Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Vladimir Safatle
-.:l
- •
Olivro como imagem do mundo é de toda mane ,a
uma ideia insípida. Na ,e,dade nao baste dizer
Viva o múltiplo grito de resto dlflci <le emitir.
Nenhuma habilidade t pognlfica. le>.ical ou mesmo
sintática será suficiente pa1a fazê-lo ouvu. É preciso
fazer o múlllplo, não acrescentando semp,e uma
dimensão supenor. mas. ao contrário. da rraneira
mais s mples. com força de sobriedade. no ní,el
das dimensões de que se dispõe, seml)(e n• I
(é somente assim que o uno laz parte do múltiplo.
estando seml)(e subtra·do dele). Subtra110 único
da multlpllcldade a serconstiwida. escre.er a n• 1.
Esta é uma luta há muito tempo Já escrita. Um dia ela iria ocorrer e
não era possível ao nosso país passar mais tempo sem se confrontar
com ela em toda sua dureza. Não sena possível criar efetivamente
uma sociedade igualitária, inclusiva e profundamente livre sem nos
confrontarmos sem medo com esses discursos, sujeitos e grupos. Ela
chegaria um dia e quis a contingência que fossemos nós aqueles que
deveriam assumir a linha de frente em seu momento mais decisivo.
Quis a contingência que fossemos nós as pessoas a fazer essa luta.
Não há mais ninguém, não temos mais nada. Se perdermos, serão
gerações que terão que conviver com o silêncio e a derrota. Mas não
temos partidos, não temos sindicatos, tudo foi queimado no fogo dos
nossos próprios erros. É verdade, estamos sozinhos e, como sempre,
é diante deste desamparo que podemos realmente criar. Talvez des-
cubramos que as maiores criações são feitas assim, no momento de
maior desamparo. Pois não temos para onde voltar. Nossa única pos-
1 sibilidade é ir para a frente.
s Muitos já lutaram essa luta em outras intensidades, alguns resisti-
ram, outros venceram, outros morreram. Pois este país foi construído
através da luta contínua contra esses mesmos que agora levantam
mais uma vez suas cabeças. Como dma Florestan Fernandes, este é
o país da contrarrevolução permanente. "De onde eles vieram?", per-
guntam alguns. ·como pessoas que cresceram comigo podem agora
assumir discursos de agressão que, no limite, são direcionados contra
mim, contra a forma de vida que é minha?".
Alguém deveria. nessas horas, falar de espectros, falar de encarna-
ção, falar de espíritos que transmigram. Por mais que possa parecer
contraintuitivo. isto sena uma análise mais analítica. Pois essas falas
vieram de outros tempos, esses gestos são de outros sujeitos, esses
afetos atravessaram séculos. Ai daqueles que nada compreendem do
tempo contraído e mult1estratificado da política. Eles não sabem com
quem falam. Falam com senhores de engenho espancando escravos
travestidos de parentes próximos, falam com bandeirantes genocidas
..!..-- - ;,
--
Écomo ver ao longe uma festa que não te convidaram. Melhor conviver
com os reativos que lutam pela ordem, pela regularidade das tradições,
pela pretensa naturalidade das formas. Talvez isso explique um pouco
porque questões ligadas a "gênero·, a ·sexualidade" se transformaram
em pontos tão sensíveis em um época na qual poderíamos esperar indi-
ferença livre em relação a elas.
Mas se esse conflito que rasga as sociedades contemporâneas em
várias localidades encontrou no Brasil uma de suas batalhas funda-
mentais, não foi por acaso. Ele acabaria por ocorrer necessariamente
no país que mais acreditou em conciliações e pactos extraídos a fór-
ceps. O Brasil se deleitou na ilusão de poder eliminar a negatividade
bruta do conflito que divide povos em dois. Ele acreditou poder sair
de seu período ditatorial fazendo conciliações e grandes pactos, sem
nunca julgar seus crimes contra a humanidade, sem nunca condenar
torturadores, ocultadores de cadáveres, assassinos que operavam im-
" puni mente nas engrenagens do Estado e no corpo das forças armadas.
,.....
12
Agor~, ele os vê voltar em um cortejo no qual cerram fileiras com Juízes
meb~ados pelo seu poder de administrador de condomínio, ex-atores
pomos arrependidos, evangélicos com sangue de Cristo nos olhos e fu-
zis na mão, fazendeiros com shows de stand-up racista.
O Brasil .permitiu que os setores fascistas de sua sociedade inocu-
lassem o discurso de que vivíamos em uma guerra e, em uma guerra,
h~ sempre excesso por todos os lados. Mas. não. A ditadura militar não
foi uma guerra. Ela to, o exercício da tirania, um golpe preventivo contra
transformações sociais que se acomodariam no horizonte restrito do na-
c,onal-desenvol~imentismo. Mas sequer isto era admissível. Levantar-se
contra_ a tirania e um direito maior até mesmo dentro da tradição liberal.
? dire'.to de resistência nos lembra que toda ação contra um governo
ilegal e uma ação legal. Oproblema é que liberais brasileiros não são ca-
pazes sequer de assumir as consequências de seus próprios princípios.
De toda forma, algu.ns prefeririam não chamar de gato um gato. Acham
que falar sobre o fascismo brasileiro é impreciso, contraprodutivo, mera
peça retórica. Isto não seria diferente para sujeitos que desconhecem a
força da nomeação e temem que, através da nomeação correta, revele-
-se as ressonâncias efetivas entre o presente e o passado Mas o que te•
mos diante de nós é sim a figura desta vida que se deleita nessa mlStura
de culto da força com cultivo do medo cujo nome sempre será "fascismo".
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patolo-
gias. Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que
a impotência da v,da ordinária e da espoliação constante será vencida
através da força individual de quem enfim tem o direito de andar arma-
do, de sair às ruas com camisas negras, de falar o que quiser sem se
preocupar com ·a ditadura do politicamente correto" O fascismo ofe-
rece uma certa forma de liberdade, ele sempre se construiu a partir da
vamp,rização da revolta. Há uma anarquia bruta, um carnaval sempre
liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se transforma na
liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais serem
lJ violentados. Ocarnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjuga-
,.
çâo entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia
da ordem. É o ·governo forte" que me permite esfolar refugiados, atirar
em ·comunistas", falar para uma mulher "só não te estupro porque você
não merece", brutalizar toda e qualquer relação social. Este será sem-
pre um dos piores efeitos de um governo fascista: criar uma sociedade à
sua imagem esemelhança. Como lembra Freud, não são exatamente os
povos que criam seus governos, são os governos que criam seus povos.
Segundo, não há fascismo sem ressureição dos Estados-nação em
sua versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas frontei-
ras, que são completamente porosas. Alguém tem que ensinar Edu -
cação Moral e Cívica para nossas crianças a fim de que elas tenham
orgulho desta pátria construída através do genocídio dos índios e da
escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que sejamos invadidos
por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus crimes. O
Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus
a sério tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar
exatamente a sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém
sabe, a não ser eles mesmos. Isto se chama: m,sturar a ordem e a de-
sordem. a lei e a anom,a. Isto é fascismo.
Mas é certo que toda ascensão fascista é construida sob os escom-
bros de uma revolução traída. Enós não soubemos como ir ma,s lon~e,
como não se acomodar às pequenas vitórias e aos ajustes pontuatS.
Nós acreditamos que o povo queria um reformismo gradual e ~eg~ro.
No entanto, eles queriam um pais "diferente de tudo o que esta aí e,
para isto, nós havíamos perdido nossa resposta. Eles ~x1g1~m uma ab-
soluta e incorruptível consciência do bem comum, e nao to, isto o que
ocorreu. Eles queriam a força efetiva, esta que não se acomoda até pas-
sar ao ato até romper as barreiras. Ele não a encontrou em nosso lado.
Isso tudo é fato, mas o que parece derrota foi apenas um ensaio ge-
ral. Esses não serão os primeiros escombros de sonhos. Muitos sonhos
li já se transformaram em escombros. Mas os sonhos sabem transformar
•
18
suas próprias ruínas em catedrais. Neste momento. o fascismo nacio•
nal acredita que terá à sua frente o espaço r1vre e oponentes melancó
licos. Eles sempre erraram e continuarão a errar. Quis a contingéncia
que nós fossemos a última barreira. Pois eles descobrirão que esta era
a barre ra mais ,ntrarsponível Eles descobnrão Que esta era a barreira
que nunca se abala, que ficará de pé até o fm. Ela é construída pelos
deseJos. pela intehg,~ncia e pe a força dos que nunca deixarão suas vi-
das serem colonizadas pelo medo E ao final, esta barreira será a pri-
me,ra parede para a construção oe outro pais.