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Salvador
2011
Rafaella Elisa da Silva Santos
Salvador
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Contem referências.
CDD : 341.274
Rafaella Elisa da Silva Santos
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Nazareno Telles Sobral
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
___________________________________________________________
Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
À minha amada família: Auta, Rachel e
a inigualável e fofíssima Catharina. Às
também integrantes da minha família e
do meu coração Quezia dos Santos Lima
e Rosa Helena Blanco Machado
AGRADECIMENTOS
À minha família, especialmente minha mãe, Auta, pela paciência e palavras de conforto nos
momentos de desespero.
A Rosa Helena Blanco Machado, minha eterna gratidão pelo carinho, preocupação, por ter
transformado a área de Letras muito mais atrativa para mim, apresentando-me a Análise do
Discurso e a pesquisa. Por fazer de mim e de Quezia, as suas filhas.
Ao meu orientador Gilberto Sobral pela atenção, consideração e paciência e por compreender
o delicado momento de transição pelo qual passei, que dificultou o processo de elaboração da
dissertação.
Aos professores Rita de Cássia Queiroz e João Santana por terem aguardado a minha defesa e
pela leitura apurada no exame de qualificação, resultando em sugestões sem as quais a
dissertação apresentaria qualidade inferior.
AD Análise do Discurso
AIE Aparelhos Ideológicos do Estado
ARE Aparelho Repressivo do Estado
CICV Comitê Internacional da Cruz Vermelha
CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CPF Cadastro Pessoa Física
DDHC Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
DH Direitos Humanos
DHH Formação Discursiva Direitos humanos-historicidade
DHI Formação Discursiva Direitos humanos-inerência
DID Declaração Inglesa de Direitos
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FD Formação Discursiva
IP Internet Protocol
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores
LHC Lei de Habeas Corpus
OEA Organização dos Estados Americanos
RG Registro Geral
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10
2 NESSE INFOMAR... 17
2.1 ORKUT, UMA “CIDADE AZUL”. 19
3.1 UM SINTAGMA... 39
3.2 DOIS CONCEITOS... 43
3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do 43
que eu?
3.2.2 O homem, quem é ele? 58
3.3 UMA HISTÓRIA 73
REFERÊNCIAS 148
10
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Extraído do tópico Sobre o Orkut, no referido site de relacionamentos. Disponível em:
<http://www.orkut.com/Aout.aspx> Acesso em: 14 jul 2008.
12
2
Relatório trimestral elaborado pela empresa AKAMAI, sobre o uso da internet, a adoção de banda larga,
tendências ao redor do mundo. Informações sobre o relatório em:
<http://www.akamai.com/stateoftheinternet/#nui>.
3
Disponível em:<http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011
13
Percebemos, com isso, que o brasileiro tem necessidade de significar acerca dos
assuntos que os aflige e, por faltar espaço na sua vida cotidiana, recorrem ao espaço virtual
como possibilidade de existirem semanticamente, para além das obrigações do dia-a-dia. O
Orkut, dessa forma, passa a ser, para os usuários, a possibilidade de moldar o mundo,
conforme seu entendimento e solucionar os problemas que dificultam o caminhar do homem
sobre a Terra. A rede social é, então, a possibilidade de o sujeito se posicionar como se
compusesse o tripé da administração pública, sobretudo no tocante aos direitos humanos, ou
seja, os internautas atuam simbolicamente exercendo ao mesmo tempo, no plano discursivo,
os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o que, na vida prática, lhes é cerceado.
Reiteramos que os membros pretendem que as soluções discutidas nas comunidades sejam
transplantadas para o espaço urbano real.
Indicamos, dessa maneira, que compreender a relação entre os sujeitos e os direitos
humanos e suas discursividades é compreender o funcionamento não apenas significante, mas
também referente ao modus vivendi, à sociedade e à constituição básica de seus integrantes,
enquanto seres humanos, norteando as primeiras, as mais elementares de suas práticas.
Assim, tendo em vista a relevância do Orkut na sociedade brasileira e o entendimento
de direitos humanos como orientadores da práxis social, com vistas a compreender como o
sujeito do século XXI os significa, quais são as suas práticas discursivas, temos por finalidade
nessa dissertação entender quais são as significações e as formações discursivas que as permitem
e organizam os discursos de uma comunidade da “cidade azul” na emergência de sentidos
sobre direitos humanos e seus efeitos, a partir do escopo teórico-metodológico da Análise do
Discurso (AD) e de seus conceitos como memória discursiva, efeitos de sentidos e formação
discursiva.
Muitas são as comunidades no Orkut que discutem a temática escolhida para essa
dissertação. Todavia, das 311 comunidades localizadas em levantamento realizado em 1 de
junho de 2009, apenas uma foi selecionada para objeto de estudo: “Direitos Humanos para
humanos direitos”. Dois motivos podem ser elencados para justificar tal escolha: primeiro
porque o sentido emergido de seu nome é o que mais aparece entre as comunidades; segundo
porque aquelas que não coadunam com tal sentido, existem justamente para confrontá-lo,
como é o caso da comunidade “Direitos humanos para humanos”. Não existe apenas uma
comunidade com esse nome. Entretanto, essa comunidade foi selecionada por ser uma das
mais antigas, criada em 9 de abril de 2005 (o Orkut foi criado em 2004, nos Estados Unidos!)
e por ser a que apresenta maior número de membros, com 6.640 integrantes, até o dia 18 de
dezembro de 2010. Esse quantitativo é importante, pois possibilita acesso a um maior número
14
de discursos, por meio dos diversos fóruns de discussão e, portanto, maior variedade de
posicionamentos.
Embora vários sejam os fóruns de discussão, sendo muitos deles por nós analisados,
salientamos cinco como alvos principais de análise nessa dissertação. Mais uma vez
reiteramos que outros foram rapidamente mencionados por trazer informações relevantes, mas
não se constituem no núcleo de análise. Esses cinco tópicos, a saber, “Seletividade do sistema
penal”, “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, “Morte estupenda de um
estuprador”, “Cuidado” e “Aborto” foram escolhidos por apresentarem ampla discussão por
parte dos membros, profundidade nas discussões, argumentos heterogêneos, quantidade de
postagens e sentidos que remetem à história dos direitos humanos, a direitos tacitamente
explícitos em documentos como a DUDH, como o direito à vida, independente da
circunstância, ou ainda elementos jurídicos que incomodam os integrantes da comunidade,
apresentando o objetivo de modificar a realidade, por exemplo, o código de execuções penais.
Apesar de nem sempre esses tópicos serem muito recentes, eles representam os sentidos e
discussões que mais aparecem na comunidade.
Baseado na Análise do Discurso, como dito acima, o tratamento dos dados coletados
no Orkut foi feito a partir de uma abordagem qualitativa, pois, nas ciências humanas, o que
existe, conforme Freitas (2002), é uma interação entre-sujeitos, ou seja, a pesquisa deve ter
orientação dialógica, embora também fosse possível a utilização da abordagem quantitativa,
haja vista que “[...] todo fenômeno qualitativo, pelo fato de ser histórico, existe em contexto
também material, temporal e espacial e todo fenômeno quantitativo, se envolver o ser
humano, também contém a dimensão qualitativa [...]” (DEMO, 1998, p. 92). Assim, optamos
pela pesquisa qualitativa por ser uma perspectiva a abarcar uma dinâmica flexível, portanto,
criativa, subjetiva, intensa, ideológica, profunda e provisória, consoante Demo (2000), e por
buscar a qualidade da realidade, caracterizada por ser um fenômeno histórico-dialético.
A dissertação está estruturada em quatro seções, além dessa e das considerações finais.
Na primeira seção, objetivamos discutir o Orkut enquanto espaço simbólico, sua
representatividade e impacto na sociedade brasileira. Nela, discutimos a história desse site de
relacionamentos, sua estruturação, qual a sua relevância para a temática discutida na
dissertação. Além disso, discutimos o Orkut, bem como os fóruns de suas comunidades, como
hipergêneros multimodais, o que impacta significativamente nas discursividades dos sujeitos.
Assim, temos, ainda, nessa seção, a discussão sobre os silenciamentos dos sujeitos
possibilitados pela estrutura do hipergênero, bem como o Orkut como espaço da construção
da identidade.
15
de ser humano, mesmo sendo pensados com destinação somente aos indivíduos bem
comportados. Seguindo essa linha de pensamento, os DH deveriam ser pensados como
direitos naturais e não como direitos positivos, aqueles frutos de um processo histórico.
Compreendendo que todos os sentidos são históricos e apoiando-se na Análise do Discurso,
visamos discutir os direitos humanos a partir da dicotomia direitos naturais x direitos
positivos, por entendermos que as significações que perpassam a comunidade trazem
entranhadas em si os sentidos oriundos desse par. Assim, nessa seção, buscamos responder ao
questionamento que lhe dá nome: afinal, relativo aos direitos humanos, no princípio era o
verbo? Assim, como os sujeitos compreendem os direitos humanos e a partir de quais bases
esses sentidos são possíveis de emergir é o que se visa compreender nessa seção, a partir da
discussão sobre o que é linguagem, sujeito, sentidos e sua emergência no interior das
formações discursivas.
Dessa maneira, buscamos responder à pergunta “Direitos humanos para humanos
direitos?”, não de modo perpétuo, ou seja, sem a pretensão de esgotamento das possibilidades
e elaboração de uma resposta definitiva, mas como analistas do discurso, mapeando sentidos,
entendendo seu processo de construção, rastreando o que, para os cidadãos da “cidade azul”,
vêm a ser direitos humanos.
17
2 NESSE INFOMAR...
4
In: CRUVINEL, Mônica Vasconcellos.
18
brasileiro e também do restante do mundo. Não nascemos com essa identidade, recebemos
essa forma de representação em nosso processo educativo desde o nascimento. É pulverizada
no ar a ideia de que todos os brasileiros apresentam as mesmas memórias do passado, o
mesmo desejo de viver em conjunto e perpetuam a mesma herança, o que é uma inverdade. A
afirmação de que o povo brasileiro é comunicativo é fruto de uma “supressão forçada da
diferença cultural” (HALL, 2005, p. 59) que, no caso do Brasil, remonta, principalmente, ao
Romantismo, que se forçou por construir um herói nacional comedido, fiel, pacífico e que,
com o tempo, passou a ser visto como comunicativo e festeiro. Mas o Brasil, assim como
todas as outras nações, é composto de diferentes classes sociais, etnias, gêneros, ideologias, o
que faz dele um conjunto de culturas híbridas: existe o comunicativo e o reservado; o festeiro
e o caseiro; o conservador e o liberal. Existem culturas brasileiras e “[...] deveríamos pensá-
las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou
identidade [...]” (HALL, 2005, p. 62).
Por outro lado, embora o site de relacionamentos atraia os internautas pela diversidade
de ferramentas, não acreditamos ser o local de acesso o fator que confere ao Orkut a grande
popularidade que apresenta no território do Brasil. Entendemos que a relação entre a pós-
modernidade e o Brasil também seja o elemento que faça do Orkut a plataforma de
preferência. Embora a pós-modernidade tenha seu início historicamente datado na década de
1950, com apogeu nos anos 1970, os brasileiros efetivamente tiveram contato com a
atmosfera pós-moderna somente a partir dos anos 1990, com o governo Fernando Collor de
Mello e a abertura política e comercial ao mundo pós-redemocratização. Existe, desta forma,
uma necessidade por parte dos brasileiros em constituírem-se como sujeitos pós-modernos e,
devido a isso, assumem todas (ou quase todas) as características, identidades e ideologias
“esperadas” para esse lócus social, sendo uma delas a intensa interatividade e
interconectividade proporcionada pelo Orkut e sua plataforma plural. Assim, a efemeridade, a
fragmentação, a descontinuidade e o caos, típicos da pós-modernidade, aliados às ideias de
dinamismo e participação no mundo parecem “obrigar” os sujeitos pós-modernos a
apropriarem-se dos meios de produção e, principalmente, dos meios de comunicação. A pós-
modernidade é marcada, sobretudo, pela necessidade de interação, em suas múltiplas formas.
O sujeito é, em sua máxima potência, um ser comunicativo, e deve exercer suas
potencialidades interativas em todos os espaços, independente de sua nacionalidade.
Conforme Xavier (2002, p. 33-34),
19
Dessa maneira, o Orkut pode ser visto como uma das possibilidades de o brasileiro ser
pós-moderno, apropriando-se não apenas do meio de comunicação, mas da ferramenta criada
pelo opressor econômico. No Orkut, o brasileiro é ideologicamente, porque numericamente,
superior aos americanos, conforme indicado na seção anterior.
5
Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll> Acesso em: 3 maio 2011
20
no site do E-harmony6. Dessa forma, dados como etnia, religião, visão política, orientação
sexual, estilo, se bebe ou fuma são solicitados nessa etapa, visando localizar perfis
compatíveis com a personalidade dos usuários, maximizando a possibilidade de sucesso dos
relacionamentos. O módulo cinco também se encaixa nessa categoria, por solicitar dados que
dizem respeito a aspectos físicos, como cor dos olhos e dos cabelos e altura, e
comportamentais, sobretudo relativos a relacionamentos. A terceira etapa solicita dados para
contato, como e-mail, reaproximando-se esse lócus do Orkut de uma ficha cadastral
tradicional, e a quarta etapa encaixa-se no que conhecemos como mini-currículo.
Além do perfil, a narrativa de si é desenvolvida no espaço intitulado “Quem sou eu”,
no qual o usuário escreve um texto demonstrando aos seus visitantes um perfil de si mais
pessoal e menos direcionado pelo site, com mais liberdade de escrita; em outro espaço, o
usuário indica o seu status no dia, através de textos e de elementos iconográficos, os emotions
icons, conhecidos como emoticons, típicos da linguagem da internet. Esse último espaço é
relevante na constituição da imagem de si, pois está localizado no topo da página, como um
lembrete ao internauta que ele deve dar atenção ao que ele sente, indicando que seus
sentimentos devem ser publicitados, como uma forma de lembrá-lo que essa é a primeira
coisa a ser vista pelos visitantes em seu perfil, ou seja, uma estratégia para angariar
popularidade, em uma tentativa do site em incitar uma atualização constante, diária, o que
configura esse espaço em um mini-blog, ou seja, um pequeno diário virtual, mas que não
deixa marcas, rastros do usuário, por não gravar as mensagens anteriores. Existem ainda, na
plataforma, as pílulas de pensamento que, apesar de terem surgido há muitos anos, ganharam
força nos anos 1990, como o livro Minutos de Sabedoria, de Carlos Torres Pastorino, que
apresenta um pensamento diferente para ser lido a cada dia como forma de estimular a
positividade dos seres humanos e, no caso do Orkut, estimular a alegria do internauta com a
vida, ampliando a vontade de manter-se conectado.
Podemos também dizer que o status do Orkut é uma tentativa recente do Google em
suprir uma necessidade do usuário em mostrar seu dia-a-dia, seus sentimentos mais
cotidianos, atendendo a uma demanda do mercado, já que os internautas ultimamente têm
feito isso em outra plataforma: o Twitter. Nesse novo fenômeno mundial, o usuário pode
escrever mensagens curtas, com até 140 caracteres, indicando a seus seguidores o que tem
feito e sentido. O Orkut, então, criou o espaço status que comporta até 100 caracteres, tendo
logo abaixo um demonstrativo de seguidores no dia, na semana e/ou no mês, recebendo no
6
Disponível em: <http://www.eharmony.com.br/singles/servlet/questionnaire/relationship/3>.
21
remonta à foto 3x4 das carteiras de identidade7 e a seleção de comunidades virtuais, um dos
elementos mais eficazes no delineamento das identidades assumidas pelo usuário. Uma delas
é objeto de análise nessa dissertação.
A comunidade selecionada para análise, como salientamos nas considerações iniciais,
é a intitulada “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Ao associar-se a ela, o sujeito do
Orkut indica em sua biografia uma das suas filiações ideológicas, demonstrando ao seu
visitante, a partir da interação com pessoas do país inteiro, qual o seu modo de pensar e como
conduz a sua vida, referente aos assuntos ligados a direitos humanos, indicando ser este um
tema importante para ele, por estruturar as suas relações e não estar, atualmente, sendo
conduzido do jeito que ele deseja, que acha correto. A comunidade virtual, portanto, é uma
tentativa de o usuário convencer os seus amigos de que sua forma de existência é a melhor, se
não a única aceitável. Importante salientarmos que, embora a comunidade seja virtual, a
internet deve ser compreendida como uma representação ou espelho da sociedade, o que nos
leva a duas considerações: a concepção do Orkut enquanto uma cidade virtual; a necessidade
de discutir o que é o virtual e ciberespaço, pois “[...] a comunidade virtual somente adquire
forma e se realiza mediante a interconexão dos membros em um território simbólico [...]”
(CORRÊA, 2008, p 70).
Muitas são as teorias que têm se debruçado nas questões que envolvem a internet,
como a Antropologia ou a Etnografia da Internet (Netnografia). Para compreendê-la, todavia,
utilizamos as noções de ciberespaço e de virtual concebidas por Pierre Levy, pelo fato de o
filósofo francês compreender que “[...] a emergência do ciberespaço acompanha, traduz e
favorece uma evolução geral da sociedade [...]” (LEVY, 1999, p.25). A internet, assim, é
concebida não apenas como um meio de comunicação, mas como um espaço de interação, de
trocas simbólicas, de emergência de significações, um fenômeno social. A sociedade, bem
como o ciberespaço, que dela faz parte, são construídos a partir das relações entre os
indivíduos, em várias modalidades, sendo organizados a partir da imagem que cada sujeito faz
do seu interlocutor, uma tentativa de antecipar suas representações, seu imaginário, ou seja, a
partir de formações imaginárias, construindo estratégias discursivas objetivando,
inconscientemente, a homogeneidade cultural e comportamental aventada por Hall (2005) ao
discutir identidade nacional. A partir da interação intersubjetiva e dessas formações
7
Interessante observar como, na comunidade analisada, a foto do perfil é significativa para aceitação do discurso
do outro, para ratificação de sua narrativa: “julguem pela foto do infeliz, se dá pra levar a sério um sujeito
desses” – extraído do tópico “quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”. A foto é, em uma comparação
com o mundo fora do ciberespaço, a roupa do sujeito, que deve estar adequada à situação comunicativa,
conforme a etiqueta.
23
Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
8
Entendemos que essa classificação não é a mais adequada, pois tende a homogeneizar grupos. Todavia,
referimo-nos aos grupos de brasileiros que apresentam renda média familiar mensal oscilando entre R$ 1mil e
R$4 mil, conforme perfil divulgado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, através de dados da Pesquisa de
Amostra Familiar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (COSTA, 2011).
25
indica que o binômio „interesse por temas de cunho político‟, como é o de direitos humanos, e
„acesso às tecnologias‟ permanece nas mesmas mãos que sempre detiveram esse
poder/interesse, em uns períodos mais que em outros, sinalizando que ainda há um
desequilíbrio de contato com o Outro global, o que contribui para dificultar a massificação de
ideias e representações de um grupo cibernético ao restante da sociedade. Ademais, a
possibilidade de contato com o outro acende o interesse pelo diferente e/ou exótico e, com
isso, discursos como “vivam as diferenças!” são cada vez mais valorizados na sociedade. Na
comunidade virtual, o direito à opinião é um dos mais destacados, sobretudo quando há
discordância9, evidenciando necessidade, ainda que por instinto de sobrevivência discursiva,
ou seja, como estratégia, de coexistirem as diferenças, inviabilizando, portanto, a
homogeneidade.
Outro elemento importante que contribui para que o ciberespaço não possa ser
considerado homogeneizador cultural é a valorização do que é local, não apenas do que diz
respeito ao seu entendimento tradicional, ou seja, geográfico, mas referente às idiossincrasias
dos indivíduos e/ou a culturas de grupos minoritários, a aspectos culturais que tornam o
sujeito único, por ocupar diferentemente posições sociais no seio da comunidade, por ser
participante de grupos sociais diferentes, consequentemente assumindo ideologias e
comportamentos próximos, porém não-idênticos em relação a seu interlocutor virtual, ou seja,
ele é diferente do outro, ainda que singelamente; há, atualmente, a valorização da
subjetividade cultural. Nas trocas interculturais ocorridas no ciberespaço, então, há perdas,
mas também há ganhos, ressignificando as culturas envolvidas.
Podemos, então, destacar como características do ciberespaço “[...] a ubiquidade da
informação, documentos interativos interconectados, telecomunicação recíproca e assíncronas
em grupo e entre grupos [...]” (LEVY, 1999, p. 49). O Orkut, enquanto espaço de
comunicação e sociabilidade no ciberespaço, em sua terceira forma, como indicamos em
parágrafo anterior, apresenta como dispositivo comunicacional, ou seja, como tipologia de
relações intersubjetivas, a modalidade todos-todos, em que não há restrições de produção e
recepção de mensagens, configurando a importância do ciberespaço10, segundo Levy (1999),
devido a essa mutação cultural promovida por ele. Existem ainda dois outros dispositivos
9
Podemos citar como exemplo scrap extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”: “respeito a sua opinião, como a do André e de todos os outros, nunca entrei em atrito com
ninguém por opiniões contrárias às minhas, mas por favor, quando tiver tempo, leia meus posts neste tópico e
verá outro ponto de vista”.
10
Atualmente, essa configuração, em relação ao Orkut, pode ser relativizada, já que existem comunidades
virtuais em que os sujeitos dependem da aprovação do moderador para dela fazer parte e, portanto, para produzir
e receber mensagens.
26
comunicacionais, a saber: um-um, que apresenta o telefone como referência e o um-todos, que
tem na televisão um representante. Indicamos que o ciberespaço também possibilita a relação
entre os sujeitos nessas duas modalidades, a exemplo do e-mail e do MSN, que podem
funcionar das duas formas. Salientamos ainda que, no MSN, pode haver produção
compartilhada, haja vista que o programa permite conversas simultâneas entre vários usuários,
fato conhecido como conferência. Com isso, o centro da estruturação cibernética desloca-se
da relação lugar-lugar para pessoa-pessoa.
As comunidades são o espaço do Orkut em que ocorrem as trocas simbólicas, em que
funciona efetivamente o dispositivo comunicacional todos-todos, fundada a partir da união de
interesses comuns entre os integrantes, originada com base no sentimento fundamental de
pertencimento ao grupo, semelhante ao experimentado pelo indivíduo na configuração do
sentimento nacional, gerando coesão em torno de uma consciência coletiva, ou seja, crenças,
sentimentos, ideologias partilhadas pelos membros, no caso dessa dissertação, referente aos
direitos humanos, constituindo uma sociedade. É necessário, então, para participar de uma
comunidade, não apenas reconhecê-la enquanto sociedade, mas também, e principalmente, ser
reconhecido como um membro pelos demais integrantes.
A interessante diferença entre uma sociedade cibernética e as demais existentes fora
do ciberespaço é o modo de desenvolvimento do sentimento de pertencimento: na nação, os
sujeitos são „compelidos‟ a assumir posições referentes à ideia de nacionalidade e de
pertencimento devido a discursos que circulam na sociedade, à memória discursiva, que põe
os já-ditos na superfície dos discursos e seus sentidos são tomados como verdade, devido à
sensação de um já-lá eterno, um mar de informações dificilmente transponível pelo sujeito.
No ciberespaço, pertencer a uma comunidade indica explicitamente uma escolha, uma opção
consciente feita pelos integrantes.
Não queremos com isso afirmar que o fato de os usuários optarem pela adesão à
comunidade virtual, que os isenta/torna invulneráveis dos/aos discursos circulantes, da
memória discursiva do grupo nacional, até porque seus sentidos sobre direitos humanos são
dependentes, entre outras coisas, de outros discursos. Devemos entender que, segundo a
Análise do Discurso, todos os sujeitos são frutos da interpelação das ideologias, porque, além
de assujeitados à língua, são por elas são constituídos, e, portanto, assumem como seus “[...] o
sistema ordenado de ideias ou representações e das normas e regras [...]” (CHAUÍ, 2006, p.
62). Cabe ressaltar que a ideologia funciona, atua sem se pôr à mostra, ou seja, que os
sujeitos, apesar de existirem a partir da ideologia, não apresentam, em suas consciências, esse
27
[...] o anonimato contribui para garantir a livre discussão on-line, quando barreiras e
constrangimentos do contato off-line, que vão desde uma escala de hierarquia
quando se está em um ambiente profissional quanto a fatores de ordem emotivo e
pessoal, como a timidez. Por este viés, o anonimato torna-se muito significativo na
relação estabelecida via ciberespaço, à medida que facilita a exposição de idéias,
sejam lá quais forem, já que se pode esconder e escamotear a identidade. (CORRÊA,
2008, p. 168)
11
Isso não quer dizer que a identidade é falsa. A escolha da imagem para compor o perfil, a criação do nickname
são também rastros que indicam a(s) identidade(s) do sujeito do Orkut.
28
12
O Orkut permite classificar as comunidades em uma das 28 categorias elencadas pela plataforma, facilitando a
procura dos usuários por temas de seu interesse. As categorias são: Alunos e Escolas; Animais: de estimação ou
não; Artes e entretenimento; Atividades; Automotivo; Cidades e Bairros; Computadores e Internet; Culinária,
bebidas e vinhos; Culturas e comunidade; Empresa; Escolas e cursos; Esportes e lazer; Família e lar; Gays,
lésbicas e bi; Governo e política; História e ciências; Hobbies e trabalhos manuais; Jogos; Moda e beleza;
Música; Negócios; Países e regiões; Pessoas; Religiões e crenças; Romances e relacionamentos; Saúde, bem-
estar e fitness; Viagens; Outros.
29
expulsões, no caso da comunidade do Orkut. Há também link para os perfis dos moderadores,
o tipo de comunidade, ou seja, se é pública ou não, a identificação do nível de privacidade do
conteúdo, a sua localidade, que normalmente coincide com a do criador, data de criação e
número de membros.
A comunidade virtual “Direitos humanos para humanos direitos” é pública, seu
conteúdo é aberto para não-membros, está geograficamente relacionada à cidade de São Paulo
e foi criada em 9 de abril de 2005. Além disso, na lateral direita, há imagens dos membros que
recentemente visitaram a comunidade13, bem como a lista das outras comunidades com as
quais mantém relação. Na comunidade, pode-se ainda participar de enquetes, divulgar
eventos, denunciar abusos (o “Ministério Público” do Orkut) e participar de fóruns, principal
atividade de uma comunidade virtual.
A existência de links na comunidade e a ideia de que o Orkut, enquanto discurso,
materializa seu sentido no texto, faz com que seja relevante entendermos a noção de
hipertexto, termo criado por Theodore Nelson, em 1993, categoria na qual se encaixam as
materialidades do site de relacionamentos do Google. A priori, devemos ter em mente a
noção de hipertexto enquanto texto estruturado em rede, o que nos leva a ponderar que essa
categoria não foi inaugurada com o ciberespaço, já que textos tradicionais também podem
apresentar conexões/nós como as notas de rodapé, por exemplo, mas que o Orkut é um
hipertexto digital, ou seja, “[...] informação multimodal disposta em uma rede de navegação
rápida e intuitiva” (LEVY, 1999, p. 56), construído para uma leitura coletiva, uma “[...] rede
de hiperlinks entre palavras, ideias e fontes, sem centro ou fim [...]” (XAVIER, 2002, p. 26).
Dessa forma, o hipertexto digital só se realiza, com todas as suas qualidades, no ciberespaço.
O hipertexto é concebido a partir da ideia de potencialidade, pois os links, ou melhor,
os textos em rede, são apenas textos em potencial, pois a sua realização somente se dará a
partir da interação com o usuário, sendo que não há a obrigatoriedade de fazê-lo e, portanto,
não há garantia de isso ocorrer. Nas comunidades do Orkut, por exemplo, não parece ser
comum o acesso, através dos links situados na página de abertura da comunidade aos perfis do
dono e dos moderadores. Não há nela pistas sobre tal prática. Entretanto, percebemos que
essas conexões textuais ocorrem nos fóruns, quando há necessidade, por parte de um dos
interlocutores, de comprovar a autenticidade de algum orkuteiro, se não se trata de um fake,
como são chamados os perfis falsos, como evidencia Carolina em fragmento a seguir. Mas
13
As comunidades do Orkut apresentam três locais diferentes para indicar o quantitativo de membros. Isso
demonstra a importância dada à popularidade no Orkut, o que ratifica a sua categorização como uma rede social.
30
reiteramos, não é uma prática tão comum na comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
14
“locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero
materializado como texto” (MARCUSCHI, s/d, p. 10). Importante observar esse conceito, pois conforme o autor
o gênero é sempre identificado a partir de sua relação com o suporte, ou seja, a relação do sujeito com o texto
muda, se muda o suporte no qual a mensagem é veiculada. Isso quer dizer que só é possível compreender o
funcionamento das comunidades virtuais, a partir da compreensão de ciberespaço, o seu suporte.
31
saussuriano, a fala, por não levar em consideração que os elementos do sistema linguístico
estão submetidos a certas regras sociais de utilização, impostas pelos gêneros discursivos.
Fundado que é pelo gênero debate, o Orkut não parece se adequar bem às divisões
elaboradas por Bakhtin (2003) para os gêneros quanto à sua origem, ou seja, gêneros
primários e secundários, estes últimos oriundos de uma estrutura complexa e organizada,
incorporando os primários. Os fóruns do Orkut parecem ser um gênero diferenciado, por já
ser, em nosso olhar, uma terceira geração de tipos relativamente estáveis de enunciado,
abrindo possibilidade para os gêneros textuais terciários15, que seriam uma mescla de um
gênero primário e um secundário, assumindo características de ambos e desenvolvendo
outras. Embora seja um gênero derivado de dois gêneros orais, o fórum do Orkut é escrito,
apesar de manter algumas das especificidades da oralidade. Conforme Grigoletto (2009), a
escrita na internet é um meio-termo. Ainda segundo a autora,
15
Indicamos não ser originalmente nossa a idéia dos gêneros terciários. Xavier e Santos (s.d) apontam para sua
existência, ao refletir sobre o fórum eletrônico, gênero analisado nesta dissertação. Eles afirmam que o fórum
eletrônico “é um gênero terciário que guarda mais semelhanças com os gêneros primários por serem constituídos
basicamente por marcas da oralidade tanto na forma composicional como no tempo de execução, embora a sua
concretização se dê pela escrita. Períodos simples e curtos, frases truncadas, preferência por construções verbais
na voz ativa, menos densidade informacional, marcas de envolvimento, presença de marcadores conversacionais,
entre outras características da oralidade, costumam aparecer muito nos fóruns virtuais”. Todavia, não pudemos
perceber todas as características identificadas para esse gênero pelos autores, principalmente no que diz respeito
à estrutura composicional e marcas da oralidade. No corpo da dissertação, trazemos brevíssimos comentários
sobre as particularidades do gênero terciário „debate‟ na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
32
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”.
16
Abreviação para a expressão “filho da puta”
33
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de DH?”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
Os hiperlinks que ligam o fórum aos perfis dos debatedores funcionam como mini-
currículos, no qual o membro da comunidade pode conhecer o seu interlocutor e, com essas
informações, elaborar estratégias argumentativas, ou simplesmente verificar a procedência,
sobretudo relativa às filiações ideológicas dos membros visitados. Dessa maneira, seguindo a
classificação da Linguística Textual adotada por Araújo e Lobo-Sousa (2009), essa
intertextualidade é do tipo „temática‟, pelo fato de o sujeito partilhar temas, conceitos e
terminologias. A intertextualidade presente nas postagens da comunidade é qualificada
também como sendo do tipo „explícita‟ e “se dá quando, no próprio texto, é feita menção à
fonte do intertexto” (ARAÚJO; LOBO-SOUSA, 2009, p. 571), sendo que no Orkut, quando
isso ocorre, essas postagens praticamente só contem esses hiperlinks, como pudemos observar
nos scraps de „João Lima‟, „Luiz Felipe‟ e „inconstitucional‟ anteriormente postos.
Ressaltamos que outras relações intertextuais podem ser levantadas no corpo das mensagens
34
postadas nos fóruns. Focamo-nos, entretanto, naquelas que dizem respeito exclusivamente às
especificidades do hipertexto.
Feitas as considerações sobre ciberespaço, gênero e hipertexto, podemos retomar a
ideia de que o Orkut apresenta como dispositivo comunicacional o formato todos-todos,
alçando-o à categoria de terceira forma de sociabilidade. O mecanismo de funcionamento do
Orkut, nos fóruns de suas comunidades virtuais, é a interação através do debate, como já
evidenciamos. O gênero secundário „debate‟ exige a presença no mesmo espaço e ao mesmo
tempo de interlocutores, limitando a interação. O máximo que podemos conseguir, nesse
sentido, com o gênero „debate‟, é a quebra da rigidez do espaço, com a utilização de
tecnologia, realizando teleconferências, configurando-se como um fenômeno de sociabilidade
de segunda ordem. Todavia, o fórum do site de relacionamentos do Google, como gênero
terciário, desobriga os interlocutores a partilharem o mesmo espaço-tempo, fragmentando
esse binômio. Dessa maneira, os orkuteiros não precisam conectar-se no mesmo instante para
que o debate se processe, o que faz com que se ampliem as possibilidades de participação de
pessoas com estilos e rotinas de vida diferentes e aumente o tempo de duração do debate,
podendo atingir a eternidade, se for constantemente alimentado17. Apesar disso, há por parte
dos interlocutores a sensação de tempo real, imediato, apesar de sua fragmentação.
Parece uma contradição afirmar que no Orkut há a fragmentação do espaço, se
anteriormente informamos existir no perfil das comunidades um espaço destinado à indicação
do lugar a que pertence a comunidade virtual, sendo a “Direitos humanos para humanos
direitos” localizada em São Paulo. Entretanto, essa indicação faz referência apenas à
concepção de lugar físico-geográfico, porque é com ele, porque palpável e historicamente
situado, que os internautas apresentam uma relação de identificação. O lugar, portanto, é
espaço formador de identidade, ou melhor, ele põe em evidência para o sujeito aquilo que ele
é (ou deveria ser). O ciberespaço, suporte do gênero terciário „debate‟, não apresenta essas
fronteiras e, por isso, é compreendido por Corrêa (2008, p. 23) como um não-lugar, ou seja,
“[...] espaços simbólicos, reterritorializantes, de passagem, que são navegados por internautas
que se encontram e se desencontram no fluxo comunicacional”. Dessa maneira, não-lugar é
um conceito que amplia a noção antropológica de lugar, que é fixo, indicando o ciberespaço
17
Dentre os cinco tópicos centrais de análise, até a data da última coleta, o de maior duração foi o tópico
“Aborto”, com início em 30/05/2006 e última postagem coletada em 03/12/2006, ou seja, 188 dias de atividade.
Dentre os tópicos secundários utilizados na dissertação, o de maior duração é o intitulado “Clichês pseudo-
humanistas, com debate ativo no período de 21/04/2008 a 13/03/2009, contabilizando 327 dias. Ressaltamos que
os tópicos permanecem on-line e, por isso, ainda não podem ser considerados finalizados. O Orkut disponibiliza
a relação dos tópicos de uma comunidade por data de postagem. Assim, se alguém postar algo nos referidos
tópicos, certamente o debate será retomado de onde parou.
35
que as fronteiras tempo-espaço não foram fragmentadas e, além disso, contempla melhor, para
nós, o conceito de hipertexto.
A noção de virtualização carece, inicialmente, da compreensão do que vem a ser o
virtual, concebido por Pierre Levy (1999) a partir de três vertentes: a técnica, que diz respeito
à digitalização, a corrente, que vincula a noção de virtual à ideia de irrealidade e a vertente
filosófica, que é a adotada nesta dissertação. Desta maneira, o virtual é “[...] aquilo que existe
apenas em potência e não em ato [...] antes da concretização efetiva [...]” (LEVY, 1999, p.47).
O ciberespaço, então, é terreno das possibilidades, como a metáfora da árvore presente na
semente, trazida por Levy (1996). Isso significa que o virtual não se opõe ao real, por ser um
conjunto de potencialidades a serem efetivadas pelo usuário. A diferença entre o real e o
virtual, dessa forma, reside na existência concreta do primeiro. Nos hiperlinks da comunidade
do Orkut anteriormente postos, por exemplo, os textos presentes nos nós das conexões por
eles estabelecidos são possibilidades a serem efetivadas no ciberespaço. Se o membro da
comunidade clicar no link, o texto passa a ganhar concretude. Como podemos perceber, não é
adequado afirmar que os textos dos hiperlinks não são reais por não terem sido clicados, pois
eles encontram-se disponíveis, prontos para brotar da semente, sendo com isso, atualizados.
Levy (1996), então, concebe a virtualização como o movimento inverso ao da atualização, ou
seja, como desenvolvimento de um espaço simbólico de possibilidades. A atualização, por seu
turno, é entendida como a atribuição de sentidos ao texto, quer dizer, a assunção de uma
dentre as múltiplas possibilidades semânticas.
A noção de virtual define ciberespaço porque abarca a fragmentação de tempo-espaço,
ou seja, por ser compreendido como possibilidade, o virtual é uma “[...] entidade
„desterritorializada‟, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos
e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em
particular [...]” (LEVY, 1999, p. 47). Essa concretização, que Levy (1999) nomeia de
atualização e da qual falamos no parágrafo anterior, constitui o lado oposto do virtual, ou seja,
ao entrar em contato com o hipertexto, o leitor atualiza o texto ao atribuir-lhe sentido „aqui e
agora‟.
É, então, nesse momento que a noção de reterritorialização irrompe como a mais
adequada. Reterritorializar é constituir relocalizações territoriais, reconfigurando o contexto
enunciativo, redefinindo as fronteiras. É a partir da reconstrução do espaço simbólico que é
possível qualificar o Orkut como “cidade azul”, pois, ao ressignificar o ciberespaço, os
sujeitos constituem uma estrutura semelhante a uma cidade antropológica, geográfica: com
cidadania, necessidade de registros e documentação, como o perfil, funcionamento de uma
38
estrutura da tripartição dos poderes, como já mencionamos18, dentre outros elementos de uma
cidade tradicional. O Orkut é, retomando a frase de Eisenberg e Lyra (2006, p. 33) presente
nas considerações iniciais, “[...] uma cidade virtual moldada à imagem do espaço urbano dos
usuários [...]”. O Orkut é uma “cidade azul”19.
18
Dos três poderes da estrutura governamental vigente na sociedade contemporânea – Executivo, Judiciário e
Legislativo – o último é o único que não se desenvolve bem no Orkut. Percebemos traços do Poder Legislativo
apenas no espaço enquete, isso se a pergunta servir para alguma tomada de decisão na comunidade, o que não é
tão frequente. Nesse sentido, a gestão do Orkut, ou melhor, das comunidades, não é tão democrática.
19
O adjetivo „azul‟ no sintagma diz respeito à cor de fundo da plataforma.
39
3.1 UM SINTAGMA...
única formação discursiva, possibilitando, dessa maneira, a assunção, pelo mesmo sujeito, de
sentidos aparentemente contraditórios, ou seja, DH são, ao mesmo tempo, de cunho natural e
político.
Tal diversidade semântica se dá, sobretudo, por conta dos elementos que compõem o
sintagma que nomeia esse campo. Tanto a palavra “direito” quanto “humano” apresentam
variadas acepções, o que compromete o estabelecimento de um sentido único e estável para o
sintagma, se é que isso é possível, mas sabe-se ser desejado tanto pelos juristas quanto pelos
internautas que defendem, com afinco, o sentido por eles adotado, pois, como observa
Stevenson (1958, p. 9 apud FERRAZ JR, 2003, p. 38), “[...] qualquer definição que se dê de
direito, sempre estaremos diante de uma definição persuasiva”. A interpretação dada pelos
41
sujeitos da comunidade do Orkut à noção de direito está afinada a duas correntes, a saber:
aquela que entende o direito de forma genérica e abstrata, apresentando como função básica a
busca do sujeito enquanto indivíduo, pela justiça, ainda que “com as próprias mãos”, afinal
para os orkuteiros “temos sim o direito de nos defender e protegermos nós mesmos os nossos
direitos e os das pessoas queridas” 20; ou ainda àquela que concebe o direito, primeiramente, a
partir dos postulados constituídos pela ciência jurídica, pois ela deve ser a base das discussões
sobre direitos humanos, sobretudo porque “antes de tudo, devemos conceituar a liberdade
individual”21.
O adjetivo “humano”, que compõe o sintagma em estudo, também abarca sentidos
variados, filiados a famílias discursivas diversas. Assim, os sentidos sobre direitos humanos
são constituídos a partir da relação entre formação físico-somática do indivíduo e atos de
caridade, incluindo aí a legitimação por uma instância superior e divina, ou seja, direitos
humanos devem ser pensados para uma vida plena e harmônica, direito a uma vida sadia que,
caso não ocorra, pode (e deseja-se) ser retirada por Deus (e somente por ele). Há nos
discursos da comunidade do Orkut, então, a relativização do direito à vida, pilar dos direitos
humanos, devido ao entendimento de ser humano enquanto ser que “deve ser perfeito” 22.
Tal relativização dos direitos humanos encontra eco na comunidade do Orkut em
análise, principalmente porque o ser humano vai ser também compreendido a partir de sua
história, com os sujeitos cibernéticos retomando, no fio de seus discursos, fatos que marcaram
a humanidade, como o massacre de seres humanos ocorrido no período de 1939-1945, quando
determinados grupos sociais eram considerados reles animais e, portanto, cobaias, (“„Direitos
humanos para humanos direitos‟ não seria recriar a ideia de „Ratos Humanos‟ e assistir a um
holocausto contra pecadores?”23), o que possibilita sentidos como os que nomeiam a
comunidade, ou ainda, a partir de seus princípios últimos, ou seja, o ser humano, tal qual uma
propriedade, conforme inciso XXIII, artigo V, da Constituição Federal do Brasil, deve atender
à sua função social, ser útil à coletividade, afinal “o que, por exemplo, esperar de um garoto
de 12 anos preso 11 vezes?”24. Salienta-se, entretanto, que as três filiações aqui apresentadas
estão conectadas e interagem para produzir sentidos sobre Direitos Humanos. Assim, afirmar
20
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
21
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
22
Esse posicionamento emerge no Orkut em discursos como o extraído do tópico “Aborto!”: “a pobrezinha é
completamente mal-formada [...] eu a assisto usufruir de seu direito à vida de maneira penosa [...] peço todo dia
que Deus tenha piedade e leve”.
23
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
24
Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
42
que „direitos humanos devem ser atribuídos a humanos direitos‟ implica entender que os
indivíduos devem ser fisicamente perfeitos, apresentar boa índole e “boa família”, já que
precisam, desde o nascimento, viver sob a conduta esperada pela sociedade, “que vem de
berço” e que a sua vida deve ser traçada para atingir fins socialmente aceitos pela
comunidade25.
A pergunta “Quem é o homem?” é de suma importância para essa dissertação, pois,
embora não definidora da questão dos direitos, a ideia de que os direitos humanos são os
destinados aos homens não é falaciosa. É essa pergunta que nos encaminha a outras três
salientadas por Wolff (2009, p. 37), pautadas no pensamento de Kant, e que norteiam a
construção dos direitos, já que indica a quais são as necessidades do homem: “O que devo
fazer?”; “O que posso saber?”; “O que posso esperar?”; perguntas que só têm fundamento se
associadas à pergunta mestra aqui colocada, afinal, como salienta Mondin (1980, p. 5)
responder tal pergunta significa que “[...] não podemos adotar uma atitude de indiferença ou
superficialidade, posto que o encaminhamento de nossa vida depende dessa solução, seja
individual seja social, bem como nossa conduta, nossas relações com outrem e com o
mundo.”
Ante o exposto, além de considerar, nesta seção, o percurso histórico de
desenvolvimento dos direitos humanos, faz-se necessária a discussão, ainda que breve, sobre
as noções de direito e homem. Com relação à primeira noção, salientamos que não abarcamos,
por não apresentar relação com a proposta dessa dissertação, sentidos que levem à ideia de
jurisprudência, isto é, ciência jurídica enquanto um método. Ater-nos-emos ao direito somente
como objeto dessa ciência. Ressaltamos ainda a não pretensão de esgotamento do conceito,
devido à sua complexidade e por não se configurar como objetivo nessa dissertação a
apresentação de um conceito bem definido e refinado, mas um brevíssimo mapeamento dos
sentidos que emergem sobre a temática na comunidade estudada, alinhando-os ao que é
discutido pelos cientistas do direito.
Quanto à noção de humano, embora existam diferentes caminhos para se
compreender o homem, quer seja nas ciências naturais, sociais ou históricas, será aqui
25
É interessante que, na comunidade, por vezes, aquilo que é considerado desvio de conduta e seria condenado
em situações diversas, é relativizado quando se trata da Igreja Católica, evocando, inclusive fatos da história
bíblica para justificar seu posicionamento. Todavia, tal tolerância não é facilmente vista na comunidade, haja
vista a defesa da pena de morte, devido à impossibilidade de ressocialização do infrator: “quem nunca errou que
atire a primeira pedra... todos dessa comunidade um dia já erraram e se pudessem voltar atrás em algo voltariam
em alguma ocasião na vida pois somos humanos e NÃO SOMOS PERFEITOS!!!! TODOS ERRAM!!!! Tenho
certeza q se a Igreja pudesse voltar atrás nas suas atitudes lá no passado voltaria e faria diferente” – Peterson,
discutindo o apoio da Igreja aos nazistas, no tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da
comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
43
utilizada a abordagem da Antropologia Filosófica que, embora reconheça não ser possível
conhecer o ser humano em sua totalidade, busca conhecê-lo sem compartimentá-lo, para além
dos fatores físico-biológicos, socioeconômicos, políticos e linguísticos, articulando-os.
3.2.1 Direito, direito meu: existe alguém que tenha mais direito do que eu?
Observamos ser o objeto da ciência jurídica o que nos interessa para compreender um
dos elementos que compõe o sintagma Direitos Humanos. Todavia, como em qualquer área
do conhecimento, não há consenso sobre o que vem a ser direito. A palavra, portanto, pode
assumir sentidos variados, ora constituindo-se apenas como um conjunto de normas (o
ordenamento jurídico), ora como um ramo científico ou ainda como uma faculdade do
indivíduo, ou seja, o sujeito com direito a.
Na comunidade do Orkut, nota-se a coexistência de significações sobre a noção de
direito que correspondem a fases da história do conceito na ciência jurídica, havendo,
entretanto, na “cidade azul”, apesar da evolução histórica da noção, certa estabilidade
semântica. Desta forma, os sentidos transitam basicamente entre dois momentos históricos, a
saber: a Antiguidade Clássica e a Idade Média. Ratificamos que, com isso, não queremos
dizer que dos sujeitos do Orkut não emerjam sentidos filiados a outros processos históricos e
sim que os períodos citados são o núcleo semântico mais relevante na constituição de seus
sentidos. Assim, o direito é compreendido como sendo da ordem do sagrado, ora como
direcionador da ação do indivíduo, tal qual em Roma, onde era concebido como exercício de
atividade pautada na ética, ação com prudência (daí a palavra jurisprudência), com equilíbrio
nos atos de julgar; ora com base no Cristianismo e suas crenças no livre-arbítrio do homem,
na configuração e execução de seus direitos, sempre pautados na vontade de Deus e no divino
enquanto salvação, como Rafael argumenta no tópico “Aborto”, cujo fragmento está posto a
seguir. Desta forma, há união entre verdade jurídica e verdade bíblica, sendo os textos
sagrados uma das fontes de consulta do campo. Os dez mandamentos, por exemplo, até hoje
são considerados como código de conduta a ser seguido e, no processo histórico dos direitos
humanos, influenciou, ainda que indiretamente, documentos importantes como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
44
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.
26
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
46
fundamentais do homem”27 e, devido a isso, a penalidade deve ser pensada na sociedade sem
referência aos direitos humanos, ou seja, sem restrição de ordem humanitária, apesar de, em
alguns momentos, emergirem enunciados que não estabelecem a pena de morte como
necessária28.
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.
Dessa maneira, é relevante observar que, para a maioria dos membros da comunidade,
a moralidade não se caracteriza por ser um elemento social e sim da natureza do indivíduo,
inerente a ele ao nascer. Dessa forma, a maioria dos sujeitos do Orkut rechaça teorias que
apontam que as condições sociais e psicológicas do sujeito na infância, por exemplo, possam
contribuir para a prática de delitos e, por isso, torna impossível a correção do sujeito infrator
no sistema prisional, por ser o seu desvio de cunho bio-ético-moral, como podemos
depreender do mesmo discurso de André, acima colocado, datado de 07.05.2006. Como
consequência desse posicionamento, a humanização da pena é tomada como elemento
incentivador da criminalidade, evidenciado nas falas dos orkuteiros Pluto, de 12.09.2009 e
André, de 22.05.2006, a seguir, trazendo novamente ao seio da discussão sobre direitos
humanos a influência do Código de Hamurabi, demonstrando também como a ideia de ser
humano impacta a conceituação de direito. Assim, o livre-arbítrio, como característica própria
do ser humano, implicaria a configuração do sujeito criminoso como consciente de suas
atitudes, sendo, portanto, o único responsável por elas, e, por isso, o código penal encontraria
legitimidade para isentar-se de responsabilidade com os direitos humanos.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.
27
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
28
O mesmo sujeito, na comunidade virtual, oscila entre a defesa e a omissão quanto à temática da pena de morte,
por, cremos, configurar-se em tema que pode, a depender do seu interlocutor, gerar prestígio ou constrangimento
social. Assim, palavras de André, no tópico “Cuidado”, no dia 14.05.2006, relevam que a pena de morte é tema
de baixo prestígio, naquelas condições de produção de seu discurso: “Victor, em nenhum momento eu disse que
quero um castigo cruel para o criminoso. Por favor, não coloque “palavras em minha boca”. Não há nada de
cruel em defender a pena de prisão para facínoras”.
47
29
Lembremo-nos que a moral ocidental é basicamente construída a partir do pensamento judaico-cristão. A
norma acima posta, por exemplo, é um pensamento popular resultante do mandamento católico “Honrai vosso
pai e vossa mãe.”.
30
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
48
31
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
32
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
49
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos
direitos”.
33
Lembramos que o direito trazido aqui está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo
23, inciso IV: “Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para a proteção de seus
interesses”.
50
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos”.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para
humanos direitos” – grifo nosso.
34
Indicamos não haver na comunidade analisada tópicos que discutam o direito consuetudinário; todavia há
tópicos que veem no sujeito comum uma possibilidade de intervenção jurídica na sociedade, ainda que
indiretamente, por meio de ações sociais.
35
O que queremos afirmar é que essas normas não estão escritas.
36
No sentido de não-institucionalizado, porém não é ilegal.
37
“As partes num conflito deverão distinguir a todo o tempo as pessoas civis e os combatentes. Os ataques só
poderão ser dirigidos contra os combatentes. Os civis não devem ser atacados.”
52
38
“Os civis gozam de proteção contra ataques, salvo se participam diretamente nas hostilidades e enquanto durar
essa participação.”
39
“Considerando ser essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pelo Estado de direito...”.
53
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos direitos”.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Tal reconhecimento é importante, pois a história dos direitos humanos, que é discutida
a posteriori, está tão atrelada ao Estado que, segundo Bobbio (2004), suas três fases40 estão a
ele intimamente ligadas, como se os Direitos Humanos objetivassem esse elemento e não ao
ser humano, o que também contribui para invalidar a tese desse componente da jurisprudência
enquanto direito natural. As suas fases estão assim divididas: direito à liberdade (limitação do
poder DO Estado); direitos políticos (liberdade NO Estado); direitos sociais (liberdade
ATRAVÉS do Estado). Dentre esses, os direitos sociais são os mais lembrados na
comunidade, indicando que os membros acreditam no Estado como conferidor de bem-estar
40
A história dos direitos humanos está dividida em gerações, como veremos. Essa subdivisão em fases tem como
função analisar a relação entre direitos humanos, sociedade e o Estado.
54
social. Reitera-se que, quanto aos direitos em si, os assuntos preferenciais são aqueles
relativos ao cerceamento da vida, como pena de morte e aborto.
Com vistas ao pluralismo jurídico, não se pode pensar em direito fora da ordem social,
da coletividade e da sociedade organizada enquanto unidade. Temos, então, os princípios que
norteiam a concepção de direito como instituição, ou seja, oriundo de uma sociedade
ordenada e organizada nem sempre pelo Estado. Todavia, tal ideia pode levar à supressão da
figura do indivíduo devido ao entendimento de que o direito não existe para atender suas
vontades particulares, e sim para ordenar a sociedade, a instituição. A esse respeito cabe uma
observação: uma das temáticas mais discutidas na comunidade, como já salientamos, é a
penalidade por morte. Segundo Lafer (2004), ela é resultante da concepção orgânica da
sociedade, quer dizer, pensada somente a partir da coletividade hierarquicamente superior ao
indivíduo, tal qual no Orkut, no tópico “Seletividade do Sistema Penal”. Neste, é debatida a
origem da população prisional e a desigualdade nas cadeias, tendo como ponto de partida o
levantamento realizado por García-Pablos no livro Sistemas penais na América Latina 41.
A discussão ocorre, basicamente, entre três integrantes da comunidade do Orkut que,
dedicados a analisar se o crime no Brasil tem fundamento sistêmico, social ou se é mera
escolha do indivíduo, reiteram, ainda que indiretamente e com algumas ressalvas, como a
defesa de oferta de segunda chance ao infrator e trabalho para autossustento em regime
prisional pode ser benéfica (ou não) à sociedade, bem como a necessidade (ou não) da pena de
morte no país, pois o sujeito delinquente é uma doença da sociedade e, como tal, deve ser
banido. Comparado a um câncer, no discurso de „Victor-San‟, a seguir, na afirmação de que o
próprio organismo gera a doença, em uma tentativa de metaforizar a culpa da sociedade na
formação de um bandido, o crime e, por conseguinte, o criminoso, embora nesse tópico sejam
salientadas questões sociais e a prisão como modalidade punitiva possível, se reformulada,
deve ser retirado do corpo social, ou seja, mutilada a parte necrosada, como o seio de uma
mulher acometida por câncer de mama. Assim, a coletividade e seus interesses são concebidos
(e reiterados) como ente superior ao indivíduo que a compõe.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
41
Informamos que, na comunidade do Orkut, não foram mencionadas a referência e a edição utilizadas pelos
membros para abrir as discussões sobre o sistema prisional.
55
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
[...] somente em relação a outros sujeitos, isto é, aos seus comportamentos, positivos
ou negativos, complementares ao comportamento do sujeito de quem se trata, na
medida em que eles tenham o direito de exigir-lhe um determinado comportamento
ou, ao contrário, um dever complementar a um direito seu, ou pelo menos a
obrigação de abster-se de impedir esse comportamento (LEVI, 1953, p. 27 apud
BOBBIO, 2001, p. 41 – grifos nossos)
Na comunidade do Orkut, embora haja defensores dos direitos humanos e, com isso,
valorizem mais o indivíduo frente à sociedade, sua visão ainda está atrelada ao sentido de
coletividade como um ser superior e não como um somatório de individualidades. O
indivíduo ainda não é visto como parte de uma sociedade que, para funcionar bem, precisa
que todos os seus membros sejam tratados como iguais, independente do seu comportamento,
principalmente porque valoração comportamental é cultural e, portanto, histórica, varia
conforme o tempo. O sujeito, então, ainda é visto, no Orkut, sob o véu de sua atuação na
sociedade e, por isso, o direito passa a ser mérito.
56
42
Bobbio (2001) retifica essa informação, pois ao contrário de institucionalistas como Santi Romano, pensa que
a norma é anterior à instituição, organizando, assim, a sociedade. Na teoria da instituição, é a sociedade
organizada que precede a norma.
57
humanos. Vimos que, para caracterizar uma norma como jurídica, deve-se aplicar o princípio
da coercibilidade, ou seja, possibilidade de coagir os indivíduos, haja vista que, segundo
Bobbio (1995, p. 26), “[...] jurídica é a norma seguida da convicção ou crença na sua
obrigatoriedade”. A partir desse entendimento e pensando na comunidade virtual analisada
nessa dissertação, é possível afirmar que os direitos humanos não são qualificados enquanto
norma jurídica, sendo, então, entendidos enquanto normas morais.
Para inserir os direitos humanos enquanto categoria de modalidade jurídica seria
necessário entendê-lo, conforme dissemos, como ordenamento. Para isso, deve ser visto como
um sistema complexo e organizado de normas e como unidade, ou melhor, a partir da relação
entre as normas componentes e que não podem ser incompatíveis. Entretanto, para Bobbio
(2005), os direitos humanos contêm direitos antinômicos, ou seja, que apresentam relações de
incompatibilidade (uma norma ordena algo ao mesmo tempo em que outra norma proíbe a
mesma coisa). Em relação aos direitos humanos, podemos citar o Artigo 19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos43, expresso na constituição brasileira no artigo 5º, inciso
IV44: o fato de condicionar a expressão do pensamento à proibição de omissão de autoria pode
tornar esse direito não tão livre assim, pois o sujeito pode se sentir acuado e, com isso, não
exercer livremente o seu direito 45.
Ademais, cremos que os direitos humanos não se constituem enquanto categoria
unitária. Se tomarmos a DUDH, que influenciou diversas Cartas Magnas, inclusive a
brasileira, perceberemos que seus artigos encontram-se diluídos em várias disciplinas
jurídicas, embora muitos dos seus direitos estejam refletidos em quatro capítulos da
constituição, do título Direitos e garantias fundamentais: dos direitos e deveres individuais e
coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos. Essa concentração (os
quatro capítulos abarcam os artigos 5 a 16) não atribui unidade à temática. Até porque, no
Orkut, eles não são vistos interligados: ou se discute o direito à vida ou se debate a pena de
morte, mas sem relação entre eles. Reiteramos que os temas preferenciais na comunidade
analisada estão voltados ao Direito Penal (por causa da discussão sobre pena de morte), já
constituído enquanto sistema, disciplina. Desta forma, questiona-se se poderia ser também
qualificado enquanto sistema de direitos humanos.
43
“Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão...”.
44
“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
45
Na comunidade do Orkut, acontece o mesmo fato: apesar da possibilidade de livre expressão do pensamento,
percebemos que alguns membros são suspensos ou expulsos se postarem algo que não apresente relação de
simetria com os sentidos do moderador, representante dos “cidadãos” da cidade azul, como demonstramos na
seção anterior.
58
Além disso, se mais uma vez tomarmos os documentos internacionais relativos aos
direitos humanos, perceberemos que uma parte considerável não tem força para obrigar os
países assinantes a segui-los. Para Bobbio (2005), eles são postos de modo programático, ou
seja, sem garantia real de efetivação, dependentes da vontade do Estado de convertê-los. Os
direitos humanos, na verdade, são intenções de como agir com o outro e, por isso, Bobbio
(2004) acredita ser mais adequado o uso do termo exigências. Entendemos ser essa a melhor
palavra para definir a expressão na comunidade do Orkut analisada nessa dissertação: Direitos
Humanos entendidos enquanto exigências morais para intervenção jurídica e estatal a fim de
resguardar o indivíduo que segue as regras jurídicas e morais pré-estabelecidas na sociedade.
humanos é a ideia da existência de uma essência para cada coisa. A partir disso, Aristóteles
concebe o homem como um ser vivo que apresenta uma diferença específica em relação aos
demais seres vivos. Assim, a essência completa de um ser é o somatório de seu gênero, neste
caso, ser vivo animal, com a sua diferença específica, ou seja, “[...] não apenas uma
característica própria do homem, mas também esse núcleo universal e necessário que permita
explicar as outras propriedades do homem [...]” (WOLFF, 2009, p. 39). De uma maneira ou
de outra, filiados a sentidos diferentes, os integrantes da comunidade virtual advogam em
favor de alguma característica que seja inerente à condição de ser humano. Desse modo,
buscam um núcleo único que constitua o homem e que justifique os seus posicionamentos
sobre direitos humanos, caminhando todos para a universalidade, não dos direitos,
dependentes, em geral, do comportamento, mas do homem.
Assim, tanto o livre-arbítrio, influência religiosa, quanto o fato de o homem ser um
ente social e, por isso, sofrer influência do meio, são características que constroem o núcleo
universal que explica, para os orkuteiros, o que é o ser humano. Indicamos apenas que esses
sentidos nem sempre emergem isoladamente, principalmente porque ambos estão
relacionados ao aspecto comportamental do homem. Com isso, os direitos humanos são
relativizados com mais facilidade em discursos de sujeitos que veem o homem sob o prisma
do livre-arbítrio, o que não significa que todos eles preguem penas perpétuas e de morte, haja
vista que o livre-arbítrio não será concebido da mesma maneira pelos membros da
comunidade, ora visto como algo determinado pela natureza do indivíduo, ora como
consequência de aspectos sociais como pode ser verificado a seguir.
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
60
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
O que diferenciaria o homem dos demais seres vivos, então, na comunidade e também
na visão de Aristóteles, segundo Wolff (2009), seria a sua capacidade de linguagem e de
razão, bem como o seu caráter político. Tais características são também enunciadas no Artigo
1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no qual os homens são definidos como
“dotados de razão e consciência”, explicitando uma influência.
Embora a concepção aristotélica de homem, de início, não nos pareça problemática e
tenha relação com a temática nessa dissertação desenvolvida e com os sentidos presentes na
comunidade do Orkut, alguns pontos que a edificam conflitam com a proposta atual de
direitos humanos. Para Aristóteles, como supracitado, o homem é um ser vivo animal dotado
de razão e consciência, apresentando, portanto, uma essência. Entretanto, esse elemento é
concebido como sendo fixo e o homem como ocupante de um lugar e uma função em um
61
universo hierarquizado. Isso implicaria o homem não ser um ente histórico, sendo
compreendido apenas a partir do tempo presente, já que o passado e o futuro não
apresentariam, para ele, relevância. Em relação aos direitos humanos, as possibilidades de o
homem ter uma essência imutável levariam à estabilidade desses direitos, bem como por não
promover diferenças entre um ser humano e outro (já que as diferenças são resultantes do
percurso histórico, exceto aquelas estritamente de cunho natural, a exemplo das biológicas
entre um homem e uma mulher) admitiria a afirmação de que os direitos humanos têm um
fundamento absoluto, ou melhor, um motivo único e incontestável que justifique sua
existência, o que é sumariamente contestado por Bobbio (2004).
Apesar de em alguns momentos aparecerem divergências de gênero na comunidade,
por exemplo, na afirmação de que as mulheres teriam mais legitimidade para discutir o tema
aborto que os homens, não podemos afirmar que os sujeitos em questão vêem o ser humano
de maneira diferente por conta dessa característica, sobretudo porque, como já afirmamos, o
argumento mais utilizado para discutir direitos humanos e o homem na comunidade é o
comportamento. Para os orkuteiros, assim como para Aristóteles, o ser humano apresenta um
núcleo essencial fixo, embora reconheçam diferenças culturais, religiosas entre os seres.
Todavia, os membros acreditam no transcorrer e evolução da história. Apesar disso, sua
essência – o livre-arbítrio/sociabilidade – existe da mesma forma, em todo ser humano,
independente do período histórico, possibilitando, dessa forma, a emergência de sentidos
como “direitos humanos para humanos direitos”. Reiteramos apenas que nem todos os
integrantes da comunidade do Orkut coadunam com esse sentido, embora sejam minoria. E
mesmo aqueles que estão a ele filiados, não estão no mesmo grau.
Se levarmos em consideração que o ser humano é um ser social, o que não é negado
por Aristóteles, por considerá-lo ser político46, é possível aceitarmos a ideia de sua
pluralidade, haja vista que as comunidades sociais não são iguais e o homem participa de
diversas ao mesmo tempo na sociedade em que está inserido. Ora, se os direitos humanos
surgem das necessidades humanas, há de se considerar que, por serem as sociedades e os
homens plurais, há necessidades diferentes, para além daquelas de origem orgânica, como
beber água. Esta afirmação, de imediato, já nos dirige à pluralidade dos direitos e ao
surgimento, na contemporaneidade, de uma nova demanda de direitos humanos, mais
46
Aristóteles concebe o homem como um “animal cívico”, parte da natureza de um conjunto maior, a Cidade.
Dessa forma, a concepção aristotélica de homem enquanto um ser político diz respeito ao ser humano apresentar
poderes e funções específicas na Cidade, de modo a buscar o bem-estar da comunidade, sua perfeição, por meio
do seu dom inato do discurso e das noções de útil/nocivo, justo/injusto, dentre outras, diferenciando-o dos
demais animais. Para Aristóteles (2006, p.4), “o homem é naturalmente feito para a sociedade política”.
62
especificados, como os destinados aos idosos, por exemplo, que têm necessidades diferentes
das crianças. Ademais, os direitos apresentam estatutos diferentes: os direitos de liberdade
imporão obrigações negativas, a exemplo do artigo IV47 da DUDH; já os sociais, por seu
turno, obrigações positivas, como o artigo X48 do referido documento. Desta forma, não é
possível aceitar que haja uma razão única, uma essência fixa do ser humano que motive os
direitos humanos fora das fronteiras do ciberespaço, pois o homem é heterogêneo, justamente
por caracterizar-se, como dito, um ser social.
Falar de essência, do ponto de vista aristotélico, e relacioná-la aos direitos humanos é
mais uma vez incorrer na categoria dos direitos naturais, o que demonstra não ser, como
salientamos na seção posterior, em relação a essa temática, uma classificação superada,
embora tal superação seja desejada pelos teóricos da ciência jurídica e da Filosofia do Direito.
Bobbio (2004, p. 8) salienta, nesse sentido, que “[...] não existem direitos fundamentais por
natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não
é fundamental em outras épocas e em outras culturas.”.
Para os sujeitos da comunidade, eles vivem em uma sociedade em constante mudança,
como sinaliza „Percival Forever‟ no tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”,
mas compreendem que o estágio histórico em que vivem é estável, seja pela deficiência do
homem no exercício de suas obrigações morais ou porque em um dado momento histórico
determinadas condutas não ofendem a natureza humana, como se a história do homem fosse
a união de inúmeros blocos estáticos, principalmente por filiar o sentido da essência à ideia de
constância. Isso não significa que os sujeitos pensem o direito, sobretudo os direitos humanos,
como algo mutável conforme as necessidades humanas, mas a história como um elemento
cíclico, como adverte „André‟, em scrap a seguir, em que o homem possa sempre evocar
direitos que, no período histórico anterior ele não tinha, mas que já era previsto em algum
discurso, em algum momento.
Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de direitos humanos?”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos” – grifo nosso.
47
“Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas”.
48
“Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e púbica por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação
criminal contra ele.
63
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Significar o homem como ser dotado de uma única essência fixa dificulta, na
comunidade virtual, a emergência de sentidos de homem como uma categoria formada por
seres bastante heterogêneos. Estabelecer o livre-arbítrio ou a sociabilidade como
características exclusivas do ser humano, do modo como são concebidas na “cidade azul”, não
confere diversidade a eles, mas leva a uma postura maniqueísta, o homem construído a partir
do binômio bem x mal, e os direitos humanos como prêmio ao bom comportamento. Assim,
para os internautas, existe apenas uma única possibilidade plausível de existência humana,
conforme os moldes costurados pela ética e a moral. As demais possibilidades, em verdade,
seriam anomalias, afastamentos desse núcleo fixo, a ponto de desqualificar determinados
sujeitos como seres humanos. As diferenças aceitáveis, tais como crença religiosa e outras
manifestações culturais não são discutidas, na comunidade, com profundidade, e parece não
afetar a constituição do indivíduo enquanto homem, por não alterar a essência fixa, nem
permitir que os indivíduos afastem-se dela. Reiteramos, portanto, que direcionar os direitos
humanos para os humanos direitos é simplesmente direcioná-los para os humanos, haja vista
os outros seres serem desqualificados como tal, afinal nem nascidos são, gerando
hierarquização entre os homens, como pode ser verificado a seguir.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos” – grifo nosso.
A ânsia pelo estabelecimento de uma essência fixa para o ser humano também é
criticada por Descartes, segundo Wolff (2009), por considerá-la infinita, ou melhor, gerando
infinitas perguntas em efeito cascata. Definir o homem como um ser vivo animal com uma
diferença específica em relação aos demais seres, encaixando-os em classes, implica definir
cada componente dessa definição e, assim, sucessivamente, em um movimento infinito.
Descartes valoriza a metafísica e, por isso, entende que a compreensão das especificidades do
homem deve estar alicerçada na razão pura. A partir da análise metafísica, o ser humano é,
por ele concebido, a partir da expressão “Penso, logo existo!” e, portanto, é compreendido
como um ser pensante, dotado de consciência. O homem, então, não pode pertencer à mesma
64
categoria dos animais, tal qual em Aristóteles, sendo principalmente formado pela substância
pensante e pelo corpo, este último compondo também os demais seres, compreendidos apenas
como matéria homogênea, um corpo mecânico; o homem, por sua vez, é a união de
consciência, sentimento (percepção) e paixão (emoção); é sujeito cognoscente somente da
natureza, e não de si mesmo, por não estar submetido às leis universais naturais (somente o
seu corpo). Aí reside a diferença entre o homem dotado de razão de Aristóteles e o cartesiano:
no primeiro, a racionalidade é uma especificidade animal; no segundo, animal e homem têm
naturezas diversas, sendo que o ser humano é o único dotado de consciência de si.
O pensamento cartesiano influenciou a história dos direitos humanos, como podemos
observar no artigo 1º, da DUDH, ao definir o homem como dotado de consciência. Na
comunidade do Orkut, embora a concepção aristotélica seja a que mais encontre eco, a visão
de Descartes também exerce influência. Em verdade, a concepção de homem dotado de
consciência não está explicitamente posta na comunidade. Esse sentido emerge quando os
sujeitos envolvidos cobram de seus interlocutores uma postura mais consciente, ou seja, o uso
da consciência e de argumentos, frutos da razão, na discussão sobre direitos humanos. Por
estabelecer o binômio homem humano x homem animal, a partir do critério “bom
comportamento”, o conceito de consciência já não é mais o mesmo; foi ressignificado. Para
Descartes, a consciência, razão dotada de clareza, é uma propriedade exclusiva do homem,
enquanto que os animais apresentam apenas racionalidade, sem consciência. Devido à
constante emergência do sentido de que os bandidos são animais, ou piores que eles,
esperava-se que suas ações fossem baseadas no instinto. Mas, embora o sujeito infrator seja
ressignificado como animal e, por isso, aja como tal, ele ainda é um indivíduo dotado de livre-
arbítrio (núcleo fixo, conforme influência da concepção aristotélica), conhece a si mesmo e
suas ações, embora a sua consciência não esteja plenamente “desenvolvida”, o tocante à
maneira como o homem deve viver em sociedade, por isso a expressão “homem animal”.
Tal posicionamento é intrigante não apenas por estabelecer níveis de consciência, mas,
sobretudo, por sua relação com o pensamento de direitos humanos como algo natural. Ora, se
o homem é um ser dotado de consciência, independeria de suas filiações a atribuição de
direitos humanos a ele, afinal é um direito inato à sua condição. Mas não é o que ocorre no
Orkut. Apresenta-se aqui, então, mais uma forma de hierarquização do homem na
comunidade virtual. Não é apenas o bom comportamento que o define, como pode ser
verificado a seguir, mas o seu grau de proximidade com os sentidos desejados/assumidos
pelos grupos hegemônicos da comunidade cibernética. Isso implica dizer que o sentido de
natural não é somente “aquilo proveniente da natureza”, mas um “mix” entre esse sentido e o
65
que é socialmente aceito. Direitos humanos, então, são um direito natural, mas que exige o
crivo, inconsciente e ideológico, dos grupos sociais para ser efetivado como tal, caso contrário
não será caracterizado como humano.
Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Essa observação leva a outro ponto que merece destaque quando se pensa a relação
entre a concepção cartesiana de homem e os direitos humanos. Descartes concebe o ser
humano como um sujeito cognoscente da natureza, elevado por constituir-se a partir da
consciência de si e do mundo. Entretanto, o homem, por não ser composto integralmente de
matéria física, não pode conhecer-se completamente, somente aos corpos mecânicos e isso o
dá liberdade para manipulá-los da maneira que lhe convier. Com isso, mesmo que seja
concebido por alguns como ser natural, o homem estaria hierarquicamente situado em uma
posição superior em relação aos outros seres, podendo, por conta disso, usá-los
indiscriminadamente para o seu bem estar e progresso.
É esse direcionamento que os sentidos sobre humanos não-direitos percorrem: por
serem seres inferiores, não dotados de consciência plena, como dissemos, ou seja, sem
consciência do viver em sociedade, mas, reiteramos, possuidores de livre-arbítrio, e, portanto,
apresentam domínio de seus atos, pertenceriam apenas ao domínio do mundo físico e, por
isso, suas vidas seriam manipuláveis, reduzidos à comida de animal, dada a sua inferioridade,
como evidencia „Carolina‟, em postagem a seguir. Filiados a esse sentido, os sujeitos da
comunidade do Orkut podem defender a penalidade de morte.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Entendemos, frente ao que foi dito, que não apenas a igualdade entre os homens, pilar
dos direitos humanos, é maculada com tais sentidos, mas as novas diretrizes dos direitos
humanos que pensam o homem a partir do tempo futuro. Dessa maneira, as gerações
vindouras tornam-se ponto de partida para a construção de novos direitos. As ações do
homem, sobretudo no tocante à construção da dignidade humana, devem ser pautadas no bem
estar de todos os indivíduos, inclusive aqueles que ainda não nasceram. Os homens devem
agir, no saciar de suas necessidades, de maneira equilibrada, intervindo na natureza, mas
66
cônscios de que os bens naturais não são eternos e de que a fauna e a flora não são mera
corporeidade. Com isso, os direitos humanos são pensados atualmente na tentativa de
construir um mundo habitável também para as gerações futuras, sobretudo porque deve-se
assegurar-lhes o seu direito básico: a vida. Dessa forma, direitos ligados à exploração
ambiental49 são a temática mais discutida hoje em dia pelos simpatizantes e defensores dos
direitos humanos. Apesar disso, não encontramos na comunidade do Orkut analisada nessa
dissertação tais sentidos, levando a crer que, para alguns desses sujeitos, o homem teria direito
(natural, inclusive) de explorar a natureza sem limites. Conforme Wolff (2009, p. 63), isso é
concebível porque a visão cartesiana
Como vimos, o homem era concebido como um sujeito capaz de conhecer apenas o
mundo ao seu redor. Isso possibilitou o desenvolvimento das ciências naturais e a exploração
dos bens da natureza para ampliar a qualidade de vida do ser humano. Todavia, como
conceber o homem sem a capacidade de autoconhecimento? As definições aristotélica e
cartesiana, conforme Abbagnano (2007), encaixam-se em um grupo de tentativas filosóficas
de explicar o homem a partir de uma característica ou capacidade suas. Divergindo desse
posicionamento, nas ciências humanas, o homem deixa de ser concebido a partir de Deus ou
de algum elemento isolado, mas exclusivamente a partir dele, de seu conhecimento sobre si
mesmo e de suas relações com o mundo e com os outros. Assim, têm-se as importantes
contribuições de Copérnico, ao demonstrar que a Terra gira ao redor do Sol, com a publicação
de De revolutionibus orbitum caelestium, em 1543; de Charles Darwin e sua obra A origem
49
São constantes na contemporaneidade discursos que associam a construção e defesa da dignidade humana ao
zelo à natureza, à preservação ambiental. Esse pensamento está presente tanto em comunidades do Orkut (“Está
na hora de haver um consenso global em relação aos impactos ambientais, não há tempo para discussões, os
impactos já estão presentes no nosso dia-a-dia, são as temperaturas mais elevadas ou mais baixas, enchentes,
aumento do nível do mar, o mundo é um só e todos seres humanos devem ser responsáveis e cuidar direito do
planeta e nada seria mais justo do que punir igualmente a todos, independentemente do lugar, inclusive como
forma de incentivar os países a mudarem seus hábitos, tanto os desenvolvidos quantos os subdesenvolvidos.
Quando se trata do bem estar global devemos colocar o bem estar da TERRA em primeiro lugar, até porque em
um mundo sujo, poluído estaremos destinados ao nosso fim.” – Comunidade Direito Ambiental) quanto em
trabalhos acadêmicos da área jurídica, como o livro de Tiago Fensterseifer (Direitos fundamentais e proteção
do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado
socioambiental de direito. Livraria do Advogado, 2008), e o trabalho de Patrícia Noll (Direito, tributo e meio
ambiente: a autopoiese da sociedade diante do risco ecológico. Dissertação. (Mestrado em Direito). UCS,
Caxias do Sul, 2008, p. 43): “a tutela normativa ambiental deve operar de modo progressivo no âmbito das
relações jurídicas, a fim de ampliar a qualidade de vida existente hoje e atender a padrões cada vez mais
rigorosos de tutela da dignidade humana, não retrocedendo jamais a um nível de proteção inferior àquele
verificado hoje”.
67
Extraído do tópico “Ódio contra o ser humano”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
50
Esses pensadores são muito importantes para a história da construção do conceito de homem, impactando
bastante o modo como o homem se via e concebia o mundo. A teoria copernicana, por exemplo, representa um
divisor de águas na história da humanidade, pois o homem deixa de ser um ser supremo, sendo apenas mais um
dentre tantos no universo, ou seja, o mundo existe sem o homem, sua existência perde peso: “Estamos ou não
estamos num invisível piãozinho chicoteado por um raio de sol, num grãozinho de areia ensandecido, que gira e
gira, sem saber por que, sem jamais chegar a destino algum, como se gostasse de girar assim, para nos fazer
sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e para nos fazer morrer – muitas vezes com a
consciência de ter cometido uma série de pequenas bobagens –, após cinqüenta ou sessenta voltas? Copérnico,
Copérnico, meu caro dom Elígio, arruinou irremediavelmente a humanidade. Agora, aos poucos, já estamos
adaptados à nova concepção de nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada no Universo,
com todas as nossas belas descobertas e invenções.” (PIRANDELLO, 2007. p. 11)
68
A evolução discutida por Charles Darwin, por seu turno, é da ordem da materialidade.
Sem dúvida, no Orkut, não é esse o teor evolutivo que é discutido. Como dissemos, o sentido
de direito, na comunidade, apresenta relações parafrásticas com a moral. Dessa forma, a única
discussão possível é sobre esse tipo de evolução e ela perpassa todos os discursos presentes
no fórum. Reiteramos, todavia, que o debate sobre a “evolução moral” só é possível devido à
emergência dos discursos sobre a evolução das espécies, iniciados por Charles Darwin. Ao
debater se os direitos humanos são universais ou reservados apenas àqueles que apresentam
determinadas características comportamentais, os sujeitos em questão estão, em verdade,
analisando se o ser humano é capaz de evoluir moralmente.
No início desta seção, à folha 41, destacamos o discurso presente no tópico “A
realidade sobre a pena de morte”. Neste, é perceptível que das duas direções semânticas
plausíveis, ou seja, “o homem pode mudar” ou a sua negativa, no Orkut, o primeiro sentido é
o mais latente, como reiterado por Marcelo Garcia, a seguir, sobretudo ao observamos a
denominação da comunidade. Ainda assim, algumas discussões emergem com o intuito de
convencer os interlocutores da capacidade evolutiva moral do ser humano.
Extraído do tópico “A realidade sobre a pena de morte”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
A maneira como Freud concebe o sujeito também representa uma grande ruptura no
modo como o ser humano vê a si mesmo. O homem passa a ser concebido como um ser
simbólico, atualmente um dos pontos de vista mais valorizados, discutidos, debatidos pela
filosofia contemporânea e por outros campos do saber. Um dos elementos principais da teoria
freudiana, no que diz respeito à discussão dessa seção, é o deslocamento do controle do
sujeito e de suas significações sobre si mesmo e o mundo, de suas mãos para o seu
inconsciente. O homem, então, deixa de dominar o conhecimento que tem de si e do outro e
passa a ser ignorante de si, vivendo na ilusão de que se conhece e domina os seus
pensamentos e ações. Nesse paradigma, há a “[...] onipotência do „simbólico‟, do inconsciente
69
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
relacionadas; se os homens não têm domínio de si, suas necessidades, ainda que
inconscientes, relacionam-se à saciedade dos desejos e conhecimento próprio.
Extraído do tópico “Clichês pseudo-humanistas”, da comunidade do Orkut “Direitos Humanos para humanos
direitos”.
Extraído do tópico “Quem é a igreja pra falar de DH?”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
sentidos emergidos sobre os bichos não são apenas aqueles que os qualificam como inferiores
ou despossuídos de racionalidade ou sentimentos. Eles podem ser concebidos como objeto,
consequência do desenvolvimento econômico, ou vistos como ingênuo e harmonioso, frutos
da intensa urbanização ou a partir da sua proximidade genética com os homens embora nem
todos coadunem com tais sentidos. Wolff (2009, p.70) salienta que esses sentidos devem-se
ao fato de que
[...] a modernidade tecnicista „coisificou‟ e „mercantilizou‟ os seres naturais; por
outro, e em grande parte em reação contra essa „coisificação‟, a natureza é reificada,
sacralizada e até santificada, como fonte absoluta e intrínseca de valores: os seres
naturais seriam sempre bons, acredita-se, enquanto continuarem sendo naturais.
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Os paradigmas apresentados nessa seção nos mostram que o homem pode ser
compreendido de maneiras muito diferentes. Ele pode ser razão, um ente natural, social,
político, simbólico e cognitivo. Mas, na comunidade, os sentidos emergidos demonstram que,
73
além de tudo isso, o homem é o que ele faz na sociedade; ele é o espelho de suas ações e são
elas que vão determinar a sua cidadania, a sua humanidade.
Hannah Arendt indica, conforme Piovesan (2004), que os direitos humanos são uma
invenção humana, por serem históricos e abarcarem uma pluralidade semântica. Não
pretendemos aqui re ou ratificar o pensamento da filósofa alemã, embora discutamos essa
questão na seção subsequente. Todavia, em seu dizer, cabe-nos uma observação: os discursos
sobre direitos humanos são históricos, mas não apresentam como data de nascimento o dia
10.12.1948, momento da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar
da afirmação de Fina Birules, comentada por Méndez (2004, p. 9-10), de que só o ato político
pode gerar igualdade” entre os homens, convertendo a DUDH em “[...] instrumento político
da igualdade”; sua história, portanto, remonta de tempos longínquos e, segundo Ishay (2006,
p. 16), sua “[...] base histórica repousa na tendência humanista que aparece em todas as
grandes religiões do mundo”. Dessa forma, podemos afirmar que a discussão sobre direitos
humanos, ainda que sem esse rótulo, data do período pós-mitológico greco-romano, ou
melhor, tem início com o monoteísmo religioso. É importante observar que ao nos referirmos
aos DH, prevalece, na historiografia sobre a temática, o pensamento cristão-ocidental.
Questionamo-nos ainda, baseados na ocidentalização desses direitos: por que a DUDH é
considerada o marco do surgimento desses direitos, inclusive na comunidade do Orkut 51, se
por séculos houve debates sobre os direitos humanos na sociedade?
Cremos poder encontrar a resposta a esse questionamento no processo iniciado por
esse documento, a saber, a internacionalização dos direitos humanos, que outrora estavam
restritos ao estado-nação, e a consequente característica atribuída a esses direitos: a
universalidade. Assinada por apenas 48 países em seu surgimento, podemos de pronto
questionar esse caráter dos DH, embora seja, segundo Albuquerque Melo, em texto de Leite
(2010, p. 337 – grifo nosso), “[...] o objetivo de uma declaração [...] criar princípios jurídicos
ou afirmar uma atitude política comum”, mas, já em sua constituição, a DUDH esbarra em
interesses e culturas incomuns entre os países membros. Conforme Leite (2010), o conteúdo
51
Dois são os tópicos na comunidade do Orkut que apresentam claramente essa orientação semântica. Intitulados
“Tá explicado o porque os DH são assim” e “60 anos de DUDH e nada”, e compostos somente dos scraps de
abertura, justificam a ineficiência dos direitos humanos em sua origem, ou melhor, na emergência da DUDH, no
contexto do pós 2ª guerra mundial e por negligenciar, a declaração, a natureza egoísta do ser humano,
respectivamente.
74
da Declaração Universal dos Direitos Humanos é vago, pois houve a necessidade de adequar
o seu conteúdo para ampla aceitação52, o que força uma universalidade não creditada, ao
menos em parte, pelos internautas, por exemplo. Embora o comportamento de um sujeito –
critério, como dissemos, na comunidade do Orkut, para atribuição de direitos humanos –
apresente um teor cultural, tal aspecto é silenciado pelos internautas.
O contexto de surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos é o período
pós-2ª Grande Guerra Mundial, o que fez com que as necessidades individuais humanas
fossem concebidas como direitos fundamentais, ou seja, enquanto entes inegociáveis,
independente da cultura, da sociedade e da estrutura política de cada nação, em uma tentativa
de repudiar genocídios. Assim, o ser humano passa a ser, pela primeira vez, visto
oficialmente como sujeito frágil em relação às determinações estatais, e que deve ser
igualmente tratado com dignidade. A DUDH passa, então, a ser o necessário reconhecimento
das autoridades da importância de se observar a natureza humana e a representação
documental de que a sociedade pode ser construída pautada em valores humanos, para além
dos interesses políticos e econômicos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dessa maneira, é o documento que
sinaliza a uniformização do homem, indicando que todos devem gozar direitos próprios à sua
condição. Atentando-nos, assim, à historicidade dos direitos humanos, são de fácil
compreensão os motivos que levam a DUDH a ser considerada tão importante para a
temática, sendo concebida como ponto de partida dos DH: ela é, conforme Bobbio (2004, p.
31), “[...] o momento inicial da fase final de um processo [...]”, ou seja, é a primeira vez que
as diferenças de ordens diversas entre povos e classes sociais são, pelo menos no plano
teórico, postas de lado em prol, sobretudo, dos menos favorecidos nos sistemas jurídicos e
52
De acordo com Leite (2010), na elaboração da DUDH, que apresentou as abstenções da União Soviética, dos
países do Leste europeu, da Arábia Saudita e da África do Sul,, tentou-se conciliar os opostos interesses do
Oriente e do Ocidente. O primeiro privilegiava os direitos econômicos e sociais, enquanto que o segundo
defendia com mais vigor a dignidade humana e o valor do indivíduo, gerando, no fim, os 30 artigos do referido
documento, que estão assim divididos, ainda conforme Leite: Normas Gerais (artigos 1-2; 28-30); direitos e
liberdades fundamentais (artigos 3-20); direitos políticos (artigo 21); direitos econômicos e sociais (artigos 22-
27). Essa divisão reitera o caráter ocidental da DUDH, uma vez que 60% (sessenta por cento) da declaração
apresentam relação com os ideais defendidos pelo Ocidente, baseados, principalmente pela Revolução Francesa
e pela independência dos Estados Unidos: “a Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi, portanto, ao
nascer, “universal sequer para os que participaram de sua gestação. Mais razão tinham, nessas condições, os que
dela não participaram – a grande maioria dos Estados hoje independentes – o rotularem o documento como
„produto do Ocidente‟.” (ALVES, 2005, p. 24) Essa observação permite compreender a existência de alguns
sentidos presentes na comunidade do Orkut, sobretudo quando há a defesa da pena capital. Indicamos que os DH
e o Estado, na visão dos internautas, devem priorizar o indivíduo e, em segundo plano, a coletividade (já que esta
é composta por individualidades). Assim, perpassados pelas significações dos países vencedores da 2ª grande
guerra, principalmente os EUA, os sujeitos do Orkut, em suas formulações discursivas no ciberespaço, reiteram
o valor do indivíduo, silenciando discussões referentes a questões econômicas e sociais, assumindo, assim, a
posição de vencedor.
75
sociais nacionais, sendo acolhidas pela comunidade internacional, quer dizer, a declaração é o
pontapé inicial para a positivação dos direitos humanos, ou seja, a sua conversão em norma
jurídica, último estágio da sua efetivação53: “[...] os direitos do homem nascem como direitos
naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente
encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais [...]” (BOBBIO, 2004, p.
30).
Assim, a universalidade dos direitos humanos e a consequente caracterização dos
homens como sendo iguais, abre possibilidade para a real igualdade dos indivíduos enquanto
cidadãos, primeira especificação do homem na sociedade, pois além de considerar os seres
humanos a partir da sua natureza moral, principalmente, silenciando as diferenças biológicas,
tais como cor da pele e gênero, amplia os „locais‟ de reivindicação de direitos, quer dizer, a
DUDH permitiu a busca pela tutela internacional dos direitos humanos, tentando neutralizar
reações ligadas à ideia de soberania das nações, por lidar, conforme Méndez (2004), com a
relação DH – natureza humana.
Referente ao sistema jurídico internacional com finalidade de tutelar direitos humanos,
indicamos serem três os seus objetivos: promover direitos humanos – criação de ações que
induzam os Estados nacionais a defender e aperfeiçoar, em seus territórios, tais direitos,
multiplicando-os; controlar direitos humanos – verificação de respeito aos acordos
internacionais em territórios nacionais, a exemplo de recente carta, datada de 01 de abril de
2011, do secretário executivo Santiago Canton, da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos – CIDH, da Organização dos Estados Americanos – OEA ao governo brasileiro,
exigindo a suspensão do processo de licenciamento da construção da usina hidrelétrica de
Belo Monte, no Rio Xingu, a fim de resguardar DH; garantir direitos humanos – criação de
um efetivo tribunal internacional, a exemplo da Corte Interamericana de DH. Respaldado por
uma estrutura jurídica internacional, o ser humano não fica à mercê dos mandos e desmandos
de seus governantes, representando um grande progresso na cidadania, pois, segundo Pinheiro
53
Indicamos que por ser uma declaração, a DUDH não é considerada pelos teóricos uma norma jurídica, sendo
apenas um ideal a ser alcançado. Segundo Bobbio (2004), os direitos humanos são, por vezes, colocados de
modo programático, ou seja, sem garantia real de efetivação. Os documentos internacionais de direitos humanos,
como a DUDH são, em verdade, ainda conforme Bobbio, cartas de boas intenções, por dependerem da
constitucionalização por parte dos países assinantes, qualificando-se, então como EXIGÊNCIAS, como dissemos
na folha 58, e não como direitos, pois segundo o teórico italiano (2004, p. 74 – grifos nossos) “[...] a existência
de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por
„existência‟ deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o
reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato
a figura da obrigação”.
76
(2008), o Estado é o maior violador dos direitos humanos. Converte-se, assim, o indivíduo,
em cidadão do mundo.
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu 2º artigo, preconize a
não-discriminação entre os indivíduos “[...] em função de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política, ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza ou qualquer outra
condição [...]” (ALVES, 2005, p.23), os direitos por ela defendidos não levam em
consideração, com profundidade, as peculiaridades de cada nação/grupo, o que faz com que a
conferência da cidadania mundial aos indivíduos não se realize plenamente. Ser cidadão do
mundo, em 1948, período em que quase todos os países afro-asiáticos eram colônias
ocidentais, conforme Alves (2005), significa apagar as diferenças culturais em nome de uma
universalização que é construída a partir da ideia de inerência de tais direitos aos seres
humanos, em uma tentativa de frear a atuação dos países do Ocidente em suas colônias.
Lembramos que cultura não é um valor inato, mas social. As idiossincrasias de cada povo não
são tomadas como ponto de partida na elaboração da DUDH. Dessa maneira, não é possível
pensar a universalidade a partir do seu sentido cristalizado na sociedade, ou seja, “[...]
comum, relativo ou pertencente ao universo [...]”; “[...] que diz respeito ou é aplicável a todas
as coisas [...]” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2009). A noção de “universal” é
ressignificada.
A ressignificação da noção de “universal” na comunidade do Orkut não somente
retirou dela o caráter de aplicabilidade a todas as coisas, mas, e principalmente porque
reconfigurou as coisas às quais ela pode ser aplicada. No Orkut, como já dissemos, os direitos
humanos são aplicáveis apenas aos indivíduos que seguem as normas jurídicas estabelecidas
na sociedade. Mas essa reconfiguração encontra suporte em aspectos que ultrapassam o
comportamento jurídico. Vimos acima que a cultura, na elaboração da DUDH, não foi
considerada elemento basilar. Isso indica que os DH, principalmente na comunidade da
“cidade azul”, têm a pretensão de homogeneizar o ser humano, a partir de um ideal de vida,
ou seja, existe apenas um modo de existência. Recentemente, a França proibiu o uso de véus
por mulheres muçulmanas em seu território por acreditar que tal traço cultural fere a
igualdade entre homens e mulheres. Entendemos, então, que essa igualdade só pode haver se
um dos lados a ser igualado se anular, apagar aquilo que o construiu. Dessa forma, o modo de
ser um humano dos muçulmanos deve desaparecer, por não se encaixar no que o agrupamento
social francês, politicamente poderoso e culturalmente dominante em relação ao primeiro,
considera como correto e, mais importante, „natural‟. Universal, dessa maneira, é tudo aquilo
77
que é considerado „natural‟ pelos grupos que apresentam não apenas o poder político, mas,
sobretudo, o poder simbólico, entendido por Bourdieu (2007, p. 14 – grifo do autor) como
[...] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter
o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário.
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Podemos afirmar que, apesar de os direitos humanos variarem ao longo dos anos, já
que a sociedade e suas necessidades modificam-se constantemente, é possível indicar que os
valores que os fundam sejam os mesmos que promoveram o surgimento do monoteísmo ético
na sociedade hebraica, base das religiões ocidentais. Embora o monoteísmo não seja uma
criação dos hebreus, “[...] seu grande legado foi a concepção de um deus que não se satisfazia
em ajudar os exércitos, mas que exigia um comportamento ético por parte de seus seguidores
[...]” (PINSKY, 2005, p. 16). Assim, podemos dizer que a história dos direitos humanos
inicia-se com os valores culturais da comunidade hebraica que exigia o bom comportamento
por parte de seus membros, para evitar perseguições comumente sofridas por eles, o que
explica a constituição desse critério pelos internautas para atribuição de DH e configura o
direito como prêmio, mérito. A ética religiosa permite, então, a associação entre direitos
humanos e respeito ao próximo construindo o direito como recompensa pelo respeito aos
semelhantes e por viver, o indivíduo, sob o ideal da igualdade e da fraternidade: “[...] se teu
inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoas brasa sobre
sua cabeça, e Iahweh te recompensará [...]” (Provérbios, 25: 21-22 – grifo nosso).
Além da base religiosa, os direitos humanos foram também pensados, reiteramos, sem
esse rótulo, por filósofos e juristas que, até o término da Idade Média, construíram o valor
cultural que alicerçou a redação da DUDH e dos documentos a ela posteriores: o bem comum.
De Platão a São Tomás de Aquino, encontramos elementos que celebram o caráter universal
dos direitos destinados aos homens. É importante observarmos que isso não significa que do
século IV a.C. ao século XII tivemos manifestações genuínas de atribuição global de direitos
aos indivíduos, principalmente porque a qualificação de „humano‟ não era atribuída a
qualquer indivíduo. Mas já é possível perceber o embrião da universalidade em discursos
proferidos até o medievo.
Entretanto, a historiografia oficial dos direitos humanos inicia-se somente a partir do
Iluminismo e do deslocamento da autoridade “legislativa” da Igreja Católica para o Estado-
nação e, sobretudo, da alteração do centro regulador da sociedade da figura divina para o ser
humano. Esses deslocamentos demonstram a importância da existência de uma instância
legitimadora para os direitos humanos, o que confere a eles um caráter político, suplantando,
por vezes, o aspecto natural que lhe foi atribuído até a Idade Média. Os DH, portanto,
precisam do papel e da escrita. Tal aspecto é constantemente evocado pelos internautas
quando sinalizam a necessidade de o Estado legitimar determinadas modalidades punitivas,
como a pena de morte.
79
54
É considerado um grande avanço a discussão desse documento para os direitos humanos por reconhecer os
direitos dos povos à sua própria cultura, sendo a língua um dos mais importantes elementos de identificação
cultural, inclusive no Brasil, um país considerado plurilíngüe. Conforme Oliveira (2003, p. 7), “[...] no Brasil de
hoje são falados por volta de 210 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 180 línguas, chamadas de
autóctones, como o guarani, o tikuna, o yanomami, o kaingáng; e as comunidades de descendentes de
imigrantes, cerca de outras 30 línguas, chamadas de alóctones, como o alemão, o italiano, o japonês, o árabe, o
polonês.”.
80
econômicos e o setor privado. O direito internacional dos direitos humanos nasce oficialmente
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
Tal processo é importante não apenas para universalizar os DH, no sentido de atribuir
aos indivíduos os mesmos direitos, mas também para re-atribuir ao Estado a credibilidade que
não mais tem na sociedade, como evidencia o discurso de „Sérgio Rodrigo‟, no tópico “A
realidade sobre a pena de morte”, ou seja, como protetor do indivíduo, sancionando
juridicamente direitos, como os de propriedade, representação política, igualdade e liberdade,
mas principalmente no contexto atual, o direito à segurança e ao bem estar social. O Estado,
na comunidade do Orkut, encontra-se desacreditado por duas razões dicotômicas: por não
permitir a pena de morte como coerção ao crime ou ainda por não conseguir aplicar as leis
que garantem aos indivíduos os direitos sociais que impediriam, ou ao menos minimizariam, a
criminalidade, na visão dos internautas, ou seja, o Estado é também criticado por aplicar,
ilegalmente e sob formas diversas, a pena capital no país.
Extraído do tópico “A realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
teóricos: a liberdade pessoal. Assim, a Lei de Habeas Corpus – LHC constitui-se como um
dos primeiros instrumentos jurídicos da era moderna de controle do poder do Estado,
assegurando o exercício de direitos pelos indivíduos, inclusive o de defesa. Essa lei se propõe
a fazer cumprir a soltura de prisioneiros que estejam em posse do Estado sem comprovação
tácita de culpabilidade. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos não há explícita
menção à lei, nem mesmo aparece a expressão habeas corpus. Mas é possível destacar sua
“presença” ao analisarmos a DUDH, sobretudo os artigos 9 e 11, inciso 155. O Brasil, em sua
Carta Magna que, como dissemos anteriormente, apresenta ampla relação com a DUDH,
perceptível desde o seu preâmbulo56, também adotou o sistema de habeas corpus, explicitado
no inciso LXVIII do artigo 5º57.
Fruto da Revolução Gloriosa, de 1688, a Declaração Inglesa de Direitos – DID teve
por objetivo ser um instrumento limitador das ações do Estado, impedindo o uso arbitrário do
poder. Devemos nos atentar à natureza do Estado a que se refere tal documento. Dirigido à
monarquia, como crítica às atitudes do Rei Jaime II, a DID almeja impedir a interferência real
nas determinações do Parlamento, resguardando a sua legitimidade e salvaguardando os seus
membros da acusação de subversão. Apesar de não fazer menção aos cidadãos comuns, a
liberdade do exercício político é um dos principais legados do documento inglês de 1689 e
nos remete, ainda que indiretamente, à divisão dos poderes: cada um com existência
independente e sem a interferência do outro.
Esses dois primeiros documentos tocam o direito à liberdade, fundamental e
inalienável no Estado de direito, seja ela individual ou de gestão política. Ambos tentam frear
a arbitrariedade do Estado em suas atuações, o que é um dos nós dos discursos sobre direitos
humanos, inclusive aqueles proferidos na comunidade do Orkut analisada nesta dissertação.
Se os sujeitos entendem que o Estado deveria aplicar a pena de morte, assunto principal da
comunidade, e não o faz, criticando-o por isso, como é o caso da maioria dos integrantes da
“cidade azul”, nos leva a crer que os internautas solicitam duas posturas do Estado,
incompatíveis entre si: aplicar a pena capital, configurando-se, no mais alto grau, em um
55
Artigo 9º: “Ninguém será preso, detido ou exilado arbitrariamente”.
Artigo 11, inciso 1: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que
sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
56
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional...”.
57
“[...] conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
82
governo arbitrário, com o poder máximo de manipular o primeiro dos direitos humanos – a
vida; ou um afrouxamento total da arbitrariedade do governo, permitindo “a justiça com as
próprias mãos”.
Embora esses documentos ingleses não discutam essa problemática, eles representam
um grande passo na história dos direitos humanos, no equilíbrio da relação entre o sujeito e o
Estado. Discutir a pena de morte é, antes de qualquer coisa, retomar as ideias centrais que
fundaram a Lei de Habeas Corpus e Declaração Inglesa de Direitos: assegurar a liberdade
pessoal, impedindo a prisão ilegal, o que dificulta a prisão arbitrária por interesse pessoal e a
de inocentes, permitindo inclusive a revisão de injustiças no caso de novas descobertas em
processos judiciais, bem como garante que o Estado exercerá apenas a função que lhe
corresponde, dando espaço ao indivíduo para exercer livremente os seus direitos, estando
todos submetidos à lei – essa é a proposta básica dos direitos humanos.
Segundo Ishay (2006), devemos também ressaltar para essa discussão a importância de
Cesare Beccaria, também tomado como referência jurídica no Orkut, como por „Sérgio
Rodrigo‟ em discurso do tópico „A realidade da pena de morte‟, cujo fragmento encontra-se a
seguir, por ser o primeiro escritor moderno a condenar a pena de morte e a tortura, indicando
que a penalidade deve ser imposta na mesma medida do delito, desde que seus graus de
intensidade sejam suficientes apenas para fazer os homens recuarem diante dos delitos.
Extraído do tópico “Realidade sobre pena de morte...”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
58
“[...] Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e
empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção senão a de suas virtudes e de seus talentos”.
84
no que tange aos direitos humanos, são Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx e Friedrich
Engels.
Atualmente, a busca pelos direitos sociais ainda está no centro das discussões sobre
direitos humanos, sendo a pobreza considerada uma negação a esses direitos. Ampliou-se,
hoje, como já dissemos, as demandas dos homens, e seus direitos e reivindicações pautam-se
não apenas no seu bem-estar, mas também no das gerações futuras. Pensa-se no indivíduo
isoladamente, e também inserido em um agrupamento; suas demandas são pensadas quanto ao
aspecto natural e biológico, genérico, mas também social, especificado. Atualmente, os
direitos humanos pretendem pensar o homem em sua igualdade e pluralidade.
85
As seções anteriores dessa dissertação nos permitem perceber que discutir direitos
humanos é pôr em voga as relações desiguais entre indivíduos na sociedade por serem, tais
direitos, uma das tentativas do homem, enquanto ser político e histórico, em minimizar,
através da interferência do Estado, sobretudo, as diferenças entre os seres humanos.
Salientamos que muitas das diferenças entre os homens não são de cunho natural, são
construções sociais, o que nos leva ao entendimento de que debater sobre direitos é trazer à
tona o elemento que norteia as relações inter-individuais: o poder. Dessa maneira, refletir
sobre direitos humanos significa imprimir uma tentativa de compreender como se dão as
tensões no seio da sociedade e, no caso dessa dissertação, como a linguagem se configura
como palco de disputas de poder: quem é o ser humano e quem, devido a essa condição, tem
direitos.
Conforme Lagazzi (1988, p. 39), “[...] atribuir direitos e deveres é atribuir símbolos de
poder, é legitimar o poder como coerção, trazendo a ordem simbólica para o cotidiano das
relações interpessoais [...]” e, portanto, discutir direitos humanos e seu processo de
significação implica uma concepção de linguagem que não a signifique como mero
instrumento de comunicação ou suporte para os pensamentos, mas como ação, instância de
constituição dos sujeitos e manifestação do poder, inclusive político, com a monopolização do
Estado60 na constituição e controle das regras de direito, sobretudo aquelas qualificadas como
sendo direitos humanos. A linguagem, então, deve ser pensada a partir da sua materialidade,
da relação entre língua e processo histórico-social, ou seja, ela é estrutura e acontecimento.
Tais caracterizações da linguagem dizem respeito ao seu duplo aspecto constitutivo, a
saber: a língua, enquanto sistema significante material, e a história, sua materialidade
simbólica, provendo-a de sentidos. Analisar direitos humanos pode gerar a falsa impressão de
estarmos observando um fenômeno meramente linguístico, nos moldes estruturalistas de
Ferdinand de Saussure, da relação entre significante e significado, além das relações
morfossintáticas que qualificariam o elemento “humano” do sintagma „direitos humanos‟
59
BARROS (2000).
60
Falamos na seção anterior que não apenas o Estado tem a possibilidade de legislar, citando, inclusive, o
Direito Consuetudinário como exemplo. Entretanto, referimo-nos aqui à instância jurídica com poder coercitivo
institucionalizado e socialmente reconhecido por todos os grupos sociais. O que não quer dizer que seja aceito
por todos.
86
como pertencente à categoria dos adjetivos ou ainda como adjunto adnominal, sintagma
adjetival ou modificador/determinante. Trata-se, todavia, aqui de compreender a língua como
condição para a produção do discurso e um modo de coerção social.
Lembramos que, na seção anterior, indicamos ser o comportamento do indivíduo um
dos critérios mais importantes, para os sujeitos do Orkut, para a conferência de direitos aos
seres humanos. Constitui-se, então, a necessidade de o indivíduo ser possuidor de uma
competência comportamental, aos moldes da competência linguística pensada por Noam
Chomsky, capacidade inata de engendrar frases e, no caso da “cidade azul”, capacidade (por
vezes qualificada como inata – “uma pessoa já nasce com má índole”61) de seguir
determinados comportamentos estabelecidos socialmente, como a não realização de abortos.
As competências linguística e comportamental estão relacionadas através da noção de erro,
que permite entender que os direitos humanos são construídos semanticamente, pelos
orkuteiros, para aqueles que dominam essas competências. A língua, assim, precisa ser
referida também à ideia de competência simbólica desenvolvida por Bourdieu (1983), pois a
gramática e os “[...] funcionamentos intrínsecos da língua e exigências manifestadas pelo
poder se articulam de forma complexa no projeto de determinação[...]” (HAROCHE, 1992, p.
22), ou seja, a língua, enquanto sistema significante material apresenta em suas formas a
manifestação do poder, sendo o sujeito, então, assujeitado à língua para constituir-se enquanto
tal e emergir, assim, sentidos.
No Orkut, não é possível localizar sentidos que confiram explicitamente os direitos
humanos somente àqueles que detêm a norma padrão culta. Entretanto, seu domínio é critério
para legitimação dos sentidos sobre a temática emergidos na “cidade azul”, o que implica
considerar que os sentidos legitimados são aqueles provenientes de um determinado grupo
social, que domina tal competência linguística. Assim, o erro normativo-gramatical deixa de
situar-se apenas na esfera linguística, enquanto estrutura, e não pode ser também considerado
mero esforço argumentativo dos detentores da língua padrão. Bourdieu (1983) ensina que a
língua deve ser referida à legitimidade de sua realização e à noção de aceitabilidade. Dessa
forma, embora o Orkut, como dissemos na segunda seção dessa dissertação, configure-se em
um espaço cibernético que, a priori, não destaque a necessidade de uso da norma padrão e,
portanto, priorize a flexibilidade gramatical, nos fóruns da comunidade "Direitos humanos
para humanos direitos”, a língua legítima faz-se presente e necessária, entendendo-se por
61
Extraído do tópico “Cuidado!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
87
língua legítima aquela que é autorizada na/pela sociedade, a linguagem de autoridade, aquela
marcada pela aceitação social.
Há, então, um esvaziamento das possibilidades de realização da língua, tal como há a
da multiplicidade de comportamentos62. Dessa forma, os usuários do Orkut, assujeitados que
são à língua, e que não apresentam a competência de saber quando é preciso falar, calar, ou
adaptar a forma da língua à situação de uso, no sistema de trocas simbólicas, que é a
linguagem, não são considerados locutores legítimos, na “cidade azul”, e seus discursos sobre
direitos humanos não são aceitos. Como legitimar os sentidos de quem não detém a língua
legítima? Acreditamos assim que o erro linguístico, tal como o comportamental, configura-se
como qualificador do direito a ter direitos e, dessa maneira, a língua deve ser vista como
materialidade coercitiva, manifestação do poder.
Na comunidade virtual analisada, a crítica aos equívocos linguísticos não é facilmente
localizável por duas razões. A primeira é que os criticados normalmente saem da comunidade
pelo constrangimento, ficando, algumas vezes, apenas os rastros de sua presença, como indica
a fala de Andy Priest, a seguir. A segunda razão pode ser subdividida em dois aspectos:
aquele que diz respeito aos usos linguísticos propriamente ditos e aquele que faz referência
aos interlocutores. Percebemos que, apesar de localizarmos vários desvios da norma padrão,
eles não são sinalizados pelos orkuteiros por serem erros de digitação, a exemplo de „direios‟,
no lugar de „direitos‟ e „creminosos‟, no lugar de „criminosos‟; erros linguísticos que são
normalmente relevados na sociedade, como os de pontuação e acentuação; os desvios
decorrentes do desconhecimento da forma padrão por parte dos orkuteiros, mas que também
são relevados no seio da sociedade, tais como algumas concordâncias verbo-nominais, como
o uso da forma plural do verbo „ter‟; descuido ou desatenção ao escrever, como o uso de
„descupe‟ no lugar de „desculpe‟. Além disso, há ainda os casos de hipercorreção.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Todavia, chama-nos mais atenção o segundo aspecto por nós mencionado e que diz
respeito aos usuários da língua no Orkut e a relação entre eles baseada nos usos linguísticos.
62
Não estamos fazendo aqui apologia à pluralidade comportamental, no sentido de que “tudo é possível”. Esse
julgamento não nos cabe aqui. Entretanto, consideramos importante salientar o caráter social da noção de
comportamento, o que faz dele um elemento heterogêneo, dependente da sociedade que o legitima.
88
Nos cinco tópicos selecionados para constituir o corpus de análise da dissertação, basicamente
três sujeitos figuram como maiores debatedores – Anjinho, André e Victor-San.
Eventualmente , conhecida pelos três anteriormente citados como Cissa,
também participa. Eles não são os únicos interlocutores: há aqueles de quem só é possível
localizar rastros por não mais participarem da comunidade ou terem seus scraps apagados,
voluntariamente ou não, e aqueles que, embora participem, não são tão atuantes e frequentes.
Entendemos, então, que os quatro sujeitos citados configuram-se como um grupo coeso que,
mesmo apresentando opiniões divergentes sobre a temática, respeitam-se e constituem-se (e
entendem-se) como sendo locutores legítimos por possuírem conhecimentos e interesses que
os demais interlocutores não têm.
Assim, percebemos, por vezes no Orkut, um embate de legitimidade, perceptível no
referido discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, bem como
na interlocução entre „Anjinho‟ e „Ivaldo‟, no tópico „Seletividade do sistema penal‟,
conforme scraps a seguir, em que o enunciador reveste-se da imagem de locutor legítimo e
desacredita os sentidos assumidos por seu interlocutor, sendo uma das razões o
desconhecimento do discurso jurídico, em sua forma e sentidos. Dessa forma, concebe-se
língua legítima na “cidade azul” como aquela dos sujeitos que dominam (ou pensam dominar)
os jargões jurídicos e que, portanto, detém o conhecimento pelos internautas interpretados
como necessários para a emergência de discursos sobre direitos humanos, sendo, então,
impressa uma formalidade à situação enunciativa, à linguagem, sufocando, ainda na
formulação, o erro, o desvio da norma culta. A linguagem, reitera-se, em palavras de Orlandi
(2009, p. 115), é “lugar de debate, de conflito”.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
63
Escrita grega do nome da deusa Perséfone, filha de Zeus e Demeter, deusa da agricultura. Sequestrada por
Hades, deus do mundo dos mortos que, encantado por sua beleza, pediu-a em casamento, tendo seu pedido
negado por Zeus, recorrendo, então, ao sequestro da deusa, levando-a ao mundo subterrâneo. Através de uma
manobra ao estabelecer acordo com Demeter, Hades consegue fazer com que Perséfone passe uma parte do ano
com ele, sendo conhecida, assim, como a vigilante da alma dos falecidos. Quando a deusa desce ao inferno, faz-
se inverno na Terra. O período em que não está no submundo é marcado pela ocorrência da primavera na Terra
conforme a mitologia grega.
89
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
Percebemos, então, que a linguagem não é meramente uma estrutura, devendo ser
relacionada à história para existir, fazendo dela um acontecimento. Dessa maneira, os sentidos
sobre direitos humanos na comunidade, ainda que aparentemente convirjam para a repetição,
não podem ser considerados o mesmo sentido, pois cada enunciação atualiza o dizer. Com
isso, podemos afirmar que a língua não é fechada e que, portanto, o dizer é aberto, estando
sempre em curso. Assim, André ao enunciar, no tópico “Cuidado”, no dia 06.05.2006, a frase
“a sociedade não é e nunca será culpada por crime algum” e, no dia 07.05.2006, no mesmo
tópico, repeti-la, conforme postagens a seguir, afirmando que “a sociedade não é culpada por
crime algum”, teremos dois sentidos diferentes. Na primeira enunciação, o seu dizer é
genérico, direcionado a qualquer indivíduo-leitor. Já na enunciação do dia seguinte, o
enunciado apresenta um destinatário específico, seu interlocutor direto na “cidade azul”,
conforme utilização do pronome pessoal „você‟, configurando-se, portanto, tal discurso como
uma resposta, em um tom diferente da enunciação do sexto dia de maio de 2006, produzindo,
reiteramos, outro efeito.
64
Podemos fazer uma analogia com a noção de virtual de Pierre Levy (1996; 1999). Os sentidos são
virtualizações da linguagem; ao assumir um, o sujeito atualiza o texto, “selecionando” uma dentre várias
possibilidades semânticas. De maneira análoga ao que ocorre na leitura do hipertexto, o sujeito não tem
conhecimento dos sentidos que não estão explicitamente por ele assumidos, mas que o atravessam. É o dito e o
não-dito. Tomemos como nosso o exemplo de Orlandi (2007b, p. 41) ao referir-se ao discurso/artigo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os homens são iguais perante a lei. A emergência de tal
significação silencia “as diferenças constitutivas dos lugares distintos” em nome da igualdade. Essas diferenças,
embora ausentes, perpassam o discurso.
91
e, no caso da “cidade azul”, defender a classe dos sujeitos de direito, estabelecendo quem se
adéqua a essa categoria.
A incompletude da linguagem, desta maneira, nos indica que sempre falta o Outro da
linguagem. A linguagem, assim, é o movimento das palavras em direção ao silêncio e antes de
tudo, do silêncio em direção às palavras; “o sentido é múltiplo porque o silêncio é
constitutivo. A falha e o possível estão no mesmo lugar, e são função do silêncio. Presença
[...] e silêncio [...] se enrolam no mesmo acontecimento de linguagem: o significar”
(ORLANDI, 2007b, p. 71). O silêncio é, portanto, significante. A incompletude da linguagem,
então, diz respeito à sua multiplicidade, à ausência e presença simultânea do Outro no
discurso.
O tópico “Cuidado”, iniciado em 09.03.2006, com o objetivo de discutir a comparação
sujeito criminoso-animal, evoluindo para o debate acerca do fator determinante para a
criminalidade, com 141 scraps ativos, teve, em 17.05.2006, o enunciado proferido por André
Deeh, colocado a seguir. Entretanto, a sua postagem aparentemente não foi comentada por
ninguém, em nenhum momento no tópico. Sabendo-se que os fóruns do Orkut têm seu
funcionamento baseado no comentário que, para Gregolin (2003, p. 52), por seu
procedimento, “[...] há um retorno incessante a certos textos, que os presentifica e faz com
que eles se conservem na memória de uma cultura”, entendemos que o seu scrap foi, sim,
comentado, mas que a forma material dos comentários não se deu do modo esperado, ou seja,
verbal.
André Deeh pode evidenciar que ele não é aceito naquele agrupamento social. Os comentários
silenciosos são entendidos por André Deeh, pois ele não voltou a postar no tópico65.
Além disso, o próprio dizer de „André Deeh‟, no tópico “Cuidado”, configura-se como
um silêncio mediante os dizeres anteriores na comunidade virtual, já que, ao invés de tecer
comentários diretos a respeito das significações de seus interlocutores, opta pela utilização de
palavras de baixo calão e, assim, através desse silêncio, significa que determinado sentido
sobre direitos humanos não pode ser validado por não ser assumido pelo homem-padrão, ou
seja, viril, másculo e heterossexual. Orlandi (2007b), reiteramos, chama-nos atenção para que
compreendamos que o silêncio não tem relação com o vazio, ele não é ausência de palavras,
mas permite/evidencia a pluralidade de sentidos, o silêncio é a presença de outras
significações, apresentando materialidade simbólica, não sendo, portanto, classificado como
verbal ou não verbal.
Para a autora, o silêncio precede a linguagem, como acima mencionamos, sendo esta
uma de suas categorias. Ele não é a falta, é pleno de significação(ões), mediando a relação
linguagem-mundo-pensamento, apresentando aspectos culturais e político-históricos,
constituindo os sentidos. Por não se prender ao que já fora dito, o silêncio é um contínuo,
sempre havendo algo a dizer, um sentido a emergir, justificando a incompletude da
linguagem. O silêncio é virtualidade; ele é polissêmico. Esse é o caráter fundador do silêncio.
É a possibilidade de não dizer tudo que permite que continuemos falando. Para Orlandi
(2007b), se o silêncio fundador não existisse, se não houvesse a limitação imposta pelo
silêncio, todos os sentidos já teriam sido ditos e já não diríamos mais nada. Ele, então,
atravessa as palavras, apresentando-se sempre como o indício de uma instância significativa.
É o vir-a-ser simbólico.
É o silêncio fundador, sendo da ordem do possível e do impossível, que permite a
organização social. Os direitos humanos, enquanto materialidade simbólica e instrumento
organizador da sociedade (por ser essa uma das funções do direito, como vimos na seção
anterior), só são possíveis pelo estabelecimento de impossíveis, como a discriminação de
qualquer natureza, fazendo com que, ao mesmo tempo em que se abrem as instâncias
semânticas, feche-se o simbólico. Assim, os dizeres sobre direitos humanos atualizam o
silêncio e por isso, ratificamos, o silêncio fundador explica a incompletude da linguagem: ela
65
O silêncio pode ainda, nesse caso, significar que alguns sujeitos compartilham o posicionamento de André
Deeh e se sentem representados em sua fala, não havendo, portanto, necessidade de materializar isso. Outros
sentidos também são possíveis. Importa-nos que o silêncio possibilita dizermos que, acerca de André Deeh, os
sentidos podem ser este e aquele.
93
não pode dizer tudo. Por ser a sua materialidade simbólica ele não deixa marcas no texto,
somente pistas e traços.
É importante retomarmos a ressalva feita por Orlandi (2007b) para evitarmos a
confusão entre duas noções: silêncio e implícito, esta última elaborada por Oswald Ducrot
(1987). Para a autora, eles divergem porque na concepção de Ducrot, para significar, o
implícito precisa remeter ao dito, o não-dito deve ser entendido e significado como parte do
sentido do texto. O mesmo não ocorre com o silêncio que, ainda segundo Orlandi (2007b, p.
66), “[...] não tem uma relação de dependência com o dizer para significar: o sentido do
silêncio não deriva do sentido das palavras [...]”, ou seja, o silêncio permanece silêncio e,
ainda sim, significa. Existe, portanto, no dizer, o implícito e o silêncio. Na formulação do
Orkut, a seguir, do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, algumas considerações
podem ser feitas a respeito das noções tratadas nesse parágrafo. Entretanto, antes disso,
comentemos o nome do tópico. Quanto à noção de implícito, podemos dizer que se trata de
entendermos que se encontra subentendido no enunciado que a morte do infrator é desejável.
Todavia, do ponto de vista do silêncio, podemos avançar a significação e entendermos que tal
morte não é desejada por todos, reiterada pela necessidade do uso do adjetivo „estupenda‟
como qualificador da morte, atribuindo e reafirmando o caráter especial do fato, uma tentativa
de convencimento dos internautas em assumir tal sentido e prática.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
66
Lembremos o conceito de locutor legítimo de Bourdieu (1983, p. 163), ou seja, “pessoa que convém”, locutor
dotado de autoridade, habilitada para produzir discursos sobre determinado assunto em determinadas condições
de produção.
67
Esse processo de „descarte‟ semântico não é realizado conscientemente. A Análise do Discurso trabalha essa
ideia associada à noção de ideologia e aos esquecimentos n.º 1 e n.º 2, ou seja, à ilusão de sermos origem de
nosso dizer, devido ao esquecimento da afetação do sujeito pela ideologia, e àquele da ordem da enunciação,
pois “[...] ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias
parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro [...]” (ORLANDI, 2002, p. 35), respectivamente,
sobretudo o primeiro. Na próxima subseção, trazemos mais considerações acerca desse processo.
96
algumas relações que ele estabelece (inconscientemente) com outras significações para
assumir o referido sentido. Assim, observemos o argumento utilizado por ele: a ciência como
instância discursiva. O enunciador estabelece uma separação entre o discurso científico e
aqueles oriundos da lei e da religião. Ele cria, dessa forma, dois blocos semânticos, sendo que
um deles não detém prestígio, nesse discurso, enquanto legitimador de sentidos – a lei e a
religião –, e o bloco constituído pela ciência, entendida, assim, como espaço de enunciação de
verdades absolutas.
É relevante destacarmos a composição do primeiro bloco por nós mencionado, pois ele
ratifica o que já tínhamos dito na seção anterior: a lei e, portanto, as regras jurídicas, não são
concebidas pelos membros da “cidade azul” como ciência, mas como sinônimo de religião,
adquirindo um teor moral, ou seja, norma jurídica e norma religiosa apresentam entre si
relações de paráfrase e, então, podem ser contestadas, devido à impossibilidade de
apresentação de provas físicas. Em relação ao segundo bloco semântico, temos que o sentido
proveniente da ciência acerca do surgimento da vida é visto, por André, no referido tópico,
como sendo único e, portanto, incontestável. Algumas observações podem ser feitas: parece-
nos que o enunciador entende ciência somente como sendo aquelas que podem dar respostas
exatas, como a Matemática e a Biologia. Todavia, mesmo as ciências biológicas, sobretudo
em questões de ordem filosófica como a origem da vida, não detém respostas únicas, não
havendo consenso entre os pares, pois, conforme Szklarz (2007), “[...] chegar a um conceito
sobre vida parece impossível porque ele quase sempre vem influenciado por valores
religiosos, políticos e morais”. Dessa maneira, para significar a relação entre o principal
direito humano, ou seja, a vida, e o aborto, é necessário silenciar uma cadeia de significantes
que, neste caso, vão desde o direito discutido em si até as ciências.
Assim, entendemos o campo científico como aquele que possui a interpretação
legitimada na sociedade, não apenas pelo status de ciência, mas porque, ainda que não
assumido por André, no tocante à origem da vida, muitas de suas significações apresentam
relações com os sentidos provenientes do campo religioso sobre o aborto. Tais campos são,
em palavras de Gregolin (2003, p. 49), “[...] lugares sociais organizados e reconhecidos como
portadores de fala”. Dessa forma, são silenciadas outras significações possíveis sobre o direito
à vida/realização de aborto, bem como os sentidos que indicam o que é ciência e a pluralidade
de sentidos possíveis no interior de uma mesma ciência para um mesmo fenômeno, ou seja,
sentidos oriundos de lugares de fala não reconhecidos como tal. A interpretação, assim, não é
só decodificação nem mesmo desvendamento de um sentido que está além do texto. É
necessário compreender a rede discursiva que envolve todos os sentidos.
97
(ORLANDI, 2009, p. 144 – grifo do autor). Indicamos então que o sentido literal é um efeito
utilizado para domínio social.
Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”. Relações parafrásticas.
68
Os tópicos centrais selecionados para serem analisados têm seus scraps datados no período de 09.03.2006 a
26.10.2009.
69
Interessantes as considerações de Courtine (2009) acerca da noção de individuação trabalhada por Gardin e
Marcellesi (1974 apud COURTINE, 2009). Os referidos autores entendem-na como sendo “[...] o conjunto dos
processos pelos quais um grupo adquire um certo número de particularidades de discurso, que permitem
99
constante aos teóricos do direito, a Deus, aos textos religiosos e científicos que “[...]
possibilita os movimentos de retornos, as repetições, os deslocamentos [...]” (GREGOLIN,
2003, p. 53).
A constituição do sentido se dá no interior da formação discursiva que, como já
dissemos, determina o que pode e deve ser dito, e, por isso, “[...] o sentido não existe em si
mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-
histórico em que as palavras são produzidas [...]” (ORLANDI, 2008, p. 58), passando a ser
entendida, então, como a única coisa possível de ser dita. Pode parecer estranha essa assertiva
em relação à comunidade do Orkut analisada, pois os sujeitos envolvidos têm conhecimento
do outro polo semântico: a destinação dos DH a todos os seres humanos, sendo inclusive esse
posicionamento a razão de existência da comunidade. Entretanto, tal sentido é considerado
um desvio, falta de consciência social e política de quem o assume e, acima de tudo,
ignorância, por desconhecer a verdade posta diante de seus olhos, não apenas pela imanência,
mas pelos estudos e confirmações científicos. Essa negociação de sentidos se dá, dessa
maneira, a partir da ideia de um sentido literal, único, apesar de não haver uma relação
imanente entre as palavras e as coisas.
O processo de significar não é somente a atribuição de sentidos a uma palavra, mas a
assunção de um posicionamento político. Devemos, para refletirmos nessa direção,
encararmos o fato de que não estamos lidando, do ponto de vista analítico, com textos e sim
com discursos, ou melhor, com processos discursivos. Não queremos com isso dizer que a
noção de texto não é relevante para a AD, todavia, ela é marcada pela unidade, pela
organização do dizer em início, meio e fim e, o discurso, ao contrário, é compreendido como
o elo entre linguagem, pensamento e mundo, sendo marcado pela heterogeneidade e “[...]
dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir [...]” discurso “[...] como
um espaço de regularidades enunciativas [...]” (MAINGUENEAU, 2005, p. 15) e, portanto, a
dispersão constitui-se também como característica a ser observada em nossa análise.
Por ser o sentido uma posição assumida no interior de uma FD, como já brevemente
salientamos, e o dizer ser marcado pela heterogeneidade, não é possível dizermos que os
discursos da comunidade analisada nessa dissertação pertençam a apenas um campo
social/discursivo e, dessa forma, embora não sejam oriundos especificamente do campo
reconhecer, exceto por dissimulação ou simulação, um membro desse grupo [...]” (GARDIN; MARCELLESI,
1974, p. 231 apud COURTINE, 2009, p. 64). Courtine chama atenção para o fato de que a individuação, se
pensado como um processo discursivo, é marcado pela contradição, que tem primazia sobre a primeira. Com
isso, o grupo deve ser entendido não apenas como uma relação de similitudes, mas também, e principalmente, de
contradições.
100
político, afirmamos que os sentidos sobre direitos humanos emergidos na “cidade azul” são
também seus frutos, ou seja, compõem o campo dos discursos políticos. Dessa maneira, ao
contrário da ideia que pode ser atrelada ao pensamento de Courtine (2009) por alguns de que
discursos políticos são apenas aqueles “[...] extraídos do campo discursivo singularmente
restrito dos discursos produzidos pelos órgãos de imprensa ou pelos porta-vozes dos partidos
políticos [...]” (COURTINE, 2009, p. 55), entendemos poder qualificar como político todo
discurso/posicionamento que toque/interfira, direta ou indiretamente, a vida política e pública
do indivíduo, ampliando, dessa forma, o campo nomeado como análise do discurso político70,
considerado corpora de excelência.
Aparentemente, pode não ter relevância essa ampliação, mas a qualificação dos
discursos da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos” também como
políticos gera um novo efeito de sentido, dando-lhe maior representatividade e importância na
sociedade, pois sabemos que a fala produzida pela população em geral não é considerada, por
muitos, como corpus relevante, ou seja, capaz de, através de análise, „revelar‟ com
profundidade as contradições ideológicas presentes nos discursos que formam a sociedade;
além disso, tal caracterização confere maior grau de “institucionalidade” aos referidos
discursos.
A qualificação de instituição permite-nos enquadrar os discursos da comunidade do
Orkut como um dos Aparelhos do Estado elencados e discutidos por Althusser (1998), sendo
que eles apresentam uma especificidade: o fato de compor as duas formas de atuação do
Estado, ou seja, tais quais os discursos jurídicos, os discursos da “cidade azul” constituem o
Aparelho Repressivo (ARE) e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) ao mesmo tempo,
conforme conceituação trazida à folha 29. Há tópicos em que a figura do censor (moderador)
é evocada para resguardar a identidade do grupo. Assim, qualquer significação que ameace a
unidade do grupo é posta de escanteio.
Observemos que não é suficiente em uma comunidade virtual o cancelamento do
tópico ou a exclusão das postagens dos membros que não são bem-vindos, por apresentar
significações divergentes. O silêncio é imposto pela exclusão definitiva do sujeito da
comunidade, uma espécie de pena de morte virtual como pode ser verificado a seguir no
70
Poderíamos ter afirmado que os discursos do Orkut encaixam-se melhor no campo jurídico, mas não cremos
ser a melhor classificação, pois, como vimos na seção anterior, o direito para se constituir deve ser coercitivo, ter
o poder de compelir o outro a agir ou deixar de agir conforme determinação. O ser humano é, como também
vimos na seção anterior, entendido como um ser político e os direitos humanos, por serem definidos, em geral,
como sendo constituídos para defender os direitos decorrentes da condição de humanidade do indivíduo,
parecem enquadrar-se melhor na categoria do político, ou seja, os DH são formas políticas de atuação do ser
humano na sociedade.
101
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
102
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos”.
71
Entendendo-se a noção de política não apenas como partidária, mas também como comportamento.
72
Lembremos ser o objetivo da comunidade a ação política de um grupo em defesa própria, estimulando
comportamentos.
103
(BOBBIO, 1995c, p. 40) e, por isso, não permite pensar os elementos da díade (direita-
esquerda) como sendo homogêneos, até porque a sociedade é complexa demais para ser
resumida a apenas uma dicotomia, apresentando diversos grupos de opinião e interesses
divergentes entre si. Desta forma, ainda conforme Bobbio (1995c, p. 46), “[...] não existe uma
única esquerda, mas muitas esquerdas, assim como, de resto, muitas direitas.”.
É complicado, todavia, estabelecer o que seriam sentidos de direita, pois o mundo
mudou muito desde o surgimento da díade, na Revolução Francesa. Alguns critérios podem
ser elencados para estabelecer a distinção entre esses elementos; tomamos aqui alguns. A
priori, desejamos utilizar o critério que, no imaginário social, acaba por constituir os sentidos
que definem a direita e a esquerda: o radicalismo das ideias defendidas por cada um desses
polos, a condução aos extremos dos traços ideológicos de cada „grupo‟. Constitui-se, então,
atrelada à díade principal outra dicotomia – moderantismo x extremismo, em que o primeiro é
evolucionista, concebe a história como um processo, e o segundo concebe a história como
ruptura.
Desta visão, interessa-nos o elemento que, conforme Bobbio (1995c), conecta esses
pontos – o caráter antidemocrático, isso porque ele é uma característica latente na “cidade
azul”, não apenas pelas expulsões, prática que estabelece apenas um sentido e um
comportamento possíveis na sociedade virtual, mas pelos métodos utilizados pelos orkuteiros
para não legitimar os sujeitos considerados por eles „inconscientes‟, tais como o descrédito de
suas falas, a tentativa de abandono da discussão através de contagens regressivas, como se o
sujeito estivesse falando sozinho ou fosse um artefato bélico com a finalidade apenas de
destruir o que é sólido, ou seja, uma tentativa de retirar-lhe a voz, comentários de receitas,
trechos de músicas consideradas politizadas e a postagem para conferir utilidade ao tópico,
indicando ser a fala do contestador algo infundado, como podemos observar nos fragmentos
do tópico “Quanta hipocrisia”, a seguir.
Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.
104
Extraídos do tópico “Quanta hipocrisia”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humano direitos”.
A antidemocracia na “cidade azul” está mais voltada para a ideologia da direita, afinal
as temáticas e os argumentos preferenciais da comunidade estão relacionados à pauta dos
grupos de direita, como a condenação do aborto e a religião como base de sustentação dos
argumentos. Embora vivamos em um estado laico, a religião, principalmente na comunidade
do Orkut, é pautada como elemento basilar das significações, portanto, da constituição dos
direitos humanos. Classificamos, então, como extremistas de direita os sujeitos do Orkut,
destacando que eles não são a totalidade, mas uma parcela considerável dos orkuteiros, sendo
que indicamos existirem vários modos e níveis de se ser extremo-direita.
Destacamos duas das várias possibilidades: o extremismo de direita pode ser assumido
a partir de sua relação (ou não) com a instituição religiosa. Dessa maneira, o posicionamento
pode se constituir a partir dos sentidos referentes aos direitos humanos, enquanto instituição
jurídica, apresentando apenas alguns sujeitos como legitimados para discuti-los, às crenças
religiosas, como instâncias legitimadoras dos sujeitos e dos sentidos que, em conjunto,
estabelecem qual lócus do campo político deve ser considerado como legítimo. Com isso, a
extrema-direita é assumida por não comportar diferenças, mudanças e por contestar ideias
tidas como „revolucionárias‟, imprimindo-lhes um julgamento desabonador.
Outras nuances são assumidas quando a extrema-direita não apresenta relação com as
instâncias religiosas. Com isso, o critério cristão deixa de existir como instância legitimadora,
e o direitista não se configura como contrarrevolucionário em relação ao ateísmo, ou seja, não
assumir posicionamentos religiosos não é interpretado como um comportamento esquerdista.
Entretanto, não quer isso dizer que a instituição religiosa não é considerada, pois ela ainda
configura-se como instituição a ser salvaguardada. Temos, então, duas sutis diferentes formas
de assumir o extremismo de direita, materializadas nos discursos de NINROD e Márcio, a
seguir, sendo que as duas veem o marxismo como uma catástrofe social e política, uma
ruptura maléfica no curso da história.
105
Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.
Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
73
Não consideramos os discursos da comunidade como centro-direita, apesar da tentativa de alteração de alguns
componentes da estrutura social, pois entendemos que a mudança proposta não está de acordo com o que, na
contemporaneidade, entende-se como revolução, ou seja, o total respeito às diferenças. O que querem, os
orkuteiros, a nosso ver, é a legalização do que já ocorre na sociedade, ou seja, a exclusão total dos sujeitos
infratores, a desconsideração das divergências opinativa e, de certo modo, sociais, bem como a imputação da
pena capital que, de uma certa maneira, já ocorre nos presídios super lotados do país. Lembrando que existem
posicionamentos contrários a esse na comunidade, como temos mostrado ao longo dessa dissertação.
106
de esquerda, ao contrário, é aquele que pretende, acima de qualquer outra coisa, libertar seus
semelhantes das cadeias a eles impostas pelos privilégios de raça, casta, classe, etc.” Na
comunidade virtual em questão, acresce-se aos privilégios elencados pelo teórico italiano o
comportamento do indivíduo em sociedade.
A importância do comportamento para a significação dos direitos humanos nos leva a
concordar com Bobbio (1995c) em sua afirmação de que o critério mais comum para
diferenciar a direita da esquerda seja a postura dos sujeitos na sociedade frente ao ideal da
igualdade. Com isso, aspectos como quem deve ter direito aos direitos humanos, quais
direitos são concebidos nessa categoria e com que critérios devem-se estabelecer o usufruto
de tais direitos é que acabam por definir a comunidade “Direitos humanos para humanos
direitos” como direitista e conservadora, como podemos perceber ao longo dessa dissertação.
Dessa forma, a igualdade é um conceito relativo que, no Orkut, não é concebida como
universal: a máxima de que todos os homens são iguais não é paráfrase dos sentidos
assumidos pelo grupo dominante na comunidade, pois os sujeitos desse grupo se configuram
como sendo mais iguais que os outros.
Para que compreendamos o motivo do não estabelecimento de uma relação
parafrástica entre o sentido dominante na comunidade do Orkut e a máxima da igualdade
supracitada, é preciso reiterar que o primeiro aspecto elencado por Bobbio (1995c) – os
destinatários dos bens a serem repartidos na sociedade – é o que apresenta maior relevância na
“cidade azul” e isso se deve ao trajeto de constituição dos sentidos na comunidade, ou seja, ao
processo de construção da identidade de seus discursos que, conforme Maingueneau (2005),
se dá a partir de sua relação com outros discursos. Dessa maneira, retomamos o pensamento
de que o sentido é duplamente determinado: pela língua, como já discutimos, e pela história,
considerada sua exterioridade constitutiva.
Salientamos, entretanto, que “[...] quando afirmamos que há determinação histórica
dos sentidos, não estamos pensando a história como evolução e cronologia: o que interessa
não são as datas, mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam [...]”
(ORLANDI, 2007c, p. 33), ou seja, os discursos surgem apoiados em dizeres predecessores,
retomando o já dito. Dessa forma, para significar direitos humanos, os sujeitos do Orkut
retomam as significações sobre o que são os humanos, direitos humanos e sociedade,
afirmando ou refutando-as para que, com isso, possam atribuir sentido às suas palavras.
Podemos, assim, afirmar que todo discurso movimenta, atualiza discursos anteriores e, então,
conforme Courtine (2009, p. 105-106 – grifos do autor), “[...] a noção de memória discursiva
diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas
107
74
Evoquemos, novamente, os direitos humanos consuetudinários, citado por nós na seção anterior, para
indicarmos brevemente a atuação da memória discursiva. Não é necessário dizer, por exemplo, em algum
manual de guerra, que são inaceitáveis ataques indiscriminados. Essa prática (na verdade, a não-prática), inscrita
na memória discursiva, assume um efeito de obrigatoriedade jurídica, embora não haja um respaldo legal. Com
isso, conduzir um ataque sem um objetivo militar concreto, por exemplo, é interpretado como um desvio dos
direitos humanos, apesar de inexistir, conforme Henckaerts (2005), nos documentos oficiais sobre DH, tal norma
jurídica. Essa significação, então, só pode ter ganho sustentação devido à memória discursiva.
75
Perguntamo-nos, repetidas vezes, qual é a resposta correta para a seguinte pergunta: os indivíduos
desconhecem a pauta dos direitos humanos ou os direitos humanos não estão acompanhando a pauta dos
indivíduos? Só podemos afirmar, nessa dissertação, que existe um descompasso entre o discurso oficial e
daqueles que atuam cotidianamente com a temática dos direitos humanos e aqueles para quem os direitos
humanos existem. Entendemos, então, que os direitos humanos configuram-se como a grande pauta das disputas
de poder, sobretudo na linguagem, na sociedade do século XXI.
108
para nós, é pensada através de suas ferramentas de buscas, como a plataforma Google 76. Não
é possível estabelecer quais hipertextos são utilizados pelos orkuteiros para constituir sentidos
sobre DH, afinal de contas, ao digitarmos o sintagma „direitos humanos‟ no Google, somos
remetidos a 17 milhões de resultados77. Entretanto, o site que inicia a lista de resultados,
portanto, o mais popular, pode nos dar uma pista: o Wikipédia, conhecido por ser o site mais
acessado para pesquisas escolares no Brasil78. Alcunhado como enciclopédia livre, ele é
construído pelos internautas, que podem atualizar seu conteúdo. Por ser enciclopédica, a sua
discussão sobre a temática está dividida em introdução, história, evolução histórica,
classificação e referências79, sendo que o texto é marcado por seu laconismo.
O site pode ser compreendido como um excelente exemplar de hipergênero, pois ele é
totalmente construído através de links que remetem a outros textos. O fato de ser considerado
uma enciclopédia faz do Wikipédia um fenômeno interpretado como conjugador de todos os
saberes produzidos pela humanidade, uma espécie de biblioteca mundial, que gera um efeito
de sentido de completude, de unicidade, de evidência de que tudo que fosse possível saber
sobre um determinado assunto estivesse ali. Isso faz com que os sentidos no Orkut transitem
em ciclo parafrástico, reiterando informações compartimentadas acerca do estado
contemporâneo dos direitos humanos. Remontemos o Wikipédia ao objeto mais desejado pela
classe média nos anos pré-internet: a Enciclopédia Barsa. Quem a tinha, não precisava ter
mais nenhum livro; ela era a fonte de toda pesquisa, a detentora de todo conhecimento.
Todavia, como bem lembra Orlandi (2007c), qualquer modificação na materialidade
(no nosso caso, para o meio digital) gera diferentes gestos de interpretação e, por isso, o efeito
imaginário de completude do sentido é mais marcado no Wikipédia. Por estarem os discursos
aportados no gênero enciclopédia/verbete, as significações presentes no site também são
frutos dos sentidos materializados referentes à internet, interpretada como possuidora de toda
informação possível e, mais importante, se comparada à enciclopédia tradicional, capaz de
atualização constante, coletivamente. A internet, então, é significada como sinônimo de
democratização do conhecimento, apesar de os links e a atualização indicarem, por si
mesmos, a incompletude do dizer. Gera-se, então, um efeito de sentido de ampliação da
responsabilidade do sujeito frente às significações sobre DH, devido ao acesso facilitado às
76
Conglomerado do qual o Orkut faz parte.
77
Conforme consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico [http://www.google.com.br].
78
Conforme levantamento divulgado no site Doubleclick ad planner, referente ao mês de abril/2011, o
Wikipédia é o quinto site mais acessado do mundo, com 490 milhões de visitantes. O Orkut encontra-se no 41º
lugar, com 72 milhões de usuários. Em sua categoria – redes sociais –, só perde para o Facebook, que figura no
topo da lista. Disponível em: [http://www.google.com/adplanner/static/top1000/]. Acesso em 5 ago 2011.
79
Segundo consulta realizada no dia 3 de agosto de 2011, no endereço eletrônico
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_humanos].
109
Extraídos do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade “Direitos humanos para
humanos direitos”.
Contrariando “Gordo, Fabiano”, “Ri”, no citado tópico, entrecruzando o seu dizer com
os discursos religiosos – manifestação, na formulação, da memória discursiva – ironiza a
110
defesa do primeiro. A ironia por ele construída não apenas evidencia o efeito de sentido de
condenação ao Google como fonte exclusiva de informação, mas constrói outros efeitos: o
fato de o texto parafraseado ser oriundo de um livro80 (Bíblia, Novo Testamento, Salmo 23,
versículo 1) e não do ambiente virtual, corrobora o sentido de que o Google não deve ser visto
como fonte exclusiva da verdade, já que existem discursos socialmente legitimados como
possuidores da verdade absoluta81. Além disso, o entrecruzamento com os discursos religiosos
mobilizam significações que os apontam como sendo falaciosos, por não abarcarem toda a
verdade82.
Detendo-nos no vocábulo „pastor‟, na citada formulação de „Ri‟, é possível
estabelecermos que o Google seja entendido, tal qual a Igreja cristã, como manipulador dos
seus seguidores, direcionador de seus ouvintes/usuários/ovelhas para as significações de
interesse do mundo corporativo. Indica, então, uma postura acrítica dos usuários da
plataforma de buscas, que se deixam utilizar pelas instituições, como um joguete, que não
percebem o jogo ideológico ao qual estão submetidos. É interessante, assim, a significação
atribuída pelo criticado à paráfrase de “Ri”, pois seu dizer somente apresenta sentido quando
remetido à memória discursiva, ou seja, à história do dizer, porque é nela que se encontra
sustentação para significar o Google como dominação, falta de discernimento, de coerência
intelectual e consciência ideológica. A postagem em caixa alta da frase “FOI COM MEUS
PAIS” ratifica a ideia posta na sociedade de que os genitores são os únicos que apresentam
preocupação desinteressada com o indivíduo (a despeito das relações de poder constituídas
nas relações familiares), únicos a deterem e transmitirem o conhecimento que mais importa na
sociedade – o conhecimento moral. É por estar na memória discursiva que o Google pode ser
assim interpretado.
Outro aspecto da mídia que desejamos pôr em relevo é o telejornalismo, mas
precisamente a sua linha editorial. Não analisaremos nenhum programa jornalístico
especificamente, por não se configurar em objeto de estudo nessa dissertação e, tampouco,
80
Retomamos a ideia disseminada na sociedade de que um livro é a fonte do conhecimento. Esse discurso é
plenamente assumido e divulgado pela escola, principal AIE, conforme Althusser (1998), nas aulas de Literatura,
principalmente, entendendo o ato de ler como âncora de salvação da ignorância e das dificuldades do mundo
contemporâneo. O livro é o local onde o ser humano pode encontrar todas as respostas para suas dúvidas. O livro
religioso tem esse efeito maximizado pelo sujeito-leitor. Os discursos da internet ainda não foram incorporados
plenamente aos estudos e leituras realizadas e propostas, incentivadas pela escola.
81
Qual verdade seria, dessa forma, mais verdadeira? A do livro cristão? A da internet? O sujeito em questão
entende que nenhuma das duas manifestações é, sozinha, possuidoras da verdade.
82
Vários aspectos podem ser levantados para desconstruir o sentido de Bíblia como livro da verdade.
Salientamos, apenas, a pluralidade de discursos sobre o mesmo acontecimento, o que faz desse texto religioso, a
nosso ver, manifestação de contradições ideológicas e posicionamentos diversos, portanto, interpretações
diversas.
111
83
Informação da Associação Nacional de Jornais. Disponível em: <http://www.anj.org.br/a-industria-
jornalistica/jornais-no-brasil/tempo-de-leitura>. Acesso em 31 jul 2011.
84
Disponível em: <http://www.institutofsbpesquisa.com.br/blog/?p=88>. Acesso em: 31 jul 2011.
85
Salientamos que não estamos com nossa fala qualificando os discursos do telejornalismo brasileiro como
homogêneo. Referimo-nos apenas aos discursos e sentidos dominantes.
112
telejornais, conduz a interpretação dos fatos noticiados (e, principalmente, das posições-
sujeito assumidas referentes a eles) como sendo crível, real, validado e atestado por uma
autoridade, já que o jornalista, conforme imagem construída na sociedade, tem como função
social a responsabilidade de prover os sujeitos de informações, “[...] de fornecer elementos
86
para a evolução da vida em sociedade [...]” e, portanto, de consciência, efeito de sentido
similar àquele construído pelos discursos científicos já comentados nessa dissertação.
Extraído do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
Todavia, ressaltamos que a mídia no Brasil não tem preocupação com a pauta dos
direitos humanos. Embora apresentem notícias que abarquem a pluralidade que constrói essa
temática, muitas vezes sob a forma de especiais, as iniciativas de direitos humanos de cunho
social, mais precisamente as que abarcam os direitos sociais e trabalhistas, dentre outros87,
não são qualificadas e/ou nomeadas como sendo de DH, recebendo na maior parte dos
86
DHNET. Manual de mídia e direitos humanos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/dh/br/manual_midiadh/24_direitoshumanowjornalismo.htm>. Acesso
em: 29 jul. 2011.
87
Para efeito de ilustração do mecanismo de funcionamento da mídia, relembramos o recente caso de luta pelo
direito dos homoafetivos ao casamento civil. Embora as instituições midiáticas tenham feito ampla cobertura
desse processo, esse direito foi relacionado à condição de cidadania, mas não foi feita menção ampla à categoria
dos direitos humanos. Em levantamento realizado na plataforma Google, na seção Notícias
(<http://news.google.com.br/nwshp?hl=pt-BR&tab=nn> Acesso em 9 ago 2011), com a chamada “casamento
civil homoafetivo direitos humanos” apenas um link apareceu. Se mudarmos para “casamento homossexual
direitos humanos”, esse número amplia-se para nove. O baixo resultado quantitativo indica que, apesar de
constar da DUDH, artigo 16, o direito humano à constituição de uma família, a mídia não observa (ou não quer
observar) a contradição no documento, que entende família somente a partir da união de um homem e uma
mulher e não dedica-se a discutir a pauta dos direitos humanos atual, que inclui os homoafetivos como excluídos
e defende os seus direitos, haja vista que o ser humano é igual em deveres e direitos (artigo1º - DUDH), a
contrair matrimônio. Provavelmente, os discursos da mídia sobre a temática estejam filiados à formação
discursiva que não significa a união entre homoafetivos como possível e legítima e, dessa forma, impossível de
ser relacionada à categoria de direitos humanos, por ser, esta última, considerada como inerente e, portanto,
obrigatória e inquestionável. Não acreditamos que a mídia entenda os homoafetivos como destituídos da
condição de ser humano, tal qual ocorre com os infratores na comunidade da cidade azul. Com isso, a destinação
dos direitos humanos a eles não é questionável.
113
88
Embora a campanha “Criança Esperança” não mencione “direitos humanos”, ela está vinculada à UNESCO –
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization), que tem como base de sustentação e razão de existência a defesa dos referidos
direitos.
89
Disponível em: <http://busca.globo.com/Busca/?query=direitos+humanos>. Acesso em 9 ago 2011.
90
Irrompe, na comunidade, a desregulação, ou seja, a perturbação da rede dos implícitos, a instauração do novo,
onde esses programas são qualificados não como detentores plenos da verdade, mas como sensacionalistas.
114
de que os direitos humanos só podem ser considerados como aqueles que são
transmitidos/discutidos pela mídia, já que ela detém a legitimidade enunciativa, além de
apresentar relação interdiscursiva com a ciência, trazendo sempre elementos estatísticos como
referência argumentativa, agregando o valor de verdade a seus discursos, como é perceptível
na fala de „Anjinho‟, do dia 14.07.2006, no tópico “Seletividade do sistema penal”, destacado
na folha anterior.
Além disso, destacam-se as violações de direitos humanos e a exploração da pobreza
nesses programas, como podemos perceber no gráfico seguinte, reforçando a significação de
direitos humanos como aqueles relacionados a bandidos. Embora não sejam citados no Orkut,
com exceção de Datena, esses apresentadores lideram a audiência televisiva em seus horários.
No cenário baiano, temos Bocão como líder, o que indica que uma parte da população da
Bahia assume o mesmo posicionamento da linha editorial do programa, e seus discursos,
então, sobre direitos humanos, podem inscrever-se materialmente em uma memória, podendo,
dessa forma, significar, estabelecendo-se como uma paráfrase dos sentidos emergidos pelos
citados programas televisivos.
Enfoque da cobertura
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Assassinato Propaganda Ação Policial Merchandising Assistencialista
Bocão 8% 44% 5% 12% 9%
Na Mira 14,80% 32% 6% 17% 6%
Principais violações
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
Sentenciamen-
Exploração/ex- Imagens de
Imagens de Filmar em to
posição das crianças e
cadáveres delegacias ilegal/incitação
famílias adolescentes
à violência
Bocão 15% 14% 4% 4% 4%
Na Mira 33,14% 26% 7% 1% 6%
Outros discursos que dão sustentação aos dizeres na comunidade “Direitos humanos
para humanos direitos” são as imagens. Não estamos nos referindo às formações imaginárias,
relacionadas às condições de produção do discurso e à ideia de antecipação, ou seja, à
antevisão, por parte do sujeito, dos sentidos assumidos por seu interlocutor, embora ela
também seja relevante e diga respeito ao nosso corpus, uma vez que atua na estratégia de
construção do discurso (importante porque estamos diante, na “cidade azul”, de discursos
polêmicos, conforme classificação de Orlandi (2009)91), afetando o comportamento discursivo
do sujeito, determinando os seus usos argumentativos, a partir da maneira como o “[...]
locutor representa as representações do seu interlocutor e vice-versa [...]” (ORLANDI, 2009,
p. 126), estabelecendo, portanto, um lugar para o outro no discurso92. Referimo-nos ao que
discutimos na folha 45 dessa dissertação, quando, brevemente, trouxemos o sentido histórico
da imagem da deusa Iustitia. Ela é bastante significativa, sobretudo para os dizeres do Orkut,
por representar a base de sustentação do sentido que nomeia a comunidade analisada,
restabelecendo os implícitos e pré-construídos necessários para emergência da referida
significação.
É importante destacarmos que a significação atribuída à imagem-símbolo da justiça na
contemporaneidade é um deslocamento nas redes de memória, que promove uma ruptura do
91
Orlandi (2009) indica que o funcionamento discursivo é tipificante, ou seja, estabelece uma configuração para
o discurso, quer dizer, tipos de discurso são “cristalizações de funcionamentos discursivos distintos”
(ORLANDI, 2009, p. 153), baseados na relação entre s interlocutores, em sua reversibilidade (troca de papéis
entre eles) e suas relações com o objeto do discurso, ou melhor, com o fundamento da linguagem (paráfrase e
polissemia). Com isso, discurso polêmico é aquele em que a reversibilidade se dá sob certas condições e a
polissemia é controlada, já que a verdade é claramente disputada pelos interlocutores. Acreditamos que os
discursos da comunidade do Orkut enquadrem-se, ao mesmo tempo, na tipologia “discurso autoritário”, não pela
reversibilidade, mas porque a polissemia apresenta um nível de controle mais profundo (haja vista os
silenciamentos) e praticamente a existência de uma única verdade legitimada, ou seja, direitos humanos para
humanos direitos. Assim, os discursos da comunidade do Orkut movem-se entre o polêmico e o autoritário.
Indicamos que Orlandi (2009) estabelece ainda um terceiro tipo de discurso, o lúdico.
92
Observemos, por exemplo, como alguns sujeitos são levados a „aceitar‟ o discurso de seu interlocutor a partir
da análise das condições de produção do discurso e da “leitura” do outro, estabelecendo o seu lugar (e valor
simbólico) no processo discursivo. Ao constituir esse lugar, Rafael Off, no tópico “Quanta hipocrisia”, da
comunidade “Direitos humanos”, no dia 05.03.2009, afirma que convenceu-se de que os ativistas dos direitos
humanos defendem também as vítimas dos bandidos (“a sua informação me fez ver que os direitos humanos das
vítimas também são defendidos. Eu realmente me limitava muito a um ponto de vista que não enxergava o outro
lado da moeda. Estou muito grato pela sua informação”). Entretanto, apenas dois dias antes, no tópico “Olhem
esse cara debatendo na comunidade DH!”, da comunidade analisada nessa dissertação, mostrou-se bastante
convencido de que os DH são utilizados apenas para defesa de bandidos (“você argumentou muito bem lá na
comunidade, mr. Bigode. Quando eles ficaram colocando numeroszinhos em vez de argumentar, percebi o
quanto eles são arrogantes e alienados mesmo. Gente desse tipo me irrita”). Ao mencionar, no dia 03.03.2009, o
debate do qual ele também participara, ele demonstra que o seu posicionamento está bem marcado e ele
encontra-se bem inserido na formação discursiva que permite essa assunção de sentido. Assim, o seu discurso no
dia 5 é fruto não da argumentação de sua interlocutora, mas da pergunta final de seu discurso, no mesmo dia, já
que o argumento não era novidade na comunidade, sentidos semelhantes emergiram em todo o processo
discursivo desse tópico. Sua interlocutora o questionou: “você quer debater ou permanecer na insistência sobre
as tuas próprias convicções?”.
116
Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
existentes sobre o Poder Judiciário/Poder Legislativo e as fortes relações de poder por eles
estabelecidas, inclusive a de coerção, elemento que caracteriza suas normas como sendo de
“direito” e faz com que o local social de legislador seja palco de disputas de poder, como
sinaliza „Ri‟, em scrap a seguir.
Extraído do tópico “Morte Estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
Os sentidos sobre justiça estão atrelados aos sentidos sobre direitos humanos, haja
vista que o gozo de tais direitos é uma questão de justiça, para os orkuteiros, afinal,
lembremos, DH apresentam relação com a postura comportamental dos indivíduos em
sociedade. Com isso, já que a justiça é cega, cabe aos sujeitos da “cidade azul” a missão de
esclarecer a população virtual quanto à natureza dos direitos humanos, os malefícios de seu
emprego na sociedade atual, estabelecendo, para correção dos problemas sociais, os seus
destinatários exclusivos como sendo os humanos direitos e conclamando os orkuteiros para a
luta em prol dos cidadãos de bem.
No percurso discursivo pela defesa dos humanos direitos no Orkut, vários tópicos
foram criados, como já mencionamos, para esclarecer os iludidos jurídicos. Ao nos
depararmos com o tópico “Morte estupenda de um estuprador”, esperávamos encontrar relatos
pessoais, entre os comentários dos sujeitos do Orkut, que remetessem a atos que objetivassem
a resolução de crimes através de aplicação da pena desejada pela vítima, independente do
estabelecido pelos ARE/AIE jurídicos. Entretanto, o que encontramos são sujeitos que,
embora enalteçam a atitude da justiça com as próprias mãos, sentem-se receosos, de uma
maneira ou de outra, com a prática, como deixam claro os discursos de „Eder‟ (“Não se
resolve uma cagada fazendo outra até pq a justiça pelas mãos de vingadores é sempre superior
à dimensão do ato primário”) e „Percival Forever‟ (“quem somos nós para fazermos o
julgamento e execução?”), no tópico “Morte estupenda de um estuprador”.
Questionamo-nos, então, as razões que fazem da justiça pessoal um fato pontual,
apesar de percebermos ser um sentido aceito e difundido na comunidade da “cidade azul”. E
essa resposta só pode ser obtida se, mais uma vez, retomarmos um elemento fundamental que
119
constitui a linguagem e o sujeito: o poder. Dessa maneira, podemos afirmar que os sujeitos do
Orkut são, assim como qualquer sujeito, controlados pelas instâncias do Estado que,
principalmente utilizando o Direito, “[...] coagem o sujeito, insinuam-se nele de forma
discreta [...]” (HAROCHE, 1992, p. 21), disciplinando e normalizando sua subjetividade, bem
como suas ações em sociedade. Com isso, o Estado “[...] mantém uma relação coercitiva com
seus cidadãos [...]”, conforme Lagazzi (1988, p. 17), estabelecendo suas formas de controle,
como as exigências de uma língua padrão nacional, de um linguajar jurídico específico, bem
como as exigências estabelecidas pela lei. Os sujeitos, dessa forma, entendem que não podem
exercer a função social de legislador nem de executor da lei penal, haja vista que o Estado
determina ao sujeito a ideia de que somente ele é legítimo para, através da sua capacidade
exclusiva de solucionar crimes e julgar, estabelecer o devido processo legal e instituir
punições, a exemplo da de homicídio qualificado, cujo infrator é punido com detenção
máxima de 30 anos, conforme artigo 121, do Código Penal93, e não com a pena capital, como
defendem e acreditam os sujeitos do Orkut. Assim, o Estado, a quem o sujeito deve
obediência, sobretudo no tocante ao respeito à legislação, é compreendido como “[...]
conjunto de crenças que se apoderam, ou melhor, tomam o lugar de um desejo feito de um
„dito‟, de „explícito‟ e de „lei‟ [...]” (HAROCHE, 1992, p. 192) e, com isso, pelo poder e
controle que exerce através dos ARE e AIE, é também responsável pelo processo de
constituição dos sujeitos.
A natureza dos sentidos sobre direitos humanos na comunidade do Orkut, frutos de
uma interpretação e não da inexistente relação intrínseca, natural entre as palavras e as coisas,
reflete a natureza dos sujeitos que os assumem: não se trata de indivíduos empíricos, sujeitos
idealistas, mas de sujeitos discursivos, simbólicos, frutos de uma determinação inconsciente,
ideológica e enunciativa, conforme Gallo (2001), produzidos, por conseguinte, através da
interpelação ideológica dos indivíduos, necessária para a emergência de sentidos na “cidade
azul”. O sujeito do Orkut é, então, constituído pela “[...] identificação (do sujeito) com a
formação discursiva que o domina [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 150); dessa forma, a
emergência de sentidos como “direitos humanos para humanos direitos” derivam da filiação
do sujeito a uma FD, onde o sintagma „direitos humanos‟ apresenta possibilidades de receber
sentidos. Identificamos, na “cidade azul”, duas formações discursivas básicas às quais
nomeamos DH-historicidade e DH-inerência, que, devido à inscrição dos sujeitos-internautas,
determinam as significações sobre DH, constituindo os sentidos a partir de relações
93
BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>.
Acesso em: 19 ago. 2011.
120
simbólicas com duas correntes jurídicas, a saber: juspositivismo e jusnaturalismo. Sobre essas
formações discursivas especificamente, discutimos na subseção posterior.
É importante ressaltar que a interpelação ideológica ocorre através do interdiscurso, ao
fornecer ao sujeito a sua realidade. Dessa maneira, retomando o tópico “Aborto” e entendendo
o interdiscurso como “uma região de encontros e confrontos de sentidos” e que “[...] a
interpretação se alimenta exatamente dessa contradição: ao mesmo tempo em que os discursos
se confraternizam, eles se digladiam no campo social [...]” (GREGOLIN, 2003, p. 50),
indicamos que os indivíduos no Orkut são afetados pela língua em sua relação com a história
e, por isso, constituem-se como sujeitos perpassados pelas instâncias discursivas religiosas,
que os levam a assumir sentidos como os que condenam o aborto devido ao caráter sacro da
vida e à relação interdiscursiva com os discursos dos dez mandamentos bíblicos, dentre
outros, por alguns discursos dos movimentos dos excluídos, como o movimento em defesa
dos direitos da mulher em gerir o próprio corpo, sentidos que perpassam os discursos do
tópico “Aborto”, como pode ser verificado a seguir, discurso que constitui a fase atual de
debates dos direitos humanos na esfera política, pelos discursos das ciências, especialmente as
ciências biogenéticas, que almejam estabelecer o momento efetivo de início da vida,
discussão fundamental que entrecruza a constituição de sentidos sobre DH, haja vista dizer
respeito ao direito94 que possibilita os demais direitos que compõem o rol dos direitos
humanos, mas, principalmente, os sujeitos do Orkut são constituídos pelos discursos das
instituições jurídicas/estatais, convertendo-os em sujeitos-de-direito que, portanto, devem ser
dotados de direitos e deveres e nos leva à compreensão de que a interpelação torna “[...]
tangível o vínculo superestrutural [...] entre o aparelho repressivo de Estado (o aparelho
jurídico-político que distribui-verifica-controla “as identidades”) e os aparelhos ideológicos
de Estado, portanto, o vínculo entre o “sujeito de direito” [...] e o sujeito ideológico [...]”
(PÊCHEUX, 2009, p. 140 – grifos do autor).
94
Direito à vida.
121
Extraídos do tópico “Aborto”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Assim, o sujeito do Orkut, devido à contradição a que está submetido, pela sua
constituição interdiscursiva diversificada é „sujeito de‟ e „sujeito às‟ instâncias ideológicas, à
história, aos discursos; é assujeitado à religião e ao Estado. Este último ponto é bastante
intrigante, pois, de acordo com Haroche (1992, p. 217 – grifos nossos), “[...] o assujeitamento
à religião não pode se confundir nem coexistir com o assujeitamento ao Estado [...]”.
Entretanto, esse fenômeno é plenamente possível na “cidade azul”, pois a comunidade
configura-se como um manifesto contra o Estado, questionando as suas práticas e seus
sentidos; mas, por outro lado, constitui-se também como uma „declaração‟ de assujeitamento
dos sujeitos ao Estado, de subordinação, opressão e disciplinarização da subjetividade desses
sujeitos pelo Estado, já que os integrantes o seguem, respeitam e desejam, buscando a
aquiescência do mesmo em relação aos seus sentidos e atitudes referentes aos DH, muitas
vezes perpassados por significações oriundas da esfera discursiva religiosa-cristã que dão
sustentação aos seus dizeres.
Cremos poder afirmar que o acontecimento discursivo no Orkut está estruturado para
chamar a atenção da sociedade em relação à temática desenvolvida, mas, sobretudo,
conclamar a presença do Estado, intervindo nele, gerando o efeito-sensação de, efetivamente,
ocupar o Estado, fazendo parte dele, pertencendo a ele, constituindo os sujeitos do Orkut
enquanto seus representantes legítimos. O Estado, portanto, é a motivação da existência da
comunidade, seus discursos são negociações de poder entre os sujeitos e a esfera estatal e tal
embate configura a identidade do sujeito do Orkut, como sujeito legítimo dos direitos
humanos, decorrente de sua identificação-interpelação, e resultante da crença na lei e na letra
jurídica, uma das marcas dos efeitos de seu assujeitamento. Ademais, somente a configuração
desse sujeito enquanto ente simbólico, ao mesmo tempo laico e confessional e o fato de que
“[...] a materialização do sujeito do discurso não se dá através de uma marca enunciativa, mas
através de uma operação sintática que define as paráfrases possíveis na relação com o
enunciado [...]” (GALLO, 1990, p. 81), permitem o estabelecimento de relações parafrásticas
na emergência de sentidos para o termo „direito‟ que, como já vimos, apresenta, na
comunidade do Orkut, estatuto sinonímico com as normas morais, que apresentam
sustentação religiosa-cristã em nossa sociedade.
122
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Ao mesmo tempo, o sujeito na “cidade azul” constitui-se como livre por, através da
determinação jurídica, poder ir onde desejar e expressar o que tiver vontade, tendo, aliás, o
dever de fazê-lo, sendo possuidor de direitos na sociedade em que vive. É concebido como
um indivíduo autônomo, que não apresenta dependência existencial de nenhuma entidade, que
vê no Direito o espaço de concretização de seus direitos naturais, o que atribui à instância
124
jurídica prestígio semelhante ao da instância divina. Com isso, põe-se em relevo o efeito
ideológico de sua interpelação, com a ideologia estabelecendo o que o sujeito é e o que deve
ser, ou seja, a ideologia “[...] fornece „a cada sujeito‟ sua „realidade‟, enquanto sistema de
evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas [...]” (PÊCHEUX, 2009, p.
149).
Devido a isso, no Orkut há a crença de que o sujeito pode expressar qualquer
significação sobre direitos humanos, como os sentidos que, na sociedade real marcada pela
defesa da igualdade, são qualificados como ilegítimos e, por vezes, ilegais, como a pena de
morte precedida de tortura ao sujeito-criminoso, a depender de seu delito, resultando daí a
necessidade do Orkut para que o sujeito possa exercer plenamente o seu direito de expressão.
Há ainda, no Orkut, a evidência de que o sujeito é único e insubstituível, ao mesmo tempo em
que é legalmente igual aos demais indivíduos da sociedade. Ressaltamos, entretanto, que a
insubstituibilidade do „cidadão-humano‟ dá-se apenas no tocante aos humanos direitos, como
temos visto ao longo dessa dissertação, pois o mau comportamento descaracteriza o sujeito
enquanto entidade humana. Assim, o poder jurídico instala-se no sujeito e procura “[...] fazer
do homem uma entidade homogênea e transparente, faz do explícito, da exigência de dizer
tudo e da „completude‟ as regras que contribuem para uma forma de assujeitamento paradoxal
[...]” (HAROCHE, 1992, p. 23). Dessa maneira, o sujeito vive sob a ilusão de que é um ser
consciente, origem de suas significações, possuidor de direitos que, embora contraditórios e
nem tão explícitos95, fazem do sujeito o comandante da sua vida. Constitui-se, então,
enquanto sujeito-de-direito.
O sujeito-de-direito é um efeito da estrutura social capitalista e, por isso, tem relação
com o desenvolvimento econômico, responsável não apenas pelo avanço de questões
financeiras, mas pelo desenvolvimento da instituição jurídica, que passa a englobar os sujeitos
95
O inciso VII, do artigo 5º, da Constituição Federal (disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 5 nov. 2010),
estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política”. Entretanto, é possível a um médico entrar na justiça para solicitar autorização judicial para realização
de procedimentos médicos que vão de encontro à crença religiosa do paciente e de sua família. Malgrado ser
uma violação dos direitos humanos, conforme interpretação de alguns juristas, não é incomum uma sentença
favorável aos médicos (vide TERRADAS, Ademir. Justiça autoriza transfusão em testemunha de Jeová. Assine
Bom Dia. Disponível em: <http://www.redebomdia.com.br/Noticias/Dia-a-
dia/47137/Justica+autoriza+transfusao+em+testemunha+de+Jeova>. Acesso em: 3 mar. 2011), sob a alegação de
que o direito à vida deve sobrepor-se aos demais. Parece-nos contraditório e uma demonstração do controle do
Estado sob a vida dos sujeitos, já que uma das instâncias da vida humana é o seu aspecto cultural, um dos
elementos que nos diferencia dos animais, que a religião apresente menor valor. Importa-nos, entretanto, a ideia
de que o sujeito vive sob a ilusão de que é livre para exercer plenamente todos os seus direitos, conduzir sua vida
conforme suas crenças, embora submetido ao poder do Estado. Eis uma demonstração da interpelação ideológica
do indivíduo.
125
enquanto possuidores de direitos e deveres, para que possam sustentar a maquinaria que
possibilita o desenvolvimento. Dessa forma, para Legendre (apud HAROCHE, 1992, p. 158),
[...] ser sujeito-de-direito não é nada mais que „ser para a Lei‟ /.../. isto não se dá sem
consequências, se a própria idéia do sujeito-de-direito implica, sobretudo e
finalmente [...] que no universo das instituições centralistas não haja senão um só
discurso possível e que ninguém possa avançar de rosto descoberto como tendo de
fazer valer um desejo próprio
Devido a isso, embora os sentidos dos sujeitos do Orkut divirjam do discurso oficial
sobre direitos humanos, que os atribuem a todos os seres humanos, eles são compelidos a
adotar as práticas estabelecidas pela lei porque, somente assim, passam a existir socialmente
e, com isso, podem usufruir das benesses proporcionadas pela máquina capitalista, tornadas
objetos de desejo, sem as quais a vida moderna é interpretada como inviável. Apesar de a
categoria dos direitos humanos ser significada pelos integrantes da “cidade azul” como
direitos naturais à condição de humano (com restrições), o estabelecimento do
comportamento como critério para conferência desses direitos reflete o apagamento subjetivo
a que está submetido aquele que não se enquadra nas características estabelecidas para um
cidadão brasileiro, apesar de tal qualificação no Orkut centrar-se muito mais na esfera dos
deveres do que na dos direitos, haja vista que parece não existir na comunidade virtual
nenhum sujeito que exerça plenamente os seus direitos de cidadão96.
Esse posicionamento reflete ainda o lugar ocupado pelo sujeito na sociedade, inclusive
a virtual, como operário do poder estatal, exercendo, portanto, como dissemos, muito mais os
deveres a ele impelidos do que os direitos, ratificando, dessa forma, o caráter coercitivo do
sujeito-de-direito, como pode ser verificado nos discursos do tópico “Seletividade do sistema
penal” postos a seguir. Tal fato também explica a razão que faz com que na comunidade
virtual os direitos humanos em si, com exceção do direito à vida, através dos debates sobre
pena de morte e aborto, não sejam debatidos. Direitos como lazer, família e participação na
vida cultural não são interpretados como direitos humanos, talvez sejam significados como
conquistas pessoais dos indivíduos, independente da participação do Estado e do jurídico;
ironicamente, são esses os direitos com mais chances de se constituírem como desejos
individuais do sujeito e, por isso, como categoria passível de reivindicação social que pode
separar a sociedade em grupos muito heterogêneos, o que não é muito interessante para as
relações de poder estabelecidas pelo Estado.
96
Em verdade, afirmamos não existir cidadão pleno na sociedade, pois sempre há um direito ou um dever sendo
negado a/por um cidadão.
126
Extraídos do tópico “Seletividade do sistema penal”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos
direitos”.
97
Os elementos do interdiscurso são o pré-construído e a articulação. Conforme Pêcheux (2009, p. 151), “[...] o
„pré-construído‟ corresponde ao „sempre-já-aí‟ da interpelação ideológica que fornece-impõe a „realidade‟ e seu
„sentido‟ sob a forma da universalidade (o „mundo das coisas‟).” A articulação, por sua vez, “[...] provém da
linearização (ou sintagmatização) do discurso-transverso no eixo do que designaremos pela expressão
intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo [...]; portanto, o conjunto dos
fenômenos de „co-referência‟ que garantem aquilo que se pode chamar o „fio do discurso‟.” (PÊCHEUX, 2009,
p. 153).
127
discursiva, como evidenciamos à folha 109, com os discursos de “Gordo, Fabiano” e “Ri”.
Assim, o fato de o sujeito do Orkut estar submisso às instâncias jurídicas e, por isso, seu
modus vivendi não condizer com todas as suas significações sobre direitos humanos, é
também indicativo de que se instalou na FD a contraidentificação, haja vista que os sentidos
sobre DH não são integralmente os mesmos estabelecidos pela ideologia dominante que os
interpelou. Desse modo, irrompe a falha, o equívoco da interpelação ideológica. Afirmamos,
então, através das palavras de Pêcheux (2009, p. 165-166) que “[...] no espaço de
reformulação-paráfrase de uma formação discursiva – espaço no qual, como dissemos, se
constitui o sentido – efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina [...]”
e é esse acobertamento das outras possibilidades semânticas, do processo de interpelação e
dos elementos do interdiscurso que permite aos sujeitos da “cidade azul” constituírem-se
enquanto sujeitos-de-direito.
Esse mascaramento das determinações que constituem o sujeito, responsável pela
ilusão de ser livre e proprietário de direitos, gestor pleno da própria vida e das significações e,
portanto, responsável pelo apagamento de sua submissão frente ao poder e de sua limitação
simbólica é um efeito da interpelação ideológica, nomeada por Pêcheux (2009) como
esquecimento n.º 1, fundamental para o funcionamento da forma-sujeito. Desse modo, o
sujeito não tem acesso ao exterior da formação discursiva que o domina, nem mesmo tem
consciência de que é fruto de um processo de interpelação, acreditando preceder ao discurso
e, assim, acredita serem os seus sentidos os únicos possíveis na esfera semântica sendo,
portanto, a relação entre as palavras e as coisas de cunho natural e inerente. Entende-se, então,
as significações emergidas sobre direitos humanos na comunidade virtual, que concebem esse
constructo político-jurídico como direitos próprios á humanidade do homem, embora o direito
seja uma categoria política e os sujeitos tenham a necessidade de utilizar um critério social – o
comportamento – para sustentar a tese da inerência dos DH. Confere-se, dessa maneira, aos
direitos humanos, um estatuto de poder que é bastante desejado pelos internautas.
Ligado ao inconsciente, o esquecimento n.º 1 opera através do funcionamento do
esquecimento n.º 2 que, ligado ao pré-consciente, tem relação com o processo de elaboração
intradiscursiva, ou seja, com o processo de seleção de enunciados, formas linguísticas (e
também não-verbais, a depender do caso) no interior da FD que domina o sujeito. Assim,
pertence à zona dos processos enunciativos e gera, no sujeito, o efeito de domínio dos saberes
objetivos da realidade, pois é fruto da ilusão da possibilidade e capacidade do sujeito em
manipular o conhecimento, selecionando as formas linguísticas mais adequadas para
expressá-lo. É por essa razão que, embora sejam possíveis diversas maneiras de externar o
128
sentido assumido de que os direitos humanos são uma categoria jurídico-natural que devem
ser usufruídos apenas por sujeitos que apresentam o comportamento determinado na
sociedade, a expressão “direitos humanos para humanos direitos” seja a eleita pelos sujeitos
como a formulação que melhor expressa o sentido assumido por eles, sendo, portanto,
bastante repetida na “cidade azul”. Todavia, é importante ressaltar que, apesar de o
esquecimento n.º 1 estar relacionado a um campo inacessível ao sujeito e o esquecimento n.º 2
apresentar, por parte do sujeito, certo grau de acessibilidade, eles estão conectados, pois,
conforme Teixeira (2005), o primeiro regula a relação entre as formulações ditas e as não-
ditas no fio do discurso, devido ao segundo esquecimento. Deve-se isso ao fato de que o pré-
consciente “[...] caracteriza a retomada de uma representação verbal (consciente) pelo
processo primário (inconsciente), chegando à formação de uma nova representação, que
aparece conscientemente ligada à primeira, embora sua articulação real com ela seja
inconsciente [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 163). Ratificamos, ainda, a possibilidade do furo, da
falha no processo de interpelação, e isso inclui, portanto, os esquecimentos elencados por
Pêcheux.
Os sentidos sobre direitos humanos no Orkut, ainda que apresentem determinações
variadas, são construídos sustentando-se nas significações referentes à responsabilidade.
Mesmo que o sujeito do Orkut compreenda o ser humano como um ser histórico ou como um
ente natural, ou seja, independente da formação discursiva a que esteja filiado, a sua postura
em sociedade é critério para atribuição de direitos humanos e, por isso, a conferência de tais
direitos está vinculada à ideia do livre-arbítrio e aos deveres condizentes à condição de
cidadão. Entretanto, é possível o questionamento acerca da possibilidade de atribuição de
responsabilidade aos seres humanos, haja vista a existência de alguns entraves que podem
dificultar essa responsabilização. O primeiro deles está centrado nos discursos dos sujeitos da
“cidade azul” e diz respeito à incongruência de se ser um ente natural e, por isso, ter atitudes
consideradas antissociais, qualificadas como desvios provocados por falha de constituição
biogenética, ou seja, o indivíduo, a partir de ações que não dizem respeito às leis naturais
(pelo menos os manuais de biologia não fazem menção à associação entre comportamento
ilegal e defeito genético98), ser qualificado como “sangue ruim”. O caráter natural do ser
humano, que poderia justificar os desvios de conduta, ou, pelo menos, servir de atenuante na
98
Existem estudos que associam hereditariedade e comportamento. Todavia, pesquisadores como Bussab (2000),
salientam que tais evidências genéticas não atuam isoladamente, sendo dependentes do estímulo ambiental. In:
BUSSAB, Vera Silvia Raad. Fatores hereditários e ambientais no desenvolvimento: a adoção de uma perspectiva
interacionista. Revista Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, v. 13, n. 2, 2000. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/html/188/18813204/18813204.html>.
Acesso em: 22 ago. 2011.
129
99
Reiteramos que há na comunidade virtual a tentativa, por parte da maioria dos integrantes, de uso dos jargões
do universo jurídico, bem como a demonstração de conhecimento das especificidades da área o que, muitas
vezes, gera um fenômeno equivalente à hipercorreção. Vimos anteriormente que o desvio do texto padrão, com
sua linguagem especializada, é repudiado no Orkut.
100
É importante por em relevo a distinção entre discurso e texto. O primeiro, como já vimos, diz respeito à
dispersão e aos processos ideológicos, enquanto o segundo é resultante de processos enunciativos e é marcado
pela unidade. Ambos os conceitos estão conectados, sendo um efeito do outro.
130
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
Para que isso ocorra, o sujeito assume uma função que o permite atingir, ao mesmo
tempo, a singularidade, marcada pelos processos polissêmicos do discurso, mas,
principalmente, o repetível, marcado pelo efeito de fechamento. Referimo-nos à função-autor,
que integra o processo de individualização da sociedade, singularizando e isolando o sujeito.
O autor é a função social assumida pelo sujeito que o alça à condição de produtor da
linguagem. Dessa maneira, a autoria diz respeito aos processos enunciativos e apresenta como
princípio o agrupamento do discurso, gerando, como efeito, a unidade textual. O comentário,
no Orkut, é um interessante exemplo de funcionamento dessa função, devido a dois aspectos.
O primeiro é referente ao autor enquanto produtor de uma opinião. Assim, o sujeito constitui-
se enquanto ser politizado, cônscio da estrutura sociopolítica da sociedade, capaz de nela
intervir, promovendo ações que ele julga necessária (como o convencimento de seu
interlocutor quanto à prática do aborto ou à legalização da pena de morte). A posse de uma
opinião, como evidencia a fala de „‟101(“Quando temos uma opinião, seja lá qual
for, é ótimo, mas devemos conhecer todos os lados que envolvem o fato”102) qualifica o autor
como detentor de conhecimento e, em uma sociedade que ainda intitula intelectual como
imortal, o sujeito é, então, inserido na estrutura de poder vigente.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
101
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade “Direitos humanos para humanos direitos”.
102
É relevante observarmos que todo sujeito acredita que sua opinião é a mais completa, mais embasada que as
demais. Dessa maneira, o seu dizer está perpassado por todos os sentidos possíveis sobre a temática discutida.
Lembremos, então, da ilusão a que está submetido o sujeito, ou seja, a de que o sentido é transparente, que ele
tem acesso a todas as significações possíveis e a ilusão de que ele escolhe o sentido a adotar, quer dizer, formula
uma opinião a respeito do assunto debatido, constituindo-se enquanto autor. Sem os esquecimentos, não seria
possível o funcionamento da autoria.
131
Outro aspecto que contribui para a noção de autoria e também está conectada à
relevância da opinião é o modo de elaboração da sequência discursiva. Ao observamos o
discurso de „Andy Priest‟, no tópico “Morte estupenda de um estuprador”, acima, podemos
entender que a autoria em um comentário de uma comunidade virtual não se dá somente na
opinião que é emitida, mas na maneira como se dá essa emissão. Dessa forma, a ironia
expressa pelo internauta através do elemento onomatopaico “mimimi” posto antes de
palavras/expressões cotidianas demonstram que o autor é aquele que, em seu discurso, atinge
a originalidade103, afastando-se do lugar-comum, constituindo-se, assim, o fio do discurso,
como espaço de intervenção do sujeito. Essa observação é reforçada pela frase final do
referido discurso de „Andy Priest‟ que condena o repetível enunciativo, ou seja, a cópia de
uma formulação linguística, compreendendo-o como carência de opinião e originalidade.
Desse modo, o sujeito configura-se como autor devido à sua liberdade, individualidade,
consciência, opinião e originalidade. Esses fatores fazem com que ele seja responsável pelos
seus dizeres e, por isso, enquanto sujeito-de-direito, seja passível de destituição dos direitos
humanos após constatação de inexistência de humanidade, somente possível devido ao
cometimento de delitos, como pudemos observar ao longo dessa dissertação.
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos
para humanos direitos”.
104
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.
133
realiza senão dentro da contradição que organiza nela a unidade e a luta dos contrários [...]”
(PÊCHEUX, 1990, p. 8). Devido a isso, a ideologia jurídica que permite os posicionamentos
sobre direitos humanos na comunidade virtual é heterogênea, bem como os AIE, e constroem
os dois grupos antagônicos da formação social de modo diferenciado, ou seja, contribuindo de
maneira desigual para o desenvolvimento da luta ideológica.
Quando mencionamos formação social dominante no Orkut, não estamos nos
referindo à oposição clássica burguesia x proletariado, nem, mesmo já tendo citado a condição
de pobreza, trabalhamos a luta ideológica entre pobres e ricos, embora saibamos que essas
duas dicotomias são complementares às formações sociais da “cidade azul” que desejamos
destacar. Trata-se da luta entre as categorias dos „humanos direitos‟ e dos „humanos‟. Pode
parecer estranha a composição dessa díade, já que na categoria do „humanos‟ estão integrados
os „humanos direitos‟. Entretanto, retomando a concepção de que o silêncio é fundante e que,
quando falamos, silenciamos outros sentidos possíveis, fazendo do silêncio um elemento
significativo, indicamos que a categoria „humanos‟ existe para estabelecer uma posição no
discurso, ou seja, trazer à existência discursiva os „humanos tortos‟, estabelecendo-lhes
legitimação social. Dessa maneira, essa formação social, ao contrário da exata face opositora
dos „humanos direitos‟, é uma maneira mais “completa”, coerente de expor a complexa
relação de contradição-subordinação-submissão entre as formações sociais no Orkut, que vão
gerar posicionamentos variados. Ressaltamos também que a denominação escolhida põe mais
em evidência o fato de que os „humanos tortos‟ e a ideologia por eles assumida não se
constituem como elementos passivos no interior dos AIE, mas encontram-se em constante
atividade ideológica no interior do aparelho.
Pêcheux (2009, p. 132 – grifos do autor) sinaliza que “[...] a instância ideologia existe
sob a forma de formações ideológicas (referidas aos Aparelhos Ideológicos do Estado), que,
ao mesmo tempo, possuem um caráter „regional‟ e comportam posições de classe”. Advém
dessa regionalidade e da pluralidade de posicionamentos, a heterogeneidade da ideologia. As
formações ideológicas atuam nos discursos através de suas especificações, ou seja, das
formações discursivas.
Na comunidade “Direitos humanos para humanos direitos” é raro localizarmos
formações ideológicas que comportem sentidos que apontem os direitos humanos como
direitos destináveis a todos os seres humanos. Devido a isso, nessa subseção, nos
concentramos em duas formações ideológicas que permitem os dizeres emergidos na
comunidade virtual, a saber: direito como ideologia e a formação ideológica „religiosa-cristã‟.
Devemos fazer sobre elas uma consideração. Embora ideologia e religião estejam em
134
formações ideológicas diferentes, entendemos que a religião também se constitui como uma
prática ideológica. Essa separação foi estabelecida para que fiquem claras as divergências
semânticas presentes na comunidade virtual quanto à noção de direito. Dessa forma, o direito
pode ser visto como uma entidade divina ou como uma ideologia humana. Tais significações
foram levantadas e discutidas na seção anterior. A partir das formações ideológicas traçadas,
estabelecemos duas formações discursivas que, através de processos interdiscursivos e
baseados na noção de responsabilidade, cada uma vinculada a uma ideologia científica
jurídica, permitem a emergência de sentidos na “cidade azul”. O organograma, a seguir,
resume o que expusemos.
135
135
136
105
BARROS, 2004.
137
condenadas. Já mencionamos esse fato, mas é importante reiterarmos o gênero fórum virtual.
Esse gênero, ao mesmo tempo em que reconstrói o espaço do dizível, reestabelecendo as
fronteiras da formação discursiva e, com isso, agregando significações que, em outro gênero
do discurso, não seriam possíveis de serem ditas, rechaça sentidos que outrora estavam a ela
vinculados. Na comunidade do Orkut também ocorre esse fenômeno: a pena de morte é
sentido legitimado e, acreditamos, possível de emergir em outras condições de produção do
discurso, em outras situações informais, com interlocutores considerados íntimos.
Todavia, a prática da tortura é sentido que passa a integrar, como observamos nos
discursos de „Vi‟ e „Paty‟, a seguir, a formação discursiva apenas no fórum virtual,
provavelmente porque o ciberespaço é considerado, por muitos, como “terra sem lei”, sentido
que produz o efeito de liberdade para os sujeitos-usuários, retirando-lhes a mordaça,
reduzindo, portanto, a possibilidade de sofrer retaliação, censura. Entretanto, o fórum virtual
também, enquanto gênero, permite uma prática que, fora dele, não é possível e é considerada,
do ponto de vista jurídico, uma ação ilegal: o exílio político. O ato de exilar é materializado
na comunidade através das expulsões, que são consideradas práticas normais, cotidianas,
embora não desejadas. Dessa maneira, o gênero fórum virtual contribui para a emergência dos
sentidos sobre direitos humanos, ajudando a estabelecer aquilo que pode e deve ser dito
acerca dessa categoria jurídica.
Extraído do tópico “Morte estupenda de um estuprador”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para
humanos direitos”.
Extraído do tópico “Olhem esse cara debatendo na comunidade DH”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos
para humanos direitos”.
FD. Conforme Courtine (2009), uma formação discursiva pode ser reconfigurada, pois esse
processo se dá a partir do interdiscurso e é possível devido à instabilidade das fronteiras da
FD. Deve-se a isso, o fato de, no organograma, termos indicado as formações discursivas com
linha pontilhada. Não identificamos, na comunidade, a tomada de posição sob a modalidade
da identificação plena.
Ocorre, entretanto, outra modalidade, que “[...] remete para uma falha na interpelação
do sujeito, ou seja: é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode contra-identificar-se
com os saberes de sua formação discursiva [...]” (INDURSKY, 2007, p. 85). Essa segunda
modalidade de tomada de posição, da qual tratamos em folhas precedentes, instala no interior
da FD a alteridade e, com isso, justiça o seu caráter heterogêneo. A presença do Outro e a
necessidade de intercambiamento com os elementos que compõem o seu exterior contribuem
para que entendamos o funcionamento da formação discursiva.
As falhas no ritual da interpelação produzem alguns efeitos na formação discursiva: a
entrada de novos saberes, a fragmentação da forma-sujeito e a instauração de uma nova
posição-sujeito. Entretanto, para Branca-Rossof (2008), apoiada no pensamento de Dreyfus e
Rabinow, são raros os enunciados que apresentam uma capacidade de produzir os efeitos
acima elencados na formação discursiva: “[...] não se trata de atos de discurso da vida
cotidiana, mas de enunciados constitutivos da cultura de uma sociedade que só são válidos
quando uma comunidade de pesquisadores ou administradores os transmitem, comenta ou
transforma [...]” (BRANCA-ROSSOF, 2008, p. 131). Em relação a isso, em nossa análise,
não pretendemos encontrar relações interdiscursivas que geram sentidos ad eternum. Assim,
podemos visualizar a entrada de novos saberes na formação discursiva por conta de seu
interdiscurso. Tampouco, vamos fazer uma análise exaustiva de cada FD. Mas
compreendemos que é possível, no Orkut, a instauração de novos posicionamentos no interior
da formação discursiva porque, como mencionamos anteriormente, existem sujeitos com alto
capital simbólico que, devido a isso, apresentam possibilidade de transformar a formação
discursiva, ainda que os discursos sejam cotidianos, como são os do Orkut, com as
especificidades que já destacamos. Entretanto, salientamos que, embora as formações
discursivas elencadas também sejam heterogêneas e, portanto, instáveis, percebemos, nos
discursos do Orkut, a tentativa de estabilização dos sentidos, ou seja, a manutenção da
ideologia dominante e, portanto, do sentido que norteia a comunidade, ou seja, “direitos
humanos para humanos direitos”, o que faz do repetível um processo constante. Observemos
alguns pontos sobre as formações discursivas destacadas em suas relações entre si.
140
Extraído do tópico “Quem é a igreja para falar de direitos humanos”, da comunidade do Orkut “Direitos
humanos para humanos direitos”.
a lei jurídica como sendo natural, eterna e imutável, legitimando, assim, sentidos que indicam
a pena de morte como a única solução viável para a criminalidade, pois a imutabilidade da lei
é interpretada como indicação da imutabilidade do homem, pode-se indicar que três doutrinas
jusnaturalistas diferentes encontram eco na comunidade virtual, sobretudo as duas primeiras
conjugadas: a cosmologia valoriza a natureza das coisas. Esse é um dos sentidos mais
relevantes da “cidade azul”, por também nortear as demais significações. Já vimos que,
embora o comportamento seja interpretado como critério na atribuição dos direitos humanos,
ele está vinculado, para os sujeitos do Orkut, à natureza do ser humano. Dessa forma, a
natureza humana será tomada como ponto de partida para a constituição do direito,
ressaltando-se que, em verdade, essa natureza é considerada pelos internautas como
proveniente de Deus, quer dizer, o ser humano, que é dotado de racionalidade, é a expressão
material da razão divina, feito à imagem e semelhança do Criador. Dessa maneira, no interior
da DHI, o direito passa a ser compreendido como “[...] uma transferência de obrigações
providenciada por Deus no ato da criação [...]” (HECK, s.d., p.16), sendo, portanto, natural
porque imanente à natureza divina. Percebe-se, então, que a doutrina teológica, que tem em
Deus a instância normativa e é contemporânea da aristocracia feudal, encontra-se diluída na
cosmologia, construindo, assim, a base de sustentação, no Orkut, das significações dos
direitos humanos como direitos naturais. A terceira doutrina jusnaturalista é a antropológica e
diz respeito às razões humanas.
A DHH na sociedade em geral, por sua amplitude e pela classe social a qual está
vinculada, geralmente, é tida como a dominante. Tal fato não ocorre na “cidade azul”. Essa
formação discursiva é marcada pelos sentidos de direito como entidade coercitiva, pela
valorização da neutralidade (embora saibamos da impossibilidade de sermos neutros, pois a
linguagem é palco da manifestação das lutas de classes e o discurso, então, é fruto de
processos ideológicos) e do tecnicismo formalista, e “[...] sua validade e imputação
fundamentam-se na própria existência de uma organização normativa hierarquizada [...]”
(WOLKMER, 2007, p. 161). Observemos que todas as características que elencamos nesse
parágrafo para a DHH também se encontram filiadas à DHI. Isso ocorre devido a dois fatores:
no diálogo entre as formações discursivas, a DHH assume os sentidos de imutabilidade e
inerência provenientes da DHI.
É necessário entendermos que o caráter imutável não diz respeito às leis106, mas à
natureza do ser humano. Dessa forma, o sujeito inscrito na DHH também assume a pena de
106
Acreditamos que os sujeitos filiados à DHI deslizam-se constantemente entre as duas formações discursivas
no momento de atribuir sentido à imutabilidade da lei. Não há expresso na comunidade, por parte desses sujeitos,
142
morte como punição exemplar por entender que o sujeito-infrator tem sua natureza, essência
corrompida. Isso faz com que o sentido básico da DHI também seja assumido pelo indivíduo
interpelado pela DHH, convertendo-se em uma das mais importantes significações da
comunidade: a inerência. Assim, é inerente à condição de humano direito a atribuição de
direitos humanos. Para que se processe, conforme sentidos assumidos pelos sujeitos, a
instauração da pena capital e o reequilíbrio social, é necessária, de acordo com suas filiações,
a assunção do sentido da lei enquanto criação de uma instituição estatal, princípio da DHH,
por configurar-se em elemento “palpável” para os sujeitos, o que permite vislumbrar a
mudança no código penal e, portanto, a realidade dos direitos humanos. Ademais, é
importante ressaltarmos que os sujeitos encontram-se no interior de AIE, que permite a
circulação do sentido do Estado enquanto instituição legisladora legítima.
É interessante observarmos que o direito reveste-se de um estatuto capitalista e
configura-se como algo a ser possuído e o sujeito-de-direito enquanto proprietário, um ser
consumidor, cujo preço é o comportamento condizente com a estrutura sociopolítica vigente,
incluindo nessas normas comportamentais a restrição discursiva, quer dizer, a impossibilidade
de emergência de alguns sentidos, ocorrendo, como já dissemos algumas vezes, esse
funcionamento também na comunidade virtual, sob a forma dos silenciamentos. Essa é uma
prática determinada pela DHH que, por representar a ideologia jurídica positivista, diz
respeito à manifestação da vontade humana. Conforme Wolkmer (2003, p. 159), “[...] a
concepção ideológica do liberalismo jurídico-burguês definia, claramente, que, em face de sua
lei, todos eram livres e iguais, mas sob a condição de que todos fossem e se tornassem
burgueses [...]”, compelindo o sujeito a assumir as mesmas significações e comportamento,
bem como restringindo, dessa forma, o que se pode interpretar, na comunidade, por vontade
humana. Dessa maneira, o homem, para os sujeitos do Orkut, apresenta desejos que não
condizem com o ideal de fraternidade postulado pelo discurso oficial dos direitos humanos, e,
além disso, coloca-se como sujeito participativo dos interesses da coletividade devido ao fato
de pagar os impostos estabelecidos pelo aparelho estatal, sentido presente em discursos
oriundos de campanhas veiculadas pelo Estado que atribuem o “ser” cidadão à prática do voto
– obrigatório – e regularização fiscal, como, por exemplo, as campanhas anuais para
pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU e do Imposto sobre a Propriedade
de Veículos Automotores – IPVA, como evidencia o discurso de a seguir, no
tópico "Aborto”.
que as leis não mudem. Todavia, há menção apenas na aplicação da pena capital, o que nos faz entender que a
„correção‟ dessa lacuna jurídica é suficiente para atribuir às leis o estatuto de eternidade.
143
Extraído do tópico “Aborto!”, da comunidade do Orkut “Direitos humanos para humanos direitos”.
frequência na interpelação dos sujeitos do Orkut, devido ao sentido de inerência dos direitos
humanos, entendemos que é o diálogo entre as duas formações discursivas que possibilita os
sentidos hegemônicos na comunidade virtual.
145
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
afirmação dos grupos sociais minoritários, como os negros e as mulheres. Assim, em uma
tentativa de fazer do sujeito um ser jurídico, condizente com a pós-modernidade, é constituída
uma forma única de se ser humano e, com isso, as manifestações que se afastam do modelo-
padrão comportamental traçado são destituídas de humanidade e, assim, dos direitos
humanos. Com isso, queremos afirmar que, para significar os direitos humanos, é importante
para os internautas a definição de quem eles são, pois os referidos direitos podem ser a única
forma de resgatar a humanidade dos indivíduos e, portanto, da sociedade.
Ademais, a inexistência, na comunidade virtual analisada, de tópicos que discutam a
tipologia de direitos humanos indica que essa categoria configura-se como uma reafirmação
do local social almejado pelos internautas: cidadão. Dessa forma, os direitos humanos são
atribuídos apenas aos humanos direitos, pois a cidadania exige não apenas o gozo de direitos,
mas, sobretudo em nossa sociedade, a realização de deveres. É por isso, por exemplo, que
elementos destacados como demonstração genuína da cidadania e da democracia em pleno
século XXI ainda funcionam como obrigação, ou seja, através da figura deôntica do dever,
como o direito ao voto. Assim, vemos que os direitos humanos são configurados como
deveres humanos e, a posteriori, convertem-se, ou melhor, podem converter-se em „direito‟.
Dessa maneira, os humanos direitos são os „escolhidos‟ por constituírem “o” grupo capaz de
estabelecer essa conversão.
Com vistas ao que foi possível depreender dos discursos emergidos na comunidade
virtual analisada, esperamos ter contribuído para as discussões que tentam estabelecer se os
direitos humanos constituem-se em disciplina jurídica. Para isso, acreditamos que as
significações sobre tais direitos no Orkut possam indicar um caminho, já que se configuram
como sentidos que circulam na sociedade, ampliando a instância jurídica, interpretando o
direito não apenas como a norma produzida por um grupo específico, mas como sentido que
estabelece o modus vivendi na sociedade. Como consequência, entendemos que as discussões
sobre DH no Orkut contribuam também para a ampliação da noção de sujeito jurídico, tão
cara ao Estado de direito, no qual, pelo menos do ponto de vista teórico, vivemos, em
oposição ao antigo Estado de nascimento. Dessa forma, o sujeito jurídico não é apenas aquele
ser dotado de direitos e deveres, mas também aquele que reflete sobre sua condição jurídica e
política, e atua para que suas significações sobre o direito não sejam interpretadas como
meros devaneios de um sujeito pseudo-consciente, mas sejam entendidas como possibilidade
a ser analisada pela coletividade.
Esperamos ter colaborado também para que a percepção do site de relacionamentos
Orkut não seja mais vinculada apenas a posicionamentos que o interpretam como espaço de
147
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