizadas pelos interesses e con-
cepções hegemônicas das “elites metropolitanas”. A perversão dos objetivos
170
Sociologia do direito

de inclusão social e de reconhecimento das diferenças ocorre tanto pela via


da burocratização e reintrodução do clientelismo, quanto pela instrumenta-
lização partidária, exclusão de interesses, silenciamento, e manipulação das
instituições participativas, caracterizando as estratégias de uma democracia
de baixa intensidade.
“A reinvenção da emancipação social” requer, segundo Santos e Avritzer
(2002), o aprofundamento dos sistemas políticos na mobilização da popula-
ção ou comunidade local, em remanejamentos qualitativos no processo de
participação e deliberação, que incluem práticas societárias contra-hegemô-
nicas introduzidas pelos próprios atores sociais, potencializando a própria
cultura local no resgate de tradições ignoradas e abandonadas pela forma
da democracia representativa. Por outro lado, os processos locais não devem
ser confinados, mas pautados nas complementaridades entre escalas locais
e nacionais, democracia participativa e representativa no experimentalismo
institucional:

Essas articulações dão credibilidade e fortalecem as práticas locais pelo sim-


Capa ples fato de as transformarem em elos de redes e movimentos mais amplos
e com maior capacidade transformadora. Por outro lado, tais articulações
Sumário tornam possível a aprendizagem recíproca e contínua, o que é requisito es-
sencial para o êxito de práticas democráticas animadas pela possibilidade
eLivre de democracia de alta intensidade (SANTOS E AVRITZER, 2002, p. 74)

171
Sociologia do direito

Estas mudanças, segundo Sader (2002), são partes do início de um pro-


cesso de reforma radical do Estado, centrado numa esfera pública renovada
– nem estatal, nem privada – pública: “aponta-se para um processo parale-
lo de socialização do poder e da política e de estreitamento da dicotomia
governantes e governados” (SADER, 2002, p.670). A maior capacidade de
governo significará, segundo Dowbor (2003), maior capacidade de gestão e
decisão política na própria base da sociedade:

Continuará necessária a gestão do Estado e, sobretudo, a constituição de


instrumentos de regulação planetária. Trata-se mais de um reequilibramen-
to profundo do “quem faz o que” na sociedade, com o deslocamento de
um segmento dominante de atividades reguladoras diretamente para a so-
ciedade civil (...) A mudança paradigmática que enfrentamos, portanto, é da
passagem de uma visão de pirâmides verticais de autoridade para as redes
interativas horizontais que buscam ao mesmo tempo a sua regulação pró-
pria e resultados positivos globais (DOWBOR, 2003, p. 18)

Capa
Sumário
eLivre

172
Sociologia do direito

II
JUSTIÇA DE CAMALEÔNICO:
O FLUXO DAS INTERAÇÕES SOCIAIS

Aos arquivos processuais: os contratantes são companheiros?

Na justiça do consumidor o caderno processual é um aspecto importan-


te a ser observado, e esta observação compreende o período de passagem
entre 2006-2007. Nesse sentido, construímos uma amostra qualitativa, bus-
cando a compreensão dinâmica dos processos, tendo investigado no Procon
estadual, nos arquivos da dívida ativa, 75 cadernos processuais, sendo: 29
(38.6%) cadernos processuais referentes à empresa de energia; 05 (06.7%)
cadernos processuais referentes à empresa de água e esgoto; 41 (54.7%)
cadernos processuais referentes à empresa de telefonia. No Juizado de Ca-
Capa maleônico (nome ficício), pesquisamos 121 cadernos processuais, sendo:17
(14%) cadernos processuais referentes à empresa de energia; 14 (11,6%) ca-
Sumário
dernos processuais referentes à empresa de água e esgoto; 90 (74.4%) ca-
eLivre dernos processuais referentes à empresa de telefonia.

173
Sociologia do direito

Cada caderno processual consiste na forma simplificada de uma suces-


são de escrita de ritos ou atos técnicos formais, analiticamente fracionados
em situações de fato mais simples, atos elementares juridicamente qualifica-
dos - que se inaugura com a reclamação e pode se encerrar com a decisão
de segundo grau pela turma recursal no julgamento que se realiza no pró-
prio micro-sistema, no Tribunal Estadual, situado na capital de Camaleônico.
Cada ato corresponde a uma tese interpretativa dos fatos e normas, deter-
minante, e que motiva a ação social. Na organização interna, estes processos
são aqueles em que o Procon estadual condenou as empresas a pagar multa
por má prestação de serviço a ser depositada no fundo de direitos difusos, e
que ainda esperavam seu adimplemento. O arquivo processual é recente no
prédio, em razão disso escolhemos o ano de 2005 para a leitura dos proces-
sos, uma vez que já teriam em sua maioria sido arquivados, tendo assim uma
amostra mais fidedigna. As instalações dos juizados são prédios de pequeno
porte, sendo os cadernos processuais encaixotados conforme baixa no car-
tório numa sala quase inóspita. Ao início desta pesquisa possuía em média
232caixas, tendo consultado destas, o número de 140 caixas, selecionando
Capa os processos pelo tipo de serviço e pelo ano.
Uma das peculiaridades mais importantes do direito romano primitivo (...)
Sumário
é seu caráter eminentemente analítico (...) Um processo trata de um problema
eLivre só, um problema é tratado num processo único, um acordo jurídico limita-se a

174
Sociologia do direito

um assunto, a uma promessa, a uma prestação, sendo por isso unilateral, etc.
Precisamente a decomposição dos complexos fatos plásticos da vida cotidiana
numa série de atos elementares juridicamente qualificados de forma unívoca é,
de fato, uma das tendências, metodologicamente de enorme alcance, do antigo
direito civil. Essa tendência ao procedimento analítico corresponde exatamente
ao tratamento primitivo dos deveres rituais dentro da religião nacional-romana
(WEBER, 1999, p. 95). Como expusemos, os juizados especiais é um micro-sis-
tema de direito autônomo em face ao sistema comum e a pirâmide judiciária,
onde as demandas não sobem na hierarquia às instâncias superiores.
Segundo Ortner (1993), autores como Bourdieu, Giddens, Sahlins pare-
cem concordar com a ação imediata, onde se está em jogo a execução de re-
gras e normas, parecem também concordar com um tipo de “voluntarismo”
heróico ou romântico, que enfatiza a liberdade e a invenção relativamente
irrestrita dos atores – numa visão da ação considerada nos limites da escolha
pragmática, na reação a decisão e/ou.... Se em alguns cadernos, estas teses
estão articuladas segundo fatos e normas, da reclamação a contestação, e
assim por diante, ampliando a compreensão racional do conflito com pare-
Capa ceres e julgados no “diálogo respeitoso” no sentido da “não dominação”; de
outra maneira, as teses são frontalmente opostas, havendo aqui o que de-
Sumário
nominamos de transfiguração de fatos e normas para o leitor dos cadernos
eLivre processuais, para os juízes e conciliadores.

175
Sociologia do direito

Habermas (2002), autor racionalista, percebe a “síndrome” característica


das reivindicações de validação disparadas, segundo ele, de maneira obs-
cura, o que seria típico às interpretações religiosas e metafísicas do mundo.
Esta obscuridade, ou o que percebemos como a transfiguração dos fatos nas
denúncias e defesas dos contratos consiste numa moeda de troca e de ma-
nipulação em torno do conflito político, buscando uma unidade ou alguma
possibilidade de compartilhamento de interesses comuns nas negociações
econômicas. De um lado, a empresa na ação legal, autorizada pela norma e
agência reguladora na exploração dobem e, de outro, a ação legal do con-
sumidor, autorizado pela norma protetiva, e por seus recursos domésticos,
este último a priori buscando solucionar problemas e tensões experimenta-
das no sentido de representações e ideais do que constitui o bom para as
pessoas, nas relações e condições de vida. (ORTNER, 1993).
Estes conflitos têm posicionamentos explícitos no caderno processual –
na campanha das empresas pela recuperação de consumo tendo em vista o
fato típico do furto de energia nas unidades consumidoras. Nesse sentido, é
sintomático da perversão do sistema econômico, o furtar de bem essencial
Capa pelos nacionais que foram condenados a pagar a título de recuperação de
consumo, dívida calculada fora dos padrões regulares da unidade residencial.
Sumário
Nestes debates, firmou-se o cálculo ágil e estratégico. Na teoria do interesse,
eLivre a racionalidade pragmática é apenas um aspecto de motivação da ação, mas

176
Sociologia do direito

não é única e nem dominante, não se pode excluir do discurso analítico uma
classe completa de termos emocionais – necessidade, medo, sofrimento, de-
sejo e outros que seguramente são partes da motivação (ORTNER, 1993, p.
48). Neste sentido há juris prudências que mandam a empresa concessioná-
ria calcular a recuperação de consumo na média dos meses anteriores, afas-
tando os valores estimativos exorbitantes que considera o número de bens
da residência consumidora, sendo um caso típico de defesa do consumidor
na salvaguarda da jurisprudência.
No caso da telefonia, aconteceu sistematicamente a reclamação de liga-
ções não originadas dos terminais dos consumidores. Estas batalhas ou litígios
colocaram em jogo duas verdades, difíceis de serem averiguadas na simples
contraposição de argumentos individuais e na desconfiança de um ao outro.
A cada página manuseada do caderno processual, comumente fomos surpre-
endidos com um fato novo, ou um mesmo fato modificado, camaleônico, no
discurso assertivo e confrontacional, que consiste na obrigação de falar de
acordo com regras de disputa. São estas as regras do jogo hegemônico que,
segundo Young (2001), silencia e desvaloriza os menos privilegiados, que se
Capa sentem diminuídos, frustrados, perdendo a confiança em si, ao ser colocado
em segundo plano o discurso tentativo, exploratório ou conciliatório.
Sumário
A “plasticidade dos fatos” é uma característica dos processos confronta-
eLivre cionais, onde não é possível um entendimento prévio e onde fatos e normas
177
Sociologia do direito

são tomados no mais alto nível de abstração possível - que se procedeu a


desnacionalização, para assumir um caráter universal, distanciando-se, por-
tanto, da tradição, mais o aproxima da manipulação dos intérpretes e sua
imaginação interessada e contraditória. Os advogados das empresas estão
investidos a atuar nesta seara, especializando-se nas razões empresariais e
situações de mercado, o que demonstra na medida de forças um investi-
mento maior do que o reclamante poderia argumentativamente sustentar.
Esta característica remonta a influência do direito romano sobre os direi-
tos nacionais: “Para possibilitar a recepção, as instituições jurídicas romanas
– como com razão ressalta particularmente Erlich – tinha que ser despidas
de todo resto de uma vinculação nacional e elevadas à esfera do logicamen-
te abstrato, e o direito romano tinha que ser absolutizado como o direito
“logicamente correto” por excelência (...) Entretanto, na aplicação deste di-
reito a situações de fato totalmente estranhas à Antiguidade, apareceu no
primeiro plano a tarefa de “construir” juridicamente, sem contradições, a si-
tuação dos fatos (...) Nisto tem origem o chamado “caráter alheio à vida” do
direito puramente lógico. (WEBER, 1999, p 129) “os interessados capitalistas
Capa costumam dar-se melhor com a aplicação universal de uma justiça rigorosa-
mente formal, na máxima processual (...) que exclui tanto a vinculação a tra-
Sumário
dição quanto o arbítrio e somente permite a derivação do direito subjetivo
eLivre a partir de normas objetivas” (WEBER, 1999, p. 104). Em Camaleônico, sen-

178
Sociologia do direito

do predominante a inteira modificação dos fatos no recurso argumentativo,


estes se esfacelaram em estilhaços a ferir a honestidade, o status pessoal e
empresarial, a honra e a dignidade dos constituintes ao colocá-los no jogo
da desconfiança mútua. No direito antigo, segundo Weber (1999), reforçar
o “direito” de sua parte, era também expor à maldição divina a própria pes-
soa, isto é, aquilo que sequer que valha é considerado idêntico àquilo que
de fato existe. O defeito na prestação do serviço essencial suscitou troca de
palavras e ofensas, em uma série de problemas fracionados, aflitivos para o
consumidor, que no processo buscou se resguardar em melhores condições
contratuais da exploração excessiva e do poder privado da empresa capita-
lista, sendo desejo de ambos a estabilidade do vínculo econômico entre em-
presa e consumidor para que se perpetue em contraprestações recíprocas.
Na Justiça do Camaleônico, o “inimigo” não é pessoalmente nem o consumi-
dor, nem o preposto da empresa, mas as condições objetivas de exploração
e de redistribuição das riquezas autorizadas e formadas numa reunião in-
terna empresarial em desatenção às condições dos consumidores enquanto
cidadãos, conforme deixaram entrever os conflitos.
Capa Com efeito, os contratos econômicos celebrados entre pares são de dois
tipos. O tipo funcional quer dizer que os acordos têm apenas a função de
Sumário
produzir determinados atos e resultados concretos, quase sempre econômi-
eLivre cos, deixando intocado o status das pessoas participantes, isto é, as trocas

179
Sociologia do direito

não dão origem às pessoas as qualidades de companheiros. De outra ma-


neira, o contrato de confraternização é aquele onde há “transformação da
qualidade jurídica global, da posição pessoal e do habitus social das pesso-
as; estes são originalmente sem exceção, atos mágicos, ou diretamente de
alguma forma magicamente significativos, e por muito tempo conservam
em seu simbolismo resíduo desse caráter” (WEBER, 1999:19)
Esse aspecto da honra, da ofensa e honestidade tem uma componente
religiosa que, misturado ao pedido laico do direito, tem aparecido juntos
fortemente nos juizados especiais, conforme observou Cardoso de Oliveira
(2004). Estes contratos celebrados na prestação de serviços de bens essen-
ciais não compõem um ou outro contrato descrito tipicamente por Weber,
mas a composição de ambos. Em outras palavras, os conflitos em torno des-
ses contratos engendram um constrangimento útil do serviço, mas também
muda a posição e status da pessoa e comunidade contratantes, cuja fruição
de determinado bem os posicionam na escala de classe. Com efeito, é sen-
sível a vida moderna, citadina, a utilidade e posição de classe das comunida-
des que usufruem dos serviços de água encanada, esgoto, energia e telefo-
Capa nia, esta linha de passagem é tênue da vida média à miserável. São serviços
que por sua essencialidade a maioria de nós não questiona praticamente.
Sumário
Segundo Dowbor (2003), a rede de energia elétrica se tornou essencial
eLivre para um conjunto de atividades trazidas com a própria urbanização moderna,
180
Sociologia do direito

em investimentos capilares de serviços prestados a cada domicílio, exigindo


visão planejada, e de conjunto, tendo a ideia de privatização do setor públi-
co nos trazido a burocracia privada e truculência dos interesses financeiros...
No consumo dos bens essenciais, tanto está em jogo o uso útil do bem,
quanto a qualidade das pessoas e comunidades contratantes. A forma con-
ciliadora ao “vivificar” o diálogo, permite que reclamações e pedidos sejam
acolhidos na instância judicial pelas empresas que, de posse da informação
sobre a melhor prestação do serviço e do grupo de interesse e comunidade
do consumidor, decidiria o contrato formal mais adequado, assim como a
qualidade do bem colocado a disposição.
O projeto empresarial moderno de ampliação do acesso aos bens es-
senciais se adequaria às efetivas condições de qualidade e de permanência
continuada na prestação e no uso desses serviços, desenvolvidas segundo
uma participação paritária nos espaços públicos. Isto tem uma importân-
cia substancial enquanto “estratégia de reformas não reformistas” evitando
as reificações, os deslocamentos e os desenquadramentos (FRASER, apud
SILVA, 2005). Dessa maneira, pode-se “reprogramar” o modelo da justiça
Capa adversarial, nos comportamentos de dúvida, desconfiança e ignorância mú-
tua das empresas e consumidores, porque são anteriormente a este estado
Sumário
de disputa, pares ou companheiros na relação contratual, tendo constituído
eLivre acordos mútuos de prestação de serviços. O conciliador tem uma atividade

181
Sociologia do direito

a desempenhar institucionalmente ao buscar garantir deforma interativa os


argumentos opostos e, ao mesmo tempo, o entendimento comum em torno
da utilidade e do respeito à liberdade, recompondo o sentimento dos con-
tratos nascentes, ao mediar as negociações em torno das obrigações mate-
riais e morais.
As limitações contextuais dessa prática conciliadora passam necessaria-
mente pelo comportamento das partes, que não utilizam a diferença mútua
como recurso na transformação das opiniões de forma transcendente (YOU-
NG, 2001) – sendo pautados pelas opiniões iniciais, formados em projetos
que se preferem radicalmente distintos no momento dos conflitos – de um
lado no princípio contratual da segurança da exploração econômica, de ou-
tro, no princípio da boa vida do consumidor, faltando-o tantas vezes a cons-
ciência deste princípio - que implica na participação e controle do que está
sendo feito com os recursos públicos - em face da perfeição profissional dos
contratos. Segundo Ortner (1993), os planos e programas gerados “criativa-
mente” tendem a formas estereotipadas, sendo os constrangimentos do sis-
tema empresarial constantes para os atores e em situações similares, onde
Capa qualquer movimento individual somente é inteligível dentro do contexto
dos grandes planos. Quando estes antagonismos são levados ao último ar-
Sumário
gumento, as partes no processo arriscam a desqualificação de um deles no
eLivre pedido, e de terem rompidas suas relações na instância secundária.

182
Sociologia do direito

Conforme demonstra Chanial, a justiça é incapaz de compensar a per-


da moral consequente à ruptura da relação na desconfiança de um com os
outros. Em outras palavras, na estrita oposição dos fatos se revela a desinte-
gração de valores; reproduz-se a desunião, a desordem e instabilidade nas
relações contratuais, cujo processo judicial nem sempre pode reverter: “os
próprios meios jurídicos da garantia de liberdade são os que põem em perigo
a liberdade dos supostos beneficiários”(HABERMAS, 2002, p. 406).O tribunal,
conforme observa Young (2001), percebe a deliberação como agonística, na
incapacidade de formar contra-argumentos, consentido por causa da “força
do melhor argumento”. Nesse sentido, a linha do costume dos práticos jurí-
dicos é a decisão estritamente legalista, numa ação que evita erro e dúvida
de sua soberania.
Nesta fase do processo, conforme nos indica Kant de Lima (1991), o mun-
do do direito não corresponde ao mundo dos fatos sociais, mas estes são
submetidos a um tratamento lógico-formal, característico da cultura jurídica
e daqueles que a detém. Na luta processual tradicional, o vencedor é aquele
que dispõe das últimas informações de mercado, que movimenta uma série
Capa de recursos materiais, contrata pareceres, referenciam livros de direito que
dominam a justiça na mesma forma que uma lei no sentido de chamar a lide
Sumário
favoravelmente para si; é este tipo de investimento racional que o juizado
eLivre filosoficamente viera simplificar em favor da população. Na filosofia do Jui-

183
Sociologia do direito

zado Especial, duas pessoas adentrariam a casa judiciária ainda brigando e


encontrariam mediação ali.

Histórico processual do caso da assinatura telefônica residencial

A demanda que questionou a cobrança de assinatura de serviço de te-


lefonia é exemplo típico a forma jurídica conciliadora, porque não possui a
priori um enquadramento legal objetivo do pedido, sendo fundada muito
mais no direito subjetivo dos consumidores, exigindo as obrigações relati-
vas aos direitos que têm “Laudos emitidos por faculdades constituíam no
continente autoridade última em casos jurídicos duvidoso, e os honoratiores
jurídicos típicos eram juízes e notários com instrução acadêmica, ao lado
dos advogados. Onde quer que faltasse um estamento de juristas nacional
organizado, o direito romano avançou vitoriosamente com a ajuda deles (...)
Em nenhum caso o desenvolvimento do direito ocidental conseguiu man-
ter-se totalmente livre dessas influências” (WEBER, 1999, p. 130) “Na teoria
jurídica, o direito subjetivo é uma faculdade, poder, prerrogativa, imunida-
Capa
de ou privilégio(...) A noção de direito subjetivo não é, por conseguinte, um
Sumário dado natural, mas um constructum que traz formalmente. Dos bens essen-
ciais pesquisados, os cadernos processuais de telefonia foi um caso quase
eLivre
exclusivo, onde houve sistematicamente julgamento de segundo grau no
184
Sociologia do direito

micro-sistema, o que demonstra ter sido a demanda mais controvertida na


amostra representativa.
Não tendo sido possível conciliar estas demandas, foram recepcionadas
no julgamento pelos práticos jurídicos enquanto um problema de controle, e
não como um meio de solução de problemas por meio de um entendimento
recíproco: “as percepções de crise relativas ao mundo da vida não podem
traduzir-se integralmente em problemas de controle relativos a sistemas (...)
pelo contrário é necessário que os impulsos do mundo da vida possam in-
fluir no autocontrole dos sistemas funcionais” (HABERMAS,2002, p 504-5).
Senão, vejamos. As empresas de telefonia responderam a uma série destas
ações denominadas “ação declaratória de inexigibilidade da cobrança de
assinatura mensal”, numa verdadeira batalha argumentativa, utilizando os
recursos processuais, em torno de decisões políticas anteriores sobre medi-
das e cobranças das empresas capitalistas aos consumidores do sistema de
telefonia residencial. Em outras situações republicanas, discutimos o padrão
e o sistema de pesos e medidas no comércio, impostas de cima para baixo,
tendo de forma semelhante a cobrança no sistema de pulsos e da assinatu-
Capa ra telefônica provocado questionamentos na esfera dos direitos e deveres,
após a situação “exterior” de privatização das empresas.
Sumário
... embutida toda uma discussão acerca dos fenômenos associados à pro-
eLivre priedade de ser uma pessoa: raciocínio, linguagem, consciência, vontade, in-
185
Sociologia do direito

teresse, capacidade de deliberar, de perseguir metas, elaborar planos de vida


etc. obviamente, por razões práticas, os juristas modernos estenderam estas
qualidades humanas às entidades coletivas, como o Estado, as associações,
as fundações, considerando-os personalidades jurídicas” (RABENHORST,
2001, p. 58-9). Foram propostas ações coletivas, pelos organismos de defe-
sa do consumidor, como o Instituto de Defesa do Consumidor (http://www.
idec.org.br), valendo para elas a lição de Weber:

“Nesta ação, cujo resultado é a modificação do direito, participam várias


categorias de pessoas. Em primeiro lugar, os interessados individuais na si-
tuação concreta. Cada interessado individual, em parte para proteger seus
interesses sob ‘novas’ condições externas, em parte para protegê-los me-
lhor do que antes nas condições já existentes, modifica sua ação, particu-
larmente, sua ação social” (WEBER, 1999, p.69).

Segundo Oliveira (2005), o processo de privatização das empresas esta-


tais nas reformas políticas liberalizantes foram discutidos no poder judiciário
pelo Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, nas ações
Capa impetradas por associações de classe, sindicatos e partidos políticos, tendo
Sumário seu julgamento se pautado não obstante em termos especializados discu-
tindo pela constitucionalidade/inconstitucionalidade da ação. Do exame da
eLivre avalanche dos processos judiciais que buscavam reverter o processo de de-
186
Sociologia do direito

sestatização, Oliveira (2005) constata: “os juízes têm se eximido de adotar


uma postura política ativa e de promover uma interferência judicial em âm-
bitos eminentemente políticos, o que pode ser verificado pelo resultado das
ações impetradas– nenhuma das ações conseguiu barrar a venda de uma
empresa estatal” (OLIVEIRA, 2005, p. 583).
Se não se pode imaginar com Oliveira (2005) uma judicialização da política
na fase final do ciclo que é a decisão de mérito, quais são efetivamente os efei-
tos subjetivos da privatização que mobilizaram empregados em situação de
instabilidade, assim como as tramas institucionais que romperam a cadeia e a
rede em que estão envolvidos os fatos a cada novo processo, em um tribunal
diferente? Apesar da despolitização na decisão que autoriza as privatizações,
e a simples baixa e arquivo destes processos judiciais, pergunta-se, de forma
objetiva com os autores, depois de privatizadas, qual anova situação contra-
tual destas empresas com os usuários? Qual a influência do judiciário neste
novo momento? Que novos instrumentos processuais são acionados pela so-
ciedade? Que ações são recebidas? De que forma jurídica e em que tribunais
as demandas são atendidas e decididas pelo Estado democrático?
Capa A autora discute qual foi efetivamente o papel do judiciário na política
Sumário de privatizações, tendo como banco de dados tabelas produzidas pelo BN-
DES e pelo STF, assim como processos em tramitação no STF, e STJ, de onde
eLivre a autora chega as seguintes conclusões: que apesar de o judiciário ter sido
187
Sociologia do direito

acionado pela sociedade civil, não barrou nenhuma privatização de empresa


pública, sendo os processos arquivados; que o poder executivo e a interpre-
tação da constituição pelo supremo estiveram em perfeita sintonia. Outra
conclusão a que chega é que este processo não mais poderá ser revertido, a
esperar que as demais ações se extingam por perda do objeto.
Segundo Dowbor (2003), deve-se lançar um novo olhar sobre o proces-
so de privatização, na medida em que mobiliza o poder local, uma vez que
o interesse local tem o condão de provocar a organização social. As de-
núncias contratuais ou reclamações dos consumidores nos juizados espe-
ciais (de pequenas causas) em torno da cobrança de assinatura mensal às
empresas então privadas guardam passados alguns anos um elo comesse
processo abordado por Oliveira. Resumidas nos termos simples, cuidam de
ações solidárias a julgados favoráveis no sul do país, cujos autores inter-
pretaram a cobrança de assinatura mensal por empresa de telefonia como
abusiva e indevida. Nesta interpretação dos fatos e normas do consumidor,
as empresas não poderiam cobrar dos consumidores assinatura que não
corresponderia a um serviço prestado, e que, passada a empresa para o
Capa regime privado, os clientes não desejariam contratualmente arcar com as
despesas de manutenção e infra-estrutura, mas tão somente pelo serviço
Sumário
efetivamente prestado e consumido. De outra maneira, entendiam essa
eLivre cobrança como um tributo.

188
Sociologia do direito

O juizado de Camaleônico realizou neste caso em comento procedimen-


to secular- na herança antiga - ao reduzir o processo político-econômico de
reformas liberais, questionado amplamente por setores da sociedade civil
ao debate simplificado em torno de dispositivos contratuais que exigiam do
consumidor o pagamento da assinatura mensal, cada vez mais onerosa do
serviço de telefonia. A denúncia desses contratos, por sua vez, é a maneira
pela qual se qualificou o debate pelos consumidores no juizado de Cama-
leônico que, numa “explosão dos fatos”, formaram uma série de interpreta-
ções dos fatos e normas - reclamações/defesas/e julgamentos de primeiro e
segundo graus individualizados em torno da cobrança da assinatura.
Na batalha de pretensões, cada fase processual está fundamentada em
pareceres solicitados a estudiosos, tornando o caderno extenso, o que não
chega a ser habitual nos juizados, por prezar em princípio pela simplicida-
de dos atos. Inclui-se um dossiê, e uma série de análises unilaterais, sendo
a agência reguladora chamada pela ré empresa a falar na lide sobre a ação.
Nesta passagem, fica evidente que as ações são recebidas por aqueles que
direta ou indiretamente estão nelas envolvidos com o receio e temor apon-
Capa tado por Geertz (1998).
Sumário
Essa inventividade é, em verdade, fruto da recessão econômica vivida pela
eLivre nação, que leva as pessoas a pretenderem a redução imediata de suas des-

189
Sociologia do direito

pesas pessoais, sem medir as consequências da consecução de tal preten-


são. (...) Uma questão macro-econômica compromete os pilares do novo
modelo das telecomunicações brasileira da competição e universalização
do acesso (CONTRA-RAZÕES, Empresa de Telefonia, Juizado de Camaleô-
nico, ano 2005)

O Primeiro Julgamento em Camaleônico

No primeiro desfecho da demanda, o julgamento consiste na terceira


tese, distinta daquelas apresentadas por cada parte inicialmente - uma deci-
são especializada, ao discutir o dilema legalidade/ ilegalidade da cobrança.
Esta tese do juizado na interpretação profissional do “direito de juristas” de-
liberou pela legalidade da cobrança, o que tem por efeito a autorização ju-
dicial dessas cobranças pela empresa concessionária, numa decisão objetiva
que caiu como uma luva aos interesses econômicos capitalistas e que, por
outro lado, violou a reciprocidade entre os atores no contrato real, sendo
reproduzida em seu teor para os demais casos:
Capa
(...) inadequada e desinteressante intervenção do poder judiciário na econo-
Sumário mia (...) antes dos anos noventa, o Estado atua de uma forma direta no domí-
nio econômico, sendo desnecessária qualquer forma de controle do Estado.
eLivre Afinal, ele era o proprietário da maioria absoluta das empresas concessioná-

190
Sociologia do direito

rias, invadindo até setores que tradicionalmente sempre coube a iniciativa


privada (...) abarcar responsabilidades alheias é retroceder na evolução e afir-
mação dos princípios e ideais democráticos, o Poder Judiciário deve primar
pela estabilidade de suas condutas, pela coerência de medidas dentro dos
limites imaginários, a fim de, pensando em contribuir, não prejudique o pro-
cesso histórico de conquista social pelo próprio povo que fez a nação (...) é
estranha a competência do poder judiciário dizer se o preço da tarifa é abu-
sivo, legal, ou ilegal, num questionamento muito restrito ao caso particular
(...) só a lei pode ditar regras de ação positiva (fazer) ou negativa (deixar
de fazer, abster-se), não se arvora a atingir a competência do outro –ma-
téria de legislar (...) (SENTENÇA DE MÉRITO, Juizado de Camaleônico, 2005)

Essa “ansiedade jurídica” sobre os fatos procura diferenciar os fatos do


universo dos julgamentos, ao invés de uni-los. Mas, o que quer dizer neste
caso que no primeiro julgamento do prático jurídicos e fez uma interpreta-
ção legalista do direito? Isto quer dizer que na interpretação do direito há
primazia da lei sobre as outras fontes de produção do direito, colocando em
“suspensão” as jurisprudências e as reclamações do consumidor. As recla-
mações, como fonte do direito, foram fundamentadas em novas condições
Capa contratuais: “um novo tipo de ação leva a mudança na significação do direi-
Sumário to vigente ou a criação de um direito novo (...) é mais frequente que os in-
divíduos criem um novo conteúdo da ação social ‘inventando-o’, e que este
eLivre conteúdo depois se propague por imitação e seleção” (WEBER,1999, p 69).
191
Sociologia do direito

Temos algumas considerações a fazer em torno desta decisão em seus


efeitos e impactos para a sociedade de consumidores em Camaleônico. A
primeira delas, que é também a mais difícil, é que esta decisão implica no
enfeixamento da ação do consumidor no aspecto estritamente legislativo,
deixando-o, de forma autoritária, à espera da regulação para os serviços te-
lefônicos, submetido no interstício da ausência e criação de nova lei à con-
dição não desejada de subordinação pessoal e autoritária à empresa capi-
talista. A segunda implicação é que esta sentença opera um deslocamento
da demanda para a competência legislativa, numa passagem institucional,
procedimental - o que indica tanto a afinação das atividades práticas, quan-
to a estrita e formal atribuição de competências, sendo privada a potência
dos meios democráticos na comunicação material das demandas.
O terceiro aspecto trata de uma constatação: esta decisão de primeiro grau
traz no texto uma reflexão sobre o papel do Estado, disciplina elementar no en-
sino das faculdades de direito, aspecto que tem precedência na decisão ou apli-
cação do direito na forma de uma regra racional: “em primeiro lugar, importa
a natureza do ensinamento jurídico, isto é, da formação dos práticos jurídicos”
Capa (WEBER, 1999, p. 85). Nesta orquestração, o direito é ao mesmo tempo na sua
aplicação um “direito de juristas” e materialmente um “direito do povo”.
Sumário
A quarta implicação consiste no fato de que as razões das partes não for-
eLivre maram materialmente a decisão – as informações oferecidas pelos consumi-
192
Sociologia do direito

dores, dos grupos que fazem parte na utilização dos serviços, dos aumentos
injustificados no valor da assinatura pela empresa de telefonia, e até mesmo a
capacidade salarial do reclamante na comunidade de Camaleônico, informa-
ções que são imprescindíveis no julgamento entrepares. Dessa maneira, a re-
clamação é acolhida na prática conciliatória, e julgada na prática inquisitorial.

O Segundo Julgamento em Camaleônico

No desfecho da demanda, passamos a discutir o segundo julgamento


em Camaleônico. No micro-sistema especial de Camaleônico, há dois jul-
gamentos tomados na perspectiva inquisitória, ou seja, na averiguação de
questões e na formulação da verdade, sem que esta se constitua pela tese
de uma das partes, mas pela tese do juizado no “direito de juristas”, numa
interpretação profissional. Esta terceira tese, conforme discutimos antes, ca-
racteriza-se por ser uma tese legalista. Por sua vez, a segunda decisão ou o
que seria uma quarta tese, a tese do revisor, naquela turma recursal durante
o ano de 2005, nos casos de bens essenciais em estudo, apresenta-se com
Capa
poucas variações, esta forma de um despacho:
Sumário
eLivre Acorda a Egrégia 2º Turma recursal Mista da Comarca..., à uma unanimidade
de votos, conhecer do recurso por ser tempestivo, e negar-lhe provimento,
193
Sociologia do direito

nos termos do voto oral do relator, mantendo-se a sentença recorrida pelos


seus próprios fundamentos, deixando-se de condenar o recorrente vencido
ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, por ser o
mesmo beneficiário da justiça gratuita. Participaram do Julgamento: Rela-
tor, 1º Vogal, 2ºVogal, Promotor e Secretária. (CERTIDÃO DE JULGAMENTO
da 2º Turma Recursal Mista, 2005)

A única forma correta de colocar o problema é antes esta: até que ponto
são as concepções “populares”, isto é, difundidas entre os interessados no direi-
to, capazes de impor-se contra o “direito de juristas” dos praticantes do direito,
constantemente ocupados com a invenção dos contratos e com a aplicação do
direito (“advogados e “juízes”). (WEBER, 1999, p. 84). Em termos materiais, este
julgamento confirma julgamento de primeiro grau nos seus próprios termos,
não se fazendo como de praxe uma satisfação das partes em argumentos racio-
nais, evitando-se uma nova tese e, na falta de ação deliberada, confirmou-se a
tese legalista de primeiro grau aos consumidores reclamantes. A decisão despa-
chada se viabiliza formalmente o prosseguimento processo, ao não reexaminar
a matéria, torna o recurso neutro e negativo enquanto instrumento autônomo
Capa em face do inconformismo da parte solicitante com a decisão de primeiro grau.
Finalmente, esta atividade da turma recursal, ao desapreciar as teses opostas
Sumário
nos termos objetivos, viola a reciprocidade entre os agentes no sistema de di-
eLivre reito e na sua base entre os pares constituintes da relação em deslinde.

194
Sociologia do direito

De outra maneira, a fixação da jurisprudência no Juizado de Camaleônico


ficou prejudicada, não sendo, portanto, possível, por este meio, a comuni-
dade se antecipar sobre as decisões proferidas e ter sobre estas alguma pre-
visibilidade, tanto para os práticos-advogados, quanto aos consumidores,
isto é, como veremos desestimulador de novas demandas na participação
dos consumidores na regulação da desmedida do mercado. Nesse sentido,
a liberdade de se comunicar se move nos limites e negociações com os pro-
jetos de mercado, sendo toda a interação intersubjetiva dos consumidores
e advogados com a turma recursal estruturada, sobretudo, na experiência
secular do direito romano primitivo, predecessor do direito moderno, numa
comunicação oral e sem fundamentação escrita.
Em Camaleônico, a normalização das relações de consumo de bens
essenciais no micro-sistema se ressente de um processo de racionalização
na administração dos julgados em defesa da sociedade de consumidores.
Esta ação dos práticos sedimentaria ou tornaria cognitivamente estável e
seguro, ainda que de forma sempre provisória, o entendimento em torno
das relações contratuais entre consumidores e as empresas concessioná-
Capa rias de telefonia.
Sumário
A decisão dos consulentes jurídicos era comunicada as partes oralmente e,
eLivre por escrito, à autoridade solicitante, mas até a época imperial isso se rea-

195
Sociologia do direito

lizava da mesma forma que o oráculo dos sábios jurídicos carismáticos ou


o fetwâ do mufti: sem que se lhe juntasse uma fundamentação (WEBER,
1999,p. 95)

Resta-nos ainda plantar a questão nos termos foucaultianos se a domi-


nação magistrática na instância recursal se enfraqueceu na decisão despa-
chada, ou se conformou a dominação da empresa capitalista exploradora
dos bens essenciais. Finalmente pensamos que o caso da cobrança da assi-
natura telefônica caracteriza derrota jurídica com ganho político, ao ter am-
pliado os limites do que pode ser demandado, desnudando o judiciário da
sua penumbra tecnocrática, trazendo-o para fora do amplo debate, sendo
assim, segundo Machado (1981), o judiciário pode ser pensado como parte
integrante do processo de democratização, pensando a mudança institucio-
nal de forma complexa.

O desfecho nacional – definitivo?

Capa Sendo esta a decisão final soberana do Juizado de Camaleônico, não foi
Sumário este, todavia, o desfecho definitivo do caso da assinatura telefônica, uma
vez que as vias judiciais comuns foram acionadas “alternativamente” pelos
eLivre autores interessados na demanda. As ações de inexigibilidade da cobran-
196
Sociologia do direito

ça de assinatura mensal passaram pelos Juizados Federais, na confusão de


competências, cujo réu deixaria de ser a empresa concessionária e passaria
a ser a agência reguladora. Estes processos foram recepcionados na justiça
comum estadual, subindo ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No STJ, as sentenças que tiveram entendimentos favoráveis aos autores
da demanda provavelmente serão reformadas, tendo os ministros entendido
a demanda na forma fracionada como o simples problema da autorização
judicial, cuja legalidade da cobrança é certa, ao considerar que a inexigibili-
dade da cobrança pretendida pelos consumidores acarretaria graves reper-
cussões a segurança econômica. A fixação sistemática do direito efetua-se,
pelo menos, no interesse da segurança jurídica, após conflitos sociais. Nesse
caso, os interessados na fixação escrita costumam naturalmente ser aquelas
camadas que até então mais sofreram pela falta de normas inequivocada-
mente estabelecidas e acessíveis a todo mundo, isto é, apropriadas ao con-
trole da justiça (WEBER, 1999, p. 124).
A ação é cumulada com ação de repetição de indébito, isto é, sendo de-
clarada a inexigibilidade da cobrança, os autores têm o direito de serem res-
Capa tituídos em dobro pelos valores pagos indevidamente. Os votos iniciais dos
Sumário julgadores não demonstraram simpatia com os consumidor-reclamantes.
Apesar do título concedido à demanda pelos autores buscando legitimar o
eLivre pedido, o seu verdadeiro conteúdo reclama de forma contextual uma regu-
197
Sociologia do direito

lação nas modificações contratuais que deixavam de ser justas para serem
desmesuradas. Finalmente, sendo hegemônico a necessidade de regulamen-
to, fora aprovada lei, sendo a conversão de plano telefônico nos terminais
consumidores realizada até julho do ano corrente. A empresa concessionária
tem autorização para cobrar legalmente a queixosa “taxa” de assinatura de
manutenção com franquia de minutos, pondo a disposição dos consumido-
res planos residenciais obrigatórios – o básico e o alternativo, cuja cobrança
contratual passa a ser renomeada de pulsos para minutos – conforme enten-
dimento pacífico dos órgãos de defesa do consumidor, buscando facilitar o
controle das contas pelos consumidores. É preciso observar, no entanto, que
a mesma autorização legislativa dispõe sobre adicionais de tarifas e taxas
de complementação, e que o simples ato de atender a ligação local se pro-
cessam alguns minutos - modificações em que há tempo para conformação
pelos consumidores, tornando-se a priori indiscutíveis.
Na definição legislativa e, na nova situação contratual, poder-se-ia dizer
que a defesa do consumidor foi efetiva na medida de forças com os interesses
e sabedoria do mercado? Os planos oferecidos são compatíveis com as neces-
Capa sidades dos consumidores e as exigências trazidas com o atual estágio de de-
senvolvimento tecnológico? Estas questões demandariam estrategicamente
Sumário
análises e observações amplas. Pensamos que, na forma liberal, consumidores
eLivre e empresas concorrentes criarão planos de serviços... tendo em vista a quali-

198
Sociologia do direito

dade da comunicação social, e da convivência, a comunhão de valores, tendo


o serviço de telefonia importância às comunidades de interesses.

“(...) a legalidade intrínseca à lógica de todo pensamento jurídico formal


(é) inconciliável com as ações juridicamente relevantes dos interessados e
com seus acordos, fechados para obter efeitos econômicos e orientados
em expectativas economicamente qualificadas. E este encontra, atualmen-
te, também apoio na opinião dos próprios juristas sobre seu procedimento.
(...) Referia-se em geral, somente a um círculo limitado de manipulações
consideradas sujas e fraudulentas. Nessa função, o direito podia garantir de
fato apenas o “mínimo ético”’ (WEBER, 1999, p. 146).

“O Procon atende em tudo o consumidor”: a primazia da demanda


como fonte do direito e as relações institucionais mantidas
na defesa do consumidor

O número alto de desistências e de extinção dos processos que versavam


sobre os serviços de bens essenciais revelou que na mesma medida em que
Capa estas demandas são crescentes, há seu descarte no Juizado de Camaleônico
Sumário por algum tipo de defeito formal. A amostra representada não registra o nú-
mero de desistência das partes, percebida no avançar da pesquisa. O que pu-
eLivre
demos perceber é que cuidam de reclamações de mesmo conteúdo material
199
Sociologia do direito

às demandas contempladas na amostra e que tiveram prosseguimento- jul-


gamento de mérito, e demandas acolhidas no PROCON. Quando se examina
no judiciário as ações processuais que tiveram por característica um número
elevado é comum constatar que uma grande parcela destas não teve decisão
substantiva de mérito. Durante o período de privatização, em média cinquen-
ta por cento das ações impetradas haviam sido extintas por algum tipo de
defeito formal (OLIVEIRA, 2005). De outra maneira, estas ações também pos-
suem um elevado número de extinção por desistência registradas na simples
ausência do autor, ou por ofício informando que a obrigação fora satisfeita em
acordo extra-judicial, nas vias administrativas, havendo desistências pessoal-
mente solicitadas em audiência, como demonstram estes termos:

(...) foi dada à palavra a advogada da promovente: ‘esta mesma requer a


extinção do processo sem julgamento de mérito, haja vista, a petição inicial
ora apresentada não conter subsídios ao nível para que este Juizado venha
poder julgar a ação. Assim sendo, entende-se também a necessidade de
uma perícia técnica, perícia esta, que este Juizado não tem competência.
Requer desentranhamento de documentos’. (TERMO DE AUDIÊNCIA, Juiza-
Capa do de Camaleônico, 2005)

Sumário
“É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante
eLivre concessões mútuas” (art. 840, CÓDIGO CIVIL). A ausência de inscrição de
200
Sociologia do direito

micro-empresa no caderno processual desabilitou o pequeno mercado a fi-


gurar como polo ativo na ação de indenização. Embora houvesse registro de
farta comprovação93 de danos materiais e morais em face da empresa con-
cessionária pública, aquele teve a conciliação ou decisão de mérito prejudi-
cada. A ausência do cadastro se torna um impedimento formal ao processo,
isto demonstra que apenas os consumidores que contribuem regularmente
podem contar com a segurança jurídica, o que reduz consideravelmente o
campo de ação popular. A questão das provas é um problema que requer
reflexão. Pensamos que no julgamento conciliador entre pares de demandas
simples, as provas poderiam ser dispensadas, e que isto somente seria pos-
sível na confiança e fácil informação de uns com os outros. Observamos que
as provas no caso dos bens essenciais são difíceis de serem produzidas no
sistema da empresa na declaração de uma suposta complexidade.
Este constitui um daqueles problemas que desestimulam os reclamantes
depois de ingressarem com ação processual no juizado, sendo as provas um
requisito indispensável junto aos pedidos de indenização por danos morais:

Capa É de se esperar que o consumidor deva aprender a respaldar seu direito,


produzindo as provas necessárias para pleitear uma indenização por danos
Sumário morais. É difícil para o julgador resguardar os direitos do consumidor quan-
eLivre do este não toma as medidas necessárias para provar o seu direito, não po-
dendo o julgador agir de forma parcial, sendo necessário a observância da
201
Sociologia do direito

lei acima de tudo, mesmo ciente de que a promovida sofre várias reclama-
ções nesse sentido. (SENTENÇA DE MÉRITO, Juizado de Camaleônico, 2005)

Outro fator que consideramos objetivo na desistência é a imprevisibili-


dade das decisões judiciais no sistema inquisitorial. O que se observa é que
os precedentes jurisprudenciais no micro-sistema de Camaleônico são de
domínio exclusivo dos práticos jurídicos em atividade na comunidade, tanto
pela sua linguagem especializada, quanto pelo fato de que a instituição de
Camaleônico no período em estudo ainda não havia tornado acessível pre-
cedentes ao público na administração e controle da justiça. As provas pro-
duzidas foram recursos visuais como fotografias e vídeo. Nos casos em que
o juizado não pode decidir, acatando a tese de complexidade, as demandas
ficaram à solução da empresa com usuário, com todas as dificuldades de-
monstradas por este último. Na verdade, como se verá adiante, a audiência
de conciliação garante ao autor uma solução, por seu poder coercitivo, mas
o conteúdo dos acordos muitas vezes tem extensão meramente administra-
tiva. Como registro, nos termos de audiência, fica evidente o alívio na extin-
Capa ção do processo, tendo em vista o princípio da celeridade:

Sumário
(...) verificada a ausência de qualquer pressuposto de constituição ou de-
eLivre senvolvimento válido e regular do processo, deve o mesmo ser extinto sem

202
Sociologia do direito

julgamento de mérito, in continenti, aliviando assim o excesso de processo


em tramitação na justiça sem perspectiva de êxito final. (TERMO DE AUDI-
ÊNCIA, Juizado de Camaleônico, 2005).

Na forma de conclusão, tornou-se imperioso perguntar na justiça do con-


sumidor, qual a articulação necessária entre as duas instituições - os Procon
estadual e municipal, entre estes e o Juizado de Camaleônico, a priori forte-
mente delimitados na separação de competências. Ainda que os governos
estadual e municipal em Camaleônico sejam exercidos por grupos políticos
rivais, as comunicações processuais não demonstraram uma declaração ex-
plícita de rivalidade, mas alguma ordem de relação institucional se mostra
preciso refletir nas suas implicações à justiça do consumidor. Se a atividade
do PROCON consiste em instruir processualmente o consumidor na emissão
de parecer jurídico para figurar como documento e prova da existência da
lide e da diligência do consumidor em resolvê-la nas instâncias oportunas,
no Juizado de Camaleônico, os pareceres dos consultores jurídicos se tor-
nam uma simples constatação da demanda:
Capa
Quanto ao mérito não é árduo perceber que a promovente diligenciou no
Sumário sentido de resolver o problema e não sofrer os efeitos nefastos da interrup-
ção do serviço telefônico, demandando não só a empresa promovida quan
eLivre

203
Sociologia do direito

to o órgão de defesa do consumidor (PROCON), recebendo deste parecer


que lhe foi favorável. (SENTENÇA DE MÉRITO, Juizado Camaleônico, 2005)

De outro lado, o julgador na formação do seu entendimento profissional


está comprometido de forma estrita no que prevê a lei. Apesar da legisla-
ção comum, o PROCON a interpreta segundo premissas políticas, ou seja,
conjuga a política nacional das relações de consumo, os dispositivos legais
e a reclamação do consumidor. O que se observa é mesmo que o julgador
elabora um entendimento inteiramente distinto da mesma matéria de con-
sumo. Embora esteja decidindo sobre dever de indenizar, o que movimenta
um quadro de questões diferentes, e o direito probatório, observa-se que
o parecer do PROCON atribuindo a empresa negligência, imperfeição ou
defeito no serviço não aparece como ação formadora que, somada a nova
denúncia do consumidor, comporia o bom julgamento.
É preciso, conforme se percebe no avançar do caderno processual, que
haja a produção de uma prova certa, ou seja, a perícia técnica de respon-
sabilidade da empresa que, por sua vez, segundo a tese dos advogados da
Capa empresa, é matéria complexa, o que demandaria outra jurisdição, buscando
assim de forma estratégica afastar a esfera do juizado especial, cuja com-
Sumário
petência abrangeria apenas matérias simplificadas. A relação entre as insti-
eLivre tuições na justiça do consumidor é, portanto, de complementaridade, mas

204
Sociologia do direito

obedecendo a hierarquia, agindo o Juizado com maiores poderes ao relati-


vizar o parecer do PROCON enquanto um subsídio a instruir o processo e a
interpretação do direito:

(...) Ademais, a simples reclamação num PROCON, administrativamente,


também não autoriza se aferir direito alegado, em face da ausência de com-
provação da negativa de habilitação do aparelho de telefone em linha com
outro ddd. Destarte, declaro extinto o processo sem julgamento de mérito”
(SENTENÇA DE EXTINÇÃO, Juizado Camaleônico, 2005).

De outra maneira, assim como demonstrou Rego (2007), se a atuação


dos antropólogos no Ministério Público como agente político da lei é “pare-
cerista”, a atuação dos consultores jurídicos no PROCON é semelhante, des-
tinando-se ao convencimento negociado. O que se observa nos cadernos
processuais do Juizado Camaleônico é que os juízes não tomam os pareceres
enquanto um “recurso” útil na ampliação interpretativa dos fatos e normas,
mas se opera sua restrição, reduzindo e desarticulando a compreensão do
conjunto de reclamações, as práticas e a atuação de ambas as instituições...
Capa
A legislação prevê a inversão do ônus da prova, uma vez que o consumidor
Sumário não tem controle sobre os meios de produção dos bens (art. 6º, VIII do CÓ-
eLivre DIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR).

205
Sociologia do direito

Dessa maneira, a relação entre o direito produzido pelo PROCON na for-


ma de pareceres, e o direito produzido nos julgados do Juizado Camaleôni-
co é de independência da parte deste último em face da atuação política e
jurídica daquele.
Esta relação de independência do Juizado com relação ao PROCON pa-
rece uma modalidade institucional daquela “afinidade relutante” disciplinar
demonstrada por Rego(2007), neste caso entre a política dos fatos e a produ-
ção do direito. Sendo assim, o PROCON revê sua posição e seu papel como
agente da justiça do consumidor em face do juizado, numa nova tentativa
de negociação, refletindo sobre os efeitos práticos dos entendimentos sus-
tentados no Juizado, e buscando uma visão de conjunto: “se a alegação (do
consumidor) não bate com a justificativa da ré, o processo descamba para
a extinção, em face da complexidade de uma perícia que teria que ser feita”
(PARECER DO PROCON, 2005).
Se a dimensão do político se destaca nos fatos arquivados, pensamos nos
termos de Lefort, se eles mesmos não questionam a separação de princípio
entre Estado e sociedade civil. O PROCON, ao acolher com primazia as de-
Capa mandas como fonte na produção do direito; na espécie de lema de luta res-
Sumário paldada no direito objetivo, onde se afirma que “o PROCON atende em tudo
o consumidor”. Isto quer dizer que toda reclamação feita é obrigatoriamente
eLivre recebida, sendo este o aspecto que o distingue qualitativamente do direito
206
Sociologia do direito

produzido no julgamento do prático jurídico. Como já destacamos, na justi-


ça do consumidor, PROCON e Juizado são instituições públicas fortemente
diferenciadas por suas competências, se o PROCON autoriza o consumidor
por meio de parecer a acionar o juizado, verifica-se que no juizado, passada
a fase procedimental de conciliação sem êxito, os consumidores retrocedem
ao regime descrito anteriormente sobre os julgados na absoluta autonomia,
independência e dominação do magistrado, o que torna o Estado um poder
opressivo e instituições democráticas injustas.

Considerações

As formas jurídicas de escuta das demandas são formadoras da ação es-


sencialmente comunicativa no processo judicial, integrando todo o sistema
até a instância recursal, de onde emana e se consolida jurisprudência, nor-
malizando as relações de consumo. Em Camaleônico, o problema do juizado
pareceu-nos mais controverso, revezando-se entre conciliação e inquisição.
Dessa maneira, a micro-justiça não é um sistema somente de relações hori-
Capa
zontalizadas, mas nela co-existem a prática de conciliar e julgar, na fórmula
Sumário pura ou redutora a cada rito jurídico. Assim, a pessoa do julgador, seus en-
gajamentos ordinários, e o seu quadro institucional são decisivos na apli-
eLivre
cação do direito, conforme esteja mais ou menos influenciado por um tipo
207
Sociologia do direito

de prática. No micro-sistema dos Juizados Especiais, se a ação do prático se


estrutura comunicativamente na forma conciliadora, o fato social em suas
regras genuínas se torna de forma crescente um elemento político constitu-
tivo e sistemático às jurisprudências, ao mundo do direito em sua vida ins-
titucional, superando a dicotomia entre fatos e normas. Se fatos e normas
possuem objetividade e positividade, ambos são exteriores e coercitivos aos
indivíduos, e compõem a estrutura e ordem social. Se os fatos têm forma
política, códigos, símbolos; as normas lhes concedem forma jurídica, uma
instância secundária de reflexão, experimentalmente democrática, com po-
der deliberativo sobre a vida social. Na comunicação processual em Camale-
ônico, as práticas e formas jurídicas são internalizadas pelos consumidores,
renovando a justiça institucional no exercício dos direitos subjetivos e ob-
jetivos. Assim, há duas ordens de mudanças advindas do processo comuni-
cativo: uma que se refere a modificação das pessoas, segundo experiências
parciais, ao internalizar o outro numa compreensão ampla dos processos de
forma transcendente, de outra maneira, há transfigurações físicas, exterio-
res, com menor interferência subjetiva na recusa ao outro da relação.
Capa No desenvolvimento do Juizado de Camaleônico seria preciso comparti-
lhar a ação com o Programa de Proteção ao Consumidor (PROCON), e revisar
Sumário
a interpretação legalista dos direitos e obrigações, aumentando o valor das
eLivre jurisprudências e reclamações como fontes do direito, formando material-

208
Sociologia do direito

mente a interpretação do julgador, cuja ação legítima tem por sentido maior
o acolhimento e melhoria da boa vidada comunidade no controle dos gas-
tos e do orçamento das cobranças crescentes, que se mostram excessivas
e onerosas da parte das empresas concessionárias públicas – sendo estas
de caráter privado e de forte sentido público na organização da vida social
moderna. Se ultrapassar o formalismo significa ir além do direito, as recla-
mações e as jurisprudências teriam a fixação ampliada para alcançar a vida
social, sendo registro e instrumentos da coletividade, da experiência política
local, o que assegura, na regulação do mercado, o consumidor em face das
séries de redefinições contratuais.
Dessa maneira, além das políticas e programas sociais, o Estado atua-
ria positivamente no judiciário, sobretudo enquanto garantidor das relações
conflituosas e da vida social, na passagem ao estado de paz e, nos limites
com o mercado, para uma adequada oferta e retorno dos bens essenciais à
comunidade, resguardando os indivíduos tanto na sua individualidade quan-
to a coletividade, redirecionando em proposições coletivas e locais, ações
normativas para as empresas concessionárias - administrando a justiça do
Capa consumidor, o ambiente de negócios, a liberdade e segurança nas relações
sociais e financeiras tanto das empresas, quanto dos consumidores. Esta
Sumário
proposição tem algumas consequências, como a de formar um pacto subs-
eLivre tituto ao entendimento predominante nos Juizados Especiais de que o cons-

209
Sociologia do direito

trangimento na prestação do bem enseja ofensa individual, exigindo os da-


nos morais, o que reforça o caráter privado da obrigação da reciprocidade.
Conforme se procurou expor a noção de reciprocidade maussiana consiste
na dimensão relacional do direito, intrínseca na obrigação do dar, receber e
retribuir; e englobaria, portanto, simultaneamente direitos e valores.
Sendo a dimensão relacional e dos valores coletivos imperioso resguar-
dar, mais do que um ou outro indivíduo/grupo na relação de consumo, a
questão do uso que se faz do nome das pessoas nas práticas de concessão
de crédito e de mercado não parece, portanto, nesta investigação o aspec-
to mais relevante. A indenização por danos morais fatalmente desestimula
o sentimento da vida comunitária, ensimesmando o indivíduo na satisfação
de um “direito”, conforme nos indicou Chanial. Por outro lado, na ocasião da
demanda, o gestor pode compreender a prestação inadequada do serviço
reclamado enquanto uma ofensa à coletividade na vida comum dos indiví-
duos, exigindo as mudanças e melhorias materiais, mas, sobretudo, a publi-
cidade da obrigação e a generalização da reciprocidade.
De outra parte, enxergamos os dilemas do julgador, decidindo de forma
Capa abstrata, por não haver na agenda de estudos uma história material interli-
Sumário gando em cadeia as demandas da sociedade no processo judicial, estando
este comprimido pela velocidade das mudanças políticas, econômicas e so-
eLivre ciais sobre as quais deve “operar” e decidir. Pensamos que o julgador vive
210
Sociologia do direito

a imposição da neutralidade e imparcialidade em relações de consumo que


ele mesmo está envolvido como parte – como ignorar esta condição -ves-
tindo o véu da ignorância?
Neste sentido o princípio da informação contratual é relevante na deci-
são, assim com a crescente aproximação do julgador com os problemas da
comunidade na forma tentativa e conciliadora, poderemos de forma con-
sequente ter a estabilização e regulação cognitiva desta ordem de relações.
De outra parte, como pudemos perceber, o direito se reflete na sociedade
que regulamenta e vice-versa, sendo o julgado, assim como a conciliação,
completado na ação simultânea, concorrente ou posterior das partes cons-
tituintes, de reparação de status, ou de revisão obrigacional, o que torna na
sociedade de consumo as relações contratuais mais justas.

Exploração: revisitando os descritivos

Neste momento da pesquisa, segundo a recomendação de Blumer (1984),


Capa discutimos as imagens arraigadas, enquanto descritivos à luz das novas des-
crições do campo. Esta fase da pesquisa consiste na busca de objetivos se-
Sumário guros, tendo em vista aprimorar e desenvolver a investigação em torno do
eLivre problema de pesquisa, revisando imagens, crenças e conceitos: “A explora-

211
Sociologia do direito

ção é, por definição, um procedimento flexível no qual o pesquisador muda


de uma linha de pesquisa a outra, adota novos pontos de observação para
avançar em seus estudos, move-se em direções previamente impensadas”
(BLUMER, 1984, p. 24).
O primeiro descritivo se refere ao fato de que as demandas são recep-
cionadas nos juizados especiais segundo o enquadramento legal, numa fil-
tragem como procedimento de balcão. Consideramos que isto é verdadeiro
nos tribunais tradicionais cujo modelo de jurisdição é centrado no processo
e cuja escuta da demanda somente se realiza segundo o estrito enquadra-
mento legal, reduzindo e enfeixando a esfera de ação social no legalismo.
Nos juizados especiais, o processo existe de forma secundária, sendo pri-
mordial o “espírito” conciliador no atendimento das demandas, tendo a ins-
tituição através dos seus atores imbuídos desse dom, preservado ainda que
de forma simplificada o campo de ação interpretativa dos reclamantes.
A segunda observação se refere aos fatos que “explodem” nos tribunais
e a ansiedade jurídica na interpretação dos fatos. Pensamos que a “explosão
dos fatos” tem como ação anterior o programa político de reformas liberais.
Capa Com efeito, o projeto de privatização das empresas concessionárias redefine
Sumário muitos aspectos dos contratos celebrados com consumidores dos serviços
públicos... Este é um descritivo da antropologia jurídica, presente em Car-
eLivre doso de Oliveira. Para Geertz, o temor sobre a explosão dos fatos sempre
212
Sociologia do direito

foi um sentimento jurídico, cujas mãos perderiam o controle do mundo e a


ocorrência das circunstâncias, compensado por cautela a esterilização dos
fatos, confundindo a própria prática do direito: “como diz explicitamente
um desses compêndios mais recentes, a função do juiz nas questões de ad-
missibilidade é decidir quando o julgamento seria melhor sem a evidência”
(GEERTZ, 1997, p. 256).
Estas redefinições contratuais provocam a estrutura e ação jurisdicional
ao questionamento das ações/planos verticais, onde as relações das em-
presas com usuários se posicionam na seara contratual da economia priva-
da e da defesa do consumidor. Estes fatos não explicam outros fatos, mas
possuem como vínculo mediador entre eles as percepções individuais e as
novas criações, ou seja, uma dinâmica de resposta subjetiva aos problemas
de ação para solucioná-los (JOAS, 1999). A terceira observação se refere ao
fato de que na defesa do consumidor o Procon e Juizado, de competências
distintas, operam de forma comum além da matéria, na interpretação e apli-
cação aos casos reclamados. Com efeito, embora sejam analisadas segundo
um modelo de integração normativa, essas instituições apresentam-se com
Capa relações de concorrência entre agentes coletivos (JOAS, 1999). Como as re-
lações de consumo pertencem a um “domínio social regulado por processos
Sumário
de mercado ou por interconexões não planificadas entre os resultados das
eLivre ações, considera-se que as instituições referidas constituem parte de um

213
Sociologia do direito

sistema orgânico, com funções a desempenhar, mas que no conjunto não


manifestam um sistema de valores integrativo” (JOAS, 1999, p.159).
A quarta observação se refere a precedência dos valores econômicos nas
demandas levadas ao juizado do consumidor. Com efeito, os consumidores
reclamam objetos com disposição do mercado, questionando no “proces-
so reflexivo” as mercadorias segundo o valor “simbólico” que tem para eles
mesmos no mundo da vida. Dessa maneira, na ação de negociação essencial-
mente política, os atores procuram estabilizar a corrente de interpretações
sobre os objetos na ação comum, e de forma que os consensos alcançados
pressupõem conflitos de interpretação necessariamente entre exploradores
e usuários, cujos acordos são sempre tênues e provisórios na ordem nego-
ciada – neles o poder, o conflito e as imposições estruturais desempenham
importante papel: “levam-se em conta resultados de ações passadas, (...)
processos anteriores de negociação ou a resultados intencionais ou não in-
tencionais da ação” (JOAS,1999, p. 164).

Inspeção: revisitando conceitos


Capa
Sumário Além dos meros relatos descritivos, buscamos o aprimoramento das re-
eLivre ferências conotativas de conceitos e na formulação das proposições teóri-

214
Sociologia do direito

cas, na investigação meticulosa da natureza de elementos-chave da análise,


se são pertinentes e válidos, testando e revisando na trajetória de uso no
mundo empírico: “seu exame cuidadoso deve ser feito no contexto da área
empírica da qual faz parte (...) podemos apanhá-lo, toma-lo de perto, olhar
por um outro ângulo distinto, levantar questões para saber como isto é pos-
sível, retornar ao problema...” (BLUMER, 1984, p.25)
Dessa maneira, passamos a inspecionar os termos que viemos discutin-
do no capítulo I enquanto recurso analítico ou elementos-chave na interpre-
tação do mundo dos juíza dos do consumidor. O primeiro termo é utilizado
por Rawls, “justiça mútua”. Com efeito, a justiça que atua nos limites com a
economia é aquela em que o contrato e a liberdade são centrais, assim, a
composição dos conflitos é formada na interação e deliberação mútua dos
indivíduos contratantes, oportunamente, segundo uma normatividade que
lhes é anterior. A segunda terminologia “justiça política” tem razões morais
objetivas na defesa do potencialmente mais fraco na relação de consumo.
Isto se observa nos enunciados normativos que concedem a defesa e no
dispositivo da inversão de prova para a empresa em favor do consumidor
Capa na limitação dos poderes da oligarquia econômica. A justiça do consumidor
é um campo normativo anteriormente definido como um campo formador
Sumário
de cidadãos, institucionalmente dispostas ao exercício da autonomia, tendo
eLivre os consumidores a oportunidade de reclamar o “valor justo e honesto” das

215
Sociologia do direito

suas liberdades subjetivas em face do mercado. Neste, as “boas razões” são


especificadas por meio do programa de justiça já reconhecido.
A terceira terminologia, “justiça dinâmica”, apontada por Heller, nos re-
porta à justiça do consumidor na sua prática da conciliação, onde as partes
agem autorizadas pelas normas vigentes, mas questionam além das normas,
buscando a justiça da relação contratual no “mundo da vida”, acolhendo de
forma ampla as reclamações além do que está estritamente prescrito em lei,
atualizando senão os termos da lei, o exercício do direito, segundo o “senso
de justiça”, em face ao fenômeno do mercado.

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Capa
Sumário
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230
Sociologia do direito

PARTE IV:
TEORIA SOCIOLÓGICA DA DÁDIVA,
REDES E CONSTITUIÇÃO SOCIAL

Capa
Sumário
eLivre

231
Sociologia do direito

I
O SISTEMA DE DIREITO
E O RECONHECIMENTO SOCIAL

A questão problemática no estudo sobre o dom na sociologia parece ser


a determinação do início dos estudos, isto é, sobre qual genealogia política,
social e constitucional devemos compreender as trocas de presentes, afim de
assegurar do sentido correto do presente (uma dádiva recebida), e de não
confundir este presente com uma herança politicamente corrupta, desmedida
ou criminosa. Este problema se justifica porque estudar o dom e a troca de
dádivas não é uma questão usual em sociedades capitalistas, negociais, e ter-
ceiro-mundistas (assistencialistas). Dessa maneira, a definição teórica consiste
em determinar a experiência histórica e política onde o dom adiciona aritmé-
tica ou geometricamente razão e sentido ao elo social. Esta questão proble-
Capa mática com que se inicia este trabalho se refere à pergunta sobre a posição
inicial dos contraentes, muitas vezes evocada no momento da constituição
Sumário do vínculo social, que acontece a todo instante, em sociedades cuja Justiça se
eLivre define pela teoria econômica contratualista de viés monárquico.

232
Sociologia do direito

Esta pergunta sobre o vínculo-elo social acontece a partir do entendi-


mento da qualidade da relação, da pessoa, e do bem e do que circula na
sociedade envolvendo a partilha de valores humanos, que não corresponde
necessariamente à estipulação do valor monetário. Como alternativa política
e social, a integração do circuito da dádiva em forma de associações e de
redes sociais não abandona a discussão filosófica que aborda o fenômeno
da inserção, continuidade, desvios, alternativas, da morte, e do esgotamento
social, esta última que caracteriza o fim da sociedade e da política. No tercei-
ro capítulo destaco as alternativas da teoria da dádiva para uma sociedade
como a brasileira, como é o caso da bolsa ou renda de cidadania.
Antes de iniciar esta discussão alternativa ao desemprego e a desocupação
que assola a memória da constituição republicana de direitos e obrigações
cidadãs, gostaria de acenar com uma breve história das metodologias em-
pregadas a partir dos estudos clássicos, a etnografia antropológica, filosófi-
ca e política. A renda de cidadania se trata de uma extensão do pensamento
social francês para compreender sociedades latino-americanas marcadas em
muitos traços pela perda de grande contingente populacional e pela desti-
Capa tuição de vínculos de cidadania, sobre a dádiva que esta renda de cidadania
veicula se dedicam os estudiosos da teoria da dádiva em todo o mundo. O
Sumário
contexto desta discussão recebeu ainda a influência no campo científico da
eLivre Psicologia em abordagens interacionistas especialmente no período come-

233
Sociologia do direito

morativo de aproximadamente uma década de estudos, e de publicações da


dádiva que marcam a teoria da dádiva no Brasil. Entendemos que os au-
tores filiados a uma abordagem dukheimiana-maussiana equacionaram os
problemas modernos de sucessivas guerras e revoluções, ao assegurar com a
noção da dádiva e do presente a constituição moral e espiritual da sociedade
moderna. Os autores que informam esta teoria procuram demonstrar que os
valores do mercado capitalista estão corrompendo os princípios formadores
da sociedade e da associação, da família como núcleo de nascimento, e da
esfera pública como ordem de desenvolvimento valorativo. Não é possível
neste momento afirmar se existe uma particularidade ou um jeitinho na so-
ciedade brasileira que a diferencie da compreensão normativa e histórica da
formação de direitos e da sociedade francesa, ao contrário, apesar de tercei-
ro-mundista, a sociologia brasileira não se distinguiu da defesa dos direitos
originados com as revoluções constitucionalistas europeias, reflexionadas
no Brasil. Salvo as conquistas sindicalistas, os movimentos sociais se en-
contram alijados da participação cidadã. Ainda não é possível equacionar a
pergunta acerca de uma autenticidade brasileira relativa à prática da justiça,
Capa respondendo por si mesma em missão metodológica de observação com
moradores, se existe um pensamento teórico dadivoso (diferente do sentido
Sumário assistencialista) adotado publicamente pelo Estado em seu corpo de juristas
eLivre e político de viés presidencialista, assim como pelas associações em defesa

234
Sociologia do direito

da sociedade, e pela sociedade brasileira enquanto corpo político em seu


processo de crescente participação democrática.

Dádiva e Justiça Social

A moral acoplada ao direito nele se afirma, e neste binômio é que se ra-


dicaliza a justiça social para todas as sociedades democráticas, que fazem
parte do círculo (hermenêutico) da dádiva, a constituírem o processo do
reconhecimento coletivo. O debate central consiste em responder como a
justiça, uma categoria universalizada, transmutou o direito em uma relação
do cálculo e como a justiça por sua natureza social integrou o circuito só-
cio-antropológico das prestações e contraprestações, agonísticas. Sobre as
bases desta oposição entre o cálculo e o agonismo é que se agencia o con-
ceito eminentemente filosófico de justiça social, e que se deve pensar criti-
camente um novo paradigma para o direito.
Considerando a normatividade social em transição, do universalismo ao
Capa particularismo, o paradigma do dom, ou da doação, propõe a circulação e
historicidade do sentido criado por cada sociedade em determinado contex-
Sumário to mutuamente partilhado. Neste sentido, o direito encontra dificuldade na
eLivre particularização nacional ao propor um diálogo interativo crítico e inquisi-

235
Sociologia do direito

tivo. Por outro lado, a sociologia de Durkheim realiza uma reflexão em que
a transição das dádivas que circulam nas sociedades primitivas é considera-
da em primeiro plano na investigação atual das sociedades que tem como
regra a divisão social do trabalho. Por que é tão importante sustentar esta
amarração como um problema inicial aos estudos comparativos? A resposta
a esta pergunta é que devemos criticar o direito e a justiça que sustenta uma
sociedade nos limites agonísticos, e radicalizar a compreensão da doação e
da solidariedade como perpetuação do elo social.
A doação ao integrar a regra normativa da divisão social do trabalho
não implica apenas na disposição ilimitada pelo dono do capital da força
de trabalho. É o que pensam os marxistas acerca do paradigma da dádiva.
O princípio da reciprocidade, ao se somar aos demais princípios republica-
nos, como a igualdade e a liberdade definem contraprestações recíprocas,
onde a questão da internacionalização e particularidade do direito importa
na constituição dos contratos sociais. Porque o princípio da reciprocidade
inclusive modifica a posição inicial sob o princípio republicano da igualdade,
ao desvelar o véu da ignorância, sob a pactuação de pessoas que partilham
Capa bens de acordo com a situação espacial no qual se encontra motivados. Isto
é, a disposição da força de trabalho pelo empregador como regra não de
Sumário
reciprocidade, mas regra de exploração, modifica-se crescentemente com a
eLivre democratização dos meios, assim como pela disposição da força de trabalho

236
Sociologia do direito

pelo próprio trabalhador segundo um planejamento que envolve a motiva-


ção do lugar e a eleição das prioridades.
Assim, a posição de igualdade não se estabelece sobre dois ou mais su-
jeitos universais, entre os proprietários do capital e da força de trabalho, mas,
sob o novo paradigma da dádiva, a relação de trabalho salarial, voluntária,
ou a renda de cidadania modificam a posição inicial de pactuação recíproca
entre os dons e as qualidades pessoais, que podem ser sentimentos de esti-
ma ou afeição e uma atividade definida por associação. E o mais importante
é que esta pactuação entre proprietários orienta entendimentos mútuos so-
bre a condição do conjunto associativo.
Segundo as interpretações dominantes, a divisão social do trabalho sobre
esta regra representa um conjunto mais orgânico em que o reconhecimento
social é a orientação limite do novo direito. Este é um conjunto discursiva-
mente ético diante da diferenciação e complexificação social. Segundo Car-
doso de Oliveira, este conjunto representa “médias direcionadas” para sis-
temas de direito, colonizado no passado por um processo de racionalização
do mundo da vida, mas ele também culmina com o processo muito comum
Capa em se tratando de sistemas e que consiste na de-simbolização. Apenas por
Sumário uma rearticulação destes conjuntos, torna-se possível a comunicação e co-
munhão de sistemas autônomos, e mesmo a comunicação entre gerações
eLivre de uma sociedade particular.
237
Sociologia do direito

Nesta sociedade particular, as pessoas que rivalizam são pertencentes


a famílias que também rivalizam, e às gerações são sistematicamente des-
membradas por outro tipo de solidariedade que não é a solidariedade por
parentesco social, mas a solidariedade pela divisão do trabalho. Estas situ-
ações foram muito comuns na história das sociedades, mas sempre foram
representadas como pano de fundo dos contextos estudados, rivalizando e/
ou conciliando a compreensão da parentela com a compreensão sobre sis-
temas de trabalho.
O sistema de solidariedade por parentesco, segundo a perspectiva
durkheimiana, é, com efeito, a solidariedade primária, aquela que permite a
participação cívica na comunicação de problemas e a composição do siste-
ma inter-geracional, ou ainda entre sistemas internacionais. Por outro lado,
a solidariedade pelo trabalho que estamos chamando de orgânica prescin-
de de uma sinceridade que, segundo Cardoso de Oliveira (1996), é menos
conclusiva que o discurso prático normativo e veritativo, mas ela é capaz de
definir, pelo princípio de reciprocidade, uma noção satisfatória por sua es-
pontaneidade do que é justo dizer.
Capa O trabalho orgânico e solidário implica enquanto elementos partilhados
Sumário pelo discurso moderno “subir” na genealogia, no sentido comunicativo. Im-
plica responder a questão do que significa ter um direito para as famílias
eLivre constituídas, avaliar herdeiros, a perspectiva própria, as normas e a quali-
238
Sociologia do direito

dade interativa, a dimensão relacional do direito, o equacionamento moral,


familiar, e a conseqüência do reconhecimento considerando exclusivamente
a dimensão da divisão do trabalho e o direito à cidadania cuja centralidade
é o trabalho.
As questões sociais, como discorremos, trazem com elas a problemática
da economia solidária: qual o sentido das normas a que devemos os nos-
sos direitos, e a que nos obrigamos com deveres? O “dispositivo simpático”
acionado pela posição original pressupõe um exercício de reconhecimento
mútuo e da igual solicitude em relação a todos os membros da sociedade,
esta solicitude por si mesma que funda uma economia moral diferente da
economia do cálculo de ganhos e de perdas (CHANIAL, 2001).
Este agir só faz sentido segundo a sociologia na economia associativa,
devido a afeições e laços motivadores, sendo a justiça necessária quando a
economia capitalista torna desconhecidos aqueles que são diferentes, onde
as questões “o que eu recebo”, e “o que eu tenho direito” não possuem fron-
teiras distintas, com efeito, segundo os autores, não é no ambiente formal
de sociedades totalitárias que a compreensão do direito nascerá. A justiça
Capa pratica um pensamento dual ao aplicar na primeira instância o princípio da
Sumário hierarquia e economia moral nascidos na comunidade familiar, e na segunda
instância, a motivação e divisão do trabalho. É sobre este conjunto criterioso
eLivre que repousam as instituições do sistema da justiça, muitas vezes abando-
239
Sociologia do direito

nando as causas do desregramento familiar e do excesso no trabalho em


situações bem particulares.

Dádiva e Associativismo

A dádiva define uma concepção de direito e de trabalho e uma economia


associativa, como queremos sustentar por definição. A questão da renda
incondicional é um exemplo justificado pelas ciências sociais, enquanto es-
cola, que nos leva a pensar nos limites teóricos do marxismo, da perspectiva
francesa e da perspectiva brasileira. A renda incondicional procura respon-
der os problemas do humano genérico ao propor a dissociação da renda, do
trabalho, e da justiça, da questão do lucro. A renda incondicional responde
a questão sobre o que significa ter direito ao trabalho, ao estabelecer os
limites, os valores, e as qualidades das pessoas contraídas, e as qualidade
daquelas que contratam o trabalho de outrem. Com efeito, esta questão é
a linha de frente dos estudos marxistas que definem a renda incondicional
como a solução ao problema do trabalho na nova sociedade. Não obstante,
Capa
a perspectiva que Durkheim desenvolve apresenta os elementos conceitu-
Sumário ais que são solidários ao argumento proposicional da renda de cidadania.
Levantou-se a questão de que durkheimianos sustentam que o marxismo
eLivre
desenvolve uma concepção crítica da economia da dádiva de Marcel Mauss.
240
Sociologia do direito

Questiono se a renda de cidadania consiste em uma política de bolsa e de


liberação de recursos com ou sem objetivos claros e regulares, ou se ela
consiste na oferta e recebimento de um presente como força e sentido de
formar uma atividade, como um novelo de linha, por exemplo? Ou se a ren-
da incondicional consiste em uma cesta de alimentos naturais que formaram
doces naturais, “distribuídos” entre si? Ou de uma biblioteca ofertada e re-
cebida que formarão cartas variadas?
Assim, não comento o fim da sociedade do trabalho, mas o reconheci-
mento social como a finalidade última da sociedade do trabalho, em razão
da prática cultivada do princípio da reciprocidade como regra de sociabili-
dade primária, definindo assim a sociabilidade na economia associativa. Os
direitos humanos são constituidores desta renda associada ao trabalho de
natureza social e não explorada. O princípio da reciprocidade é, com efeito, a
variação mais extensa do princípio da solidariedade, mas esteve muito próxi-
mo aos mecanismos da exploração trabalhista. Como o princípio da recipro-
cidade é mais amplo, ele deve andar pari passu ao princípio da solidariedade
de Durkheim na crítica sociológica a fim de se dissociar do assistencialismo,
Capa que consiste na prática da manipulação dos ganhos e das perdas.
Sumário Vejamos o que o projeto de Durkheim e a sociologia francesa dizem sobre
isto. Durkheim nos apresenta a seguinte análise: que a economia do trabalho
eLivre possui uma divisão social diferente do parentesco, não obstante as relações
241
Sociologia do direito

de trabalho não devam prescindir das relações contraídas de forma primária.


Na verdade, para Durkheim, na esfera primaria está inscrita a maior parte das
regras da vida social, e a divisão do trabalho lhe deve correspondência. É esta
regra moral que os estudos da dádiva continuam sustentando no debate polí-
tico e acadêmico, e a consequência desta prática estabelece o reconhecimento
da qualidade dos sujeitos integrados pela forma colaborativa e participativa.
Na modernidade, articular a ação política e estatal consistiu em colocar
indivíduos em relação, isto é, em associação. A consciência prática da relação
entre o fenômeno associativo e o Estado é parte da crítica à economia clás-
sica, que apregoava o Estado como interventor das atividades econômicas.
Durkheim observa que as associações (corporações e sindicatos) organizam
a vida econômica, e que a aproximação das associações de uma maneira es-
piritual desfaz na vida econômica a tarefa intervencionista (inquisitorial) do
Estado. O Estado, ao ser liberado das tiranias individuais, é simplificado às
formações primárias, reduzindo assim a força do modelo burocrático típico
da sociedade burguesa e industrial. O modelo burocrático não corresponde
estritamente à sociedade socialista ideal, e a sociologia se encarrega de lhe
Capa propor a crítica moral ou ao experimentalismo administrativo sem referente
ou experiência clássica anterior que a defina.
Sumário
A vida associativa reformada se fundamenta, por definição e por seu ca-
eLivre ráter ecológico, na economia da dádiva, cujas características são: 1- trabalho,
242
Sociologia do direito

2- círculo de cooperação, 3- trocas não monetárias, 4- estímulo a contrair


dívidas, 5- Banco de registro das transações de doação e retribuição, 6- Re-
conhecimento de direitos e formas orgânicas de existência (VANDENBER-
GHE, 2004). Este conjunto de características revela que se intensificaram as
relações entre as pessoas através da “produção” e troca de bens; nos limites
das relações entre as pessoas circulam um valor não monetário chamado de
respeito nas relações de direito e de amor nas relações mediadas pela ética
cristã.
Tratava-se de resolver e confrontar problemas como o racionalismo e o
instrumentalismo nas relações de produção e na relação de dádiva no pre-
sente histórico, como lidar com esta ordem de relações e não desfazê-las
no desrespeito nas relações interpessoais. Na verdade, a dádiva se confunde
com as relações interpessoais, estando presente no direito e na troca eco-
nômica, esta última se forma efetivamente por uma simplificação da dádiva.
Em que sentido é possível inscrever e resgatar relações instrumentais a partir
do registro da dádiva, isto é, numa economia simbólica espiritual altruísta e
generosa, diferente da repetição e do registro mecânico da técnica? Esta é,
Capa com efeito, a pergunta que os teóricos levam em consideração no registro
de uma economia moral e solidária.
Sumário
Para Caillé (2002), a questão do direito passa, portanto, pela constituição
eLivre das associações, o que implica no registro do direito do tipo comunitário, no
243
Sociologia do direito

sentido de produção as próprias normas, democraticamente. Somente de-


pois de estabelecidas as convenções, pode-se então fazer a pergunta sobre
qual é o estatuto da associação democrática. Mas também se deve ques-
tionar a formação de novas normas regulamentares quando a experiência
e a tradição (jurisprudência) a definem. A fabricação das normas são criti-
cadas quando não se pretende desvirtuar a associação em um calendário
de procedimentos ou uma tabua horária sem limites. A regra de inserção se
define: “entrar em associação” significa “disponibilizar seu tempo e sua pes-
soa”. Assim, a questão associativa se vincula à dádiva desde o início por uma
declaração pessoal e partilhada de direitos e deveres civis; a associação por
definição consiste na atividade simbólica animada pela dádiva, bem como
pelo vínculo criado, pelas pessoas entre si, cada pessoa recebida como uma
miríade de dádivas, que são históricas e relacionais, isto quer dizer que elas
não são caóticas.
Esta relação de dádiva se constitui por uma interdependência recípro-
ca: a dádiva obriga a liberdade, tematiza a história, e mobiliza as redes pri-
márias de solidariedade; neste mesmo sentido, as associações se justificam
Capa por uma sociabilidade primária (da família, e da vizinhança, de sentido tra-
dicional), baseando-se no interconhecimento entre a primariedade e a se-
Sumário
cundariedade. Esta última, para Caillé (2001), na sociedade capitalista, ca-
eLivre racteriza-se pela redistribuição, pela solidariedade mecânica e impessoal, e

244
Sociologia do direito

pela seguridade social como sistema. Os defensores da renda incondicional


argumentam que se deve transformar o sistema redistributivo, por um novo
registro público pautado pelo reconhecimento público - da qualidade pes-
soal de quem realiza um trabalho, fazendo circular os bens e as palavras se-
gundo uma economia da dádiva entre doadores generalizados e receptores
particularizados. Resta aos estudiosos da dádiva ver solucionada esta equa-
ção entre generalidade, massificação e especificidades segundo a explicação
teórica da dádiva. Vamos em seguida apresentar uma proposta teórica que
nos parece um caminho plausível ao atual estado talvez de internacionaliza-
ção e indeterminação teórica da sociologia.

Orientação Teórica da Sociologia

Para Haesler (2002), a sociabilidade que importa passou a ser um aces-


sório pelas metodologias tradicionais das ciências morais desde a sua ori-
gem. Para a teoria da dádiva, a sociabilidade não se explica pela reciproci-
dade da troca econômica, mas por uma reciprocidade não monetária, que
Capa
inclui prestações e contraprestações em seu caráter histórico, não são ape-
Sumário nas prestações de pagar e receber, no sentido lucrativo, mas elas têm um
sentido organizativo da vida social, constituindo a própria sociabilidade. As
eLivre
relações de reciprocidade são constantemente tematizadas, por outro lado.
245
Sociologia do direito

Para Boltanski, elas estariam pautadas pela forma mais pura de amor, a es-
trutura cognitiva da pessoa partiria da ágape nas relações caracterizadas
pela gratuidade. Segundo Haesler, Boltanski reduz a dádiva a um ato único e
pré-reflexivo, sua concepção carece da ideia essencial de que a dádiva visa o
vínculo social e a síntese social. Assim segundo este autor, Boltanski exclui-
ria, de saída, que a dádiva possa ser objeto de uma prática, consistindo ape-
nas “no desabafo espontâneo da alma e, assim, que permaneça inexplicável
como tal” (Haesler, 2002, p. 142).

TROCA ANTI-TROCA (DÁDIVA)


SIMETRIA ASSIMETRIA
TEMATIZADA GRATUIDADE
. .
. .
. .
(HAESLER, 2002)

Este quadro revela que o significado da troca e o significado da anti-troca


Capa
conhecida como dádiva desenvolvem-se constantemente sobre esta combi-
Sumário nação. Mas que a dádiva como prática ultrapassa esta combinação – sendo
eLivre tratada como interesse por um objeto, ou como um desvio e acessório des-
tes objetos, sua descrição na segunda perspectiva permanece em primeiro
246
Sociologia do direito

plano em nossas sociedades - é de que ela se assemelha ao anonimato que


caracterizam as ações de doação. Nesta perspectiva, a dádiva consiste na
conquista regressiva da própria subjetividade em relação à parentela, e às
alianças constituídas, ela é medida pela obrigação e responsabilidade com
outrem, cuja assimilação acontece segundo a compreensão das palavras e
intenções que são endereçadas uns aos outros. De outra maneira, como vie-
mos discutindo aqui, ou ainda no interior da combinação acima, a dádiva se
baseia em diferenças e similitudes, mas ela não se exterioriza exclusivamente
pelas divisões sociais, como a divisão do trabalho. A dádiva como uma con-
quista da subjetividade compreende a combinação acima, atravessando-a
de forma transversa.
A ideia de uma renda incondicional é proveniente desta combinação, as-
segurando-se ao mesmo tempo da gratuidade da dádiva, com objetivo de
reinserir socialmente por meio da modalidade do trabalho associado, sem
a obrigação pública da renda atrelada ao trabalho que proporciona o lucro.
A renda incondicional é uma renda destinada para a associação. Para Caillé
(2002), ela parte da dúvida dos sociólogos sobre as certezas condicionalistas
Capa e a sua pertinência positiva e normativa. Esta ideia é inspirada em Durkheim,
de que a condicionalidade somente se “operacionaliza sobre as reservas de
Sumário
sentido antiutilitaristas e incondicionalistas” (CAILLÉ, 2002). A composição
eLivre explicitada é o que explica a teoria da incondicionalidade condicional. Ela se

247
Sociologia do direito

estabelece pelo princípio hierárquico e pela autonomia e irredutibilidade da


incondicionalidade sobre a condicionalidade. A incondicionalidade se apro-
xima ao ritual da aliança social. Ela somente deve ser condicionada devido
às hostilidades potenciais, e somente por esta razão se estabelece a ideia do
contrato social. Para Caillé, trata-se de distinguir sobre diferentes ordens de
incondicionalidade, uma vez que sua natureza genealógica é religiosa, mas
ela também coexiste com formas laicas e, finalmente, distinguir sua relação
com a ordem da condicionalidade.
Assim, discutimos a teoria clássica na leitura de Émille Durkheim e Marcel
Mauss. Como Marcel Mauss entende a lei da reciprocidade e como a inter-
preta a escola da dádiva. Qual a natureza do debate social na França e como
este debate configura a prática da sociologia nos dias atuais são aspectos
que viemos procurando explicar. O que é a dádiva e qual a sua extensão teó-
rica? Buscamos, neste terceiro capítulo, mapear os principais problemas, dos
fundadores aos dias atuais, procurando abordar uma análise teórica e meto-
dológica adequada sobre o dom, os seus dilemas e a sua recepção no Brasil.
É possível determinar de saída a vocação e a motivação das trocas (políticas,
Capa econômicas e sociais) na sociedade nacional, enquanto uma prática de ob-
servação e da instituição da sociologia do direito (titulada por Max Weber e
Sumário
discutida exaustivamente na Europa francesa)?
eLivre

248
Sociologia do direito

Pensamos que para responder a pergunta sobre a circulação de bens, de


direitos, e obrigações encerradas no pretório dos tribunais de justiça, fez-se
necessário investigar a teoria de Durkheim, e o projeto da sociologia onde ela
já apresentava as origens ou uma proto-história da dádiva. O que Durkheim
pensava a respeito da solidariedade, e por que é tão necessário refletir sobre
a solidariedade nos dias atuais. A reflexão sobre a sociabilidade coletiva se
originou nos estudos de doutoramento de Émile Durkheim, “Da divisão do
trabalho social”. A atualidade desta obra consiste na força normativa de suas
teses para a constituição da sociedade moderna, uma força notadamente
moral do pensador francês, porque ele nos informa sobre natureza do prin-
cípio da reciprocidade que orienta a dádiva, assim como as regras de direito
que a constituem.
Finalmente, na perspectiva francesa, as definições erguidas por Marcel
Mauss acerca da dádiva como um sistema de trocas econômicas são claras
na compreensão da modernidade. Dessa maneira, o reconhecimento consis-
te no equacionamento muito caro às ciências sociais do trabalho e da renda
social e da circulação da dádiva - assegurada em última palavra pela Justiça.
Capa Não obstante, planta-se a dúvida: por que a questão final do reconhecimen-
to? Ela constitui o reconhecimento das alianças estabelecidas na sociedade
Sumário
brasileira segundo o paradigma da dádiva? Gostaria de deixar finalmente a
eLivre questão de que a teoria da dádiva na sociedade brasileira carece de estudos

249
Sociologia do direito

literários coletivos e que o reconhecimento que ela veicula não se encerra


no recebimento do título e da carta de direito, mas o reconhecimento é ele
mesmo um mecanismo de emancipação social, porque esta carta faz circu-
lar legitimamente uma prática de dádivas inscritas institucionalmente, e seu
viés é histórico, filosófico, expressivo, e quiçá artístico.

Relações de Reciprocidade na Ciência Social Brasileira

A dádiva, segundo Marcos Lanna (1995), consiste em uma relação de


troca, herdeira das teorias sociológicas e antropológicas de Émile Durkheim
a Marcel Mauss. Neste período analítico dos fundadores teóricos, a dádiva
se inspirava em elementos econômicos capitalistas, em um capitalismo que
prosperava, e que resultava de relações diversificadas, mas também agonís-
ticas e guerreiras. A leitura de Roberto DaMatta, neste mesmo sentido, re-
vela-nos que a dádiva é também uma relação de direitos que se expressava
através de uma obrigação primordial dos súditos para com seus superiores,
numa relação que também pode ser de servidão, de superioridade, ou dis-
Capa
cretamente de reciprocidade hierárquica.
Sumário As relações de servidão, típicas ao sistema feudal, anterior ao capitalis-
eLivre mo, não integram a carta de direitos moderna como a conhecemos. As rela-

250
Sociologia do direito

ções de vassalagem e de servidão nesta carta foram vedadas, assim como a


exploração trabalhista foi vedada pelas organizações e conselhos de direitos
humanos. Dessa maneira, a relação trabalhista moderna, em sua concepção,
envolve a reciprocidade autêntica, isto é, solidária, a relação igual entre as
partes contratantes. Estas relações se inscrevem nas associações, importan-
tes no estudo de sociedades tradicionais, no mesmo patamar que as rela-
ções primárias, da primeira socialização que é a família e o local de moradia.
Pensamos ser esta última relação ainda mais apropriada, e porque não dizer
central, no sentido de equacionar o problema de sociedades tradicionais,
marcadas pela urbanidade, pela pobreza do desemprego, e onde a garantia
de direitos não é pacífica como elas são nas cidades marcadas pela produ-
ção de velocidade industrial.
Assim, na sociedade brasileira e urbana, de origem regionalista-rural, as
relações de troca primárias são autênticas, mas também são reflexionadas
pelo direito civil que veda os abusos e os excessos com relação as obrigações
morais ou primordiais - como são as obrigações familiares que organizam
os direitos, e a herança - e as relações agonísticas ou de troca mercantil são
Capa inautênticas porque fundam uma solidariedade acelerada que não respeita
a constituição geográfica e cultural. As obrigações secundárias, que organi-
Sumário
zam os direitos de cidadania, parecem longe de organizar a cidade segundo
eLivre a sua perspectiva histórica, de descolonizá-la, respeitando apenas seus tra-

251
Sociologia do direito

ços edificados e marcados que são coloniais. Estes são aspectos dominantes
nas relações cotidianas, e nas instituições que dão suporte a este cotidiano,
como as instituições de justiça e de administração: a assinatura de projetos
modernizadores, que não consulta ou envolve os moradores da cidade em
seu conjunto identitário.
Para Roberto DaMatta, a relação de identidade passa pela domesticidade
do brasileiro, trata-se de uma relação como a descrita por Gilberto Freyre -
relações da casa, no caso brasileiro da casa patriarcal, e das relações além da
casa, o espaço de liberdade e de exercício de direitos. Este novo lugar, por
alguns filósofos americanos e alemães denominado de esfera pública, ou de
mundo da vida, é o mundo do cotidiano, ou da sociabilidade, da objetivida-
de, e das ciências sociais. Entretanto, não é adequado dizer que os espaços
da domesticidade e da publicidade nas sociedades que estudamos estão
separados rigidamente ou metodologicamente. A desagregação da casa é
refletida muitas vezes pela desagregação da “rua” nos termos utilizados por
Roberto DaMatta.
A proposta do livro de Roberto DaMatta transcende método, estilo e in-
Capa tenção de uma antropologia social bem comportada, e utiliza a casa e a rua
Sumário como categorias sociológicas fundamentais para a compreensão da socieda-
de brasileira (o que pensa, vive e faz, suas idéias, valores e sistema de ação).
eLivre Casa e rua não são somente espaços geográficos ou coisas físicas mensurá-
252
Sociologia do direito

veis - são entidades morais, esferas de ação, províncias éticas positivas, do-
mínios culturais, institucionalizados e, por isso, despertam emoções, reações,
leis, orações, músicas, imagens. Casa pode ser definida por uma oposição
(senzala e mocambo para Freyre) ou complementaridade. Essa é a oposição
básica da gramática social brasileira para Roberto DaMatta. No caso brasi-
leiro, há o englobamento (Dumont) da rua pela casa, restando a sociedade
como “a grande família” (típico do discurso populista, e oligárquico, usado
no rompimento de impasses legais ou institucionais). Dessa forma, temos
um sistema de leitura e de classificação diferenciado e complementar: a casa
ressalta a pessoa e emoções; a rua, o decreto, a lei, a emoção disciplinada,
e permite a exclusão. Além das interpretações dualísticas do Brasil – família
ou economia, costumes ou classes sociais; a tese de DaMatta é que se pode
juntar estas coisas para se ver a totalidade. Mais importante que elementos
em oposição, são a conexão e a relação, estudar a sociedade de modo aber-
to, em seu movimento.
Preferimos chamar de cotidiano, por entendemos que o recorte popu-
lar “rua” se refere à insatisfação da relação trabalhista - das relações traba-
Capa lhistas que ao mesmo tempo são familiares, e que utiliza a expressão cor-
riqueira “a porta da rua é a serventia da casa”. Entendemos “rua” também
Sumário
no sentido damattiano como o espaço de exercício dos direitos de cidada-
eLivre nia, da secundidariedade, o que é muito diferente ou contrastiva a termi-

253
Sociologia do direito

nologia freyriana, da “senzala”. Embora esta dualidade seja por si mesmo


contrastiva, “casa e senzala”, “casa e rua”, “casa e cotidiano” ou ainda, como
sugere Marcos Lanna, “moradia e festa”, entendemos que as contribuições
de Gilberto Freyre são válidas para analisar as especificidades locais da cul-
tura brasileira, principalmente no que se refere ao caráter nordestino, das
oligarquias, do poder das famílias, e das heranças, assim como o poder da
colonização portuguesa que alimentou a república brasileira nascente e,
como entendem alguns, continua a sustentar o sistema político regional.
Assim, de posse deste arcabouço teórico, queremos demonstrar que esta
política das oligarquias tem uma forte relação com a manutenção das hie-
rarquias, e com a manutenção das condições de precariedade do urbano,
isto é, das desigualdades sociais.
Esta política herdeira das oligarquias estabelece uma relação de dádiva
a exemplo da dádiva do início do século XX, a dádiva agonística, e do que
descreve Marcos Lanna, “da dívida divina”, isto é uma relação de colonização
portuguesa que é histórica imiscuída de religiosidade e de regionalismo, de
dependência e de fragilidade, que subjuga as relações ideais - as relações
Capa igualitárias e de reciprocidade segundo a carta de direitos moderna. Neste
sentido, fala-se de “casa e favor ou promessa” o que é diferente da relação
Sumário
de “casa e tributo”. O conceito de dádiva permite encontrar uma reciproci-
eLivre dade não capitalista do cotidiano ao criticar o assistencialismo como uma

254
Sociologia do direito

prática dos políticos, que cultivam os valores da classe dominante em detri-


mento dos valores das classes populares.
No caso da cidade de João Pessoa, esta política assistencialista vem sendo
discutida, sobretudo através dos organismos ligados à cultura paraibana e
pessoense, buscando levantar uma bandeira não colonial, onde a associação
cultural é uma constante, além das filiações que são históricas, e em favor
da satisfação do cotidiano que nela mesma encontra os seus protagonistas
sociais. Mas esta bandeira, apesar de histórica, é frágil politicamente, não
obstante as organizações literárias e carnavalescas, a dança e a expressão
de uma maneira geral, nas academias, nas escolas, e nas “ruas”, todas estas
organizações, no lugar que estudamos, encontram sérios problemas, enrai-
zados nos véus das aparências, mas estas questões se encontram além da
justiça, e nós ainda não podemos desvendar as contradições culturais que
ela engendrará no futuro.

Capa
Sumário
eLivre

255
Sociologia do direito

II
TEORIA DOS SISTEMAS, REDES E ASSOCIATIVISMO

E. Durkheim: o fato associativo e articulação institucional

O aspecto profissional e religioso configura na sociologia de E. Durkheim


a instância secundária do fato associativo, o que afasta os motivos da polí-
tica especulativa por uma prática autêntica do público local para o Estado.
Este arranjo argumentativo resolve de maneira simples a dualidade consti-
tutiva (individual e moral) da associação, uniformizadas as vontades por um
processo ativo/participativo na sociedade. A associação, investida do aspec-
to moral e material, modifica a tendência ao individualismo, o que vincula
a associação ao encontro de argumentos espirituais, e a definição de quais
são os direitos e deveres na esfera pública de relações sociais constitutivas.
Capa O estado de reivindicação dos direitos iguais instituídos, os direitos gera-
cionais, segundo o processo interativo que caracterizam as atividades asso-
Sumário
ciativas, impõe dependência aos pares, concessões, sacrifícios, vantagens, e
eLivre os contextos desfavoráveis em razão das necessidades coletivas e das obri-

256
Sociologia do direito

gações normativas. A filosofia fenomenológica e a positividade sociológica


constituem uma cosmologia significativa para a compreensão do pensamen-
to moderno, especificamente a passagem da fenomenologia para a sociolo-
gia nacional de E.Durkheim. Esta passagem explica porque a sociologia não é
apenas objetivista e positivista, não obstante a forma da organização social.
A sociologia de E. Durkheimconfigura um nível complexo de reflexividade, a
alteridade subjetiva na percepção do mundo social - unindo argumento de
natureza política, a biologia, e a cultura(antropologia).
As teses de E. Durkheim são atualizadas pelo pensamento evolucionis-
ta e funcionalista, e pelo fato religioso como ritos fenomenais no estudo
da cultura e da política moderna. A sociologia durkheimiana compreende
assim o que significa a experiência coletiva e como o sujeito do conheci-
mento acessa a ciência da sociedade, segundo uma explicação sociológica
moralmente regressiva, ao analisar o desenvolvimento atual das sociedades
segundo o meio externo (sociedades circundantes), os acontecimentos da
sociedade atual derivados do estado atual, e dos fatos não necessariamente
conscientes. A atualidade da sociedade é uma consciência coletiva complexa
Capa de fatos regressivos e o curso cotidiano da associação política, que levam os
associados a realizarem os bens propriamente coletivos (materiais e morais).
Sumário
A atitude fenomenológica das ciências sociais traduz o campo intersub-
eLivre jetivo das relações humanas, a percepção da atividade do conhecimento,
257
Sociologia do direito

e aquelas relativas ao outro semelhante (WOLFF, 1980, p. 703). Enquanto


atividade da linguagem, a tipificação dos fatos sociais estabiliza os signifi-
cados em si mesmos, da cultura particular a cultura geral. Neste aspecto, a
existência humana no tempo e no espaço é objetivada no mundo das coisas
exteriores ao individuo para figurar no plano da cultura do mundo e do coti-
diano, constituindo um referente simbólico a comunicação universal. Assim,
a exterioridade que caracteriza o fato social se localiza na experiência per-
ceptiva, no conjunto de causas subjetivas, conforme a densidade moral de
cada sociedade.
A amplitude da sociologia de E. Durkheim envolve a configuração do
pensamento político de que Montesquieu é representante, para os dados
culturais -
as propriedades da religião, do trabalho, e do suicídio, como fatos so-
ciológicos compreendidos em si mesmos e, ao mesmo tempo, relacionados
cooperativamente
na compreensão da experiência humana. Enquanto Montesquieu definiu
a sociedade em tipos caracterizados pelo governo democrático, a análise
Capa de Durkheimquestiona o status do saber ao descrever as propriedades do
Sumário mundo da vida segundo o pensamento científico dominante, deslocando
o pensamento político doestado de indeterminação e abstração teórica, ao
eLivre
dispor dos limites contextuais, e da apreciação explicativa causal.
258
Sociologia do direito

O estudo do suicídio caracteriza a disposição do pensamento científico


pela organização burocrática; neste sentido, Durkheim prioriza as condições
da vida coletiva, as regras metodológicas e as formas particulares para só
então estabelecera classificação de segunda ordem (GANE, 2000). A questão
que permanece atual para o projeto sociológico consiste em recodificar o
arquivo de dados que guarda originalmente a relação individuo e sociedade
no institucionalismo moderno. Este registro do domínio da linguagem obje-
tifica os indivíduos no mundo da vida, para o registro da organização social
segundo a sociabilidade e a economia associativa; o que questiona a repre-
sentação que desapropria os indivíduos da sociedade, e estabelece a escala
da desigualdade social, e redefine em muitos termos o sentido do suicídio
na sociedade moderna (Hamlin & Brim, 2006).
A distinção entre os valores morais, as ciências naturais e sociais desde
o início é um problema da pesquisa sociológica. O argumento das ciências
humanas reflete a extensão das ciências físicas e biológicas (naturais); isto
quer dizer que o recurso ao pensamento por analogia entre o organismo
individual ao organismo social compõe o estágio na produção do conheci-
Capa mento sociológico, que ao observador revela os limites entre natureza (meio
ambiente) e cultura (relações sociais). Neste estágio, a atitude natural ou
Sumário
“impressão primacial” significa a responsabilidade espontânea e significativa
eLivre que constitui a norma social, e a cultura, no contexto do desenvolvimento,

259
Sociologia do direito

consiste no processo de recordação desta responsabilidade. Esta condição


se modifica na composição do referente genealógico e relacional positivo,
o que em termos práticos equaciona o paralelismo entre o mundo espacial
da vida cotidiana, o modo de vivenciar o mundo interiormente, e a interação
crítica no fluxo de estados conscientes. A ideia de mundo da vida é radical e
permite compreender a objetivação da sociedade, na
alçada da política associativa, e de processos de sociabilidade contrários
a fragmentação e alienação da vida prática - o maior problema vivenciado
pelos povos que entraram na modernidade.

T. Parsons e o modelo da integração sistemática

Parsons assim como Durkheim questiona na “comunidade societária”


o fato dos indivíduos viverem juntos pela efetividade do processo de in-
tegração, assim como o padecimento da comunidade em razão dos con-
flitos. Não apenas reflete o encadeamento causal que leva a experiência
Capa da sociedade do início ao fim, mas caracteriza a intensidade do processo
de integração segundo a extensão da economia e o contexto político. A
Sumário compreensão deste sistema normativo permite exercitar a autoridade e a
eLivre regulação da comunidade societária sobre sistemas mercantis, e a formali-

260
Sociologia do direito

zação de acordos provenientes das relações de lealdades competitivas nos


processos econômicos.
Na integração normativa destas relações, os compromissos espontâne-
os e os contratos de direitos e obrigações fazem parte do ordenamento de
mais de uma sociedade nacional. A normatividade consiste na acomodação
e adaptação das relações culturais no contexto das migrações e, por outro
lado, na restrição a liberdade comunicativa e a plenitude do contexto in-
terpessoal e intergrupos. Na evolução de cada estágio descritivo da comu-
nidade societária, a linguagem é o sistema simbólico universal, exercitada
pelo conflito no estado de guerra e pela passagem no estado de paz para o
acordo consensual, excluindo nesta formulação as “distorções” do contexto
imediato de interpretação, o que significa um problema de equilíbrio para
pequenos grupos, devido os passos largos e progressivos da vida econô-
mica. A linguagem, assim, representa uma vantagem adaptativa dos seres
humanos na escala evolutiva do organismo social e do meio ambiente (GID-
DENS,2003, p. 311).
Na sociologia funcionalista, a ordem normativa primária segundo o pro-
Capa cesso de interiorização individual é preponderante sobre os processos in-
Sumário terativos – que exteriorizam as normas culturais, e libertam as relações so-
ciais da determinação do sistema cultural. Considerar metodologicamente
eLivre os pontos comuns ou as interrelações de sociedade e de cultura, isto é, os
261
Sociologia do direito

fatos de realidade como subsistemas autônomos produz no plano do direi-


to os epifenômenos e acidentes, em razão do sistema social secundarizar os
processos de participação. De outra maneira, aos estados integrados que
constituem as associações, seria preciso no modelo parsoniano explicitar
como habilidade formal as obrigações primárias relativas ao domínio dos
contratos, servindo-se assim da segurança jurídica de verem preservadas as
relações intersociais no sistema democrático.
A composição do governo na sociedade internacional consiste em de-
senvolver, conforme a justificação prática, um modelo analítico útil e cada
vez mais autônomo da realidade – distanciando e combinando compor-
tamento(psicologia), ambiente físico (biologia), e a cultura (antropologia).
Para equacionar a descrença na sociedade e no sujeito da ação, a sociologia
política articula um projeto genealógico sobre as categorias sociológicas
como forma de universalizar o projeto original da sociologia para as ciências
humanas, e de dialogar com as sociologias nacionais, tratando as diferenças
através do modelo da estratificação, da hierarquia privilegiada que lhe ca-
racteriza, assim como a solidariedade dos povos na comunicação entre os
Capa saberes e as categorias do trabalho sociológico.
Sumário Este modelo de estratificação configura a sociedade moderna segundo
a divisão das relações sociais durante a expansão dos mercados, da organi-
eLivre zação burocrática, e dos conflitos na ausência do encadeamento histórico e
262
Sociologia do direito

narrativo para a recomposição da sociedade em si e do direito enquanto uma


variável evolutiva. O retorno ao projeto da sociologia durkheimiana consti-
tuiu, portanto, uma oposição ainda que provisória ao princípio da diferença,
para resgatar a igualdade da condição humana em contextos singulares, sob
a inscrição do republicanismo. As categorias instituídas fundaram a cultura
e os signos culturais o a priori histórico do sistema, e a natureza sensorial
das sociedades burguesas e modernas. Neste contexto, o direito continua
constituindo o projeto fundamental da sociedade humana pelo sistema de
ação que é o resultado da combinação de indivíduo e cultura. Se a premissa
liberal da satisfação ou recompensa da motivação individual tem primazia,
o sistema de ação é individualista, e a cultura um cenário ou horizonte cuja
resposta cognitiva representa os dilemas individuais e a realidade última.
A integração do saber combinou tanto o indivíduo e seu comportamento,
quanto à comunidade de valores e a cultura, ao concentrar o empreendimen-
to analítico na fronteira das divisões e das diferenças, e da integração social
que caracterizam as relações de confraternização e pluralistas. O problema
de ter como ponto de partida a sociedade como sistema é a substituição
Capa do espaço e da história generalista e casuísta pela integração sistemática de
grupos étnicos, territoriais e religiosos numa ordem normativa primária.
Sumário
Nesse sentido, a forma estatal (o governo) na sociedade moderna regri-
eLivre de positivamente a função padrão de guardião do bem comum, e do reco-

263
Sociologia do direito

nhecimento da diversidade dos códigos morais (de estabilidade e de mu-


dança) na compreensão dos problemas de pequenos grupos que formam
as diferenças intersociais e o padrão evolutivo. Em sociedades pluralistas, o
sistema de direito desenvolve a técnica da analogia e da semelhança para
a anomia social, onde a norma é insuficiente diante da diversidade do pa-
drão social. Ao adotar a compreensão comum dos problemas e o simbo-
lismo constitutivo, o direito estabiliza e organiza acultura, não provocando
a cisão no sujeito ao desautonomizar o sistema social do sistema sócio-ju-
rídico e praticar a justiça mútua; e, na comunidade normativa, ao tratar da
obrigação com a linguagem coletiva, a geração, a religião e a tecnologia,
os quatro universais evolutivos.

As redes sócio-políticas e rearticulação institucional

As associações ao lado do modelo de redes questionam o individualis-


mo metodológico como perspectiva dominante na teoria da sociedade e
das instituições democráticas: estar em rede e em associação revela como
Capa
os partícipes partilham e articulam no espaço político (cidade) a subjetivi-
Sumário dade (particularidade) e objetividade(sociedade) do mundo em que vive. A
retomada da dispersão ou dissociação explica como os processos sociais
eLivre
são conduzidos com autonomia e cooperativamente uns com os outros em
264
Sociologia do direito

matéria de política, economia e cultura. A aplicabilidade e instrumentalidade


das redes na compreensão de regularidade e descontinuidade social guar-
dam uma dimensão especial em relação ao Estado e as políticas públicas.
Importa nesta compreensão significativa observar os imperativos éticos
na condução do processo político e cultural que integram as redes, ao arti-
cular fenomenicamente uma prática de mercado e de Estado, sem, no entan-
to, definir-se por instituição social. Com efeito, a questão social em primeiro
plano define as questões corporativas no espaço de constituição da socie-
dade que se compreende pela oposição entre a burocracia, o mercado e o
público. Esta natureza simbólico-informal , essencialmente narrativa, implica
reconhecer a dependência mútua e, no plano formal a solidariedade onde
se rearticula o público, a esfera econômica, a questão social, a socialização
dos meios de produção, dos serviços coletivos, da proteção e seguridade
das pessoas. As redes sociais integram o sistema formal para satisfazer as
necessidades sociais na descentralização do poder, distribuição de bens e
serviços, a colaboração voluntária e a ocupação em contextos de exclusão
um modelo de integração e de sobrevivência para populações urbanas.
Capa A principal característica das redes sociais são as sociabilidades primá-
Sumário rias – as estruturas de parentesco, e a sociabilidade secundária (onde as as-
sociações e partidos são constitutivos). Nas comunidades urbanas, a rede
eLivre de intercâmbio recíproco permite encontrar referências a estruturas ou ins-
265
Sociologia do direito

tituições sociais, isto quer dizer que as redes integram a institucionalidade


política, em grau de formalização o inferior às associações, uma organização
social de natureza cooperativa. Quando as redes de intercâmbio recíproco
não fazem conexão com a organização social formam as redes informais, na
adaptação e sobrevivência ao ambiente urbano durante o fluxo de migração
e o agenciamento de recursos sociais das comunidades rurais em redes pro-
dutivas (LOMNITZ, 2006). Esta articulação não apenas permite uma adapta-
ção funcional ao ambiente urbano, mas o constitui de valores partilhados na
rede de reciprocidade relativos à maneira da alimentação, da residência, e
do trabalho.
Esta perspectiva compreende a crítica das relações hierárquicas entre
“mediadores” e “usuários” do sistema de direitos sociais, em favor do prin-
cípio da igualdade complexa de grupos diferentes na esfera pública, e da
participação no processo de melhora de si, do círculo de convivência, e do
ambiente institucional segundo problemas apontados pela rede generalista
de usuários. Assim como a abertura aos problemas de integração produtiva,
a vinculação e desvinculação da rede no registro institucional como inscri-
Capa ção simbólica e material da intersubjetividade envolvem a personalidade e a
comunidade, e a estabilidade do sistema político, além das relações estrutu-
Sumário
rais do patrão e do cliente, em rede circulam os recursos, afastando no con-
eLivre texto latino-americano as crises de sucessão na organização e a conciliação

266
Sociologia do direito

de “lealdades e rivalidades na formação de atores coletivos, e a competência


pacífica entre as partes (partidos)” (LOMINTZ, 2004, p.278).
Os movimentos sociais e o feminismo, ao deslocar a análise do discurso
institucional para o sujeito do discurso em comunidades e redes sócio-polí-
ticas, praticam a compreensão das diferenças e a variação de gênero, a divi-
são de classe, o antagonismo de interesse, do modo de vida, e de expressão
social, no acesso e crítica à prática de sujeição institucional. Uma pluralidade
de vozes, uma comunidade de sentido, e uma unidade discursiva são confi-
guradas no percurso de redes sócio-políticas e associações que, articuladas,
afirmam a dominância da sociabilidade na definição da justiça social, rearti-
culam a sociedade do trabalho e a duplicidade entre representação e cons-
ciência prática que atravessa a democracia.
No sistema de justiça social, mesmo ao refletir o contexto relacional,
o domínio da sociabilidade secundária permanece complexo, importando
observar como as associações e redes sócio-políticas envolvem o sistema
de classificação primário, de parentesco, de raça, do arranjo familiar, da vizi-
nhança e da amizade – as relações interpessoais e, a partir da estratificação
Capa social, como organizam, no caminho de volta, o domínio de significações
Sumário características, as redes de partilha e associações incluídas na casuística, que
redefinem o estatuto (direito) da sociedade.
eLivre

267
Sociologia do direito

Genealogia, feminismo e justiça social

O projeto genealógico sobre as categorias sociológicas do parentesco,


classe, gênero e raça reúne o curso da experiência e a retomada da história
em descontinuidade (séries, limites, unidades, ordens, autonomia e depen-
dência diferenciada), tornando possível a opção pela narrativa dispersa em
relação de gênero no sistema de identificação e classificação social (STOLKE,
2006, p. 29). A autoria em oposição à determinação histórica configura o
horizonte de significação e constituição simbólica (transcendental e essen-
cial, em termos foucaultianos) da identidade (individualidade) e do cotidiano
(sociedade), um discurso aberto para o espaço da existência, e da vida como
objetivo político (FOUCAULT, 2009): “tratava-se de elaborar uma ética que
permitisse constituir o próprio sujeito enquanto sujeito moral em relação a
estas atividades sociais, cívicas e políticas nas diferentes formas em que elas
podiam se revestir e a qualquer distância que delas se tomasse”(FOUCAULT,
2007, p. 100-101).
A interdição e raridade discursiva (crítica) do conjunto genealógico con-
Capa duzem à descoberta de redes complexas e circulares (contextuais) e do des-
Sumário nivelamento social (causalidade). A finalidade antropológica da reconstrução
da sociabilidade e do reconhecimento social articula as diferenças na comu-
eLivre nidade normativa, integrando a partir desta as ambiguidades e os conflitos
268
Sociologia do direito

na experiência sensorial perceptiva do mundo da vida e a transmissão de


valores característicos: o modo como na escala da estratificação são viven-
ciados processos “naturais” como a sexualidade, a afetividade, o envelhe-
cimento e o casamento, e de “sociabilidade” como a família, o trabalho e o
Estado. Reflete ainda como as relações de gênero, as normas morais, sociais,
jurídicas e religiosas relativas à sexualidade interagem comas desigualdades
sócio-políticas, as qualidades e os estereótipos relativos, isto é, a ligação
deste constructo com o passado cultural e histórico desde os colonizadores
e os sentidos produzidos neste contato (STOLKE, 2006).
Além das relações estruturais, a dinâmica de tempo-espaço da relação
de conhecimento mútuo ou reconhecimento intersubjetivo sujeito-sujeito,
implica dizer que há uma expressividade e sentido diferente sobre o mes-
mo objeto. Assim é que o dever de fidelidade conjugal se compreende de
obrigações diferentes: “no caso da mulher, é por estar sobre o poder de seu
marido que esta obrigação lhe é imposta; no caso dele, é porque exerce o
poder e deve dar provas de domínio de si, restringiras escolhas sexuais, e
ter relações apenas com sua esposa” (Foucault, 2007, p.135). Esta dissimetria
Capa compreende a subjetividade psicológica no nível de cognição como refle-
xo da objetificação, o que torna possível descrever e realizar a distinção de
Sumário
práticas sociais, assim como justificar um conjunto novo de instituições, que
eLivre representem as relações e um arranjo espacial consciente (GIDDENS, 2003).

269
Sociologia do direito

A análise feminista reflete sobre a formação do saber segundo o princí-


pio da neutralidade crítica e prática dialética no feminismo marxista; a apro-
ximação com após-modernidade na ciência, a mudança social, incerteza e
ambivalência (FLEX,1992, BENHABIB, 1995, ANDERSON, 2007). A ação do
sujeito, a disposição da descrição pelo analista e a proximidade do discurso
contempla a materialidade do discurso-objeto, aberto a atividade subjetiva,
segundo o diagnóstico da exclusão e interdição do sujeito pelo desnive-
lamento discursivo. Constitui assim uma forma espontânea do fato social,
estratégica e calculada, de natureza social, submetida a uma nova prática e
avaliação cultural.
Neste sentido, a divisão sexual implica considerar a dimensão do traba-
lho na perspectiva marxista caracterizada pela descontinuidade e antagonis-
mo típico a divisão de classes sociais: “Embora a continuidade das relações
sociais de sexo pareça garantir a estabilidade das linhas de divisão além das
mudanças de conjuntura, estas mudanças fazem com que elas sejam recolo-
cadas em questão ou retrocedam (...) a dimensão constitutiva do tempo das
relações sociais de sexo não são as mesmas que a dimensão constitutiva do
Capa tempo das relações capital/trabalho”(HIRATA, 2002, p. 285).
Sumário Assim, concluímos novamente pela disposição, desta feita na análise fe-
minista, de dois planos de observação: a representação categórica e a cons-
eLivre ciência complexa revelam que as categorias no conhecimento sociológico
270
Sociologia do direito

estão inter-relacionadas; mutuamente implicadas e, uma vez que a repre-


sentação limita sua correspondência ao fato histórico, a apreciação subjetiva
é mais ampla como recurso interpretativo, o que compreende a consciência
individual e coletiva segundo o processo de compreensão (Verstehen), co-
municação inter-humana (organizações humanas) e hermenêutica (sentido
manifesto do discurso) (FOUCAULT, 2002).
A identificação dos elementos relacionais na escala do desnivelamento
e da estratificação integra o plano da luta pelo reconhecimento da comuni-
dade moral e formam um argumento defensável na esfera pública. A gene-
alogia do saber social segundo esta participação comunicativa configura o
conflito e o consenso substancial na constituição da diferença e do feminino.
A partir deste entendimento, a inovação institucional e uma normatividade
em constante avaliação, na medida do arranjo de gênero delimitado pela
atividade produtiva e de trabalho continuam expressando a organização po-
lítica e social - as práticas sociais, a educação, os processos de significação
ou linguagem, a sexualidade, a política, a religião e ajustiça social. A gene-
alogia neste contexto organiza o acúmulo discursivo em sua instabilidade
Capa provisória, a sobreposição dialética (não retilínea) de avaliações essenciais e
obrigatórias (colaboração), a especificação e coordenação de atividades nas
Sumário
relações de lealdades competitivas.
eLivre

271
Sociologia do direito

Quadro generalista de propriedades:

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Capa
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277
Sociologia do direito

PARTE V:
CIÊNCIAS SOCIAIS, DIREITO, LITERATURA, ARTE,
RECREAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO

Capa
Sumário
eLivre

278
Sociologia do direito

I
CAPOEIRA, LITERATURA E CIÊNCIAS SOCIAIS:
OS DESAFIOS DO FAIRPLAY

Introdução

A capoeira na região nordeste remonta ao período da escravização e


dos engenhos e, mais recentemente à História da África no sentido de con-
textualizar a educação no país. No Brasil, a capoeira encontra fases de re-
conhecimento de direitos relativos a pessoa: a Abolição da Escravatura, a
descriminalização, e o reconhecimento do ensino e do mestre da capoeira
como patrimônio histórico. A filosofia da igualdade chama esta sequência
discriminatória por sua positividade, promovendo neste ato não apenas a
inclusão de grupos étnicos, mas o redirecionamento sob parâmetros antro-
Capa pológicos e normativos da dança e da cultura de jogar.
Sumário A capoeira resiste desde então sobre formas de apresentação, sobre o que
a sociologia denominou de exposição performática, isto é, a prática da luta em
eLivre si mesma, a elevação desta ao desporto no processo civilizacional e, assim, a
279
Sociologia do direito

consideração dos limites éticos da luta no interior do grupo de capoeira. Neste


sentido, há que se destacar que as normas de capoeira não se espelham nas
normas gregas ou romanas. Mas vale o questionamento se a capoeira se permi-
te assimilar por estas normas, quando da elevação da mesma para o desporto,
passando a considerar em sua dinâmica o modelo das arenas clássicas.
Entende-se que a elevação da capoeira é relativa, equiparando-se apenas
às condições de profissionalização, não constituindo a capoeira uma com-
petição nos modelos classistas e ocidentais. Acredita-se adotar o fairplay, o
espírito esportivo, e que esta adoção espiritual inspira o plural reconheci-
mento da capoeira. A capoeira inspirada por sua autonomia nos desportos
competitivos manteve o diálogo com os demais desportos, assim a distinção
que a autonomiza, devido à perda do registro da escravidão, quando Rui
Barbosa a mandou retirar dos arquivos públicos, os mesmos arquivos que
seriam na atualidade o elemento inspirador da política étnica no Brasil, se-
gundo o reclame dos capoeiristas.
De fato, encontramos neste ato a ausência não apenas de conciliação,
mas de reconhecimento de classe na política interna da então república bra-
Capa sileira, onde Rui Barbosa era o Ministro da Fazenda. Rui Barbosa atendeu
Sumário assim ao reclame dominante da classe dos proprietários de terras sobre os
escravos, no sentido de apagar do registro histórico a filiação do escravo li-
eLivre berto ao senhor de terras. A justificativa deste ato era conceder pelo apaga-
280
Sociologia do direito

mento da responsabilidade o registro de ―nova civilidade ao recém liberto


no Brasil, o que causou inúmeros problemas com relação à impossibilidade
de reclamar na esfera da justiça os direitos e indenizações relativos ao fim da
escravidão, buscando com este ato apagar a esfera dos conflitos e, contradi-
toriamente, do direito, especialmente, do direito racial. Neste sentido, como
é possível recobrar a esfera de divergências e de pluralismo que o marxismo
historicamente preservou no Brasil relativamente a classe social, diante do
apagamento da historicidade, e da consequente invisibilidade do cidadão
brasileiro? Não seria este o registro que embasaria a crítica sociológica em
outro patamar político e social?
Quando reflete a capoeira, as questões possuem caráter filosófico e pro-
põem o exercício de alteridade: o reclame pelo ―fairplay na sociologia dos
esportes é semelhante ao reclame sobre as insuficiências da autonomia fí-
sica e disciplinar, reclama pelo conjunto, muitas vezes por um mero ajuste
de conduta sobre a norma tradicional cuja raiz é a obracivilizacional. Neste
sentido, a adoção do fairplay pretende a correção da violência no esporte,
favorável ao pluralismo: ao conhecimento das modalidades de exercício físi-
Capa co e do conhecimento intelectual que o alimenta. Neste sentido, animam o
fairplay as civilizações gregas e romanas, e a capoeira, embora não se limite
Sumário
a esta normatividade, com ela dialoga, por questões de civilidade, estas que
eLivre garantem a prática cultural em sua autonomia.

281
Sociologia do direito

O primeiro registro que se tem conhecimento sobre o fairplay é encon-


trado na Inglaterra, em uma peça de William Shakespeare. O fairplay versa,
portanto, sobre a amizade e lealdade que os súditos devem apresentar aos
reis durante as apresentações e competições. E talvez refletir o fairplay na
capoeira desde sua elevação ao desporto, enuncie e faça entender a política
do desporto, regressivo ao período monárquico, expansivo e colonizador. Se
a capoeira é republicana, como esta se diferencia dos regimes normativos e
culturais da realeza?
Notadamente, a capoeira não se solidariza a exigência do fairplay, senão
com reserva. A relação analisada por Weber de dominação, em que para
existir o senhor deve existir o escravo que se submeta, encontrou entre nós
o equacionamento com a inserção de novos papéis de classe, assim como a
insubmissão de uma classe à outra classe. Na capoeira, a autoridade não é
do rei ou do governante, mas a autoridade é do mestre de capoeira em sua
graduação: a dança reflete a disposição hierárquica, mas o mestre de capo-
eira é quem recebe a graça e o dom da liberdade, assim como guarda e
media a representação e o conflito. Esta cultura reposiciona a teoria de clas-
Capa se, colocando capoeiras em um patamar reflexivo sobre dominações, sem
que os mesmos vivenciem permanentemente a conflituosidade que anima
Sumário
a descrição marxista, oriunda de sociedades industriais. A capoeira se anima
eLivre pela espiritualidade artesanal e festiva.

282
Sociologia do direito

Acredita-se que a exigência do fairplay no desporto não seja totalmente


extensiva a capoeira, mas apenas no processo dialógico, de inclusão social,
com limites discriminados pela capoeira. Veja o caso de um esportista ou de
um atleta de uma modalidade esportiva que ingressa na capoeira. Segundo
esta experiência é que o fairplay avança sobre a capoeira. No processo de
distinção e de resgate histórico sem o registro governamental, a capoeira
conteve o fairplay, e é ela mesma que o mantém, uma vez que preserva a
normativa do jogo prático e intelectual. Estes são os ―impuxos da capoeira
sobre o fairplay, ou ainda o dedutivismo do fairplay sobre a prática da capo-
eira. Por outro lado, sendo o fairplay regido e julgado pelo tribunal despor-
tivo, veja que este não é o caso da capoeira.

“Você não tem espelho?”:


Mestre Marcio Rodrigues (Raposão) e o Centenário do Augusto

Para compor o quadro que versa sobre a capoeira do Mestre Marcio Ro-
drigues de Lima (Raposão) realizei a etnografia, ―participando das rodas de
Capa
capoeira. No treino, aprendi a capoeira, refletindo princípios de disposição e
Sumário de arte, reunindo sobre estes, a experiência com o desporto de competição
eLivre escolar (voleyball), onde além de atleta, regi por uma partida competitiva o

283
Sociologia do direito

time, e o ballet clássico (seguindo a herança das metodologias ―American


e ―Royal Ballet). Através deste conjunto, estabeleci no segundo momento
do treino adulto comunicação com o Mestre e com o grupo de capoeira na
dependência do antigo colégio municipal e atual Centro Intergeracional Si-
nhá Bandeira. Estabeleci com o mestre a compreensão da capoeira através
do conto, discorrendo sobre casos vivenciados de reciprocidade e de pre-
conceito. Além desta vivência, ―solicitei ao mestre o reconhecimento iden-
titário e familiar, tendo como núcleo originário a personalidade literária de
Augusto Rodrigues de Carvalho dos Anjos, que envolve na elaboração da
identidade.
Pergunto se a capoeira do Mestre Raposão recupera no meio popular a
autoridade cultural do Augusto com o passar do tempo no sentido de re-
constituir a história da cultura brasileira e regional no período republicano e
a capoeira regional que então se praticava. Assim, penso o ensino do Mestre
e como registro literário contribui para recuperar a experiência da capoeira.
Ao compulsar a literatura no sentido de buscar registros que confirmem o
significado do nome de capoeira do mestre, encontrei as seguintes referên-
Capa cias: que o desporto encontra origem na caça à raposa; que a raposa pode
estar associada a animalidade na poesia de Augusto; que a raposa está ins-
Sumário
crita na mitologia indígena dos cerrados do Brasil Central, onde as interações
eLivre sociais entre homens e mulheres pela troca de alimentos na família transfor-

284
Sociologia do direito

maram protagonistas em animais, especialmente a figura do Raposo, per-


sonagem mitológico e reconhecido na antropologia francesa praticada no
Brasil (STRAUSS, 2004).
Venho questionar a psicologia e a sociologia da família, através da cons-
tituição do habitus, assim como a identidade relativa à passagem geracional
e, mais do que este, a constituição da capoeira inspirada desde o desporto.
A reunião das famílias a partir do núcleo vivenciado pelo Augusto constan-
temente são opostas no cotidiano afim de marcar a cultura e a identidade
local. Neste sentido, a capoeira estaria inspirada na escravidão negra no
Brasil, assim como na mitologia indígena, ao canto, e a dança. A contradi-
ção percebida ao compulsar os dados biográficos aos dados sociológicos,
notadamente as observações de Gilberto Freyre, é que havia sobre o poeta
exigências originadas em uma pluralidade racialista, o que parecia se revelar
no esforço do mesmo sobre a demanda profissional e intelectual. O fato de
que havia na capoeira uma associação com a energia literária de Augusto
dos Anjos, e vice-versa, parece-nos uma evidência. Este fato que permane-
ceu oculto e polêmico, somado ao fato relatado por Gilberto Freyre de que
Capa havia um padre pertencente ao círculo familiar de Augusto que havia proi-
bido a dança no adro das igrejas, a mesma proibição que relatava a disposi-
Sumário
ção institucional - criminalística - sobre a capoeira, parece-nos a prova que
eLivre faltava ao argumento regional e discursivo.

285
Sociologia do direito

Capoeira e fair-play

A prática do fairplayna capoeira acontece pelo diálogo que a mesma es-


tabelece na adoção de outras modalidades desportivas, como o boxe, a luta
livre, o atletismo, o vôlei, futebol, até mesmo a capoeira se comunica com a
ausência da normatividade que muitas vezes configura e define o que é po-
pular. Talvez a celebração ou virada animada pela globalização econômica e
cultural represente o risco da desfiguração da capoeira. A adoção do méto-
do pluralista, isto é, a combinação das culturas na coreografia criou alguns
dilemas: poderá esta assimilação tão ampla expressar maior violência e ris-
co ao processo recente de reconhecimento, uma vez que supostamente a
capoeira não se secularizou? Se esta combinação cultural anima a capoeira,
com ela se solidariza? A capoeira combina com o fairplay? O mesmo se pode
pensar sobre o processo de patrimonialização da literatura paraibana desde
Augusto, cujas características são o questionamento primário, de valor plu-
ral, racialista, controverso, demissional. Finalmente, podemos pensar com o
fairplay, a personalidade figurativa do literário, e do mestre de capoeira?
Capa Acredita-se que a disposição para o fairplay pode ser arriscada na ca-
Sumário poeira uma vez que esta responde a liberdade não gestada em laboratórios
científicos. Ao adotá-la na prática profissional, assegura-se a normativa ju-
eLivre risdicional com relação a exploração política e informacional? O que se ob-
286
Sociologia do direito

serva é que a capoeira admitiu a intersecção normativa, isto é, as faltas e as


normas do desporto regular, sofrendo com esta convivência modernas mu-
tações seletivas na forma com que se apresenta. Estendeu a caracterização
permanente da força física e da agilidade, representando com energia a nor-
mativa que lhe sobreveio por culturas diversas como o futebol, o atletismo,
o boxe, e a luta livre. Neste caso, a capoeira, ao suportar o golpe mais vio-
lento, encontra no mestre o médico e o juiz que relata a justiça ou injustiça
e a certificação do golpe ou da falta sofrida. Estes são, com efeito, os papéis
acumulados pelo mestre de capoeira no estado atual sobre as exigências do
fairplay no desporto.
Esta articulação provoca a expansão do corpo sobre exigências externas
e nem sempre o corpo suporta esta demanda, sem que garanta a si a re-
serva do recolhimento e a antecipação sobre o conjunto. A capoeira é um
conjunto articulado em sua própria totalidade, a cultura popular e dos bair-
ros que a alimenta é o convite a liberdade, a liberdade de não ser ferido na
autonomia: a capoeira não pode suportar mais do que três golpes ofensivos.
De outra maneira, o que anima a luta na capoeira é a composição musical,
Capa esta que a luta livre ao ingressar na roda parece encerrar por nocaute a série
de capoeira. O problema da capoeira se revela pelos fundamentos da edu-
Sumário
cação física: estes cerrados na ginga e composição musical. A capoeira não
eLivre comporta a velocidade dos meios exploradores da imagem: é uma luta que

287
Sociologia do direito

demora candente, que não se pretende exterminar, e talvez as exigências


externas tenham feito a capoeira sofrer o renovado conflito filosófico: sobre
como comportar e responder estando dentro de si, ao contrário de si mes-
mo, isto é, como responder a uma agressão com a tolerância e como diante
da reiterada exigir o respeito e o aparte cidadão.
Estas exigências expõem a capoeira ao contato da revisão: da saúde cor-
poral do atleta ao refazer o cardápio popular e a cultura alimentar sobre pa-
râmetros familiares ou não mercadológicos, na partilha da dança, especial-
mente dos pais ao lado das crianças, comportando a transmissão cultural,
onde muitas vezes o institucional não media ou acolhe. Ao mesmo tempo
não encontro nas sociedades científicas a discussão da capoeira na compre-
ensão da cultura negra. A crítica social segue o combate sobre a exploração
e a corrupção dos dispositivos institucionais, o mesmo que excluiu a capo-
eira do repertório crítico.
Apenas na cultura a capoeira se completa. Contraditoriamente, a insti-
tuição em sua dinâmica adota o princípio da capoeira: as ―perseguições
sobre modos de ser, a intervenção virtual (desinformada) sobre as identida-
Capa des locais, a despeito da assimilação dos modelos normativos europeus que
Sumário consomem e que não são gestadas no cotidiano da capoeira regional.
As instituições políticas buscam, ao passo que reconhecem a capoeira,
eLivre
manter o afastamento cultural da própria autenticidade, sobre receio de no-
288
Sociologia do direito

vas servidões, pelo ofício elogioso das culturas externas onde pretende ser
o animador. A instituição política oculta e negocia a ausência de liberdade, a
mesma liberdade que realiza o fechamento do espírito nativo: mantém em
código a cultura sobre a inspiração individualista, e o controle dos aparelhos
políticos processualísticos, procedimentais, convertidos em pacto não ape-
nas formal, mas desumanizado.

Considerações

A situação identitária em que gravitam três famílias configura a publici-


dade do quadro institucional a exigir o reconhecimento do brasão dialógico
do literário e, não apenas este, mas a condição de cada um que se encon-
tra associado ao processo de patrimonialização do mestre de capoeira. O
processo de patrimonialização não seria reversivo a antiga secularidade, a
mesma que postula o código de honra, hoje denominado simplesmente por
fairplay? O profissionalismo do Mestre Raposão sobre este conjunto é evi-
dente, reflete a federalização e seus dispositivos de segurança, antecipa, e
Capa
reflete acontecimentos políticos, assim como inspira os investimentos cultu-
Sumário rais. Acredita-se que nesta dinâmica se elabora o batismo, a identidade e o
nome de capoeira. O grupo registra a personalidade na roda, elabora o seu
eLivre
enredo. A personalidade por sua vez revela o reflexo das disposições gene-
289
Sociologia do direito

alógicas no estado físico: não apenas ao aceitar a luta pontual, mas para in-
gressar na dinâmica da roda, que lhe é periódica e sucessiva. Esta avaliação
de estado físico no treino inicial reagrupa a personalidade na roda: separa,
situa, caracteriza os avanços e os limites do conjunto associativo.

REFERÊNCIAS:

BASSET, J. William Shakespeare. New York: Oxford University Press, 2008.


BRITO, S. M., MORAIS. J. V. de & BARRETO, T. V. Regras de Jogo versus regras morais:
para uma teoria sociológica do fairplay. RBCS Vol. 26, n. 75, fev/2011.
ELIAS, N. & DUNNING, E. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacio-
nal. Tradução de Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: Difel Difusão Editorial, 1992.
FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2006.
MEDEIROS, I. Cartas e Crônicas de Augusto dos Anjos. João Pessoa: A União, 2002.

Capa
Sumário
eLivre

290
Sociologia do direito

II
CIÊNCIAS SOCIAIS, DIREITO E LITERATURA:
ARTE E RECREAÇÃO NA COMPREENSÃO DA CONSTITUIÇÃO

A importância do sistema dialógico para as constituições:


um debate com Jorge Ventura de Morais

Segundo se apreende do texto “Batendo bola com Harold Garfinkel: a mo-


ral do futebol como ordem constituída” (MORAIS, 2013), o mundo dos espor-
tes e do futebol são flexíveis e intersticiais. Neste sentido é que se afirma que
o cotidiano se rege a parte das instituições formais, isto é, o cotidiano envolve
códigos psicológicos e consensuais que o cientista poderia chamar de “lin-
guagem nativa”. Notadamente, este linguagem é dotada de identidade em
constituição, onde é possível identificar o que é intersticial, isto é, códigos de
Capa abertura e fechamento com relação aos domínios de linguagem diferencia-
dos. Estas linguagens são marcadas porque são rituais, no caso da sociologia
Sumário
recreativa se limita a compreensão corporal das pessoas; o que a sociologia
eLivre dos esportes, como o futebol, chamou de “jogadores” em “jogos espirituais”.

291
Sociologia do direito

A elaboração do código consensual se afirma como um trabalho psicoló-


gico, mas também sociológico, e o trabalho do segundo consiste em verificar
se o código de linguagem existe de acordo com a moral da sociedade ou se
está de acordo com as concepções de moralidade da sociedade, o que são
discussões distintas, constituindo o conjunto um debate de caráter pluralis-
ta. A regra inicial consiste em dizer que não se deve agir de modo a interferir
na liberdade do outro em nome da mesma liberdade, e notadamente, esta é
uma exigência interacional, capaz por si mesma de formar o papel das ins-
tituições mediadoras, o que no caso da sociologia dos esportes comporta o
faiplay como exigência interacional.
A importância de observar o código linguageiro e de conformá-lo
moralmente é a mesma que delega permanência e a continuidade do
mesmo. Quando o conjunto não é afirmado, o mesmo código se desgas-
ta em sua impermanência, desfazendo-se as relações que o constituíram.
De maneira que, no caso de permanência, o código permite a continuida-
de entre constituição e instituição e vice-versa. As relações constitutivas
devem não apenas ser interativas, mas recíprocas como a troca de dádi-
Capa vas, e geralmente surgem em defesa da identidade, ou de uma pretensa
identidade que sustenta a sociedade. A troca de dádivas neste processo
Sumário
é o que afasta da sociedade a violência e a agressão moral, conforme de-
eLivre fende a antropologia.

292
Sociologia do direito

A formação da constituição, aquela que é reversiva às ordens institucio-


nais antecedentes, e que se conforma por estabilizar ações populares: discute
e afasta do processo constitucional as exigências que não se correspondem
ou atendem o caráter popular das ações. A questão que gostaria de acres-
centar consiste em esclarecer que o dom se transforma em confiança na
capacidade e competência laboral, independente do número de repetições
ou imitação das competências. Isto quer dizer que existem modulações nas
competências e que estas se diferenciam, devendo o sociólogo do direito
dizer quais são os dons que envolvem determinada competência.
Assim, os dons são trocados não apenas no dia a dia, mas de forma se-
quencial e articulada às demandas, em ações que se sucedem, porém que
não resultam em textos burocráticos, como um equivalente geral que se re-
pete em cada caso, como nas ciências naturais se verifica. Vemos que estas
repetições não contagiam os participantes para ações portadoras de auten-
ticidade ou de identidade. O problema da “quebra” no ritmo da vida social
no despertar das instituições explica porque os partícipes da constituição
não se relacionam por não acreditarem na capacidade e na competência da
Capa relação “eu e tu”, seja porque o “tu” renuncia as qualidades valorativas, seja
porque o “tu” escolhe substituir estas qualidades (apriori, inalienáveis) por
Sumário
diversas situações que com as qualidades genéricas, isto é, genealógicas,
eLivre não se comunicam.

293
Sociologia do direito

No futebol existe, portanto uma quantidade suficiente de regras que


pretende moralizar o jogo ou a partida: por exemplo, “a regra demissional”,
esta regra que comporta expulsões, substituições, e táticas variadas que dis-
cutem não apenas a inteligência potencial do outro, mas o status do mes-
mo enquanto parte do enredo interativo e constitutivo, tendo em vista a
segurança não apenas física, mas moral do conjunto. De anotar que no jogo
há competição e rivalidade, sendo necessária em contenção “velhas regras”
portadoras de distinção e civilidade, como a regra exigida - o fairplay, uma
regra escrita e inspirada pela Inglaterra, uma monarquia costitucional que
inventou o futebol, com validade para todas as nações, inclusive republica-
nas, como o Brasil. Esta regra nos alerta que a rivalidade e competição são
lúdicas, e que se deve respeitar a integridade e a sacralidade do “adversário”,
não dispensando, nem mesmo no estágio avançado de profissionalização, a
sacralidade do outro na partida.
Temos como apriori neste texto discutir a sociologia recreativa, uma vez
que buscamos entender quiçá filosoficamente não apenas o futebol, mas o
estado das regras regimentares enquanto metáfora para compreender a so-
Capa ciologia da vida cotidiana. Buscamos as elementares dos jogos que se fazem
presentes e são adotadas comunicativamente por partidas distintas, passan-
Sumário
do do futebol ao vôlei, a metodologia American e Royal Ballet e finalmente
eLivre a capoeira uma arte e recreação autenticamente brasileira. Entendo que é

294
Sociologia do direito

no caráter recreativo, sem olvidar o caráter profissional daquele que é con-


siderado esporte, luta, dança e arte que consiste a socialização mais ampla,
a audiência, e a permanência solidária dos mesmos.
Entendo que são práticas geminadas, embora tenham domínios profissio-
nais distintos, como a educação física que comporta esportes, como o futebol
e o vôlei, e que apóia as danças artísticas, como as artes marciais, o balé e a
capoeira. Estas últimas são práticas não apenas autônomas, mas independen-
tes, e comportam em si, uma regulamentação geral como a que viemos dis-
cutindo até aqui e uma regulamentação específica na constituição dialógica.
Veja se não é o caso nas artes das mostras competitivas, e uma vez que não se
fala na arte e na dança de uma estrita competição como no esporte. Esta ado-
ção não é dialógica no apoio que uma prática exerce sobre a outra quando o
quesito é a secularidade das mesmas no interior do capitalismo?
Outra discussão que se coloca é que uma regra não pode prever todas as
situações de jogo, e se há contexto dialógico para elaboração da nova regra.
Esta situação persiste quando os participantes não vivenciaram a regra sufi-
cientemente, ou se vivenciaram a regra, e não sendo capazes de suportá-la,
Capa abandonaram as regras constituídas no momento do play. Esta situação não
Sumário apenas é prevista pela ordem moral, como demonstra que a interação nor-
mativa pode ser precária, isto é, que poderão os participantes abandonar o
eLivre contexto dialógico que fundamenta aquela constituição. É o caso de dizer
295
Sociologia do direito

que não existe o contexto dialógico entre os partícipes em suas qualidades


plenas a constituir. Assim Morais (2013) entende que existe elaborada uma
redação infraconstitucional da lei, abrindo porta para as decisões, justifican-
do assim que haveria persistentemente um contexto dialógico substancial
e modulações de jogos e de estratégias ofensivas e defensivas, consentidas
pela autoridade no sentido de aprimorar a constituição. Notadamente, sus-
tenta que em situações assim há legalidade, não obstante a falência de uma
tradição ou costume, e dos riscos que apresenta.
Desta maneira, Morais (2013) compreende uma situação negocial e o pro-
jeto modernizador. Assim, jogadas imagéticas são jogadas ideais, e sendo es-
tas descolonizadoras, propiciariam não apenas o aperfeiçoamento da física
quanto da inteligência moral. Verifica ainda que nesta jogada há a simplifi-
cação porem não a simplicidade da vida social. O caminho para aperfeiçoar
jogadas e estratégias combinam pares pela autoridade, uma combinação que
é anteriormente assegurada pela literatura especializada. A análise que em-
preende sobre a regra do impedimento no futebol pretende explicar porque
a constituição não se fundamenta sem expectativas dialógicas. São estas ex-
Capa pectativas que estabelecem os limites da regra e que a definem, considera-
do aceitar ou não o posicionamento do jogador desalinhado. Neste lance, o
Sumário
jogador ou direciona sua potência para “o jogo que está sendo jogado”, ou
eLivre poderá ao avançar anular na jogada as expectativas partilhadas como regra.

296
Sociologia do direito

Assim, poderá faltar uma regra, porém não o contexto dialógico. Morais
(2013) argumenta que se devem ensinar as regras e que exista uma regra
de regramento, isto é uma regra que explique como uma regra deve ser
seguida. Esta preocupação se justifica uma vez que não se pode alegar o
desconhecimento da lei e dos costumes e quiçá da moralidade que é a base
do regramento para agir ou deixar de agir. A recomendação é chamar como
alternativa a regra vizinha, ao mesmo tempo em que não se deve apartar da
normativa geral do jogo. Se há jogo sem normativa este é anômico, não pro-
fissional e não recreativo, isto é, assim como o recrudescimento da norma-
tiva revela que esta não esboça parâmetros sobre a pluralidade comparativa
e normativa. Como dissemos anteriormente, o contexto dialógico não deve
ser apenas procedimental, mas potencial sobre os espaços de convergência
e de convivência.
Com efeito, a regra geral é o fairplay, isto é, o respeito sobre o jogo do
outro e o conjunto dialógico. Este se é figurativamente competitivo, os seus
jogadores não são adversários, mas convivialistas. Da mesma maneira que
ao ingressar em um domínio independente e distinto se deve observar as
Capa regras de respeito ao domínio, esta regra geral se combina com o discurso
dos direitos humanos: assegura-se que os coletivos se conduzam em sua di-
Sumário
nâmica própria, reconhecida profissionalmente, e que ao mesmo tempo se
eLivre conduza uma dinâmica terapêutica ou recreativa sobre o mesmo, revelando

297
Sociologia do direito

o conhecimento de outros domínios geminados, daí a importância de se ob-


servar os interstícios e os aspectos infraconstitucionais.

Como interpretar o direito com base na literatura e expressão artística,


isto é, além do procedimentalismo? Um debate com José de Souza Martins
e Germano Schwartz

Com que modos interpretar o direito no caso anteriormente analisado


senão por meio da sociologia da literatura e da arte e do artesanato intelec-
tual? Schwartz (Conpedi, 2014) menciona as narrativas, os descritivos e os
conceitos artísticos como elementos interpretativos do direito.
O autor argumenta sob inspiração sociológica que os valores presentes
nas obras literárias são fundadores de direitos e obrigações, mas isto não é o
mesmo que a afirmação marxista ao dizer que a superestrutura se comunica
com a infraestrutura? Como está no Manifesto Comunista?
Argumenta agora em perspectiva filosófica que a literatura edifica o di-
Capa reito e que ambos tem natureza abstrata – são abstrações de abstrações –
apenas reconhecidos pela identificação de suas origens, pela comparação e
Sumário
compreensão de elementares. Isto não é o mesmo que dizer que as consti-
eLivre tuições correspondem aos mitos da sociedade?

298
Sociologia do direito

Trata-se da psique, de sentimentos discorridos no texto que estruturam


o direito. É o caso de argumentar a aceitação de uma obra literária e a es-
tética que lhe corresponde para fundamentar o direito. Não apenas da obra
literária, mas a adaptação para o cinema, da música que anima a experiência
humana, enfim, de toda a arte que pretenda ou que justifique direta ou in-
diretamente uma série de direitos e obrigações.
As sensibilidades constituídas e a sensibilização de experiências huma-
nas ainda não constituídas, todas as artes dialogam e são a substância do
direito, especialmente de sua interpretação e secularidade. Diz-se que a arte
é nos termos durkheiminianos dotada de exterioridade e objetividade como
os fatos sociais, ou uma demonstração objetiva deles, quando estes não são
demonstrados por si mesmos.
Mais ainda que a arte está dotada de abertura e pluralidade, o que
distancia a realidade de uma objetificação racista e racialista, dotada de
imaginação sociológica e da historicidade que recorda a lei na ausência
do direito. A defesa do direito como arte é radical pretendendo até mes-
mo subverter a praxe e as atividades procedimentais originárias da socio-
Capa logia alemã.
Sumário No caso do direito notadamente da sociologia do direito weberiana, re-
lativizando o papel dos práticos jurídicos com relação à sociedade, colocan-
eLivre
do os mesmos em perspectiva não apenas imaginativa como presencial em
299
Sociologia do direito

relação a sociedade sobre a qual recaem as decisões jurídicas, o que confi-


guram decisões como práticas de alteridade e sensibilidade.
Afastando definitivamente o processo discriminatório inquisitorial nas
esferas jurídicas, o prático jurídico decide sobre “almas”, sobre “dramas so-
ciais”. Neste sentido, identificar as partes no processo não é o mesmo que
discriminar positiva ou negativamente, mas delimitar a identidade de uma
família, e de uma genealogia, assim como as políticas de inovação que estas
pretendem fundamentar.
Sendo a política uma tarefa e obrigação do Estado, este deve defender
a existência moral que constitui a sociedade. Não se trata de rivalizar social-
mente, racialmente, ou contrapor identidades, menos ainda de uma “perse-
guição familiar”, cuida-se com efeito de uma comunidade moral no interior
do capitalismo, estando reservada a cada um sua parte e respeito.
Não obstante a necessária positivação discriminatória do processo polí-
tico, jurídico e social, e conforme a parte se apresente subjetiva e objetiva-
mente, a sua defesa implica a renúncia de acusações inquisidoras, e a com-
preensão sobre sua colonialidade e a agência com que a parte se destaca.
Capa Mas nos limitaremos por enquanto na relação do direito que queremos co-
Sumário nhecer complexamente com a literatura, em outras palavras, a abertura do
direito para a sociedade tomando como base a literatura.
eLivre

300
Sociologia do direito

Com a literatura não pretendemos ensinar diretamente, por referência e


citação, mas estabelecer uma metodologia, adaptando a decisão para que
esta não condene, mas justifique o caso de uma sociedade pacificada. Com
esta discussão, pretendemos ampliar os meios sobre os quais se fundamen-
tam as decisões, uma vez que estes mesmos foram apropriados por um
modelo neoliberal de sociedade e que as comunidades não alcançar lograr
êxito em suas pretensões.
Contra a perspectiva que divorcia sociabilidades, pode-se vislumbrar
uma sociedade constituída sem artifícios e manipulações? Deve-se observar
no período em que as guerras mundiais atingem secularidade, senão há re-
núncia de direitos humanos, sobre quais valores pretende se fundamentar?
Como é possível assegurar os direitos humanos em seu dispositivo clássico,
afastando a instabilidade, os conflitos e as incertezas da vida cotidiana his-
toricamente percebidas?
Como estabelecer a sociabilidade de forma interacional, afastando as
formas midiáticas, aquelas destituídas de historicidade e de linguagem? Trata-
-se esta de uma espiritualização para atingir quais objetivos? Trata-se da elei-
Capa ção do dispositivo de mercado sem o elo com as comunidades que o justifica?
Sumário Quais as consequências de um juízo como este para a sociedade? Não se trata
de apropriar-se da dança, do vestuário e da alimentação para satisfação e en-
eLivre frentamentos institucionais, não é isto que se chama de pilhagem cultural?
301
Sociologia do direito

Esta pilhagem que mencionamos é destituída de relações originárias, e


dos direitos e obrigações que são criados pela experiência da cultura em sua
diversificação. Como implantar dispositivos culturais, expropriando os mes-
mos do contexto cultural do qual fazem parte? Isto é que foi feito até aqui.
Estas expectativas de mercado não se opõem as expectativas normativas?
Não pretende negociar uma organização psicológica para justificar profis-
sões discutíveis e descomprometidas com a comunidade de forma a amea-
çá-la ao seu fim?
A simples contemplação de mercados não é suficiente a comunidade
humana que possui exigências de sociabilidade mais permanentes do que
as ofertas, e esta suposta espontaneidade do grande mercado. Veja senão
é o caso das sociedades agrárias estudadas por José de Souza Martins se
estas não são iluminadas pela literatura regionalista e se não foram encon-
tradas satisfações sociais pelo direito, especialmente no caso em comento
da herança de terras por irmãos.
Analisando a questão agrária como a questão de direitos por uma me-
todologia marxista analisa as contradições na explicação da comunidade
Capa camponesa sobre a lei, as formas de expropriação e herança de terras. Isto é
Sumário como a sociedade mesma a entende e vivencia no cotidiano. Aponta nota-
damente segundo a perspectiva familiar, sempre contraditória e conflituosa,
eLivre como esta compreensão do homem simples poderá regimentar dispositivos
302
Sociologia do direito

institucionais, situando esta a parte, não obstante seja esta uma tradição
que se modifica socialmente.
A questão da herança de terras pelos filhos segundo a regra da igualdade
é questionada no interior da sociedade camponesa. Trata-se de uma socie-
dade que discute padrões de legalidade, confrontando-os com os princípios
revolucionários e assimilando estes como princípios políticos primordiais,
isto é, de acordo com a teoria americana da justiça de John Rawls: valendo-
-se da permanência institucional, apropriando-se dela republicanamente, e
desfazendo-se do véu da ignorância.
Na passagem de uma sociedade agrária para a sociedade de consumidores
existe uma questão que consiste em adotar problemas que a sociedade de con-
sumidores não vivencia diretamente, esta reportando a si aquela decisão que
lhe é estranha. Ou então uma decisão eletiva optando e priorizando a consciên-
cia adversarial como regra de justiça sem considerar o trabalho nas democracias
de experimentação ou exercício de alteridade e imaginação como idealmente
vivenciaram sociedades camponesas. Este que é atualmente um procedimento
típico às burocracias administrativas. Reporta a falência de uma perspectiva so-
Capa bre a adoção espiritual de experiências alheias como objetivo de governança.
Sumário Este percurso é, aliás, o que causa uma identidade fragmentada.
Em depressões sociais e psicológicas, desfaz-se das pessoas onde elas flo-
eLivre
rescem interiormente, ou mesmo estabelecem os práticos com estas apartes
303
Sociologia do direito

provisórios, elegendo expectativas e novas promessas, ausentando-se das


causas que devem ser observadas na solução do case. Trata-se de caridade,
onde deveria existir laicidade, comunidade, autenticidade e legalidade.
Deve-se no entender de José de Souza Martins entender a sociabilidade
do homem simples. Nas cidades, dos consumidores. O desenvolvimentismo
carece de uma leitura humanizada. As falhas de cálculos não denunciam
uma formação reificada e dogmática? E quando neste domínio somos dis-
cutidos, não somos apenas seus dispositivos mal reflexionados? O que é a
permanência senão o acumulado da nossa sensibilidade?

A literatura regionalista e os direitos culturais: referências a


Augusto dos Anjos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego

Nesta parte da reflexão, gostaria de esboçar a escolha de três autores da


literatura regional para compreender sua extensão compreensiva, são eles:
Augusto dos Anjos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego. O caminho que
Capa traço busca vivificar por meio dos personagens um círculo relacional fami-
liar que permite compreender a esfera de direitos e obrigações civis na lite-
Sumário ratura. Apenas por meio deste recurso pretendo marcar a espacialidade e a
eLivre temporalidade literária.

304
Sociologia do direito

Nos poemas selecionados do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-


1914), a dinâmica do escritor nos revela uma intensa atividade não apenas
física, mas intelectual do homem da época. Como neste poema, vemos uma
atividade escravagista ou com ela solidária, cujo relato nos conduz a com-
preensão de como se comporta o corpo sobre atividades extenuantes, como
se contempla, e como reage às dores e as agressões sofridas. Esta é a lição
do período pós-escravagista.
Imagina-se com a literatura em sede de “lutas” contemporâneas quais
são as questões que o prático jurídico e que antes a comunidade deve con-
siderar na terapêutica para criar normas de direito que confortem o corpo
humano, e o restabeleça em vida. Notadamente, a “luta livre” e a dinâmica
envolve a superação de um estado físico e mental como este:

A dança dos encéfalos acesos


Começa. A carne é fogo. A alma arde.
A espaços
As cabeças, as mãos, os pés, os braços
Tombam, cedendo a ação de ignotos pesos!

Capa É então que a vaga dos instintos presos


-Mãe de esterelidades e cansaços-
Sumário Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos
eLivre

305
Sociologia do direito

Subitamente, a cerebral coréia


Pára. O cosmo sintético da idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...

Arranco do meu crânio as nebulosas


E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto.

Em seguida, gostaria de comentar um segundo poema de Augusto dos


Anjos, que no meu entendimento nos ajuda a pontuar a regionalidade, e a
superação do quadro anterior pela adoção do regimento da luta. O poeta
então elabora a psicologia motivacional: e é possível encontrar no local de
atividades como a mesma configuração ilustrada do poema! No caso de re-
fletir o escravismo, a atividade atual é a capoeira livre, ao entrarmos em es-
tados imaginativos sobre a colonização e a vinda dos escravos para o Brasil.
Além destes o exercício de capoeira em si mesmo eleva o praticante a es-
tados compreensivos como os vivenciados no passado, por isto esta é uma
atividade regimentada.

O Negro
Capa
Oh! Negro, oh! Filho da Hotentóia ufana
Sumário Teus braços brônzeos como dois escudos,
São dois colossos, dois gigantes mudos,
eLivre Representanto a integridade humana!

306
Sociologia do direito

Nestes braços de força soberana


Gloriosamente à luz do sol desnudos
Ao bruto encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito tempo a alma africana!

No colorido dos teus brônzeos braços


Fulge o fogo mordente dos mormaços
E a chama fulge do solar brasido...

E eu cuido de ver o múltiplos produtos


Da terra – as flores e os metais e os frutos
Simbolizados neste colorido!

Há que se falar de uma atividade recreativa na capoeira, sobretudo no


período da infância. Mas toda a atividade obedece a um justo regramento
e hierarquização, o que nos colocar em uma temporalidade diferenciada do
passado onde a capoeira era discriminada negativamente para ser então
discriminada positivamente. Um tempo depois desta literatura sobre a qual
Capa estamos comemorando seus centenários, seriados, de nascimento, da obra
e da morte do autor, encontramos a literatura de Rachel de Queiroz, conhe-
Sumário cida pelo regionalismo de trinta, e que é constitutiva do quadro realista não
eLivre apenas da época como somos herdeiros de sua compreensão nos dias atu-

307
Sociologia do direito

ais. Esta literatura inicia a reflexão na sociologia brasileira sobre as socieda-


des rurais como a sociedade brasileira da época dos engenhos.
No primeiro conto do Romance as Três Marias, percebe-se a cosmologia
de direitos e obrigações da época. A personagem feminina é Glória, uma
personagem órfã. Sendo a autora Rachel de Queiroz letrada, a mesma pro-
cede a uma defesa literária da personagem, verifica o círculo relacional, ana-
lisa direitos, concessões e benefícios. Rachel em linguagem literária reflete
com realismo a sociedade da época, desde a louça, e sendo ela uma escri-
tora a frente de seu tempo, adota o marxismo e o trotskismo encontrando
reconhecimento intelectual e ingressando como mulher no círculo literário
protagonizado por homens de engenho, como José Lins do Rego.
Os fatos que refletiu guardam a cultura brasileira e os direitos são cultu-
rais em sua extensão heranças e filiações. Destaca-se neste aparte, através
da personagem Glória, esta coincidentemente de mesmo nome da filha de
Augusto morto, e mais a frente de José Lins do Rego? Responsável pela ca-
racterização do universo feminino, Rachel elege Glória como um tipo social
de brasileira média em situação de risco – orfandade e paternidade, em de-
Capa fesa do direito à herança, relatando como a personagem vivencia autônoma
Sumário e subjetivamente a herança cultural e as possibilidades de emancipação fe-
minina na sociedade brasileira.
eLivre

308
Sociologia do direito

No segundo conto, a sequência narrativa nos apresenta a personagem


Maria Augusta, esta uma versão feminina do poeta Augusto dos Anjos? Ra-
chel, em sua inventiva, aproximava-se do cotidiano literário, e com este re-
curso, na ótica feminina, traçou uma compreensão completa e sensível, uma
versão ou face feminina do escritor? Percebe-se na leitura crônica de Augus-
to o par: uma clara liberdade e uma viva alegria diferentemente da mulher
em seu entorno e os ingloriosos afazeres domésticos.
Passa então a escritora a relatar a mulher no mundo do trabalho, e esta
reflete a segunda esfera do trabalho, seus dilemas insondáveis e espirituais
com relação a primeira esfera doméstica. Reflete a espiritualidade racial e a
estratificação brasileira, após o recolhimento do direito liberal pelo que se
pretendia: o apagamento e a invisibilidade do brasileiro liberto. Opondo-se
ao sistema escravagista ao modelo de desenvolvimento e de revolução bur-
guesa vivenciada pelo nordeste brasileiro ao menos por meio da mediação
literária. Avançava assim sobre os limites do regionalismo de trinta e refletin-
do a modernização brasileira: processos econômicos distintos por meio de
uma reflexão centrada na literatura e no direito.
Capa No romance “Moleque Ricardo”, de José Lins do Rego (1901-1957), o lei-
Sumário tor é confrontado com as condições do trabalho na sociedade periférica, as-
sim como o drama de classes populares, da adequação e inadaptação. Nesta
eLivre como em outras obras do escritor, a exemplo de Usina, é possível comparar os
309
Sociologia do direito

descritivos sociológicos em recepção literária, ou os descritivos literários cuja


imaginação comporta a sociologia. Frequentemente se observa na literatura
de JLR, como este reflete nas atividades do escritor seu engajamento político
e a formação nas ciências jurídicas e sociais na Faculdade de Direito do Recife.
O trabalho do romancista, portanto, consistia em vigiar o problema da
recente liberdade, quando esta estava apartada do direito civil, e durante o
período de guerras mundiais, organizando para o leitor uma espécie de có-
digo consensual ou de comportamento classista. Discrimina diversos aspec-
tos da sociedade agrária para o leitor como clientelismo e compadrio, pa-
trimonialismo e patriarcalismo. A metodologia consiste em observar o que
quer dizer sociologicamente o escritor na narrativa literária, confrontando a
biografia e posição política, contemplando a estilística e os aspectos jurídi-
cos e historiográficos da obra literária.
A importância deste registro está além da estilística, porque guarda a
sociedade e o humanismo elevado ao registro documental. Quando a so-
ciologia nesta fase estreitou as certezas sobre a ausência do documento e
a dúvida sobre o relato civil dos libertos. O escritor esteve atento a este pa-
Capa pel, revelando o espírito e a ambiência da época, ofertando ao leitor a graça
Sumário compreensiva, contando o escritor com a influência decisiva do sociólogo
Gilberto Freyre, em Congressos Regionalistas (Recife, 1926) e a eleição neste
eLivre Congresso daquele que seria o livro do Nordeste.
310
Sociologia do direito

Segundo Castelo (1961), a interpretação sociológica é posterior e nasce


a partir do conteúdo psicológico da obra, que é memorialista, relacional e
museológica, refletindo no ciclo temático ficcional, uma temática social e
sociológica, reflete quando o assunto é a colonização portuguesa o senti-
mentalismo do colonizador, assim como as temáticas “brutais” de carga es-
cravagista como o Cangaço, dialogando com Os Sertões, o coronelismo e o
messianismo (migratório). Este último marcado em importância pela ques-
tão sociológica: existe uma origem religiosa nos movimentos sociais?
Como se trata de uma vasta obra ficcional, o cotidiano que buscamos é
apenas aproximativo, por oposição e complementaridade com o modernis-
mo, por autenticidade das tradições familiares, por criticidade no sentido de
descolonizar o Brasil de Portugal, e por sensibilidade, refletindo agora as ori-
gens não apenas portuguesas, mas as origens africanas. Estas aproximações
do cotidiano envolvem críticas ao nacionalismo e as questões de direitos
humanos, como reconhecer legitimidade ao povo brasileiro numa época de
conflitos nacionalistas, culturais e econômicos? Como valorizar de súditos a
senhores, democratizar o debate em social, colher respostas, discuti-las, dis-
Capa cutir até mesmo as fronteiras e limites estadualistas.
Sumário O escritor contempla a subjetividade weberiana, não obstante a influên-
cia alemã proveniente da família “Lins”. Porém não é subjetivista: seu maior
eLivre trabalho é civilizacional, consiste em objetivar a sociedade brasileira, nome-
311
Sociologia do direito

ando seus dispositivos e instituições. A sociologia não existia no nordeste


enquanto profissão, apesar da destacada presença de Gilberto Freyre, es-
tando também estas fronteiras literárias e sociológicas em discussão, um
trabalho por fazer, contando JLR com a influência literária e a compreensão
específica do amigo sociólogo Gilberto Freyre.
Em Usina, observamos uma terminologia formal ou de formalização da
sociedade. Observamos problemas institucionais na administração da socie-
dade brasileira, refletindo a mudança social da soleira: da Casa Grande em
fabrico. Mudanças na liberdade constitucional, e na profissão sentidas por
um “menino e por um moleque”, um homem vivendo sobre o regimento
anterior e as saudades portuguesas, um homem refletindo o seu lugar (per-
sonagem) no processo de mudança normativa (política).
De anotar, como se popularizou o ballet clássico e as danças de origens
européias no Brasil, pela adoção das temáticas locais na indumentária e na
passagem desta para a apresentação na forma de balé coreografado como
na quadrilha junina que leva o nome do “Coronel” José Lins do Rego. Não
apenas a veste nos joelhos e as saias rodadas em cores: vermelha e cingida
Capa a cintura em laranja para representar o fogo na queima do açúcar; e o tecido
Sumário leve representando os ares que alimentam a queima do açúcar. Mas importa
a representação comum do gestual, do comportamento, a leitura do corpo
eLivre pelo enfrentamento da imagística literária.
312
Sociologia do direito

Na representação da economia nordestina pela indumentária, a veste


verde dos meninos como representação da natureza da cana-de-açúcar, tra-
zendo a cena uma ecologia social, que remonta ao tema da violência e do
cangaço no baile dos cangaceiros, de lampião e seu bando, com os facões
levantados para o alto aproximando-se com este gesto que estava também
para iniciar os rituais de morte na região. Estes rituais que foram acompa-
nhados de saques e de lutas que formavam a guerra e a fama do nordeste.
Um cangaceiro disposto a se alimentar do seu rival um soldado ou um
cidadão qualquer daquela região, ameaçando também com o facão o pes-
coço das mulheres. Ao lado deste rito de morte, um baile clássico e legal,
consciente de si mesmo sobre o próprio corpo, um vocabulário expressivo e
falado, e um casamento desajeitado, um baile que pretende fixar as identi-
dades de uma civilidade recente. Estão nos livros o registro destes saberes,
seus lugares, formas de expressões e celebrações.
Por outro lado, a sociedade reflete a cultura global: dados econômicos
da superestrutura que colocaram o Brasil em patamares eletivos sobre in-
vestimentos públicos e privados a serem realizados em conformidade com
Capa os parâmetros internacionais, os investimentos no futebol, nos esportes e
Sumário nas artes olímpicas que serão sediados no Brasil.
Estes que causam segundo Schwartz um clamor a mais uma reação na
eLivre
comunidade no sentido de melhorias no transporte, resultando em uma
313
Sociologia do direito

manifestação local em apoio ao Passe Livre. É, com efeito, uma versão das
manifestações sociais endossadas pela emancipação literária disseminada
pela educação como a que viemos pautando até aqui, sendo o Movimento
Passe Livre aquele que propiciará uma consciência de si e do entorno, e a
vivência literária, notadamente escolar.
Para assegurar o patrimônio que temos são necessárias algumas me-
didas de observação e fundamentação, quais sejam, assegurar a sua histó-
ria, tendo como contrapartida definição de prioridades e de práticas, assim
como assegurar o patrimônio que é imaterial, os caminhos da sabedoria e
do conhecimento para os jovens e a juventude. São imateriais a metodo-
logia, a dialógica, a interativa (cooperação, conflito, negociação, acusação),
estes que não podemos prescindir sem que caiamos em auto-enganos e nos
arriscamos por causa do conhecimento.
Pensando o escritor como o nativo relativo (CASTRO, 2002). O nativo rela-
tivo pensa como o antropólogo, porém sua prática é diferente: a elaboração
do ponto de vista do nativo não é o mesmo que o ponto de vista do nativo,
uma vez que estas relações são mediadas por espaços diferenciados. O an-
Capa tropólogo e o nativo estabelecem entre si consigo apartes ficcionais, imagi-
Sumário na uma experiência, e experimenta uma imaginação. Colocamos a questão
se esta equivalência não corresponde a escusa de pensar a si mesmo regres-
eLivre sivamente?
314
Sociologia do direito

(...) o conceito como representação de um corpo extraconceitual, mas o


corpo como perspectiva interna de um conceito, o corpo implicado no con-
ceito de perspectiva. E se como dizia Spinoza, não sabemos o que pode um
corpo, quanto menos saberia o que pode esse corpo. Para não falar de sua
alma (CASTRO, 2002)

De pensar que no animismo amerídio o pensamento é uma convenção,


e que as condições de produção da experiência são aquelas capazes de di-
ferenciar dois pontos de vista. Para RABENHORST (2014), importa a intertex-
tualidade e a formação intelectual na verificação de autoria do discurso e da
prática científica. Para ele, a secularização provocou uma exposição onde se
verifica a ausência de sacralidade e de religiosidade sobre os meios assim
como a percepção das pessoas sobre sua dignidade. Argumenta assim sobre
a necessidade de proteção e sobre a ponderação de decisões contrárias a
liberdade de expressão. E, por outro lado, assegura a experiência ameríndia
não apenas de forma reflexionada, mas em sua extensão dialógica:

Se há algo que cabe de direito a antropologia não é certamente a tarefa de


Capa explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar o nosso mundo, “povo-
ando-o de todos os exprimidos que não existem fora de suas expressões”
Sumário (CASTRO, 2002, p. 132)
eLivre

315
Sociologia do direito

Para Rabenhorst (2014), é preciso avaliar a autoria em face da imitação


quando um artista cria pensando ser outro artista e agindo da mesma ma-
neira; esquecendo-se ou liberando-se de sua identidade pela identidade
dominante. Não existe neste caso o eu verdadeiro, e é preciso pensar se
este eu não é apenas uma ficção, e como se dará o reconhecimento diante
do “empréstimo do self”. Ou ainda como refere o Lama Padma Santem, é
preferível olhar os outros a partir do mundo deles, libertando-nos tanto do
aprisionamento do outro, quanto do fato de nos relacionarmos com o ou-
tro de forma utilitária. Estas são finalmente as questões e os autores com
os quais eu gostaria de dialogar neste texto.

Referências

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UFPB, 2001.
CASTRO, Eduardo Viveiros. “O Nativo Relativo”. In Mana: estudos de antropologia social.
Vol 8 (1), 2002.
Capa
FERNANDES, Florestan. “A Revolução Brasileira e os intelectuais”. In Sociedade de Clas-
Sumário ses e Subdesenvolvimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

eLivre

316
Sociologia do direito

MORAIS, Jorge Ventura. “Batendo Bola com Harold Garfinkel: a moral do futebol como
ordem constituída”. Revista Política e Trabalho. Revista de Ciências Sociais, n.39, Out.
2013, p. 139-158.
QUEIROZ, Rachel. As Três Marias. São Paulo: Siciliano, 1992.
RABENHORST, Eduardo Ramalho. “I Workshop em Informação, Direito Autoral e Plágio”.
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09-2014, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=IbMINd7xMMo>
SCHWARTZ, Germano & MACEDO, Elaine. Pode o direito ser arte? Respostas a partir do
direito e da literatura. Conpedi, acessado em 06-09-2014 e disponível em: <http://www.
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SCHWARTZ, Germano. Constituições civis e regulação: autopoiese e teoria constitu-
cional. Conpedi, acessado em 06-09-2014 e disponível em <http://www.conpedi.org.br/
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Capa
Sumário
eLivre

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