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NOTAS PARA UMA HISTÓRIA POLÍTICA DA RELIGIÃO: CULTURAS

POLÍTICAS E RELIGIÃO CÍVICA NA ITÁLIA MEDIEVAL (SÉCULOS XIII-XIV)

Felipe Augusto Ribeiro1


felipeaur@gmail.com

RESUMO

O presente trabalho trata do conceito de religião cívica no mundo comunal do medievo


italiano. Esse conceito parece expressar a cultura política mais difundida na Idade Média e
tem-se tornado importante nas últimas décadas dos estudos medievais, pois permite elucidar
as imbricações entre a religião e a política, o Estado e a Igreja e os clérigos e laicos, tão
significadores daquele período histórico. O propósito desta comunicação, portanto, é explorar
ambas as noções em sua potencialidade explicativa. Metodologicamente, serão discutidos
alguns autores-referência em ambos os campos, exemplificando, quando necessário, nosso
raciocínio com uma fonte primária, a hagiografia Actus Beati Francisci in Valle Reatina.
Conclusivamente, o trabalho espera apontar tanto a multiplicidade do fenômeno da religião
cívica quanto uma possibilidade de apreensão de cultura política no medievo.

PALAVRAS-CHAVE: Hagiografia. Religião cívica. Culturas políticas.

ABSTRACT

This paper discusses the concept of civic religion in the communal world of medieval Italy.
This concept seems to express the political culture more widespread in the "Middle Ages"
and has become important in recent decades of medieval studies, since it allows to elucidate
the interplay between religion and politics, State and Church and the clergy and laity, so
signifying for that historical period. The purpose of this communication, therefore, is to
explore both notions in its explanatory potential. Methodologically, it will discuss some
authors-reference in both fields, exemplifying, when necessary, our reasoning with a primary
source, the hagiography Actus Beati Francisci in Valle Reatina. Conclusively, the study hopes
to point both the multiplicity of the phenomenon of civic religion as a possibility of
apprehension of political culture in the “Middle Ages”.

KEYWORDS: Hagiography. Civic Religion. Political cultures.

1
Graduado em História e Pós-Graduando no curso de Especialização em Culturas Políticas, História e
Historiografia da Universidade Federal de Minas Gerais.
1. Introdução

A partir da revolução historiográfica empreendida pelos Annales, na década de 20 do


século XX, a política (e o político) foram ostracizados da História. As abordagens culturalista
e sociológica ocuparam um terreno que, até então, era quase que exclusivamente ocupado
pelo olhar político (RÉMOND, 1996). A perspectiva que um clássico como Os reis
taumaturgos lança sobre um objeto, a princípio, político, emergiu com tamanha novidade que
o interesse por outras maneiras de enxergar problemáticas como a da monarquia medieval
perdeu a importância que tivera até ali. O exemplo vem a calhar, pois, embora esse momento
da disciplina histórica tenha se apercebido em todos os seus campos, trataremos aqui
especificamente da História Medieval.
Entretanto, a década de 60 daquele mesmo século conheceu um renascimento da
política na historiografia. E, para René Rémond (1996), um ressurgimento triunfal, pois a
História Política soube absorver as críticas que lhe foram feitas durante décadas. As
novidades vieram na forma de uma renovação dos objetos – bastante ampliados – e das
metodologias – multidisciplinarizadas. A História Política passou a se interessar pelos
comportamentos políticos, pelas instituições e pelos grupos sociais, deixando de centrar-se
nos Estados e governos: esse é o mérito do conceito de culturas políticas, nascido nesse
momento.
No campo da História Medieval, vamos destacar aqui um aspecto que acreditamos
decorrente dessa renovação. Depois de um desaparecimento duplo da política nos tempos
medievais: se, inicialmente, a noção moderna do que seja política e Estado impediu os
historiadores de enxergarem ambos, sui generis, no medievo, a revolução dos Annales
pareceu superar, mas não contradizer essa lacuna; não se procurou o Estado e a política
próprios do medievo, mas se voltou para aquilo que, ausente a política, ele tinha a oferecer:
cultura, arte, mitos, música e, sobretudo, religião. É nesse quadro que o conceito de religião
cívica parece ganhar importância. Desde a mesma década de 60 ele vem sendo construído e
ilustra o esforço em se reconstituir a simbiose entre política e religião, entre Igreja e Estado,
próprias do medievo; fala-se, inclusive, também de um “retorno do religioso” (VAUCHEZ,
1987, p. 151).
Não podemos deixar, para completar a introdução ao nosso debate, de esclarecer de
que “cultura” e de que “política” se está falando. Por “cultura” entendemos “o conjunto
complexo constituído pela linguagem, comportamento, valores, crenças, representações e
tradições partilhados por determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade”

2
(MOTTA, 1996, p. 84). Norberto Bobbio (1998, p. 954), por sua vez, começa o seu verbete
recuperando o significado antigo de política: “tudo o que se refere à cidade e, consequemente,
o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social”2. Porém, o seu texto não deixa
de fazer uma questionável vinculação entre a política e o exercício do poder, um “poder
político” que nada mais é do que um “poder coercitivo”, efetivado pelo monopólio da
violência3, como se a política só existisse com base na coerção. A dimensão coercitiva,
entretanto, pode ser cabível para a modernidade e contemporaneidade, mas parece exceder à
definição antiga do que seja a política, que deve passar muito mais pelo convencimento e pelo
conceito de autoridade mobilizado por Hannah Arendt (2005)4. Assim, fiquemos com a
teorização clássica de política, sem esquecer que ambos os termos são incrivelmente
polissêmicos (e polêmicos) e ainda trazem consigo outros igualmente complicados:
identidade, Estado, governo, poder. Por ora, apenas o primeiro nos interessará.

2. Marco teórico

Vamos agora tentar instrumentalizar dois conceitos cuja importância para os estudos
medievais já se comprovou: “culturas políticas” e “religião cívica”. Trabalharemos os dois em
conjunto porque achamos que eles têm muito em comum: a religião cívica nos parece ser a
cultura política mais amplamente difundida na Idade Média. Todavia, vamos nos preocupar
mais com o primeiro deles, cuja sistematização é mais complicada e ainda não foi feita para
os tempos medievais; religião cívica já é um conceito pensado para o período medieval.
Comecemos explicitando a compreensão que temos de ambos. Por “culturas
políticas”, tomamos a definição fornecida por Serge Berstein (2009, p. 31), na falta de uma
propriamente medievalista:

[Cultura política é um] grupo de representações, portadoras de normas e valores, que


constituem a identidade das grandes famílias políticas e que vão muito além da
noção reducionista de partido político. Pode-se concebê-la como uma visão global

2
Note-se que Bobbio dá um salto da antiguidade clássica para a modernidade, como se no medievo não
houvesse o que dizer sobre política, porque o poder ali exercitado não era político ou porque não havia Estado
detentor do monopólio da força.
3
Para Pierre Ansart (1978, p. 19), a confusão entre “consenso” e “dominação” política deve-se à “negligência”
com que se encaram as condições produtivas da política. Para Karina Kuschnir e Leandro Piquet Carneiro
(1999, p. 245), “o poder político é unviersal, inerente ao social e, diferentemente do que ocorre nas sociedades
com Estado [moderno], pode ser exercido de forma não-coercitiva”.
4
Para essa autora, as sociedades antigas e medievais estavam ancoradas numa noção de autoridade advinda de
experiências incontestes e coletivas, relativas a um passado remoto, imaginado, onde repousava a fundação da
comunidade. Essa autoridade é que provia coesão social, ou seja, organizava a política (o espaço e a vida
pública).

3
do mundo e de sua evolução, do lugar que aí ocupa o homem e, também, da própria
natureza dos problemas relativos ao poder.

Estamos cientes da dificuldade que envolve a definição e a apropriação do vago


conceito de “visão de mundo”, mas não cabe aqui problematizá-lo. Para tentar dar-lhe mais
consistência, reportamo-nos a Aaron I. Gurevitch (1990), que, sem abrir mão das aspas,
trabalha a visão de mundo dos medievais, inclusive propondo sinônimos (que nos ajudam a
conformar essa noção no conceito de cultura política) para ela: “modelo do mundo”, “quadro
do mundo” e “imagem do mundo” (GUREVITCH, 1990, p. 29). Segundo o autor, essa noção
compreende categorias e formas de percepção do tempo, do espaço, da liberdade, do direito,
do trabalho, da causalidade. Ela forma-se “no processo de atividade prática dos homens, a
partir da sua experiência pessoal e da tradição herdada das épocas precedentes” e refletem,
portanto, a prática social desses indivíduos (GUREVITCH, 1990, p. 30). Amparada numa
concepção etérea do mundo, ela tende à univocidade e à conciliação de contradições.
Embora as conceituações de “cultura política”, dentre elas a de Berstein, sejam mais
apropriadas para temporalidades recentes, aceitamo-la, em primeiro lugar, porque não há
definições do conceito próprias para o período medieval. Para Rodrigo Patto Sá Motta (2009,
p. 33), os autores que têm tentado utilizar o conceito em períodos históricos mais recuados
têm invariavelmente falhado, ao deixar de explicitá-lo. De fato, é o que acontece com Patrick
Gilli (2011), por exemplo, cujos estudos sobre o comportamento político, em seus âmbitos
eleitoral, decisório e representativo, são extremamente prolíficos, mas lançam mão do
conceito sem explicar como ele está sendo apreendido e quais são as implicâncias de seu uso.
Gilli parece fazer uma boa aplicação da noção de cultura política, mas é difícil captar o
sentido de seu raciocínio se o leitor não se dirigir a outra referência que lhe informe do
conceito.
Em segundo lugar, escolhemos a definição bersteiniana por acreditarmos ser possível
tomá-la em toda a sua generalidade e inteligibilidade, ou seja, efetivá-la em sua função
apriorística, tornando-a válida para outros espaços e tempos, desde que se façam, obviamente,
as ressalvas e adaptações necessárias. A nossa intenção é nos apropriar do que o conceito
comporta: representações, valores e normas – ou seja, fatores culturais – dando subsídios para
a formulação de ações e projetos políticos. O conceito, portanto, não pode se limitar à análise
de representações, mas precisa abordar também a práxis política dos sujeitos estudados.
Com esse procedimento, vamos na direção oposta do que recomenda Motta (2009, p.
33), para quem

4
a ancoragem mais segura para viabilizar a aplicação de cultura política a períodos
recuados não será encontrada nas concepções de Berstein, mas numa tentativa de
adaptar a tipologia de Almond e Verba, principalmente por meio dos conceitos de
cultura paroquial e cultura da sujeição.

Tal proposição parece-nos errônea, à medida que as tipologias de cultura política


forjadas por Almond e Verba – autores interessados em entender os motivos pelos quais
algumas democracias não atingiam o melhor desenvolvimento possível, sendo essa qualidade
definida em função da democracia liberal norte-americana – são irremediavelmente viciadas,
notadamente marcadas pelo etnocentrismo e amparadas numa noção de política e de Estado
própria da modernidade. As culturas políticas mobilizadas por esses autores são anacrônicas,
portanto, para o medievo; se a usássemos estaríamos automaticamente inferiorizando a cultura
política medieval (inclusive incorrendo no erro de tomar o fenômeno no singular) em relação
à contemporânea. Daí, cabe aos medievalitas elaborar outras tipologias que expressem melhor
as engrenagens culturais e políticas da Idade Média e, nesse sentido, a definição de Berstein
torna-se útil ao efetivar o conceito enquanto a priori e permitir que seja deslocado, com toda a
sua generalidade, para outros momentos e lugares históricos.
É aí, então, que entra o conceito de “religião cívica”. André Vauchez é quem melhor o
define: trata-se da “forma tomada pelo cristianismo no quadro político e social do mundo
comunal” (VAUCHEZ, 1977, p. 764), ou seja, da sua manifestação em âmbito político,
especificamente, imbricado ao civismo e ao patriotismo municipal e compreendendo a
promoção do culto de um santo, o financiamento das festas cívicas em nome dele, a redação
de suas vitae, o enterro de seu corpo e a guarda de suas relíquias, bem como a construção de
igrejas em sua honra. Em outras palavras, podemos dizer que a religião cívica é a forma
política que a religião assumiu no mundo comunal italiano. O próprio Berstein (2009, p. 33)
afirma que “nas sociedades antigas e medievais, esse substrato [o da política] é religioso e
traduz a presença da ordem divina nas sociedades humanas” e que “a cultura política católica
procura as vias de realização do cristianismo na cidade, através de organizações políticas
diversas e por vezes oposta (BERSTEIN, 1998, p. 354). A proposta vai a favor da “visão de
mundo” medieval apresentada por Gurevitch (1990, p. 17), para quem “os mestres medievais
– escritores e pintores –, desprezando a configuração visível do mundo que os rodeia, têm os
olhos fixos no outro mundo”.
O fenômeno da religião cívica, para Vauchez (1977, p. 764), deveu-se em grande
medida à influência das Ordens Mendicantes no mundo urbano medieval: de fato o próprio

5
Berstein (2009) lembra que grupos sociais emergentes trazem consigo novas culturas
políticas.
Berstein (1998, p. 350-351) apresenta a cultura política como um “conjunto
homogêneo”, em que

as componentes são diversas e levam a uma visão dividida do mundo, em que


entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal, a maior parte das vezes
expressa sob a forma de uma vulgata acessível ao maior número, uma leitura comum
e normativa do passado histórico com conotação positiva ou negativa com os
grandes períodos do passado, uma visão institucional que traduz no plano da
organização política do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, uma
concepção de sociedade ideal tal como a vêem os detentores dessa cultura e, para
exprimir o todo, um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras-
chave, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação, enquanto ritos e
símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel
significante.

Ora, não são justamente esses elementos que a religião fornece ao pensamento
medieval? Uma doutrina, uma vulgata que a expresse (as hagiografias, por exemplo), uma
leitura coletiva do passado, uma visão institucional, um ideal de sociedade e um discurso
codificado que a elabore. Conciliando, pois, ambas as ideias, podemos pensar que a religião,
durante toda a Idade Média, é que forneceu a maior parte das representações, normas e
valores que nortearam os comportamentos políticos dos cristãos ocidentais. Na religião cristã
o homem medieval do ocidente encontrou não apenas uma “visão de mundo”, mas também
um lugar social para si, explicações para os seus problemas e instrumentos para lidar com
eles.

3. Conceitos implicados

Alguns conceitos-chave, devido à definição de cultura política e de religião cívica,


estão automaticamente implicados em seu uso. O primeiro deles é o conceito de
representação. Definamo-lo também, portanto: “representar pressupõe uma atividade ou
‘faculdade’ da consciência cognitiva em relação ao ‘mundo exterior’: reapresentar uma
presença (sensorial, perceptiva) ou fazer presente alguma coisa ausente” (FALCON, 2000, p.
45-46). Para Carlo Guinzburg (2001), a representação estabelece um vínculo com a coisa
ausente, uma ligação entre signo/símbolo e significado que permite a este ter impacto
concreto na realidade. A representação é, pois, um recurso linguístico que presentifica ou traz
à tona objetos, sentimentos e valores.

6
Outro conceito consequente é o de imaginário. No senso comum, o imaginário – ou a
imaginação – é algo ilusório, irreal, mas para Laplantine e Trindade (1996, p. 28), “o
imaginário não é a negação total do real, mas apóia-se no real para transfigurá-lo e deslocá-
lo”; o imaginário tem um caráter criador, portanto. Na História das Ideias, o termo veio
substituir a vaga noção de “mentalidade”, expandindo o escopo antigo que circunscrevia o
pensamento à sistematização intelectual, principalmente em forma escrita, e passando a
abranger outras formas de circulação de ideias. Se a imaginação produz imagens, o imaginário
é, pois, o conjunto de imagens produzidas pela imaginação. Essas imagens são
representações, porque presentificam coisas ausentes (LAPLANTINE & TRINDADE, 1996,
p. 24-25). Logo, o imaginário é um conjunto de representações.
Para Pierre Ansart (1978, p. 18), o imaginário é “o conjunto das evidências implícitas,
das normas e valores que asseguram a renovação das relações sociais”5. Nisso, ele se difere de
outro conceito inserido no de culturas políticas: ideologia. Para Ansart (1978, p. 17),
ideologia (política) é “o conjunto das linguagens políticas de uma sociedade, isto é, o
conjunto das posições teóricas que se organizam numa formação histórica concreta em dado
momento de sua história e que esboçam a totalidade das possibilidades e sua finitude”. Para
ele (ANSART, 1978, p. 16), a ideologia é um suporte para a práxis política; a primeira não
tem sentido se não for efetivada, e a segunda não tem sentido se não for orientada pela
primeira.
Por todas essas acepções, retiradas de diferentes autores (alguns dialogam entre si),
percebemos que os conceitos listados não são desconexos entre si; ao contrário, são tão
parecidos que poderíamos tomá-los como sinônimos. Talvez pudéssemos renomear “cultura
política” como “ideologia política”. Mas o melhor arranjo possível, cremos, é o seguinte:
partindo da ideia básica de representação, temos que o imaginário é simplesmente um
repertório de representações/imagens, enquanto a ideologia é a sistematização desse repertório
numa linguagem teórica coesa, forjada para servir como instrumento de interferência na
realidade vivida pelos sujeitos que a elaboram, a fim de modificá-la na direção do que as
normas e valores por eles cultivados norteiam. A “cultura política”, por fim, seria algo mais
amplo e profundo. Ela comportaria não apenas as representações, imaginários e ideologias de
natureza política (segundo a definição que estipulamos para esse termo), mas também essas
normas e valores e, não menos importantes, os interesses e anseios políticos de um

5
Ansart e Bronislaw Baczko (1985) falam de imaginário e imaginação “social”, mas por isso parecem entender
apenas que tal faculdade seja coletiva, não individual.

7
determinado grupo social, articulando todos esses elementos na informação das atitudes e
planos políticos empreendidos por essa comunidade.
Estabelecidas as bases sobre as quais trabalharemos todas essas ferramentas analíticas,
passemos às avaliações de sua empregabilidade e aos testes necessários para viabilizá-la.

4. Possibilidades e limites de aplicação dos conceitos aventados

Tomando por “cívico” o que é “político”, i.e., aquilo que se refere à cidade e à vida
social urbana, a religião cívica torna-se a fonte dos elementos constitutivos da cultura política
no mundo comunal. Segundo Vauchez, esse fenômeno, como expressão particular do
cristianismo dentro das comunas italianas, embora ateste o poder do governo municipal no
suporte de um culto local negado pelo Cúria romana, frequentemente teve razão de ser em
face de crises vividas pela cidade (VAUCHEZ, 1987, p. 185). Tal proposição vai no mesmo
sentido dos estudos de Paolo Golinelli (1996, p. 215), para quem o culto santoral e a
hagiografia encontram suas razões de ser numa existência dupla: diacrônica – situada na
gênese, propriamente, da comunidade urbana, cívica – e sincrônica – com sentido construído
numa precisa conjuntura política.
A princípio, o conceito de religião cívica trabalha majoritariamente com os cultos aos
patronos das comunas italianas trecentistas, em que o próprio poder público promove e
financia o culto, a igreja a ele dedicado e até a escrita das hagiografias sobre o cultuado.
Deveras essa parece ser a expressão máxima do fenômeno, conforme mostram os estudos de
Antonio Rigon e do próprio Vauchez. No entanto, esse não parece ser o único tipo de caso em
que a religião cristã torna-se cívica (ou política) dentro do mundo comunal. Seria importante
considerar os casos em que os santos cultuados não compõem o panteão da cidade, porém são
por ela abraçados de forma tal que o seu culto se torna igualmente cívico, conforme uma
passagem dos Actus Beati Francisci in Valle Reatina, hagiografia de São Francisco de Assis,
redigida por autor anônimo na diocese de Rieti (onde ele era nascido), entre 1279 e 1319, nos
indica:

E assim como Cristo escolheu Belém para o seu sagrado natal, mas elevou
Cafarnaum acima das outras cidades, por causa de sua fé, o discípulo de Cristo,
Francisco, consagrou Assis com o seu sagrado nascimento, mas na província reatina,

8
por especial predileção, refulgiu, através da clareza de muitos milagres. (ACTUS…,
1999, p. 132)6.

Ademais, não se pode esquecer que a topografia social da cidade revela também
diferentes cultos dentro dela; assim como as culturas políticas devem ser entendidas no plural
(BERSTEIN, 2009, p. 36-37), seria preciso cogitar a existência de religiões cívicas distintas
numa mesma cidade.
Outras duas características de uma religião cívica mencionados por Vauchez (1987, p.
185) mereceriam revisões: segundo esse autor, os cultos cívicos foram comuns em pequenas
cidades e tinham como protagonistas personagens cuja canonização era recusada pelo Cúria
romana. Entretanto, os mesmos Actus, por exemplo, nos dão testemunho de um culto a s.
Francisco de Assis que tem todos os traços de civismo, embora o santo não seja patrono da
cidade nem tenha encontrado dificuldades para ser canonizado:

E embora este glorioso confessor, o santo pai Francisco, tenha iluminado com a
palavra e o exemplo todas as regiões do mundo, nas partes reatinas, entretanto,
brilhou mais difusamente, pela doutrina de vida e pelos milagres (ACTUS7… 1999,
p. 132).

Similarmente, Antonio Rigon (1995) mostra como o culto de Santo Antônio de Pádua
é propriamente parte da religião cívica, tanto que foi a cidade a pagar os processos da
canonização, a qual ocorreu em tempo recorde.
A própria redação de uma vida para um santo local comprova a importância de seu
culto para a política e o sentimento cívico de uma comunidade (RIGON, 1981). Conforme a
citação acima nos permite perceber, ainda que s. Francisco não fosse natural de Rieti, o
hagiógrafo garante a sua “reatinidade” asseverando que o santo preferiu o vale à sua própria
terra natal. Um procedimento que mostra a afinidade da figura do santo com a identidade
reatina. Nota-se também que esse anônimo não está dizendo da cidade, da urbe de Rieti, mas
de toda a província, o que nos sugere pensar o espaço cívico para além das muralhas urbanas.

Além das muralhas da predita cidade há um espaço circular que não excede vinte
milhas. Ali o piedoso pai construiu quatro moradias, nas quais operou admiráveis
sinais e prodígios, segundo foi escrito anteriormente. E como o assinalado [signifer]
de Cristo, começou sua gloriosa vida na cruz, segundo a regra da cruz prosseguiu-a,
na cruz terminou-a e pela cruz esperava tornar-se glorioso, como, de fato, é. Assim,

6
Et sicut pro suo sacro o ortu bethelem christus elegit et carphanaum propter eorum fidem pre ceteris voluit
sublimari, Sic discipulus christi franciscus sacro ortu consecravit assisium. et in provincia reatina dilectione
precipuva multorum micuit claritate signorum.
7
Et licet gloriosus confessor, iste pater sanctus franciscus cunta mundi climata verbo et exemplo lustraverit In
partibus tamen Reatinis diffusius, vita doctrina et miraculis claruit.

9
das preditas moradias, de modo admirável, compôs uma cruz (ACTUS..., 1999, p.
132)8.

A despeito dessas ressalvas, a utilidade principal do conceito permanece, conforme os


pressupostos de Rigon: para o medievalista, a hagiografia, dentro das sociedades urbanas,
guarda íntima afinidade com as tendências políticas e ideológicas da comuna, sobretudo com
o seu governo (RIGON, 1981, p. 265). Tratando de santos tão populares, as hagiografias
cívicas levavam não somente mensagens religiosas, mas também mensagens políticas, ao
maior público possível (RIGON, 1981, p. 265), pois os hagiógrafos expressavam nelas suas
opiniões sobre o momento por que a comunidade passava (RIGON, 1981, p. 267). Dessa
maneira, a hagiografia cristalizava, ao mesmo tempo, as aspirações religiosas e o patriotismo
comunal (RIGON, 1981, p. 267).
Essa é a principal potência explicativa do conceito, a qual podemos verificar no texto
primário a que recorremos. No prólogo da obra, onde o autor apresenta a si, ao santo e a Rieti
e explicita a sua intenção, lê-se: “[…] os cidadãos reatinos se corrijam de sua pouca devoção.
E que, com respeito ao predito santo pai e aos preditos lugares, sejam fervorosa e
devotamente animados” (ACTUS..., 1999, p. 139)9. E no seu capítulo sétimo observa-se:

Certa vez o papa Inocêncio III, com toda a cúria romana, estacionou na cidade de
Rieti. Alguns dos cardeais pediram ao bem-aventurado Francisco para ir a Rieti e lá,
pelo seu amor, permanecer alguns dias. Veio então o homem santo e, fugindo da
pompa do mundo e do modo de vida dos homens, não entrou na cidade. Ao
contrário, retirou-se na colina de San Fabiano, próxima a Rieti, em uma igreja
dedicada ao predito santo. Havia ali um sacerdote de vida exemplar, a quem o pai
rogou que lhe permitisse ficar com ele alguns dias. (ACTUS…, 1999: 229)10.

Já quanto à cultura política, é preciso manter em mente certas observações. Para


Berstein (1998, p. 356), o fenômeno deve inserir-se na longa duração e compreender, no

8
Citra enim civitatem predictam est spatium circulare per girum viginti miliaria non excedens. in quo loca
quatuor pirus pater construxit in quibus operatus est mira ut signa et prodigia inferius scripta asserunt et
affirmant. Et quoniam christi signifer gloriosam vitam in cruce incepit secundum regulam crucis processit, in
cruce perfecit et per crucem expectabat effici gloriosus sicut est. ideo de predictis locis miro modo. modo
crucem composuit.
9
[…] reatini cives de indevotione se corrigant. et erga predictum sanctum patrem et loca predicta ferventius et
devotius animentur.
10
Tempore quodam innocentius papa tertius cum tota romana curia moram traebat in civitate reate. Quidam
autem ex cardinalibus misserunt pro beato francisco ut reate accedere et ibidem eorum amore diebus
quibusdam deberet manere. venit autem vir sanctus et fugiens ponpam mundi et homunim conversationem
non intravit civitatem. Sed secessit in colle Sancti fabiani prope reate in quadam ecclesia sub vocabulo Sancti
predicti. Erat enim ibi sacerdos quidam bone conversationis et vite quem pater rogavit ut permicteret eum
secum per dies aliquos secum manere.

10
mínimo, 2 gerações11. E mais que isso: é preciso ser possível identificar o seu surgimento,
elaboração e evolução (BERSTEIN, 1998, p. 355). A cultura política precisa evoluir, adaptar-
se a cada contexto novo; do contrário ela será apenas uma tradição política e estará fadada ao
término. Embora tenham possuído vida relativamente curta, as comunas italianas parecem
encaixar-se nesse perfil, já que não duraram tanto a ponto de se converterem numa tradição
política nem tão pouco que não pudessem trazer à tona formas culturais e políticas mais ou
menos duradouras. Investigando principalmente os precedentes do fenômeno comunal na
Itália dos séculos XIII e XIV – o qual resgatou e adaptou o republicanismo romano – será
possível, acreditamos, enxergar o nascimento, o desenvolvimento e mesmo o declínio de uma
cultura política peculiar.
Além disso, é preciso lembrar também que a “cultura” (com suas representações,
linguagens, normas, valores, imaginário e ideologia) que está em jogo é sempre um objeto de
disputa. Falando do imaginário social, Bronislaw Baczko (1985, p. 299) lembra como o
corpus de mitos que o compõe produz “o equivalente a um verdadeiro mapa social que
representa e legitima eficazmente a formação existente, com o seu sistema de distribuição de
poder, dos privilégios, do prestígio e da propriedade”. Tal disputa leva à produção de técnicas
mais ou menos sofisticadas de controle do imaginário (BACZKO, 1985, p. 300).
Ainda segundo esse pensador (1985, p. 301), esses mitos instalam-se no imaginário
por meio de ritos e festas que desenvolvem o apelo cívico de uma comunidade, legitimando-a.
O controle do imaginário visa a influenciar as tomadas de decisões políticas por essa
comunidade (BACZKO, 1985, p. 300), implicando a sua instrumentalização pelos grupos que
em dado momento encontram-se apropriados do poder político (entendendo-o como a
capacidade de determinar ou interferir nas decisões políticas). A negociação desse imaginário
com a comunidade procura construir uma “utopia coletiva” (BACZKO, 1985, p. 303) que está
na base da elaboração dos projetos políticos desse grupo, uma vez que nela catalizam-se os
seus anseios e localizam-se as metas a serem atingidas. Assim, o imaginário conecta o
passado (a memória coletiva e a tradição) e o futuro (as expectativas coletivas) dessa
comunidade (BACZKO, 1985, p. 312). Nesse sentido, vale ainda lembrar Gurevitch (1990, p.
19): “[...] a palavra, a ideia, no sistema da consciência medieval”, possuíam “o mesmo grau de
realidade que o mundo dos objetos, que as próprias coisas às quais correspondiam os
conceitos gerais [...]”. Não poderíamos entender, portanto, para o medievo, “utopia” como

11
Assim como, para Gurevitch (1990, p. 34), “um ‘modelo de mundo’ é uma formação relativamente estável,
que determina durante um período de tempo bastante longo as percepções humanas e a maneira pela qual o
homem vive a realidade. Na Idade Média, [...] o quadro geral do mundo era, pela força das coisas,
extraordinariamente estável, se não imóvel”.

11
uma fantasia ou um desejo inalcançável, mas sim como uma realidade proposta e, em certa
medida, vivida.
Os excertos dos Actus reatinos que aqui citamos parecem enquadrar-se nos diversos
fatores que discorremos até aqui. Ao recorrer à cruz para representar o vale onde nascera e ao
vincular a vida de s. Francisco a ele, o autor anônimo está mobilizando o passado histórico de
sua pátria e apresentando-o ao seu público, num procedimento que, dialogando com uma
tradição bem conhecida de seus concidadãos – qual seja, a eremítica –, propunha-se a
presentificá-la e fazer com que os valores que ela comporta – o ideal da pobreza evangélica, a
observância dos preceitos morais asseverados pela regra da Ordem Minorita e a prática
eremítica como principal caminho ascético para uma vida cristã – mobilizassem esse público
a favor da crítica que o autor faz à vida citadina, corrompida pela ostentação e pela riqueza
material12. A recente herança deixada por s. Francisco, com todos os seus feitos e
significados, certamente fazia parte do imaginário dos cidadãos reatinos, imaginário cujas
representações o hagiógrafo sabiamente evoca e manipula.
Confessando-se um humilde frade minorita (ACTUS..., 1999, p. 133), o autor
apresenta um discurso bastante alinhado ao da facção “rigorista” (ou “zelante”) da Ordem e
certamente era expoente da ideologia daquele grupo, resistente ao “encitadinamento” dos
frades e desejoso de manter-se o mais próximo possível do modelo de vida seguido pelo
fundador. É a favor dessa ideologia que o hagiógrafo escreve. Ela torna-se cívica à medida
que funde-se à defesa de uma tradição regional, que o próprio autor trata de arraigar no seio
do que é ser reatino: um franciscano. E ela também se torna política quando dá vazão a um
projeto que, embora possa não ter vínculo com a comuna de Rieti, apresenta-se a toda a
população do vale. Os Actus são, portanto, nas palavras de Berstein, parte integrante da
vulgata que transmite uma doutrina (religiosa), através de uma leitura normativa do passado e
de um ponto de vista institucional, propondo um modelo de sociedade ideal (que deve seguir
s. Francisco) por meio de um discurso codificado em várias representações religiosas,
paralelismos e intertextualidades bíblicas. Por isso acreditamos ser ela o testemunho de uma
religião cívica ou de uma cultura política que se elaborou naquela Rieti dos séculos XIII-XIV.
Naturalmente, precisaríamos de outros vestígios que “cercassem” os Actus e nos
permitissem averiguar, por exemplo, se o que o autor anônimo diz era compartilhado por seus

12
A esse respeito, venho redigindo outros artigos: RIBEIRO, Felipe Augusto. Religião cívica e cultura política
na hagiografia medieval: um estudo de caso (Rieti, séculos XIII-XIV). Anais do XVIII Encontro Regional
da ANPUH/MG. Mariana: jul 2012. [No prelo]; RIBEIRO, Felipe Augusto. A hagiografia como monumento
cívico: um estudo de caso (Rieti, século XIII). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da
Universidade Federal de Minas Gerais (EPHIS/UFMG). Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, mai 2012. [No
prelo].

12
concidadãos. Afinal, se o hagiógrafo era uma voz solitária na multidão reatina, seu discurso
não traduz uma cultura política ou uma religião cívica, mas apenas um posicionamento
pessoal13. Contudo, conhecendo a importância do culto franciscano em Rieti, a força da
Ordem Minorita no vale14 e as leituras públicas que se faziam de hagiografias como essa15
vale a pena inferir que os Actus tenham, ao mesmo tempo, refletido e pretendido criar uma
realidade vivida pelos habitantes da província.
Ao menos no âmbito do discurso desse autor, verifica-se o corpus mitológico (de que
fala Baczko) sendo mobilizado para atribuir prestígio a uma ideologia e ao grupo que a
sustenta (o grupo “rigorista”)16. O uso do gênero hagiográfico naquela época parece bastante
eficaz no controle do imaginário, no exercício de poder e na criação de “utopias coletivas”
que propiciem coesão social em torno de um mesmo projeto político. Passado cerca de meio
século da morte de s. Francisco, parecia estar em plena gestação uma cultura política em torno
dele, maquinada entremeio conflitos nos quais se disputaram imaginários e representações
sobre o fundador17. Essa dinâmica durou até o século XIV e esteve sempre intimamente ligada
à história das comunas, afinal, o movimento franciscano nasceu dentro das cidades e com elas
cresceu.
Por fim, a maior dificuldade no emprego de culturas políticas para o período medieval
seria a “dimensão subjetiva da política”, de que falam Karina Kuschnir e Leandro Piquet
Carneiro (1999). A distância temporal, a escassez de fontes e as limitações metodólogicas
óbvias certamente seriam um entrave na análise do fenômeno da adesão, de que também fala
Motta (1998): estar inserindo numa cultura não implica necessariamente a participação de um
indivíduo ou grupo em seus discursos; há sempre uma dimensão de escolha em jogo. Da
mesma maneira, seria difícil acessar às modalidades de avaliação subjetiva (cognitiva –

13
De fato, as fontes primárias e os recursos metodológicos para a aplicação de culturas políticas ao medievo
precisariam ser repensadas, pois diferem em muito do que pode ser feito para a modernidade e a
contemporaneidade. Assim, o medievalista precisaria recorrer não só à hagiografia, mas também a
documentos de arquivo, a tratados políticos, crônicas, estatutos municipais e outros.
14
A esse respeito, cf. CAMPAGNOLA, Stanislao da. Francesco e francescanesimo nella valle reatina. In:
Francesco e francescanesimo nella società dei secoli XIII-XIV. Assis: Porziuncola, 1999; MERLO, Grado
Giovanni. Tra eremo e città. Studi su Francesco d’Assisi e sul francescanesimo medievale. Assis:
Porziuncola, 1991; CADDERI, Atillio. Introduzione. In: ACTUS Beati Francisci in Valle Reatina. Assis:
Porziuncola, 1999.
15
Aparentemente, o hagiógrafo era um mestre no ensino da regra minorita àqueles que pretendiam tornar-se
frades (ACTUS..., 1999, p. 132 e 216). Logo, ao menos dentro da Ordem o seu discurso teve ouvintes diretos.
16
Talvez nos ajude o pressuposto antropológico de cultura, de que falam Kuschnir e Carneiro (1999, p. 229):
“cada membro da sociedade é representativo de um padrão cultural mais amplo, apreendido através de
processos de socialização e comunicação”. Talvez possamos encarar, portanto, o nosso autor anônimo como
um exemplar não apenas dos grupos nos quais estava inserido – a facção “zelante” da Ordem Minorita e a
comunidade reatina –, mas também da cultura política e da religião cívica que queremos sugerir.
17
Attilio Cadderi (Ibidem) faz um breve resumo da “dialética interna” da Ordem Minorita, na qual “rigoristas” e
“conventuais” disputaram a imagem social da ordem e sua própria santidade.

13
formada por conhecimentos e crenças –, afetiva – composta por sentimentos e expectativas –
e avaliativa – integrada por julgamentos e opiniões) que, segundo Kuschnir e Carneiro (1999,
p. 230), os indivíduos fazem dos fatos sociais e das instituições políticas e que determinam as
suas reações diantes deles. Em suma, o recurso ao conceito de cultura política para o medievo
não poderia prescindir de uma verdadeira reformulação em algumas de suas bases teóricas e
metodológicas. Nem por isso, porém, ele deixará de ser útil, ao que nos parece.

5. Considerações finais

Neste artigo, recorremos a referências oriundas da antropologia, da filosofia, da


psicologia e da sociologia. Nesses outros saberes, a Nova História Política tem buscado
mananciais que lhe forneçam recursos para pensar de maneira inovadora os seus objetos. É
justamente isso o que esperamos fazer na História Medieval, no intuito de tentar perceber, nas
palavras de Kuschnir e Carneiro, o “conjunto de atitudes, crenças e sentimentos que dão
ordem e significado a um processo político, pondo em evidência as regras e pressupostos nos
quais se baseia o comportamento de seus atores” (1999, p. 227), ou “como a sociedade
interpreta, elabora e vivencia as suas instituições políticas” (1999, p. 250).
A grande pergunta que se coloca no debate que tentamos realizar é: é possível falar de
cultura política na Idade Média? Pelo percurso que tentamos traçar, cremos que sim. A
teorização acerca desse conceito no medievo ainda é realmente incipiente, mas justamente
nisso encontramos um filão promissor. Os medievalistas já mostraram, nas últimas décadas,
que, ao contrário do que se acreditou durante longo tempo, o medievo foi muito mais
efervescente politicamente do que pensávamos; a trajetória das comunas do centro-norte
italiano parecem constituir-se numa das mais brilhantes provas disso. Como não pensar nas
várias culturas políticas que ali puderam ter sido elaboradas e circuladas? Se antes de Almond
& Verba não se pensava num cultura política norte-americana, inglesa ou francesa,
certamente ainda não se conhecem as culturas políticas medievais porque ninguém se propôs
a investigá-las.
Afinal, como o conceito gira em torno de tipologias, de que culturas políticas
medievais falaríamos? Teria havido uma cultura comunal? Seria ela a cultura regional do
centro-norte italiano, havendo outras nos reinos franceses, no reino britânico e nos Países
Baixos? Ou quem sabe teria havido culturas políticas eclesiásticas, próprias de ordens como a
minorita? E, recuando ainda mais, quais teriam sido as culturas políticas da “Alta Idade
Média”? Se não podemos mais negar ao medievo a existência de formas próprias de Estado e

14
política, inicialmente não podemos negar que em torno deles tenham transitado culturas
políticas que os informassem.
Neste trabalho, no entanto, nos ativemos àquela que, imediatamente, nos parece uma
cultura política característica dos séculos XIII e XIV, na Itália. Num ambiente em que os
intercruzamentos entre questões religiosas/eclesiásticas e políticas/seculares são eles próprios
a forma política vivenciada pelas cidades, a religião não pode deixar de ser pensada enquanto
cívica. E nessa dimensão, ela torna-se a matriz primordial das práticas e projetos políticos
nascidos e experimentados pelas comunas. É nesse sentido, por fim, que ambos os conceitos
tornam-se riquíssimos – para não dizer indispensáveis – no estudos medievais.

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16

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