Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
RESUMO
ABSTRACT
This paper discusses the concept of civic religion in the communal world of medieval Italy.
This concept seems to express the political culture more widespread in the "Middle Ages"
and has become important in recent decades of medieval studies, since it allows to elucidate
the interplay between religion and politics, State and Church and the clergy and laity, so
signifying for that historical period. The purpose of this communication, therefore, is to
explore both notions in its explanatory potential. Methodologically, it will discuss some
authors-reference in both fields, exemplifying, when necessary, our reasoning with a primary
source, the hagiography Actus Beati Francisci in Valle Reatina. Conclusively, the study hopes
to point both the multiplicity of the phenomenon of civic religion as a possibility of
apprehension of political culture in the “Middle Ages”.
1
Graduado em História e Pós-Graduando no curso de Especialização em Culturas Políticas, História e
Historiografia da Universidade Federal de Minas Gerais.
1. Introdução
2
(MOTTA, 1996, p. 84). Norberto Bobbio (1998, p. 954), por sua vez, começa o seu verbete
recuperando o significado antigo de política: “tudo o que se refere à cidade e, consequemente,
o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social”2. Porém, o seu texto não deixa
de fazer uma questionável vinculação entre a política e o exercício do poder, um “poder
político” que nada mais é do que um “poder coercitivo”, efetivado pelo monopólio da
violência3, como se a política só existisse com base na coerção. A dimensão coercitiva,
entretanto, pode ser cabível para a modernidade e contemporaneidade, mas parece exceder à
definição antiga do que seja a política, que deve passar muito mais pelo convencimento e pelo
conceito de autoridade mobilizado por Hannah Arendt (2005)4. Assim, fiquemos com a
teorização clássica de política, sem esquecer que ambos os termos são incrivelmente
polissêmicos (e polêmicos) e ainda trazem consigo outros igualmente complicados:
identidade, Estado, governo, poder. Por ora, apenas o primeiro nos interessará.
2. Marco teórico
Vamos agora tentar instrumentalizar dois conceitos cuja importância para os estudos
medievais já se comprovou: “culturas políticas” e “religião cívica”. Trabalharemos os dois em
conjunto porque achamos que eles têm muito em comum: a religião cívica nos parece ser a
cultura política mais amplamente difundida na Idade Média. Todavia, vamos nos preocupar
mais com o primeiro deles, cuja sistematização é mais complicada e ainda não foi feita para
os tempos medievais; religião cívica já é um conceito pensado para o período medieval.
Comecemos explicitando a compreensão que temos de ambos. Por “culturas
políticas”, tomamos a definição fornecida por Serge Berstein (2009, p. 31), na falta de uma
propriamente medievalista:
2
Note-se que Bobbio dá um salto da antiguidade clássica para a modernidade, como se no medievo não
houvesse o que dizer sobre política, porque o poder ali exercitado não era político ou porque não havia Estado
detentor do monopólio da força.
3
Para Pierre Ansart (1978, p. 19), a confusão entre “consenso” e “dominação” política deve-se à “negligência”
com que se encaram as condições produtivas da política. Para Karina Kuschnir e Leandro Piquet Carneiro
(1999, p. 245), “o poder político é unviersal, inerente ao social e, diferentemente do que ocorre nas sociedades
com Estado [moderno], pode ser exercido de forma não-coercitiva”.
4
Para essa autora, as sociedades antigas e medievais estavam ancoradas numa noção de autoridade advinda de
experiências incontestes e coletivas, relativas a um passado remoto, imaginado, onde repousava a fundação da
comunidade. Essa autoridade é que provia coesão social, ou seja, organizava a política (o espaço e a vida
pública).
3
do mundo e de sua evolução, do lugar que aí ocupa o homem e, também, da própria
natureza dos problemas relativos ao poder.
4
a ancoragem mais segura para viabilizar a aplicação de cultura política a períodos
recuados não será encontrada nas concepções de Berstein, mas numa tentativa de
adaptar a tipologia de Almond e Verba, principalmente por meio dos conceitos de
cultura paroquial e cultura da sujeição.
5
Berstein (2009) lembra que grupos sociais emergentes trazem consigo novas culturas
políticas.
Berstein (1998, p. 350-351) apresenta a cultura política como um “conjunto
homogêneo”, em que
Ora, não são justamente esses elementos que a religião fornece ao pensamento
medieval? Uma doutrina, uma vulgata que a expresse (as hagiografias, por exemplo), uma
leitura coletiva do passado, uma visão institucional, um ideal de sociedade e um discurso
codificado que a elabore. Conciliando, pois, ambas as ideias, podemos pensar que a religião,
durante toda a Idade Média, é que forneceu a maior parte das representações, normas e
valores que nortearam os comportamentos políticos dos cristãos ocidentais. Na religião cristã
o homem medieval do ocidente encontrou não apenas uma “visão de mundo”, mas também
um lugar social para si, explicações para os seus problemas e instrumentos para lidar com
eles.
3. Conceitos implicados
6
Outro conceito consequente é o de imaginário. No senso comum, o imaginário – ou a
imaginação – é algo ilusório, irreal, mas para Laplantine e Trindade (1996, p. 28), “o
imaginário não é a negação total do real, mas apóia-se no real para transfigurá-lo e deslocá-
lo”; o imaginário tem um caráter criador, portanto. Na História das Ideias, o termo veio
substituir a vaga noção de “mentalidade”, expandindo o escopo antigo que circunscrevia o
pensamento à sistematização intelectual, principalmente em forma escrita, e passando a
abranger outras formas de circulação de ideias. Se a imaginação produz imagens, o imaginário
é, pois, o conjunto de imagens produzidas pela imaginação. Essas imagens são
representações, porque presentificam coisas ausentes (LAPLANTINE & TRINDADE, 1996,
p. 24-25). Logo, o imaginário é um conjunto de representações.
Para Pierre Ansart (1978, p. 18), o imaginário é “o conjunto das evidências implícitas,
das normas e valores que asseguram a renovação das relações sociais”5. Nisso, ele se difere de
outro conceito inserido no de culturas políticas: ideologia. Para Ansart (1978, p. 17),
ideologia (política) é “o conjunto das linguagens políticas de uma sociedade, isto é, o
conjunto das posições teóricas que se organizam numa formação histórica concreta em dado
momento de sua história e que esboçam a totalidade das possibilidades e sua finitude”. Para
ele (ANSART, 1978, p. 16), a ideologia é um suporte para a práxis política; a primeira não
tem sentido se não for efetivada, e a segunda não tem sentido se não for orientada pela
primeira.
Por todas essas acepções, retiradas de diferentes autores (alguns dialogam entre si),
percebemos que os conceitos listados não são desconexos entre si; ao contrário, são tão
parecidos que poderíamos tomá-los como sinônimos. Talvez pudéssemos renomear “cultura
política” como “ideologia política”. Mas o melhor arranjo possível, cremos, é o seguinte:
partindo da ideia básica de representação, temos que o imaginário é simplesmente um
repertório de representações/imagens, enquanto a ideologia é a sistematização desse repertório
numa linguagem teórica coesa, forjada para servir como instrumento de interferência na
realidade vivida pelos sujeitos que a elaboram, a fim de modificá-la na direção do que as
normas e valores por eles cultivados norteiam. A “cultura política”, por fim, seria algo mais
amplo e profundo. Ela comportaria não apenas as representações, imaginários e ideologias de
natureza política (segundo a definição que estipulamos para esse termo), mas também essas
normas e valores e, não menos importantes, os interesses e anseios políticos de um
5
Ansart e Bronislaw Baczko (1985) falam de imaginário e imaginação “social”, mas por isso parecem entender
apenas que tal faculdade seja coletiva, não individual.
7
determinado grupo social, articulando todos esses elementos na informação das atitudes e
planos políticos empreendidos por essa comunidade.
Estabelecidas as bases sobre as quais trabalharemos todas essas ferramentas analíticas,
passemos às avaliações de sua empregabilidade e aos testes necessários para viabilizá-la.
Tomando por “cívico” o que é “político”, i.e., aquilo que se refere à cidade e à vida
social urbana, a religião cívica torna-se a fonte dos elementos constitutivos da cultura política
no mundo comunal. Segundo Vauchez, esse fenômeno, como expressão particular do
cristianismo dentro das comunas italianas, embora ateste o poder do governo municipal no
suporte de um culto local negado pelo Cúria romana, frequentemente teve razão de ser em
face de crises vividas pela cidade (VAUCHEZ, 1987, p. 185). Tal proposição vai no mesmo
sentido dos estudos de Paolo Golinelli (1996, p. 215), para quem o culto santoral e a
hagiografia encontram suas razões de ser numa existência dupla: diacrônica – situada na
gênese, propriamente, da comunidade urbana, cívica – e sincrônica – com sentido construído
numa precisa conjuntura política.
A princípio, o conceito de religião cívica trabalha majoritariamente com os cultos aos
patronos das comunas italianas trecentistas, em que o próprio poder público promove e
financia o culto, a igreja a ele dedicado e até a escrita das hagiografias sobre o cultuado.
Deveras essa parece ser a expressão máxima do fenômeno, conforme mostram os estudos de
Antonio Rigon e do próprio Vauchez. No entanto, esse não parece ser o único tipo de caso em
que a religião cristã torna-se cívica (ou política) dentro do mundo comunal. Seria importante
considerar os casos em que os santos cultuados não compõem o panteão da cidade, porém são
por ela abraçados de forma tal que o seu culto se torna igualmente cívico, conforme uma
passagem dos Actus Beati Francisci in Valle Reatina, hagiografia de São Francisco de Assis,
redigida por autor anônimo na diocese de Rieti (onde ele era nascido), entre 1279 e 1319, nos
indica:
E assim como Cristo escolheu Belém para o seu sagrado natal, mas elevou
Cafarnaum acima das outras cidades, por causa de sua fé, o discípulo de Cristo,
Francisco, consagrou Assis com o seu sagrado nascimento, mas na província reatina,
8
por especial predileção, refulgiu, através da clareza de muitos milagres. (ACTUS…,
1999, p. 132)6.
Ademais, não se pode esquecer que a topografia social da cidade revela também
diferentes cultos dentro dela; assim como as culturas políticas devem ser entendidas no plural
(BERSTEIN, 2009, p. 36-37), seria preciso cogitar a existência de religiões cívicas distintas
numa mesma cidade.
Outras duas características de uma religião cívica mencionados por Vauchez (1987, p.
185) mereceriam revisões: segundo esse autor, os cultos cívicos foram comuns em pequenas
cidades e tinham como protagonistas personagens cuja canonização era recusada pelo Cúria
romana. Entretanto, os mesmos Actus, por exemplo, nos dão testemunho de um culto a s.
Francisco de Assis que tem todos os traços de civismo, embora o santo não seja patrono da
cidade nem tenha encontrado dificuldades para ser canonizado:
E embora este glorioso confessor, o santo pai Francisco, tenha iluminado com a
palavra e o exemplo todas as regiões do mundo, nas partes reatinas, entretanto,
brilhou mais difusamente, pela doutrina de vida e pelos milagres (ACTUS7… 1999,
p. 132).
Similarmente, Antonio Rigon (1995) mostra como o culto de Santo Antônio de Pádua
é propriamente parte da religião cívica, tanto que foi a cidade a pagar os processos da
canonização, a qual ocorreu em tempo recorde.
A própria redação de uma vida para um santo local comprova a importância de seu
culto para a política e o sentimento cívico de uma comunidade (RIGON, 1981). Conforme a
citação acima nos permite perceber, ainda que s. Francisco não fosse natural de Rieti, o
hagiógrafo garante a sua “reatinidade” asseverando que o santo preferiu o vale à sua própria
terra natal. Um procedimento que mostra a afinidade da figura do santo com a identidade
reatina. Nota-se também que esse anônimo não está dizendo da cidade, da urbe de Rieti, mas
de toda a província, o que nos sugere pensar o espaço cívico para além das muralhas urbanas.
Além das muralhas da predita cidade há um espaço circular que não excede vinte
milhas. Ali o piedoso pai construiu quatro moradias, nas quais operou admiráveis
sinais e prodígios, segundo foi escrito anteriormente. E como o assinalado [signifer]
de Cristo, começou sua gloriosa vida na cruz, segundo a regra da cruz prosseguiu-a,
na cruz terminou-a e pela cruz esperava tornar-se glorioso, como, de fato, é. Assim,
6
Et sicut pro suo sacro o ortu bethelem christus elegit et carphanaum propter eorum fidem pre ceteris voluit
sublimari, Sic discipulus christi franciscus sacro ortu consecravit assisium. et in provincia reatina dilectione
precipuva multorum micuit claritate signorum.
7
Et licet gloriosus confessor, iste pater sanctus franciscus cunta mundi climata verbo et exemplo lustraverit In
partibus tamen Reatinis diffusius, vita doctrina et miraculis claruit.
9
das preditas moradias, de modo admirável, compôs uma cruz (ACTUS..., 1999, p.
132)8.
Certa vez o papa Inocêncio III, com toda a cúria romana, estacionou na cidade de
Rieti. Alguns dos cardeais pediram ao bem-aventurado Francisco para ir a Rieti e lá,
pelo seu amor, permanecer alguns dias. Veio então o homem santo e, fugindo da
pompa do mundo e do modo de vida dos homens, não entrou na cidade. Ao
contrário, retirou-se na colina de San Fabiano, próxima a Rieti, em uma igreja
dedicada ao predito santo. Havia ali um sacerdote de vida exemplar, a quem o pai
rogou que lhe permitisse ficar com ele alguns dias. (ACTUS…, 1999: 229)10.
8
Citra enim civitatem predictam est spatium circulare per girum viginti miliaria non excedens. in quo loca
quatuor pirus pater construxit in quibus operatus est mira ut signa et prodigia inferius scripta asserunt et
affirmant. Et quoniam christi signifer gloriosam vitam in cruce incepit secundum regulam crucis processit, in
cruce perfecit et per crucem expectabat effici gloriosus sicut est. ideo de predictis locis miro modo. modo
crucem composuit.
9
[…] reatini cives de indevotione se corrigant. et erga predictum sanctum patrem et loca predicta ferventius et
devotius animentur.
10
Tempore quodam innocentius papa tertius cum tota romana curia moram traebat in civitate reate. Quidam
autem ex cardinalibus misserunt pro beato francisco ut reate accedere et ibidem eorum amore diebus
quibusdam deberet manere. venit autem vir sanctus et fugiens ponpam mundi et homunim conversationem
non intravit civitatem. Sed secessit in colle Sancti fabiani prope reate in quadam ecclesia sub vocabulo Sancti
predicti. Erat enim ibi sacerdos quidam bone conversationis et vite quem pater rogavit ut permicteret eum
secum per dies aliquos secum manere.
10
mínimo, 2 gerações11. E mais que isso: é preciso ser possível identificar o seu surgimento,
elaboração e evolução (BERSTEIN, 1998, p. 355). A cultura política precisa evoluir, adaptar-
se a cada contexto novo; do contrário ela será apenas uma tradição política e estará fadada ao
término. Embora tenham possuído vida relativamente curta, as comunas italianas parecem
encaixar-se nesse perfil, já que não duraram tanto a ponto de se converterem numa tradição
política nem tão pouco que não pudessem trazer à tona formas culturais e políticas mais ou
menos duradouras. Investigando principalmente os precedentes do fenômeno comunal na
Itália dos séculos XIII e XIV – o qual resgatou e adaptou o republicanismo romano – será
possível, acreditamos, enxergar o nascimento, o desenvolvimento e mesmo o declínio de uma
cultura política peculiar.
Além disso, é preciso lembrar também que a “cultura” (com suas representações,
linguagens, normas, valores, imaginário e ideologia) que está em jogo é sempre um objeto de
disputa. Falando do imaginário social, Bronislaw Baczko (1985, p. 299) lembra como o
corpus de mitos que o compõe produz “o equivalente a um verdadeiro mapa social que
representa e legitima eficazmente a formação existente, com o seu sistema de distribuição de
poder, dos privilégios, do prestígio e da propriedade”. Tal disputa leva à produção de técnicas
mais ou menos sofisticadas de controle do imaginário (BACZKO, 1985, p. 300).
Ainda segundo esse pensador (1985, p. 301), esses mitos instalam-se no imaginário
por meio de ritos e festas que desenvolvem o apelo cívico de uma comunidade, legitimando-a.
O controle do imaginário visa a influenciar as tomadas de decisões políticas por essa
comunidade (BACZKO, 1985, p. 300), implicando a sua instrumentalização pelos grupos que
em dado momento encontram-se apropriados do poder político (entendendo-o como a
capacidade de determinar ou interferir nas decisões políticas). A negociação desse imaginário
com a comunidade procura construir uma “utopia coletiva” (BACZKO, 1985, p. 303) que está
na base da elaboração dos projetos políticos desse grupo, uma vez que nela catalizam-se os
seus anseios e localizam-se as metas a serem atingidas. Assim, o imaginário conecta o
passado (a memória coletiva e a tradição) e o futuro (as expectativas coletivas) dessa
comunidade (BACZKO, 1985, p. 312). Nesse sentido, vale ainda lembrar Gurevitch (1990, p.
19): “[...] a palavra, a ideia, no sistema da consciência medieval”, possuíam “o mesmo grau de
realidade que o mundo dos objetos, que as próprias coisas às quais correspondiam os
conceitos gerais [...]”. Não poderíamos entender, portanto, para o medievo, “utopia” como
11
Assim como, para Gurevitch (1990, p. 34), “um ‘modelo de mundo’ é uma formação relativamente estável,
que determina durante um período de tempo bastante longo as percepções humanas e a maneira pela qual o
homem vive a realidade. Na Idade Média, [...] o quadro geral do mundo era, pela força das coisas,
extraordinariamente estável, se não imóvel”.
11
uma fantasia ou um desejo inalcançável, mas sim como uma realidade proposta e, em certa
medida, vivida.
Os excertos dos Actus reatinos que aqui citamos parecem enquadrar-se nos diversos
fatores que discorremos até aqui. Ao recorrer à cruz para representar o vale onde nascera e ao
vincular a vida de s. Francisco a ele, o autor anônimo está mobilizando o passado histórico de
sua pátria e apresentando-o ao seu público, num procedimento que, dialogando com uma
tradição bem conhecida de seus concidadãos – qual seja, a eremítica –, propunha-se a
presentificá-la e fazer com que os valores que ela comporta – o ideal da pobreza evangélica, a
observância dos preceitos morais asseverados pela regra da Ordem Minorita e a prática
eremítica como principal caminho ascético para uma vida cristã – mobilizassem esse público
a favor da crítica que o autor faz à vida citadina, corrompida pela ostentação e pela riqueza
material12. A recente herança deixada por s. Francisco, com todos os seus feitos e
significados, certamente fazia parte do imaginário dos cidadãos reatinos, imaginário cujas
representações o hagiógrafo sabiamente evoca e manipula.
Confessando-se um humilde frade minorita (ACTUS..., 1999, p. 133), o autor
apresenta um discurso bastante alinhado ao da facção “rigorista” (ou “zelante”) da Ordem e
certamente era expoente da ideologia daquele grupo, resistente ao “encitadinamento” dos
frades e desejoso de manter-se o mais próximo possível do modelo de vida seguido pelo
fundador. É a favor dessa ideologia que o hagiógrafo escreve. Ela torna-se cívica à medida
que funde-se à defesa de uma tradição regional, que o próprio autor trata de arraigar no seio
do que é ser reatino: um franciscano. E ela também se torna política quando dá vazão a um
projeto que, embora possa não ter vínculo com a comuna de Rieti, apresenta-se a toda a
população do vale. Os Actus são, portanto, nas palavras de Berstein, parte integrante da
vulgata que transmite uma doutrina (religiosa), através de uma leitura normativa do passado e
de um ponto de vista institucional, propondo um modelo de sociedade ideal (que deve seguir
s. Francisco) por meio de um discurso codificado em várias representações religiosas,
paralelismos e intertextualidades bíblicas. Por isso acreditamos ser ela o testemunho de uma
religião cívica ou de uma cultura política que se elaborou naquela Rieti dos séculos XIII-XIV.
Naturalmente, precisaríamos de outros vestígios que “cercassem” os Actus e nos
permitissem averiguar, por exemplo, se o que o autor anônimo diz era compartilhado por seus
12
A esse respeito, venho redigindo outros artigos: RIBEIRO, Felipe Augusto. Religião cívica e cultura política
na hagiografia medieval: um estudo de caso (Rieti, séculos XIII-XIV). Anais do XVIII Encontro Regional
da ANPUH/MG. Mariana: jul 2012. [No prelo]; RIBEIRO, Felipe Augusto. A hagiografia como monumento
cívico: um estudo de caso (Rieti, século XIII). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da
Universidade Federal de Minas Gerais (EPHIS/UFMG). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, mai 2012. [No
prelo].
12
concidadãos. Afinal, se o hagiógrafo era uma voz solitária na multidão reatina, seu discurso
não traduz uma cultura política ou uma religião cívica, mas apenas um posicionamento
pessoal13. Contudo, conhecendo a importância do culto franciscano em Rieti, a força da
Ordem Minorita no vale14 e as leituras públicas que se faziam de hagiografias como essa15
vale a pena inferir que os Actus tenham, ao mesmo tempo, refletido e pretendido criar uma
realidade vivida pelos habitantes da província.
Ao menos no âmbito do discurso desse autor, verifica-se o corpus mitológico (de que
fala Baczko) sendo mobilizado para atribuir prestígio a uma ideologia e ao grupo que a
sustenta (o grupo “rigorista”)16. O uso do gênero hagiográfico naquela época parece bastante
eficaz no controle do imaginário, no exercício de poder e na criação de “utopias coletivas”
que propiciem coesão social em torno de um mesmo projeto político. Passado cerca de meio
século da morte de s. Francisco, parecia estar em plena gestação uma cultura política em torno
dele, maquinada entremeio conflitos nos quais se disputaram imaginários e representações
sobre o fundador17. Essa dinâmica durou até o século XIV e esteve sempre intimamente ligada
à história das comunas, afinal, o movimento franciscano nasceu dentro das cidades e com elas
cresceu.
Por fim, a maior dificuldade no emprego de culturas políticas para o período medieval
seria a “dimensão subjetiva da política”, de que falam Karina Kuschnir e Leandro Piquet
Carneiro (1999). A distância temporal, a escassez de fontes e as limitações metodólogicas
óbvias certamente seriam um entrave na análise do fenômeno da adesão, de que também fala
Motta (1998): estar inserindo numa cultura não implica necessariamente a participação de um
indivíduo ou grupo em seus discursos; há sempre uma dimensão de escolha em jogo. Da
mesma maneira, seria difícil acessar às modalidades de avaliação subjetiva (cognitiva –
13
De fato, as fontes primárias e os recursos metodológicos para a aplicação de culturas políticas ao medievo
precisariam ser repensadas, pois diferem em muito do que pode ser feito para a modernidade e a
contemporaneidade. Assim, o medievalista precisaria recorrer não só à hagiografia, mas também a
documentos de arquivo, a tratados políticos, crônicas, estatutos municipais e outros.
14
A esse respeito, cf. CAMPAGNOLA, Stanislao da. Francesco e francescanesimo nella valle reatina. In:
Francesco e francescanesimo nella società dei secoli XIII-XIV. Assis: Porziuncola, 1999; MERLO, Grado
Giovanni. Tra eremo e città. Studi su Francesco d’Assisi e sul francescanesimo medievale. Assis:
Porziuncola, 1991; CADDERI, Atillio. Introduzione. In: ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Assis:
Porziuncola, 1999.
15
Aparentemente, o hagiógrafo era um mestre no ensino da regra minorita àqueles que pretendiam tornar-se
frades (ACTUS..., 1999, p. 132 e 216). Logo, ao menos dentro da Ordem o seu discurso teve ouvintes diretos.
16
Talvez nos ajude o pressuposto antropológico de cultura, de que falam Kuschnir e Carneiro (1999, p. 229):
“cada membro da sociedade é representativo de um padrão cultural mais amplo, apreendido através de
processos de socialização e comunicação”. Talvez possamos encarar, portanto, o nosso autor anônimo como
um exemplar não apenas dos grupos nos quais estava inserido – a facção “zelante” da Ordem Minorita e a
comunidade reatina –, mas também da cultura política e da religião cívica que queremos sugerir.
17
Attilio Cadderi (Ibidem) faz um breve resumo da “dialética interna” da Ordem Minorita, na qual “rigoristas” e
“conventuais” disputaram a imagem social da ordem e sua própria santidade.
13
formada por conhecimentos e crenças –, afetiva – composta por sentimentos e expectativas –
e avaliativa – integrada por julgamentos e opiniões) que, segundo Kuschnir e Carneiro (1999,
p. 230), os indivíduos fazem dos fatos sociais e das instituições políticas e que determinam as
suas reações diantes deles. Em suma, o recurso ao conceito de cultura política para o medievo
não poderia prescindir de uma verdadeira reformulação em algumas de suas bases teóricas e
metodológicas. Nem por isso, porém, ele deixará de ser útil, ao que nos parece.
5. Considerações finais
14
política, inicialmente não podemos negar que em torno deles tenham transitado culturas
políticas que os informassem.
Neste trabalho, no entanto, nos ativemos àquela que, imediatamente, nos parece uma
cultura política característica dos séculos XIII e XIV, na Itália. Num ambiente em que os
intercruzamentos entre questões religiosas/eclesiásticas e políticas/seculares são eles próprios
a forma política vivenciada pelas cidades, a religião não pode deixar de ser pensada enquanto
cívica. E nessa dimensão, ela torna-se a matriz primordial das práticas e projetos políticos
nascidos e experimentados pelas comunas. É nesse sentido, por fim, que ambos os conceitos
tornam-se riquíssimos – para não dizer indispensáveis – no estudos medievais.
REFERÊNCIAS
ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Testo critico, introduzione, traduzione italiana a
fronte e note a cura di Attilio Cadderi. Assis: Porziuncola, 1999. Tradução do latim nossa.
ANSART, Pierre. Introdução. In: Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In: Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: LEACH, Edmund & allii. Anthropos-homem.
Enciclopédia Einaudi. v. 5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília & all (orgs.).
Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
______. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma
história cultural. Lisboa: Estampa, 1998.
CADDERI, Attillio. Introduzione. In: ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Assis:
Porziuncola, 1999.
______. Práticas cívicas e cultura política. In: Cidades e sociedades urbanas na Itália
medieval (séculos XII-XIV). Tradução: Marcelo Cândido da Silva e Victor Sobreira.
Campinas: UNICAMP; Belo Horizonte: UFMG, 2011.
GOLINELLI, Paolo. Città e culto dei santi nel medioevo italiano. Bolonha: CLUEB, 1996.
Tradução do italiano nossa.
15
GINZBURG, Carlo. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. In: Olhos de madeira: nove
reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LAPLANTINE, François & Liana Salvia Trindade. O que é imaginário. Coleção Primeiros
Passos. São Paulo: Brasiliense, 1996.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação da cultura política pela
historiografia. In: Culturas políticas na História: novos estudos. Belo Horizonte:
Argumentum, 2009.
REMOND, René. Uma história presente. In: Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV,
1996.
______. S. Antonio: da “Pater Padue” a “Patronus civitatis”. In: VAUCHEZ, André (Org.).
La religion civique à l’époque médiévale et moderne (chrétienté et islam). Actes du
colloque organisé par le Centre de recherche “Histoire sociale et culturelle de l’Occident.
XIIe-XVIIIe siècle”, de l’Université de Paris X-Nanterre et l’Institut universitaire de France
(Nanterre, 21-23 jun 1993). Paris: École Française de Rome, 1995. p. 65-76.
VAUCHEZ, André. La commune de Sienne, les Ordres Mendiants et le culte des saints.
Histoire et enseignements d’une crise (novembre 1328, avril 1329). Mélanges de l’Ecole
française de Rome. Moyen-Age, Temps Modernes. [S.l., s.n.], t. 89, n. 2, 1977. p. 757-767.
Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mefr_0223-
5110_1977_num_89_2_2425. Acesso em: 16 dez 2011. Tradução do francês nossa.
______. Patronage des saints et religion civique dans l’Italie communale. In: Les laïcs au
Moyen Age: pratiques et expériences religieuses. Paris: Éditions du CERF, 1987.
16