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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH CAMPUS I


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?:


A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Salvador
2011
Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?


A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL,
Linha Linguagens, Discurso e Sociedade, Área de
Concentração Análise do Discurso, vinculado ao
Departamento de Ciências Humanas – DCH,
Campus I, da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, como avaliação parcial para obtenção do
título de Mestre em Linguagens.

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles


Sobral

Salvador
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB

Santos, Rafaella Elisa da Silva


Direitos humanos para humanos? : a emergência de sentidos sobre direitos
humanos em uma comunidade do Orkut / Rafaella Elisa da Silva Santos . –
Salvador, 2011.
148f.

Orientador : Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas. Campus I. 2011.

Contem referências.

1. Direitos humanos. 2. Redes sociais on-line. 3. Orkut(Rede social on-line.


4. Análise do discurso. 5. Grupos de discussão pela internet. I. Sobral, Gilberto
Nazareno Telles. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências
Humanas.

CDD : 341.274
Rafaella Elisa da Silva Santos

DIREITOS HUMANOS PARA HUMANOS DIREITOS?


A Emergência de Sentidos sobre Direitos Humanos em uma Comunidade do Orkut

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL,
Linha Linguagens, Discurso e Sociedade, Área de
Concentração Análise do Discurso, vinculado ao
Departamento de Ciências Humanas – DCH,
Campus I, da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, como avaliação parcial para obtenção do
título de Mestre em Linguagens.

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles


Sobral

Aprovada em 28 de Setembro de 2011

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral
Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________________________
Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto
Universidade do Estado da Bahia – UNEB

___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
À minha amada família: Auta, Rachel e
a inigualável e fofíssima Catharina. Às
também integrantes da minha família e
do meu coração Quezia dos Santos Lima
e Rosa Helena Blanco Machado
AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente minha mãe, Auta, pela paciência e palavras de conforto nos
momentos de desespero.

A Rosa Helena Blanco Machado, minha eterna gratidão pelo carinho, preocupação, por ter
transformado a área de Letras muito mais atrativa para mim, apresentando-me a Análise do
Discurso e a pesquisa. Por fazer de mim e de Quezia, as suas filhas.

A Quezia dos Santos Lima, minha eterna companheira, na pesquisa e na vida.

A George Macêdo Velame, pela amizade sincera e palavras de conforto.

Ao meu orientador Gilberto Sobral pela atenção, consideração e paciência e por compreender
o delicado momento de transição pelo qual passei, que dificultou o processo de elaboração da
dissertação.

Aos professores Rita de Cássia Queiroz e João Santana por terem aguardado a minha defesa e
pela leitura apurada no exame de qualificação, resultando em sugestões sem as quais a
dissertação apresentaria qualidade inferior.

A Verena e Camila, minhas amigas, pela amizade.


E cada instante é diferente, e cada
Homem é diferente, e somos todos iguais

Carlos Drummond de Andrade


RESUMO

Vemos, na contemporaneidade, a emergência constante, no meio acadêmico e na mídia, de


discursos sobre direitos humanos (DH), em uma tentativa de entender quais são as
necessidades fundamentais do homem e, com isso, estabelecer uma definição objetiva para
esses direitos, almejando a sua universalização, através de documentos internacionais, apesar
das diferenças culturais entre os povos, o que influi nas significações sobre as necessidades do
ser humano no atual contexto histórico. Todavia, essas discussões, bem como os 62 anos de
existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não foram ainda capazes de
desenvolver, nos sujeitos e nos Estados, o desejo real de efetivar os DH, muitas vezes porque
não são de pleno conhecimento, por parte dos teóricos do Direito e dos políticos, os sentidos
sobre direitos humanos que circulam na sociedade e, portanto, os reais interesses dos
indivíduos no que diz respeito à temática. A partir da análise de discursos de cidadãos comuns
em uma comunidade do site de relacionamentos Orkut, e pautando-se na historiografia dos
direitos humanos, e entendendo que compreender a relação entre os sujeitos e os DH e suas
discursividades é compreender o funcionamento não apenas significante, mas também
referente ao modus vivendi, à sociedade e à constituição básica de seus integrantes, enquanto
seres humanos, norteando as primeiras, as mais elementares de suas práticas, bem como na
crença da relevância do Orkut na sociedade brasileira como espaço de simbolização e no
entendimento de direitos humanos como orientadores da práxis social, temos por finalidade
nesta dissertação entender quais são as significações dos sujeitos do sítio “Direitos Humanos
para humanos direitos” da internet sobre direitos humanos e a partir de quais bases esses
sentidos são possíveis de emergir, ou seja, que formações discursivas permitem e organizam os
discursos sobre direitos humanos e seus efeitos, a partir do escopo teórico-metodológico da
Análise do Discurso.

Palavras-chave: Direitos humanos. Orkut. Análise do discurso. Sentido.


RÉSUMÉ

Nous voyons à l'époque contemporaine la constante émergence, au milieu académique et


médiatique, de discours sur les droits humains (DH), dans une démarche de comprendre quels
sont les besoins fondamentaux de l'homme et, par conséquent, établir une définition objective
de ces droits, en visant son universalisation, à travers les documents internationaux, malgré
les différences culturelles entre les peuples, ce qui influe sur le sens des besoins des êtres
humains dans le contexte historique actuel. Cependant, ces discussions, ainsi que 62 ans de la
Déclaration Universelle des Droits de l'Homme, n'ont pas été en mesure de développer chez
les individus et les États, le désir réel de pratiquer les DH, souvent parce qu'ils ne sont pas
entièrement connus, pour une partie des théoriciens du Droit et des politiques, les sens sur les
droits humains qui circulent dans la société et donc les intérêts réels des personnes à l'égard
de la question. D‟après l'analyse des discours des citoyens ordinaires dans une communauté
du site de relations Orkut, et en s'appuyant sur l'histoire des droits humains, et en réalisant que
comprendre la relation entre les sujets et les DH et sa fonction discursive est comprendre le
fonctionnement pas seulement importante mais aussi referent au modus vivendi, à la société et
à la constitution de base de ses membres en tant qu'êtres humains, en guidant les premières, le
plus élémentaires de leurs pratiques et la croyance en l'importance d‟Orkut dans la société
brésilienne comme un espace de symbolisation et dans la compréhension des droits de
l'homme comme directeurs de la praxis sociale, c'est notre objectif dans cet travail
comprendre les significations qui sont l'objet du site Web sur les droits humains et d‟après
quelles bases ces significations sont susceptibles d'émerger, en d‟autres termes, que les
formations discursives permettent et organisent les discours sur les droits humains et ses
effets, à partir de la portée théorique et méthodologique de l'Analyse du Discours.

Mots-clés: Droits de l'homme. L'analyse du discours. Sens.


LISTA DE ABREVIATURAS

AD Análise do Discurso
AIE Aparelhos Ideológicos do Estado
ARE Aparelho Repressivo do Estado
CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha
CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CPF Cadastro Pessoa Física
DDHC Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
DH Direitos Humanos
DHH Formação Discursiva Direitos humanos-historicidade
DHI Formação Discursiva Direitos humanos-inerência
DID Declaração Inglesa de Direitos
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FD Formação Discursiva
IP Internet Protocol
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores
LHC Lei de Habeas Corpus
OEA Organização dos Estados Americanos
RG Registro Geral
SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10

2 NESSE INFOMAR... 17
2.1 ORKUT, UMA “CIDADE AZUL”. 19

3 DIREITOS HUMANOS: UM SINTAGMA, DOIS 39


CONCEITOS, UMA HISTÓRIA

3.1 UM SINTAGMA... 39
3.2 DOIS CONCEITOS... 43
3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do 43
que eu?
3.2.2 O homem, quem é ele? 58
3.3 UMA HISTÓRIA 73

4 E NO PRINCÍPIO ERA O VERBO? 85


4.1 “PALAVRA ACEITA TUDO” 85

4.2 SUJEITO DO DISCURSO E SUJEITO DO DIREITO: 118


DISCUTINDO RESPONSABILIDADES

4.3 DIREITOS HUMANOS: UM FENÔMENO IDEOLÓGICO 131


4.3.1 “Mas eu preciso ser Outros” 136

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 145

REFERÊNCIAS 148
10

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As sociedades contemporâneas funcionam com base na legislação específica de cada


nação, configurando os indivíduos dessas sociedades em cidadãos, quando plenos de seus
direitos e deveres, e a partir do entendimento que se tem de ser humano e de sua dignidade,
também gerando direitos, cristalizados em documentos internacionais como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, e a Declaração de Viena, de 1993, dentre
outros. Assim, afirma-se que as sociedades são construídas, em suas bases, a partir das
significações sobre cidadania e direitos humanos (DH), orientando a práxis social.
Os direitos humanos são compreendidos pelos teóricos como universais, apresentando
como pressuposto a vida e devem ser atribuídos a todos os seres humanos porque a natureza
humana é uma só; diferem-se dos direitos inerentes à condição de cidadão, oriundos apenas de
um ordenamento jurídico nacional. Assim, DH diz respeito à raça humana, enquanto que a
cidadania está limitada à ideia de nação.
Além da origem e abrangência, não existem limites claros que diferenciem os direitos
humanos daqueles denominados de cidadania, sobretudo porque os primeiros, através dos
princípios estabelecidos na DUDH, foram incorporados às constituições nacionais. Entretanto,
os direitos humanos, por vezes, são pensados como direitos privativos a determinados grupos
sociais, não para todos os seres humanos, como apregoado nos documentos internacionais
referentes à temática, ou seja, direitos humanos deveriam ser aplicados somente a alguns, a
partir de algum critério estabelecido pelos agrupamentos sociais de prestígio, normalmente
aqueles que gozam (ou crêem que devam gozar) plenamente de seus direitos. Isso nos leva a
entender que os sentidos sobre direitos humanos não são estáveis e homogêneos no seio da
sociedade, como poderíamos esperar ao ler/ouvir o sintagma que nomeia o campo: Direitos
Humanos – direitos destinados aos homens.
Essa ambiguidade é muito intrigante, pois os direitos humanos têm por finalidade
tornar as relações entre indivíduos e povos e as suas vidas mais justas e igualitárias. Mas,
como alcançar tal igualdade se o instrumento utilizado não é visto de maneira igual? Assim,
os sentidos sobre direitos humanos ganham uma importância muito grande por nortear as
práticas dos indivíduos da sociedade – mundial – na construção de um mundo melhor, mas,
nesse caso, não se sabe se para todos. Dessa forma, em um mundo onde o discurso que mais
circula em propagandas, mídias impressas, novelas e telejornais é “vivam as diferenças”, os
direitos humanos parecem ser interpretados sob o véu da desigualdade.
11

A desigualdade, na contemporaneidade, no tocante aos discursos sobre direitos


humanos, ganha novos contornos, pois, pelo menos em alguns agrupamentos sociais, não é
concebida a partir dos mesmos elementos que teciam esse véu no passado. Não são a raça,
religião, ideologia política ou classe social que irão estabelecer as diferenças entre um ser
humano e outro no tear que costura o direito. O tecido a dar vida ao véu da desigualdade é o
comportamento. Dessa maneira, direitos humanos passam a ser para humanos direitos.
Esse critério na atribuição de direitos humanos aos indivíduos, ou seja, o
comportamento, confere maior subjetividade a essa categoria jurídica, pois ela passa a ter
sentido a partir das significações do sujeito acerca de modalidades variadas, construindo a
ideia do comportar-se. Assim, o pensamento sobre comportamento e, por conseguinte,
direitos humanos, variam conforme as regras morais vigentes em uma determinada sociedade
e que, mesmo em um mundo globalizado, nem sempre uma sociedade é igual a outras. Com
isso, a característica mais importante que parece definir os direitos humanos no plano teórico,
ou seja, a universalidade, deixa de ter relevância, afinal eles passam a ser compreendidos a
partir do indivíduo em um único local específico. Reitera-se, todavia, que essa compreensão
ratifica os DH como orientadores da práxis social, pois o comportamento pré-estabelecido
passa a ser condição para uma vida jurídica.
São exatamente os sentidos vinculados ao comportamento do indivíduo em sociedade
que norteiam as significações de algumas comunidades sobre Direitos Humanos do site de
relacionamentos Orkut, uma rede social que funciona por meio da interação entre os usuários,
com o objetivo de conectar as pessoas e “[...] tornar a [...] vida social (dos usuários) e a de
seus amigos mais ativa e estimulante” 1. O Orkut é, então, uma continuidade da vida urbana
do indivíduo, espaço público em que ele exerce plenamente a sua cidadania, configurando,
portanto, a rede social, em uma cidade virtual, com suas regras, exigências de documentos de
identificação para circulação, como perfil com foto, nome, endereço eletrônico, senha de
acesso, tal como o Registro Geral – RG e o Cadastro de Pessoa Física – CPF em qualquer
cidade.
Ademais, outro aspecto do Orkut que chama a atenção é que o usuário constrói uma
narrativa de si, a partir de textos multimodais, como a sua descrição nos perfis, fotos e vídeos
selecionados para postar, recados e depoimentos que seleciona para permanecerem ativos e as
comunidades a que se associa, como se fossem os antigos clubes que os cidadãos
frequentavam para estabelecer suas relações sociais, divertir-se e até mesmo

1
Extraído do tópico Sobre o Orkut, no referido site de relacionamentos. Disponível em:
<http://www.orkut.com/Aout.aspx> Acesso em: 14 jul 2008.
12

intelectualizarem-se, através dos fóruns, o que confere à rede social a complexidade de um


sistema urbano. O Orkut é, dessa forma, a exposição virtual da identidade do indivíduo. Nele,
o sujeito é um cidadão de uma “cidade azul”, pois

[...] a virtualização do real é um processo social ligado às especificidades culturais


de seus usuários. O Orkut comporta membros de diferentes credos e condutas
morais, orientados por regras de convivência que visam à construção de uma
civilidade entre eles. Uma vez que esses padrões de civilidade obedecem (ou não) à
diversidade cultural do grupo, o Orkut acaba por se tornar uma cidade virtual
moldada à imagem do espaço urbano de seus usuários. (EISENBERG; LYRA, 2006,
p. 33)

Esse “[...] espaço simbólico de comunicação, interação e sociabilidade” (SILVA,


2008, p.2), devido à sua estruturação, sobretudo no que tange à existência das comunidades
(verdadeiros fóruns em que os membros do Orkut, a partir da associação, grande passo na
configuração/exposição de sua identidade, debate temas de seus interesses, buscando soluções
para os problemas do dia-a-dia ou ainda convencer os outros de que a sua verdade é a única
plausível, refutando a ideia que criou e norteia a comunidade ou, o mais comum,
demonstrando identificação com tal sentido), mostra-se bastante relevante na compreensão
dos sentidos que circulam na sociedade, pois, como indicam acima Eisenberg e Lyra, o Orkut
é moldado “à imagem do espaço urbano dos usuários”.
Dessa maneira, entender o Orkut é compreender alguns elementos do espaço urbano
brasileiro, levando-se em consideração que o Brasil é o nono país do mundo em número de
endereços IP (Internet Protocol), conforme relatório The State of the Internet Report2,
referente ao terceiro trimestre de 2009, que o tempo dispensado pelos brasileiros à navegação
é grande, e que, embora o sítio oficial do Orkut não divulgue o quantitativo exato de usuários
da rede social, a estimativa é que a “cidade azul” possua mais de 69 milhões de perfis, sendo
o Brasil o maior possuidor de usuários, ficando com a parcela de 50,60%, enquanto que os
Estados Unidos, país onde foi criado o sistema, possui apenas 17,78% do total, conforme
dados do próprio site3. As comunidades, bem como a possibilidade de mostrar-se, fator que
não iremos discutir profundamente nessa dissertação, talvez sejam os elementos que
convertam o Orkut nesse fenômeno brasileiro, pois apesar do sucesso de outros sites, como o
Twitter, ele é ainda um dos únicos que possibilitam a interação efetiva entre os usuários, de
maneira multimodal, a partir de temas escolhidos por eles.

2
Relatório trimestral elaborado pela empresa AKAMAI, sobre o uso da internet, a adoção de banda larga,
tendências ao redor do mundo. Informações sobre o relatório em:
<http://www.akamai.com/stateoftheinternet/#nui>.
3
Disponível em:<http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011
13

Percebemos, com isso, que o brasileiro tem necessidade de significar acerca dos
assuntos que os aflige e, por faltar espaço na sua vida cotidiana, recorrem ao espaço virtual
como possibilidade de existirem semanticamente, para além das obrigações do dia-a-dia. O
Orkut, dessa forma, passa a ser, para os usuários, a possibilidade de moldar o mundo,
conforme seu entendimento e solucionar os problemas que dificultam o caminhar do homem
sobre a Terra. A rede social é, então, a possibilidade de o sujeito se posicionar como se
compusesse o tripé da administração pública, sobretudo no tocante aos direitos humanos, ou
seja, os internautas atuam simbolicamente exercendo ao mesmo tempo, no plano discursivo,
os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o que, na vida prática, lhes é cerceado.
Reiteramos que os membros pretendem que as soluções discutidas nas comunidades sejam
transplantadas para o espaço urbano real.
Indicamos, dessa maneira, que compreender a relação entre os sujeitos e os direitos
humanos e suas discursividades é compreender o funcionamento não apenas significante, mas
também referente ao modus vivendi, à sociedade e à constituição básica de seus integrantes,
enquanto seres humanos, norteando as primeiras, as mais elementares de suas práticas.
Assim, tendo em vista a relevância do Orkut na sociedade brasileira e o entendimento
de direitos humanos como orientadores da práxis social, com vistas a compreender como o
sujeito do século XXI os significa, quais são as suas práticas discursivas, temos por finalidade
nessa dissertação entender quais são as significações e as formações discursivas que as permitem
e organizam os discursos de uma comunidade da “cidade azul” na emergência de sentidos
sobre direitos humanos e seus efeitos, a partir do escopo teórico-metodológico da Análise do
Discurso (AD) e de seus conceitos como memória discursiva, efeitos de sentidos e formação
discursiva.
Muitas são as comunidades no Orkut que discutem a temática escolhida para essa
dissertação. Todavia, das 311 comunidades localizadas em levantamento realizado em 1 de
junho de 2009, apenas uma foi selecionada para objeto de estudo: “Direitos Humanos para
humanos direitos”. Dois motivos podem ser elencados para justificar tal escolha: primeiro
porque o sentido emergido de seu nome é o que mais aparece entre as comunidades; segundo
porque aquelas que não coadunam com tal sentido, existem justamente para confrontá-lo,
como é o caso da comunidade “Direitos humanos para humanos”. Não existe apenas uma
comunidade com esse nome. Entretanto, essa comunidade foi selecionada por ser uma das
mais antigas, criada em 9 de abril de 2005 (o Orkut foi criado em 2004, nos Estados Unidos!)
e por ser a que apresenta maior número de membros, com 6.640 integrantes, até o dia 18 de
dezembro de 2010. Esse quantitativo é importante, pois possibilita acesso a um maior número
14

de discursos, por meio dos diversos fóruns de discussão e, portanto, maior variedade de
posicionamentos.
Embora vários sejam os fóruns de discussão, sendo muitos deles por nós analisados,
salientamos cinco como alvos principais de análise nessa dissertação. Mais uma vez
reiteramos que outros foram rapidamente mencionados por trazer informações relevantes, mas
não se constituem no núcleo de análise. Esses cinco tópicos, a saber, “Seletividade do sistema
penal”, “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, “Morte estupenda de um
estuprador”, “Cuidado” e “Aborto” foram escolhidos por apresentarem ampla discussão por
parte dos membros, profundidade nas discussões, argumentos heterogêneos, quantidade de
postagens e sentidos que remetem à história dos direitos humanos, a direitos tacitamente
explícitos em documentos como a DUDH, como o direito à vida, independente da
circunstância, ou ainda elementos jurídicos que incomodam os integrantes da comunidade,
apresentando o objetivo de modificar a realidade, por exemplo, o código de execuções penais.
Apesar de nem sempre esses tópicos serem muito recentes, eles representam os sentidos e
discussões que mais aparecem na comunidade.
Baseado na Análise do Discurso, como dito acima, o tratamento dos dados coletados
no Orkut foi feito a partir de uma abordagem qualitativa, pois, nas ciências humanas, o que
existe, conforme Freitas (2002), é uma interação entre-sujeitos, ou seja, a pesquisa deve ter
orientação dialógica, embora também fosse possível a utilização da abordagem quantitativa,
haja vista que “[...] todo fenômeno qualitativo, pelo fato de ser histórico, existe em contexto
também material, temporal e espacial e todo fenômeno quantitativo, se envolver o ser
humano, também contém a dimensão qualitativa [...]” (DEMO, 1998, p. 92). Assim, optamos
pela pesquisa qualitativa por ser uma perspectiva a abarcar uma dinâmica flexível, portanto,
criativa, subjetiva, intensa, ideológica, profunda e provisória, consoante Demo (2000), e por
buscar a qualidade da realidade, caracterizada por ser um fenômeno histórico-dialético.
A dissertação está estruturada em quatro seções, além dessa e das considerações finais.
Na primeira seção, objetivamos discutir o Orkut enquanto espaço simbólico, sua
representatividade e impacto na sociedade brasileira. Nela, discutimos a história desse site de
relacionamentos, sua estruturação, qual a sua relevância para a temática discutida na
dissertação. Além disso, discutimos o Orkut, bem como os fóruns de suas comunidades, como
hipergêneros multimodais, o que impacta significativamente nas discursividades dos sujeitos.
Assim, temos, ainda, nessa seção, a discussão sobre os silenciamentos dos sujeitos
possibilitados pela estrutura do hipergênero, bem como o Orkut como espaço da construção
da identidade.
15

A seção subsequente, cujo nome é “Direitos Humanos: um sintagma, dois conceitos,


uma história” é dividida em três subseções, conforme indicado no subtítulo. A primeira
subseção demonstra a dificuldade em se empreender sentidos estáveis para o sintagma
Direitos Humanos, indicando a necessidade de se compreender os elementos que o compõem.
Dessa maneira, prepara o leitor para a segunda e terceira subseções, nas quais são discutidas
as noções de direito e humano.
Assim, a segunda subseção, nomeada “Direito, direito meu: existe alguém que tenha
mais direito do que eu?” faz um percurso sobre os sentidos construídos em torno da noção de
direito, não apenas no seio da ciência jurídica, desde a Antiguidade Clássica até a
contemporaneidade, demonstrando qual a relação entre esses sentidos e aqueles presentes na
comunidade em análise, por compreendermos que o sentido sobre a noção de direito impacta
substancialmente o entendimento sobre direitos humanos. Pelo mesmo motivo, na terceira
subseção buscamos responder à pergunta “Quem é o homem?”, com base na Antropologia
Filosófica. Essa discussão é deveras importante, principalmente se pensarmos na dicotomia
refletida na seção três. Se os direitos humanos são pensados como direitos naturais, a
concepção de homem é fundamental para entendermos não somente quais são as suas
necessidades, mas para corrigir aquelas que ainda não são contempladas. Ao pensarmos os
direitos humanos como positivos, e, portanto, como históricos, entenderemos que a
construção desses direitos estará baseada no contexto histórico que forjou a concepção de
humano. Assim, surgem DH de variadas gerações, que tentam atender às demandas históricas
do homem. Atualmente, por exemplo, o homem é concebido a partir das gerações futuras; a
partir disso, serão construídos os novos direitos humanos.
Finalizamos a segunda seção trazendo a história dos direitos humanos. Contrariando o
pensamento de que eles surgem em 1948, com a assinatura da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a história desses direitos nos mostra que seu nascimento tem data
longínqua e sua existência perpassa toda a trajetória do homem na Terra, pelo menos desde a
invenção da escrita, ainda que em questões documentais oficiais, sua emergência seja, de fato,
mais recente. Não apenas nos compêndios de Direito, essa história se mostra presente, mas
também nos discursos dos sujeitos da comunidade, quando invocam, por exemplo, os dez
mandamentos como componentes dos direitos humanos.
Posteriormente, na terceira seção, discutimos uma dicotomia que, para alguns teóricos
do Direito, como Ferraz Jr. (2003), já é superada. Intitulada “E no princípio era o verbo?”, e
contrariando o cientista jurídico, essa seção nasce a partir da nominação da comunidade, por
indicar que, na comunidade do Orkut analisada, os direitos humanos são inerentes à qualidade
16

de ser humano, mesmo sendo pensados com destinação somente aos indivíduos bem
comportados. Seguindo essa linha de pensamento, os DH deveriam ser pensados como
direitos naturais e não como direitos positivos, aqueles frutos de um processo histórico.
Compreendendo que todos os sentidos são históricos e apoiando-se na Análise do Discurso,
visamos discutir os direitos humanos a partir da dicotomia direitos naturais x direitos
positivos, por entendermos que as significações que perpassam a comunidade trazem
entranhadas em si os sentidos oriundos desse par. Assim, nessa seção, buscamos responder ao
questionamento que lhe dá nome: afinal, relativo aos direitos humanos, no princípio era o
verbo? Assim, como os sujeitos compreendem os direitos humanos e a partir de quais bases
esses sentidos são possíveis de emergir é o que se visa compreender nessa seção, a partir da
discussão sobre o que é linguagem, sujeito, sentidos e sua emergência no interior das
formações discursivas.
Dessa maneira, buscamos responder à pergunta “Direitos humanos para humanos
direitos?”, não de modo perpétuo, ou seja, sem a pretensão de esgotamento das possibilidades
e elaboração de uma resposta definitiva, mas como analistas do discurso, mapeando sentidos,
entendendo seu processo de construção, rastreando o que, para os cidadãos da “cidade azul”,
vêm a ser direitos humanos.
17

2 NESSE INFOMAR...

Parece-nos estranho pensar que, conforme dissemos nas considerações iniciais, o


Brasil, país de mais de 190 milhões de habitantes, figure como o maior possuidor de usuários
do site de relacionamentos Orkut no mundo, se, conforme pesquisa Datafolha (2007) 4, apenas
49 milhões de brasileiros, ou seja, aproximadamente 26% da população, têm acesso à internet,
sendo que somente 19% desse total conectam-se à rede a partir de suas residências, apesar de
ser um dos países que mais acessam a rede mundial de computadores. Esses dados fazem com
que nos intriguemos quanto à relevância do Orkut na sociedade brasileira e o que faz desse
sítio um espaço privilegiado da internet para os internautas do Brasil.
Muitas são as hipóteses levantadas para explicar esse fenômeno. A invasão brasileira
do Orkut, como é chamada por Eisenberg e Lyra (2006), é, por vezes, compreendida como
resultado do somatório entre uma plataforma atraente e um povo muito comunicativo.
Cruvinel (2008), por seu turno, crê que o fato de a maioria dos brasileiros acessar a internet
em locais públicos, explica a preferência pelo Orkut por ele reunir muitas ferramentas para
seus usuários em um único espaço.
Cremos que as duas hipóteses são plausíveis, se pensadas conjuntamente e feitas
algumas observações. Identificar o povo brasileiro como comunicativo é um reducionismo. A
identidade não mais pode ser pensada a partir de um sujeito centrado, unificado e
exclusivamente racional. A identidade nacional, um dos aspectos da identidade cultural, é
concebida atualmente, conforme o pensamento de Hall (2005), através de um sujeito
fragmentado, composto por várias identidades que, por vezes, são contraditórias no seio da
sociedade ou no interior do próprio indivíduo. Assim, por ser um sujeito instável,
descentrado, porque “[...] assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um „eu‟ coerente” (HALL, 2005, p. 13), podemos afirmar
a impossibilidade de existir uma identidade mestra, ou seja, a identidade de brasileiro
enquanto povo comunicativo. Ademais, tal afirmação seria a homogeneização do povo
brasileiro e sua consequente unificação, remetendo-nos à necessidade de conceber a nação
enquanto comunidade simbólica. Ressaltamos, todavia, não existir uma única forma de
simbolizar.
Hall (2005) chama-nos atenção ainda para o fato de que as nações são imaginadas,
cada uma à sua forma, indicando-nos, portanto, que o caráter amigável do brasileiro nada
mais é do que uma „tradição‟ ou „prática comportamental‟ inculcada na mente do povo

4
In: CRUVINEL, Mônica Vasconcellos.
18

brasileiro e também do restante do mundo. Não nascemos com essa identidade, recebemos
essa forma de representação em nosso processo educativo desde o nascimento. É pulverizada
no ar a ideia de que todos os brasileiros apresentam as mesmas memórias do passado, o
mesmo desejo de viver em conjunto e perpetuam a mesma herança, o que é uma inverdade. A
afirmação de que o povo brasileiro é comunicativo é fruto de uma “supressão forçada da
diferença cultural” (HALL, 2005, p. 59) que, no caso do Brasil, remonta, principalmente, ao
Romantismo, que se forçou por construir um herói nacional comedido, fiel, pacífico e que,
com o tempo, passou a ser visto como comunicativo e festeiro. Mas o Brasil, assim como
todas as outras nações, é composto de diferentes classes sociais, etnias, gêneros, ideologias, o
que faz dele um conjunto de culturas híbridas: existe o comunicativo e o reservado; o festeiro
e o caseiro; o conservador e o liberal. Existem culturas brasileiras e “[...] deveríamos pensá-
las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou
identidade [...]” (HALL, 2005, p. 62).
Por outro lado, embora o site de relacionamentos atraia os internautas pela diversidade
de ferramentas, não acreditamos ser o local de acesso o fator que confere ao Orkut a grande
popularidade que apresenta no território do Brasil. Entendemos que a relação entre a pós-
modernidade e o Brasil também seja o elemento que faça do Orkut a plataforma de
preferência. Embora a pós-modernidade tenha seu início historicamente datado na década de
1950, com apogeu nos anos 1970, os brasileiros efetivamente tiveram contato com a
atmosfera pós-moderna somente a partir dos anos 1990, com o governo Fernando Collor de
Mello e a abertura política e comercial ao mundo pós-redemocratização. Existe, desta forma,
uma necessidade por parte dos brasileiros em constituírem-se como sujeitos pós-modernos e,
devido a isso, assumem todas (ou quase todas) as características, identidades e ideologias
“esperadas” para esse lócus social, sendo uma delas a intensa interatividade e
interconectividade proporcionada pelo Orkut e sua plataforma plural. Assim, a efemeridade, a
fragmentação, a descontinuidade e o caos, típicos da pós-modernidade, aliados às ideias de
dinamismo e participação no mundo parecem “obrigar” os sujeitos pós-modernos a
apropriarem-se dos meios de produção e, principalmente, dos meios de comunicação. A pós-
modernidade é marcada, sobretudo, pela necessidade de interação, em suas múltiplas formas.
O sujeito é, em sua máxima potência, um ser comunicativo, e deve exercer suas
potencialidades interativas em todos os espaços, independente de sua nacionalidade.
Conforme Xavier (2002, p. 33-34),
19

[...] a tecnociência alavancou, definitivamente, o modus operandi pós-moderno nas


sociedades avançadas. Essa nova perspectiva filosófico-econômico-cultural
imprimiu um ritmo totalmente diferente de ser, de viver e de lidar com os signos,
linguagens e informações em todos os ambientes de convivência dos indivíduos
envolvidos na atmosfera da Pós-modernidade.

Dessa maneira, o Orkut pode ser visto como uma das possibilidades de o brasileiro ser
pós-moderno, apropriando-se não apenas do meio de comunicação, mas da ferramenta criada
pelo opressor econômico. No Orkut, o brasileiro é ideologicamente, porque numericamente,
superior aos americanos, conforme indicado na seção anterior.

2.1 ORKUT, UMA “CIDADE AZUL”

Criado em 19 de janeiro de 2004, pelo turco Orkut Buyukkokten, do grupo


estadunidense Google, o site de relacionamentos que recebe o nome de seu fundador é um
fenômeno brasileiro e para acessá-lo é necessário somente ter uma conta de e-mail e criar uma
senha. Afirmamos ser o Orkut uma plataforma multimodal não apenas por combinar vários
modos de se comunicar, a exemplo de imagem, texto e, por vezes, som, mas por abarcar uma
diversidade de gêneros textuais. Chama-nos atenção o perfil preenchido pelo usuário que,
constantemente por ele atualizado, configura-se como uma narrativa viva de si, dividida em
algumas etapas ou ainda gêneros textuais.
O primeiro módulo pode ser compreendido como uma ficha cadastral, semelhante
àquelas preenchidas em hotéis. Nele, deve-se indicar dados como nome, sexo, estado civil,
data de nascimento, cidade e estado, idioma, escolaridade, situação profissional e interesse no
Orkut. Conforme a própria plataforma, 53,48% dos usuários têm entre 18 e 25 anos e 44,04%
acessam o Orkut por apresentar interesse em amigos5. O segundo módulo do perfil é social e é
destinado a estabelecer um filtro para relacionamentos futuros. Indicamos que o Orkut não
estabelece explicitamente esse objetivo para o perfil, mas nos parece claro o interesse em
categorizar os usuários quanto a seus comportamentos, a fim de facilitar encontros (ou
orkontros) entre pessoas compatíveis. Basta notar a indicação do Orkut ao usuário quanto ao
número de pessoas a que ele está conectado através da sua rede direta de amigos. Assim, a
semelhança com uma ficha cadastral de hotel na primeira etapa, deixa espaço, nesse segundo
módulo, para a semelhança com um exemplar de ficha cadastral de agências de
relacionamentos, conhecida como questionário de compatibilidade, a exemplo da disponível

5
Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011
20

no site do E-harmony6. Dessa forma, dados como etnia, religião, visão política, orientação
sexual, estilo, se bebe ou fuma são solicitados nessa etapa, visando localizar perfis
compatíveis com a personalidade dos usuários, maximizando a possibilidade de sucesso dos
relacionamentos. O módulo cinco também se encaixa nessa categoria, por solicitar dados que
dizem respeito a aspectos físicos, como cor dos olhos e dos cabelos e altura, e
comportamentais, sobretudo relativos a relacionamentos. A terceira etapa solicita dados para
contato, como e-mail, reaproximando-se esse lócus do Orkut de uma ficha cadastral
tradicional, e a quarta etapa encaixa-se no que conhecemos como mini-currículo.
Além do perfil, a narrativa de si é desenvolvida no espaço intitulado “Quem sou eu”,
no qual o usuário escreve um texto demonstrando aos seus visitantes um perfil de si mais
pessoal e menos direcionado pelo site, com mais liberdade de escrita; em outro espaço, o
usuário indica o seu status no dia, através de textos e de elementos iconográficos, os emotions
icons, conhecidos como emoticons, típicos da linguagem da internet. Esse último espaço é
relevante na constituição da imagem de si, pois está localizado no topo da página, como um
lembrete ao internauta que ele deve dar atenção ao que ele sente, indicando que seus
sentimentos devem ser publicitados, como uma forma de lembrá-lo que essa é a primeira
coisa a ser vista pelos visitantes em seu perfil, ou seja, uma estratégia para angariar
popularidade, em uma tentativa do site em incitar uma atualização constante, diária, o que
configura esse espaço em um mini-blog, ou seja, um pequeno diário virtual, mas que não
deixa marcas, rastros do usuário, por não gravar as mensagens anteriores. Existem ainda, na
plataforma, as pílulas de pensamento que, apesar de terem surgido há muitos anos, ganharam
força nos anos 1990, como o livro Minutos de Sabedoria, de Carlos Torres Pastorino, que
apresenta um pensamento diferente para ser lido a cada dia como forma de estimular a
positividade dos seres humanos e, no caso do Orkut, estimular a alegria do internauta com a
vida, ampliando a vontade de manter-se conectado.
Podemos também dizer que o status do Orkut é uma tentativa recente do Google em
suprir uma necessidade do usuário em mostrar seu dia-a-dia, seus sentimentos mais
cotidianos, atendendo a uma demanda do mercado, já que os internautas ultimamente têm
feito isso em outra plataforma: o Twitter. Nesse novo fenômeno mundial, o usuário pode
escrever mensagens curtas, com até 140 caracteres, indicando a seus seguidores o que tem
feito e sentido. O Orkut, então, criou o espaço status que comporta até 100 caracteres, tendo
logo abaixo um demonstrativo de seguidores no dia, na semana e/ou no mês, recebendo no

6
Disponível em: <http://www.eharmony.com.br/singles/servlet/questionnaire/relationship/3>.
21

site do Google a designação de „visitantes‟, demonstrando a importância dada pelos


internautas à sua popularidade virtual. Os internautas buscam o Twitter por ele ser uma
ferramenta do mostrar-se. Todavia, parece-nos que o Orkut permite um mostrar mais intenso
por, tecnicamente, permitir pensamentos longos, ininterruptos, sendo essa, talvez, uma das
explicações para tamanha adesão. No Orkut, o sujeito mostra a si mesmo enquanto um ser
pensante e politicamente participativo. Nele, o sujeito não apenas indica quem é ele, mas ele é
ele mesmo, configurando/exercendo, a cada momento, uma de suas identidades. No Twitter, o
sujeito grita “eu existo, eu faço e/ou estou fazendo isto”, assumindo, para nós, o caráter
emergencial do mostrar-se, através da configuração de um recado; no Orkut, ele simplesmente
existe em várias de suas facetas, identidades, mas não todas, em um ritmo aproximado ao do
cotidiano. O Twitter visa, prioritariamente, à informação pronta; o Orkut, além disso, e dentre
outras coisas, a discussão, o debate.
As narrativas de si presentes no perfil do Orkut e no espaço “Quem sou eu” são
ratificadas por outro gênero textual nele presente – o depoimento. Em um contexto
extravirtual, o depoimento é um gênero oral, no qual, normalmente, há o enunciador, seu
interlocutor – as pessoas subjetiva e não-subjetiva do discurso, respectivamente –, e aquele
de quem se fala, a não-pessoa do esquema da subjetividade de Benveniste, ausente na
enunciação. Devido a isto, o “ele” benvenistiano não interfere no discurso do depoente e, por
isso, podem aparecer relatos que não lhe são favoráveis, “manchando” a sua narrativa,
tornando-a inverossímil. No Orkut, os depoimentos são controlados, por depender, para
publicação e conhecimento público, da tácita aprovação e aceitação do dono do perfil e,
portanto, tem a função de ratificar a imagem construída pelo narrador-orkuteiro. Dessa
maneira, no depoimento do Orkut, podemos afirmar existirem três protagonistas da
enunciação: o “eu”, possuidor da marca de subjetividade, portanto, o sujeito do discurso; o
“tu” desprovido de subjetividade e o “ele”, que, no Orkut, confunde-se com o “tu”,
apresentando, assim, pessoalidade.
Além disso, outros gêneros coexistem no Orkut para corroborar a imagem construída
pelo internauta e construir a sua narrativa: o álbum de fotos, que inicialmente era totalmente
aberto, mas atualmente já é possível controlar quem tem acesso a ele, facilitando a moldagem
das personagens, a imagem que se quer transmitir, haja vista a possibilidade de restringir
quem pode ter acesso às fotos; a postagem de vídeos favoritos (ratificando o estilo e
preferências relatados nos módulos do perfil); a foto inicial do perfil, em tamanho que
22

remonta à foto 3x4 das carteiras de identidade7 e a seleção de comunidades virtuais, um dos
elementos mais eficazes no delineamento das identidades assumidas pelo usuário. Uma delas
é objeto de análise nessa dissertação.
A comunidade selecionada para análise, como salientamos nas considerações iniciais,
é a intitulada “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Ao associar-se a ela, o sujeito do
Orkut indica em sua biografia uma das suas filiações ideológicas, demonstrando ao seu
visitante, a partir da interação com pessoas do país inteiro, qual o seu modo de pensar e como
conduz a sua vida, referente aos assuntos ligados a direitos humanos, indicando ser este um
tema importante para ele, por estruturar as suas relações e não estar, atualmente, sendo
conduzido do jeito que ele deseja, que acha correto. A comunidade virtual, portanto, é uma
tentativa de o usuário convencer os seus amigos de que sua forma de existência é a melhor, se
não a única aceitável. Importante salientarmos que, embora a comunidade seja virtual, a
internet deve ser compreendida como uma representação ou espelho da sociedade, o que nos
leva a duas considerações: a concepção do Orkut enquanto uma cidade virtual; a necessidade
de discutir o que é o virtual e ciberespaço, pois “[...] a comunidade virtual somente adquire
forma e se realiza mediante a interconexão dos membros em um território simbólico [...]”
(CORRÊA, 2008, p 70).
Muitas são as teorias que têm se debruçado nas questões que envolvem a internet,
como a Antropologia ou a Etnografia da Internet (Netnografia). Para compreendê-la, todavia,
utilizamos as noções de ciberespaço e de virtual concebidas por Pierre Levy, pelo fato de o
filósofo francês compreender que “[...] a emergência do ciberespaço acompanha, traduz e
favorece uma evolução geral da sociedade [...]” (LEVY, 1999, p.25). A internet, assim, é
concebida não apenas como um meio de comunicação, mas como um espaço de interação, de
trocas simbólicas, de emergência de significações, um fenômeno social. A sociedade, bem
como o ciberespaço, que dela faz parte, são construídos a partir das relações entre os
indivíduos, em várias modalidades, sendo organizados a partir da imagem que cada sujeito faz
do seu interlocutor, uma tentativa de antecipar suas representações, seu imaginário, ou seja, a
partir de formações imaginárias, construindo estratégias discursivas objetivando,
inconscientemente, a homogeneidade cultural e comportamental aventada por Hall (2005) ao
discutir identidade nacional. A partir da interação intersubjetiva e dessas formações

7
Interessante observar como, na comunidade analisada, a foto do perfil é significativa para aceitação do discurso
do outro, para ratificação de sua narrativa: “julguem pela foto do infeliz, se dá pra levar a sério um sujeito
desses” – extraído do tópico “quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”. A foto é, em uma comparação
com o mundo fora do ciberespaço, a roupa do sujeito, que deve estar adequada à situação comunicativa,
conforme a etiqueta.
23

imaginárias, que geram discursos, a sociedade é constantemente construída, estando sempre


em mutação, afinal “[...] toda a organização interna da interação urbana se funda em uma
hierarquia bem complexa que envolve simpatias, indiferenças e aversões, do encontro mais
efêmero ao mais demorado [...]” (CORRÊA, 2008, p. 54), sendo tais formações fluidas e
instáveis. Assim também funciona o Orkut: o internauta antevendo o imaginário de seus
visitantes (interlocutores), estabelecendo formações imaginárias e construindo sua narrativa
da melhor maneira a convencê-los de suas filiações ideológicas.
O ciberespaço, dessa maneira, confere à sociedade uma nova forma de se comunicar,
estruturando-a em rede, ou seja, a partir de nós e conexões, interferindo, assim, a internet, nas
formas de o sujeito simbolizar, por estar, a sociedade, delimitada por suas técnicas,
significando que as possibilidades semântico-discursivas da atual sociedade dependem
também da sua estrutura técnica, pois as atividades humanas são, além da interação entre
pessoas, aquela entre entidades materiais, sendo elas naturais ou artificiais, e entre ideias e
representações que circulam na sociedade, conforme Corrêa (2008). O ciberespaço, então, é
um fenômeno de sociabilidade, ou seja, um grupamento intersubjetivo de trocas simbólicas,
que agrega diversas mídias anteriores a ele, sendo o Orkut, no entendimento de Dornelles
(2005), a terceira forma de sociabilidade desenvolvida pelo homem. A primeira é o
antiquíssimo contato face a face e a segunda, “[...] aquela que começa a ser praticada via
artefactos tecnológicos, principalmente mediante os inventos comunicacionais do século XX,
com o ápice acontecendo na internet [...]” (DORNELLES, 2005, p. 164), a exemplo do
telefone e do chat. A diferença entre a segunda e a terceira formas de sociabilidade é o par
tempo-espaço. No chat, assim como no Orkut, o encontro é virtual, mas o tempo, no primeiro,
é o mesmo para todos os sujeitos envolvidos; no Orkut, não há a relação tempo-espaço.
Vemos, então, na comunidade virtual analisada, no mesmo tópico, a interação entre discursos
proferidos nos dias 10 e 16 de maio de 2009, como é perceptível nos excertos a seguir.
24

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

É necessário entendermos o que é ciberespaço, no qual está inserida a fragmentação


tempo-espaço ocorrida no Orkut. Na visão de Levy (1999, p. 15), “[...] o termo especifica não
apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de
informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo [...]”. Assim, é possível compreendermos o ciberespaço como um fenômeno
dialético, no qual o contato intersubjetivo se dá pelas afinidades que os sujeitos apresentam
entre si, possibilitando trocas interculturais, sendo que “[...] a rede social Orkut poderia ser
compreendida como uma rede intercultural globalizada cujos participantes seriam vistos como
os responsáveis pela organização e divulgação das interculturalidades e das diversidades
culturais [...]” (CORRÊA, 2008, p.40). Essa simbiose cultural ressaltada pelos pensadores
citados nesse parágrafo demonstra que o ciberespaço não pode ser concebido apenas como um
espaço técnico, pensado somente a partir de gygabytes e velocidade de conexão, apenas como
plataforma sistêmica. Ele deve ser compreendido como espaço privilegiado de significações e
manifestações dos anseios individuais e coletivos.
Entretanto, ao contrário do que muitos pensam a respeito da internet, o ciberespaço
não é homogeneizante, ou seja, não produz e nem estimula uma cultura única e global.
Podemos observar esse fato na comunidade analisada nessa dissertação. Observando os
discursos nela presentes, percebemos que os integrantes pertencem, em sua maioria, à classe
média brasileira8, apresentam escolaridade superior à média nacional, sendo perceptível, em
seus discursos, a faixa escolar pelo vocabulário utilizado e, principalmente, por indicação de
conclusão de cursos de graduação e/ou pós-graduações, trabalham e são jovens/adultos. Isso

8
Entendemos que essa classificação não é a mais adequada, pois tende a homogeneizar grupos. Todavia,
referimo-nos aos grupos de brasileiros que apresentam renda média familiar mensal oscilando entre R$ 1mil e
R$4 mil, conforme perfil divulgado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, através de dados da Pesquisa de
Amostra Familiar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (COSTA, 2011).
25

indica que o binômio „interesse por temas de cunho político‟, como é o de direitos humanos, e
„acesso às tecnologias‟ permanece nas mesmas mãos que sempre detiveram esse
poder/interesse, em uns períodos mais que em outros, sinalizando que ainda há um
desequilíbrio de contato com o Outro global, o que contribui para dificultar a massificação de
ideias e representações de um grupo cibernético ao restante da sociedade. Ademais, a
possibilidade de contato com o outro acende o interesse pelo diferente e/ou exótico e, com
isso, discursos como “vivam as diferenças!” são cada vez mais valorizados na sociedade. Na
comunidade virtual, o direito à opinião é um dos mais destacados, sobretudo quando há
discordância9, evidenciando necessidade, ainda que por instinto de sobrevivência discursiva,
ou seja, como estratégia, de coexistirem as diferenças, inviabilizando, portanto, a
homogeneidade.
Outro elemento importante que contribui para que o ciberespaço não possa ser
considerado homogeneizador cultural é a valorização do que é local, não apenas do que diz
respeito ao seu entendimento tradicional, ou seja, geográfico, mas referente às idiossincrasias
dos indivíduos e/ou a culturas de grupos minoritários, a aspectos culturais que tornam o
sujeito único, por ocupar diferentemente posições sociais no seio da comunidade, por ser
participante de grupos sociais diferentes, consequentemente assumindo ideologias e
comportamentos próximos, porém não-idênticos em relação a seu interlocutor virtual, ou seja,
ele é diferente do outro, ainda que singelamente; há, atualmente, a valorização da
subjetividade cultural. Nas trocas interculturais ocorridas no ciberespaço, então, há perdas,
mas também há ganhos, ressignificando as culturas envolvidas.
Podemos, então, destacar como características do ciberespaço “[...] a ubiquidade da
informação, documentos interativos interconectados, telecomunicação recíproca e assíncronas
em grupo e entre grupos [...]” (LEVY, 1999, p. 49). O Orkut, enquanto espaço de
comunicação e sociabilidade no ciberespaço, em sua terceira forma, como indicamos em
parágrafo anterior, apresenta como dispositivo comunicacional, ou seja, como tipologia de
relações intersubjetivas, a modalidade todos-todos, em que não há restrições de produção e
recepção de mensagens, configurando a importância do ciberespaço10, segundo Levy (1999),
devido a essa mutação cultural promovida por ele. Existem ainda dois outros dispositivos

9
Podemos citar como exemplo scrap extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”: “respeito a sua opinião, como a do André e de todos os outros, nunca entrei em atrito com
ninguém por opiniões contrárias às minhas, mas por favor, quando tiver tempo, leia meus posts neste tópico e
verá outro ponto de vista”.
10
Atualmente, essa configuração, em relação ao Orkut, pode ser relativizada, já que existem comunidades
virtuais em que os sujeitos dependem da aprovação do moderador para dela fazer parte e, portanto, para produzir
e receber mensagens.
26

comunicacionais, a saber: um-um, que apresenta o telefone como referência e o um-todos, que
tem na televisão um representante. Indicamos que o ciberespaço também possibilita a relação
entre os sujeitos nessas duas modalidades, a exemplo do e-mail e do MSN, que podem
funcionar das duas formas. Salientamos ainda que, no MSN, pode haver produção
compartilhada, haja vista que o programa permite conversas simultâneas entre vários usuários,
fato conhecido como conferência. Com isso, o centro da estruturação cibernética desloca-se
da relação lugar-lugar para pessoa-pessoa.
As comunidades são o espaço do Orkut em que ocorrem as trocas simbólicas, em que
funciona efetivamente o dispositivo comunicacional todos-todos, fundada a partir da união de
interesses comuns entre os integrantes, originada com base no sentimento fundamental de
pertencimento ao grupo, semelhante ao experimentado pelo indivíduo na configuração do
sentimento nacional, gerando coesão em torno de uma consciência coletiva, ou seja, crenças,
sentimentos, ideologias partilhadas pelos membros, no caso dessa dissertação, referente aos
direitos humanos, constituindo uma sociedade. É necessário, então, para participar de uma
comunidade, não apenas reconhecê-la enquanto sociedade, mas também, e principalmente, ser
reconhecido como um membro pelos demais integrantes.
A interessante diferença entre uma sociedade cibernética e as demais existentes fora
do ciberespaço é o modo de desenvolvimento do sentimento de pertencimento: na nação, os
sujeitos são „compelidos‟ a assumir posições referentes à ideia de nacionalidade e de
pertencimento devido a discursos que circulam na sociedade, à memória discursiva, que põe
os já-ditos na superfície dos discursos e seus sentidos são tomados como verdade, devido à
sensação de um já-lá eterno, um mar de informações dificilmente transponível pelo sujeito.
No ciberespaço, pertencer a uma comunidade indica explicitamente uma escolha, uma opção
consciente feita pelos integrantes.
Não queremos com isso afirmar que o fato de os usuários optarem pela adesão à
comunidade virtual, que os isenta/torna invulneráveis dos/aos discursos circulantes, da
memória discursiva do grupo nacional, até porque seus sentidos sobre direitos humanos são
dependentes, entre outras coisas, de outros discursos. Devemos entender que, segundo a
Análise do Discurso, todos os sujeitos são frutos da interpelação das ideologias, porque, além
de assujeitados à língua, são por elas são constituídos, e, portanto, assumem como seus “[...] o
sistema ordenado de ideias ou representações e das normas e regras [...]” (CHAUÍ, 2006, p.
62). Cabe ressaltar que a ideologia funciona, atua sem se pôr à mostra, ou seja, que os
sujeitos, apesar de existirem a partir da ideologia, não apresentam, em suas consciências, esse
27

conhecimento. A respeito da subjetividade e da constituição do sujeito e do sentido,


remetemos à seção três.
A observação feita no parágrafo anterior nos direciona à necessidade de compreender
a comunidade virtual nessa dissertação não como um lócus do ciberespaço apenas, mas como
discurso, que é compreendido como efeito de sentido entre sujeitos, portanto, como processo.
Dessa maneira, vemos a comunidade “Direitos humanos para humanos direitos” como um
espaço simbólico, ideologicamente marcado, constituído por indivíduos que, interpelados,
configuram-se como sujeitos cujos sentidos emergem a partir da assunção, inconsciente, de
posicionamentos, pelos sujeitos, frutos das relações interdiscursivas, das condições de
produção desses discursos, que são materializados no texto.
Como efeito de sentido, a adesão do sujeito a diversas comunidades indica que ele
exercita a possibilidade de ser diversos “eu”, sendo o ciberespaço um exercício efetivo e
inconsciente de construção e reforço de identidade(s), espaço no qual o sujeito assume papéis
e identidades diversas. Dissemos anteriormente que, segundo Hall (2005), o sujeito pós-
moderno é fragmentado. No Orkut, essa fragmentação é posta em evidência, pois, ao aderir à
comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”, é a identidade de ser humano que
está em relevo, enquanto que o mesmo sujeito aderindo à comunidade “Direito Penal” assume
também a identidade de jurista/estudante de Direito. Além disso, nas comunidades virtuais, o
sujeito pode plenamente exercer as diversas facetas do seu eu, pois inexistem os
constrangimentos sociais presentes nas relações intersubjetivas, como preconceitos raciais,
linguísticos, etários e sociais. No Orkut, o sujeito pode expressar os seus sentidos,
principalmente porque, apesar de existir a construção do perfil que, nessa dissertação estamos
nomeando de narrativa, o sujeito pode construir uma personagem fictícia, atribuindo nomes
inventados por ele ou nicknames (apelidos), a foto de seu perfil pode ser a imagem de um
quadro, de um artista de Hollywood ou de um personagem de desenho animado11, permitindo
ao sujeito significar em uma espécie de anonimato, já que emergem significações através do
“eu” que não se põem à mostra na sociedade do ciberespaço. Então,

[...] o anonimato contribui para garantir a livre discussão on-line, quando barreiras e
constrangimentos do contato off-line, que vão desde uma escala de hierarquia
quando se está em um ambiente profissional quanto a fatores de ordem emotivo e
pessoal, como a timidez. Por este viés, o anonimato torna-se muito significativo na
relação estabelecida via ciberespaço, à medida que facilita a exposição de idéias,
sejam lá quais forem, já que se pode esconder e escamotear a identidade. (CORRÊA,
2008, p. 168)

11
Isso não quer dizer que a identidade é falsa. A escolha da imagem para compor o perfil, a criação do nickname
são também rastros que indicam a(s) identidade(s) do sujeito do Orkut.
28

É importante salientarmos que a interação entre os sujeitos não se dá somente no


interior da comunidade, mas também com os grupos pertencentes a outras identidades sociais
no ciberespaço, ou seja, com outras comunidades. Isso implica dizer que, também no Orkut,
há relações interdiscursivas, por ser a interdiscursividade uma propriedade dos discursos, pois
todo discurso é fundado sobre outros discursos. A comunidade-objeto de análise nessa
dissertação é construída pautada em um pré-construído que determina os direitos humanos
para todos os indivíduos, por serem todos iguais. Assim, a afirmação de que os direitos
humanos devem ser direcionados somente para humanos direitos é construída no espaço de
trocas com os discursos que „defendem‟ a igualdade jurídica entre os indivíduos. Surge, então,
outra característica das comunidades virtuais: além de serem fundadas por interesses comuns,
elas são construídas a partir do conflito. É ele que permite a união dos membros. A existência
da comunidade é justificada pela defesa do modo de vida e dos sentidos assumidos pelos
membros, que só ocorre devido à tensão presente no processo de interação social. Sem o
conflito, não haveria razão para criação e manutenção da comunidade.
Quanto ao aspecto físico, as comunidades estão estruturadas de modo semelhante ao
perfil dos usuários. No centro, há uma espécie de mini-narrativa da comunidade, feita pelo
dono/criador, figura semelhante ao presidente de uma nação (Poder Executivo). Nesse espaço,
intitulado “descrição”, é possível fazer um relato dos interesses da comunidade, indicar suas
filiações ideológicas, dentre outras possibilidades. Na comunidade em análise, a descrição é
um trecho do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que indica
aceitação do documento pelos membros, sinalizando que as críticas tecidas na comunidade
não são direcionadas à entidade „direitos humanos‟.
Logo abaixo, há a identificação do idioma oficial utilizado, a categoria a qual pertence
a comunidade, dentre as vinte e oito possíveis no Orkut12, (no caso dessa dissertação, a
categoria é pessoas), o nome do dono, com um link para seu perfil, a relação dos moderadores
da comunidade virtual, espécie de Aparelho Repressor do Estado, como a polícia e o Poder
Judiciário, sendo que, para Althusser (1998, p. 67-68), “[...] repressivo indica que o aparelho
de Estado em questão „funciona através da violência‟ – ao menos em situações limites (pois a
repressão administrativa, por exemplo, pode reverter-se de formas não físicas)”, como as

12
O Orkut permite classificar as comunidades em uma das 28 categorias elencadas pela plataforma, facilitando a
procura dos usuários por temas de seu interesse. As categorias são: Alunos e Escolas; Animais: de estimação ou
não; Artes e entretenimento; Atividades; Automotivo; Cidades e Bairros; Computadores e Internet; Culinária,
bebidas e vinhos; Culturas e comunidade; Empresa; Escolas e cursos; Esportes e lazer; Família e lar; Gays,
lésbicas e bi; Governo e política; História e ciências; Hobbies e trabalhos manuais; Jogos; Moda e beleza;
Música; Negócios; Países e regiões; Pessoas; Religiões e crenças; Romances e relacionamentos; Saúde, bem-
estar e fitness; Viagens; Outros.
29

expulsões, no caso da comunidade do Orkut. Há também link para os perfis dos moderadores,
o tipo de comunidade, ou seja, se é pública ou não, a identificação do nível de privacidade do
conteúdo, a sua localidade, que normalmente coincide com a do criador, data de criação e
número de membros.
A comunidade virtual “Direitos humanos para humanos direitos” é pública, seu
conteúdo é aberto para não-membros, está geograficamente relacionada à cidade de São Paulo
e foi criada em 9 de abril de 2005. Além disso, na lateral direita, há imagens dos membros que
recentemente visitaram a comunidade13, bem como a lista das outras comunidades com as
quais mantém relação. Na comunidade, pode-se ainda participar de enquetes, divulgar
eventos, denunciar abusos (o “Ministério Público” do Orkut) e participar de fóruns, principal
atividade de uma comunidade virtual.
A existência de links na comunidade e a ideia de que o Orkut, enquanto discurso,
materializa seu sentido no texto, faz com que seja relevante entendermos a noção de
hipertexto, termo criado por Theodore Nelson, em 1993, categoria na qual se encaixam as
materialidades do site de relacionamentos do Google. A priori, devemos ter em mente a
noção de hipertexto enquanto texto estruturado em rede, o que nos leva a ponderar que essa
categoria não foi inaugurada com o ciberespaço, já que textos tradicionais também podem
apresentar conexões/nós como as notas de rodapé, por exemplo, mas que o Orkut é um
hipertexto digital, ou seja, “[...] informação multimodal disposta em uma rede de navegação
rápida e intuitiva” (LEVY, 1999, p. 56), construído para uma leitura coletiva, uma “[...] rede
de hiperlinks entre palavras, ideias e fontes, sem centro ou fim [...]” (XAVIER, 2002, p. 26).
Dessa forma, o hipertexto digital só se realiza, com todas as suas qualidades, no ciberespaço.
O hipertexto é concebido a partir da ideia de potencialidade, pois os links, ou melhor,
os textos em rede, são apenas textos em potencial, pois a sua realização somente se dará a
partir da interação com o usuário, sendo que não há a obrigatoriedade de fazê-lo e, portanto,
não há garantia de isso ocorrer. Nas comunidades do Orkut, por exemplo, não parece ser
comum o acesso, através dos links situados na página de abertura da comunidade aos perfis do
dono e dos moderadores. Não há nela pistas sobre tal prática. Entretanto, percebemos que
essas conexões textuais ocorrem nos fóruns, quando há necessidade, por parte de um dos
interlocutores, de comprovar a autenticidade de algum orkuteiro, se não se trata de um fake,
como são chamados os perfis falsos, como evidencia Carolina em fragmento a seguir. Mas

13
As comunidades do Orkut apresentam três locais diferentes para indicar o quantitativo de membros. Isso
demonstra a importância dada à popularidade no Orkut, o que ratifica a sua categorização como uma rede social.
30

reiteramos, não é uma prática tão comum na comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Uma das características do hipertexto elencadas por Xavier (2002) é a imaterialidade.


O hipertexto digital é marcado pelo não-contato com as mãos do leitor que, para isso,
precisaria imprimi-lo rompendo com alguns dos contratos de leitura estabelecidos pelo gênero
textual, alterando o seu suporte14. Os fóruns da comunidade analisada nessa dissertação nos
indicam que as comunidades virtuais apresentam gêneros que derivam de gêneros orais. É
necessário entendermos que gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, conforme
a perspectiva bakhtiniana (2003). Eles são concebidos como práticas sociais e, portanto, são
historicamente situados, gerados no interior de um campo da atividade humana e a partir das
necessidades especiais desse campo, o que leva a compreender porque a estabilidade dos
gêneros não é total, ou seja, eles são intercambiáveis, o que significa inter-influência e
reacentuação dos gêneros, e variam conforme a mudança da sociedade, adaptando-se às
necessidades comunicacionais dos seres humanos que, na internet, são ainda mais dinâmicas.
Fora do ciberespaço, os hipertextos digitais perdem a sua configuração, deslocando-se do
campo de atividade que os forjaram.
Os fóruns das comunidades, lócus de análise dessa dissertação, podem ser
compreendidos como derivações do gênero oral „debate‟ (que, a nosso ver, deriva do gênero
diálogo) em que diversas pessoas discutem um mesmo tema, mediados por um moderador. É
necessário, então, evocar uma importante característica do enunciado, no entendimento de
Bakhtin (2003, p. 272), que é a de ser “[...] um elo na corrente complexamente organizada de
outros enunciados”, ou seja, os enunciados nascem assentados em enunciados anteriores,
sobretudo porque, para Bakhtin (2003), é a partir dos gêneros que o indivíduo aprende as
unidades linguísticas e a maneira de pô-las em prática, organizar o seu discurso,
configurando-se também uma crítica a um dos elementos da dicotomia que fundou o corte

14
“locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero
materializado como texto” (MARCUSCHI, s/d, p. 10). Importante observar esse conceito, pois conforme o autor
o gênero é sempre identificado a partir de sua relação com o suporte, ou seja, a relação do sujeito com o texto
muda, se muda o suporte no qual a mensagem é veiculada. Isso quer dizer que só é possível compreender o
funcionamento das comunidades virtuais, a partir da compreensão de ciberespaço, o seu suporte.
31

saussuriano, a fala, por não levar em consideração que os elementos do sistema linguístico
estão submetidos a certas regras sociais de utilização, impostas pelos gêneros discursivos.
Fundado que é pelo gênero debate, o Orkut não parece se adequar bem às divisões
elaboradas por Bakhtin (2003) para os gêneros quanto à sua origem, ou seja, gêneros
primários e secundários, estes últimos oriundos de uma estrutura complexa e organizada,
incorporando os primários. Os fóruns do Orkut parecem ser um gênero diferenciado, por já
ser, em nosso olhar, uma terceira geração de tipos relativamente estáveis de enunciado,
abrindo possibilidade para os gêneros textuais terciários15, que seriam uma mescla de um
gênero primário e um secundário, assumindo características de ambos e desenvolvendo
outras. Embora seja um gênero derivado de dois gêneros orais, o fórum do Orkut é escrito,
apesar de manter algumas das especificidades da oralidade. Conforme Grigoletto (2009), a
escrita na internet é um meio-termo. Ainda segundo a autora,

[...] afirmar que a escrita virtual situa-se no entremeio do discurso da oralidade e do


discurso da escrita significa contemplar nesse processo as contradições inerentes
tanto a um quanto a outro discurso, significa trabalhar no intervalo entre esses dois
discursos, não valorizando um em detrimento do outro, mas dando legitimidade aos
dois. Significa, ainda, considerar os lapsos, as falhas, ou chamados “erros” da escrita
virtual, os silenciamentos, os sinais gráficos, as imagens como elementos que
constituem a materialidade da escrita virtual. (GRIGOLETTO, 2009, p.3)

A oralidade está representada na escrita cibernética, reconfigurando a escrita


tradicional, a partir da incorporação de imagens, emoticons, erros de digitação, inadequações
gramaticais, abreviações ou neologismos ao texto, sendo estes entendidos como “[...]
resultados de cruzamentos entre um conjunto de matrizes: linguísticas (capacidades
cognitivas), tecnológicas (condições mecânicas) e históricas (contexto sócio-político)”
(XAVIER, 2002, p. 21), configurando, assim, nos discursos dos fóruns, marcas identitárias
dos sujeitos.
Entretanto, um fato interessante ocorre nos fóruns da comunidade “Direitos humanos
para humanos direitos”: a escrita cibernética e os traços que reproduzem a oralidade
praticamente não são utilizados nos tópicos selecionados. Analisando proporcionalmente os

15
Indicamos não ser originalmente nossa a idéia dos gêneros terciários. Xavier e Santos (s.d) apontam para sua
existência, ao refletir sobre o fórum eletrônico, gênero analisado nesta dissertação. Eles afirmam que o fórum
eletrônico “é um gênero terciário que guarda mais semelhanças com os gêneros primários por serem constituídos
basicamente por marcas da oralidade tanto na forma composicional como no tempo de execução, embora a sua
concretização se dê pela escrita. Períodos simples e curtos, frases truncadas, preferência por construções verbais
na voz ativa, menos densidade informacional, marcas de envolvimento, presença de marcadores conversacionais,
entre outras características da oralidade, costumam aparecer muito nos fóruns virtuais”. Todavia, não pudemos
perceber todas as características identificadas para esse gênero pelos autores, principalmente no que diz respeito
à estrutura composicional e marcas da oralidade. No corpo da dissertação, trazemos brevíssimos comentários
sobre as particularidades do gênero terciário „debate‟ na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
32

tópicos, podemos afirmar que o „internetês‟ não é língua valorizada na comunidade,


aparecendo em poucas situações: abreviações ou reconfiguração de palavras/expressões de
baixo calão, como FDP16, demonstração de risos (rsrs). É possível que a seriedade da
temática, a configuração do gênero „debate‟, que originalmente exige formalidade para
melhores chances de persuasão e a importância dada pelos internautas à comunidade os
impeçam de utilizar o „internetês‟, por vezes sendo os discursos, nos tópicos, bastante
formais, uma tentativa de imprimir credibilidade.
Outra situação também pode ser apontada como justificativa para a utilização do
„internetês‟ na comunidade – as emoções. Quando os sujeitos envolvem-se emocionalmente
com a temática debatida, irrompe o equívoco, a falha possível devido ao furo da linguagem,
possibilitando a emergência do „internetês‟. „Gordo, Fabiano‟, por exemplo, do tópico “Quem
é a igreja para falar de direitos humanos”, ao discutir a temática, utiliza letras em caixa alta
para exprimir tom de voz alto/gritos e, quando bastante emocionado, ignora as regras sociais
formais para a comunicação, e exprime um palavrão – “porra” – bem como utiliza uma
abreviação – “vcs” –, como podemos visualizar no fragmento a seguir.

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Outra característica do hipertexto digital é a não linearidade da leitura, ou seja, não


mais há a necessidade de ler o texto em uma única direção, sequência, contribuindo para
aumentar ainda mais a pluralidade semântica característica dos discursos, ficando os sentidos
dependentes das conexões estabelecidas pelo leitor, tornando cada leitura um ato singular.
Mas tal singularidade caracteriza o hipertexto devido a outro traço que lhe é fundamental: a
intertextualidade. É consenso entre os teóricos que a linguagem humana é, por natureza,
intertextual, pois “todo dizer é um já-dito” (ARAÚJO; LOBO-SOUSA, 2009, p. 566). Desse
modo, afirmar que a intertextualidade é característica do hipertexto é indicar que ele põe em
evidência, através dos hiperlinks, a justaposição de textos.

16
Abreviação para a expressão “filho da puta”
33

Nos fóruns da comunidade do Orkut em análise, contrariando o que se espera de um


hipertexto, é pouco frequente a recorrência ao uso de hiperlinks. Até a data da última coleta
de dados no Orkut, dezembro/2009, somando os cinco tópicos centrais analisados nessa
dissertação, contabilizamos 365 postagens. Destas, somente três apresentam hiperlinks, ou
seja, aproximadamente 0,8% do total, na maioria das vezes, funcionando como mote para
deflagração do tópico. Além destes, exibidos a seguir, existem os hiperlinks-estruturas dos
fóruns, quer dizer, já compõe a sua natureza estrutural. Ao clicar na imagem de qualquer
integrante, o cibernauta é remetido ao perfil do membro da comunidade no qual clicou. Mas,
como já mencionamos, não se configura prática comum, nos fóruns da comunidade analisada,
esse movimento (pelo menos, não é mencionado nos tópicos, o que também demonstra quebra
de regra de etiqueta da internet).

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de DH?”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Os hiperlinks que ligam o fórum aos perfis dos debatedores funcionam como mini-
currículos, no qual o membro da comunidade pode conhecer o seu interlocutor e, com essas
informações, elaborar estratégias argumentativas, ou simplesmente verificar a procedência,
sobretudo relativa às filiações ideológicas dos membros visitados. Dessa maneira, seguindo a
classificação da Linguística Textual adotada por Araújo e Lobo-Sousa (2009), essa
intertextualidade é do tipo „temática‟, pelo fato de o sujeito partilhar temas, conceitos e
terminologias. A intertextualidade presente nas postagens da comunidade é qualificada
também como sendo do tipo „explícita‟ e “se dá quando, no próprio texto, é feita menção à
fonte do intertexto” (ARAÚJO; LOBO-SOUSA, 2009, p. 571), sendo que no Orkut, quando
isso ocorre, essas postagens praticamente só contem esses hiperlinks, como pudemos observar
nos scraps de „João Lima‟, „Luiz Felipe‟ e „inconstitucional‟ anteriormente postos.
Ressaltamos que outras relações intertextuais podem ser levantadas no corpo das mensagens
34

postadas nos fóruns. Focamo-nos, entretanto, naquelas que dizem respeito exclusivamente às
especificidades do hipertexto.
Feitas as considerações sobre ciberespaço, gênero e hipertexto, podemos retomar a
ideia de que o Orkut apresenta como dispositivo comunicacional o formato todos-todos,
alçando-o à categoria de terceira forma de sociabilidade. O mecanismo de funcionamento do
Orkut, nos fóruns de suas comunidades virtuais, é a interação através do debate, como já
evidenciamos. O gênero secundário „debate‟ exige a presença no mesmo espaço e ao mesmo
tempo de interlocutores, limitando a interação. O máximo que podemos conseguir, nesse
sentido, com o gênero „debate‟, é a quebra da rigidez do espaço, com a utilização de
tecnologia, realizando teleconferências, configurando-se como um fenômeno de sociabilidade
de segunda ordem. Todavia, o fórum do site de relacionamentos do Google, como gênero
terciário, desobriga os interlocutores a partilharem o mesmo espaço-tempo, fragmentando
esse binômio. Dessa maneira, os orkuteiros não precisam conectar-se no mesmo instante para
que o debate se processe, o que faz com que se ampliem as possibilidades de participação de
pessoas com estilos e rotinas de vida diferentes e aumente o tempo de duração do debate,
podendo atingir a eternidade, se for constantemente alimentado17. Apesar disso, há por parte
dos interlocutores a sensação de tempo real, imediato, apesar de sua fragmentação.
Parece uma contradição afirmar que no Orkut há a fragmentação do espaço, se
anteriormente informamos existir no perfil das comunidades um espaço destinado à indicação
do lugar a que pertence a comunidade virtual, sendo a “Direitos humanos para humanos
direitos” localizada em São Paulo. Entretanto, essa indicação faz referência apenas à
concepção de lugar físico-geográfico, porque é com ele, porque palpável e historicamente
situado, que os internautas apresentam uma relação de identificação. O lugar, portanto, é
espaço formador de identidade, ou melhor, ele põe em evidência para o sujeito aquilo que ele
é (ou deveria ser). O ciberespaço, suporte do gênero terciário „debate‟, não apresenta essas
fronteiras e, por isso, é compreendido por Corrêa (2008, p. 23) como um não-lugar, ou seja,
“[...] espaços simbólicos, reterritorializantes, de passagem, que são navegados por internautas
que se encontram e se desencontram no fluxo comunicacional”. Dessa maneira, não-lugar é
um conceito que amplia a noção antropológica de lugar, que é fixo, indicando o ciberespaço

17
Dentre os cinco tópicos centrais de análise, até a data da última coleta, o de maior duração foi o tópico
“Aborto”, com início em 30/05/2006 e última postagem coletada em 03/12/2006, ou seja, 188 dias de atividade.
Dentre os tópicos secundários utilizados na dissertação, o de maior duração é o intitulado “Clichês pseudo-
humanistas, com debate ativo no período de 21/04/2008 a 13/03/2009, contabilizando 327 dias. Ressaltamos que
os tópicos permanecem on-line e, por isso, ainda não podem ser considerados finalizados. O Orkut disponibiliza
a relação dos tópicos de uma comunidade por data de postagem. Assim, se alguém postar algo nos referidos
tópicos, certamente o debate será retomado de onde parou.
35

como territorialidade simbólica, como espaço em movimento. Necessário, então, entendermos


que o território, na visão de Corrêa (2008), é a mescla de uma cultura com um território
geográfico e social, quer dizer, o espaço converte-se em território, a partir da cultura.
A cultura do ciberespaço, denominada cibercultura, destrói as fronteiras e hierarquias
postas tradicionalmente na sociedade, como a ideia de cultura nacional, construindo e sendo
construída pela noção de global. Hall (2005) identifica três consequências da globalização
sobre as identidades culturais, como a desintegração das identidades nacionais, reforço das
identidades locais e surgimento de novas identidades – híbridas. Como a compressão espaço-
tempo que caracteriza o ciberespaço impacta as identidades culturais, podemos afirmar que a
cibercultura, um dos frutos da globalização, institui outras fronteiras e hierarquias, pois “[...]
criar um território significa manter o controle sobre todas as ações que se manifestam no
interior dessas fronteiras [...]” (CORRÊA, 2008, p. 46), mostrando-nos que o Orkut não é
terra sem lei.
Entretanto, não concordamos plenamente com a primeira consequência arrolada por
Hall (2005) porque no Orkut, sobretudo na comunidade analisada nessa dissertação, a noção
de global ainda está restrita à ideia de nação. É difícil para o brasileiro, no site de
relacionamentos do Google, fugir da brasilidade, devido ao percentual de brasileiros na
plataforma e ao fato de que o português é língua oficial, tendo sido o primeiro idioma para o
qual o Orkut foi traduzido, em 2005. A cibercultura, desse modo, na visão de Levy (1999, p.
15), é “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”,
fazendo com que as mensagens dos fóruns sejam sempre retomadas em seu contexto de
enunciação. A cibercultura, então, pode ser entendida como uma prática sócio-discursiva e
que interfere na construção da(s) identidade(s) do sujeito, a partir de suas relações com o
ciberespaço.
Devido ao dinamismo da cibercultura, o ciberespaço é visto por Corrêa (2008, p. 16)
como “um não-lugar reterritorializante”. A movimentação da cultura faz com que os
territórios sejam fluidos, instáveis e, com isso, ocorre o movimento da desterritorialização, ou
seja, a perda da relação entre cultura e território geográfico-social. Ao ligar o computador e
acessar a internet, o sujeito inicia um movimento de abolição do território geográfico,
reconstrução de identidades e desmaterialização do lugar, adentrando uma posição não
definida no espaço físico e do tempo do relógio. Desta maneira, apesar de se definir como
pertencente ao território geográfico de São Paulo, a comunidade virtual “Direitos humanos
para humanos direitos” não faz parte desse lócus, pois, no ciberespaço, São Paulo não existe e
36

inexistem também as fronteiras que definem tradicionalmente o lugar, misturando as unidades


de tempo, identidade e localização. Surge, então, o Orkut enquanto não-lugar. Assim,
evidencia que no ciberespaço “[...] a sincronização substitui a unidade de lugar, e a conexão, a
unidade de tempo [...]” (LEVY, 1996, p. 21), constituindo o que podemos chamar de
território-rede, um espaço simbólico.
O hipertexto, por sua natureza diluidora das noções de dentro e fora, conforme Xavier
(2002), aumentando a circulação do leitor no ciberespaço, por não apresentar fronteiras
nítidas, pode também ser definido a partir do movimento de desterritorialização por não
apresentar suporte físico, possibilitar, como dissemos, uma leitura não-linear e estar em
constante mutação, pois os hiperlinks podem ser alterados sem conhecimento do autor do
texto base, estando os leitores e os sentidos em todos os lugares. Fato semelhante ocorre na
comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”, em um dos três hiperlinks inseridos
em seus fóruns. Constituído basicamente pela ligação com o texto situado fora do tópico, a
postagem de Luiz Felipe na comunidade, posta a seguir, perdeu seu sentido porque a
comunidade à qual o hiperlink direciona não mais existe, foi retirada do ciberespaço e, por
isso, o hipertexto perde uma das suas características constitutivas – a intertextualidade,
impossibilitando, nesse caso, a leitura.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Todavia só é possível admitirmos a existência de uma cibercultura se entendermos a


necessidade de recompor esse território no ciberespaço, reelaborando a ordem simbólica. Esse
processo, simultâneo ao da desterritorialização, é chamado por Levy (1996) de virtualização,
e por Corrêa (2008), de reterritorialização. Adotamos as duas terminologias, mas optamos por
utilizá-las em contextos diferentes, fazendo uso inicialmente do termo do filósofo francês
porque a noção de virtual consegue abarcar o modus operandi do ciberespaço, que se dá a
partir da realidade virtual, “[...] um tipo particular de simulação interativa, na qual o
explorador tem a sensação física de estar imerso na situação definida por um banco de dados
[...]” (LEVY, 1999, p. 70), o que explica a sensação do sujeito, anteriormente mencionada, de
37

que as fronteiras tempo-espaço não foram fragmentadas e, além disso, contempla melhor, para
nós, o conceito de hipertexto.
A noção de virtualização carece, inicialmente, da compreensão do que vem a ser o
virtual, concebido por Pierre Levy (1999) a partir de três vertentes: a técnica, que diz respeito
à digitalização, a corrente, que vincula a noção de virtual à ideia de irrealidade e a vertente
filosófica, que é a adotada nesta dissertação. Desta maneira, o virtual é “[...] aquilo que existe
apenas em potência e não em ato [...] antes da concretização efetiva [...]” (LEVY, 1999, p.47).
O ciberespaço, então, é terreno das possibilidades, como a metáfora da árvore presente na
semente, trazida por Levy (1996). Isso significa que o virtual não se opõe ao real, por ser um
conjunto de potencialidades a serem efetivadas pelo usuário. A diferença entre o real e o
virtual, dessa forma, reside na existência concreta do primeiro. Nos hiperlinks da comunidade
do Orkut anteriormente postos, por exemplo, os textos presentes nos nós das conexões por
eles estabelecidos são possibilidades a serem efetivadas no ciberespaço. Se o membro da
comunidade clicar no link, o texto passa a ganhar concretude. Como podemos perceber, não é
adequado afirmar que os textos dos hiperlinks não são reais por não terem sido clicados, pois
eles encontram-se disponíveis, prontos para brotar da semente, sendo com isso, atualizados.
Levy (1996), então, concebe a virtualização como o movimento inverso ao da atualização, ou
seja, como desenvolvimento de um espaço simbólico de possibilidades. A atualização, por seu
turno, é entendida como a atribuição de sentidos ao texto, quer dizer, a assunção de uma
dentre as múltiplas possibilidades semânticas.
A noção de virtual define ciberespaço porque abarca a fragmentação de tempo-espaço,
ou seja, por ser compreendido como possibilidade, o virtual é uma “[...] entidade
„desterritorializada‟, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos
e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em
particular [...]” (LEVY, 1999, p. 47). Essa concretização, que Levy (1999) nomeia de
atualização e da qual falamos no parágrafo anterior, constitui o lado oposto do virtual, ou seja,
ao entrar em contato com o hipertexto, o leitor atualiza o texto ao atribuir-lhe sentido „aqui e
agora‟.
É, então, nesse momento que a noção de reterritorialização irrompe como a mais
adequada. Reterritorializar é constituir relocalizações territoriais, reconfigurando o contexto
enunciativo, redefinindo as fronteiras. É a partir da reconstrução do espaço simbólico que é
possível qualificar o Orkut como “cidade azul”, pois, ao ressignificar o ciberespaço, os
sujeitos constituem uma estrutura semelhante a uma cidade antropológica, geográfica: com
cidadania, necessidade de registros e documentação, como o perfil, funcionamento de uma
38

estrutura da tripartição dos poderes, como já mencionamos18, dentre outros elementos de uma
cidade tradicional. O Orkut é, retomando a frase de Eisenberg e Lyra (2006, p. 33) presente
nas considerações iniciais, “[...] uma cidade virtual moldada à imagem do espaço urbano dos
usuários [...]”. O Orkut é uma “cidade azul”19.

18
Dos três poderes da estrutura governamental vigente na sociedade contemporânea – Executivo, Judiciário e
Legislativo – o último é o único que não se desenvolve bem no Orkut. Percebemos traços do Poder Legislativo
apenas no espaço enquete, isso se a pergunta servir para alguma tomada de decisão na comunidade, o que não é
tão frequente. Nesse sentido, a gestão do Orkut, ou melhor, das comunidades, não é tão democrática.
19
O adjetivo „azul‟ no sintagma diz respeito à cor de fundo da plataforma.
39

3 DIREITOS HUMANOS: UM SINTAGMA, DOIS CONCEITOS, UMA HISTÓRIA

3.1 UM SINTAGMA...

Um dos principais elementos que polemizam a discussão e a análise de discursos sobre


direitos humanos e que perpassa essa dissertação, constituindo a sua questão basilar, é a sua
conceituação. Bobbio (2004) sinaliza não haver resposta concludente, definições nítidas para
este questionamento, havendo apenas considerações tautológicas, ou seja, aquelas que
indicam serem os direitos humanos aqueles destinados para os homens, o que, em verdade,
não define nada, afinal toda a jurisprudência é construída pelo e para o homem em sociedade.
As definições podem ainda, consoante o teórico italiano, apenas expressar a vontade do
proponente, como “direitos humanos são aqueles direitos necessários que devem ser gozados
por todo ser humano” (grifos nossos), introduzindo expressões avaliativas, o que amplia as
possibilidades interpretativas de quem discute a temática, já que implica considerar, de
imediato, ainda que se deseje a imparcialidade, como pretende a ciência jurídica, um juízo de
valor do emissor.
A falta de definição clara e consistente sobre direitos humanos, inclusive no seio da
Filosofia do Direito, e que possibilita, como dito no parágrafo anterior, essa pluralidade
semântica, leva os cidadãos e os sujeitos da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos” a construírem o conceito a partir de fontes diversas, seja os qualificando como
instrumento de proteção contra as arbitrariedades do Estado, como evidencia o discurso de
Calinka posto a seguir, não levando em consideração o próprio aparelho estatal fiscalizador,
como o Tribunal de Contas, que teria por definição a função de observar e, quando necessário,
autuar o Estado por infringir regras; ou ainda qualificando-os como elementos defendidos por
organizações e entidades não-governamentais (ONGs) ligadas à sociedade civil, como ressalta
Andrea no tópico “Quanta hipocrisia”. Este ponto merece destaque, pois, embora este pareça
estar inserido no primeiro modo de ver os direitos humanos aqui posto, eles, na prática, se
distanciam por dois aspectos: primeiro porque as ONGs não têm necessariamente, por
finalidade, o objetivo de cuidar de questões sociais focando o aparelho estatal. Podemos
exemplificar essa postura através de entidades como Greenpeace, que funciona independente
da atuação do Estado como agente “agressor”. Além disso, o segundo entendimento de
direitos humanos possibilita compreender o sujeito como um agente transformador,
disseminador e responsável pelos direitos humanos, o que faz dele um sujeito constituído por
ideologias, mas não completamente assujeitado a apenas uma formação ideológica, a uma
40

única formação discursiva, possibilitando, dessa maneira, a assunção, pelo mesmo sujeito, de
sentidos aparentemente contraditórios, ou seja, DH são, ao mesmo tempo, de cunho natural e
político.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Na contramão, o sentido mais disseminado na comunidade do Orkut está relacionado


ao discurso midiático. Assim, direitos humanos seriam somente o que é transmitido pela
mídia sobre a temática, os protestos em favor dos „bandidos‟ realizados pelos grupos de
defesa dos DH, conforme entendimento de Mr. Bigode, do tópico “Quanta hipocrisia”, em
exemplo posto a seguir, que ilustra a significação-base da comunidade virtual. Duas questões
interessantes devem ser consideradas, mas que, na maioria das vezes, não se constituem como
entraves pelos internautas: o entendimento que se tem de mídia – instituição soberana,
objetiva, não-ideológica e retransmissora de uma verdade única e absoluta; e a discussão
sobre a natureza do que é transmitido pela mídia acerca da temática, ou seja, o que, para os
veículos de comunicação, em relação aos direitos humanos, é considerado notícia.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos”.

Tal diversidade semântica se dá, sobretudo, por conta dos elementos que compõem o
sintagma que nomeia esse campo. Tanto a palavra “direito” quanto “humano” apresentam
variadas acepções, o que compromete o estabelecimento de um sentido único e estável para o
sintagma, se é que isso é possível, mas sabe-se ser desejado tanto pelos juristas quanto pelos
internautas que defendem, com afinco, o sentido por eles adotado, pois, como observa
Stevenson (1958, p. 9 apud FERRAZ JR, 2003, p. 38), “[...] qualquer definição que se dê de
direito, sempre estaremos diante de uma definição persuasiva”. A interpretação dada pelos
41

sujeitos da comunidade do Orkut à noção de direito está afinada a duas correntes, a saber:
aquela que entende o direito de forma genérica e abstrata, apresentando como função básica a
busca do sujeito enquanto indivíduo, pela justiça, ainda que “com as próprias mãos”, afinal
para os orkuteiros “temos sim o direito de nos defender e protegermos nós mesmos os nossos
direitos e os das pessoas queridas” 20; ou ainda àquela que concebe o direito, primeiramente, a
partir dos postulados constituídos pela ciência jurídica, pois ela deve ser a base das discussões
sobre direitos humanos, sobretudo porque “antes de tudo, devemos conceituar a liberdade
individual”21.
O adjetivo “humano”, que compõe o sintagma em estudo, também abarca sentidos
variados, filiados a famílias discursivas diversas. Assim, os sentidos sobre direitos humanos
são constituídos a partir da relação entre formação físico-somática do indivíduo e atos de
caridade, incluindo aí a legitimação por uma instância superior e divina, ou seja, direitos
humanos devem ser pensados para uma vida plena e harmônica, direito a uma vida sadia que,
caso não ocorra, pode (e deseja-se) ser retirada por Deus (e somente por ele). Há nos
discursos da comunidade do Orkut, então, a relativização do direito à vida, pilar dos direitos
humanos, devido ao entendimento de ser humano enquanto ser que “deve ser perfeito” 22.
Tal relativização dos direitos humanos encontra eco na comunidade do Orkut em
análise, principalmente porque o ser humano vai ser também compreendido a partir de sua
história, com os sujeitos cibernéticos retomando, no fio de seus discursos, fatos que marcaram
a humanidade, como o massacre de seres humanos ocorrido no período de 1939-1945, quando
determinados grupos sociais eram considerados reles animais e, portanto, cobaias, (“„Direitos
humanos para humanos direitos‟ não seria recriar a ideia de „Ratos Humanos‟ e assistir a um
holocausto contra pecadores?”23), o que possibilita sentidos como os que nomeiam a
comunidade, ou ainda, a partir de seus princípios últimos, ou seja, o ser humano, tal qual uma
propriedade, conforme inciso XXIII, artigo V, da Constituição Federal do Brasil, deve atender
à sua função social, ser útil à coletividade, afinal “o que, por exemplo, esperar de um garoto
de 12 anos preso 11 vezes?”24. Salienta-se, entretanto, que as três filiações aqui apresentadas
estão conectadas e interagem para produzir sentidos sobre Direitos Humanos. Assim, afirmar

20
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
21
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
22
Esse posicionamento emerge no Orkut em discursos como o extraído do tópico “Aborto!”: “a pobrezinha é
completamente mal-formada [...] eu a assisto usufruir de seu direito à vida de maneira penosa [...] peço todo dia
que Deus tenha piedade e leve”.
23
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
24
Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
42

que „direitos humanos devem ser atribuídos a humanos direitos‟ implica entender que os
indivíduos devem ser fisicamente perfeitos, apresentar boa índole e “boa família”, já que
precisam, desde o nascimento, viver sob a conduta esperada pela sociedade, “que vem de
berço” e que a sua vida deve ser traçada para atingir fins socialmente aceitos pela
comunidade25.
A pergunta “Quem é o homem?” é de suma importância para essa dissertação, pois,
embora não definidora da questão dos direitos, a ideia de que os direitos humanos são os
destinados aos homens não é falaciosa. É essa pergunta que nos encaminha a outras três
salientadas por Wolff (2009, p. 37), pautadas no pensamento de Kant, e que norteiam a
construção dos direitos, já que indica a quais são as necessidades do homem: “O que devo
fazer?”; “O que posso saber?”; “O que posso esperar?”; perguntas que só têm fundamento se
associadas à pergunta mestra aqui colocada, afinal, como salienta Mondin (1980, p. 5)
responder tal pergunta significa que “[...] não podemos adotar uma atitude de indiferença ou
superficialidade, posto que o encaminhamento de nossa vida depende dessa solução, seja
individual seja social, bem como nossa conduta, nossas relações com outrem e com o
mundo.”
Ante o exposto, além de considerar, nesta seção, o percurso histórico de
desenvolvimento dos direitos humanos, faz-se necessária a discussão, ainda que breve, sobre
as noções de direito e homem. Com relação à primeira noção, salientamos que não abarcamos,
por não apresentar relação com a proposta dessa dissertação, sentidos que levem à ideia de
jurisprudência, isto é, ciência jurídica enquanto um método. Ater-nos-emos ao direito somente
como objeto dessa ciência. Ressaltamos ainda a não pretensão de esgotamento do conceito,
devido à sua complexidade e por não se configurar como objetivo nessa dissertação a
apresentação de um conceito bem definido e refinado, mas um brevíssimo mapeamento dos
sentidos que emergem sobre a temática na comunidade estudada, alinhando-os ao que é
discutido pelos cientistas do direito.
Quanto à noção de humano, embora existam diferentes caminhos para se
compreender o homem, quer seja nas ciências naturais, sociais ou históricas, será aqui

25
É interessante que, na comunidade, por vezes, aquilo que é considerado desvio de conduta e seria condenado
em situações diversas, é relativizado quando se trata da Igreja Católica, evocando, inclusive fatos da história
bíblica para justificar seu posicionamento. Todavia, tal tolerância não é facilmente vista na comunidade, haja
vista a defesa da pena de morte, devido à impossibilidade de ressocialização do infrator: “quem nunca errou que
atire a primeira pedra... todos dessa comunidade um dia já erraram e se pudessem voltar atrás em algo voltariam
em alguma ocasião na vida pois somos humanos e NÃO SOMOS PERFEITOS!!!! TODOS ERRAM!!!! Tenho
certeza q se a Igreja pudesse voltar atrás nas suas atitudes lá no passado voltaria e faria diferente” – Peterson,
discutindo o apoio da Igreja aos nazistas, no tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da
comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
43

utilizada a abordagem da Antropologia Filosófica que, embora reconheça não ser possível
conhecer o ser humano em sua totalidade, busca conhecê-lo sem compartimentá-lo, para além
dos fatores físico-biológicos, socioeconômicos, políticos e linguísticos, articulando-os.

3.2 DOIS CONCEITOS...

3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do que eu?

Observamos ser o objeto da ciência jurídica o que nos interessa para compreender um
dos elementos que compõe o sintagma Direitos Humanos. Todavia, como em qualquer área
do conhecimento, não há consenso sobre o que vem a ser direito. A palavra, portanto, pode
assumir sentidos variados, ora constituindo-se apenas como um conjunto de normas (o
ordenamento jurídico), ora como um ramo científico ou ainda como uma faculdade do
indivíduo, ou seja, o sujeito com direito a.
Na comunidade do Orkut, nota-se a coexistência de significações sobre a noção de
direito que correspondem a fases da história do conceito na ciência jurídica, havendo,
entretanto, na “cidade azul”, apesar da evolução histórica da noção, certa estabilidade
semântica. Desta forma, os sentidos transitam basicamente entre dois momentos históricos, a
saber: a Antiguidade Clássica e a Idade Média. Ratificamos que, com isso, não queremos
dizer que dos sujeitos do Orkut não emerjam sentidos filiados a outros processos históricos e
sim que os períodos citados são o núcleo semântico mais relevante na constituição de seus
sentidos. Assim, o direito é compreendido como sendo da ordem do sagrado, ora como
direcionador da ação do indivíduo, tal qual em Roma, onde era concebido como exercício de
atividade pautada na ética, ação com prudência (daí a palavra jurisprudência), com equilíbrio
nos atos de julgar; ora com base no Cristianismo e suas crenças no livre-arbítrio do homem,
na configuração e execução de seus direitos, sempre pautados na vontade de Deus e no divino
enquanto salvação, como Rafael argumenta no tópico “Aborto”, cujo fragmento está posto a
seguir. Desta forma, há união entre verdade jurídica e verdade bíblica, sendo os textos
sagrados uma das fontes de consulta do campo. Os dez mandamentos, por exemplo, até hoje
são considerados como código de conduta a ser seguido e, no processo histórico dos direitos
humanos, influenciou, ainda que indiretamente, documentos importantes como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
44

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Chama-nos atenção, no tocante ao sentido proveniente da Antiguidade Clássica, a


influência de documentos ainda mais remotos. O Código de Hamurabi, datado do século 18
a.C. e que abarca diversas áreas do viver em sociedade, como o comércio, o trabalho, a
propriedade e, principalmente, o que ainda permeia o imaginário dos sujeitos dos séculos XX-
XXI – a Lex Talionis, na qual o delito era penalizado conforme a sua natureza como deixa
evidente „Ralph‟, em scrap posto a seguir, através da máxima adotada pelo Código (“Olho
por olho, dente por dente”) e que o deu popularidade – parece ser o elemento que norteia com
mais frequência o entendimento sobre direitos humanos, sobretudo porque grande parte das
discussões na comunidade virtual circundam o direito à vida, o que leva os sujeitos do Orkut a
adotarem como meta a penalidade por morte como solução para o problema da criminalidade
no mundo. Relembramos que o código babilônico ficou conhecido principalmente pela
imputação dessa modalidade penal para quase todos os delitos, desde simples casos de
sortilégio sem provas aos de roubo e assassinato.
Outro aspecto de destaque na configuração da noção de direito é a constante
recorrência ao argumento de civilização. Assim, o Brasil, país ainda pouco civilizado, na
visão de alguns dos internautas, como o já referido Rafael, não teria condições de adotar os
direitos humanos. Nesse aspecto, dois elementos têm relevância: a emergência de sentidos
oriundos do discurso do Brasil enquanto colônia, terra inferior e selvagem, povoada por
bárbaros, materializado no citado falar de Ralph, abaixo, e o intercruzamento com a história
bíblica, afinal há uma gradação no aparecimento dos diversos profetas, até a chegada do rei
dos reis, Jesus Cristo, profeta maior, cada um adequado para cada estágio da evolução da
humanidade. Entretanto, configurar direitos humanos a partir do grau de civilização de uma
nação fere um de seus princípios fundamentais – a igualdade entre indivíduos e povos – por
acreditarem, os orkuteiros, em diferentes qualidades de ser humano, aproximando-se da ideia
aristotélica de homem, a ser discutida, a posteriori, ainda nessa seção, portanto ratificando a
ideia de que direitos humanos não devem ser direcionados para todos. Civilizado parece,
então, ter conexão maior com o conceito de cidadania, ou seja, é aquela nação que respeita os
direitos e deveres de seus habitantes.
45

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.

Assim, a pluralidade semântica do vocábulo “direito”, conforme Ferraz Junior (2003),


advém da Antiguidade Clássica e pode ser também percebida através de sua simbologia. A
estátua localizada na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com os olhos vendados, simboliza a
deusa Iustitia e a concepção romana para a temática. Além disso, chama-nos a atenção a
postura reta da estátua; os olhos fechados indicam que os romanos entendiam o direito não a
partir da visão, símbolo da busca pelo saber puro, mas por meio da audição, símbolo da
prudência, pois sua concepção refere-se a um saber agir, um equilíbrio entre o abstrato e o
concreto e, com isso, valoriza-se o discurso. A ideia de que a “justiça é cega” é uma
contribuição grega que, com sua deusa Diké, sem vendas nos olhos, entende “o justo (o
direito) [...] visto como igual” (FERRAZ JR, 2003, p. 32). Assim, o entendimento da cegueira
da justiça é resultado da união entre os dois modos de se entender o direito. Além da vedação
ou não dos olhos, os pontos de vista romano e grego divergiam porque o último concebia o
direito como abstracionismo e especulação. Por conta disso, a imagem da deusa da terra de
Homero apresenta uma espada, evidenciando necessidade do uso da força para obtenção do
direito e não do discurso, pensamento também presente na comunidade do Orkut,
principalmente quando há a defesa da possibilidade de o indivíduo lesado aplicar a pena que
melhor lhe convier ao seu infrator.
A partir dessas contribuições, temos dois importantes modos de percepção do direito
pelos internautas: em termos de virtude moral ou do aparelho judicial, emergindo, tais visões,
algumas vezes isoladamente, outras em comunhão. André26, por exemplo, ao debater a
relação direitos X ser humano, em excerto a seguir, faz um cotejo entre moralidade e
penalidade, estabelecendo que o sujeito infrator seja um ser amoral, sendo que, ao infringir a
lei, exerce o seu livre-arbítrio, característica nata do ser humano, descartando qualquer
possibilidade de intervenção social na configuração das ações dos indivíduos. Para o referido
internauta, no tópico “Cuidado”, esse é um ponto inquestionável nas discussões sobre DH,
pois “não tem como negar o livre-arbítrio. Ou ele existe ou não existe. Não há meio-termo.
Negá-lo é enveredar na contramão dos textos clássicos e modernos sobre direitos

26
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
46

fundamentais do homem”27 e, devido a isso, a penalidade deve ser pensada na sociedade sem
referência aos direitos humanos, ou seja, sem restrição de ordem humanitária, apesar de, em
alguns momentos, emergirem enunciados que não estabelecem a pena de morte como
necessária28.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Dessa maneira, é relevante observar que, para a maioria dos membros da comunidade,
a moralidade não se caracteriza por ser um elemento social e sim da natureza do indivíduo,
inerente a ele ao nascer. Dessa forma, a maioria dos sujeitos do Orkut rechaça teorias que
apontam que as condições sociais e psicológicas do sujeito na infância, por exemplo, possam
contribuir para a prática de delitos e, por isso, torna impossível a correção do sujeito infrator
no sistema prisional, por ser o seu desvio de cunho bio-ético-moral, como podemos
depreender do mesmo discurso de André, acima colocado, datado de 07.05.2006. Como
consequência desse posicionamento, a humanização da pena é tomada como elemento
incentivador da criminalidade, evidenciado nas falas dos orkuteiros Pluto, de 12.09.2009 e
André, de 22.05.2006, a seguir, trazendo novamente ao seio da discussão sobre direitos
humanos a influência do Código de Hamurabi, demonstrando também como a ideia de ser
humano impacta a conceituação de direito. Assim, o livre-arbítrio, como característica própria
do ser humano, implicaria a configuração do sujeito criminoso como consciente de suas
atitudes, sendo, portanto, o único responsável por elas, e, por isso, o código penal encontraria
legitimidade para isentar-se de responsabilidade com os direitos humanos.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

27
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
28
O mesmo sujeito, na comunidade virtual, oscila entre a defesa e a omissão quanto à temática da pena de morte,
por, cremos, configurar-se em tema que pode, a depender do seu interlocutor, gerar prestígio ou constrangimento
social. Assim, palavras de André, no tópico “Cuidado”, no dia 14.05.2006, relevam que a pena de morte é tema
de baixo prestígio, naquelas condições de produção de seu discurso: “Victor, em nenhum momento eu disse que
quero um castigo cruel para o criminoso. Por favor, não coloque “palavras em minha boca”. Não há nada de
cruel em defender a pena de prisão para facínoras”.
47

Ressalta-se, todavia, que a humanização da pena, sentido não assumido pelos


orkuteiros, é uma tentativa dos magistrados em encontrar novas soluções penais, objetivando
limitar as privações de liberdade para crimes classificados como máximos, tendo em vista que
o sistema prisional não tem se mostrado eficaz na ressocialização do indivíduo infrator. A
possibilidade de penas alternativas é bastante criticada na comunidade virtual, conforme
discurso de André, de 22.05.2006, principalmente porque há a defesa das penas de privação
perpétua de liberdade e de morte.
Tal entendimento de direito como elemento moral, baseado, por vezes, na tradição,
influência do posicionamento romano sobre a temática, filia o membro da comunidade à ideia
de que o direito é indicação de como se deve atuar em sociedade, resultando no conceito mais
aceito atualmente pelos juristas, ou seja, como uma norma, uma regra de conduta. Daí a
afirmação de que a experiência jurídica é normativa.
Todavia, outro problema surge ao se conceber o direito dessa maneira: a pluralidade
do mundo normativo. A moral também apresenta regras de conduta, a exemplo de “os filhos
não devem falar mal de suas mães”29 que, como o direito, “[...] tem a finalidade de influenciar
o comportamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir as ações dos indivíduos e dos grupos
rumo a certos objetivos ao invés de rumo a outros [...]” (BOBBIO, 2001, p. 26); dessa
maneira, o direito enquanto instrumento comportamental é o sentido basilar que constrói a
comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”, mesmo quando os sentidos
expressos na comunidade virtual tendem a filiar-se à ideia de inerência dos direitos humanos,
como explicitado no discurso: “se os direitos são para os humanos, todo ser humano merece
ter direitos. Vocês querem tirar os direitos de quem não se comportou como deveria”30.
Assim, na contramão do sentido-base que constitui a comunidade do Orkut analisada, os
teóricos afirmam que os direitos humanos nada têm a ver com aspectos naturais do homem e
da sua compreensão enquanto indivíduo da natureza. Para construir esse sentido, o homem é
pensado a partir de sua inserção em uma coletividade social, sendo, portanto, o direito,
entendido enquanto fenômeno social. Dessa forma, em palavras de Reale (2002, p. 59), o
direito “[...] é a ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem
comum”, ou seja, uma “composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos”.
Portanto, também para os cientistas jurídicos, o direito tem como objetivo precípuo tutelar

29
Lembremo-nos que a moral ocidental é basicamente construída a partir do pensamento judaico-cristão. A
norma acima posta, por exemplo, é um pensamento popular resultante do mandamento católico “Honrai vosso
pai e vossa mãe.”.
30
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
48

comportamentos, estando pressuposto em cada um deles, modificando, assim, a sociedade que


os adota.
Em relação à finalidade do direito, Bobbio (2004) também observa que ele deve
impedir os malefícios (para os cidadãos comuns) bem como os benefícios (para exclusivo
usufruto) dos poderes, pois os direitos, sobretudo aqueles denominados como humanos, visam
alterar estados de transgressão na sociedade, ou melhor, estimular comportamentos,
estabelecendo liberdades e atendendo às demandas sociais dos indivíduos. Referente a essa
função, apresenta-se outra problemática na concepção de direitos humanos por parte dos
sujeitos da comunidade. Essas demandas sociais são compreendidas de maneira diferenciada a
depender de como o indivíduo concebe o ser humano, ou seja, a partir de suas filiações
ideológicas. Podemos afirmar que a correção desses comportamentos é, por vezes, pensada a
partir da eliminação dos indivíduos que praticam esses atos condenados pela sociedade,
afinal, segundo recomendação dos internautas, “quando um membro gangrena, ele é
amputado... Então se um membro da sociedade não se reabilita, acabem com ele, pois assim
como um membro gangrenado, se ele não for cortado, posteriormente o corpo (Brazil) poderá
31
morrer de infecção” , evidenciando inclusive o entendimento de sociedade enquanto um
corpo biológico. Caso o sujeito seja pensado como um ente social, suas atitudes, boas ou más,
são entendidas como consequências da sociedade que o forjou, passando a ser, a sociedade, a
grande culpada por esses delitos e, por isso, ela deve ser o maior alvo de transformação. Desta
forma, “a solução para a criminalidade são políticas sociais e não o endurecimento da pena”32.
Essa diversidade no modo de conceber o direito dificulta o estabelecimento, na
comunidade do Orkut, de um limite claro entre essa noção e a de moral, pois segundo Bobbio
(2004), a segunda, ainda influenciada pelo Cristianismo, no Ocidente, tem como alvo as
hostilidades naturais e oriundas da relação inter-humana, além de ter, na maioria dos casos,
como figura deôntica, o dever; o direito, por sua vez, tem a função de “[...] comprimir, não a
de liberar, a de restringir, não a de ampliar, os espaços de liberdade [...]” (BOBBIO, 2004, p.
51), isso devido ao princípio de igualdade que estabelece que os direitos sociais e de liberdade
devem ser atribuídos a todos e na mesma medida, além de que, para alguns teóricos, este tem
relação com o Estado. Como os dois sentidos concorrem igualmente, na comunidade, para
compor a noção de direito, podemos afirmar que entre eles estabelece-se uma relação
sinonímica.

31
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
32
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
49

Um aspecto que ratifica a natureza sinonímica da relação entre moral e direito na


comunidade é o fato de ela não atender à distinção estabelecida, sobretudo por jusnaturalistas,
conforme Bobbio (2001), a partir do binômio bem/mal, no qual a moral é concebida como
obrigatoriedade positiva (fazer o bem a outrem) e o direito enquanto obrigatoriedade negativa
(não fazer o mal a outrem). Com isso, a ação relativa à moral passa a ser o comando e ao
direito, a proibição. Na comunidade do Orkut ocorre a utilização desse binômio apenas para
caracterizar as pessoas, como podemos observar na autorreflexão de „Victor-San‟, no tópico
“Seletividade do sistema penal”, cujo fragmento está abaixo posto, definindo-as como
merecedoras ou não dos direitos humanos, conforme sua conduta, embora nem sempre tal
atitude seja legitimada no seio do tópico. A tipificação das obrigatoriedades normativas,
portanto a sua classificação somente nas modalidades normativas comando ou proibição,
também não aparece na “cidade azul”, pois o direito não é visto como obrigatoriedade e sim
apenas como benefício, uma faculdade concernente a humanos direitos, ou seja, os humanos
propriamente ditos. Há, todavia, menções, nas discussões, sobre fazer o bem ao próximo, uma
influência do discurso cristão.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos
direitos”.

Essa dicotomia comando X proibição no estabelecimento das especificidades da moral


e do direito nos parece falaciosa, mesmo fora do Orkut, uma vez que o direito à associação
sindical, por exemplo, não está presente na Constituição Federal, no caput do Artigo 8° (“É
livre a associação profissional ou sindical”) e incisos, na forma de proibição33, existindo essa
modalidade apenas no inciso II que limita o número de organizações sindicais para defesa dos
trabalhadores, e no inciso VIII, que impede a demissão de trabalhador em candidatura ou em
exercício de cargo sindical. No mesmo artigo, há também normas de comando (“É obrigatória
a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho” – inciso V), levando-nos
a crer que o direito apresenta modalidades normativas diversas, como a obrigação e a
permissão, negativa ou positiva, além da proibição.
Outrossim, o direito é categorizado não apenas como norma de conduta, o que gera
essa confusão com a moral, mas também normas de estrutura ou de competências que

33
Lembramos que o direito trazido aqui está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo
23, inciso IV: “Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus
interesses”.
50

estabelecem “[...] as condições e os procedimentos através dos quais emanam normas de


conduta válidas [...]” (BOBBIO, 1995, p. 33), a exemplo de quem tem competência para
legislar ou aplicar punições. Os direitos humanos, na comunidade do ciberespaço, podem,
então, ser caracterizados também como normas de competência, sentido perceptível em
discussões, no Orkut, a respeito da “justiça feita com as próprias mãos”, atitude defendida em
discursos como o de „Vi‟, a seguir, do tópico “Morte estupenda de um estuprador”. Nesse
caso, compreende-se a legitimidade de aplicação penal como atribuída a qualquer indivíduo
lesado por outrem, haja vista que aquele que é legitimado, no ordenamento oficial, para fazer
justiça, ou seja, o Estado, não consegue atender às expectativas dos membros da sociedade,
por causa da impunidade, compreendida por eles não apenas como a não aplicação de pena
prevista em lei, mas também como ineficácia da legislação penal em vigor.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.

O entendimento dos jusnaturalistas acima posto, ou seja, o direito enquanto norma de


proibição, a nosso ver, só é possível se o pensarmos enquanto norma com origem única: o
Estado, teoria conhecida como estatalista do direito. Nela, o Estado moderno, formado pós-
Renascimento, é a fonte da norma jurídica. Embora na comunidade do Orkut, como dissemos,
não haja a categorização do direito somente nessa modalidade normativa, é possível destacar
o Estado como um dos atores sociais mais criticados pelos membros, o que indica que os
Direitos Humanos são entendidos principalmente a partir desse prisma. Mas para afirmamos
que, no Orkut, o Estado, por vezes, é considerado fonte única do direito, é necessário
concebê-lo como totalitarista, pois nesses regimes o Estado emana, com mais regularidade,
normas de proibição e, os cidadãos que a ele defendem, acreditam em sua superioridade,
posicionamento assumido por Eder, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, ao
interpretar os magistrados como seres experientes e dotados de exclusiva competência para
decidir quanto à vida do ser humano, quanto à pena de morte, como podemos observar no
fragmento destacado a seguir.
51

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos” – grifo nosso.

O sentido materializado por Eder no fragmento anterior apresenta uma problemática,


que tenta ser solucionada pelos internautas a partir da elaboração da norma da pena de morte e
da defesa da aplicação da “justiça com as próprias mãos”: retira do direito a característica de
ser um fenômeno social e, com isso, atender demandas da sociedade, posto que estas devam
ser solucionadas também no seio do grupo social, independente do aparelho estatal. Podemos
ilustrar a atuação do grupo na solução de seus problemas com uma discussão também
presente no interior da ciência jurídica: o direito consuetudinário34, compreendido como
costumes jurídicos não legitimados oficialmente35 por organismos especializados, mas que,
surgidos da consciência popular, têm o status de obrigatoriedade. Não existe nenhuma
legislação que estabeleça a necessidade de ordenar-se em fila nos bancos ou supermercados,
por exemplo, mas o costume social lê essa ação como lei.
Uma norma não escrita é tão importante do ponto de vista da organização social que o
Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), dentre outros órgãos, pesquisam o que é
chamado Direito Internacional Humanitário Consuetudinário, que nada mais é do que uma
prática costumeira não-legal36 de um Estado nacional reconhecida, em âmbito internacional,
como obrigação jurídica. O trabalho de Jean-Marie Henckaerts, também da CICV, intitulado
Estudo sobre o direito internacional humanitário consuetudinário: uma contribuição para a
compreensão e respeito do direito dos conflitos armados, após densa pesquisa, listou 161
normas humanitárias consuetudinárias no direito internacional, dentre as quais citamos, a
título de exemplo, as normas 137 e 638, referentes à distinção entre civis e combatentes, que
interessa bastante aos direitos humanos.

34
Indicamos não haver na comunidade analisada tópicos que discutam o direito consuetudinário; todavia há
tópicos que veem no sujeito comum uma possibilidade de intervenção jurídica na sociedade, ainda que
indiretamente, por meio de ações sociais.
35
O que queremos afirmar é que essas normas não estão escritas.
36
No sentido de não-institucionalizado, porém não é ilegal.
37
“As partes num conflito deverão distinguir a todo o tempo as pessoas civis e os combatentes. Os ataques só
poderão ser dirigidos contra os combatentes. Os civis não devem ser atacados.”
52

Embora reconheçamos a presença (e no caso dos direitos humanos, a necessidade para


efetivação, como enunciado no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos39)
do Estado como instância de legitimação, com a assinatura de tratados, como a Declaração de
Viena, de 1993, por exemplo, a existência do direito consuetudinário reitera a ideia de
pluralismo jurídico, por demonstrar que outros ordenamentos, como o internacional e o da
Igreja Católica, por exemplo, também apresentam valor de norma jurídica, bem como os que
surgem da população comum, como as normas de condomínio que, naquela instância, tem
força de lei: nada há na legislação nacional para a proibição de bichos de estimação em
apartamentos, mas o bem comum pode ser invocado e gerar uma norma proibitiva. Além
disso, nos remete a outra questão: o direito enquanto instituição, reiterando a impossibilidade
de aceitação do Estado como fonte única do direito, embora seja uma das principais fontes
jurídicas de uma sociedade, como discutido anteriormente. No que diz respeito aos direitos
humanos, essa institucionalização torna-se ainda mais relevante, pois a proposta vigente
persegue o ideal da universalização, afinal tais direitos nasceram com o objetivo de serem
dirigidos aos homens, independente da sua nacionalidade, havendo, inclusive, a tentativa de
organização de um sistema jurisdicional internacional para julgar questões pertinentes aos
Direitos Humanos, construindo a ideia de que tais direitos devem estar acima dos interesses
exclusivos dos Estados.
Quanto à universalização, cabe ressaltar que, na comunidade analisada nessa
dissertação, as barreiras nacionais não são avaliadas positiva nem negativamente quando, ao
mostrarem-se contrários aos direitos humanos, pelo menos na maneira como a temática é
aplicada no Brasil, os membros não utilizem, na maioria das vezes, a nação como o problema,
mas os comportamentos, como „Victor-San‟ chama a atenção no tópico “Cuidado”, no dia
14.05.2006, posto a seguir. Apesar de os usuários citarem a legislação, sobretudo ao
discutirem a penalidade de morte, o argumento principal é a natureza do indivíduo envolvido
e não o Estado. Parece-nos, então, que a problemática gira em torno do sujeito receptor do
direito e não do direito em si, afinal o nome da comunidade é Direitos Humanos para
Humanos Direitos, não ocorrendo alusão contrária aos direitos e, sim, a um tipo particular de
ser humano, ou seja, à universalização desses direitos, apesar de a comunidade descrever-se
utilizando o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e de alguns de seus

38
“Os civis gozam de proteção contra ataques, salvo se participam diretamente nas hostilidades e enquanto durar
essa participação.”
39
“Considerando ser essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pelo Estado de direito...”.
53

membros (a minoria) não compartilharem integralmente desse posicionamento demonstrando


a aceitação da universalidade, ainda que parcial.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.

Frente a tal aceitação e, observando a necessidade do Estado para efetivar os direitos


humanos, ainda que percebamos, no Orkut, a importância da sociedade civil na promoção e
efetivação dos Direitos Humanos, sentido materializado em discurso de Andrea, à folha 40 e
também por meio de significações que legitimam a independência do sujeito em relação ao
Estado na resolução de suas inquietações jurídicas, como “fazer justiça com as próprias
mãos”, ainda que, para isso, sofra sanções/coações do aparelho estatal, notamos que os
orkuteiros reconhecem que o Estado deve defender e/ou aperfeiçoar a tutela dos DH, como
explica „Victor-San‟ em seu discurso do dia 08.08.2006, abaixo, tanto em número de direitos
quanto em qualidade, no interior do território nacional, como na educação, saúde, moradia e
lazer, direitos presentes nos artigos 24 e 25 da Declaração Universal, e elencados por
Anjinho, em fragmento a seguir.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Tal reconhecimento é importante, pois a história dos direitos humanos, que é discutida
a posteriori, está tão atrelada ao Estado que, segundo Bobbio (2004), suas três fases40 estão a
ele intimamente ligadas, como se os Direitos Humanos objetivassem esse elemento e não ao
ser humano, o que também contribui para invalidar a tese desse componente da jurisprudência
enquanto direito natural. As suas fases estão assim divididas: direito à liberdade (limitação do
poder DO Estado); direitos políticos (liberdade NO Estado); direitos sociais (liberdade
ATRAVÉS do Estado). Dentre esses, os direitos sociais são os mais lembrados na
comunidade, indicando que os membros acreditam no Estado como conferidor de bem-estar

40
A história dos direitos humanos está dividida em gerações, como veremos. Essa subdivisão em fases tem como
função analisar a relação entre direitos humanos, sociedade e o Estado.
54

social. Reitera-se que, quanto aos direitos em si, os assuntos preferenciais são aqueles
relativos ao cerceamento da vida, como pena de morte e aborto.
Com vistas ao pluralismo jurídico, não se pode pensar em direito fora da ordem social,
da coletividade e da sociedade organizada enquanto unidade. Temos, então, os princípios que
norteiam a concepção de direito como instituição, ou seja, oriundo de uma sociedade
ordenada e organizada nem sempre pelo Estado. Todavia, tal ideia pode levar à supressão da
figura do indivíduo devido ao entendimento de que o direito não existe para atender suas
vontades particulares, e sim para ordenar a sociedade, a instituição. A esse respeito cabe uma
observação: uma das temáticas mais discutidas na comunidade, como já salientamos, é a
penalidade por morte. Segundo Lafer (2004), ela é resultante da concepção orgânica da
sociedade, quer dizer, pensada somente a partir da coletividade hierarquicamente superior ao
indivíduo, tal qual no Orkut, no tópico “Seletividade do Sistema Penal”. Neste, é debatida a
origem da população prisional e a desigualdade nas cadeias, tendo como ponto de partida o
levantamento realizado por García-Pablos no livro Sistemas penais na América Latina 41.
A discussão ocorre, basicamente, entre três integrantes da comunidade do Orkut que,
dedicados a analisar se o crime no Brasil tem fundamento sistêmico, social ou se é mera
escolha do indivíduo, reiteram, ainda que indiretamente e com algumas ressalvas, como a
defesa de oferta de segunda chance ao infrator e trabalho para autossustento em regime
prisional pode ser benéfica (ou não) à sociedade, bem como a necessidade (ou não) da pena de
morte no país, pois o sujeito delinquente é uma doença da sociedade e, como tal, deve ser
banido. Comparado a um câncer, no discurso de „Victor-San‟, a seguir, na afirmação de que o
próprio organismo gera a doença, em uma tentativa de metaforizar a culpa da sociedade na
formação de um bandido, o crime e, por conseguinte, o criminoso, embora nesse tópico sejam
salientadas questões sociais e a prisão como modalidade punitiva possível, se reformulada,
deve ser retirado do corpo social, ou seja, mutilada a parte necrosada, como o seio de uma
mulher acometida por câncer de mama. Assim, a coletividade e seus interesses são concebidos
(e reiterados) como ente superior ao indivíduo que a compõe.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

41
Informamos que, na comunidade do Orkut, não foram mencionadas a referência e a edição utilizadas pelos
membros para abrir as discussões sobre o sistema prisional.
55

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Em contrapartida, há também na ciência jurídica a concepção de que o indivíduo tem


papel de destaque, como na teoria da relação intersubjetiva, pois a prioridade do sujeito são os
seus direitos, enquanto que, para o Estado, a prioridade são os deveres em relação a esses
indivíduos, devendo buscar o progresso destes acima de qualquer coisa, configurando a
justiça como espaço de satisfação das necessidades pessoais dos mesmos. Assim, o Estado
não pode desistir de nenhum de seus membros e, por conta disso, ao contrário do desejo de
boa parte dos integrantes da comunidade da “cidade azul”, invalida a pena de morte.
Afirmamos, portanto, que a concepção de sociedade a partir do indivíduo é a adotada pelos
teóricos e defensores dos direitos humanos, sendo observada tanto no corpo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (“com o objetivo de que cada indivíduo [...] se esforce,
através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades”), tanto
no modo de se entender a relação entre o indivíduo e os DH, devendo o primeiro ser, além de
receptor, um dos responsáveis pela promoção, a todos os seres humanos, desses direitos
fundamentais, inalienáveis e invioláveis, pois o homem é concebido como sendo autônomo
em relação aos outros, porém responsável por eles, já que deve tratar os demais com
fraternidade, com o mesmo grau de dignidade e são igualmente morais, já que essas são
capacidades do ser humano. O direito, então, nessa perspectiva, se constitui

[...] somente em relação a outros sujeitos, isto é, aos seus comportamentos, positivos
ou negativos, complementares ao comportamento do sujeito de quem se trata, na
medida em que eles tenham o direito de exigir-lhe um determinado comportamento
ou, ao contrário, um dever complementar a um direito seu, ou pelo menos a
obrigação de abster-se de impedir esse comportamento (LEVI, 1953, p. 27 apud
BOBBIO, 2001, p. 41 – grifos nossos)

Na comunidade do Orkut, embora haja defensores dos direitos humanos e, com isso,
valorizem mais o indivíduo frente à sociedade, sua visão ainda está atrelada ao sentido de
coletividade como um ser superior e não como um somatório de individualidades. O
indivíduo ainda não é visto como parte de uma sociedade que, para funcionar bem, precisa
que todos os seus membros sejam tratados como iguais, independente do seu comportamento,
principalmente porque valoração comportamental é cultural e, portanto, histórica, varia
conforme o tempo. O sujeito, então, ainda é visto, no Orkut, sob o véu de sua atuação na
sociedade e, por isso, o direito passa a ser mérito.
56

Contrário ao direito como mérito, o ponto de vista da instituição possibilita entender as


regras supraestatais enquanto norma jurídica, haja vista que elas ordenam o grupo social que
as origina. Além disso, permite compreender que toda sociedade é jurídica, e não apenas o
Estado, embora os teóricos aceitem que existem agrupamentos humanos que não se
configuram como instituições, ou seja, não têm ordenamento próprio. Ao analisar a
comunidade do Orkut, vemos que, em alguns aspectos, ela se configura enquanto instituição,
pois apresenta regras próprias, com poder de sanção (as expulsões, por exemplo) e, embora
discursivamente legitimem determinadas práticas e no seio da comunidade as reconheçam
enquanto norma, os integrantes não podem convertê-las em ordenamento fora daquele espaço,
tal como a pena de morte ou a justiça com as próprias mãos. Com isso, podemos afirmar que a
norma jurídica gera instituições, a partir do estabelecimento de suas finalidades, dos meios
apropriados para atingir esses fins e das funções específicas de cada membro do grupo para
que se constitua uma regulamentação estável42. No Orkut, nas normas que acabamos de fazer
menção, inexistem os meios para validá-las na sociedade.
Chega-se à conclusão de que o direito é uma norma jurídica institucionalizada que tem
o poder de obrigar os membros do grupo que o gerou a seguir determinados comportamentos.
Isso implica que, no caso do Orkut, as regras tacitamente expressas pelo moderador devem ser
cumpridas por terem força de lei. Esse conjunto de leis e regulamentos a que comumente
chamamos direito recebe, no interior da jurisprudência, a designação de proposições
prescritivas e o direito, portanto, concebido como imperativos que atribuem obrigações e
direitos subjetivos (obriga/permite o sujeito a FAZER ou NÃO FAZER algo), além de ser
coercitivo.
Essa visão do direito nos é sobremaneira importante por nos conduzir a uma relevante
condição: a ideia de conjunto, mas não a partir da concepção orgânica de sociedade. Assim, o
direito não deve ser pensado como uma norma simplesmente, mas um conjunto sistêmico de
normas jurídicas, um ordenamento. Mas sobre isso só nos interessa um aspecto: os direitos
humanos são uma categoria sistêmica? É, portanto, uma disciplina jurídica? A resposta a essas
perguntas é necessária para percebermos se, na comunidade do Orkut, os direitos humanos
são tratados como elemento jurídico ou moral.
Ao iniciarmos essa seção, colocamos a importância de se discutir o conceito de direito.
Ao obtermos resposta, ficamos tentados a encaixar tal discussão na categoria dos direitos

42
Bobbio (2001) retifica essa informação, pois ao contrário de institucionalistas como Santi Romano, pensa que
a norma é anterior à instituição, organizando, assim, a sociedade. Na teoria da instituição, é a sociedade
organizada que precede a norma.
57

humanos. Vimos que, para caracterizar uma norma como jurídica, deve-se aplicar o princípio
da coercibilidade, ou seja, possibilidade de coagir os indivíduos, haja vista que, segundo
Bobbio (1995, p. 26), “[...] jurídica é a norma seguida da convicção ou crença na sua
obrigatoriedade”. A partir desse entendimento e pensando na comunidade virtual analisada
nessa dissertação, é possível afirmar que os direitos humanos não são qualificados enquanto
norma jurídica, sendo, então, entendidos enquanto normas morais.
Para inserir os direitos humanos enquanto categoria de modalidade jurídica seria
necessário entendê-lo, conforme dissemos, como ordenamento. Para isso, deve ser visto como
um sistema complexo e organizado de normas e como unidade, ou melhor, a partir da relação
entre as normas componentes e que não podem ser incompatíveis. Entretanto, para Bobbio
(2005), os direitos humanos contêm direitos antinômicos, ou seja, que apresentam relações de
incompatibilidade (uma norma ordena algo ao mesmo tempo em que outra norma proíbe a
mesma coisa). Em relação aos direitos humanos, podemos citar o Artigo 19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos43, expresso na constituição brasileira no artigo 5º, inciso
IV44: o fato de condicionar a expressão do pensamento à proibição de omissão de autoria pode
tornar esse direito não tão livre assim, pois o sujeito pode se sentir acuado e, com isso, não
exercer livremente o seu direito 45.
Ademais, cremos que os direitos humanos não se constituem enquanto categoria
unitária. Se tomarmos a DUDH, que influenciou diversas Cartas Magnas, inclusive a
brasileira, perceberemos que seus artigos encontram-se diluídos em várias disciplinas
jurídicas, embora muitos dos seus direitos estejam refletidos em quatro capítulos da
constituição, do título Direitos e garantias fundamentais: dos direitos e deveres individuais e
coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos. Essa concentração (os
quatro capítulos abarcam os artigos 5 a 16) não atribui unidade à temática. Até porque, no
Orkut, eles não são vistos interligados: ou se discute o direito à vida ou se debate a pena de
morte, mas sem relação entre eles. Reiteramos que os temas preferenciais na comunidade
analisada estão voltados ao Direito Penal (por causa da discussão sobre pena de morte), já
constituído enquanto sistema, disciplina. Desta forma, questiona-se se poderia ser também
qualificado enquanto sistema de direitos humanos.

43
“Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão...”.
44
“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
45
Na comunidade do Orkut, acontece o mesmo fato: apesar da possibilidade de livre expressão do pensamento,
percebemos que alguns membros são suspensos ou expulsos se postarem algo que não apresente relação de
simetria com os sentidos do moderador, representante dos “cidadãos” da cidade azul, como demonstramos na
seção anterior.
58

Além disso, se mais uma vez tomarmos os documentos internacionais relativos aos
direitos humanos, perceberemos que uma parte considerável não tem força para obrigar os
países assinantes a segui-los. Para Bobbio (2005), eles são postos de modo programático, ou
seja, sem garantia real de efetivação, dependentes da vontade do Estado de convertê-los. Os
direitos humanos, na verdade, são intenções de como agir com o outro e, por isso, Bobbio
(2004) acredita ser mais adequado o uso do termo exigências. Entendemos ser essa a melhor
palavra para definir a expressão na comunidade do Orkut analisada nessa dissertação: Direitos
Humanos entendidos enquanto exigências morais para intervenção jurídica e estatal a fim de
resguardar o indivíduo que segue as regras jurídicas e morais pré-estabelecidas na sociedade.

3.2.2 O homem, quem é ele?

Indicamos anteriormente a necessidade de se pensar o homem como parte do processo


de compreensão dos direitos humanos. Para isso, seguiremos o pensamento de Francis Wolff
(2009) que, apesar de salientar a existência de inúmeras concepções do homem, como
também destaca Battista Mondin (1980), seleciona apenas quatro com base na importância
destas para a história das ciências e pelas suas dimensões prática, moral e política. Esses
critérios nos parecem relevantes para a reflexão sobre a temática dos direitos humanos, pois
estes se desenvolvem conforme as necessidades dos homens, que são históricas, e caminham
lado a lado com a ciência, forjando-a e/ou sendo por ela forjadas. Este pensamento permite
ratificar a ideia de que os direitos humanos não são apenas aqueles presentes nos trinta artigos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas são históricos, “nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO, 2004, p. 5).
As concepções analisadas por Wolff (2009) influenciaram bastante os estudos
filosóficos e permitiram o surgimento de um grupo de ciências: em Aristóteles, tem-se a
influência para o nascimento da lógica e da cosmologia, além de ser, segundo Abbagnano
(2007, p. 597), “[...] a única definição que penetrou na cultura comum”; em Descartes, as
ciências físico-matemáticas; o ponto de vista do século XIX, devido à influência das “feridas
narcísicas”, permite a emergência das ciências humanas e, no século XX, tem-se o
aparecimento das ciências cognitivistas. Veremos, à luz do pensamento de Wolff (2009),
como cada uma trabalha a ideia de homem, qual a sua contribuição para os direitos humanos e
qual a relação com os sentidos emergidos na comunidade do Orkut aqui analisada.
Um elemento que confere destaque ao pensamento aristotélico e que influenciou o
pensamento científico por um longo período e que perpassa as significações sobre direitos
59

humanos é a ideia da existência de uma essência para cada coisa. A partir disso, Aristóteles
concebe o homem como um ser vivo que apresenta uma diferença específica em relação aos
demais seres vivos. Assim, a essência completa de um ser é o somatório de seu gênero, neste
caso, ser vivo animal, com a sua diferença específica, ou seja, “[...] não apenas uma
característica própria do homem, mas também esse núcleo universal e necessário que permita
explicar as outras propriedades do homem [...]” (WOLFF, 2009, p. 39). De uma maneira ou
de outra, filiados a sentidos diferentes, os integrantes da comunidade virtual advogam em
favor de alguma característica que seja inerente à condição de ser humano. Desse modo,
buscam um núcleo único que constitua o homem e que justifique os seus posicionamentos
sobre direitos humanos, caminhando todos para a universalidade, não dos direitos,
dependentes, em geral, do comportamento, mas do homem.
Assim, tanto o livre-arbítrio, influência religiosa, quanto o fato de o homem ser um
ente social e, por isso, sofrer influência do meio, são características que constroem o núcleo
universal que explica, para os orkuteiros, o que é o ser humano. Indicamos apenas que esses
sentidos nem sempre emergem isoladamente, principalmente porque ambos estão
relacionados ao aspecto comportamental do homem. Com isso, os direitos humanos são
relativizados com mais facilidade em discursos de sujeitos que veem o homem sob o prisma
do livre-arbítrio, o que não significa que todos eles preguem penas perpétuas e de morte, haja
vista que o livre-arbítrio não será concebido da mesma maneira pelos membros da
comunidade, ora visto como algo determinado pela natureza do indivíduo, ora como
consequência de aspectos sociais como pode ser verificado a seguir.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
60

O entendimento de homem como um ser social influencia, por exemplo, na


comunidade em estudo, a discussão sobre o aborto, na qual aspectos históricos e políticos são
tomados como argumentos por um dos sujeitos para desacreditá-lo, da mesma forma que
outros sujeitos os utilizam para defendê-lo, sendo que o aborto está relacionado ao mais
elementar direito humano: a vida. Isso mostra que, para alguns membros da comunidade, o ser
humano é construído a partir da tríade razão-linguagem-política, afinal o homem é visto como
um ser diferenciado, dotado de história, ética e moral. A pergunta posta, com ironia, por um
dos sujeitos no fórum “Aborto”, a saber: “o ser humano é algo especial ou apenas um animal,
carne e osso?”, demonstra a separação estabelecida entre o homem e os demais seres. Seu
direito à vida não diz respeito simplesmente à alimentação, como os animais, mas refere-se,
principalmente, à sua concepção, participação e influência políticas, como „André‟ no referido
fórum expõe em seu discurso, posto a seguir, à maneira como concebe politicamente alguns
elementos-chave (“o direito à vida. Sem qualitativos, bem digamos „digna‟, porque aí parte-se
para as rais (sic) do subjetivismo. O que é digno para um não é para outro”) e como se
relaciona ideologicamente com os outros integrantes da sociedade, como se constroem os
embates de poder, a exemplo do sentido materializado em discurso de „André‟ no referido
scrap, que conecta o tema „aborto‟ à ideologia de esquerda.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

O que diferenciaria o homem dos demais seres vivos, então, na comunidade e também
na visão de Aristóteles, segundo Wolff (2009), seria a sua capacidade de linguagem e de
razão, bem como o seu caráter político. Tais características são também enunciadas no Artigo
1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no qual os homens são definidos como
“dotados de razão e consciência”, explicitando uma influência.
Embora a concepção aristotélica de homem, de início, não nos pareça problemática e
tenha relação com a temática nessa dissertação desenvolvida e com os sentidos presentes na
comunidade do Orkut, alguns pontos que a edificam conflitam com a proposta atual de
direitos humanos. Para Aristóteles, como supracitado, o homem é um ser vivo animal dotado
de razão e consciência, apresentando, portanto, uma essência. Entretanto, esse elemento é
concebido como sendo fixo e o homem como ocupante de um lugar e uma função em um
61

universo hierarquizado. Isso implicaria o homem não ser um ente histórico, sendo
compreendido apenas a partir do tempo presente, já que o passado e o futuro não
apresentariam, para ele, relevância. Em relação aos direitos humanos, as possibilidades de o
homem ter uma essência imutável levariam à estabilidade desses direitos, bem como por não
promover diferenças entre um ser humano e outro (já que as diferenças são resultantes do
percurso histórico, exceto aquelas estritamente de cunho natural, a exemplo das biológicas
entre um homem e uma mulher) admitiria a afirmação de que os direitos humanos têm um
fundamento absoluto, ou melhor, um motivo único e incontestável que justifique sua
existência, o que é sumariamente contestado por Bobbio (2004).
Apesar de em alguns momentos aparecerem divergências de gênero na comunidade,
por exemplo, na afirmação de que as mulheres teriam mais legitimidade para discutir o tema
aborto que os homens, não podemos afirmar que os sujeitos em questão vêem o ser humano
de maneira diferente por conta dessa característica, sobretudo porque, como já afirmamos, o
argumento mais utilizado para discutir direitos humanos e o homem na comunidade é o
comportamento. Para os orkuteiros, assim como para Aristóteles, o ser humano apresenta um
núcleo essencial fixo, embora reconheçam diferenças culturais, religiosas entre os seres.
Todavia, os membros acreditam no transcorrer e evolução da história. Apesar disso, sua
essência – o livre-arbítrio/sociabilidade – existe da mesma forma, em todo ser humano,
independente do período histórico, possibilitando, dessa forma, a emergência de sentidos
como “direitos humanos para humanos direitos”. Reiteramos apenas que nem todos os
integrantes da comunidade do Orkut coadunam com esse sentido, embora sejam minoria. E
mesmo aqueles que estão a ele filiados, não estão no mesmo grau.
Se levarmos em consideração que o ser humano é um ser social, o que não é negado
por Aristóteles, por considerá-lo ser político46, é possível aceitarmos a ideia de sua
pluralidade, haja vista que as comunidades sociais não são iguais e o homem participa de
diversas ao mesmo tempo na sociedade em que está inserido. Ora, se os direitos humanos
surgem das necessidades humanas, há de se considerar que, por serem as sociedades e os
homens plurais, há necessidades diferentes, para além daquelas de origem orgânica, como
beber água. Esta afirmação, de imediato, já nos dirige à pluralidade dos direitos e ao
surgimento, na contemporaneidade, de uma nova demanda de direitos humanos, mais

46
Aristóteles concebe o homem como um “animal cívico”, parte da natureza de um conjunto maior, a Cidade.
Dessa forma, a concepção aristotélica de homem enquanto um ser político diz respeito ao ser humano apresentar
poderes e funções específicas na Cidade, de modo a buscar o bem-estar da comunidade, sua perfeição, por meio
do seu dom inato do discurso e das noções de útil/nocivo, justo/injusto, dentre outras, diferenciando-o dos
demais animais. Para Aristóteles (2006, p.4), “o homem é naturalmente feito para a sociedade política”.
62

especificados, como os destinados aos idosos, por exemplo, que têm necessidades diferentes
das crianças. Ademais, os direitos apresentam estatutos diferentes: os direitos de liberdade
imporão obrigações negativas, a exemplo do artigo IV47 da DUDH; já os sociais, por seu
turno, obrigações positivas, como o artigo X48 do referido documento. Desta forma, não é
possível aceitar que haja uma razão única, uma essência fixa do ser humano que motive os
direitos humanos fora das fronteiras do ciberespaço, pois o homem é heterogêneo, justamente
por caracterizar-se, como dito, um ser social.
Falar de essência, do ponto de vista aristotélico, e relacioná-la aos direitos humanos é
mais uma vez incorrer na categoria dos direitos naturais, o que demonstra não ser, como
salientamos na seção posterior, em relação a essa temática, uma classificação superada,
embora tal superação seja desejada pelos teóricos da ciência jurídica e da Filosofia do Direito.
Bobbio (2004, p. 8) salienta, nesse sentido, que “[...] não existem direitos fundamentais por
natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não
é fundamental em outras épocas e em outras culturas.”.
Para os sujeitos da comunidade, eles vivem em uma sociedade em constante mudança,
como sinaliza „Percival Forever‟ no tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”,
mas compreendem que o estágio histórico em que vivem é estável, seja pela deficiência do
homem no exercício de suas obrigações morais ou porque em um dado momento histórico
determinadas condutas não ofendem a natureza humana, como se a história do homem fosse
a união de inúmeros blocos estáticos, principalmente por filiar o sentido da essência à ideia de
constância. Isso não significa que os sujeitos pensem o direito, sobretudo os direitos humanos,
como algo mutável conforme as necessidades humanas, mas a história como um elemento
cíclico, como adverte „André‟, em scrap a seguir, em que o homem possa sempre evocar
direitos que, no período histórico anterior ele não tinha, mas que já era previsto em algum
discurso, em algum momento.

Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos” – grifo nosso.

47
“Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas”.
48
“Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e púbica por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação
criminal contra ele.
63

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Significar o homem como ser dotado de uma única essência fixa dificulta, na
comunidade virtual, a emergência de sentidos de homem como uma categoria formada por
seres bastante heterogêneos. Estabelecer o livre-arbítrio ou a sociabilidade como
características exclusivas do ser humano, do modo como são concebidas na “cidade azul”, não
confere diversidade a eles, mas leva a uma postura maniqueísta, o homem construído a partir
do binômio bem x mal, e os direitos humanos como prêmio ao bom comportamento. Assim,
para os internautas, existe apenas uma única possibilidade plausível de existência humana,
conforme os moldes costurados pela ética e a moral. As demais possibilidades, em verdade,
seriam anomalias, afastamentos desse núcleo fixo, a ponto de desqualificar determinados
sujeitos como seres humanos. As diferenças aceitáveis, tais como crença religiosa e outras
manifestações culturais não são discutidas, na comunidade, com profundidade, e parece não
afetar a constituição do indivíduo enquanto homem, por não alterar a essência fixa, nem
permitir que os indivíduos afastem-se dela. Reiteramos, portanto, que direcionar os direitos
humanos para os humanos direitos é simplesmente direcioná-los para os humanos, haja vista
os outros seres serem desqualificados como tal, afinal nem nascidos são, gerando
hierarquização entre os homens, como pode ser verificado a seguir.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos” – grifo nosso.

A ânsia pelo estabelecimento de uma essência fixa para o ser humano também é
criticada por Descartes, segundo Wolff (2009), por considerá-la infinita, ou melhor, gerando
infinitas perguntas em efeito cascata. Definir o homem como um ser vivo animal com uma
diferença específica em relação aos demais seres, encaixando-os em classes, implica definir
cada componente dessa definição e, assim, sucessivamente, em um movimento infinito.
Descartes valoriza a metafísica e, por isso, entende que a compreensão das especificidades do
homem deve estar alicerçada na razão pura. A partir da análise metafísica, o ser humano é,
por ele concebido, a partir da expressão “Penso, logo existo!” e, portanto, é compreendido
como um ser pensante, dotado de consciência. O homem, então, não pode pertencer à mesma
64

categoria dos animais, tal qual em Aristóteles, sendo principalmente formado pela substância
pensante e pelo corpo, este último compondo também os demais seres, compreendidos apenas
como matéria homogênea, um corpo mecânico; o homem, por sua vez, é a união de
consciência, sentimento (percepção) e paixão (emoção); é sujeito cognoscente somente da
natureza, e não de si mesmo, por não estar submetido às leis universais naturais (somente o
seu corpo). Aí reside a diferença entre o homem dotado de razão de Aristóteles e o cartesiano:
no primeiro, a racionalidade é uma especificidade animal; no segundo, animal e homem têm
naturezas diversas, sendo que o ser humano é o único dotado de consciência de si.
O pensamento cartesiano influenciou a história dos direitos humanos, como podemos
observar no artigo 1º, da DUDH, ao definir o homem como dotado de consciência. Na
comunidade do Orkut, embora a concepção aristotélica seja a que mais encontre eco, a visão
de Descartes também exerce influência. Em verdade, a concepção de homem dotado de
consciência não está explicitamente posta na comunidade. Esse sentido emerge quando os
sujeitos envolvidos cobram de seus interlocutores uma postura mais consciente, ou seja, o uso
da consciência e de argumentos, frutos da razão, na discussão sobre direitos humanos. Por
estabelecer o binômio homem humano x homem animal, a partir do critério “bom
comportamento”, o conceito de consciência já não é mais o mesmo; foi ressignificado. Para
Descartes, a consciência, razão dotada de clareza, é uma propriedade exclusiva do homem,
enquanto que os animais apresentam apenas racionalidade, sem consciência. Devido à
constante emergência do sentido de que os bandidos são animais, ou piores que eles,
esperava-se que suas ações fossem baseadas no instinto. Mas, embora o sujeito infrator seja
ressignificado como animal e, por isso, aja como tal, ele ainda é um indivíduo dotado de livre-
arbítrio (núcleo fixo, conforme influência da concepção aristotélica), conhece a si mesmo e
suas ações, embora a sua consciência não esteja plenamente “desenvolvida”, o tocante à
maneira como o homem deve viver em sociedade, por isso a expressão “homem animal”.
Tal posicionamento é intrigante não apenas por estabelecer níveis de consciência, mas,
sobretudo, por sua relação com o pensamento de direitos humanos como algo natural. Ora, se
o homem é um ser dotado de consciência, independeria de suas filiações a atribuição de
direitos humanos a ele, afinal é um direito inato à sua condição. Mas não é o que ocorre no
Orkut. Apresenta-se aqui, então, mais uma forma de hierarquização do homem na
comunidade virtual. Não é apenas o bom comportamento que o define, como pode ser
verificado a seguir, mas o seu grau de proximidade com os sentidos desejados/assumidos
pelos grupos hegemônicos da comunidade cibernética. Isso implica dizer que o sentido de
natural não é somente “aquilo proveniente da natureza”, mas um “mix” entre esse sentido e o
65

que é socialmente aceito. Direitos humanos, então, são um direito natural, mas que exige o
crivo, inconsciente e ideológico, dos grupos sociais para ser efetivado como tal, caso contrário
não será caracterizado como humano.

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Essa observação leva a outro ponto que merece destaque quando se pensa a relação
entre a concepção cartesiana de homem e os direitos humanos. Descartes concebe o ser
humano como um sujeito cognoscente da natureza, elevado por constituir-se a partir da
consciência de si e do mundo. Entretanto, o homem, por não ser composto integralmente de
matéria física, não pode conhecer-se completamente, somente aos corpos mecânicos e isso o
dá liberdade para manipulá-los da maneira que lhe convier. Com isso, mesmo que seja
concebido por alguns como ser natural, o homem estaria hierarquicamente situado em uma
posição superior em relação aos outros seres, podendo, por conta disso, usá-los
indiscriminadamente para o seu bem estar e progresso.
É esse direcionamento que os sentidos sobre humanos não-direitos percorrem: por
serem seres inferiores, não dotados de consciência plena, como dissemos, ou seja, sem
consciência do viver em sociedade, mas, reiteramos, possuidores de livre-arbítrio, e, portanto,
apresentam domínio de seus atos, pertenceriam apenas ao domínio do mundo físico e, por
isso, suas vidas seriam manipuláveis, reduzidos à comida de animal, dada a sua inferioridade,
como evidencia „Carolina‟, em postagem a seguir. Filiados a esse sentido, os sujeitos da
comunidade do Orkut podem defender a penalidade de morte.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Entendemos, frente ao que foi dito, que não apenas a igualdade entre os homens, pilar
dos direitos humanos, é maculada com tais sentidos, mas as novas diretrizes dos direitos
humanos que pensam o homem a partir do tempo futuro. Dessa maneira, as gerações
vindouras tornam-se ponto de partida para a construção de novos direitos. As ações do
homem, sobretudo no tocante à construção da dignidade humana, devem ser pautadas no bem
estar de todos os indivíduos, inclusive aqueles que ainda não nasceram. Os homens devem
agir, no saciar de suas necessidades, de maneira equilibrada, intervindo na natureza, mas
66

cônscios de que os bens naturais não são eternos e de que a fauna e a flora não são mera
corporeidade. Com isso, os direitos humanos são pensados atualmente na tentativa de
construir um mundo habitável também para as gerações futuras, sobretudo porque deve-se
assegurar-lhes o seu direito básico: a vida. Dessa forma, direitos ligados à exploração
ambiental49 são a temática mais discutida hoje em dia pelos simpatizantes e defensores dos
direitos humanos. Apesar disso, não encontramos na comunidade do Orkut analisada nessa
dissertação tais sentidos, levando a crer que, para alguns desses sujeitos, o homem teria direito
(natural, inclusive) de explorar a natureza sem limites. Conforme Wolff (2009, p. 63), isso é
concebível porque a visão cartesiana

[...] é a combinação de um dualismo que opõe o homem à natureza com um


reducionismo que coloca todos os seres naturais num mesmo plano, enquanto os
considera como sendo de uma essência completamente diferente da nossa. [...]
Qualquer corpo, seja ele orgânico ou não, é apenas uma coisa. Tudo o que não é a
gente se torna consumível, explorável e destrutível ao nosso bel-prazer.

Como vimos, o homem era concebido como um sujeito capaz de conhecer apenas o
mundo ao seu redor. Isso possibilitou o desenvolvimento das ciências naturais e a exploração
dos bens da natureza para ampliar a qualidade de vida do ser humano. Todavia, como
conceber o homem sem a capacidade de autoconhecimento? As definições aristotélica e
cartesiana, conforme Abbagnano (2007), encaixam-se em um grupo de tentativas filosóficas
de explicar o homem a partir de uma característica ou capacidade suas. Divergindo desse
posicionamento, nas ciências humanas, o homem deixa de ser concebido a partir de Deus ou
de algum elemento isolado, mas exclusivamente a partir dele, de seu conhecimento sobre si
mesmo e de suas relações com o mundo e com os outros. Assim, têm-se as importantes
contribuições de Copérnico, ao demonstrar que a Terra gira ao redor do Sol, com a publicação
de De revolutionibus orbitum caelestium, em 1543; de Charles Darwin e sua obra A origem
49
São constantes na contemporaneidade discursos que associam a construção e defesa da dignidade humana ao
zelo à natureza, à preservação ambiental. Esse pensamento está presente tanto em comunidades do Orkut (“Está
na hora de haver um consenso global em relação aos impactos ambientais, não há tempo para discussões, os
impactos já estão presentes no nosso dia-a-dia, são as temperaturas mais elevadas ou mais baixas, enchentes,
aumento do nível do mar, o mundo é um só e todos seres humanos devem ser responsáveis e cuidar direito do
planeta e nada seria mais justo do que punir igualmente a todos, independentemente do lugar, inclusive como
forma de incentivar os países a mudarem seus hábitos, tanto os desenvolvidos quantos os subdesenvolvidos.
Quando se trata do bem estar global devemos colocar o bem estar da TERRA em primeiro lugar, até porque em
um mundo sujo, poluído estaremos destinados ao nosso fim.” – Comunidade Direito Ambiental) quanto em
trabalhos acadêmicos da área jurídica, como o livro de Tiago Fensterseifer (Direitos fundamentais e proteção
do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado
socioambiental de direito. Livraria do Advogado, 2008), e o trabalho de Patrícia Noll (Direito, tributo e meio
ambiente: a autopoiese da sociedade diante do risco ecológico. Dissertação. (Mestrado em Direito). UCS,
Caxias do Sul, 2008, p. 43): “a tutela normativa ambiental deve operar de modo progressivo no âmbito das
relações jurídicas, a fim de ampliar a qualidade de vida existente hoje e atender a padrões cada vez mais
rigorosos de tutela da dignidade humana, não retrocedendo jamais a um nível de proteção inferior àquele
verificado hoje”.
67

das espécies, de 1859; e de Freud, ao conceber o homem a partir da teoria do recalque, do


inconsciente e, portanto, sem pleno domínio de si. Esses pensamentos têm em comum o fato
de ir de encontro à teoria cartesiana: o homem não é mais o centro do universo 50 e pode
conhecer-se por meio da ciência.
Falar de DH é pôr o homem no centro das discussões, suas necessidades, seus anseios.
Por conta disso, não é possível encontrar no Orkut sentidos sobre o ser humano perfeitamente
afinados com os presentes na tese de Copérnico. A comunidade virtual, por discutir assuntos
relativos aos DH, traz sempre o homem como protagonista do universo. Entretanto, podemos
perceber o entrelaçamento dos posicionamentos dos sujeitos com a teoria copernicana, sua
contribuição para a antropologia, ou seja, a existência do homem não é isolada e pode
apresentar o mesmo valor que outras vidas, desde que o ser humano conviva conforme as
normas estabelecidas pela sociedade, abrindo, assim, em si, uma “ferida narcísica”.
Não afirmamos, entretanto, que, para os orkuteiros, a vida humana seja equivalente a
dos animais, mas que há o reconhecimento da necessidade dos outros seres para a existência
do homem, sendo ele, então, dependente da natureza. Podemos afirmar, então, que, na
comunidade, a vida humana, sobretudo a do humano direito, não é mais concebida
exclusivamente em uma relação de hierarquia com os demais seres, sendo que os internautas,
salientamos, não abolem a ideia de hierarquia do ser humano frente a outras formas de vida.
Outros sentidos, assim, perpassam os discursos desses sujeitos, indicando integração do
homem com a natureza, como salienta Amanda, em discurso a seguir. Entretanto, é
importante reiterar que, na comunidade, nem todo ser humano é qualificado como tal.

Extraído do tópico “Ódio contra o ser humano”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

50
Esses pensadores são muito importantes para a história da construção do conceito de homem, impactando
bastante o modo como o homem se via e concebia o mundo. A teoria copernicana, por exemplo, representa um
divisor de águas na história da humanidade, pois o homem deixa de ser um ser supremo, sendo apenas mais um
dentre tantos no universo, ou seja, o mundo existe sem o homem, sua existência perde peso: “Estamos ou não
estamos num invisível piãozinho chicoteado por um raio de sol, num grãozinho de areia ensandecido, que gira e
gira, sem saber por que, sem jamais chegar a destino algum, como se gostasse de girar assim, para nos fazer
sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e para nos fazer morrer – muitas vezes com a
consciência de ter cometido uma série de pequenas bobagens –, após cinqüenta ou sessenta voltas? Copérnico,
Copérnico, meu caro dom Elígio, arruinou irremediavelmente a humanidade. Agora, aos poucos, já estamos
adaptados à nova concepção de nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada no Universo,
com todas as nossas belas descobertas e invenções.” (PIRANDELLO, 2007. p. 11)
68

A evolução discutida por Charles Darwin, por seu turno, é da ordem da materialidade.
Sem dúvida, no Orkut, não é esse o teor evolutivo que é discutido. Como dissemos, o sentido
de direito, na comunidade, apresenta relações parafrásticas com a moral. Dessa forma, a única
discussão possível é sobre esse tipo de evolução e ela perpassa todos os discursos presentes
no fórum. Reiteramos, todavia, que o debate sobre a “evolução moral” só é possível devido à
emergência dos discursos sobre a evolução das espécies, iniciados por Charles Darwin. Ao
debater se os direitos humanos são universais ou reservados apenas àqueles que apresentam
determinadas características comportamentais, os sujeitos em questão estão, em verdade,
analisando se o ser humano é capaz de evoluir moralmente.
No início desta seção, à folha 41, destacamos o discurso presente no tópico “A
realidade sobre a pena de morte”. Neste, é perceptível que das duas direções semânticas
plausíveis, ou seja, “o homem pode mudar” ou a sua negativa, no Orkut, o primeiro sentido é
o mais latente, como reiterado por Marcelo Garcia, a seguir, sobretudo ao observamos a
denominação da comunidade. Ainda assim, algumas discussões emergem com o intuito de
convencer os interlocutores da capacidade evolutiva moral do ser humano.

Extraído do tópico “A realidade sobre a pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

A maneira como Freud concebe o sujeito também representa uma grande ruptura no
modo como o ser humano vê a si mesmo. O homem passa a ser concebido como um ser
simbólico, atualmente um dos pontos de vista mais valorizados, discutidos, debatidos pela
filosofia contemporânea e por outros campos do saber. Um dos elementos principais da teoria
freudiana, no que diz respeito à discussão dessa seção, é o deslocamento do controle do
sujeito e de suas significações sobre si mesmo e o mundo, de suas mãos para o seu
inconsciente. O homem, então, deixa de dominar o conhecimento que tem de si e do outro e
passa a ser ignorante de si, vivendo na ilusão de que se conhece e domina os seus
pensamentos e ações. Nesse paradigma, há a “[...] onipotência do „simbólico‟, do inconsciente
69

representativo, da cultura em oposição à natureza ou do „social‟ em oposição ao biológico


[...]” (WOLFF, 2009, p. 51).
Na comunidade analisada, esse aspecto é fundamental devido aos fóruns que debatem
a pena de morte ou a motivação para a criminalidade, como se questiona „Victor-San‟, em
scrap a seguir: somos seres sociais, como entendia o pai da Psicanálise, constituídos através
do Outro, ou tudo em nós é inato? Essa relação entre os sentidos sobre direitos humanos e o
inconsciente, mediada pela ideologia, associação presente na Análise do Discurso
pecheuxtiana, base teórica dessa dissertação, é alvo de discussão na seção posterior, pois
embora não esteja explícita nos discursos do Orkut, principalmente por se tratar de aspectos
teóricos de um dispositivo de interpretação e não estar diretamente relacionada à temática que
motiva a existência da comunidade virtual, toca todas as significações nela emergidas,
sobretudo porque os sentidos para uma única palavra são o combustível que alimentará os
debates: responsabilidade.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

A oposição entre natureza e cultura, social e biológico presente no paradigma


freudiano nos mostra que os direitos humanos podem ser pensados não apenas como aqueles
que visam a supressão/resolução das necessidades biológicas do homem, pois “[...] em
oposição à necessidade animal, biológica, como a fome, a sede ou o cio, que se esgotam na
possessão do seu objeto e na sua satisfação, há o desejo propriamente humano, indefinido,
insaciado, recalcado, sublimado, que volta sob formas deslocadas, condensadas, simbólicas
[...]” (WOLFF, 2009, p. 49), nem mesmo dizem respeito apenas a questões que permeiam o
Direito Penal, como salienta „Penélope Dovi‟, em fragmento do tópico “Clichês pseudo-
humanistas”, posto a seguir. Então, põem-se aqui duas diferenças entre o ponto de vista
cartesiano e o das ciências humanas, embora ambas acreditem que as necessidades dos
homens, portanto seus direitos, também estejam além das questões biológicas: se os humanos
são consciência/pensamento, tal como na visão de Descartes, suas necessidades estão a ela
70

relacionadas; se os homens não têm domínio de si, suas necessidades, ainda que
inconscientes, relacionam-se à saciedade dos desejos e conhecimento próprio.

Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos
direitos”.

O paradigma cognitivista encaixa-se bem nas discussões travadas na comunidade


sobre direitos humanos. A tentativa de compreensão das motivações para a criminalidade,
além da indicação de necessidade dos membros em atribuir responsabilidade aos sujeitos, nos
direciona à dicotomia inatismo/natureza x social. Algumas significações na comunidade estão
filiadas à criminalidade como desvio natural do indivíduo, como se fora uma má formação,
desqualificando-o como ser humano. Todavia, o entendimento de que o crime é também fruto
dos problemas sociais da sociedade contemporânea nos permite afirmar que o homem é
concebido não apenas como possuidor de características naturais, ou seja, ele não é somente
um dos integrantes da natureza, como queria Aristóteles, mas é também constituído pela
cultura, entendida como veículo de transmissão de conhecimentos e práticas sociais. Esse é o
modo de conceber o homem das ciências cognitivistas: ele é um ser natural, mas também
social, cultural, dotado de inteligência e com capacidade de evoluir, sobretudo os seus dotes
cognitivos; o pensamento e a linguagem são seus principais atributos.
A partir desse ponto de vista, os direitos humanos podem ser concebidos como aqueles
que atendem às necessidades tanto biológicas quanto sociais do homem. Por considerá-lo um
ser natural como qualquer outro, este paradigma, surgido em fins do século XX, é classificado
como naturalista. Diferencia-se do de Aristóteles por não aceitar o fixismo da essência e
adotar o evolucionismo como base teórica. Como dissemos anteriormente, na comunidade
virtual a evolução é discutida a partir da moral. Interessante observarmos, no discurso a
seguir, de „Karla Felix‟, a compreensão do que vem a ser evolução moral. Assim, a assunção
da ação de perdoar caracteriza um sujeito evoluído (embora não haja indícios, na comunidade
virtual, de que essa característica faça do sujeito um humano direito, digno dos direitos
humanos), o que indica a evolução como a assunção dos postulados da Igreja Católica pelos
sujeitos, pois aqueles representariam a essência do ser humano. Dessa forma, a evolução e o
consequente amadurecimento do homem são dependentes da instituição religiosa, na qual o
homem encontra-se diluído.
71

Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de DH?”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Apesar de o naturalismo evolucionista fixar-se no pensamento, não podemos afirmar


que o modo de conceber a evolução pelos sujeitos do Orkut e pela ciência seja a mesma,
principalmente porque, na “cidade azul”, esse amadurecimento encontra-se no nível dos
sentidos produzidos pelos sujeitos e, no cognitivismo, a preocupação está no processo de
produção dos sentidos, na estrutura material do pensamento. Com isso, afirmamos que o
cognitivismo estudará o homem a partir de sua capacidade mental, ou melhor, “[...] todo
sistema de aquisição, de conservação ou de uso dos conhecimentos [...]” (WOLFF, 2009, p.
52), sendo compreendido não como espécie e sim a partir da noção mendeliana de população,
ou seja, compatíveis, mas com diferenças individuais, ainda conforme Wolff.
Este ponto de vista opõe-se à concepção cartesiana de homem por não crer que ele seja
o único ser consciente. As pesquisas cognitivistas, que têm por modelo o cérebro humano e
entendem que a linguagem é a única propriedade realmente humana, por utilizar sinais
linguísticos limitados para uma infinita capacidade de engendramento de combinações, o que
nos lembra a teoria chomskyana de linguagem, demonstram que alguns animais também
apresentam racionalidade, como os chimpanzés. Desta maneira, os fenômenos mentais são
tratados enquanto fenômenos naturais. Ademais, contra o fixismo aristotélico, em termos de
essência, os cognitivistas trabalham com o método comparativo que, ao analisar
características socioculturais e naturais de diversas espécies, possibilitou a aproximação entre
seres aparentemente diferentes, a exemplo dos homens e os macacos ou os ratos. Com este
método, demonstram que não há separação rígida entre o físico e o mental, pois a evolução
genética do cérebro e a evolução cognitiva do ser humano são coetâneas.
Um dos mais relevantes pontos de intersecção entre a concepção cognitivista sobre o
homem e as significações presentes na comunidade do Orkut é a aproximação entre homens e
animais, o que pode contribuir, pelo menos nos discursos na “cidade azul”, para a reiteração
de direitos humanos enquanto direitos naturais, devido à atribuição de características comuns
entre esses seres. Além disso, no Orkut, há a reconfiguração do ser vivo animal, ou seja, os
72

sentidos emergidos sobre os bichos não são apenas aqueles que os qualificam como inferiores
ou despossuídos de racionalidade ou sentimentos. Eles podem ser concebidos como objeto,
consequência do desenvolvimento econômico, ou vistos como ingênuo e harmonioso, frutos
da intensa urbanização ou a partir da sua proximidade genética com os homens embora nem
todos coadunem com tais sentidos. Wolff (2009, p.70) salienta que esses sentidos devem-se
ao fato de que
[...] a modernidade tecnicista „coisificou‟ e „mercantilizou‟ os seres naturais; por
outro, e em grande parte em reação contra essa „coisificação‟, a natureza é reificada,
sacralizada e até santificada, como fonte absoluta e intrínseca de valores: os seres
naturais seriam sempre bons, acredita-se, enquanto continuarem sendo naturais.

O discurso de „Victor-San‟, abaixo, é intrigante, quanto à supracitada reconfiguração


do ser vivo animal, pois suas inquietações apresentam proximidade com os questionamentos
sobre o homem. Assim, ao criticar a imagem, atribuída aos animais, de fraternidade e
igualdade – pilares dos direitos humanos –, o que os aproxima dos homens, o sujeito invoca a
dicotomia humanos direitos x bandidos, apresentando, a partir do mundo animal, as relações
estabelecidas entre os seres humanos na sociedade. Dessa maneira, estabelece um
aprofundamento da relação entre o homem e o animal, colocando o último na posição de
representante do desvio e do erro humanos. Entretanto, ao evocar o processo de extinção,
alerta aos seres humanos quanto à importância da observância do comportamento dos
indivíduos, pois, se não resolvidos os problemas da criminalidade, os seres humanos correm o
risco de desaparecer, tais como os tubarões, em fala de „Victor-San‟. Dessa forma, há uma
linha de contiguidade entre o homem e o animal, sendo que as relações entre os animais
constituem-se em espelho das relações entre os seres humanos.

Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Os paradigmas apresentados nessa seção nos mostram que o homem pode ser
compreendido de maneiras muito diferentes. Ele pode ser razão, um ente natural, social,
político, simbólico e cognitivo. Mas, na comunidade, os sentidos emergidos demonstram que,
73

além de tudo isso, o homem é o que ele faz na sociedade; ele é o espelho de suas ações e são
elas que vão determinar a sua cidadania, a sua humanidade.

3.3 UMA HISTÓRIA...

Hannah Arendt indica, conforme Piovesan (2004), que os direitos humanos são uma
invenção humana, por serem históricos e abarcarem uma pluralidade semântica. Não
pretendemos aqui re ou ratificar o pensamento da filósofa alemã, embora discutamos essa
questão na seção subsequente. Todavia, em seu dizer, cabe-nos uma observação: os discursos
sobre direitos humanos são históricos, mas não apresentam como data de nascimento o dia
10.12.1948, momento da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar
da afirmação de Fina Birules, comentada por Méndez (2004, p. 9-10), de que só o ato político
pode gerar igualdade” entre os homens, convertendo a DUDH em “[...] instrumento político
da igualdade”; sua história, portanto, remonta de tempos longínquos e, segundo Ishay (2006,
p. 16), sua “[...] base histórica repousa na tendência humanista que aparece em todas as
grandes religiões do mundo”. Dessa forma, podemos afirmar que a discussão sobre direitos
humanos, ainda que sem esse rótulo, data do período pós-mitológico greco-romano, ou
melhor, tem início com o monoteísmo religioso. É importante observar que ao nos referirmos
aos DH, prevalece, na historiografia sobre a temática, o pensamento cristão-ocidental.
Questionamo-nos ainda, baseados na ocidentalização desses direitos: por que a DUDH é
considerada o marco do surgimento desses direitos, inclusive na comunidade do Orkut 51, se
por séculos houve debates sobre os direitos humanos na sociedade?
Cremos poder encontrar a resposta a esse questionamento no processo iniciado por
esse documento, a saber, a internacionalização dos direitos humanos, que outrora estavam
restritos ao estado-nação, e a consequente característica atribuída a esses direitos: a
universalidade. Assinada por apenas 48 países em seu surgimento, podemos de pronto
questionar esse caráter dos DH, embora seja, segundo Albuquerque Melo, em texto de Leite
(2010, p. 337 – grifo nosso), “[...] o objetivo de uma declaração [...] criar princípios jurídicos
ou afirmar uma atitude política comum”, mas, já em sua constituição, a DUDH esbarra em
interesses e culturas incomuns entre os países membros. Conforme Leite (2010), o conteúdo

51
Dois são os tópicos na comunidade do Orkut que apresentam claramente essa orientação semântica. Intitulados
“Tá explicado o porque os DH são assim” e “60 anos de DUDH e nada”, e compostos somente dos scraps de
abertura, justificam a ineficiência dos direitos humanos em sua origem, ou melhor, na emergência da DUDH, no
contexto do pós 2ª guerra mundial e por negligenciar, a declaração, a natureza egoísta do ser humano,
respectivamente.
74

da Declaração Universal dos Direitos Humanos é vago, pois houve a necessidade de adequar
o seu conteúdo para ampla aceitação52, o que força uma universalidade não creditada, ao
menos em parte, pelos internautas, por exemplo. Embora o comportamento de um sujeito –
critério, como dissemos, na comunidade do Orkut, para atribuição de direitos humanos –
apresente um teor cultural, tal aspecto é silenciado pelos internautas.
O contexto de surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos é o período
pós-2ª Grande Guerra Mundial, o que fez com que as necessidades individuais humanas
fossem concebidas como direitos fundamentais, ou seja, enquanto entes inegociáveis,
independente da cultura, da sociedade e da estrutura política de cada nação, em uma tentativa
de repudiar genocídios. Assim, o ser humano passa a ser, pela primeira vez, visto
oficialmente como sujeito frágil em relação às determinações estatais, e que deve ser
igualmente tratado com dignidade. A DUDH passa, então, a ser o necessário reconhecimento
das autoridades da importância de se observar a natureza humana e a representação
documental de que a sociedade pode ser construída pautada em valores humanos, para além
dos interesses políticos e econômicos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dessa maneira, é o documento que
sinaliza a uniformização do homem, indicando que todos devem gozar direitos próprios à sua
condição. Atentando-nos, assim, à historicidade dos direitos humanos, são de fácil
compreensão os motivos que levam a DUDH a ser considerada tão importante para a
temática, sendo concebida como ponto de partida dos DH: ela é, conforme Bobbio (2004, p.
31), “[...] o momento inicial da fase final de um processo [...]”, ou seja, é a primeira vez que
as diferenças de ordens diversas entre povos e classes sociais são, pelo menos no plano
teórico, postas de lado em prol, sobretudo, dos menos favorecidos nos sistemas jurídicos e

52
De acordo com Leite (2010), na elaboração da DUDH, que apresentou as abstenções da União Soviética, dos
países do Leste europeu, da Arábia Saudita e da África do Sul,, tentou-se conciliar os opostos interesses do
Oriente e do Ocidente. O primeiro privilegiava os direitos econômicos e sociais, enquanto que o segundo
defendia com mais vigor a dignidade humana e o valor do indivíduo, gerando, no fim, os 30 artigos do referido
documento, que estão assim divididos, ainda conforme Leite: Normas Gerais (artigos 1-2; 28-30); direitos e
liberdades fundamentais (artigos 3-20); direitos políticos (artigo 21); direitos econômicos e sociais (artigos 22-
27). Essa divisão reitera o caráter ocidental da DUDH, uma vez que 60% (sessenta por cento) da declaração
apresentam relação com os ideais defendidos pelo Ocidente, baseados, principalmente pela Revolução Francesa
e pela independência dos Estados Unidos: “a Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi, portanto, ao
nascer, “universal sequer para os que participaram de sua gestação. Mais razão tinham, nessas condições, os que
dela não participaram – a grande maioria dos Estados hoje independentes – o rotularem o documento como
„produto do Ocidente‟.” (ALVES, 2005, p. 24) Essa observação permite compreender a existência de alguns
sentidos presentes na comunidade do Orkut, sobretudo quando há a defesa da pena capital. Indicamos que os DH
e o Estado, na visão dos internautas, devem priorizar o indivíduo e, em segundo plano, a coletividade (já que esta
é composta por individualidades). Assim, perpassados pelas significações dos países vencedores da 2ª grande
guerra, principalmente os EUA, os sujeitos do Orkut, em suas formulações discursivas no ciberespaço, reiteram
o valor do indivíduo, silenciando discussões referentes a questões econômicas e sociais, assumindo, assim, a
posição de vencedor.
75

sociais nacionais, sendo acolhidas pela comunidade internacional, quer dizer, a declaração é o
pontapé inicial para a positivação dos direitos humanos, ou seja, a sua conversão em norma
jurídica, último estágio da sua efetivação53: “[...] os direitos do homem nascem como direitos
naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente
encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais [...]” (BOBBIO, 2004, p.
30).
Assim, a universalidade dos direitos humanos e a consequente caracterização dos
homens como sendo iguais, abre possibilidade para a real igualdade dos indivíduos enquanto
cidadãos, primeira especificação do homem na sociedade, pois além de considerar os seres
humanos a partir da sua natureza moral, principalmente, silenciando as diferenças biológicas,
tais como cor da pele e gênero, amplia os „locais‟ de reivindicação de direitos, quer dizer, a
DUDH permitiu a busca pela tutela internacional dos direitos humanos, tentando neutralizar
reações ligadas à ideia de soberania das nações, por lidar, conforme Méndez (2004), com a
relação DH – natureza humana.
Referente ao sistema jurídico internacional com finalidade de tutelar direitos humanos,
indicamos serem três os seus objetivos: promover direitos humanos – criação de ações que
induzam os Estados nacionais a defender e aperfeiçoar, em seus territórios, tais direitos,
multiplicando-os; controlar direitos humanos – verificação de respeito aos acordos
internacionais em territórios nacionais, a exemplo de recente carta, datada de 01 de abril de
2011, do secretário executivo Santiago Canton, da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH, da Organização dos Estados Americanos – OEA ao governo brasileiro,
exigindo a suspensão do processo de licenciamento da construção da usina hidrelétrica de
Belo Monte, no Rio Xingu, a fim de resguardar DH; garantir direitos humanos – criação de
um efetivo tribunal internacional, a exemplo da Corte Interamericana de DH. Respaldado por
uma estrutura jurídica internacional, o ser humano não fica à mercê dos mandos e desmandos
de seus governantes, representando um grande progresso na cidadania, pois, segundo Pinheiro

53
Indicamos que por ser uma declaração, a DUDH não é considerada pelos teóricos uma norma jurídica, sendo
apenas um ideal a ser alcançado. Segundo Bobbio (2004), os direitos humanos são, por vezes, colocados de
modo programático, ou seja, sem garantia real de efetivação. Os documentos internacionais de direitos humanos,
como a DUDH são, em verdade, ainda conforme Bobbio, cartas de boas intenções, por dependerem da
constitucionalização por parte dos países assinantes, qualificando-se, então como EXIGÊNCIAS, como dissemos
na folha 58, e não como direitos, pois segundo o teórico italiano (2004, p. 74 – grifos nossos) “[...] a existência
de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por
„existência‟ deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o
reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato
a figura da obrigação”.
76

(2008), o Estado é o maior violador dos direitos humanos. Converte-se, assim, o indivíduo,
em cidadão do mundo.
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu 2º artigo, preconize a
não-discriminação entre os indivíduos “[...] em função de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política, ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza ou qualquer outra
condição [...]” (ALVES, 2005, p.23), os direitos por ela defendidos não levam em
consideração, com profundidade, as peculiaridades de cada nação/grupo, o que faz com que a
conferência da cidadania mundial aos indivíduos não se realize plenamente. Ser cidadão do
mundo, em 1948, período em que quase todos os países afro-asiáticos eram colônias
ocidentais, conforme Alves (2005), significa apagar as diferenças culturais em nome de uma
universalização que é construída a partir da ideia de inerência de tais direitos aos seres
humanos, em uma tentativa de frear a atuação dos países do Ocidente em suas colônias.
Lembramos que cultura não é um valor inato, mas social. As idiossincrasias de cada povo não
são tomadas como ponto de partida na elaboração da DUDH. Dessa maneira, não é possível
pensar a universalidade a partir do seu sentido cristalizado na sociedade, ou seja, “[...]
comum, relativo ou pertencente ao universo [...]”; “[...] que diz respeito ou é aplicável a todas
as coisas [...]” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2009). A noção de “universal” é
ressignificada.
A ressignificação da noção de “universal” na comunidade do Orkut não somente
retirou dela o caráter de aplicabilidade a todas as coisas, mas, e principalmente porque
reconfigurou as coisas às quais ela pode ser aplicada. No Orkut, como já dissemos, os direitos
humanos são aplicáveis apenas aos indivíduos que seguem as normas jurídicas estabelecidas
na sociedade. Mas essa reconfiguração encontra suporte em aspectos que ultrapassam o
comportamento jurídico. Vimos acima que a cultura, na elaboração da DUDH, não foi
considerada elemento basilar. Isso indica que os DH, principalmente na comunidade da
“cidade azul”, têm a pretensão de homogeneizar o ser humano, a partir de um ideal de vida,
ou seja, existe apenas um modo de existência. Recentemente, a França proibiu o uso de véus
por mulheres muçulmanas em seu território por acreditar que tal traço cultural fere a
igualdade entre homens e mulheres. Entendemos, então, que essa igualdade só pode haver se
um dos lados a ser igualado se anular, apagar aquilo que o construiu. Dessa forma, o modo de
ser um humano dos muçulmanos deve desaparecer, por não se encaixar no que o agrupamento
social francês, politicamente poderoso e culturalmente dominante em relação ao primeiro,
considera como correto e, mais importante, „natural‟. Universal, dessa maneira, é tudo aquilo
77

que é considerado „natural‟ pelos grupos que apresentam não apenas o poder político, mas,
sobretudo, o poder simbólico, entendido por Bourdieu (2007, p. 14 – grifo do autor) como

[...] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter
o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário.

Na “cidade azul”, percebemos essa movimentação dos sentidos da noção de


“universal” em relação aos DH, quando, ao discutirem o direito da mulher em realizar o
aborto, os sujeitos evocam as crenças dos intitulados „Testemunhas de Jeová‟ como
argumento, qualificando tais princípios como erros de interpretação e não como uma
possibilidade de existência, como pode ser verificado em discurso de „André‟, no tópico
„Aborto‟, cujo fragmento está posto a seguir.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

A possibilidade de existência admitida pelos cidadãos da “cidade azul” está afinada


com os preceitos do Cristianismo que permitem interpretar os direitos humanos do ponto de
vista religioso e comportamental, sendo que os textos bíblicos apresentam os princípios
básicos para orientação da conduta humana, aplicando o ideal de amor fraternal. Lembramos
que as relações fraternais apenas existem entre humanos direitos, como é possível depreender
dos discursos da comunidade do Orkut. Assim, “[...] os Dez Mandamentos constituíam um
código de moral e respeito mútuo que exerceu importante influência no mundo ocidental. A
Bíblia contém diversas injunções (formuladas em termos de deveres) que correspondem às
concepções seculares dos direitos do outro [...]” (ISHAY, 2006, p. 18). Mas não somente a
Bíblia católica incorporou princípios morais universalizantes: o humanismo das outras duas
grandes religiões monoteístas, a saber, Islamismo e Budismo, e os textos produzidos por seus
principais representantes pregam a fraternidade universal, pois a raça humana foi criada por
um único Deus, um único pai.
78

Podemos afirmar que, apesar de os direitos humanos variarem ao longo dos anos, já
que a sociedade e suas necessidades modificam-se constantemente, é possível indicar que os
valores que os fundam sejam os mesmos que promoveram o surgimento do monoteísmo ético
na sociedade hebraica, base das religiões ocidentais. Embora o monoteísmo não seja uma
criação dos hebreus, “[...] seu grande legado foi a concepção de um deus que não se satisfazia
em ajudar os exércitos, mas que exigia um comportamento ético por parte de seus seguidores
[...]” (PINSKY, 2005, p. 16). Assim, podemos dizer que a história dos direitos humanos
inicia-se com os valores culturais da comunidade hebraica que exigia o bom comportamento
por parte de seus membros, para evitar perseguições comumente sofridas por eles, o que
explica a constituição desse critério pelos internautas para atribuição de DH e configura o
direito como prêmio, mérito. A ética religiosa permite, então, a associação entre direitos
humanos e respeito ao próximo construindo o direito como recompensa pelo respeito aos
semelhantes e por viver, o indivíduo, sob o ideal da igualdade e da fraternidade: “[...] se teu
inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoas brasa sobre
sua cabeça, e Iahweh te recompensará [...]” (Provérbios, 25: 21-22 – grifo nosso).
Além da base religiosa, os direitos humanos foram também pensados, reiteramos, sem
esse rótulo, por filósofos e juristas que, até o término da Idade Média, construíram o valor
cultural que alicerçou a redação da DUDH e dos documentos a ela posteriores: o bem comum.
De Platão a São Tomás de Aquino, encontramos elementos que celebram o caráter universal
dos direitos destinados aos homens. É importante observarmos que isso não significa que do
século IV a.C. ao século XII tivemos manifestações genuínas de atribuição global de direitos
aos indivíduos, principalmente porque a qualificação de „humano‟ não era atribuída a
qualquer indivíduo. Mas já é possível perceber o embrião da universalidade em discursos
proferidos até o medievo.
Entretanto, a historiografia oficial dos direitos humanos inicia-se somente a partir do
Iluminismo e do deslocamento da autoridade “legislativa” da Igreja Católica para o Estado-
nação e, sobretudo, da alteração do centro regulador da sociedade da figura divina para o ser
humano. Esses deslocamentos demonstram a importância da existência de uma instância
legitimadora para os direitos humanos, o que confere a eles um caráter político, suplantando,
por vezes, o aspecto natural que lhe foi atribuído até a Idade Média. Os DH, portanto,
precisam do papel e da escrita. Tal aspecto é constantemente evocado pelos internautas
quando sinalizam a necessidade de o Estado legitimar determinadas modalidades punitivas,
como a pena de morte.
79

A necessidade do Estado para assegurar direitos implica pensar os direitos humanos de


modo fragmentado, pois os direitos inerentes ao homem passam a ser aqueles que, em dado
momento histórico, são objeto de interesse político. Por conta disso, a universalidade dos DH
não deve ser pensada como um “já-lá”, mas como um processo, um caminho pelo qual
percorre tais direitos até os dias atuais. Segundo Vasak (1977), os direitos humanos, em sua
evolução histórica, estão divididos em três gerações: a primeira concentrada no período
iluminista, apresentou como interesse principal a defesa dos direitos civis e políticos, devido à
vigente “ideologia” liberal; a segunda geração corresponde às reivindicações da “ideologia”
socialista, o que nos remete à defesa dos direitos econômicos e sociais; a terceira fase diz
respeito aos interesses pós-coloniais e à autodeterminação dos povos. Vasak (1977)
caracteriza essa geração como sendo “direitos da solidariedade”, abarcando os direitos ao
desenvolvimento, a um meio ambiente equilibrado, à paz e à propriedade sobre o patrimônio
da humanidade, um avanço à ideia de universalidade, a partir da ampliação do direito à
propriedade, que compõe originalmente a primeira geração.
Há, ainda, teóricos que indicam a existência da quarta geração, fase atual, na qual os
grupos minoritários, como as mulheres, negros e homossexuais, são “convocados” a lutar e
tomar posse dos direitos humanos, anteriormente pensados de modo genérico, em uma
tentativa de fazer emergir as especificações de cada grupo nas legislações, como o Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA e o Estatuto do Idoso, no Brasil. Além disso, os direitos
culturais que, para Vasak (1977), transitam entre os direitos das primeira e segunda gerações,
passam a ter lugar de destaque no cenário mundial, permitindo o surgimento de documentos
como a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos54, de 1996, bem como a defesa dos
direitos das tribos indígenas brasileiras.
A constante recorrência ao cenário mundial nos discursos sobre direitos humanos
demonstra a etapa atual de seu desenvolvimento, a internacionalização que, aliada à
especificação dos direitos, tenta construir um Estado de direito supranacional. Com isso,
segundo Piovesan (2004), os agentes conferidores e monitoradores dos DH devem ser, além
do Estado, o próprio indivíduo, as agências financeiras internacionais, os blocos regionais

54
É considerado um grande avanço a discussão desse documento para os direitos humanos por reconhecer os
direitos dos povos à sua própria cultura, sendo a língua um dos mais importantes elementos de identificação
cultural, inclusive no Brasil, um país considerado plurilíngüe. Conforme Oliveira (2003, p. 7), “[...] no Brasil de
hoje são falados por volta de 210 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 180 línguas, chamadas de
autóctones, como o guarani, o tikuna, o yanomami, o kaingáng; e as comunidades de descendentes de
imigrantes, cerca de outras 30 línguas, chamadas de alóctones, como o alemão, o italiano, o japonês, o árabe, o
polonês.”.
80

econômicos e o setor privado. O direito internacional dos direitos humanos nasce oficialmente
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
Tal processo é importante não apenas para universalizar os DH, no sentido de atribuir
aos indivíduos os mesmos direitos, mas também para re-atribuir ao Estado a credibilidade que
não mais tem na sociedade, como evidencia o discurso de „Sérgio Rodrigo‟, no tópico “A
realidade sobre a pena de morte”, ou seja, como protetor do indivíduo, sancionando
juridicamente direitos, como os de propriedade, representação política, igualdade e liberdade,
mas principalmente no contexto atual, o direito à segurança e ao bem estar social. O Estado,
na comunidade do Orkut, encontra-se desacreditado por duas razões dicotômicas: por não
permitir a pena de morte como coerção ao crime ou ainda por não conseguir aplicar as leis
que garantem aos indivíduos os direitos sociais que impediriam, ou ao menos minimizariam, a
criminalidade, na visão dos internautas, ou seja, o Estado é também criticado por aplicar,
ilegalmente e sob formas diversas, a pena capital no país.

Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Mas, como já salientamos, o importante processo de internacionalização e


universalização dos direitos humanos, na prática, não se inicia com a DUDH. Muitas foram,
desde o Iluminismo, as reivindicações dos grupos sociais em relação a seus direitos.
Indicamos que, embora os grupos minoritários, como as mulheres, em todos os momentos
históricos, tenham lutado para defender e legitimar suas demandas, como podemos perceber,
por exemplo, com as Declaração dos Direitos da Mulher, de Olympe de Gouges, de 1790 e
Os Direitos da Mulher, de Mary Wollstonecraft, de 1792, a escritura de seus direitos é
recente, ratificando o caráter político dos direitos humanos. As reivindicações sobre DH, de
modo genérico, foram incorporadas a uma série de documentos, que influenciaram a
elaboração da DUDH, dos quais destacamos, para a primeira geração, a Lei de Habeas
Corpus, publicada na Inglaterra, em 1679, a também inglesa Declaração de Direitos, de 1689,
a Declaração de Independência Americana, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, fruto da Revolução Francesa.
O primeiro documento representa grande influência nas legislações sobre direitos
humanos e diz respeito a um dos mais elementares direitos de um indivíduo, conforme os
81

teóricos: a liberdade pessoal. Assim, a Lei de Habeas Corpus – LHC constitui-se como um
dos primeiros instrumentos jurídicos da era moderna de controle do poder do Estado,
assegurando o exercício de direitos pelos indivíduos, inclusive o de defesa. Essa lei se propõe
a fazer cumprir a soltura de prisioneiros que estejam em posse do Estado sem comprovação
tácita de culpabilidade. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos não há explícita
menção à lei, nem mesmo aparece a expressão habeas corpus. Mas é possível destacar sua
“presença” ao analisarmos a DUDH, sobretudo os artigos 9 e 11, inciso 155. O Brasil, em sua
Carta Magna que, como dissemos anteriormente, apresenta ampla relação com a DUDH,
perceptível desde o seu preâmbulo56, também adotou o sistema de habeas corpus, explicitado
no inciso LXVIII do artigo 5º57.
Fruto da Revolução Gloriosa, de 1688, a Declaração Inglesa de Direitos – DID teve
por objetivo ser um instrumento limitador das ações do Estado, impedindo o uso arbitrário do
poder. Devemos nos atentar à natureza do Estado a que se refere tal documento. Dirigido à
monarquia, como crítica às atitudes do Rei Jaime II, a DID almeja impedir a interferência real
nas determinações do Parlamento, resguardando a sua legitimidade e salvaguardando os seus
membros da acusação de subversão. Apesar de não fazer menção aos cidadãos comuns, a
liberdade do exercício político é um dos principais legados do documento inglês de 1689 e
nos remete, ainda que indiretamente, à divisão dos poderes: cada um com existência
independente e sem a interferência do outro.
Esses dois primeiros documentos tocam o direito à liberdade, fundamental e
inalienável no Estado de direito, seja ela individual ou de gestão política. Ambos tentam frear
a arbitrariedade do Estado em suas atuações, o que é um dos nós dos discursos sobre direitos
humanos, inclusive aqueles proferidos na comunidade do Orkut analisada nesta dissertação.
Se os sujeitos entendem que o Estado deveria aplicar a pena de morte, assunto principal da
comunidade, e não o faz, criticando-o por isso, como é o caso da maioria dos integrantes da
“cidade azul”, nos leva a crer que os internautas solicitam duas posturas do Estado,
incompatíveis entre si: aplicar a pena capital, configurando-se, no mais alto grau, em um

55
Artigo 9º: “Ninguém será preso, detido ou exilado arbitrariamente”.
Artigo 11, inciso 1: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que
sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
56
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional...”.
57
“[...] conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
82

governo arbitrário, com o poder máximo de manipular o primeiro dos direitos humanos – a
vida; ou um afrouxamento total da arbitrariedade do governo, permitindo “a justiça com as
próprias mãos”.
Embora esses documentos ingleses não discutam essa problemática, eles representam
um grande passo na história dos direitos humanos, no equilíbrio da relação entre o sujeito e o
Estado. Discutir a pena de morte é, antes de qualquer coisa, retomar as ideias centrais que
fundaram a Lei de Habeas Corpus e Declaração Inglesa de Direitos: assegurar a liberdade
pessoal, impedindo a prisão ilegal, o que dificulta a prisão arbitrária por interesse pessoal e a
de inocentes, permitindo inclusive a revisão de injustiças no caso de novas descobertas em
processos judiciais, bem como garante que o Estado exercerá apenas a função que lhe
corresponde, dando espaço ao indivíduo para exercer livremente os seus direitos, estando
todos submetidos à lei – essa é a proposta básica dos direitos humanos.
Segundo Ishay (2006), devemos também ressaltar para essa discussão a importância de
Cesare Beccaria, também tomado como referência jurídica no Orkut, como por „Sérgio
Rodrigo‟ em discurso do tópico „A realidade da pena de morte‟, cujo fragmento encontra-se a
seguir, por ser o primeiro escritor moderno a condenar a pena de morte e a tortura, indicando
que a penalidade deve ser imposta na mesma medida do delito, desde que seus graus de
intensidade sejam suficientes apenas para fazer os homens recuarem diante dos delitos.

Extraído do tópico “Realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

A Declaração Americana, elaborada após separação das treze colônias americanas da


Coroa Inglesa, estabelece a igualdade entre os homens, sendo estes dotados de direitos
naturais e inalienáveis. Nela, o governo é compreendido como uma instituição que tem por
função assegurar os direitos dos cidadãos e deve ser instituído pelo povo, um grande avanço
no desenvolvimento dos direitos políticos e no governo representativo. Em seu preâmbulo,
indica serem a vida, a liberdade e a busca da felicidade os principais direitos do homem.
Todavia, o documento que mais influenciou a elaboração da DUDH foi a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão – DDHC. Seus ideais de igualdade, liberdade e
fraternidade foram seguidos à risca em 1948, sendo a base de todos os seus artigos. A
83

igualdade encontra-se expressa, na DUDH, nos artigos 2, 6 e 7; a fraternidade baeia os artigos


22 a 27 e a liberdade está presente nos artigos 7, 13 e 16 a 21. A DDHC apresenta, segundo
Ishay (2006), influência de muitos teóricos como John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Cesare
Beccaria e Voltaire. Elaborada após a Revolução Francesa, constitui um marco na história da
humanidade. No artigo 2º, indica serem os direitos à liberdade, à propriedade, à segurança e
resistência à opressão os principais direitos do homem. A liberdade é concebida como sendo
um direito natural e a igualdade entre os homens é constantemente reiterada em seus artigos, a
exemplo do 6º58. Salienta ainda ser a lei a expressão da vontade de um povo, estabelecendo
assim conexão com a teoria da soberania popular, de Rousseau, e abrindo caminho para o
sufrágio universal, ou melhor, para a efetiva participação do cidadão na vida pública da nação.
A DDHC indica ainda, como direitos do homem, a liberdade de expressão e opinião, bem
como o de exigir dos governantes prestação de contas, um grande avanço para o real
estabelecimento da igualdade entre os indivíduos. Os direitos propostos pelo documento
francês foram quase todos incorporados à DUDH.
Apesar dos avanços dos direitos humanos prometidos pela Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, e também dos documentos iluministas anteriores, muitos dos direitos
não foram concretizados. Várias são as razões que explicam essas falhas, mas ressaltamos
duas: o público-alvo dos direitos, aliado aos grupos que elaboravam tais documentos, bem
como à natureza dos direitos que se tornaram referência do período iluminista. Embora a
camada popular tenha participado das lutas que culminaram nos documentos mencionados
nesta subseção, ela não foi convocada e, na prática, não tinha representação, para elaborar
esses documentos, o que faz com que os seus interesses não sejam, de fato, atendidos. A DID,
por exemplo, não ampliou a possibilidade para participação, no parlamento inglês, para
qualquer cidadão da Inglaterra, restringindo (ou mantendo restrita) a participação política dos
indivíduos. Os documentos americano e francês tentam livrar-se dessas amarras. Outra
problemática é que dois tipos de direitos são importantes no mundo liberal: a liberdade e a
propriedade, e este último configura-se como um grande problema, dificultando a efetiva
igualdade política entre os cidadãos, o que permitirá a emergência do Socialismo. Por conta
da intensa defesa do direito à propriedade, e também do Capitalismo, os indivíduos ficaram
sujeitos a condições subumanas de trabalho e vida, gerando a defesa dos direitos sociais que,
na DUDH estão reunidos nos artigos 22 a 27, conforme Leite (2010), e na constituição
brasileira estão alocados no capítulo 2, do Título II. Os principais representantes socialistas,

58
“[...] Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e
empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção senão a de suas virtudes e de seus talentos”.
84

no que tange aos direitos humanos, são Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx e Friedrich
Engels.
Atualmente, a busca pelos direitos sociais ainda está no centro das discussões sobre
direitos humanos, sendo a pobreza considerada uma negação a esses direitos. Ampliou-se,
hoje, como já dissemos, as demandas dos homens, e seus direitos e reivindicações pautam-se
não apenas no seu bem-estar, mas também no das gerações futuras. Pensa-se no indivíduo
isoladamente, e também inserido em um agrupamento; suas demandas são pensadas quanto ao
aspecto natural e biológico, genérico, mas também social, especificado. Atualmente, os
direitos humanos pretendem pensar o homem em sua igualdade e pluralidade.
85

4 E NO PRINCÍPIO ERA O VERBO?

4.1 “PALAVRA ACEITA TUDO” 59

As seções anteriores dessa dissertação nos permitem perceber que discutir direitos
humanos é pôr em voga as relações desiguais entre indivíduos na sociedade por serem, tais
direitos, uma das tentativas do homem, enquanto ser político e histórico, em minimizar,
através da interferência do Estado, sobretudo, as diferenças entre os seres humanos.
Salientamos que muitas das diferenças entre os homens não são de cunho natural, são
construções sociais, o que nos leva ao entendimento de que debater sobre direitos é trazer à
tona o elemento que norteia as relações inter-individuais: o poder. Dessa maneira, refletir
sobre direitos humanos significa imprimir uma tentativa de compreender como se dão as
tensões no seio da sociedade e, no caso dessa dissertação, como a linguagem se configura
como palco de disputas de poder: quem é o ser humano e quem, devido a essa condição, tem
direitos.
Conforme Lagazzi (1988, p. 39), “[...] atribuir direitos e deveres é atribuir símbolos de
poder, é legitimar o poder como coerção, trazendo a ordem simbólica para o cotidiano das
relações interpessoais [...]” e, portanto, discutir direitos humanos e seu processo de
significação implica uma concepção de linguagem que não a signifique como mero
instrumento de comunicação ou suporte para os pensamentos, mas como ação, instância de
constituição dos sujeitos e manifestação do poder, inclusive político, com a monopolização do
Estado60 na constituição e controle das regras de direito, sobretudo aquelas qualificadas como
sendo direitos humanos. A linguagem, então, deve ser pensada a partir da sua materialidade,
da relação entre língua e processo histórico-social, ou seja, ela é estrutura e acontecimento.
Tais caracterizações da linguagem dizem respeito ao seu duplo aspecto constitutivo, a
saber: a língua, enquanto sistema significante material, e a história, sua materialidade
simbólica, provendo-a de sentidos. Analisar direitos humanos pode gerar a falsa impressão de
estarmos observando um fenômeno meramente linguístico, nos moldes estruturalistas de
Ferdinand de Saussure, da relação entre significante e significado, além das relações
morfossintáticas que qualificariam o elemento “humano” do sintagma „direitos humanos‟

59
BARROS (2000).
60
Falamos na seção anterior que não apenas o Estado tem a possibilidade de legislar, citando, inclusive, o
Direito Consuetudinário como exemplo. Entretanto, referimo-nos aqui à instância jurídica com poder coercitivo
institucionalizado e socialmente reconhecido por todos os grupos sociais. O que não quer dizer que seja aceito
por todos.
86

como pertencente à categoria dos adjetivos ou ainda como adjunto adnominal, sintagma
adjetival ou modificador/determinante. Trata-se, todavia, aqui de compreender a língua como
condição para a produção do discurso e um modo de coerção social.
Lembramos que, na seção anterior, indicamos ser o comportamento do indivíduo um
dos critérios mais importantes, para os sujeitos do Orkut, para a conferência de direitos aos
seres humanos. Constitui-se, então, a necessidade de o indivíduo ser possuidor de uma
competência comportamental, aos moldes da competência linguística pensada por Noam
Chomsky, capacidade inata de engendrar frases e, no caso da “cidade azul”, capacidade (por
vezes qualificada como inata – “uma pessoa já nasce com má índole”61) de seguir
determinados comportamentos estabelecidos socialmente, como a não realização de abortos.
As competências linguística e comportamental estão relacionadas através da noção de erro,
que permite entender que os direitos humanos são construídos semanticamente, pelos
orkuteiros, para aqueles que dominam essas competências. A língua, assim, precisa ser
referida também à ideia de competência simbólica desenvolvida por Bourdieu (1983), pois a
gramática e os “[...] funcionamentos intrínsecos da língua e exigências manifestadas pelo
poder se articulam de forma complexa no projeto de determinação[...]” (HAROCHE, 1992, p.
22), ou seja, a língua, enquanto sistema significante material apresenta em suas formas a
manifestação do poder, sendo o sujeito, então, assujeitado à língua para constituir-se enquanto
tal e emergir, assim, sentidos.
No Orkut, não é possível localizar sentidos que confiram explicitamente os direitos
humanos somente àqueles que detêm a norma padrão culta. Entretanto, seu domínio é critério
para legitimação dos sentidos sobre a temática emergidos na “cidade azul”, o que implica
considerar que os sentidos legitimados são aqueles provenientes de um determinado grupo
social, que domina tal competência linguística. Assim, o erro normativo-gramatical deixa de
situar-se apenas na esfera linguística, enquanto estrutura, e não pode ser também considerado
mero esforço argumentativo dos detentores da língua padrão. Bourdieu (1983) ensina que a
língua deve ser referida à legitimidade de sua realização e à noção de aceitabilidade. Dessa
forma, embora o Orkut, como dissemos na segunda seção dessa dissertação, configure-se em
um espaço cibernético que, a priori, não destaque a necessidade de uso da norma padrão e,
portanto, priorize a flexibilidade gramatical, nos fóruns da comunidade "Direitos humanos
para humanos direitos”, a língua legítima faz-se presente e necessária, entendendo-se por

61
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
87

língua legítima aquela que é autorizada na/pela sociedade, a linguagem de autoridade, aquela
marcada pela aceitação social.
Há, então, um esvaziamento das possibilidades de realização da língua, tal como há a
da multiplicidade de comportamentos62. Dessa forma, os usuários do Orkut, assujeitados que
são à língua, e que não apresentam a competência de saber quando é preciso falar, calar, ou
adaptar a forma da língua à situação de uso, no sistema de trocas simbólicas, que é a
linguagem, não são considerados locutores legítimos, na “cidade azul”, e seus discursos sobre
direitos humanos não são aceitos. Como legitimar os sentidos de quem não detém a língua
legítima? Acreditamos assim que o erro linguístico, tal como o comportamental, configura-se
como qualificador do direito a ter direitos e, dessa maneira, a língua deve ser vista como
materialidade coercitiva, manifestação do poder.
Na comunidade virtual analisada, a crítica aos equívocos linguísticos não é facilmente
localizável por duas razões. A primeira é que os criticados normalmente saem da comunidade
pelo constrangimento, ficando, algumas vezes, apenas os rastros de sua presença, como indica
a fala de Andy Priest, a seguir. A segunda razão pode ser subdividida em dois aspectos:
aquele que diz respeito aos usos linguísticos propriamente ditos e aquele que faz referência
aos interlocutores. Percebemos que, apesar de localizarmos vários desvios da norma padrão,
eles não são sinalizados pelos orkuteiros por serem erros de digitação, a exemplo de „direios‟,
no lugar de „direitos‟ e „creminosos‟, no lugar de „criminosos‟; erros linguísticos que são
normalmente relevados na sociedade, como os de pontuação e acentuação; os desvios
decorrentes do desconhecimento da forma padrão por parte dos orkuteiros, mas que também
são relevados no seio da sociedade, tais como algumas concordâncias verbo-nominais, como
o uso da forma plural do verbo „ter‟; descuido ou desatenção ao escrever, como o uso de
„descupe‟ no lugar de „desculpe‟. Além disso, há ainda os casos de hipercorreção.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Todavia, chama-nos mais atenção o segundo aspecto por nós mencionado e que diz
respeito aos usuários da língua no Orkut e a relação entre eles baseada nos usos linguísticos.

62
Não estamos fazendo aqui apologia à pluralidade comportamental, no sentido de que “tudo é possível”. Esse
julgamento não nos cabe aqui. Entretanto, consideramos importante salientar o caráter social da noção de
comportamento, o que faz dele um elemento heterogêneo, dependente da sociedade que o legitima.
88

Nos cinco tópicos selecionados para constituir o corpus de análise da dissertação, basicamente
três sujeitos figuram como maiores debatedores – Anjinho, André e Victor-San.
Eventualmente , conhecida pelos três anteriormente citados como Cissa,
também participa. Eles não são os únicos interlocutores: há aqueles de quem só é possível
localizar rastros por não mais participarem da comunidade ou terem seus scraps apagados,
voluntariamente ou não, e aqueles que, embora participem, não são tão atuantes e frequentes.
Entendemos, então, que os quatro sujeitos citados configuram-se como um grupo coeso que,
mesmo apresentando opiniões divergentes sobre a temática, respeitam-se e constituem-se (e
entendem-se) como sendo locutores legítimos por possuírem conhecimentos e interesses que
os demais interlocutores não têm.
Assim, percebemos, por vezes no Orkut, um embate de legitimidade, perceptível no
referido discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, bem como
na interlocução entre „Anjinho‟ e „Ivaldo‟, no tópico „Seletividade do sistema penal‟,
conforme scraps a seguir, em que o enunciador reveste-se da imagem de locutor legítimo e
desacredita os sentidos assumidos por seu interlocutor, sendo uma das razões o
desconhecimento do discurso jurídico, em sua forma e sentidos. Dessa forma, concebe-se
língua legítima na “cidade azul” como aquela dos sujeitos que dominam (ou pensam dominar)
os jargões jurídicos e que, portanto, detém o conhecimento pelos internautas interpretados
como necessários para a emergência de discursos sobre direitos humanos, sendo, então,
impressa uma formalidade à situação enunciativa, à linguagem, sufocando, ainda na
formulação, o erro, o desvio da norma culta. A linguagem, reitera-se, em palavras de Orlandi
(2009, p. 115), é “lugar de debate, de conflito”.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

63
Escrita grega do nome da deusa Perséfone, filha de Zeus e Demeter, deusa da agricultura. Sequestrada por
Hades, deus do mundo dos mortos que, encantado por sua beleza, pediu-a em casamento, tendo seu pedido
negado por Zeus, recorrendo, então, ao sequestro da deusa, levando-a ao mundo subterrâneo. Através de uma
manobra ao estabelecer acordo com Demeter, Hades consegue fazer com que Perséfone passe uma parte do ano
com ele, sendo conhecida, assim, como a vigilante da alma dos falecidos. Quando a deusa desce ao inferno, faz-
se inverno na Terra. O período em que não está no submundo é marcado pela ocorrência da primavera na Terra
conforme a mitologia grega.
89

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Percebemos, então, que a linguagem não é meramente uma estrutura, devendo ser
relacionada à história para existir, fazendo dela um acontecimento. Dessa maneira, os sentidos
sobre direitos humanos na comunidade, ainda que aparentemente convirjam para a repetição,
não podem ser considerados o mesmo sentido, pois cada enunciação atualiza o dizer. Com
isso, podemos afirmar que a língua não é fechada e que, portanto, o dizer é aberto, estando
sempre em curso. Assim, André ao enunciar, no tópico “Cuidado”, no dia 06.05.2006, a frase
“a sociedade não é e nunca será culpada por crime algum” e, no dia 07.05.2006, no mesmo
tópico, repeti-la, conforme postagens a seguir, afirmando que “a sociedade não é culpada por
crime algum”, teremos dois sentidos diferentes. Na primeira enunciação, o seu dizer é
genérico, direcionado a qualquer indivíduo-leitor. Já na enunciação do dia seguinte, o
enunciado apresenta um destinatário específico, seu interlocutor direto na “cidade azul”,
conforme utilização do pronome pessoal „você‟, configurando-se, portanto, tal discurso como
uma resposta, em um tom diferente da enunciação do sexto dia de maio de 2006, produzindo,
reiteramos, outro efeito.

Extraídos do tópico “Cuidado”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Ademais, entendemos que a presença do modificador temporal „nunca‟ na primeira


enunciação, diferente da segunda, em que não há utilização do referido advérbio, proporciona
um sentido diferenciado, eliminando não apenas a possibilidade de a sociedade apresentar
alguma culpabilidade na criminalização do indivíduo, conferindo maior veracidade à assertiva
analisada, bem como indica ao leitor, ainda que de forma indireta, a impossibilidade de o
locutor alterar o seu posicionamento sobre a temática. Poderíamos ter elencado outras
divergências semânticas entre os dois enunciados, bem como a relação intrínseca entre
estrutura linguística e histórica, porém julgamos por ora serem suficientes as diferenças
elencadas para demonstrarmos que a linguagem não deve ser pensada apenas como estrutura,
mas também como evento.
90

A nossa afirmativa, em parágrafo anterior, acerca da abertura constante do dizer é


possível devido à característica fundamental da linguagem: ela é marcada pela incompletude.
Isso justifica o fato de que o mesmo sintagma nominal – direitos humanos – apresente
sentidos tão divergentes. Dessa maneira, a incompletude da linguagem diz respeito à sua
necessidade de referir-se à língua e à história para significar, como já pontuamos, descartando
a possibilidade de sua autonomia absoluta, mas e, principalmente, diz respeito à
multiplicidade de sentidos. Dessa maneira, não podemos esperar que os direitos humanos
apresentem apenas um único sentido, ainda que aparentemente seja único o sentido presente
na comunidade virtual, ou seja, “direitos humanos para humanos direitos”, pois, como vimos
na seção anterior, os seus elementos constituintes têm uma história de mudança semântica e,
além disso, são interpretados pelos sujeitos de modo diferenciado.
Sabemos, todavia, que tal historicidade, fundamental para a emergência das
significações, é silenciada, esquecida. A linguagem, portanto, está ligada ao silêncio, ele é o
seu não-dito no momento da enunciação, pois “escolher” um sentido é silenciar as demais
possibilidades64. O dito, então, é também ocorrência do não-dito, pois segundo Orlandi (2002,
p. 82-83), “[...] há sempre no dizer um não-dizer, necessário. [...] o que já foi dito, mas já foi
esquecido tem um efeito sobre o dizer que se atualiza em uma formulação [...]”, sustentando,
assim, o não-dito, o dizer, possibilitando que signifique. Com isso, nomear a comunidade do
Orkut com o título “Direitos humanos para humanos direitos” não significa apenas que os
integrantes assumem tal sentido. Mas, e talvez seja essa a importância maior dessa nomeação,
a indicação de que existe outra significação na sociedade que, embora componha o universo
discursivo, ou seja, o conjunto universal dos sentidos possíveis, não se qualifica como
possível e legítimo pelos orkuteiros, ou seja, a de que os direitos humanos devem ser
conferidos a todos, sem nenhuma distinção.
Dessa forma, o enunciado que dá nome e constitui o sentido central da comunidade
analisada nessa dissertação traz em si, ao mesmo tempo, a negação e a defesa dos direitos
humanos, deixando evidente o embate existente na linguagem. Assim, significar não é apenas
comunicar a opinião sobre uma temática, como a de DH, mas assumir um lado na luta social

64
Podemos fazer uma analogia com a noção de virtual de Pierre Levy (1996; 1999). Os sentidos são
virtualizações da linguagem; ao assumir um, o sujeito atualiza o texto, “selecionando” uma dentre várias
possibilidades semânticas. De maneira análoga ao que ocorre na leitura do hipertexto, o sujeito não tem
conhecimento dos sentidos que não estão explicitamente por ele assumidos, mas que o atravessam. É o dito e o
não-dito. Tomemos como nosso o exemplo de Orlandi (2007b, p. 41) ao referir-se ao discurso/artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os homens são iguais perante a lei. A emergência de tal
significação silencia “as diferenças constitutivas dos lugares distintos” em nome da igualdade. Essas diferenças,
embora ausentes, perpassam o discurso.
91

e, no caso da “cidade azul”, defender a classe dos sujeitos de direito, estabelecendo quem se
adéqua a essa categoria.
A incompletude da linguagem, desta maneira, nos indica que sempre falta o Outro da
linguagem. A linguagem, assim, é o movimento das palavras em direção ao silêncio e antes de
tudo, do silêncio em direção às palavras; “o sentido é múltiplo porque o silêncio é
constitutivo. A falha e o possível estão no mesmo lugar, e são função do silêncio. Presença
[...] e silêncio [...] se enrolam no mesmo acontecimento de linguagem: o significar”
(ORLANDI, 2007b, p. 71). O silêncio é, portanto, significante. A incompletude da linguagem,
então, diz respeito à sua multiplicidade, à ausência e presença simultânea do Outro no
discurso.
O tópico “Cuidado”, iniciado em 09.03.2006, com o objetivo de discutir a comparação
sujeito criminoso-animal, evoluindo para o debate acerca do fator determinante para a
criminalidade, com 141 scraps ativos, teve, em 17.05.2006, o enunciado proferido por André
Deeh, colocado a seguir. Entretanto, a sua postagem aparentemente não foi comentada por
ninguém, em nenhum momento no tópico. Sabendo-se que os fóruns do Orkut têm seu
funcionamento baseado no comentário que, para Gregolin (2003, p. 52), por seu
procedimento, “[...] há um retorno incessante a certos textos, que os presentifica e faz com
que eles se conservem na memória de uma cultura”, entendemos que o seu scrap foi, sim,
comentado, mas que a forma material dos comentários não se deu do modo esperado, ou seja,
verbal.

Extraídos do tópico “Cuidado”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

Não é possível identificar o destinatário de seu discurso, tampouco os objetivos e a


relação com a temática do tópico, mas o silêncio dos seus interlocutores não pode ser
considerado como um vazio, pois, no silêncio, o vazio é um horizonte de sentidos. Silenciar
diante do posicionamento de André Deeh significa retomar e repudiar o dito, colocando o
locutor “em seu lugar”, ou seja, fora daquela instância enunciativa; é configurá-lo como
locutor ilegítimo, possuidor de uma língua ilegítima. É possível dizer que o silêncio, enquanto
elemento simbólico, ecoa com mais força do que a materialidade verbal, pois não é possível
mensurar o seu alcance. Os seus efeitos podem reverberar por todo o tópico, até o último
scrap, pois não é estabelecida a ilusão do fim textual. O silêncio diante do enunciado de
92

André Deeh pode evidenciar que ele não é aceito naquele agrupamento social. Os comentários
silenciosos são entendidos por André Deeh, pois ele não voltou a postar no tópico65.
Além disso, o próprio dizer de „André Deeh‟, no tópico “Cuidado”, configura-se como
um silêncio mediante os dizeres anteriores na comunidade virtual, já que, ao invés de tecer
comentários diretos a respeito das significações de seus interlocutores, opta pela utilização de
palavras de baixo calão e, assim, através desse silêncio, significa que determinado sentido
sobre direitos humanos não pode ser validado por não ser assumido pelo homem-padrão, ou
seja, viril, másculo e heterossexual. Orlandi (2007b), reiteramos, chama-nos atenção para que
compreendamos que o silêncio não tem relação com o vazio, ele não é ausência de palavras,
mas permite/evidencia a pluralidade de sentidos, o silêncio é a presença de outras
significações, apresentando materialidade simbólica, não sendo, portanto, classificado como
verbal ou não verbal.
Para a autora, o silêncio precede a linguagem, como acima mencionamos, sendo esta
uma de suas categorias. Ele não é a falta, é pleno de significação(ões), mediando a relação
linguagem-mundo-pensamento, apresentando aspectos culturais e político-históricos,
constituindo os sentidos. Por não se prender ao que já fora dito, o silêncio é um contínuo,
sempre havendo algo a dizer, um sentido a emergir, justificando a incompletude da
linguagem. O silêncio é virtualidade; ele é polissêmico. Esse é o caráter fundador do silêncio.
É a possibilidade de não dizer tudo que permite que continuemos falando. Para Orlandi
(2007b), se o silêncio fundador não existisse, se não houvesse a limitação imposta pelo
silêncio, todos os sentidos já teriam sido ditos e já não diríamos mais nada. Ele, então,
atravessa as palavras, apresentando-se sempre como o indício de uma instância significativa.
É o vir-a-ser simbólico.
É o silêncio fundador, sendo da ordem do possível e do impossível, que permite a
organização social. Os direitos humanos, enquanto materialidade simbólica e instrumento
organizador da sociedade (por ser essa uma das funções do direito, como vimos na seção
anterior), só são possíveis pelo estabelecimento de impossíveis, como a discriminação de
qualquer natureza, fazendo com que, ao mesmo tempo em que se abrem as instâncias
semânticas, feche-se o simbólico. Assim, os dizeres sobre direitos humanos atualizam o
silêncio e por isso, ratificamos, o silêncio fundador explica a incompletude da linguagem: ela

65
O silêncio pode ainda, nesse caso, significar que alguns sujeitos compartilham o posicionamento de André
Deeh e se sentem representados em sua fala, não havendo, portanto, necessidade de materializar isso. Outros
sentidos também são possíveis. Importa-nos que o silêncio possibilita dizermos que, acerca de André Deeh, os
sentidos podem ser este e aquele.
93

não pode dizer tudo. Por ser a sua materialidade simbólica ele não deixa marcas no texto,
somente pistas e traços.
É importante retomarmos a ressalva feita por Orlandi (2007b) para evitarmos a
confusão entre duas noções: silêncio e implícito, esta última elaborada por Oswald Ducrot
(1987). Para a autora, eles divergem porque na concepção de Ducrot, para significar, o
implícito precisa remeter ao dito, o não-dito deve ser entendido e significado como parte do
sentido do texto. O mesmo não ocorre com o silêncio que, ainda segundo Orlandi (2007b, p.
66), “[...] não tem uma relação de dependência com o dizer para significar: o sentido do
silêncio não deriva do sentido das palavras [...]”, ou seja, o silêncio permanece silêncio e,
ainda sim, significa. Existe, portanto, no dizer, o implícito e o silêncio. Na formulação do
Orkut, a seguir, do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, algumas considerações
podem ser feitas a respeito das noções tratadas nesse parágrafo. Entretanto, antes disso,
comentemos o nome do tópico. Quanto à noção de implícito, podemos dizer que se trata de
entendermos que se encontra subentendido no enunciado que a morte do infrator é desejável.
Todavia, do ponto de vista do silêncio, podemos avançar a significação e entendermos que tal
morte não é desejada por todos, reiterada pela necessidade do uso do adjetivo „estupenda‟
como qualificador da morte, atribuindo e reafirmando o caráter especial do fato, uma tentativa
de convencimento dos internautas em assumir tal sentido e prática.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Dessa maneira, no referido enunciado, do ponto de vista da noção de Ducrot, inserida


no contexto da enunciação do tópico, encontra-se implícito que a família realizou justiça com
as próprias mãos e que, no Brasil, tal ato não é tolerado e, portanto, passível de punição
jurídica, sentido marcado pelo uso do conectivo aditivo „ainda‟. A análise do enunciado sob o
viés do silêncio é mais ampla, pois ele é “[...] um efeito de discurso que instala o anti-
implícito [...] é o não-dito necessariamente excluído [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 73) e as
possibilidades são, dessa forma, infinitas. Por exemplo, podemos dizer que foram silenciados,
no enunciado, sentidos que indicam ser mais justa, com a sociedade e com o criminoso, a
imputação da pena da castração química, em caso de estupro. Assim, afirmamos que “[...] ao
dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma
situação discursiva dada [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 73). Referimo-nos ao silêncio
constitutivo, uma determinação do silêncio fundante e uma dimensão do que Orlandi
94

caracterizou de “Política do Silêncio”. Conforme o silêncio constitutivo, a realização de uma


palavra, de um sentido, sempre apaga outros.
Outro aspecto interessante, por tratarmos de um objeto que, além de discursivo, é
jurídico, é a outra face da política do silêncio, classificada como silêncio local, ou
simplesmente censura, uma de suas manifestações. Interessa-nos essa perspectiva, pois ela
demonstra, com muita força, a atuação do poder na/da linguagem, sobretudo quando nos
detemos em textos não-institucionais como aqueles que analisamos nesse trabalho, mostrando
que o poder não deriva somente do Estado, mas que compõe qualquer relação discursiva. A
censura pode ser compreendida como “[...] qualquer processo de silenciamento que limite o
sujeito no percurso dos sentidos [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 13), ou seja, o sujeito é proibido
de dizer determinados sentidos (indesejáveis!) em determinadas conjunturas.
Falar de sentidos indesejáveis requer que retomemos a compreensão dada à noção de
sentido feita pela Análise do Discurso. Fizemos considerações pontuais sobre o sentido ao
longo da dissertação até então, embora não tenhamos nos aprofundado em sua
conceitualização. Entretanto, ao referirmo-nos à abertura do dizer e à historicidade da
linguagem, trazemos, indiretamente, uma importante característica que o define: só é possível
a emergência de sentidos porque eles são historicamente determinados, ou seja, não podem
ser qualquer um e não apresentam uma essência fixa, mudando constantemente ao passo que,
contraditoriamente, se mantém.
Os sentidos são também ideologicamente determinados. Todavia, essa determinação
será tratada na subseção sobre formação discursiva e formação ideológica. Adiantamos
apenas que a ideologia é constitutiva do processo discursivo, podendo ser brevemente
compreendida como “[...] processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma
interpretação particular que apareceria, no entanto, como a interpretação necessária, e que
atribui sentidos fixos às palavras em um contexto histórico dado [...]” (ORLANDI, 2007b, p.
96), apresentando como elemento constitutivo a formação discursiva, compreendida como o
possível que pode e deve ser dito em uma determinada conjuntura. É importante, então,
sobretudo porque há uma relação intrínseca entre linguagem e poder, novamente insistimos,
entendermos que o sentido deve ser encarado como uma posição assumida pelo sujeito a
partir de determinadas condições de produção de discurso.
Essa significação não é aleatória, mas fruto de um gesto interpretativo. O ser humano,
enquanto sujeito, está sempre imerso no campo do simbólico e, por isso, podemos afirmar que
os sentidos sobre direitos humanos na comunidade do Orkut analisada, como aqueles que
95

questionam a legitimidade da Igreja Católica para se pronunciar acerca da temática66 só são


possíveis porque não há sentido sem interpretação, ato simbólico que se configura como “[...]
tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e
não negados [...]” (ORLANDI, 2007c, p. 87). Dessa forma, o sentido não é algo dado a priori,
mas uma construção discursiva.
Do mencionado em parágrafos anteriores, reconhecemos ser fundamental falarmos de
imediato de uma palavra associada à noção de interpretação: possíveis. Ao discutirmos acerca
do silêncio fundador, indicamos que, ao falarmos uma palavra, apagamos outras e que o
silêncio não é o vazio, mas a multiplicidade semântica. Fica-nos mais clara, nesse momento,
essa ideia, pois podemos dizer que a interpretação é o „vestígio do possível‟. Dessa forma, o
inatismo atribuído aos direitos humanos pelos integrantes do Orkut é fruto de uma
interpretação. Quer dizer que “[...] os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as
direções e se fazem por diferentes matérias, entre as quais se encontra o silêncio [...]”
(ORLANDI, 2007c, p. 46), ou seja, referente aos direitos humanos existem „à disposição do
sujeito‟ uma possibilidade infinita de significá-los, até mesmo aqueles sentidos que, para nós,
se constituem como uma impossibilidade, como aquele que nomeia outra comunidade da
“cidade azul”: “Direitos humanos dos animais”. Todavia, assumimos apenas uma dentre todas
as possibilidades, descartando as demais67. Vejamos a postagem selecionada, a seguir.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

O posicionamento de André, no tópico “Aborto”, está posto de modo bem claro em


seu enunciado. Ao assumir que a vida inicia-se com a fecundação, ele „apaga‟ outras
possibilidades de significar a ideia de início da vida, a exemplo do momento de nascimento
como ponto de partida da existência do ser humano. Entretanto, gostaríamos de chamar
atenção que no enunciado de André, para nós, o mais interessante não é o sentido em si, mas

66
Lembremos o conceito de locutor legítimo de Bourdieu (1983, p. 163), ou seja, “pessoa que convém”, locutor
dotado de autoridade, habilitada para produzir discursos sobre determinado assunto em determinadas condições
de produção.
67
Esse processo de „descarte‟ semântico não é realizado conscientemente. A Análise do Discurso trabalha essa
ideia associada à noção de ideologia e aos esquecimentos n.º 1 e n.º 2, ou seja, à ilusão de sermos origem de
nosso dizer, devido ao esquecimento da afetação do sujeito pela ideologia, e àquele da ordem da enunciação,
pois “[...] ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias
parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro [...]” (ORLANDI, 2002, p. 35), respectivamente,
sobretudo o primeiro. Na próxima subseção, trazemos mais considerações acerca desse processo.
96

algumas relações que ele estabelece (inconscientemente) com outras significações para
assumir o referido sentido. Assim, observemos o argumento utilizado por ele: a ciência como
instância discursiva. O enunciador estabelece uma separação entre o discurso científico e
aqueles oriundos da lei e da religião. Ele cria, dessa forma, dois blocos semânticos, sendo que
um deles não detém prestígio, nesse discurso, enquanto legitimador de sentidos – a lei e a
religião –, e o bloco constituído pela ciência, entendida, assim, como espaço de enunciação de
verdades absolutas.
É relevante destacarmos a composição do primeiro bloco por nós mencionado, pois ele
ratifica o que já tínhamos dito na seção anterior: a lei e, portanto, as regras jurídicas, não são
concebidas pelos membros da “cidade azul” como ciência, mas como sinônimo de religião,
adquirindo um teor moral, ou seja, norma jurídica e norma religiosa apresentam entre si
relações de paráfrase e, então, podem ser contestadas, devido à impossibilidade de
apresentação de provas físicas. Em relação ao segundo bloco semântico, temos que o sentido
proveniente da ciência acerca do surgimento da vida é visto, por André, no referido tópico,
como sendo único e, portanto, incontestável. Algumas observações podem ser feitas: parece-
nos que o enunciador entende ciência somente como sendo aquelas que podem dar respostas
exatas, como a Matemática e a Biologia. Todavia, mesmo as ciências biológicas, sobretudo
em questões de ordem filosófica como a origem da vida, não detém respostas únicas, não
havendo consenso entre os pares, pois, conforme Szklarz (2007), “[...] chegar a um conceito
sobre vida parece impossível porque ele quase sempre vem influenciado por valores
religiosos, políticos e morais”. Dessa maneira, para significar a relação entre o principal
direito humano, ou seja, a vida, e o aborto, é necessário silenciar uma cadeia de significantes
que, neste caso, vão desde o direito discutido em si até as ciências.
Assim, entendemos o campo científico como aquele que possui a interpretação
legitimada na sociedade, não apenas pelo status de ciência, mas porque, ainda que não
assumido por André, no tocante à origem da vida, muitas de suas significações apresentam
relações com os sentidos provenientes do campo religioso sobre o aborto. Tais campos são,
em palavras de Gregolin (2003, p. 49), “[...] lugares sociais organizados e reconhecidos como
portadores de fala”. Dessa forma, são silenciadas outras significações possíveis sobre o direito
à vida/realização de aborto, bem como os sentidos que indicam o que é ciência e a pluralidade
de sentidos possíveis no interior de uma mesma ciência para um mesmo fenômeno, ou seja,
sentidos oriundos de lugares de fala não reconhecidos como tal. A interpretação, assim, não é
só decodificação nem mesmo desvendamento de um sentido que está além do texto. É
necessário compreender a rede discursiva que envolve todos os sentidos.
97

A necessidade de consenso entre os teóricos de um grupo científico mostra-nos que os


sentidos são „negociados‟ no seio da sociedade e que, portanto, reiteramos, a linguagem é
polissêmica. Dessa forma, nem mesmo os locais sociais que „vendem‟ a ideia de verdade
absoluta, como a ciência, detém o poder do sentido único, pois a literalidade é uma ilusão
discursiva, que coloca em evidência o caráter material da língua, significando, com isso, a
não-transparência da linguagem e do sentido. Assim, além de se constituir através da
multiplicidade semântica, a linguagem é caracterizada pelas relações parafrásticas, quer dizer,
pelo “[...] retorno constante a um mesmo espaço do dizível [...]” (ORLANDI, 2009, p. 137),
sendo a paráfrase considerada “[...] a permanência do sentido único, ainda que nas diferentes
formas [...]” (ORLANDI, 2009, p. 155). A importância da paráfrase, enquanto funcionamento
discursivo, é destacável, pois, apesar de parecer uma contradição frente ao caráter polissêmico
da linguagem, ela é a representação de um discurso valorizado na sociedade em um dado
momento, por um determinado grupo e constrói o que chamamos de interpretação legitimada,
que assume a característica de sentido oficial, ou seja, aquele que apresenta maior capital
simbólico em uma dada condição de produção. Por funcionamento discursivo, entende-se ser
“[...] a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para
um interlocutor determinado, com finalidades específicas [...]” (ORLANDI, 2009, p. 125) e
tem na paráfrase um de seus processos. Considerada matriz do sentido, a paráfrase gera a
sensação de que existe uma verdade a ser seguida, tal qual uma cadeia de lanchonetes fast-
food que, a partir da original, abre filiações ao redor do mundo, que adota todos os
procedimentos, rituais e significações da matriz.
O mesmo ocorre com o discurso da ciência na fala dos sujeitos do Orkut, em que
temos diversas formas de apresentar o sentido da origem da vida como sendo a fecundação. O
sujeito oscila entre os sentidos permitidos pelos discursos religioso e científico, como pode
ser verificado nos discursos de Rafael e  a seguir, utilizando elementos do
segundo campo para legitimar essa associação, como a titulação de doutor. Reiteramos ainda
o indicado à folha 89, a partir dos exemplos de André, dos dias 06 e 07.05.2006, no tópico
“Cuidado”, afinal, conforme Orlandi (2009, p. 119), “[...] a mera repetição já significa
diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo”. Assim, afirmamos
que a comunidade é construída como uma paráfrase de si mesma. Apesar da ilusão de existir
apenas um único sentido para a questão, o que há são sentidos dominantes, dentre outros nem
tão valorizados: “[...] não há um centro, que é o sentido literal, e suas margens, que são os
efeitos de sentido. Só há margens [...]. todos os sentidos são possíveis e, em certas condições
de produção, há a dominância de um deles. O sentido literal é um efeito discursivo [...]”
98

(ORLANDI, 2009, p. 144 – grifo do autor). Indicamos então que o sentido literal é um efeito
utilizado para domínio social.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”. Relações parafrásticas.

Reiteramos a inexistência de apenas um único sentido na comunidade, haja vista que


ela se configura, conforme já dissemos, em um espaço de embates, apresentando, portanto,
significações que, nem sempre, estabelecem relações de paráfrases como a que pudemos
observar nos exemplos de André, à folha 89, Rafael e na folha anterior.
Indicamos apenas que as significações dominantes na comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos” são aquelas que apresentam o posicionamento que nomeia a comunidade.
Salientamos também que os sentidos, impessoais que são, constituem a identidade de um
grupo e, por isso, podemos dizer que a defesa das significações assumidas por ele faz da
linguagem palco de disputa de poder, pois constantemente deve reiterar e/para defender a sua
posição de grupo hegemônico.
Não é a primeira vez, nessa dissertação, que tocamos na questão identitária. Sobre ela,
falamos na seção 2, ancorados no pensamento de Stuart Hall (2005), e indicamos a assunção
de diferentes identidades em diferentes momentos. Dessa forma, podemos afirmar que a
formação social dominante, nesse lócus do Orkut, no período de recorte do corpus
discursivo68, ou seja, aquela que se constitui como local de fala legitimado para construir a
sua identidade, apaga os contextos de aplicação da lei, bem como as singularidades do sujeito.
Não quer isso dizer que todos assumam igualmente o mesmo sentido, afinal existe, no interior
mesmo do grupo, pontos de discordância e contradição, entretanto, em uma tentativa de
tornarem-se „iguais‟, homogeneizando a formação social há, constantemente esforços de
persuasão/convencimento do outro, negociações de sentido, cessão de posicionamentos e
turnos de fala69. O que os identifica é, além da significação assumida sobre DH, a remissão

68
Os tópicos centrais selecionados para serem analisados têm seus scraps datados no período de 09.03.2006 a
26.10.2009.
69
Interessantes as considerações de Courtine (2009) acerca da noção de individuação trabalhada por Gardin e
Marcellesi (1974 apud COURTINE, 2009). Os referidos autores entendem-na como sendo “[...] o conjunto dos
processos pelos quais um grupo adquire um certo número de particularidades de discurso, que permitem
99

constante aos teóricos do direito, a Deus, aos textos religiosos e científicos que “[...]
possibilita os movimentos de retornos, as repetições, os deslocamentos [...]” (GREGOLIN,
2003, p. 53).
A constituição do sentido se dá no interior da formação discursiva que, como já
dissemos, determina o que pode e deve ser dito, e, por isso, “[...] o sentido não existe em si
mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-
histórico em que as palavras são produzidas [...]” (ORLANDI, 2008, p. 58), passando a ser
entendida, então, como a única coisa possível de ser dita. Pode parecer estranha essa assertiva
em relação à comunidade do Orkut analisada, pois os sujeitos envolvidos têm conhecimento
do outro polo semântico: a destinação dos DH a todos os seres humanos, sendo inclusive esse
posicionamento a razão de existência da comunidade. Entretanto, tal sentido é considerado
um desvio, falta de consciência social e política de quem o assume e, acima de tudo,
ignorância, por desconhecer a verdade posta diante de seus olhos, não apenas pela imanência,
mas pelos estudos e confirmações científicos. Essa negociação de sentidos se dá, dessa
maneira, a partir da ideia de um sentido literal, único, apesar de não haver uma relação
imanente entre as palavras e as coisas.
O processo de significar não é somente a atribuição de sentidos a uma palavra, mas a
assunção de um posicionamento político. Devemos, para refletirmos nessa direção,
encararmos o fato de que não estamos lidando, do ponto de vista analítico, com textos e sim
com discursos, ou melhor, com processos discursivos. Não queremos com isso dizer que a
noção de texto não é relevante para a AD, todavia, ela é marcada pela unidade, pela
organização do dizer em início, meio e fim e, o discurso, ao contrário, é compreendido como
o elo entre linguagem, pensamento e mundo, sendo marcado pela heterogeneidade e “[...]
dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir [...]” discurso “[...] como
um espaço de regularidades enunciativas [...]” (MAINGUENEAU, 2005, p. 15) e, portanto, a
dispersão constitui-se também como característica a ser observada em nossa análise.
Por ser o sentido uma posição assumida no interior de uma FD, como já brevemente
salientamos, e o dizer ser marcado pela heterogeneidade, não é possível dizermos que os
discursos da comunidade analisada nessa dissertação pertençam a apenas um campo
social/discursivo e, dessa forma, embora não sejam oriundos especificamente do campo

reconhecer, exceto por dissimulação ou simulação, um membro desse grupo [...]” (GARDIN; MARCELLESI,
1974, p. 231 apud COURTINE, 2009, p. 64). Courtine chama atenção para o fato de que a individuação, se
pensado como um processo discursivo, é marcado pela contradição, que tem primazia sobre a primeira. Com
isso, o grupo deve ser entendido não apenas como uma relação de similitudes, mas também, e principalmente, de
contradições.
100

político, afirmamos que os sentidos sobre direitos humanos emergidos na “cidade azul” são
também seus frutos, ou seja, compõem o campo dos discursos políticos. Dessa maneira, ao
contrário da ideia que pode ser atrelada ao pensamento de Courtine (2009) por alguns de que
discursos políticos são apenas aqueles “[...] extraídos do campo discursivo singularmente
restrito dos discursos produzidos pelos órgãos de imprensa ou pelos porta-vozes dos partidos
políticos [...]” (COURTINE, 2009, p. 55), entendemos poder qualificar como político todo
discurso/posicionamento que toque/interfira, direta ou indiretamente, a vida política e pública
do indivíduo, ampliando, dessa forma, o campo nomeado como análise do discurso político70,
considerado corpora de excelência.
Aparentemente, pode não ter relevância essa ampliação, mas a qualificação dos
discursos da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos” também como
políticos gera um novo efeito de sentido, dando-lhe maior representatividade e importância na
sociedade, pois sabemos que a fala produzida pela população em geral não é considerada, por
muitos, como corpus relevante, ou seja, capaz de, através de análise, „revelar‟ com
profundidade as contradições ideológicas presentes nos discursos que formam a sociedade;
além disso, tal caracterização confere maior grau de “institucionalidade” aos referidos
discursos.
A qualificação de instituição permite-nos enquadrar os discursos da comunidade do
Orkut como um dos Aparelhos do Estado elencados e discutidos por Althusser (1998), sendo
que eles apresentam uma especificidade: o fato de compor as duas formas de atuação do
Estado, ou seja, tais quais os discursos jurídicos, os discursos da “cidade azul” constituem o
Aparelho Repressivo (ARE) e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) ao mesmo tempo,
conforme conceituação trazida à folha 29. Há tópicos em que a figura do censor (moderador)
é evocada para resguardar a identidade do grupo. Assim, qualquer significação que ameace a
unidade do grupo é posta de escanteio.
Observemos que não é suficiente em uma comunidade virtual o cancelamento do
tópico ou a exclusão das postagens dos membros que não são bem-vindos, por apresentar
significações divergentes. O silêncio é imposto pela exclusão definitiva do sujeito da
comunidade, uma espécie de pena de morte virtual como pode ser verificado a seguir no

70
Poderíamos ter afirmado que os discursos do Orkut encaixam-se melhor no campo jurídico, mas não cremos
ser a melhor classificação, pois, como vimos na seção anterior, o direito para se constituir deve ser coercitivo, ter
o poder de compelir o outro a agir ou deixar de agir conforme determinação. O ser humano é, como também
vimos na seção anterior, entendido como um ser político e os direitos humanos, por serem definidos, em geral,
como sendo constituídos para defender os direitos decorrentes da condição de humanidade do indivíduo,
parecem enquadrar-se melhor na categoria do político, ou seja, os DH são formas políticas de atuação do ser
humano na sociedade.
101

discurso do moderador da comunidade “Direitos humanos”. A expulsão, então, na “cidade


azul”, funciona como um dispositivo em que se colocam em prática as significações sobre
direitos humanos que não podem (são censuradas) existir no mundo extra-virtual, ou melhor,
que não apresentam legitimidade fora do ciberespaço. Apesar de a postagem de „Arthur
Dogbert‟ não compor o corpus selecionado para análise na dissertação, como indicamos, ela é
a comunidade que funciona como o não-dito da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos” e o silêncio, ou melhor, o dito e o não-dito atuam conjuntamente. É como se o
moderador, através da expulsão, mostrasse ao sujeito indesejado (e ao comportamento
intolerado) o funcionamento de suas significações. Ela é um dispositivo muito significativo
em uma comunidade virtual.

Extraído do tópico “Quanta hipocrisia!” da comunidade “Direitos Humanos”.

Os silenciamentos são formas de violência praticadas na “cidade azul”, sendo que,


ratificamos, nesse momento, o fato de que determinados sentidos, embora possíveis para
alguns sujeitos, não podem emergir no interior da comunidade, por não serem aqueles que
estão plenamente filiados aos sentidos defendidos pelo grupo social que define a identidade da
comunidade virtual. Assim, algumas considerações podem ser feitas acerca da postagem do
tópico “Morte estupenda de um estuprador”, abaixo colocada. Essas postagens aparecem
como a primeira e a segunda do mencionado tópico. Todavia, ao observarmos o segundo
discurso de “Vi”, percebemos que uma voz foi silenciada, já que não é possível encontrar a
pergunta a qual ela faz referência.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
102

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.

No Orkut, se o usuário resolve deixar permanentemente a plataforma, os seus rastros


no site permanecem, ou seja, suas postagens permaneceriam na comunidade, mas sob o rótulo
de anônimo. Logo duas possibilidades podem ser aventadas: ou o moderador excluiu o sujeito
e apagou suas postagens ou o sujeito, sentindo-se acuado, resolve retirar-se, apagando, ele
mesmo, os seus scraps. Acreditamos ser a segunda possibilidade a de maior probabilidade,
nesse caso, uma vez que não há menção de expulsão de algum membro no tópico.
Observamos apenas que, para Orlandi (2007b), o ato de retirar-se não pode ser considerado
autocensura, pois “[...] a censura sempre coloca um „outro‟ no jogo. Ela sempre se dá na
relação do dizer e do não poder dizer, do dizer de „um‟ e do dizer do „outro‟. É sempre em
relação a um discurso outro – que, na censura, terá a função do limite – que um sujeito será ou
não autorizado a dizer [...]” (ORLANDI, 2007b, p. 104-105). Não há indícios do retorno desse
sujeito ao tópico posteriormente, nem discussão, em longo prazo, acerca de seu
posicionamento (surgiram apenas três postagens comentando sua significação sobre o tema
tratado). Entendemos, dessa maneira, que ele foi “compelido” a retirar-se, devido à não-
identificação com os discursos do tópico, sobretudo aqueles que lhe fazem referência direta. A
comunidade constitui-se ainda como um AIE por determinar o comportamento do indivíduo
em sociedade, ainda que sua coercitividade seja apenas virtual.
Dito isso, podemos retomar a ideia de que toda assunção semântica constitui a defesa
de um lugar no campo político e, no caso da comunidade, podemos destacar como sendo
característica geral dos discursos o posicionamento político de direita e conservador, o que,
por vezes, é verbalmente explicitado pelos sujeitos e, em tantos outros, perceptível a partir das
filiações ideológicas assumidas. Indicamos que esquerda e direita representam o conflito entre
ideologias políticas71. O fechamento dos sentidos do Orkut em apenas uma etiqueta – direita –
pode parecer ir de encontro à ideia defendida nessa dissertação, ou seja, heterogeneidade
discursiva e polissemia “inerente” à linguagem. Entretanto, ao qualificarmos os sentidos como
sendo de direita, referimo-nos a ações políticas, quer dizer, “[...] ação que objetiva formar
decisões coletivas que, uma vez tomadas, passam a vincular toda coletividade [...]”72

71
Entendendo-se a noção de política não apenas como partidária, mas também como comportamento.
72
Lembremos ser o objetivo da comunidade a ação política de um grupo em defesa própria, estimulando
comportamentos.
103

(BOBBIO, 1995c, p. 40) e, por isso, não permite pensar os elementos da díade (direita-
esquerda) como sendo homogêneos, até porque a sociedade é complexa demais para ser
resumida a apenas uma dicotomia, apresentando diversos grupos de opinião e interesses
divergentes entre si. Desta forma, ainda conforme Bobbio (1995c, p. 46), “[...] não existe uma
única esquerda, mas muitas esquerdas, assim como, de resto, muitas direitas.”.
É complicado, todavia, estabelecer o que seriam sentidos de direita, pois o mundo
mudou muito desde o surgimento da díade, na Revolução Francesa. Alguns critérios podem
ser elencados para estabelecer a distinção entre esses elementos; tomamos aqui alguns. A
priori, desejamos utilizar o critério que, no imaginário social, acaba por constituir os sentidos
que definem a direita e a esquerda: o radicalismo das ideias defendidas por cada um desses
polos, a condução aos extremos dos traços ideológicos de cada „grupo‟. Constitui-se, então,
atrelada à díade principal outra dicotomia – moderantismo x extremismo, em que o primeiro é
evolucionista, concebe a história como um processo, e o segundo concebe a história como
ruptura.
Desta visão, interessa-nos o elemento que, conforme Bobbio (1995c), conecta esses
pontos – o caráter antidemocrático, isso porque ele é uma característica latente na “cidade
azul”, não apenas pelas expulsões, prática que estabelece apenas um sentido e um
comportamento possíveis na sociedade virtual, mas pelos métodos utilizados pelos orkuteiros
para não legitimar os sujeitos considerados por eles „inconscientes‟, tais como o descrédito de
suas falas, a tentativa de abandono da discussão através de contagens regressivas, como se o
sujeito estivesse falando sozinho ou fosse um artefato bélico com a finalidade apenas de
destruir o que é sólido, ou seja, uma tentativa de retirar-lhe a voz, comentários de receitas,
trechos de músicas consideradas politizadas e a postagem para conferir utilidade ao tópico,
indicando ser a fala do contestador algo infundado, como podemos observar nos fragmentos
do tópico “Quanta hipocrisia”, a seguir.

Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.
104

Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.

A antidemocracia na “cidade azul” está mais voltada para a ideologia da direita, afinal
as temáticas e os argumentos preferenciais da comunidade estão relacionados à pauta dos
grupos de direita, como a condenação do aborto e a religião como base de sustentação dos
argumentos. Embora vivamos em um estado laico, a religião, principalmente na comunidade
do Orkut, é pautada como elemento basilar das significações, portanto, da constituição dos
direitos humanos. Classificamos, então, como extremistas de direita os sujeitos do Orkut,
destacando que eles não são a totalidade, mas uma parcela considerável dos orkuteiros, sendo
que indicamos existirem vários modos e níveis de se ser extremo-direita.
Destacamos duas das várias possibilidades: o extremismo de direita pode ser assumido
a partir de sua relação (ou não) com a instituição religiosa. Dessa maneira, o posicionamento
pode se constituir a partir dos sentidos referentes aos direitos humanos, enquanto instituição
jurídica, apresentando apenas alguns sujeitos como legitimados para discuti-los, às crenças
religiosas, como instâncias legitimadoras dos sujeitos e dos sentidos que, em conjunto,
estabelecem qual lócus do campo político deve ser considerado como legítimo. Com isso, a
extrema-direita é assumida por não comportar diferenças, mudanças e por contestar ideias
tidas como „revolucionárias‟, imprimindo-lhes um julgamento desabonador.
Outras nuances são assumidas quando a extrema-direita não apresenta relação com as
instâncias religiosas. Com isso, o critério cristão deixa de existir como instância legitimadora,
e o direitista não se configura como contrarrevolucionário em relação ao ateísmo, ou seja, não
assumir posicionamentos religiosos não é interpretado como um comportamento esquerdista.
Entretanto, não quer isso dizer que a instituição religiosa não é considerada, pois ela ainda
configura-se como instituição a ser salvaguardada. Temos, então, duas sutis diferentes formas
de assumir o extremismo de direita, materializadas nos discursos de NINROD e Márcio, a
seguir, sendo que as duas veem o marxismo como uma catástrofe social e política, uma
ruptura maléfica no curso da história.
105

Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.

A díade principal (direita-esquerda) está localizada na dimensão horizontal da política


e, por isso, permite deslocamentos de sentidos e comporta o que é por Bobbio (1995c)
chamado de Terceiro Inclusivo, ou seja, o centro. Os sujeitos “caminham” nessa dimensão e
assumem posicionamentos diferentes a depender da proximidade ou não dos extremos. Não
queremos aqui pensar essa dimensão como uma série de posicionamentos homogêneos, mas
como uma série de diálogos travados entre os espaços dessa dimensão, fazendo com que cada
sujeito seja de direita à sua maneira, mesclando sentidos dos dois polos, constituindo o seu
próprio dizer. Entretanto, o que vemos na comunidade é a necessidade de assunção de um
desses polos com veemência, como evidenciado nos discursos de „André‟, a seguir, do tópico
“Aborto”, fazendo com que o centro não seja valorizado, mas concebido como neutralidade,
sinônimo de sujeito “em cima do muro”, o que não é tolerado73.

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Há sempre uma tentativa de convencer o outro do valor positivo e, acima de tudo,


verdadeiro, do posicionamento assumido pelo grupo dominante e, então, assumir o que o local
do campo político assumido determina que se signifique. Entendemos, então, conforme
Confrancesco (1975, p. 403 apud BOBBIO, 1995c, p. 81 – grifo do autor) que o homem de
direita “[...] é aquele que se preocupa, acima de tudo, em salvaguardar a tradição: o homem

73
Não consideramos os discursos da comunidade como centro-direita, apesar da tentativa de alteração de alguns
componentes da estrutura social, pois entendemos que a mudança proposta não está de acordo com o que, na
contemporaneidade, entende-se como revolução, ou seja, o total respeito às diferenças. O que querem, os
orkuteiros, a nosso ver, é a legalização do que já ocorre na sociedade, ou seja, a exclusão total dos sujeitos
infratores, a desconsideração das divergências opinativa e, de certo modo, sociais, bem como a imputação da
pena capital que, de uma certa maneira, já ocorre nos presídios super lotados do país. Lembrando que existem
posicionamentos contrários a esse na comunidade, como temos mostrado ao longo dessa dissertação.
106

de esquerda, ao contrário, é aquele que pretende, acima de qualquer outra coisa, libertar seus
semelhantes das cadeias a eles impostas pelos privilégios de raça, casta, classe, etc.” Na
comunidade virtual em questão, acresce-se aos privilégios elencados pelo teórico italiano o
comportamento do indivíduo em sociedade.
A importância do comportamento para a significação dos direitos humanos nos leva a
concordar com Bobbio (1995c) em sua afirmação de que o critério mais comum para
diferenciar a direita da esquerda seja a postura dos sujeitos na sociedade frente ao ideal da
igualdade. Com isso, aspectos como quem deve ter direito aos direitos humanos, quais
direitos são concebidos nessa categoria e com que critérios devem-se estabelecer o usufruto
de tais direitos é que acabam por definir a comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos” como direitista e conservadora, como podemos perceber ao longo dessa dissertação.
Dessa forma, a igualdade é um conceito relativo que, no Orkut, não é concebida como
universal: a máxima de que todos os homens são iguais não é paráfrase dos sentidos
assumidos pelo grupo dominante na comunidade, pois os sujeitos desse grupo se configuram
como sendo mais iguais que os outros.
Para que compreendamos o motivo do não estabelecimento de uma relação
parafrástica entre o sentido dominante na comunidade do Orkut e a máxima da igualdade
supracitada, é preciso reiterar que o primeiro aspecto elencado por Bobbio (1995c) – os
destinatários dos bens a serem repartidos na sociedade – é o que apresenta maior relevância na
“cidade azul” e isso se deve ao trajeto de constituição dos sentidos na comunidade, ou seja, ao
processo de construção da identidade de seus discursos que, conforme Maingueneau (2005),
se dá a partir de sua relação com outros discursos. Dessa maneira, retomamos o pensamento
de que o sentido é duplamente determinado: pela língua, como já discutimos, e pela história,
considerada sua exterioridade constitutiva.
Salientamos, entretanto, que “[...] quando afirmamos que há determinação histórica
dos sentidos, não estamos pensando a história como evolução e cronologia: o que interessa
não são as datas, mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam [...]”
(ORLANDI, 2007c, p. 33), ou seja, os discursos surgem apoiados em dizeres predecessores,
retomando o já dito. Dessa forma, para significar direitos humanos, os sujeitos do Orkut
retomam as significações sobre o que são os humanos, direitos humanos e sociedade,
afirmando ou refutando-as para que, com isso, possam atribuir sentido às suas palavras.
Podemos, assim, afirmar que todo discurso movimenta, atualiza discursos anteriores e, então,
conforme Courtine (2009, p. 105-106 – grifos do autor), “[...] a noção de memória discursiva
diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas
107

por aparelhos ideológicos.”74 Em virtude disso, muitas são as possibilidades de restabelecer o


percurso de constituição dos sentidos sobre DH na “cidade azul”. Todavia, para esse espaço,
escolhemos discutir dois discursos que acreditamos dar sustentação aos dizeres da
comunidade, a saber: os discursos provenientes da mídia, com destaque à mídia televisiva, e
os discursos iconográficos referentes à noção de direito.
É necessário explicarmos a razão que nos levou a selecionar apenas esses dois
discursos. Comecemos pelo discurso midiático. Os sujeitos do Orkut, apesar de utilizarem,
por vezes, jargões específicos da área jurídica, não são, em sua grande maioria, profissionais
e/ou estudiosos do Direito, o que faz com que suas significações acerca dos direitos humanos
sejam provenientes de outros campos do saber, mas, sobretudo, de instituições não-jurídicas,
como a televisão e a internet. Dessa forma, destacamos que a mídia é a mais importante fonte
de informação sobre direitos humanos dos usuários da comunidade da “cidade azul”.
Um dos elementos que nos indicam que a ciência jurídica não é, para a maioria, fonte
de conhecimento é a recorrência apenas a um documento oficial dos direitos humanos, a
Declaração de 1948. Ainda assim, entendemos que o referido documento não foi lido na
íntegra pelos orkuteiros, pois, algumas vezes, parecem demonstrar desconhecimento da pauta
dos DH75, como perceptível na fala de „Rafael Off‟, no tópico “Tá explicado o porque os DH
são assim!”: “Já está na hora do pessoal dos direitos humanos repensarem quem tem mais
prioridade de proteção: são as vítimas ou os seus agressores?” Ademais, nenhum tópico foi
criado na comunidade virtual para discutir a DUDH. A mídia, dessa maneira, como conjunto
dos veículos de comunicação, configura-se como fonte de formulações discursivas a serem
repetidas, transformadas ou negadas. Não dizemos com isso que o aparelho midiático
inculque nos sujeitos suas significações, mas que elas se apresentam como uma das bases de
sustentação dos sentidos emergidos por esses sujeitos.
Mídia é um conjunto complexo e, por isso, gostaríamos de estabelecer um recorte para
trabalhá-la. O primeiro ponto a ser visto é a internet; o segundo, o telejornalismo. A internet,

74
Evoquemos, novamente, os direitos humanos consuetudinários, citado por nós na seção anterior, para
indicarmos brevemente a atuação da memória discursiva. Não é necessário dizer, por exemplo, em algum
manual de guerra, que são inaceitáveis ataques indiscriminados. Essa prática (na verdade, a não-prática), inscrita
na memória discursiva, assume um efeito de obrigatoriedade jurídica, embora não haja um respaldo legal. Com
isso, conduzir um ataque sem um objetivo militar concreto, por exemplo, é interpretado como um desvio dos
direitos humanos, apesar de inexistir, conforme Henckaerts (2005), nos documentos oficiais sobre DH, tal norma
jurídica. Essa significação, então, só pode ter ganho sustentação devido à memória discursiva.
75
Perguntamo-nos, repetidas vezes, qual é a resposta correta para a seguinte pergunta: os indivíduos
desconhecem a pauta dos direitos humanos ou os direitos humanos não estão acompanhando a pauta dos
indivíduos? Só podemos afirmar, nessa dissertação, que existe um descompasso entre o discurso oficial e
daqueles que atuam cotidianamente com a temática dos direitos humanos e aqueles para quem os direitos
humanos existem. Entendemos, então, que os direitos humanos configuram-se como a grande pauta das disputas
de poder, sobretudo na linguagem, na sociedade do século XXI.
108

para nós, é pensada através de suas ferramentas de buscas, como a plataforma Google 76. Não
é possível estabelecer quais hipertextos são utilizados pelos orkuteiros para constituir sentidos
sobre DH, afinal de contas, ao digitarmos o sintagma „direitos humanos‟ no Google, somos
remetidos a 17 milhões de resultados77. Entretanto, o site que inicia a lista de resultados,
portanto, o mais popular, pode nos dar uma pista: o Wikipédia, conhecido por ser o site mais
acessado para pesquisas escolares no Brasil78. Alcunhado como enciclopédia livre, ele é
construído pelos internautas, que podem atualizar seu conteúdo. Por ser enciclopédica, a sua
discussão sobre a temática está dividida em introdução, história, evolução histórica,
classificação e referências79, sendo que o texto é marcado por seu laconismo.
O site pode ser compreendido como um excelente exemplar de hipergênero, pois ele é
totalmente construído através de links que remetem a outros textos. O fato de ser considerado
uma enciclopédia faz do Wikipédia um fenômeno interpretado como conjugador de todos os
saberes produzidos pela humanidade, uma espécie de biblioteca mundial, que gera um efeito
de sentido de completude, de unicidade, de evidência de que tudo que fosse possível saber
sobre um determinado assunto estivesse ali. Isso faz com que os sentidos no Orkut transitem
em ciclo parafrástico, reiterando informações compartimentadas acerca do estado
contemporâneo dos direitos humanos. Remontemos o Wikipédia ao objeto mais desejado pela
classe média nos anos pré-internet: a Enciclopédia Barsa. Quem a tinha, não precisava ter
mais nenhum livro; ela era a fonte de toda pesquisa, a detentora de todo conhecimento.
Todavia, como bem lembra Orlandi (2007c), qualquer modificação na materialidade
(no nosso caso, para o meio digital) gera diferentes gestos de interpretação e, por isso, o efeito
imaginário de completude do sentido é mais marcado no Wikipédia. Por estarem os discursos
aportados no gênero enciclopédia/verbete, as significações presentes no site também são
frutos dos sentidos materializados referentes à internet, interpretada como possuidora de toda
informação possível e, mais importante, se comparada à enciclopédia tradicional, capaz de
atualização constante, coletivamente. A internet, então, é significada como sinônimo de
democratização do conhecimento, apesar de os links e a atualização indicarem, por si
mesmos, a incompletude do dizer. Gera-se, então, um efeito de sentido de ampliação da
responsabilidade do sujeito frente às significações sobre DH, devido ao acesso facilitado às
76
Conglomerado do qual o Orkut faz parte.
77
Conforme consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico [http://www.google.com.br].
78
Conforme levantamento divulgado no site Doubleclick ad planner, referente ao mês de abril/2011, o
Wikipédia é o quinto site mais acessado do mundo, com 490 milhões de visitantes. O Orkut encontra-se no 41º
lugar, com 72 milhões de usuários. Em sua categoria – redes sociais –, só perde para o Facebook, que figura no
topo da lista. Disponível em: [http://www.google.com/adplanner/static/top1000/]. Acesso em 5 ago 2011.
79
Segundo consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_humanos].
109

informações, na contemporaneidade. Não queremos, dessa maneira, ao tratar do Wikipédia,


esmiuçar os textos na internet sobre direitos humanos. Mas é importante salientarmos a
superficialidade do conteúdo de alguns sites que, com isso, podem, já que contribuem para a
emergência de sentidos sobre DH na comunidade do Orkut, „sedimentar‟ significações
estereotipadas, como “bandido bom é bandido morto”.
Observemos os discursos de “Gordo, Fabiano” e “Ri”, a seguir, no tópico “Quem é a
igreja para falar de direitos humanos”. O primeiro indica que a história não deve ser tomada
como referência, ao afirmar a sua utilidade apenas para fins museológicos, instalando-se,
todavia, em seu discurso, a contradição, já que utiliza argumentos históricos para refutar o
sentido de ilegitimidade da Igreja como emissor de posicionamentos sobre direitos humanos.
Com isso, indicamos a assunção de duas posições-sujeito diferenciadas e contraditórias no
interior de uma mesma formação discursiva, a qual indica a igualdade de usufruto do direito
humano à liberdade de expressão. Ademais, o referido sujeito evidencia que o Google pode
ser utilizado como prova de que todos são passíveis de erro, ratificando o sentido de que todos
são emissores legítimos sobre DH bem como a discussão sobre a internet do parágrafo
anterior.

Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Contrariando “Gordo, Fabiano”, “Ri”, no citado tópico, entrecruzando o seu dizer com
os discursos religiosos – manifestação, na formulação, da memória discursiva – ironiza a
110

defesa do primeiro. A ironia por ele construída não apenas evidencia o efeito de sentido de
condenação ao Google como fonte exclusiva de informação, mas constrói outros efeitos: o
fato de o texto parafraseado ser oriundo de um livro80 (Bíblia, Novo Testamento, Salmo 23,
versículo 1) e não do ambiente virtual, corrobora o sentido de que o Google não deve ser visto
como fonte exclusiva da verdade, já que existem discursos socialmente legitimados como
possuidores da verdade absoluta81. Além disso, o entrecruzamento com os discursos religiosos
mobilizam significações que os apontam como sendo falaciosos, por não abarcarem toda a
verdade82.
Detendo-nos no vocábulo „pastor‟, na citada formulação de „Ri‟, é possível
estabelecermos que o Google seja entendido, tal qual a Igreja cristã, como manipulador dos
seus seguidores, direcionador de seus ouvintes/usuários/ovelhas para as significações de
interesse do mundo corporativo. Indica, então, uma postura acrítica dos usuários da
plataforma de buscas, que se deixam utilizar pelas instituições, como um joguete, que não
percebem o jogo ideológico ao qual estão submetidos. É interessante, assim, a significação
atribuída pelo criticado à paráfrase de “Ri”, pois seu dizer somente apresenta sentido quando
remetido à memória discursiva, ou seja, à história do dizer, porque é nela que se encontra
sustentação para significar o Google como dominação, falta de discernimento, de coerência
intelectual e consciência ideológica. A postagem em caixa alta da frase “FOI COM MEUS
PAIS” ratifica a ideia posta na sociedade de que os genitores são os únicos que apresentam
preocupação desinteressada com o indivíduo (a despeito das relações de poder constituídas
nas relações familiares), únicos a deterem e transmitirem o conhecimento que mais importa na
sociedade – o conhecimento moral. É por estar na memória discursiva que o Google pode ser
assim interpretado.
Outro aspecto da mídia que desejamos pôr em relevo é o telejornalismo, mas
precisamente a sua linha editorial. Não analisaremos nenhum programa jornalístico
especificamente, por não se configurar em objeto de estudo nessa dissertação e, tampouco,

80
Retomamos a ideia disseminada na sociedade de que um livro é a fonte do conhecimento. Esse discurso é
plenamente assumido e divulgado pela escola, principal AIE, conforme Althusser (1998), nas aulas de Literatura,
principalmente, entendendo o ato de ler como âncora de salvação da ignorância e das dificuldades do mundo
contemporâneo. O livro é o local onde o ser humano pode encontrar todas as respostas para suas dúvidas. O livro
religioso tem esse efeito maximizado pelo sujeito-leitor. Os discursos da internet ainda não foram incorporados
plenamente aos estudos e leituras realizadas e propostas, incentivadas pela escola.
81
Qual verdade seria, dessa forma, mais verdadeira? A do livro cristão? A da internet? O sujeito em questão
entende que nenhuma das duas manifestações é, sozinha, possuidoras da verdade.
82
Vários aspectos podem ser levantados para desconstruir o sentido de Bíblia como livro da verdade.
Salientamos, apenas, a pluralidade de discursos sobre o mesmo acontecimento, o que faz desse texto religioso, a
nosso ver, manifestação de contradições ideológicas e posicionamentos diversos, portanto, interpretações
diversas.
111

traremos o jornalismo impresso, pois, quantitativamente ele não é representativo para a


constituição dos sentidos sobre direitos humanos (no que diz respeito à nossa proposta).
Conforme o Ibope Mídia83, em 2009, o tempo médio de leitura de jornais pelo grupo leitor no
país foi de 35 minutos, enquanto a TV soma 126 e a internet, 161 minutos diários, cada. Além
isso, a televisão e a rede mundial de computadores, apesar de todos os problemas a elas
relacionados, são muito mais democráticas em comparação ao jornal/revista impresso(a),
atingindo, portanto, grande parte da população. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto
FSB Pesquisa84, 96,6% da população brasileira assiste televisão, sendo que 64,6% dos
telespectadores consideram o telejornal o programa de maior importância da programação
televisiva, sendo o Jornal Nacional, da Rede Globo, o preferido por 56,4% da audiência
brasileira. Desses, 27,4% escolhem o telejornal global devido à confiança por ele transmitida
quanto à veracidade das informações, apesar de que 72,1% dos entrevistados não atribuem
credibilidade à televisão.
Observemos a expressividade desses números. Eles ratificam a televisão como veículo
que, bem ou mal, instrui o cidadão brasileiro. Com isso, a televisão se constitui como o
aparelho ideológico responsável pela legitimação dos sentidos sobre direitos humanos na
sociedade, provendo os discursos do Orkut de “realidade significativa”, de espessura
histórica. Como a TV é a fonte de informação da maior parcela da população brasileira, há o
controle, na sociedade, da polissemia da linguagem, restabelecendo, assim, apenas os
implícitos e sentidos “possíveis” de emergir em determinadas condições de produção do
discurso, como as que determinam a emergência de sentidos na comunidade da “cidade azul”,
“Direitos humanos para humanos direitos”, ou seja, possibilitando apenas o “[...] retorno
constante a um mesmo espaço do dizível [...]” (ORLANDI, 2009, p. 137), dificultando os
deslocamentos de sentido, as rupturas, tanto quanto à natureza dos direitos humanos, quanto à
sua pluralidade e destinatários, fazendo permanecer o mesmo sentido sobre DH85, em suas
diferentes manifestações, em suas diferentes materialidades.
Uma única sustentação histórica para configuração das significações aliada ao grau de
legitimidade do emissor (o Jornal Nacional, por exemplo) faz com que o que apareça na
televisão assuma, para os sujeitos do Orkut, um efeito de sentido de verdade e realidade,
como atestam as falas de „Anjinho‟ e „Andy Priest‟, a seguir. Aparecer na televisão, em

83
Informação da Associação Nacional de Jornais. Disponível em: <http://www.anj.org.br/a-industria-
jornalistica/jornais-no-brasil/tempo-de-leitura>. Acesso em 31 jul 2011.
84
Disponível em: <http://www.institutofsbpesquisa.com.br/blog/?p=88>. Acesso em: 31 jul 2011.
85
Salientamos que não estamos com nossa fala qualificando os discursos do telejornalismo brasileiro como
homogêneo. Referimo-nos apenas aos discursos e sentidos dominantes.
112

telejornais, conduz a interpretação dos fatos noticiados (e, principalmente, das posições-
sujeito assumidas referentes a eles) como sendo crível, real, validado e atestado por uma
autoridade, já que o jornalista, conforme imagem construída na sociedade, tem como função
social a responsabilidade de prover os sujeitos de informações, “[...] de fornecer elementos
86
para a evolução da vida em sociedade [...]” e, portanto, de consciência, efeito de sentido
similar àquele construído pelos discursos científicos já comentados nessa dissertação.

Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Todavia, ressaltamos que a mídia no Brasil não tem preocupação com a pauta dos
direitos humanos. Embora apresentem notícias que abarquem a pluralidade que constrói essa
temática, muitas vezes sob a forma de especiais, as iniciativas de direitos humanos de cunho
social, mais precisamente as que abarcam os direitos sociais e trabalhistas, dentre outros87,
não são qualificadas e/ou nomeadas como sendo de DH, recebendo na maior parte dos

86
DHNET. Manual de mídia e direitos humanos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/dh/br/manual_midiadh/24_direitoshumanowjornalismo.htm>. Acesso
em: 29 jul. 2011.
87
Para efeito de ilustração do mecanismo de funcionamento da mídia, relembramos o recente caso de luta pelo
direito dos homoafetivos ao casamento civil. Embora as instituições midiáticas tenham feito ampla cobertura
desse processo, esse direito foi relacionado à condição de cidadania, mas não foi feita menção ampla à categoria
dos direitos humanos. Em levantamento realizado na plataforma Google, na seção Notícias
(<http://news.google.com.br/nwshp?hl=pt-BR&tab=nn> Acesso em 9 ago 2011), com a chamada “casamento
civil homoafetivo direitos humanos” apenas um link apareceu. Se mudarmos para “casamento homossexual
direitos humanos”, esse número amplia-se para nove. O baixo resultado quantitativo indica que, apesar de
constar da DUDH, artigo 16, o direito humano à constituição de uma família, a mídia não observa (ou não quer
observar) a contradição no documento, que entende família somente a partir da união de um homem e uma
mulher e não dedica-se a discutir a pauta dos direitos humanos atual, que inclui os homoafetivos como excluídos
e defende os seus direitos, haja vista que o ser humano é igual em deveres e direitos (artigo1º - DUDH), a
contrair matrimônio. Provavelmente, os discursos da mídia sobre a temática estejam filiados à formação
discursiva que não significa a união entre homoafetivos como possível e legítima e, dessa forma, impossível de
ser relacionada à categoria de direitos humanos, por ser, esta última, considerada como inerente e, portanto,
obrigatória e inquestionável. Não acreditamos que a mídia entenda os homoafetivos como destituídos da
condição de ser humano, tal qual ocorre com os infratores na comunidade da cidade azul. Com isso, a destinação
dos direitos humanos a eles não é questionável.
113

noticiários a qualificação de solidariedade ou ainda de “Criança Esperança”88. A mídia parece


entender direitos humanos, ou melhor, os discursos sobre essa temática como sendo apenas
aqueles oriundos de instituições que se definem como defensoras de tais direitos, como a
Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. Com isso, a pauta de
direitos humanos na mídia televisiva/cibernética resume-se a acontecimentos em que há a
necessidade efetiva de atuação dessas instituições para a salvaguarda dos direitos humanos,
tais como sua violação, pelo Estado, nas prisões e/ou guerras, silenciando as atuações desses
órgãos em outras situações.
Em pesquisa realizada no portal de buscas do Globo.com89, que abarca as notícias dos
sites G1, Extra Online, O Globo, Telejornais e RJTV, o sintagma “Direitos humanos”
apresenta 54.470 entradas. Elencadas a partir do critério de relevância, é possível observar
que, analisadas as vinte primeiras notícias, suas temáticas giram em torno de violência/guerra,
condenação ao apoio ao Irã, protestos no Chile, o petismo no ministério brasileiro e uma
entrada sobre uma mulher que teve a barriga perfurada. Assim, podemos verificar que o
conceito de direitos humanos na/da mídia não é pleno e não abarca a pluralidade estabelecida,
por exemplo, pela DUDH e documentos posteriores, mas constrói um campo semântico para o
sintagma, que indica DH, violência e defesa de infratores como pertencentes a um mesmo
ciclo parafrástico. Explica-se, então, com a mídia, além das considerações que fizemos sobre
os locais sociais ocupados pelos sujeitos do Orkut, a motivação das temáticas preferenciais na
comunidade virtual, pois sentidos que determinam o lazer, o trabalho e a alimentação, por
exemplo, como DH, não encontram sustentação na memória discursiva, no que diz respeito
aos sujeitos e seus discursos nessa dissertação analisados.
A repetição desses sentidos e seu efeito, e a consequente estabilização parafrástica, um
dos jogos de força na memória, conforme Pêcheux (2007), ocorre também devido à
reconstrução desses implícitos fora do ambiente cibernético, ou seja, pelos programas
sensacionalistas, tais como os apresentados por Bocão (Rede Itapoan/Rede Record), Ratinho
(SBT) e Datena (Band), que são considerados programas que transmitem a realidade, sem
medo de afrontar o Estado e que têm na violência a sua principal temática90. Observemos no
gráfico a seguir a construção da pauta desses programas. Com isso, gera-se o efeito de sentido

88
Embora a campanha “Criança Esperança” não mencione “direitos humanos”, ela está vinculada à UNESCO –
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization), que tem como base de sustentação e razão de existência a defesa dos referidos
direitos.
89
Disponível em: <http://busca.globo.com/Busca/?query=direitos+humanos>. Acesso em 9 ago 2011.
90
Irrompe, na comunidade, a desregulação, ou seja, a perturbação da rede dos implícitos, a instauração do novo,
onde esses programas são qualificados não como detentores plenos da verdade, mas como sensacionalistas.
114

de que os direitos humanos só podem ser considerados como aqueles que são
transmitidos/discutidos pela mídia, já que ela detém a legitimidade enunciativa, além de
apresentar relação interdiscursiva com a ciência, trazendo sempre elementos estatísticos como
referência argumentativa, agregando o valor de verdade a seus discursos, como é perceptível
na fala de „Anjinho‟, do dia 14.07.2006, no tópico “Seletividade do sistema penal”, destacado
na folha anterior.
Além disso, destacam-se as violações de direitos humanos e a exploração da pobreza
nesses programas, como podemos perceber no gráfico seguinte, reforçando a significação de
direitos humanos como aqueles relacionados a bandidos. Embora não sejam citados no Orkut,
com exceção de Datena, esses apresentadores lideram a audiência televisiva em seus horários.
No cenário baiano, temos Bocão como líder, o que indica que uma parte da população da
Bahia assume o mesmo posicionamento da linha editorial do programa, e seus discursos,
então, sobre direitos humanos, podem inscrever-se materialmente em uma memória, podendo,
dessa forma, significar, estabelecendo-se como uma paráfrase dos sentidos emergidos pelos
citados programas televisivos.

Enfoque da cobertura
50%

40%

30%

20%

10%

0%
Assassinato Propaganda Ação Policial Merchandising Assistencialista
Bocão 8% 44% 5% 12% 9%
Na Mira 14,80% 32% 6% 17% 6%

Principais violações
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
Sentenciamen-
Exploração/ex- Imagens de
Imagens de Filmar em to
posição das crianças e
cadáveres delegacias ilegal/incitação
famílias adolescentes
à violência
Bocão 15% 14% 4% 4% 4%
Na Mira 33,14% 26% 7% 1% 6%

Disponíveis em: <http://acertodecontas.blog.br/midia/violacao-dos-direitos-humanos-na-tv-baiana/> Acesso


em: 9 ago 2011
115

Outros discursos que dão sustentação aos dizeres na comunidade “Direitos humanos
para humanos direitos” são as imagens. Não estamos nos referindo às formações imaginárias,
relacionadas às condições de produção do discurso e à ideia de antecipação, ou seja, à
antevisão, por parte do sujeito, dos sentidos assumidos por seu interlocutor, embora ela
também seja relevante e diga respeito ao nosso corpus, uma vez que atua na estratégia de
construção do discurso (importante porque estamos diante, na “cidade azul”, de discursos
polêmicos, conforme classificação de Orlandi (2009)91), afetando o comportamento discursivo
do sujeito, determinando os seus usos argumentativos, a partir da maneira como o “[...]
locutor representa as representações do seu interlocutor e vice-versa [...]” (ORLANDI, 2009,
p. 126), estabelecendo, portanto, um lugar para o outro no discurso92. Referimo-nos ao que
discutimos na folha 45 dessa dissertação, quando, brevemente, trouxemos o sentido histórico
da imagem da deusa Iustitia. Ela é bastante significativa, sobretudo para os dizeres do Orkut,
por representar a base de sustentação do sentido que nomeia a comunidade analisada,
restabelecendo os implícitos e pré-construídos necessários para emergência da referida
significação.
É importante destacarmos que a significação atribuída à imagem-símbolo da justiça na
contemporaneidade é um deslocamento nas redes de memória, que promove uma ruptura do

91
Orlandi (2009) indica que o funcionamento discursivo é tipificante, ou seja, estabelece uma configuração para
o discurso, quer dizer, tipos de discurso são “cristalizações de funcionamentos discursivos distintos”
(ORLANDI, 2009, p. 153), baseados na relação entre s interlocutores, em sua reversibilidade (troca de papéis
entre eles) e suas relações com o objeto do discurso, ou melhor, com o fundamento da linguagem (paráfrase e
polissemia). Com isso, discurso polêmico é aquele em que a reversibilidade se dá sob certas condições e a
polissemia é controlada, já que a verdade é claramente disputada pelos interlocutores. Acreditamos que os
discursos da comunidade do Orkut enquadrem-se, ao mesmo tempo, na tipologia “discurso autoritário”, não pela
reversibilidade, mas porque a polissemia apresenta um nível de controle mais profundo (haja vista os
silenciamentos) e praticamente a existência de uma única verdade legitimada, ou seja, direitos humanos para
humanos direitos. Assim, os discursos da comunidade do Orkut movem-se entre o polêmico e o autoritário.
Indicamos que Orlandi (2009) estabelece ainda um terceiro tipo de discurso, o lúdico.
92
Observemos, por exemplo, como alguns sujeitos são levados a „aceitar‟ o discurso de seu interlocutor a partir
da análise das condições de produção do discurso e da “leitura” do outro, estabelecendo o seu lugar (e valor
simbólico) no processo discursivo. Ao constituir esse lugar, Rafael Off, no tópico “Quanta hipocrisia”, da
comunidade “Direitos humanos”, no dia 05.03.2009, afirma que convenceu-se de que os ativistas dos direitos
humanos defendem também as vítimas dos bandidos (“a sua informação me fez ver que os direitos humanos das
vítimas também são defendidos. Eu realmente me limitava muito a um ponto de vista que não enxergava o outro
lado da moeda. Estou muito grato pela sua informação”). Entretanto, apenas dois dias antes, no tópico “Olhem
esse cara debatendo na comunidade DH!”, da comunidade analisada nessa dissertação, mostrou-se bastante
convencido de que os DH são utilizados apenas para defesa de bandidos (“você argumentou muito bem lá na
comunidade, mr. Bigode. Quando eles ficaram colocando numeroszinhos em vez de argumentar, percebi o
quanto eles são arrogantes e alienados mesmo. Gente desse tipo me irrita”). Ao mencionar, no dia 03.03.2009, o
debate do qual ele também participara, ele demonstra que o seu posicionamento está bem marcado e ele
encontra-se bem inserido na formação discursiva que permite essa assunção de sentido. Assim, o seu discurso no
dia 5 é fruto não da argumentação de sua interlocutora, mas da pergunta final de seu discurso, no mesmo dia, já
que o argumento não era novidade na comunidade, sentidos semelhantes emergiram em todo o processo
discursivo desse tópico. Sua interlocutora o questionou: “você quer debater ou permanecer na insistência sobre
as tuas próprias convicções?”.
116

sentido e o irrompimento do novo. Desta forma, a máxima “a justiça é cega” deixa de


significar a postura imparcial da justiça, por não fazer distinção de cor, credo, classe social,
gênero, dentre outras diferenças atribuídas (e atribuíveis) ao ser humano, com o objetivo de
sempre buscar o equilíbrio social, sentido “original” da balança nas mãos da deusa, e
ressignifica-se, sendo atribuídos novos sentidos aos seus elementos. Com isso, a balança,
elemento fundamental na configuração do símbolo, deixa de ter relevância, como se lá nunca
estivera presente. A espada também é elemento que, na memória discursiva dos sujeitos, não
encontra materialidade e, com isso, inexiste no símbolo reconfigurado. O único elemento que
se mantém presente é a venda que fecha os olhos da deusa, mas são outros os implícitos e pré-
construídos retomados pelos sujeitos no processo de atribuição de sentidos. Dessa maneira, a
venda é significada como sendo um empecilho para a promoção da justiça, já que, ao
contrário da ideia “original”, representa a parcialidade da instituição jurídica, funcionando
apenas para servir àqueles que apresentam posicionamentos semelhantes às das instâncias do
poder dos tribunais, do jurídico e/ou àqueles que detêm maior capital simbólico na sociedade.
Portanto, a justiça, e as leis decorrentes do sistema judiciário, são compreendidas
como promotoras do desequilíbrio na sociedade. Perde-se, então, “o trajeto de leitura”
(PÊCHEUX, 2007, p. 55) da imagem, mas, devido à sua eficácia simbólica, como indica
Davallon (2007). Há a possibilidade de reconstrução, por parte dos sujeitos, de sua origem
mítica, por ela ser um operador de simbolização, um dispositivo que, mesmo deslocando-se
do processo histórico do acontecimento que lhe deu origem, possibilita a referida
reconstrução, devido à sua organização formal e à manutenção, ao longo dos anos, de sua
“potência perceptiva”, conforme palavras de Davallon (2007), ou seja, “[...] aquele que
observa uma imagem desenvolve uma atividade de produção de significação” (DAVALLON,
2007, p. 28), independente (e ao mesmo tempo dependente) dos sentidos “originais”. Dessa
maneira, concordando com Pêcheux (2007, p. 51), sinalizamos ser a imagem “[...] um
operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um
percurso escrito discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repetição e de
reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um mito”.
Concentremo-nos no tópico “Morte estupenda de um estuprador”. Sua existência está
pautada no (e só é possível devido ao) sentido de que, para os internautas, como indica
„Romir‟, no referido fórum, cujo fragmento encontra-se a seguir, não existe justiça no Brasil
para a população civil comum, ou seja, para aqueles que, como falamos anteriormente, não
detém capital simbólico. Dessa forma, o aparelho repressor jurídico e as significações a ele
associadas apontam para o sentido de parcialidade por parte de seus representantes,
117

culminando no principal argumento defendido no referido tópico: a pena de morte. A defesa


da imputação da pena capital e a assunção de sentidos condizentes com esse posicionamento
são efeitos de sentidos possibilitados pelas significações assumidas sobre a imagem acima
citada.

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

O descrédito nas instituições policial e jurídica é outro efeito de sentido decorrente


dessas significações e que permite a emergência não apenas do tópico tratado nesse parágrafo,
mas de toda a comunidade. As instituições são tratadas de forma irônica no discurso de Andy
Priest, a seguir, que interpreta o trabalho da justiça como sendo somente em prol daqueles que
não mereceriam, na visão dos sujeitos do Orkut, consideração do Poder Judiciário, por não
ocupar, o infrator, o local social de vítima, formação social que deveria, por direito, ocupado
automaticamente como consequência da ação do agressor, não apenas deter o destino da vida
de seu algoz, bem como ampliar o capital simbólico da vítima, já que, paradoxalmente, a
nossa sociedade atribui ao sujeito vitimado uma posição de prestígio social, por ser um
sobrevivente e, com isso, constituir-se enquanto narrador-personagem da história
contemporânea da sociedade, sobretudo urbana, caracterizada pela violência, marcando sua
participação na história da humanidade como herói do mundo moderno, adornando-se e
usufruindo do glamour proporcionado pelo acontecimento, muitas vezes, respaldado pela
mídia.

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Esses sentidos legitimam os sujeitos a assumirem a função social de executores da lei,


ou seja, a polícia, e permite a emergência da significação de se fazer “justiça com as próprias
mãos” como prática possível e legítima. Outra função social requerida pelos sujeitos do Orkut
é a de legislador, por acreditarem que a lei está atrasada e beneficia apenas os bandidos, como
o discurso de „Romir‟, no topo da folha destacada. Portanto, afirmamos, mais uma vez, que a
justiça é caracterizada como sendo cega e causa do desequilíbrio que marca a sociedade.
Entretanto, essa função não é assumida pelos sujeitos devido aos embates ideológicos
118

existentes sobre o Poder Judiciário/Poder Legislativo e as fortes relações de poder por eles
estabelecidas, inclusive a de coerção, elemento que caracteriza suas normas como sendo de
“direito” e faz com que o local social de legislador seja palco de disputas de poder, como
sinaliza „Ri‟, em scrap a seguir.

Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Os sentidos sobre justiça estão atrelados aos sentidos sobre direitos humanos, haja
vista que o gozo de tais direitos é uma questão de justiça, para os orkuteiros, afinal,
lembremos, DH apresentam relação com a postura comportamental dos indivíduos em
sociedade. Com isso, já que a justiça é cega, cabe aos sujeitos da “cidade azul” a missão de
esclarecer a população virtual quanto à natureza dos direitos humanos, os malefícios de seu
emprego na sociedade atual, estabelecendo, para correção dos problemas sociais, os seus
destinatários exclusivos como sendo os humanos direitos e conclamando os orkuteiros para a
luta em prol dos cidadãos de bem.

4.2 SUJEITO DO DISCURSO E SUJEITO DO DIREITO: DISCUTINDO


RESPONSABILIDADES

No percurso discursivo pela defesa dos humanos direitos no Orkut, vários tópicos
foram criados, como já mencionamos, para esclarecer os iludidos jurídicos. Ao nos
depararmos com o tópico “Morte estupenda de um estuprador”, esperávamos encontrar relatos
pessoais, entre os comentários dos sujeitos do Orkut, que remetessem a atos que objetivassem
a resolução de crimes através de aplicação da pena desejada pela vítima, independente do
estabelecido pelos ARE/AIE jurídicos. Entretanto, o que encontramos são sujeitos que,
embora enalteçam a atitude da justiça com as próprias mãos, sentem-se receosos, de uma
maneira ou de outra, com a prática, como deixam claro os discursos de „Eder‟ (“Não se
resolve uma cagada fazendo outra até pq a justiça pelas mãos de vingadores é sempre superior
à dimensão do ato primário”) e „Percival Forever‟ (“quem somos nós para fazermos o
julgamento e execução?”), no tópico “Morte estupenda de um estuprador”.
Questionamo-nos, então, as razões que fazem da justiça pessoal um fato pontual,
apesar de percebermos ser um sentido aceito e difundido na comunidade da “cidade azul”. E
essa resposta só pode ser obtida se, mais uma vez, retomarmos um elemento fundamental que
119

constitui a linguagem e o sujeito: o poder. Dessa maneira, podemos afirmar que os sujeitos do
Orkut são, assim como qualquer sujeito, controlados pelas instâncias do Estado que,
principalmente utilizando o Direito, “[...] coagem o sujeito, insinuam-se nele de forma
discreta [...]” (HAROCHE, 1992, p. 21), disciplinando e normalizando sua subjetividade, bem
como suas ações em sociedade. Com isso, o Estado “[...] mantém uma relação coercitiva com
seus cidadãos [...]”, conforme Lagazzi (1988, p. 17), estabelecendo suas formas de controle,
como as exigências de uma língua padrão nacional, de um linguajar jurídico específico, bem
como as exigências estabelecidas pela lei. Os sujeitos, dessa forma, entendem que não podem
exercer a função social de legislador nem de executor da lei penal, haja vista que o Estado
determina ao sujeito a ideia de que somente ele é legítimo para, através da sua capacidade
exclusiva de solucionar crimes e julgar, estabelecer o devido processo legal e instituir
punições, a exemplo da de homicídio qualificado, cujo infrator é punido com detenção
máxima de 30 anos, conforme artigo 121, do Código Penal93, e não com a pena capital, como
defendem e acreditam os sujeitos do Orkut. Assim, o Estado, a quem o sujeito deve
obediência, sobretudo no tocante ao respeito à legislação, é compreendido como “[...]
conjunto de crenças que se apoderam, ou melhor, tomam o lugar de um desejo feito de um
„dito‟, de „explícito‟ e de „lei‟ [...]” (HAROCHE, 1992, p. 192) e, com isso, pelo poder e
controle que exerce através dos ARE e AIE, é também responsável pelo processo de
constituição dos sujeitos.
A natureza dos sentidos sobre direitos humanos na comunidade do Orkut, frutos de
uma interpretação e não da inexistente relação intrínseca, natural entre as palavras e as coisas,
reflete a natureza dos sujeitos que os assumem: não se trata de indivíduos empíricos, sujeitos
idealistas, mas de sujeitos discursivos, simbólicos, frutos de uma determinação inconsciente,
ideológica e enunciativa, conforme Gallo (2001), produzidos, por conseguinte, através da
interpelação ideológica dos indivíduos, necessária para a emergência de sentidos na “cidade
azul”. O sujeito do Orkut é, então, constituído pela “[...] identificação (do sujeito) com a
formação discursiva que o domina [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 150); dessa forma, a
emergência de sentidos como “direitos humanos para humanos direitos” derivam da filiação
do sujeito a uma FD, onde o sintagma „direitos humanos‟ apresenta possibilidades de receber
sentidos. Identificamos, na “cidade azul”, duas formações discursivas básicas às quais
nomeamos DH-historicidade e DH-inerência, que, devido à inscrição dos sujeitos-internautas,
determinam as significações sobre DH, constituindo os sentidos a partir de relações

93
BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>.
Acesso em: 19 ago. 2011.
120

simbólicas com duas correntes jurídicas, a saber: juspositivismo e jusnaturalismo. Sobre essas
formações discursivas especificamente, discutimos na subseção posterior.
É importante ressaltar que a interpelação ideológica ocorre através do interdiscurso, ao
fornecer ao sujeito a sua realidade. Dessa maneira, retomando o tópico “Aborto” e entendendo
o interdiscurso como “uma região de encontros e confrontos de sentidos” e que “[...] a
interpretação se alimenta exatamente dessa contradição: ao mesmo tempo em que os discursos
se confraternizam, eles se digladiam no campo social [...]” (GREGOLIN, 2003, p. 50),
indicamos que os indivíduos no Orkut são afetados pela língua em sua relação com a história
e, por isso, constituem-se como sujeitos perpassados pelas instâncias discursivas religiosas,
que os levam a assumir sentidos como os que condenam o aborto devido ao caráter sacro da
vida e à relação interdiscursiva com os discursos dos dez mandamentos bíblicos, dentre
outros, por alguns discursos dos movimentos dos excluídos, como o movimento em defesa
dos direitos da mulher em gerir o próprio corpo, sentidos que perpassam os discursos do
tópico “Aborto”, como pode ser verificado a seguir, discurso que constitui a fase atual de
debates dos direitos humanos na esfera política, pelos discursos das ciências, especialmente as
ciências biogenéticas, que almejam estabelecer o momento efetivo de início da vida,
discussão fundamental que entrecruza a constituição de sentidos sobre DH, haja vista dizer
respeito ao direito94 que possibilita os demais direitos que compõem o rol dos direitos
humanos, mas, principalmente, os sujeitos do Orkut são constituídos pelos discursos das
instituições jurídicas/estatais, convertendo-os em sujeitos-de-direito que, portanto, devem ser
dotados de direitos e deveres e nos leva à compreensão de que a interpelação torna “[...]
tangível o vínculo superestrutural [...] entre o aparelho repressivo de Estado (o aparelho
jurídico-político que distribui-verifica-controla “as identidades”) e os aparelhos ideológicos
de Estado, portanto, o vínculo entre o “sujeito de direito” [...] e o sujeito ideológico [...]”
(PÊCHEUX, 2009, p. 140 – grifos do autor).

94
Direito à vida.
121

Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Assim, o sujeito do Orkut, devido à contradição a que está submetido, pela sua
constituição interdiscursiva diversificada é „sujeito de‟ e „sujeito às‟ instâncias ideológicas, à
história, aos discursos; é assujeitado à religião e ao Estado. Este último ponto é bastante
intrigante, pois, de acordo com Haroche (1992, p. 217 – grifos nossos), “[...] o assujeitamento
à religião não pode se confundir nem coexistir com o assujeitamento ao Estado [...]”.
Entretanto, esse fenômeno é plenamente possível na “cidade azul”, pois a comunidade
configura-se como um manifesto contra o Estado, questionando as suas práticas e seus
sentidos; mas, por outro lado, constitui-se também como uma „declaração‟ de assujeitamento
dos sujeitos ao Estado, de subordinação, opressão e disciplinarização da subjetividade desses
sujeitos pelo Estado, já que os integrantes o seguem, respeitam e desejam, buscando a
aquiescência do mesmo em relação aos seus sentidos e atitudes referentes aos DH, muitas
vezes perpassados por significações oriundas da esfera discursiva religiosa-cristã que dão
sustentação aos seus dizeres.
Cremos poder afirmar que o acontecimento discursivo no Orkut está estruturado para
chamar a atenção da sociedade em relação à temática desenvolvida, mas, sobretudo,
conclamar a presença do Estado, intervindo nele, gerando o efeito-sensação de, efetivamente,
ocupar o Estado, fazendo parte dele, pertencendo a ele, constituindo os sujeitos do Orkut
enquanto seus representantes legítimos. O Estado, portanto, é a motivação da existência da
comunidade, seus discursos são negociações de poder entre os sujeitos e a esfera estatal e tal
embate configura a identidade do sujeito do Orkut, como sujeito legítimo dos direitos
humanos, decorrente de sua identificação-interpelação, e resultante da crença na lei e na letra
jurídica, uma das marcas dos efeitos de seu assujeitamento. Ademais, somente a configuração
desse sujeito enquanto ente simbólico, ao mesmo tempo laico e confessional e o fato de que
“[...] a materialização do sujeito do discurso não se dá através de uma marca enunciativa, mas
através de uma operação sintática que define as paráfrases possíveis na relação com o
enunciado [...]” (GALLO, 1990, p. 81), permitem o estabelecimento de relações parafrásticas
na emergência de sentidos para o termo „direito‟ que, como já vimos, apresenta, na
comunidade do Orkut, estatuto sinonímico com as normas morais, que apresentam
sustentação religiosa-cristã em nossa sociedade.
122

As determinações do interdiscurso sob os sujeitos fazem com que estes sejam


entendidos como uma posição ocupada por eles quando “[...] inscritos na estrutura de uma
formação social [...]” (CAZARIN, 2007, p. 109) e, portanto, os sentidos são uma tomada de
posição desses indivíduos interpelados, no funcionamento da ideologia. Como destacamos
anteriormente, os sujeitos não apresentam apenas um determinante e, por isso, o
estabelecimento da posição-sujeito assumida pelos integrantes do sítio da internet não pode se
dar de forma homogênea. Assim, os sujeitos da “cidade azul”, na relação do simbólico com o
político, constituem-se como uma simbiose de duas posições-sujeito, que vai gerar uma
posição-sujeito híbrida. Não queremos com isso afirmar a junção de dois lugares discursivos
homogêneos, até porque o sujeito discursivo é marcado pela dispersão e heterogeneidade;
queremos salientar apenas o processo que culminou na constituição do sujeito analisado.
Dessa forma, destacamos dois lugares que atuam para que se dê a posição-sujeito assumida na
comunidade da “cidade azul”. Assim, para simbolizar, o indivíduo, ratificamos, é interpelado
e ocupa a posição de ser humano para enunciar. Seus sentidos, então, estão filiados a lugares
que indicam o caráter biológico do ser vivo. Nessa posição, no tocante aos direitos humanos,
emergem as necessidades do sujeito mais voltadas à saciedade de seus interesses referente à
sua estrutura corporal e, por isso, o direito à vida passa a ser o mais discutido e, portanto, o
mais relevante para os internautas.
Entretanto, podemos observar que essa posição-sujeito não se encaixa integralmente
na configuração dos sujeitos do Orkut, pois eles assumem também aquela que os definem
como cidadãos. Nela, os aspectos sociopolíticos apresentam um grau de relevância maior e,
portanto, os direitos humanos revestem-se da necessidade de observância do aspecto
comportamental do indivíduo em sociedade. Dessa maneira, o sujeito é aquele que, por ser um
ser político, precisa investir-se da lei e do Estado, possuí-los e, com isso, saciar suas
necessidades, que apresentam relação com aspectos políticos e, assim, discussões como o
estabelecimento dos destinatários legítimos dos direitos humanos e quanto à legitimidade da
pena de morte apresentam maior relevância na comunidade. Sabemos serem várias as
posições assumidas pelos sujeitos no decurso de suas práticas discursivas, bem como que
“[...] no interior de uma posição-sujeito, convivem microrregiões de saber que são marcadas
pela diferença na forma de se relacionar com o efeito de unidade discursiva da posição-sujeito
[...]” (CAZARIN, 2007, p. 115-116), o que gera diferentes formas de o sujeito se relacionar
com seu discurso.
Todavia, afirmamos que no Orkut há a hibridização dessas posições-sujeito, e não
apenas a sua coexistência, pois suas significações são assumidas igual e simultaneamente
123

pelos sujeitos, apresentando a mesma força simbólica. A hibridização condiz com a


constituição do sintagma „direitos humanos‟ que, como já destacamos nessa dissertação, é
marcado pela contradição: como designar um direito como sendo humano se tal categoria
comporta direitos que fazem parte especificamente de outro campo jurídico, como o direito
trabalhista? Seriam, os direitos humanos, uma espécie de direito constitucional? Não nos cabe
responder a essas perguntas nessa dissertação, mas salientamos o caráter plural dos direitos
humanos que faz com que eles sejam um campo constituído por vários outros; ele é vários em
um só; ele é híbrido. Assim, quando o sujeito do Orkut é humano, ele também é cidadão e
esses lugares afetam-se reciprocamente. Desse modo, defendemos que a hibridização das
posições-sujeito corresponde melhor ao fenômeno discursivo ocorrido no Orkut. A posição,
então, ocupada pelos sujeitos é por nós nomeada de „cidadão-humano‟. A ordem dos
elementos, para nós, na “cidade azul”, não parece ter relevância, dado à simultaneidade dos
sentidos a eles relacionados. Entretanto, preferimos a realização estabelecida para enfatizar o
aspecto jurídico-estatal dos posicionamentos, já que a temática discutida na comunidade é de
cunho jurídico e pela importância atribuída ao Estado pelos orkuteiros, como já destacamos.
O „cidadão-humano‟, então, é uma combinação da determinação religiosa e do sistema
jurídico-político no sujeito, constituindo o que é denominado de forma-sujeito. Assim, o
sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o constitui e assume a
identidade, aparentemente contraditória, de ser submisso aos sentidos estabelecidos pelas
discursividades religiosa-cristãs, em que o sujeito é extremamente limitado no seu dizer, por
estar submetido a uma entidade que não apenas é detentora de todo conhecimento sobre o
universo, possuindo todas as respostas para as questões que angustiam a existência humana,
delimitando, dessa forma, as suas significações e práticas, como demonstra o discurso de
André a seguir, bem como é possuidora do título de criador, o que converte o ser humano em
credor da instância divina, por dever a Ele a vida e a sacralidade dessa existência.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Ao mesmo tempo, o sujeito na “cidade azul” constitui-se como livre por, através da
determinação jurídica, poder ir onde desejar e expressar o que tiver vontade, tendo, aliás, o
dever de fazê-lo, sendo possuidor de direitos na sociedade em que vive. É concebido como
um indivíduo autônomo, que não apresenta dependência existencial de nenhuma entidade, que
vê no Direito o espaço de concretização de seus direitos naturais, o que atribui à instância
124

jurídica prestígio semelhante ao da instância divina. Com isso, põe-se em relevo o efeito
ideológico de sua interpelação, com a ideologia estabelecendo o que o sujeito é e o que deve
ser, ou seja, a ideologia “[...] fornece „a cada sujeito‟ sua „realidade‟, enquanto sistema de
evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas [...]” (PÊCHEUX, 2009, p.
149).
Devido a isso, no Orkut há a crença de que o sujeito pode expressar qualquer
significação sobre direitos humanos, como os sentidos que, na sociedade real marcada pela
defesa da igualdade, são qualificados como ilegítimos e, por vezes, ilegais, como a pena de
morte precedida de tortura ao sujeito-criminoso, a depender de seu delito, resultando daí a
necessidade do Orkut para que o sujeito possa exercer plenamente o seu direito de expressão.
Há ainda, no Orkut, a evidência de que o sujeito é único e insubstituível, ao mesmo tempo em
que é legalmente igual aos demais indivíduos da sociedade. Ressaltamos, entretanto, que a
insubstituibilidade do „cidadão-humano‟ dá-se apenas no tocante aos humanos direitos, como
temos visto ao longo dessa dissertação, pois o mau comportamento descaracteriza o sujeito
enquanto entidade humana. Assim, o poder jurídico instala-se no sujeito e procura “[...] fazer
do homem uma entidade homogênea e transparente, faz do explícito, da exigência de dizer
tudo e da „completude‟ as regras que contribuem para uma forma de assujeitamento paradoxal
[...]” (HAROCHE, 1992, p. 23). Dessa maneira, o sujeito vive sob a ilusão de que é um ser
consciente, origem de suas significações, possuidor de direitos que, embora contraditórios e
nem tão explícitos95, fazem do sujeito o comandante da sua vida. Constitui-se, então,
enquanto sujeito-de-direito.
O sujeito-de-direito é um efeito da estrutura social capitalista e, por isso, tem relação
com o desenvolvimento econômico, responsável não apenas pelo avanço de questões
financeiras, mas pelo desenvolvimento da instituição jurídica, que passa a englobar os sujeitos

95
O inciso VII, do artigo 5º, da Constituição Federal (disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 5 nov. 2010),
estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política”. Entretanto, é possível a um médico entrar na justiça para solicitar autorização judicial para realização
de procedimentos médicos que vão de encontro à crença religiosa do paciente e de sua família. Malgrado ser
uma violação dos direitos humanos, conforme interpretação de alguns juristas, não é incomum uma sentença
favorável aos médicos (vide TERRADAS, Ademir. Justiça autoriza transfusão em testemunha de Jeová. Assine
Bom Dia. Disponível em: <http://www.redebomdia.com.br/Noticias/Dia-a-
dia/47137/Justica+autoriza+transfusao+em+testemunha+de+Jeova>. Acesso em: 3 mar. 2011), sob a alegação de
que o direito à vida deve sobrepor-se aos demais. Parece-nos contraditório e uma demonstração do controle do
Estado sob a vida dos sujeitos, já que uma das instâncias da vida humana é o seu aspecto cultural, um dos
elementos que nos diferencia dos animais, que a religião apresente menor valor. Importa-nos, entretanto, a ideia
de que o sujeito vive sob a ilusão de que é livre para exercer plenamente todos os seus direitos, conduzir sua vida
conforme suas crenças, embora submetido ao poder do Estado. Eis uma demonstração da interpelação ideológica
do indivíduo.
125

enquanto possuidores de direitos e deveres, para que possam sustentar a maquinaria que
possibilita o desenvolvimento. Dessa forma, para Legendre (apud HAROCHE, 1992, p. 158),

[...] ser sujeito-de-direito não é nada mais que „ser para a Lei‟ /.../. isto não se dá sem
consequências, se a própria idéia do sujeito-de-direito implica, sobretudo e
finalmente [...] que no universo das instituições centralistas não haja senão um só
discurso possível e que ninguém possa avançar de rosto descoberto como tendo de
fazer valer um desejo próprio

Devido a isso, embora os sentidos dos sujeitos do Orkut divirjam do discurso oficial
sobre direitos humanos, que os atribuem a todos os seres humanos, eles são compelidos a
adotar as práticas estabelecidas pela lei porque, somente assim, passam a existir socialmente
e, com isso, podem usufruir das benesses proporcionadas pela máquina capitalista, tornadas
objetos de desejo, sem as quais a vida moderna é interpretada como inviável. Apesar de a
categoria dos direitos humanos ser significada pelos integrantes da “cidade azul” como
direitos naturais à condição de humano (com restrições), o estabelecimento do
comportamento como critério para conferência desses direitos reflete o apagamento subjetivo
a que está submetido aquele que não se enquadra nas características estabelecidas para um
cidadão brasileiro, apesar de tal qualificação no Orkut centrar-se muito mais na esfera dos
deveres do que na dos direitos, haja vista que parece não existir na comunidade virtual
nenhum sujeito que exerça plenamente os seus direitos de cidadão96.
Esse posicionamento reflete ainda o lugar ocupado pelo sujeito na sociedade, inclusive
a virtual, como operário do poder estatal, exercendo, portanto, como dissemos, muito mais os
deveres a ele impelidos do que os direitos, ratificando, dessa forma, o caráter coercitivo do
sujeito-de-direito, como pode ser verificado nos discursos do tópico “Seletividade do sistema
penal” postos a seguir. Tal fato também explica a razão que faz com que na comunidade
virtual os direitos humanos em si, com exceção do direito à vida, através dos debates sobre
pena de morte e aborto, não sejam debatidos. Direitos como lazer, família e participação na
vida cultural não são interpretados como direitos humanos, talvez sejam significados como
conquistas pessoais dos indivíduos, independente da participação do Estado e do jurídico;
ironicamente, são esses os direitos com mais chances de se constituírem como desejos
individuais do sujeito e, por isso, como categoria passível de reivindicação social que pode
separar a sociedade em grupos muito heterogêneos, o que não é muito interessante para as
relações de poder estabelecidas pelo Estado.

96
Em verdade, afirmamos não existir cidadão pleno na sociedade, pois sempre há um direito ou um dever sendo
negado a/por um cidadão.
126

Extraídos do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.

Sujeito-de-direito é uma categoria valorizada e almejada pelos integrantes do Orkut,


não bastando, portanto, ser humano para ter direito a direitos; é uma premiação para os
sujeitos que, interpelados e identificados pela ideologia jurídico-capitalista, assumem os
sentidos estabelecidos pela formação discursiva que os dominam, embora o façam sob o
manto da ilusão da consciência e autonomia, como se esse fosse o seu desejo.
O sujeito-de-direito é marcado pela passividade, devido ao seu caráter coercitivo e isso
faz com que, por exemplo, os sujeitos da “cidade azul” não pratiquem justiça com as próprias
mãos apesar de entenderem ser uma prática possível. Por isso, o sujeito que, por ventura, não
se identifique com as formações discursivas que apresentam relações de paráfrase com os
posicionamentos estabelecidos pelo Estado, encontram-se alijados do sistema capitalista e são
punidos por isso. Contudo, conforme Cazarin (2007, p. 111), “[...] a forma-sujeito regula, mas
não garante a identificação plena”. Isso quer dizer que também há luta contra a evidência
ideológica da forma-sujeito e a tomada de posição pode se dar através da contraidentificação
em relação à formação discursiva na qual o sujeito encontra-se inscrito, constituindo o mau
sujeito; há ainda a tentativa, por parte do sujeito, de modo inconsciente, de reversão da
determinação, simulando “[...] o interdiscurso no intradiscurso [...] como o puro „já-dito‟ do
intradiscurso [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 154), em um processo de incorporação-dissimulação
dos elementos do interdiscurso97.
Dessa maneira, as posições-sujeito encontradas são também resultantes de
divergências que materializam a diferença e a desigualdade no interior da formação

97
Os elementos do interdiscurso são o pré-construído e a articulação. Conforme Pêcheux (2009, p. 151), “[...] o
„pré-construído‟ corresponde ao „sempre-já-aí‟ da interpelação ideológica que fornece-impõe a „realidade‟ e seu
„sentido‟ sob a forma da universalidade (o „mundo das coisas‟).” A articulação, por sua vez, “[...] provém da
linearização (ou sintagmatização) do discurso-transverso no eixo do que designaremos pela expressão
intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo [...]; portanto, o conjunto dos
fenômenos de „co-referência‟ que garantem aquilo que se pode chamar o „fio do discurso‟.” (PÊCHEUX, 2009,
p. 153).
127

discursiva, como evidenciamos à folha 109, com os discursos de “Gordo, Fabiano” e “Ri”.
Assim, o fato de o sujeito do Orkut estar submisso às instâncias jurídicas e, por isso, seu
modus vivendi não condizer com todas as suas significações sobre direitos humanos, é
também indicativo de que se instalou na FD a contraidentificação, haja vista que os sentidos
sobre DH não são integralmente os mesmos estabelecidos pela ideologia dominante que os
interpelou. Desse modo, irrompe a falha, o equívoco da interpelação ideológica. Afirmamos,
então, através das palavras de Pêcheux (2009, p. 165-166) que “[...] no espaço de
reformulação-paráfrase de uma formação discursiva – espaço no qual, como dissemos, se
constitui o sentido – efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina [...]”
e é esse acobertamento das outras possibilidades semânticas, do processo de interpelação e
dos elementos do interdiscurso que permite aos sujeitos da “cidade azul” constituírem-se
enquanto sujeitos-de-direito.
Esse mascaramento das determinações que constituem o sujeito, responsável pela
ilusão de ser livre e proprietário de direitos, gestor pleno da própria vida e das significações e,
portanto, responsável pelo apagamento de sua submissão frente ao poder e de sua limitação
simbólica é um efeito da interpelação ideológica, nomeada por Pêcheux (2009) como
esquecimento n.º 1, fundamental para o funcionamento da forma-sujeito. Desse modo, o
sujeito não tem acesso ao exterior da formação discursiva que o domina, nem mesmo tem
consciência de que é fruto de um processo de interpelação, acreditando preceder ao discurso
e, assim, acredita serem os seus sentidos os únicos possíveis na esfera semântica sendo,
portanto, a relação entre as palavras e as coisas de cunho natural e inerente. Entende-se, então,
as significações emergidas sobre direitos humanos na comunidade virtual, que concebem esse
constructo político-jurídico como direitos próprios á humanidade do homem, embora o direito
seja uma categoria política e os sujeitos tenham a necessidade de utilizar um critério social – o
comportamento – para sustentar a tese da inerência dos DH. Confere-se, dessa maneira, aos
direitos humanos, um estatuto de poder que é bastante desejado pelos internautas.
Ligado ao inconsciente, o esquecimento n.º 1 opera através do funcionamento do
esquecimento n.º 2 que, ligado ao pré-consciente, tem relação com o processo de elaboração
intradiscursiva, ou seja, com o processo de seleção de enunciados, formas linguísticas (e
também não-verbais, a depender do caso) no interior da FD que domina o sujeito. Assim,
pertence à zona dos processos enunciativos e gera, no sujeito, o efeito de domínio dos saberes
objetivos da realidade, pois é fruto da ilusão da possibilidade e capacidade do sujeito em
manipular o conhecimento, selecionando as formas linguísticas mais adequadas para
expressá-lo. É por essa razão que, embora sejam possíveis diversas maneiras de externar o
128

sentido assumido de que os direitos humanos são uma categoria jurídico-natural que devem
ser usufruídos apenas por sujeitos que apresentam o comportamento determinado na
sociedade, a expressão “direitos humanos para humanos direitos” seja a eleita pelos sujeitos
como a formulação que melhor expressa o sentido assumido por eles, sendo, portanto,
bastante repetida na “cidade azul”. Todavia, é importante ressaltar que, apesar de o
esquecimento n.º 1 estar relacionado a um campo inacessível ao sujeito e o esquecimento n.º 2
apresentar, por parte do sujeito, certo grau de acessibilidade, eles estão conectados, pois,
conforme Teixeira (2005), o primeiro regula a relação entre as formulações ditas e as não-
ditas no fio do discurso, devido ao segundo esquecimento. Deve-se isso ao fato de que o pré-
consciente “[...] caracteriza a retomada de uma representação verbal (consciente) pelo
processo primário (inconsciente), chegando à formação de uma nova representação, que
aparece conscientemente ligada à primeira, embora sua articulação real com ela seja
inconsciente [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 163). Ratificamos, ainda, a possibilidade do furo, da
falha no processo de interpelação, e isso inclui, portanto, os esquecimentos elencados por
Pêcheux.
Os sentidos sobre direitos humanos no Orkut, ainda que apresentem determinações
variadas, são construídos sustentando-se nas significações referentes à responsabilidade.
Mesmo que o sujeito do Orkut compreenda o ser humano como um ser histórico ou como um
ente natural, ou seja, independente da formação discursiva a que esteja filiado, a sua postura
em sociedade é critério para atribuição de direitos humanos e, por isso, a conferência de tais
direitos está vinculada à ideia do livre-arbítrio e aos deveres condizentes à condição de
cidadão. Entretanto, é possível o questionamento acerca da possibilidade de atribuição de
responsabilidade aos seres humanos, haja vista a existência de alguns entraves que podem
dificultar essa responsabilização. O primeiro deles está centrado nos discursos dos sujeitos da
“cidade azul” e diz respeito à incongruência de se ser um ente natural e, por isso, ter atitudes
consideradas antissociais, qualificadas como desvios provocados por falha de constituição
biogenética, ou seja, o indivíduo, a partir de ações que não dizem respeito às leis naturais
(pelo menos os manuais de biologia não fazem menção à associação entre comportamento
ilegal e defeito genético98), ser qualificado como “sangue ruim”. O caráter natural do ser
humano, que poderia justificar os desvios de conduta, ou, pelo menos, servir de atenuante na

98
Existem estudos que associam hereditariedade e comportamento. Todavia, pesquisadores como Bussab (2000),
salientam que tais evidências genéticas não atuam isoladamente, sendo dependentes do estímulo ambiental. In:
BUSSAB, Vera Silvia Raad. Fatores hereditários e ambientais no desenvolvimento: a adoção de uma perspectiva
interacionista. Revista Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, v. 13, n. 2, 2000. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/html/188/18813204/18813204.html>.
Acesso em: 22 ago. 2011.
129

comunidade virtual, desqualificando a pena capital como possibilidade jurídica, é interpretado


pelo viés da já citada noção de livre-arbítrio, que faz do sujeito infrator um ser responsável
pela conscientização de si mesmo e, portanto, responsável pela solução de seu problema
biogenético, tal como um enfermo é o único responsável pela correta ingestão de
medicamento prescrito por seu médico.
O segundo entrave na responsabilização do sujeito é de ordem teórica: como
responsabilizar um sujeito que não é detentor de suas significações, não tem consciência de
seu processo de constituição, vive sob o manto da ilusão da autonomia e é, ao contrário,
ideologicamente submisso? A responsabilização do sujeito ocorre a partir do processo de sua
individualização promovido pelo Estado. Com isso, ele é uniformizado, tendo a sua dispersão
apagada. Conforme Gallo (1990, p. 155), a “[...] posição-sujeito absorve as determinações
específicas (as coerções específicas) e produz um efeito de sentido determinado, um efeito de
homogeneidade, apagando as ambiguidades.” Assim, o sujeito, determinado pela língua e pela
prática da textualização imposta pelo AIE mais atuante/presente na constituição do sujeito,
conforme Althusser (1998) – a escola –, produz seus sentidos alicerçado pelo efeito de
fechamento do texto, que deve seguir sempre uma estrutura-padrão.
O Orkut, a partir desse ponto de vista, não se configura como espaço de produção nem
legitimação do novo, pois as formas textuais, nelas se incluem os scraps, devem estar
respaldadas pelo modelo de texto jurídico, com sua estrutura e seu vocabulário próprio99, além
de ser caracterizado pela clareza, unidade e não-contradição. Com isso, o Estado, através do
Direito, impõe ao sujeito a literalidade, a necessidade da emergência do explícito linguístico,
o que faz com que o sujeito seja (e sinta-se) responsável pelos sentidos e ambiguidades
presentes no seu texto100, também responsável pela sua organização, ou seja, pela seleção das
formas linguísticas que compõem a sequência discursiva, bem como pelo seu fechamento.
Assim, o sujeito reveste-se da ilusão da consciência de si, vê-se como uma entidade livre,
singular, uniforme, independente, coerente e, por isso, responsável, como destaca „André‟, no
fórum “Aborto”, a seguir, características atribuídas (e necessárias) ao sujeito-de-direito para
que se processem as práticas jurídicas, afinal, conforme Mariani (2010, p. 120),

99
Reiteramos que há na comunidade virtual a tentativa, por parte da maioria dos integrantes, de uso dos jargões
do universo jurídico, bem como a demonstração de conhecimento das especificidades da área o que, muitas
vezes, gera um fenômeno equivalente à hipercorreção. Vimos anteriormente que o desvio do texto padrão, com
sua linguagem especializada, é repudiado no Orkut.
100
É importante por em relevo a distinção entre discurso e texto. O primeiro, como já vimos, diz respeito à
dispersão e aos processos ideológicos, enquanto o segundo é resultante de processos enunciativos e é marcado
pela unidade. Ambos os conceitos estão conectados, sendo um efeito do outro.
130

Althusser demonstra que essa categoria do sujeito-consciente-de-si, portador de uma


identidade, consciente de suas necessidades e responsável por seus atos, é necessária
à ideologia burguesa, já que, dessa forma, é possível obrigá-lo e responsabilizá-lo
em consciência. O sujeito-consciente-de-si é, também, o sujeito-(consciente)-de-
seus-atos, complemento necessário do sujeito-de-direito.

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Para que isso ocorra, o sujeito assume uma função que o permite atingir, ao mesmo
tempo, a singularidade, marcada pelos processos polissêmicos do discurso, mas,
principalmente, o repetível, marcado pelo efeito de fechamento. Referimo-nos à função-autor,
que integra o processo de individualização da sociedade, singularizando e isolando o sujeito.
O autor é a função social assumida pelo sujeito que o alça à condição de produtor da
linguagem. Dessa maneira, a autoria diz respeito aos processos enunciativos e apresenta como
princípio o agrupamento do discurso, gerando, como efeito, a unidade textual. O comentário,
no Orkut, é um interessante exemplo de funcionamento dessa função, devido a dois aspectos.
O primeiro é referente ao autor enquanto produtor de uma opinião. Assim, o sujeito constitui-
se enquanto ser politizado, cônscio da estrutura sociopolítica da sociedade, capaz de nela
intervir, promovendo ações que ele julga necessária (como o convencimento de seu
interlocutor quanto à prática do aborto ou à legalização da pena de morte). A posse de uma
opinião, como evidencia a fala de „‟101(“Quando temos uma opinião, seja lá qual
for, é ótimo, mas devemos conhecer todos os lados que envolvem o fato”102) qualifica o autor
como detentor de conhecimento e, em uma sociedade que ainda intitula intelectual como
imortal, o sujeito é, então, inserido na estrutura de poder vigente.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.

101
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
102
É relevante observarmos que todo sujeito acredita que sua opinião é a mais completa, mais embasada que as
demais. Dessa maneira, o seu dizer está perpassado por todos os sentidos possíveis sobre a temática discutida.
Lembremos, então, da ilusão a que está submetido o sujeito, ou seja, a de que o sentido é transparente, que ele
tem acesso a todas as significações possíveis e a ilusão de que ele escolhe o sentido a adotar, quer dizer, formula
uma opinião a respeito do assunto debatido, constituindo-se enquanto autor. Sem os esquecimentos, não seria
possível o funcionamento da autoria.
131

Outro aspecto que contribui para a noção de autoria e também está conectada à
relevância da opinião é o modo de elaboração da sequência discursiva. Ao observamos o
discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, acima, podemos
entender que a autoria em um comentário de uma comunidade virtual não se dá somente na
opinião que é emitida, mas na maneira como se dá essa emissão. Dessa forma, a ironia
expressa pelo internauta através do elemento onomatopaico “mimimi” posto antes de
palavras/expressões cotidianas demonstram que o autor é aquele que, em seu discurso, atinge
a originalidade103, afastando-se do lugar-comum, constituindo-se, assim, o fio do discurso,
como espaço de intervenção do sujeito. Essa observação é reforçada pela frase final do
referido discurso de „Andy Priest‟ que condena o repetível enunciativo, ou seja, a cópia de
uma formulação linguística, compreendendo-o como carência de opinião e originalidade.
Desse modo, o sujeito configura-se como autor devido à sua liberdade, individualidade,
consciência, opinião e originalidade. Esses fatores fazem com que ele seja responsável pelos
seus dizeres e, por isso, enquanto sujeito-de-direito, seja passível de destituição dos direitos
humanos após constatação de inexistência de humanidade, somente possível devido ao
cometimento de delitos, como pudemos observar ao longo dessa dissertação.

4.3 DIREITOS HUMANOS: UM FENÔMENO IDEOLÓGICO

Nessa dissertação, já percorremos o caminho histórico da noção de direito e direitos


humanos e discutimos as noções de discurso, sentido e sujeito, destacando a presença da
ideologia em sua configuração. Resta-nos, então, promover a associação entre esses saberes e
a norma jurídica, entendendo-a não apenas como regra de organização da sociedade, mas
também (e talvez por conta disso) como um fenômeno ideológico: “[...] o Direito é a projeção
normativa que instrumentaliza os princípios ideológicos (certeza, segurança, completude) e as
formas de controle do poder de um determinado grupo social [...]” (WOLKMER, 2003, p.
154). Dito isso, podemos afirmar que os direitos humanos, por pretenderem-se e intitularem-
se enquanto direito, é uma prática ideológica que, como qualquer sistema jurídico, configura-
se como sendo estatal. No Orkut, a ideologia não é considerada um sistema de representações,
pelo menos não é esse o posicionamento hegemônico; ela é vista como uma postura
necessária – na maioria das vezes, de cunho somente político e/ou religioso – a ser defendida,
como demonstra Peterson em seu discurso, abaixo posto.
103
Não devemos entender originalidade como sinônimo de genialidade. Original é qualquer texto que apresenta
uma sequência discursiva única, independente dos sentidos nela inscritos.
132

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos
para humanos direitos”.

Ademais, a ideologia é vista como um posicionamento individual (“Falo isso que já


conheço as ideologias desse ser”)104. Tratam-se, esses sentidos, de evidências do
funcionamento ideológico que, dissimulando sua existência, produz efeitos de sentido que
convertem a ideologia apenas em ideias e não em práticas, como teoriza Pêcheux (2009).
Pode, assim, a ideologia jurídica, por ocultar o seu funcionamento, reproduzir “[...] o jogo de
forças sociais e políticas, bem como os valores morais e culturais de uma dada organização
social [...]” (WOLKMER, 2003, p. 155), trazendo a marca, portanto, da classe social
dominante, fazendo com que a prática jurídica não concretize o verdadeiro interesse geral e,
dessa forma, não possa ser, o direito, considerado justo e igualitário. Reflete-se na “cidade
azul” essa configuração, pois as minorias não são evocadas nos discursos sobre direitos
humanos, como já salientamos na dissertação, com exceção da discussão que tenta estabelecer
se a pobreza é fator determinante na construção de um criminoso. A comunidade do Orkut,
então, é a representação material da ideologia dominante.
A ideologia dominante corresponde à reprodução das relações de desigualdade-
subordinação entre as regiões que compõem a cena da luta ideológica de classe, o que
significa dizer que ela funciona no interior dos AIE, que se configura como palco da luta de
classes. A ideologia dominante na comunidade, que abarca o sentido de gozo dos direitos
humanos apenas por sujeitos bem comportados, não nasceu dominante, mas tornou-se
dominante nos AIE e não se realiza sem conflitos. Portanto, os AIE “[...] não são a expressão
da dominação da ideologia dominante [...] mas sim que eles são seu lugar e meio de
realização [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 131 – grifo do autor).
A comunidade do Orkut configura-se como um espaço simbólico midiático e, por isso,
também se constitui enquanto um aparelho ideológico, que agrega como valor efeitos dos
discursos políticos, como brevemente tratamos nessa dissertação. Na “cidade azul”, a
ideologia não se impõe de forma igualitária e homogênea, fazendo com que ela não possa
“[...] ser tomada como um bloco homogêneo, idêntica a si mesma, com seu núcleo, sua
essência, sua forma típica [...] ela não existe a não ser sob a modalidade da divisão, ela não se

104
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.
133

realiza senão dentro da contradição que organiza nela a unidade e a luta dos contrários [...]”
(PÊCHEUX, 1990, p. 8). Devido a isso, a ideologia jurídica que permite os posicionamentos
sobre direitos humanos na comunidade virtual é heterogênea, bem como os AIE, e constroem
os dois grupos antagônicos da formação social de modo diferenciado, ou seja, contribuindo de
maneira desigual para o desenvolvimento da luta ideológica.
Quando mencionamos formação social dominante no Orkut, não estamos nos
referindo à oposição clássica burguesia x proletariado, nem, mesmo já tendo citado a condição
de pobreza, trabalhamos a luta ideológica entre pobres e ricos, embora saibamos que essas
duas dicotomias são complementares às formações sociais da “cidade azul” que desejamos
destacar. Trata-se da luta entre as categorias dos „humanos direitos‟ e dos „humanos‟. Pode
parecer estranha a composição dessa díade, já que na categoria do „humanos‟ estão integrados
os „humanos direitos‟. Entretanto, retomando a concepção de que o silêncio é fundante e que,
quando falamos, silenciamos outros sentidos possíveis, fazendo do silêncio um elemento
significativo, indicamos que a categoria „humanos‟ existe para estabelecer uma posição no
discurso, ou seja, trazer à existência discursiva os „humanos tortos‟, estabelecendo-lhes
legitimação social. Dessa maneira, essa formação social, ao contrário da exata face opositora
dos „humanos direitos‟, é uma maneira mais “completa”, coerente de expor a complexa
relação de contradição-subordinação-submissão entre as formações sociais no Orkut, que vão
gerar posicionamentos variados. Ressaltamos também que a denominação escolhida põe mais
em evidência o fato de que os „humanos tortos‟ e a ideologia por eles assumida não se
constituem como elementos passivos no interior dos AIE, mas encontram-se em constante
atividade ideológica no interior do aparelho.
Pêcheux (2009, p. 132 – grifos do autor) sinaliza que “[...] a instância ideologia existe
sob a forma de formações ideológicas (referidas aos Aparelhos Ideológicos do Estado), que,
ao mesmo tempo, possuem um caráter „regional‟ e comportam posições de classe”. Advém
dessa regionalidade e da pluralidade de posicionamentos, a heterogeneidade da ideologia. As
formações ideológicas atuam nos discursos através de suas especificações, ou seja, das
formações discursivas.
Na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos” é raro localizarmos
formações ideológicas que comportem sentidos que apontem os direitos humanos como
direitos destináveis a todos os seres humanos. Devido a isso, nessa subseção, nos
concentramos em duas formações ideológicas que permitem os dizeres emergidos na
comunidade virtual, a saber: direito como ideologia e a formação ideológica „religiosa-cristã‟.
Devemos fazer sobre elas uma consideração. Embora ideologia e religião estejam em
134

formações ideológicas diferentes, entendemos que a religião também se constitui como uma
prática ideológica. Essa separação foi estabelecida para que fiquem claras as divergências
semânticas presentes na comunidade virtual quanto à noção de direito. Dessa forma, o direito
pode ser visto como uma entidade divina ou como uma ideologia humana. Tais significações
foram levantadas e discutidas na seção anterior. A partir das formações ideológicas traçadas,
estabelecemos duas formações discursivas que, através de processos interdiscursivos e
baseados na noção de responsabilidade, cada uma vinculada a uma ideologia científica
jurídica, permitem a emergência de sentidos na “cidade azul”. O organograma, a seguir,
resume o que expusemos.
135

135
136

4.3.1 “Mas eu preciso ser Outros”105

A noção de formação discursiva surgida, conforme historiografia oficial, em texto de


Michel Foucault, de 1969, foi trazida à Análise do Discurso pelas mãos de seu fundador.
Atualmente, a noção tem sofrido muitas críticas, devido a seu caráter taxionômico, pela
relação divergente entre os pensamentos foucaultianos e marxistas, dentre outras razões,
conforme Baronas (2005). Entretanto, por outro lado, há tentativas de analistas em fazer da
FD uma noção produtiva no interior do dispositivo teórico. As formações discursivas
contribuem para a definição da identidade dos enunciados e é compreendida como sendo os
modos de o sujeito se relacionar com as ideologias, estabelecendo, a partir dessa relação, o
que pode e deve ser dito por esse sujeito em uma dada conjuntura. Dessa forma, a tão
mencionada interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia se dá através da formação
discursiva que, se constitui como representação da formação ideológica, ou seja, é seu
componente, através da interligação com outras formações discursivas e a partir de uma
posição no interior dos AIE. A interpelação efetua-se a partir do processo de identificação.
Nosso trabalho não consiste em analisar a FD a fim de estabelecer sua viabilidade ou
não no trato analítico. Todavia, duas propostas de reformulação são bastante interessantes e,
por isso, vamos, nessa subseção, trazê-las para análise dos discursos da comunidade virtual,
ainda que de forma breve.
A primeira é trabalhada por Branca-Rossof (2008) que, conforme Baronas (2005, p.
736), observa a formação discursiva também “[...] em termos de conteúdo temático, estilo
verbal e estrutura composicional [...]”, em outras palavras, a partir do gênero textual no qual o
discurso foi organizado. Pêcheux, ao definir a noção de FD, o faz através da citação de
gêneros textuais, como o sermão e o panfleto. Embora, para nós, ele o faça com o objetivo de
reforçar o caráter ideológico dos discursos e das formações discursivas, privilegiando a
compreensão de FD enquanto espaço da luta de classes, sua exemplificação através dos
gêneros dá abertura para pensarmos sua associação com o processo de emergência de sentidos
pelos sujeitos.
Branca-Rossof (2008, p. 134) afirma que “[...] a arqueologia diz respeito a objetos
estabilizados, institucionalizados, ligados ao mecanismo de poder que, consequentemente, são
objeto de técnicas de conservação [...]” e chega, no decurso de seu artigo, a questionar-se
quanto à possibilidade de trabalho com a noção de formação discursiva em textos não

105
BARROS, 2004.
137

institucionalizados, constituídos por “outras vozes, menos legítimas” (BRANCA-ROSSOF,


2008, p. 134). Não teceremos, nessa dissertação, considerações acerca de todas as críticas
formuladas pela pesquisadora por não se constituir em objeto de nossa pesquisa, mas essas
citações interessam a nós devido à natureza dos nossos discursos. Embora não façamos
trabalho arqueológico, a noção de formação discursiva, como salientado, advém da
arqueologia de Foucault. Dessa maneira, a crítica formulada por Branca-Rossof (2008) nos
diz respeito porque é necessário que nos questionemos se as formações discursivas elencadas
nessa dissertação são legítimas. Sabemos que o Orkut não se configura na sociedade em
espaço simbólico institucionalizado. Todavia, já salientamos, nessa dissertação, dois aspectos
que, em nosso entendimento, possibilitam a utilização da noção em nosso corpus: o primeiro
diz respeito ao entendimento do referido site de relacionamentos enquanto AIE, que agrega
características do AIE midiático, embora apresente suas especificidades. Existem vozes no
Orkut que, na sociedade „real‟, são consideradas ilegítimas, entretanto, como já pudemos
observar, existem vozes muito prestigiadas na comunidade virtual.
Citamos, na folha 87, três integrantes da “cidade azul” que são muito atuantes e
respeitados nessa rede social. A ocorrência constante de seus nomes nos tópicos indica que
eles apresentam legitimidade perante seus pares (e opositores também, já que o debate com
esses integrantes apresenta alto valor de mercado agregado, ou seja, é considerado produtivo).
Discutimos também, nas folhas 99 e 100, a atribuição de institucionalidade aos discursos do
Orkut, através de sua qualificação como discursos políticos. Ratificamos nosso
posicionamento, reiterando que podemos qualificar como discurso político todo discurso que
apresente teor político, quer dizer, que diga respeito, direta ou indiretamente, à vida política e
pública do sujeito, característica que qualifica os discursos sobre direitos humanos. A
legitimidade desse AIE e seu poder de alcance e de interpelação reflete-se no aumento
expressivo no número de associados: em 11 de janeiro de 2011 a comunidade possuía 6.698
integrantes e, conforme levantamento realizado em 22 de agosto do mesmo ano, 7.431
internautas escolheram a comunidade em questão para a emergência de sentidos sobre direitos
humanos, identificando-se com a formação discursiva dominante que norteia a comunidade,
um acréscimo de quase 10% em apenas 7 meses.
Retornemos à proposta de Branca-Rossof em associar as noções de FD e gêneros do
discurso. Na segunda seção, já tratamos, brevemente, das implicações de uma comunidade
virtual, estabelecendo o Orkut como uma “cidade azul”. O pensamento da pesquisadora é
deveras relevante, sobretudo para nosso trabalho, devido à temática. Falar de direitos
humanos implica lidar com significações não legitimadas na sociedade e, mais que isso,
138

condenadas. Já mencionamos esse fato, mas é importante reiterarmos o gênero fórum virtual.
Esse gênero, ao mesmo tempo em que reconstrói o espaço do dizível, reestabelecendo as
fronteiras da formação discursiva e, com isso, agregando significações que, em outro gênero
do discurso, não seriam possíveis de serem ditas, rechaça sentidos que outrora estavam a ela
vinculados. Na comunidade do Orkut também ocorre esse fenômeno: a pena de morte é
sentido legitimado e, acreditamos, possível de emergir em outras condições de produção do
discurso, em outras situações informais, com interlocutores considerados íntimos.
Todavia, a prática da tortura é sentido que passa a integrar, como observamos nos
discursos de „Vi‟ e „Paty‟, a seguir, a formação discursiva apenas no fórum virtual,
provavelmente porque o ciberespaço é considerado, por muitos, como “terra sem lei”, sentido
que produz o efeito de liberdade para os sujeitos-usuários, retirando-lhes a mordaça,
reduzindo, portanto, a possibilidade de sofrer retaliação, censura. Entretanto, o fórum virtual
também, enquanto gênero, permite uma prática que, fora dele, não é possível e é considerada,
do ponto de vista jurídico, uma ação ilegal: o exílio político. O ato de exilar é materializado
na comunidade através das expulsões, que são consideradas práticas normais, cotidianas,
embora não desejadas. Dessa maneira, o gênero fórum virtual contribui para a emergência dos
sentidos sobre direitos humanos, ajudando a estabelecer aquilo que pode e deve ser dito
acerca dessa categoria jurídica.

Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.

Extraído do tópico “Olhem esse cara debatendo na comunidade DH”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos
para humanos direitos”.

A segunda proposta de reformulação da noção de formação discursiva que nos


interessa é trabalhada pelo próprio Pêcheux (2009). Já mencionamos na dissertação que nem
sempre a tomada de posição se dá através da modalidade da identificação plena, que consiste
na ocorrência do fenômeno da reduplicação da identificação e consequente constituição do
bom sujeito, ou seja, uma repetição total e exata da forma-sujeito, que ordena e organiza a
139

FD. Conforme Courtine (2009), uma formação discursiva pode ser reconfigurada, pois esse
processo se dá a partir do interdiscurso e é possível devido à instabilidade das fronteiras da
FD. Deve-se a isso, o fato de, no organograma, termos indicado as formações discursivas com
linha pontilhada. Não identificamos, na comunidade, a tomada de posição sob a modalidade
da identificação plena.
Ocorre, entretanto, outra modalidade, que “[...] remete para uma falha na interpelação
do sujeito, ou seja: é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode contra-identificar-se
com os saberes de sua formação discursiva [...]” (INDURSKY, 2007, p. 85). Essa segunda
modalidade de tomada de posição, da qual tratamos em folhas precedentes, instala no interior
da FD a alteridade e, com isso, justiça o seu caráter heterogêneo. A presença do Outro e a
necessidade de intercambiamento com os elementos que compõem o seu exterior contribuem
para que entendamos o funcionamento da formação discursiva.
As falhas no ritual da interpelação produzem alguns efeitos na formação discursiva: a
entrada de novos saberes, a fragmentação da forma-sujeito e a instauração de uma nova
posição-sujeito. Entretanto, para Branca-Rossof (2008), apoiada no pensamento de Dreyfus e
Rabinow, são raros os enunciados que apresentam uma capacidade de produzir os efeitos
acima elencados na formação discursiva: “[...] não se trata de atos de discurso da vida
cotidiana, mas de enunciados constitutivos da cultura de uma sociedade que só são válidos
quando uma comunidade de pesquisadores ou administradores os transmitem, comenta ou
transforma [...]” (BRANCA-ROSSOF, 2008, p. 131). Em relação a isso, em nossa análise,
não pretendemos encontrar relações interdiscursivas que geram sentidos ad eternum. Assim,
podemos visualizar a entrada de novos saberes na formação discursiva por conta de seu
interdiscurso. Tampouco, vamos fazer uma análise exaustiva de cada FD. Mas
compreendemos que é possível, no Orkut, a instauração de novos posicionamentos no interior
da formação discursiva porque, como mencionamos anteriormente, existem sujeitos com alto
capital simbólico que, devido a isso, apresentam possibilidade de transformar a formação
discursiva, ainda que os discursos sejam cotidianos, como são os do Orkut, com as
especificidades que já destacamos. Entretanto, salientamos que, embora as formações
discursivas elencadas também sejam heterogêneas e, portanto, instáveis, percebemos, nos
discursos do Orkut, a tentativa de estabilização dos sentidos, ou seja, a manutenção da
ideologia dominante e, portanto, do sentido que norteia a comunidade, ou seja, “direitos
humanos para humanos direitos”, o que faz do repetível um processo constante. Observemos
alguns pontos sobre as formações discursivas destacadas em suas relações entre si.
140

Os sentidos da comunidade do Orkut sobre direitos humanos só são possíveis devido


ao intercambiamento entre as formações discursivas destacadas no organograma da página
133. Conforme indicamos no referido organograma, duas são as formações discursivas
trabalhadas. Chamaremos a formação discursiva ligada ao positivismo jurídico de DHH e a
FD ligada ao jusnaturalismo de DHI a fim de facilitar o desenvolvimento do texto. Notemos
que ambas estão vinculadas à ideia de responsabilidade, sentido que perpassa todas as
significações da comunidade virtual. Do ponto de vista histórico, o jusnaturalismo antecede o
positivismo jurídico. Tivemos a oportunidade de, na terceira seção, destacar algumas de suas
características e relacioná-las aos posicionamentos encontrados no fórum do Orkut. Dessa
forma, faremos, a respeito da formação discursiva isoladamente apenas considerações
pontuais. Interessa-nos mais, nessa subseção, a contribuição que cada FD dá à outra para que
se processe na comunidade a emergência dos discursos.
A DHI, como podemos observar no organograma, está associada a duas formações
ideológicas: uma de modo direto, a „religiosa-cristã‟, e a „direito como ideologia‟, que
apresenta uma relação indireta. Deve-se isso ao fato de que a inerência, característica básica
que a difere da outra formação discursiva, apresenta conexão com a religiosidade. Assim, o
direito apresenta relação parafrástica com o sentido de divino, ou seja, perfeição, correição.
Direito é, então, toda atividade ou atitude considerada correta que segue ou supera os padrões
comportamentais estabelecidos, sacralizando assim, a noção jurídica, o que impossibilita os
homens de questionarm o Direito, devido à sua condição de ser vivo pecador, como pode ser
verificado a seguir, no scrap de „Percival Forever‟ no tópico “Quem é a igreja para falar de
direitos humanos”. Decorre disso que ações consideradas desvios do padrão, ou melhor,
sujeitos que praticam tais ações, perdem a (ou têm constatada a falta de) divindade em sua
existência e, com isso, não são possuidores dos direitos humanos.

Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.

A relação indireta deve-se à pluralidade de ideologias jurídicas e, portanto, há a


necessidade de se estabelecer um recorte e indicar a qual corrente ideológica a DHI encontra-
se filiada, ou seja, é sua componente. Isso não quer dizer que o jusnaturalismo seja
homogêneo. Embora todas as suas doutrinas apresentem um núcleo central, ou seja, assumem
141

a lei jurídica como sendo natural, eterna e imutável, legitimando, assim, sentidos que indicam
a pena de morte como a única solução viável para a criminalidade, pois a imutabilidade da lei
é interpretada como indicação da imutabilidade do homem, pode-se indicar que três doutrinas
jusnaturalistas diferentes encontram eco na comunidade virtual, sobretudo as duas primeiras
conjugadas: a cosmologia valoriza a natureza das coisas. Esse é um dos sentidos mais
relevantes da “cidade azul”, por também nortear as demais significações. Já vimos que,
embora o comportamento seja interpretado como critério na atribuição dos direitos humanos,
ele está vinculado, para os sujeitos do Orkut, à natureza do ser humano. Dessa forma, a
natureza humana será tomada como ponto de partida para a constituição do direito,
ressaltando-se que, em verdade, essa natureza é considerada pelos internautas como
proveniente de Deus, quer dizer, o ser humano, que é dotado de racionalidade, é a expressão
material da razão divina, feito à imagem e semelhança do Criador. Dessa maneira, no interior
da DHI, o direito passa a ser compreendido como “[...] uma transferência de obrigações
providenciada por Deus no ato da criação [...]” (HECK, s.d., p.16), sendo, portanto, natural
porque imanente à natureza divina. Percebe-se, então, que a doutrina teológica, que tem em
Deus a instância normativa e é contemporânea da aristocracia feudal, encontra-se diluída na
cosmologia, construindo, assim, a base de sustentação, no Orkut, das significações dos
direitos humanos como direitos naturais. A terceira doutrina jusnaturalista é a antropológica e
diz respeito às razões humanas.
A DHH na sociedade em geral, por sua amplitude e pela classe social a qual está
vinculada, geralmente, é tida como a dominante. Tal fato não ocorre na “cidade azul”. Essa
formação discursiva é marcada pelos sentidos de direito como entidade coercitiva, pela
valorização da neutralidade (embora saibamos da impossibilidade de sermos neutros, pois a
linguagem é palco da manifestação das lutas de classes e o discurso, então, é fruto de
processos ideológicos) e do tecnicismo formalista, e “[...] sua validade e imputação
fundamentam-se na própria existência de uma organização normativa hierarquizada [...]”
(WOLKMER, 2007, p. 161). Observemos que todas as características que elencamos nesse
parágrafo para a DHH também se encontram filiadas à DHI. Isso ocorre devido a dois fatores:
no diálogo entre as formações discursivas, a DHH assume os sentidos de imutabilidade e
inerência provenientes da DHI.
É necessário entendermos que o caráter imutável não diz respeito às leis106, mas à
natureza do ser humano. Dessa forma, o sujeito inscrito na DHH também assume a pena de

106
Acreditamos que os sujeitos filiados à DHI deslizam-se constantemente entre as duas formações discursivas
no momento de atribuir sentido à imutabilidade da lei. Não há expresso na comunidade, por parte desses sujeitos,
142

morte como punição exemplar por entender que o sujeito-infrator tem sua natureza, essência
corrompida. Isso faz com que o sentido básico da DHI também seja assumido pelo indivíduo
interpelado pela DHH, convertendo-se em uma das mais importantes significações da
comunidade: a inerência. Assim, é inerente à condição de humano direito a atribuição de
direitos humanos. Para que se processe, conforme sentidos assumidos pelos sujeitos, a
instauração da pena capital e o reequilíbrio social, é necessária, de acordo com suas filiações,
a assunção do sentido da lei enquanto criação de uma instituição estatal, princípio da DHH,
por configurar-se em elemento “palpável” para os sujeitos, o que permite vislumbrar a
mudança no código penal e, portanto, a realidade dos direitos humanos. Ademais, é
importante ressaltarmos que os sujeitos encontram-se no interior de AIE, que permite a
circulação do sentido do Estado enquanto instituição legisladora legítima.
É interessante observarmos que o direito reveste-se de um estatuto capitalista e
configura-se como algo a ser possuído e o sujeito-de-direito enquanto proprietário, um ser
consumidor, cujo preço é o comportamento condizente com a estrutura sociopolítica vigente,
incluindo nessas normas comportamentais a restrição discursiva, quer dizer, a impossibilidade
de emergência de alguns sentidos, ocorrendo, como já dissemos algumas vezes, esse
funcionamento também na comunidade virtual, sob a forma dos silenciamentos. Essa é uma
prática determinada pela DHH que, por representar a ideologia jurídica positivista, diz
respeito à manifestação da vontade humana. Conforme Wolkmer (2003, p. 159), “[...] a
concepção ideológica do liberalismo jurídico-burguês definia, claramente, que, em face de sua
lei, todos eram livres e iguais, mas sob a condição de que todos fossem e se tornassem
burgueses [...]”, compelindo o sujeito a assumir as mesmas significações e comportamento,
bem como restringindo, dessa forma, o que se pode interpretar, na comunidade, por vontade
humana. Dessa maneira, o homem, para os sujeitos do Orkut, apresenta desejos que não
condizem com o ideal de fraternidade postulado pelo discurso oficial dos direitos humanos, e,
além disso, coloca-se como sujeito participativo dos interesses da coletividade devido ao fato
de pagar os impostos estabelecidos pelo aparelho estatal, sentido presente em discursos
oriundos de campanhas veiculadas pelo Estado que atribuem o “ser” cidadão à prática do voto
– obrigatório – e regularização fiscal, como, por exemplo, as campanhas anuais para
pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU e do Imposto sobre a Propriedade
de Veículos Automotores – IPVA, como evidencia o discurso de a seguir, no
tópico "Aborto”.

que as leis não mudem. Todavia, há menção apenas na aplicação da pena capital, o que nos faz entender que a
„correção‟ dessa lacuna jurídica é suficiente para atribuir às leis o estatuto de eternidade.
143

Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.

Essas observações, embora caracterizem os sentidos da DHH, também são possíveis


de serem feitas com referência à DHI, haja vista a abertura dessas formações discursivas a
seus exteriores, o que faz com que ocorra a entrada desses novos saberes, promovida pela (e
também promovendo) a falha no ritual de interpelação. Assim, mesmo identificando-se com a
DHH, e, portanto, sendo por ela interpelado, o sujeito assume o sentido de direito enquanto
propriedade, assim como em detrimento da universalidade, prioriza os interesses individuais e
considera o Estado como o exclusivo legitimador jurídico.
Desejamos finalizar essa seção tecendo um breve comentário acerca da correlação
estabelecida pelos orkuteiros: direitos humanos = direitos dos manos. Embora, como já
dissemos, não haja, na “cidade azul”, a referência explícita, de modo assertivo e hegemônico,
à pobreza como causadora da criminalidade, indicamos haver a ressignificação, pelos sujeitos,
da expressão “manos”, gerando novo efeito de sentido. Relativo às culturas das periferias
urbanas, normalmente utilizado ao lado da palavra “minas”, uma gíria para meninas, o termo
em questão representa os rapazes da comunidade periférica: por ter o costume de chamarem-
se pela designação “irmão”, o grupo estabeleceu uma nova gíria para constituir uma marca
identitária: “manos”. Todavia, podemos perceber que a filiação ideológica que permite essa
atribuição de sentidos, ou seja, „mano‟ como sinônimo de „irmão‟, não é a mesma assumida
pelos sujeitos do Orkut, que identificam esse termo com a ideia de marginalidade,
estabelecendo, assim, novas relações parafrásticas. Entendemos, assim, haver uma prática
discriminatória, pois criminosos oriundos de classes sociais de alto poder aquisitivo, bem
como os políticos, não são incluídos nos discursos da “cidade azul”, nas significações sobre
direitos humanos que excluem os sujeitos que praticam ações delituosas, ainda sendo
considerados humanos direitos ou, ao menos, tendo preservada a sua humanidade.
Vemos, então, que a DHH atua no processo de emergência de sentidos sobre a
categoria analisada na dissertação, possibilitando que os pobres sejam alijados do processo
jurídico, ratificando o sentido de direito enquanto propriedade. Embora a DHI atue com mais
144

frequência na interpelação dos sujeitos do Orkut, devido ao sentido de inerência dos direitos
humanos, entendemos que é o diálogo entre as duas formações discursivas que possibilita os
sentidos hegemônicos na comunidade virtual.
145

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo de escrita dessa dissertação, constantemente nos referimos à análise de


discursos da comunidade virtual ou aos sentidos do Orkut. Não pretendemos com esses
dizeres indicar que exaurimos as possibilidades de análise, nem mesmo que atingimos todos
os sentidos possíveis sobre direitos humanos nesse sítio do Orkut, até porque, segundo
Pêcheux (2011, p. 291), “[...] a Análise do Discurso não pretende se instituir em especialista
da interpretação, dominando „o‟ sentido dos textos, mas somente construir procedimentos
expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito.” Procuramos
demonstrar quais eram as significações hegemônicas, em uma tentativa de compreendermos o
processo de constituição do sentido “direitos humanos para humanos direitos” que norteia a
comunidade.
O nosso percurso de análise pautou-se na pergunta que intitula essa dissertação:
“direitos humanos para humanos direitos?”. Dessa forma, entendemos que esse trabalho
dissertativo parte da reflexão do homem sobre o homem, suas relações com a sociedade e com
seus pares. Assim, pudemos perceber que os direitos humanos, embora sejam constituídos
como categoria jurídica, funcionam como categoria moral, destituídos do caráter de
juridicidade. Dessa maneira, a pergunta norteadora desse trabalho, na comunidade virtual,
apresenta como possibilidade apenas a assunção do sentido que a afirma, ou seja, os direitos
humanos devem ser atribuídos somente a indivíduos merecedores do gozo de tal premiação.
Entretanto, é possível afirmarmos que a pergunta que norteia a dissertação não
perpassa a comunidade virtual, pois as significações sobre direitos humanos não emergem a
partir de questionamentos dos sujeitos, mas de certezas pautadas na prática em sociedade,
que, aos seus olhos, os excluem da efetiva participação cidadã. Dessa forma, entendemos que
a assunção do sentido “direitos humanos para humanos direitos” configura-se como a única
reação possível para o sujeito internauta aos elementos que o incomodam, como a crescente
criminalidade, que o priva da plena vida em sociedade. Assim, para nós, não há
questionamento, pois, para que ele venha à tona é necessária a existência de duas ou mais
possibilidades de realização dos direitos humanos, ou seja, são destinados aos humanos ou
são destinados aos humanos direitos, o que não ocorre na comunidade virtual. Entendemos
que o sujeito do Orkut é um sujeito sem escolha e, devido a isso, a pergunta que nós tentamos
responder nessa dissertação não se configure como uma possibilidade para ele.
Entendemos ainda que a inexistência de escolha por parte do sujeito cibernético deve-
se à necessidade de sua reafirmação enquanto ser humano, tais como os movimentos de
146

afirmação dos grupos sociais minoritários, como os negros e as mulheres. Assim, em uma
tentativa de fazer do sujeito um ser jurídico, condizente com a pós-modernidade, é constituída
uma forma única de se ser humano e, com isso, as manifestações que se afastam do modelo-
padrão comportamental traçado são destituídas de humanidade e, assim, dos direitos
humanos. Com isso, queremos afirmar que, para significar os direitos humanos, é importante
para os internautas a definição de quem eles são, pois os referidos direitos podem ser a única
forma de resgatar a humanidade dos indivíduos e, portanto, da sociedade.
Ademais, a inexistência, na comunidade virtual analisada, de tópicos que discutam a
tipologia de direitos humanos indica que essa categoria configura-se como uma reafirmação
do local social almejado pelos internautas: cidadão. Dessa forma, os direitos humanos são
atribuídos apenas aos humanos direitos, pois a cidadania exige não apenas o gozo de direitos,
mas, sobretudo em nossa sociedade, a realização de deveres. É por isso, por exemplo, que
elementos destacados como demonstração genuína da cidadania e da democracia em pleno
século XXI ainda funcionam como obrigação, ou seja, através da figura deôntica do dever,
como o direito ao voto. Assim, vemos que os direitos humanos são configurados como
deveres humanos e, a posteriori, convertem-se, ou melhor, podem converter-se em „direito‟.
Dessa maneira, os humanos direitos são os „escolhidos‟ por constituírem “o” grupo capaz de
estabelecer essa conversão.
Com vistas ao que foi possível depreender dos discursos emergidos na comunidade
virtual analisada, esperamos ter contribuído para as discussões que tentam estabelecer se os
direitos humanos constituem-se em disciplina jurídica. Para isso, acreditamos que as
significações sobre tais direitos no Orkut possam indicar um caminho, já que se configuram
como sentidos que circulam na sociedade, ampliando a instância jurídica, interpretando o
direito não apenas como a norma produzida por um grupo específico, mas como sentido que
estabelece o modus vivendi na sociedade. Como consequência, entendemos que as discussões
sobre DH no Orkut contribuam também para a ampliação da noção de sujeito jurídico, tão
cara ao Estado de direito, no qual, pelo menos do ponto de vista teórico, vivemos, em
oposição ao antigo Estado de nascimento. Dessa forma, o sujeito jurídico não é apenas aquele
ser dotado de direitos e deveres, mas também aquele que reflete sobre sua condição jurídica e
política, e atua para que suas significações sobre o direito não sejam interpretadas como
meros devaneios de um sujeito pseudo-consciente, mas sejam entendidas como possibilidade
a ser analisada pela coletividade.
Esperamos ter colaborado também para que a percepção do site de relacionamentos
Orkut não seja mais vinculada apenas a posicionamentos que o interpretam como espaço de
147

adolescentes desocupados, pessoas solitárias ou somente como demonstração de popularidade


de pessoas exibidas, narcisistas, através da exposição da sua vida particular. O Orkut é
também espaço em que o sujeito tem ampliada a possibilidade de exercer a sua liberdade de
expressão, no sentido de que, para os internautas, há liberdade no espaço virtual e, portanto, a
comunidade do Orkut apresenta menos restrições para os sujeitos se posicionarem, ou seja,
para a sua prática discursiva, em comparação ao mundo fora do ciberespaço (sensação
experimentada, provavelmente, por estar o sujeito interpelado, tendo a ilusão de não tê-las.
Surgem, no Orkut, como pudemos observar, novas formas de submissão do sujeito, como as
ameaças de expulsões dos tópicos/comunidade). Assim, o sujeito emite significações, ainda
que impossíveis para além do espaço virtual, acerca de temas polêmicos (a quem podem falar
tão abertamente sobre suas preferências punitivas, como a tortura e a pena de morte, no
mundo „real‟?) e/ou temas que são necessários para a constituição da sua subjetividade, como
as crenças religiosas.
Finalizamos esse trabalho dissertativo ratificando que, embora as discussões sejam
pautadas na busca pela resposta à pergunta “direitos humanos para humanos direitos?”,
entendemos que ela não seja o resultado mais importante, mas compreendemos que o
estabelecimento da pergunta, ausente na comunidade virtual, seja o ponto principal do
trabalho, afinal a vida jurídica, para nós, implica um eterno questionamento de si, de suas
necessidades humanas e, por fim, da concretização dos direitos e dos indivíduos enquanto
sujeitos jurídicos.
148

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