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Quero falar-lhe hoje [...] da ironia. Não se deixe dominar por ela,
sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se
dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela
também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se
familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para
objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o
âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que
à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas
deriva de uma necessidade de seu ser. Sob a influência das coisas graves, com
efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional)
ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento
sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com que o senhor deverá moldar
a sua arte.
Viareggio, perto de Pisa (Itália), 23 de abril de 1903.
Deixe-me fazer-lhe aqui um pedido: leia o menos possível trabalhos de
estética e crítica. Ou são opiniões partidárias petrificadas e tornadas sem
sentido em sua rigidez morta, ou hábeis jogos de palavras inspiradas hoje numa
opinião, amanhã noutra. As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as
pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e
manter e mostrar-se justo com elas. É sempre a si mesmo e a seu sentimento que
deve dar razão contra toda explanação, comentário ou introdução dessa
espécie. Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural de sua vida interior
há de conduzi-lo devagar, e com o tempo, a outra compreensão. [...] Deixe
amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do
inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada
germe de sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora
do parto de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na compreensão
e na criação.