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Copyright © by Aparecido Francisco dos Reis

Vivian da Veiga Silva (organizadores)

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Coordenação Editorial
Valter Jeronymo

Assistente de Coordenação
Raquel de Souza

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Os próprios autores

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Reis, Aparecido Francisco dos


Silva, Vivian da Veiga

IV Simpósio de Gênero e Sexualidade - Gêneros, Sexualidades e Conservadoris-


mos: a Política dos Corpos, os Sujeitos e a Disputa pela Hegemonia dos Sentidos
Culturais – Artigos Apresentados nos Grupos de Trabalho / Aparecido Francisco
dos Reis e Vivian da Veiga Silva (orgs.)– Campo Grande, MS: Life Editora, 2019.
720p. : il. : 23 cm
ISBN 978-85-8150-642-5
1. Gênero e Sexualidade 2. Sentidos Culturais I. Título
CDD - 370

Proibida a reprodução total ou parcial, sejam quais forem os meios


ou sistemas, sem prévia autorização dos autores e organizadores.
Organizadores do e-book: Aparecido Francisco dos Reis (FACH/UFMS);
Vivian da Veiga Silva (CPAN/UFMS)

Comissão Organizadora do IV SIGESEX: Aparecido Francisco dos Reis


(FACH/UFMS); Ana Maria Gomes (FACH/UFMS); Daniel Teruya
(UFMS); Flávio Adriano Nantes Nunes (FAALC/UFMS); Keith Diego
Kurashige; Vivian da Veiga Silva (CPAN/UFMS)

Comitê Científico do IV SIGESEX e do e-book: Daniel Estevão de


Miranda (FACH/UFMS); Jacy Correa Curado (FACH/UFMS); Jaqueline
Aparecida Martins Zarbato (FACH/UFMS); Cleyton Zóia Munchow
(IFMS Dourados); Tassio Acosta (UNICAMP); Jaqueline Aparecida Martins
Zarbato (FACH/UFMS); Adriana Aparecida Pinto (UFGD); Losandro
Antonio Tedeschi (UFGD); Kaoana Sopelsa (UFGD); Jacy Correa Curado
(FACH/UFMS); Maria Rosana Rodrigues Pinto Gama (Casa da Mulher
Brasileira); Demóstenes Dantas Vieira (UFPE); José Anchieta de Souza Filho
(UERN); Dyego de Oliveira Arruda (CEFET/RJ); Gabriel Luis Pereira
Nolasco (IBISS/CO); Luiz Cláudio de Almeida Teodoro (CEFET/MG);
Romilda Sérgia de Oliveira (Unimontes); Esmael Alves de Oliveira (UFGD);
Diógenes Cariaga (UFSC); Luciana Codognoto da Silva (UFMS); Fernanda
Reis (UFGD); Cláudia Regina Nichnig (UFGD); Paula Faustino Sampaio
(UFMT); Simone Becker (UFGD); Greciane Martins de Oliveira (IBISS/
CO); Maria Eduarda Parizan Checa (PUC-SP); Rayane Bartolini Macedo;
Zaira de Andrade Lopes (FACH/UFMS); Renato Martins de Lima (UFMS);
Regi Morais Pereira (UFMS); Flávio Adriano Nantes (FAALC/UFMS)
Apresentação

O presente e-book é resultado das apresentações de trabalho realizadas


nos Grupos de Trabalhos desenvolvidos durante o IV SIGESEX. Contamos
nessa edição com 13 Grupos de Trabalho, coordenados por professores e
pesquisadores de universidades do Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, além
de atingirmos o expressivo número de 160 trabalhos inscritos e 65 artigos
aprovados para compor o e-book, que abrangem as temáticas de gênero e
sexualidade, feminismos, história das mulheres, gênero e memória, teoria
queer, interseccionalidade, marcadores sociais, violência e artes.
O IV SIGESEX, realizado no período de 22 a 24 de maio de 2019,
teve como tema “Gêneros, sexualidades e conservadorismos: a política do
corpos, os sujeitos e a disputa pela hegemonia dos sentidos culturais”, tendo
como objetivo discutir e refletir acerca do avanço do conservadorismo, suas
decorrências no campo dos estudos de gênero e da sexualidade e as novas
possibilidades de arranjos políticos e institucionais que organizam no mundo
contemporâneo. Foram realizadas conferências, palestras, grupos de trabalho
e minicursos.
O evento é uma realização dos grupos de pesquisa Laboratório de Estudos
da Violência, Gênero e Sexualidade (LEVS/UFMS) e Núcleo de Estudos de
Gênero (NEG/UFMS). Nessa edição contamos com o financiamento do
CNPq e o com o apoio da Cátedra UNESCO/UFGD “Diversidade Cultural,
Gênero e Fronteiras” e o GT de Gênero da ANPUH/MS.
Sumário

11 - OS OPOSTOS NÃO SE ATRAEM: UM ESTUDO DE CASO SOBRE


OS USÚARIOS DO BATE-PAPO UOL (Emili Sabrina Ribeiro Silva)

20 - PERCURSOS INICIAIS DE UMA PESQUISA EM ANDAMENTO:


LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO REFERENTE À PRODUÇÃO
ACADÊMICA SOBRE A PRÁTICA DE SEXTING (Tassio Acosta)

34 - NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES E ESCOLA: A BUSCA


POR UMA ESCOLA MENOS EXCLUDENTE (Deborah Bem Borges;
Giovanna Bem Borges)

48 - REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NO CINEMA HISTÓRICO NA-


CIONAL: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA COLONIAL BRASILEI-
RA NO ENSINO DE HISTÓRIA (Maristela Carneiro)

61 - A INVISIBILIDADE FEMININA NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA


REGIONAL – OS ELEMENTOS PATRIMONIAIS E IMAGENS DO
MUSEU JOSÉ ANTÔNIO PEREIRA (Silvia Ayabe)

74 - EDUCAR PELO PATRIMÔNIO MUSEOLÓGICO: DIFERENTES


PERSPECTIVAS ALÉM DA HISTÓRIA OFICIAL (Victor P. Prado)

89 - O JORNAL DA MULHER E AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO


(Lídia Kellen Brito dos Santos)

101 - A MULHER COMO “SUJEITA” DE DIREITO: FORMA SINGULAR


E CLASSISTA DE RECONHECIMENTO (Edna Aparecida Ferreira
Benedicto)

113 - A ARTICULAÇÃO DAS MULHERES NO PROCESSO DE ABERTU-


RA POLÍTICA ATRAVÉS DA IMPRENSA (Michele Pereira Sousa)

121 - MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ATEN-


DIDAS NA PRIMEIRA VARA DE MEDIDAS PROTETIVAS DO PAÍS
(Vanessa Vieira)

132 - A DIMENSÃO PEDAGÓGICA DOS ESTUDOS QUEER (Anelize


Castedo França; Luíz Antonio Bitante Fernandes)
141 - DIVERSIDADE SEXUAL E TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:
DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE MORAL CRISTÃ, TEORIA QUEER
E OPÇÃO PREFERENCIAL (Michel Eriton Quintas)

152 - SEXUALIDADE (S): UMA QUESTÃO PÚBLICA (Carlos Igor de Oli-


veira; Dayana de Oliveira Arruda)

161 - A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS COMO DISPOSITIVOS


DE ENFRENTAMENTO SOBRE A VIDA: PROBLEMATIZAÇÕES
EM FOUCAULT (Carlos Igor de Oliveira; Dayana de Oliveira Arruda)

173 - O PÂNICO MORAL NO BRASIL: A “IDEOLOGIA DE GÊNERO” E O


PLANO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO PARANÁ (Karina Veiga Mottin)

185 - MEU CORPO É POLÍTICO: UMA ANÁLISE SOBRE A POLÍTICA


DO NOME SOCIAL DA UFSC (Keo Silva)

196 - AS ARTES CÊNICAS NA SALA DE AULA: O EU, O OUTRO E O NÓS


– A DIFERENÇA QUE INCLUI O DIFERENTE (Leonardo Arruda
Calixto; Lucilene Soares da Costa)

206 - EM TEMPOS DE “IDEOLOGIA DE GÊNERO”, O NEPGS COMO ES-


PAÇO INSTITUCIONAL PARA ABORDAR ESTUDOS DE GÊNERO
NA ESCOLA (Olivia Pereira Tavares)

217 - AS CONSEQUÊNCIAS DA FALTA DE IGUALDADE DE GÊNERO


NO ACESSO À ÁGUA POTÁVEL (Alexssandra Matilde Resende Rosa;
Vera Lúcia de Miranda Guarda; Kerley dos Santos Alves; Deilton Ribei-
ro Brasil; Mie Hangai Costa)

230 - A ESCOLA E A PEDAGOGIA DO ARMÁRIO: RONDAM CORPOS,


DECEPAM LÍNGUAS, PRENDEM ALMAS.... (Eduardo Mariano da
Silva; Angela Guida)

239 - PROSTITUIÇÃO E MARGINALIDADE NO BRASIL: UMA ANÁLISE DAS


APROPRIAÇÕES POLÍTICAS DA CATEGORIA “PUTA” (Karla Ignes Luna)

250 - MULHERES NA CIÊNCIA: A IMPORTÂNCIA DE CAROLINA BORI


PARA A PSICOLOGIA NO BRASIL (Karolaine Santos Deleprani Sil-
veira; Maisa Barbosa da Silva Cordeiro)
262 - FEMINISMOS, INTERSECCIONALIDADE E CONSTRUÇÃO DE
DIÁLOGOS EM REDE: COMUNICAÇÃO FEMINISTA EM VOZES,
VEZES E VIÉSES (Leticia de Faria Ávila Santos)

274 - A VIDA É MINHA, O CORPO É MEU: ANÁLISE SOBRE A AUTO-


NOMIA REPRODUTIVA DA MULHER E A INTERVENÇÃO DO ES-
TADO (Mirella Lacerda Teixeira de Souza)

285 - A QUESTÃO DE GÊNERO NOS INTRAMUROS DAS AULAS DE


MATEMÁTICA (Yasmin Cartaxo Lima; Elenilton Vieira Godoy; Fer-
nanda Dartora Musha)

295 - MULHER TRANSEXUAL E NEGRA: VOZ EXCLUÍDA (Antonio Ger-


mano)

303 - A REPRESENTAÇÃO FEMININA SOB O OLHAR MASCULINO NA


SITCOM EVERYBODY HATES CHRIS (Bruna Loreny de Oliveira)

316 - DIFERENÇAS NO AMBIENTE ESCOLAR: EXPERIÊNCIAS CON-


TEMPORÂNEAS DE JOVENS DISSIDENTES DE GÊNERO E SEX-
UALIDADE NAS ESCOLAS DE MATO GROSSO DO SUL (Fabrício
Pupo Antunes; Tiago Duque)

329 - “VOCÊ É TRAVESTI, VOCÊ É HOMOSSEXUAL, DE DIA TRABALHA


E DE NOITE FAZ PROGRAMA”: REPRESENTAÇÕES TRAVESTIS NO
JUDICIÁRIO BAIANO DE 2007 A 2017 (Joalisson Oliveira Araújo)

340 - CORPOS DA SARJETA: TRAVESTILIDADES, ESPACIALIDADES


EM MOVIMENTO COM MC LINN DA QUEBRADA (Luiz Felipe
Rodrigues; Dalila Tavares Garcia; Joselaine Dias de Lima Silva; Rob-
erto Carlos Correia e Silva)

352 - MOVIMENTO LGBT NA PLURALIDADE DO MOVIMENTO SEM


TERRA (Marco Aurélio de Almeida Soares)

362 - GRAFISMO BOE BORORO: REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS A


PARTIR DAS PERFORMANCES DE GÊNERO (Neiimar Leandro Kiga)

373 - RACISMO (DES)VELADO (Tatiana Teixeira de Siqueira Ribeiro; An-


ita Guazzeli Bernardes)
383 - AS DESCENDENTES DE LÍDIA: ATIVIDADE CRIADORA E EMANCI-
PAÇÃO DA MULHER (Kimberly Weiss Calves; Vera Lúcia Penzo Fernandes)

393 - PSICOLOGIA E TRAJETIVIDADES FEMININAS (Luciana Codog-


noto da Silva)

400 - A PERFORMANCE COMO UM ATO POLÍTICO: A POTENCIALI-


DADE DA ARTE PARA O EMPODERAMENTO FEMININO (Venise
Paschoal de Melo)

413 - MULHERES TRANSEXUAIS E TRAVESTIS NO CÁRCERE: ENTRE


VIOLÊNCIAS E RESISTÊNCIAS (Ana Carolina Santana Moreira)

423 - QUANDO O PARENTESCO ENCONTRA RESISTÊNCIAS: FAMÍL-


IAS HOMOPARENTAIS NO BRASIL ATUAL (Anna Carolina Horst-
mann Amorim)

434 - MULHERES MIGRANTES NO PRESENTE: VIOLÊNCIAS, GÊNERO


E AGENDAS FEMINISTAS (Claudia Nichnig)

446 - LEVANTAMENTO DE DADOS ACERCA DA VIOLÊNCIA DE


GÊNERO (Katia Rosana Hernandes)

456 - O ESTUPRO CORRETIVO DE MULHERES LÉSBICAS: A “COR-


REÇÃO” MOTIVADA PELA LESBOFOBIA NA CONTEMPORA-
NEIDADE (2008-2018) (Kleire Anny Pires de Souza)

469 - TRANSFOBIA - UM ESTUDO DA VIOLÊNCIA ATRAVÉS DO CASO


DE DANDARA DOS SANTOS (Larissa Gabrielle Rabelo da Silva)

478 - RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS GÊNEROS: RAÍZES DA VIO-


LÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHERES (Michel-
le Moraes Santos; Luis Antonio Bitante Fernandes)

488 - UMA REFLEXÃO SOBRE MULHERES EM SITUAÇÃO DE SUBAL-


TERNIDADE A PARTIR DE “AS TIAS” E “COMO TE EXTRAÑO,
CLARA” (Roberto Carlos Correia e Silva; Luis Felipe Rodrigues)

498 - REPRESSÃO SEXUAL E VIOLÊNCIA CONTRA HOMOSSEXUAIS


NA DITADURA BRASILEIRA (Thiago de Souza Bobeda)
509 - O ESTADO PROIBICIONISTA E A (RE)EXISTÊNCIA ATIVISTA
(Nathalia Eberhardt Ziolkowski; Greciane Martins de Oliveira)

519 - DESEJOS NÃO DICOTÔMICOS: (BI)SEXUALIDADE E POSSIBILI-


DADES PARA ALÉM DA LÓGICA BINÁRIA (Helena Motta Monaco)

527 - “QUANDO A MORTE É ALGUÉM”: A NECROPOLÍTICA E O


PODER DOS CORPOS QUEER (João Victor Rossi; Simone Becker)

539 - O CU MANIFESTO: POR CUS QUE NÃO SIRVAM SOMENTE À


PRIVADA (Patrick de Almeida Trindade Braga; Tui Boaventura Stu-
minski)

551 - INTERPRETANDO A “IDEOLOGIA DO GÊNERO”: REFLEXÕES


COM E A PARTIR DE RICOEUR (Rafael Zanata Albertini)

563 - ERÓTICA MASCULINA (Adailson Moreira)

577 - O DISCURSO SOBRE OS PAPEIS SOCIAIS DOS GÊNEROS MAS-


CULINO E FEMININO APRESENTADOS NO LIVRO DIDÁTICO
(Angelica da Silva Terra)

590 - OS DISCURSOS MASCULINISTAS E A SEXUALIDADE DO


HOMEM NA REVISTA PLAYBOY (Douglas Josiel Volks)

601 - SOB O MEDO E A REJEIÇÃO: UMA BREVE REFLEXÃO ACERCA


DA IDENTIDADE(S) HOMOSSEXUAL (Helena Vicentini Julião; Na-
yara Hakime Dutra Oliveira)

610 - POLÍTICAS DO CORPO: TRANSIÇÃO DE GÊNERO E BIOTECNO-
LOGIAS (Júlia Arruda da Fonseca Palmiere; Anita Guazzelli Bernardes;
Camilla Fernandes Marques; Giovanna Liz Oliveira Mantovani)

621 - DEMARCANDO CORPOS E IDENTIDADES DE GÊNERO: O UNI-


FORME ESCOLAR PARA ALÉM DAS SUAS FUNÇÕES PRIMÁRIAS
DE SEGURANÇA E IGUALDADE (Mariani Viegas da Rocha)

631 - REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE DOCENTES SOBRE AS


RELAÇÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADE E A CURA GAY (Lucas
de Lima Gonçalves; Ludmily Diaz Soares da Cruz; Mary Lucia Sargi
do Nascimento; Natália Freitas Alves Ribeiro; Zaíra de Andrade Lopes)
642 - CONSTITUIR-SE PSICÓLOGA/O: AS RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXU-
ALIDADE NO PROCESSO DE FORMAÇÃO (Rebeca de Lima Pompilio;
Zaíra de Andrade Lopes)

652 - NOVO HOMEM, VELHA ESTATÍSTICA: DESAFIOS PARA A REDUÇÃO


DO FEMINICÍDIO NO BRASIL (Renato Martins de Lima; Zaíra de An-
drade Lopes)

664 - GÊNERO E SEXUALIDADE: A CONSTITUIÇÃO CULTURAL DO COR-


PO E IDENTIDADE (Zaíra de Andrade Lopes; Regi Morais Pereira; Renato
Martins de Lima)

675 - CENSURA À ARTE: UMA LEITURA MUSEOGRÁFICA DA EXPOSIÇÃO


CADAFALSO DA ARTISTA VISUAL ALESSANDRA CUNHA, A ROPRE
(Caciano Silva Lima)

684 - O TEXTO DRAMÁTICO COMO LUTA DE GÊNERO: PODER E RE-


PRESSÃO EM A DANÇA FINAL, DE PLÍNIO MARCOS (Ivanildo José da
Silva)

693 - TRANSFORMA-SE NA “SUPER PRINCESA PANTANEIRA”! (Leonardo


Arruda Calixto; Lucilene Soares da Costa)

702 - MULHERES, DEUSAS E MITOLOGIA: ANÁLISE SOBRE OS CONTOS E


A CONSTRUÇÃO DO PAPEL SOCIAL DA MULHER (Mirella Laerca Tei-
xeira de Souza)

711 - A METAMORFOSE DO CORPO HOMOSSEXUAL AO “SAIR DO


ARMÁRIO” (Vinícius Gonçalves dos Santos; Edgar Cézar Nolasco)
Os opostos não se atraem: um estudo de
caso sobre os usúarios do bate-papo UOL
Opposites do not attract: a case study on online
users of a chat service (bate-papo UOL)
Emili Sabrina Ribeiro Silva1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo principal exibir de forma inicial
os perfis e comportamentos dos usuários presentes nas salas do Bate-Papo UOL
que, por via de regra, desembocam em discursos e práticas sexuais, dentro ou
fora do ambiente virtual. Criando um panorama recente da apropriação das
tecnologias digitais para facilitar o contato e as relações humanas.
Palavras-Chave: Bate-Papo UOL. Discursos. Práticas sexuais.

Abstract: The main objective of this work is to preliminarily describe the


characteristics and behaviors of online users of a chat servisse (Bate-Papo UOL). Typically,
these online virtual interactions result in sexual discourses and practices, whitin and beyond
the virtual encounter. The present investigation summarizes a recent view on the use of digital
technologies to facilitate both the meeting of people and their relations.
Keywords: Chat Bate-Papo UOL. Discourse. Sexual behaviors.

Introdução

A Idade Contemporânea trouxe diversas mudanças estruturais para


a sociedade, contudo, é no século XX que as relações sociais ganham uma
ressignificação importante com o desenvolvimento das chamadas tecnologias de
comunicação e informação. Agora as relações humanas ganharam uma nova forma:
mais dinâmica, rápida e interativa. Nesse sentido, vem surgindo uma grande onda
de plataformas digitais de relacionamentos sociais que se apresentam como pontes
para aproximação dos indivíduos, independente da sua localização geográfica.
1. Acadêmica do curso de História da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) campus de Nova An-
dradina-MS. Trabalho realizado perante orientação da Professora Mestra, Maria Fernanda Reis, sendo parte de uma
pesquisa de trabalho de conclusão de curso. O principal objetivo deste trabalho é apresentar os dados relativos ao
perfil comportamental dos usuários do Bate-Papo UOL. UFMS/CPNA: Avenida Rosilene, Rua Eugenia Oliveira
Lima, nº 64, Bairro Universitário. CEP: 79750-000, Nova Andradina-MS. Telefone: (067) 3449-0500. Endereço
eletrônico: https://cpna.ufms.br/

Ebook IV SIGESEX 11
O Bate-Papo UOL foi criado em 28 de abril de 1996, sendo um dos
pioneiros da comunicação digital no Brasil e chegou a ser responsável pela
maior audiência do site UOL2, detendo 50% do total3 de acessos. O chat é
formado por diversas salas, divididas por temas e com acesso gratuito, sendo
necessário para a entrada apenas um nickname4 ou apelido, e a confirmação
de um código de segurança. Ativo até o presente momento, o chat conta
com usuários de diversas idades, gêneros, etnias, brasileiros e estrangeiros de
diversas regiões do globo terrestre. Essa diversidade de usuários faz do chat
um ambiente sociocultural amplo e fértil, possibilitando diversos tipos de
trocas de diálogos, experiências e informações entre os frequentadores desse
espaço cibernético.

1. Do método de pesquisa

Tratando-se de um ambiente socio-virtual existem algumas barreiras


ao tentar definir o tipo de perfil dos usuários que frequentam o chat,
levando em consideração a rapidez com que as pessoas entram e saem das
salas, a conexão de internet causar alguns inconvenientes fazendo com que o
usuário “caia”5 da sala, a diversidade do público, o grande número de acessos,
a presença de web robots6, entre outros. Senti então a necessidade de ser
direta na pesquisa e resolvi aplicar um questionário com os usuários para
descobrir quais motivos levaram-no a frequentar o chat e a maneira como
eles consolidam ali suas relações.
Delimitei então um número mínimo de 40 questionários respondidos
para fazer uma análise inicial desses perfis. Fui para campo no fim da noite
do dia 3 de março de 2019 e conclui com as 40 respostas na noite do dia 5
de março de 2019. Estando ali pelo único objetivo de coletar dados, resolvi
utilizar o nick “Pesquisadora”, a fim de não ser importunada com assuntos
dispersos e ser sucinta com os usuários que correspondessem com interesse de
participar do trabalho. Inicialmente entrei com a seguinte descrição:
2. Universo Online, conhecido pela sigla UOL, é uma empresa brasileira de conteúdo, produtos e serviços de Internet
do conglomerado Grupo Folha. Acesso em 27 de março de 2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Universo_Online
3. VIEIRA, 2003, p. 70.
4. Apelido. Usado para identificação de usuários na internet, em programas de bate-papo ou mensagem instantânea.
Acesso em 27 de março de 2019. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/nickname/
5. Quando acontece a perca de conexão com o chat os usuários costumam usar o termo “cai” ou “caiu” para definir
aquela situação.
6. É uma aplicação de software concebido para simular ações humanas repetidas vezes de maneira padrão, da mesma
forma como faria um robô. Acesso em 27 de março de 2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bot

12 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Olá pessoal, tudo bem? Sou estudante de História e estou fazendo uma
pesquisa para o meu trabalho de conclusão de curso que tem o tema central
sexualidade e que vai se especializar nas sexualidades digitais ou virtuais.
Nesse momento estou fazendo um trabalho de campo que cabe em coletar
dados através de questionários sobre o perfil e o comportamento dos usuá-
rios do Bate-Papo UOL. A colaboração de vocês é que tornará esse trabalho
possível de ser desenvolvido. Quem se disponibilizar de tempo (prometo
que será rápido) para responder as questões me chame no reservado. Obs:
As perguntas não buscam dados pessoais como nome, endereço ou algo do
gênero. Este trabalho é pessoal e seus dados serão utilizados exclusivamente
para atividades científico/acadêmicas e a empresa UOL não tem nenhum
vinculo com essa pesquisa, o chat é somente a fonte desse trabalho.

Durante minha presença nas salas percebi que essa forma de abordagem
pública não estava trazendo retorno e decidi conversar com cada usuário
individualmente, terminei com alguns questionários respondidos e algumas
rejeições na colaboração com o trabalho. No dia 4 de março de 2019 percebi
que entrar e esperar que os “curiosos” ou interessados me procurassem seria mais
assertivo e foi a partir desse método que obtive maior número de participações
na pesquisa. As perguntas foram respondidas no próprio chat com o intuito de
não fugir do ambiente e possibilitar ao usuário com questionário respondido
continuar procurando companhias virtuais. Alguns responderam na sala
pública no modo reservado e outros optaram pela sala reservada:

Imagem 1.1: Abordagem inicial em sala reservada.

Fonte: Captura de tela do momento da pesquisa.

Ebook IV SIGESEX 13
Imagem 1.2: Aplicação do questionário em sala pública no modo reservado

Fonte: Captura de tela do momento da pesquisa.

A necessidade de entrar em salas de temas distintos também foi


fundamental para chegar ao objetivo dessa pesquisa. As salas foram escolhidas
para atingir a maior diversidade de público possível e foram acessadas de
acordo com a disponibilidade de vagas: Idades - 30 a 40 anos (23)7; Idades - 40
a 50 anos (15); Papo Sério – Cultura - Filosofia; Sexo - por faixa etária - 18 a
20 anos (2); Papo Sério – Religião – Evangélicos (9); Amizade – Desabafo (4)
e Amizade – Amizade Virtual (19).

2. Os personagens do chat

O primeiro item determinante para analisar o perfil dos usuários foi o


sexo, que se encontrou dividido entre feminino e masculino para ser o mais o
objetivo possível e desta maneira não entrar na discussão de gênero, que será
desenvolvida em pesquisas à posterior. A conclusão desses dados foi de 97,5% de
homens e 2,5% de mulheres, que analisado por outra ótica nos traz o número de
uma mulher e trinta e nove homens. Perceptivelmente o número de homens que
frequentam o chat supera o de mulheres. Sendo um fenômeno interessante que
visualizei no segundo dia de pesquisa, quando em dado momento a sala de sexo
por faixa etária estava com o limite de 30 usuários e o único nick que sugeria ser
do sexo feminino, era o meu. Na tentativa de entender essa disparidade podemos
recorrer a várias justificativas que poderá nos levar a um consenso.
Frequentar o chat é essencial para fundamentar essa pesquisa e durante
longos meses o venho fazendo com olhar de pesquisadora. Notavelmente,
quando entra um nick feminino nas salas, os homens aparecem como formigas
correndo atrás de doce para então devorá-lo. Esse tipo de comportamento
demonstra um grau de desespero, como se a “presa” fosse difícil de ser encontrada
7. Os números que se encontram entre parênteses dizem respeito à sala acessada.

14 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


e vê-la aparecer os fazem partir imediatamente para a caça, estando dispostos
a usar toda sua criatividade para entusiasmar, e enfrentar seus concorrentes em
busca de atenção da tão extinta espécie.
As mulheres por sua vez se veem em meio a uma difícil situação, onde
a escolha errada poderá ocasionar em uma frustração e que, por vezes, faz
com que elas comecem a desenvolver diálogos com vários homens ao mesmo
tempo, em busca de no fim da labuta ter a sutil certeza de que decidiu pela
melhor opção. A grande insistência mediante a falta de reciprocidade feminina
sob a primeira abordagem masculina só comprova o quão rara é a presença da
mulher nesse ambiente e transforma a supremacia dos homens em uma linha
de frente de guerra, onde a grande quantidade de disparos é inevitável para as
maiores chances de atingir seu alvo.
Saber a idade é essencial para localizar socialmente esses usuários e essa
pesquisa inicial constatou a predominância de pessoas na faixa etária de 30 a 40
anos, sendo estes 50% do total, em seguida os de 20 a 30 anos compondo 30%
e, por fim, com 20% do total os de 40 a 50 anos. Levando em consideração o
ano de criação do Bate-Papo UOL, a maioria dos usuários (entre 30 e 50 anos)
puderam ter conhecido o chat logo no início de sua criação, continuando
com o uso até os dias atuais - como já pude perceber em alguns diálogos
estabelecidos com os usuários.
Se até a primeira metade do século XX casar jovem era tradição
popular – “pelas leis da Igreja, os rapazes podiam se casar aos catorze anos, e as
meninas, aos doze. Mas essa não era a regra. A maior parte dos jovens casava-
se aos 21, enquanto as parceiras teriam por volta de vinte8” - hoje percebemos
que os objetivos pessoais ganharam outra significação e, os estudos, a carreira
e as realizações pessoais estão entre os principais objetivos de uma pessoa. O
casamento ficou para depois. Em uma pesquisa recente, a EGM Multimídia
apontou que 53% dos brasileiros são declarados solteiros, destes, mais da metade
são jovens entre 13 e 29 anos. Além disso, 80% dos solteiros são internautas e
quase que a totalidade (97%) acessam redes sociais. Diante desse enfoque, qual
seria a maioria dos frequentadores do chat, solteiros ou em algum relacionamento
sério? Os dados desta pesquisa revelam que 67,5% estão sozinhos, sendo eles
solteiros ou separados/divorciados. Os formalmente casados totalizam 10% e os
que estão em algum tipo de relacionamento sério 22,5%.
Considerar o nível de escolaridade desses personagens do ciberespaço
fazia parte da base desse estudo, e foi nesse ponto que o campo me trouxe
8. DEL PRIORI, 2014, p. 24.

Ebook IV SIGESEX 15
uma inusitada surpresa. Fazendo parte do Ensino Básico, cinco participantes
tinham Ensino Médio completo e apenas um deles não completou totalmente.
Trinta e quatro participantes já se formaram no Ensino Superior e apenas sete
ainda estão cursando. Com Ensino Superior completo contabilizam 32,5%
dos usuários e com Pós-Graduação 35% deles. Mas, qual foi a inusitada
surpresa perante esses dados? Predominantemente esses personagens tem
Ensino Superior Completo (67,5%) e existe uma causa para esse fenômeno
vindo em minha direção. Na Física a Lei de Coulomb diz que os corpos
com cargas iguais se repelem e os corpos com cargas diferentes se atraem,
a famosa máxima de que os opostos se atraem. Contudo, já é sabido que
na prática das relações humanas, pessoas diferentes não costumam conviver
muito bem, exceto quando existe um consenso de respeito entre elas. Nesse
sentido, pessoas parecidas tendem a se relacionar com maior facilidade.
Mas o que teria a ver essa ideia com o resultado da pesquisa? Pois bem, vou
fundamentar esse fenômeno.
Partindo da ideia acima exemplificada, o grande número de
participantes com nível superior de instrução aceitando ou procurando
responder o questionário demonstra claramente uma identificação com a
minha personagem apresentada no chat, “Pesquisadora”. Essas pessoas por
certo sabem da importância de pesquisas científicas, da dificuldade de tornar
possível a conclusão de um trabalho acadêmico e, provavelmente já passaram
por essa situação, usando agora de empatia para contribuir com minha
tarefa. Esse grau de afinidade, por vezes, foi tão grande, que alguns pediram
informações sobre onde seriam publicados os resultados, indicaram livros e
fizeram alguns apontamentos sobre a minha investigação. Outros chegaram
a pedir para manter contato comigo, demonstrando tamanha curiosidade e
empolgação pela pesquisa e a área em que ela é desenvolvida.
Entre os motivos que levam essas pessoas a acessarem as salas de bate-
papo, 60% delas declararam ser por solidão ou tédio, a mesma porcentagem
com o intuito de conversar ou se distrair e 65% em busca de um parceiro sexual
ou amoroso. Ou seja, mais da metade deles seja por solidão, tédio, distração,
busca de companhia, parceiro sexual ou amoroso, entram sempre tentando
preencher espaços vazios, assim por dizer. Por que essas pessoas transportaram
para o meio digital a função de serem felizes, ocupadas ou satisfeitas?
Zygmunt Bauman debruça-se sobre os estudos da modernidade líquida e
tem trabalhos significativos nessa temática, um deles intitulado Amor Líquido.
Nessa obra, o autor atribui as ressignificações que o amor sofreu ao longo de

16 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


processos como a globalização, o capitalismo, o desenvolvimento das tecnologias
da informação e comunicação, entre outros. Os “padrões foram baixados”, é assim
que ele se refere ao amor, e isso chegou ao ponto de se tornar líquido e dessa
forma, adaptável ao ambiente em que se encontra e aos interesses que lhe cabem:

E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o pro-


duto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instan-
tânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testa-
das, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de
aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja
ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa”
à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo
todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço
sem suor e resultados sem esforço. (BAUMAN, 2004, p. 21-22)

Seria através dessa ideia de produto que o sujeito terceiriza suas


funções e faz do chat uma válvula de escape dos momentos ruins, estressantes,
entediantes e solitários, insatisfeitos e ansiosos, gulosos por deleites infinitos.
Dos quarenta personagens apenas 30% acreditam que no fim todos os
usuários estão ali procurando falar sobre sexo ou fazer sexo virtual. Isso revela
uma percepção interessante por parte dos respondentes, já que de forma densa
existe um discurso sexual predominante no Bate-Papo UOL como um todo,
por parte dos usuários, e a maioria negarem que o interesse final das pessoas
ali é falar sobre sexo ou fazer sexo virtual, abre a janela para diversas outras
possibilidades de acesso, dentre elas algumas já destacadas aqui. Apesar da
negação do interesse sexual por parte dos outros participantes, mais da metade
(55%) dos usuários que participaram da pesquisa informaram usar o chat para
falar de fetiches, desejos proibidos e peculiaridades sexuais, além disso, 80%
deles dizem não utilizar outros sites ou aplicativos em busca de sexo.
Um dos mais importantes nomes quando se trata de sexualidade humana
é Michel Foucault - ele que discorre sobre o tema em sua trilogia - apontando
relações entre o “poder-saber-prazer”. Para ele, a repressão secular sobre o sexo
teve resposta inversa naqueles que tinham sua sexualidade reprimida. Evitar
falar sobre sexo, falar em lugares específicos e por figuras sociais específicas,
reduzi-lo à procriação, torna-lo sujo e perigoso, delimitar suas normalidades e
patologias, fez com que a vontade de saber, poder falar e fazer, e por ele e com
ele sentir prazer, só aumentassem, de forma que de tanto apertá-lo, ele acabou

Ebook IV SIGESEX 17
transbordando por todos os lados. Desde a sexualidade das crianças até a dos
loucos, de toda forma tentou-se controlar, catalogar, reprimir, limitar e punir
o sexo, mas falar dele e sobre ele era tão tentador que causava no ouvinte prazer
em ouvir e esse é um fenômeno paralelo a este ponto da pesquisa.
Ainda segundo Foucault - em seu volume A vontade do saber - a sociedade
ocidental ficou condicionada a confissão, ela apenas mudou seus espaços de fala
e interpretação, saindo do confessionário, para as clínicas médicas, consultórios
psiquiátricos e psicológicos e hoje, eu diria, tomando espaço nas plataformas de
relacionamentos sociais. Os “hábitos solitários” citados por Foucault tomam
ressignificações e isso fica comprovado através do fato de esses usuários preferirem
entrar no jogo da caça em busca de um parceiro, à pesquisa direta de seu desejo
em um site de pornografia. Ele não quer mais que sua masturbação seja um ato
solitário, mas que a solidão de outro alguém se junte à dele e dessa forma se anule
através do sexo virtual, causando a falsa sensação de parceria, troca e afeto.
Esse encontro sexual virtual por vezes ocasiona no desejo de um encontro
real – não necessariamente precisa existir o uso da webcam9, o próprio diálogo
desperta desejos sexuais instintivos nos usuários – e isso fica claro na afirmação
de 85% dos usuários, ao confirmarem que teriam um encontro real com alguém
que conheceram no chat. Sendo que, 57,5% dos respondentes não se sentem
confortáveis em ficar nu na frente da webcam e nem para mandar nudes10. Esse
prazer encontrado no discurso sexual faz com que “a intensidade da confissão
relança a curiosidade do questionário” e aura da curiosidade, da confissão, do
prazer, do saber e do poder permeia todo clima do chat, fazendo com que aquele
ambiente seja terreno fértil para encontros de sexualidades periféricas, sexualidades
novas, que encontram sua satisfação no meio virtual das salas de bate-papo.

Conclusões parciais

Como meio de fuga social o Bate-Papo UOL serve para preencher vazios
existentes em todo e cada usuário, que ali se encontram basicamente com os
mesmos objetivos e, que por via de regra, desembocam em algo satisfatório.
O sexo sempre surge em algum momento da conversa e mesmo que esse não
9. É uma câmera de vídeo digital conectada a um computador e é capaz de capturar vídeos, fotos e transmiti-los pela
internet. Acesso em 02 de maio de 2019. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/webcam/
10. Nudes vem do inglês “nude” que quer dizer: pelado, sem roupa, sem vestimento, etc. Então aqui no Brasil se
popularizou o “manda nudes” que é quando alguém está pedindo fotos sua pelada. Acesso em 27 de março de 2019.
Disponível em: https://www.qualeagiria.com.br/giria/nudes/

18 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


tenha sido o desejo inicial de busca, o prazer vindouro da confissão e da entrega
é quase inevitável. O sexo presente como discurso e prática banalizada aponta
novas formas de conceber desejos, relações e prazeres. Através dele e por ele
desencadeia-se o desejo do retorno ao chat na busca de “satisfação instantânea”,
por meio do que Bauman chama de impulso e que tem sua capacidade de
satisfação reduzida, se comparada ao desejo.
A metodologia aqui utilizada influenciou de maneira direta ou indireta
nos resultados, contudo, não cabe a este trabalho concluir nada de maneira
definitiva, mas sim fazer um panorama inicial do ambiente fértil em que se
encontram os personagens dessa pesquisa.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos,


tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

DEL PRIORI, Mary. Histórias e conversas de mulher. 2ª ed. São Paulo: Planeta,
2014.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber, tradução


de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3ª ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2015. Do original francês: Histoire de la Sexualité I: La
volonté de savoir.

VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da Internet no Brasil. Barueri, SP: Manole,


2003.

Ebook IV SIGESEX 19
Percursos iniciais de uma pesquisa em
andamento: levantamento bibliográfico
referente à produção acadêmica sobre a
prática de sexting
Initial steps of na ongoing research: bibliographic
search regarding the academic studies on sexting
Tássio Acosta11

RESUMO: O presente artigo realizou um levantamento bibliográfico


de produções acadêmicas sobre a temática de sexting nas plataformas SciELO,
Banco de Teses da Capes, CNPq e Google Scholar com o objetivo de conhecer
os conteúdos e discursos produzidos. Foi observada uma preocupação com
a forma como os adolescentes utilizam as mídias sociais e a necessidade da
promoção de políticas públicas de prevenção. Poucos artigos discutiram o fato
de que estes adolescentes são sujeitos de direito, e que o sexting é uma nova
forma de experenciarem e vivenciarem sua sexualidade.
PALAVRAS-CHAVE: sexting, revenge porn, sexualidade juvenil

ABSTRACT: This article carried out a bibliographic search regarding the academic
studies on the subject of sexting in the platforms SciELO, Banco de Teses da Capes (Capes’
Thesis Database), CNPq and Google Scholar with the aim of knowing the contents and
discourses produced. It was observed that concerns were raised about the uses adolescents
make of social media, as well as the need to promote public prevention policies. Few articles
have discussed the fact that these teenagers are subjects who have rights and that sexting is a
new way of experiencing and living their sexualities.
KEYWORDS: sexting, revenge porn, youthful sexuality

1. Docente do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus Registro, Doutorando em Educação (UNICAMP),
Mestre em Educação (UFSCar), Especialista em Ética, valores e cidadania na escola (USP), Historiador e Pedagogo.
Foi o coordenador deste Grupo de Trabalho (GT), intitulado “Sexualidades e sociabilidades em tempos digitais”, no
Simpósio de Gênero e Sexualidade (Sigesex): “Gêneros, sexualidades e conservadorismos: a política dos corpos, os
sujeitos e a disputa pela hegemonia dos sentidos culturais”, realizado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS). Contato: tassioacosta@gmail.com

20 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Introdução

O levantamento bibliográfico realizado nas bases de dados e bancos


de teses existentes no Brasil e no exterior são imprescindíveis para que
o início da pesquisa possa estar bem direcionado e o seu andamento
referenciado. Então, em um primeiro momento, a introdução discorrerá
exatamente sobre isto.
A plataforma SciELO exibe 9 resultados para artigos publicados com
o termo sexting em seus títulos, resumos e/ou palavras-chave: 3 chilenos
(OLATE, MALDONADO, 2015; PENCO, ALCÓN, 2016; CERÓN
[org.], 2018), 2 mexicanos (SOTO, 2014; AMIGO [org.], 2018), 1
colombiano (KAUR, 2014), 2 espanhóis (GÓMEZ, 2017; RUIDO [org],
2018) e 1 português (PEREIRA, MATOS, 2015).
A não ocorrência de resultados para pesquisas brasileiras com
o termo sexting em seus resumos, títulos e/ou palavras-chave não
significa a inexistência de produções acadêmicas que versem sobre a
temática, visto que consta na própria plataforma SciELO um artigo de
Nejm (2012), que parte de “dois fenômenos específicos (ciberbullying e
sexting) para discutir sobre a violação e promoção de direitos humanos
de crianças e adolescentes na internet e suas implicações na produção
das subjetividades.” (p. 258). Destaca-se ainda uma extensa produção
presente no Banco de Teses da Capes, de autoras como BARROS, 2014;
SOARES, 2014; SALIM, 2015; KLAS, 2016; FERREIRA, 2016;
MORAO, 2017; CARDOSO, 2017; MOURA, 2018; GOULART,
2018; SILVA, 2018. Existe ainda uma série de artigos publicados em
outros periódicos não catalogados na plataforma SciELO e em anais de
eventos acadêmicos.
Ao pensar na produção deste artigo sobre a prática do sexting (ou
“troca de nudes”, como eu prefiro chamar, pois dialoga melhor com a
nossa realidade informacional brasileira), foi necessário estruturá-la de
acordo com as produções acadêmicas dos países citados para que possamos
conhecer o que eles vêm pensando a respeito da temática e quais produções
de conhecimento estão realizando. Portanto, este artigo seguirá a mesma
ordem daqueles escritos nos países citados no segundo parágrafo, e a
produção acadêmica brasileira receberá uma atenção especial, por estar em
maior número quantitativo.

Ebook IV SIGESEX 21
1- Chile

Olate e Maldonado (2015) analisam como o uso das TICs se faz


presente na educação chilena por meio de capacitações profissionais para
os professores da educação básica instituídos a partir de políticas públicas
educacionais e também no uso diário por parte dos alunos que fazem uso
delas para entretenimento. A pesquisa foi realizada com um grupo de oitenta
alunos, com idades entre 12 e 13 anos, de uma escola chilena localizada em
uma região populosa da cidade, e buscou analisar “la percepción de riesgo de
este grupo vulnerable frente a peligros presentes em el uso de tecnologias de
la información” (p. 149). Pontuaram sete categorias principais existentes no
mau uso das TICs: cyberbullying, grooming, sexting, malware, uso abusivo,
risco à propriedade intelectual e acesso a conteúdos impróprios para menores
de 18 anos21. Concluíram que “el extendido uso de dispositivos portátiles y
móviles ha permitido la rápida propagación de los peligros antes mencionados,
disminuyendo la capacidad de controlar su propagación. (p. 164).”
Penco e Alcón (2016) reconhecem as crianças e jovens como “sujeitos de
direito” que devem ter a proteção necessária perante o uso das mídias digitais
e dos dados que venham a disponibilizar na internet por meio de atividades
habituais, como o compartilhamento de fotos e vídeos. Sua proposta consiste
na concepção de modos seguros para o uso destas redes frente aos diversos
perigos existentes na sua utilização por pessoas menores de idade. Os autores
se atentam aos diversos tratados normativos internacionais existentes, que
vão desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos até a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José, da Costa Rica.
Afirmam a importância da existência de “ciertas limitaciones de uso de las
redes sociales para salvaguardar el contenido del derecho fundamental a la
protección de datos” (p. 71), e que crianças e jovens talvez não “tengan todos
los elementos de juicio necesarios para comprender los peligros que le puede
reportar compartir sus opiniones, comentarios, datos o imágenes personales
en las redes sociales” (p. 76).
Quando se atentam ao fenômeno do sexting, Penco e Alcón (2016)
afirmam que “entre los más jóvenes es una conducta que tiene un importante
2. As sete categorias de análise versam, respectivamente, sobre i) a práticas de violência discursiva existente na inter-
net; ii) adultos que buscam tirar proveito sexual de menores de idade; iii) a troca de imagens e vídeos pornográficos
de si mesmo e de terceiros (pontuo que a troca de conteúdos pornográficos de terceiros não se conceitua em sexting,
mas sim em revenge porn ou “pornô da revanche”); iv) vírus que busca roubar dados contidos nos computadores; v)
dependência psicológica da utilização de internet; vi) produção de conteúdos sendo reutilizados sem o consentimen-
to e identificação de seus autores e vii) sites pornográficos e de violências de fácil acesso.

20 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


arraigo, ya que no son conscientes de los peligros que esta actuación les puede
suponer en un futuro.” – ainda que não tenham especificado qual idade
compreendem a categoria ‘mais jovens’. Após uma extensa análise legal sobre os
crimes existentes no compartilhamento de imagens pornográficas de menores
de idade, eles concluem que “desde las ópticas educativas y legislativas, aún está
casi todo por hacer, siendo necesario de todo punto sensibilizar a la sociedad,
y, por ende, a la doctrina y a los legisladores” (p. 89)
CERÓN [org.] (2018) partem do reconhecimento de que, cada vez mais,
os jovens constituem suas vidas concomitantemente ao uso das mídias sociais, e
que se faz necessária a investigação sobre a existência de cyberbullying, sexting e
grooming. A pesquisa foi realizada em 60 estabelecimentos de ensino chilenos
e contou com a participação de estudantes com idades entre 5 e 18 anos, sendo
4.790 homens e 8.136 mulheres. A idade média dos estudantes participantes
ficou entre 13,17 anos. Os resultados mostraram que a existência de grooming foi
a mais presente entre os participantes (incidência de 12,6%), tendo os homens
como principal destaque na prática (18% aproximadamente). Cerca de 10,6%
dos homens praticavam sexting. Em termos quantitativos, a referida pesquisa foi
a mais completa encontrada durante o levantamento bibliográfico da temática
de sexting, conforme podemos ver na tabela (Cerón [org.], 2018: p. 357) a seguir:

2- México

O primeiro artigo de origem mexicana identificado na plataforma


SciELO foi o da Soto (2014), que analisa exclusivamente a prática de

Ebook IV SIGESEX 21
sexting entre jovens, publicado na Revista Perinatología y reproducción
humana, voltada para médicos e profissionais da saúde que se interessem
sobre educação sexual e reprodutiva. Ela analisou 2 casos pelos quais foi
responsável como psicóloga: o primeiro foi sobre uma menina de 13 anos
de idade que compartilhou imagens suas com nudez exposta (nu total
frontal) para um menino da mesma escola pelo qual tinha desejos afetivos,
e foi expulsa da escola por esta razão (o estudo não evidenciou se o mesmo
ocorreu com o menino responsável pelos vazamentos). O segundo caso
foi o de uma menina que teve duas fotos vazadas (da cintura para baixo),
e que mantinha conversas de cunho sexual com outros seguidores de seu
Facebook, o que despertou a ira da mãe e fez com que esta a levasse para
a terapia psicológica. Afirmou que mantinha este tipo de conversas por
estar habituada a ver essa forma comunicacional nos sites pornográficos
que frequentava, algo que lhe chamava a atenção. Estes dois casos tinham
analisavam a relação familiar com as questões da sexualidade, a influência
religiosa e as questões de classes, como baixa escolaridade ou empregos
precários. Concluiu que “a largo plazo, las consecuencias de sufrir este tipo
de bullying pueden establecer el desarrollo de casos de estrés postraumático,
con síntomas psicosomáticos, depresión, ansiedad, ideación e intento
suicida, o promover dudas de identidad sexual.” (Soto, 2014: p. 220). A
forte presença da perspectiva biologizante do comportamento humano
ficou explícita ao longo da construção do referido artigo.
AMIGO [org.] (2018) focaram a pesquisa em jovens de 12 a 15 anos
residentes da cidade de Zacatecas, no México, abrangendo um total de 322
estudantes para a identificação de condutas de risco virtual, prática de sexting
e existência de grooming. Durante o artigo foi possível observar a preocupação
das autoras em contextualizar historicamente o período em que os jovens
participantes, de 12 a 15 anos, nasceram: “en la actualidad, los adolescentes han
nacido y crecido en circunstancias tecnológicas específicas, [...] influenciados
por la generación tecnológica, con nuevas herramientas emergentes, que les ha
tocado vivir” (p. 5). Ao categorizar como os jovens faziam uso de suas redes ,
93% afirmaram utilizarem como entretenimento, 4% para fins acadêmicos de
estudos e 3% para uso variado. Destes,

[...] 83% ha tenido algún tipo de ciberacoso, con una tendencia mayor
en el sexo femenino que en el masculino; además, el 81% ha recibido
algún material con connotación sexual; el 72% ha enviado material con

22 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


algún contenido sexual, con una tendencia mayor en las mujeres que
en los varones, como a su vez el 21% de ellos (del 72%) tiene acceso
a páginas de adultos (con una mayor tendencia en los varones que en
las mujeres). Finalmente, un 47% de la muestra estudiada ha recibido
propuestas por parte de desconocidos y solo el 2% de ellos se lo ha co-
municado a algún adulto (Amigo [org.], 2018: p. 14).

Percebe-se, portanto, que a maioria das meninas fez uso das redes sociais
para o envio de material pornográfico de prática fetichista exibicionista, como
no caso do sexting, enquanto meninos mostraram como tendência o acesso a
sites de conteúdo pornográfico previamente existentes.

3- Colômbia

O único artigo em língua inglesa identificado na plataforma SciELO


foi publicado na Colômbia e causou-me surpresa identificar que Kaur (2014)
é pós-doutora em relações policiais-comunitárias e policiamento comunitário
pelo Departamento de Justiça e Segurança Pública da Universidade de Auburn,
em Montgomery, Alabama, nos Estados Unidos da América.
Ela reconhece que “1 em cada 5 adolescentes, com idades entre 13 e 19
anos, enviou ou recebeu uma foto seminua ou nua, e que 15% dos remetentes
e destinatários se encontraram somente on-line” (Kaur, 2014: p. 264). O
estudo cita diversos outros dados indicando que este comportamento vem
crescendo entre adolescentes estadunidenses. Ao longo de seu artigo, ela
relata a preocupação de pesquisadores locais contra assediadores que vêm
produzindo uma série de violências sistematizadas por meio de “cyber-stalking,
cyber-bullying or cyber-harassment” (Kaur, 2014: p. 267).
Sua preocupação está claramente presente no fato de que muitos
adultos se aproveitam da pouca idade destas adolescentes para ter acesso aos
conteúdos imagéticos sensuais e sexuais, ao mesmo tempo que as leis locais
não diferenciam comportamentos pedófilos de adolescentes que produzem
materiais sensuais/pornográficos de si e enviam para amigos com quem
desenvolvem algum tipo de relacionamento (seja ele de confiança mútua,
afetivo e/ou sexual). Como exemplo, um caso citado de 2008 onde jovens
foram julgados pela lei da pornografia por trocarem conteúdos pornográficos
de si mesmos e entre si ou, então, um caso de seis alunas do ensino médio que
foram expulsas da escola e de outras três meninas que responderam processos

Ebook IV SIGESEX 23
por fabricação, disseminação e posse de material pornográfico.
Após um extenso debate sobre as questões locais, a autora traz uma série
de estudos que reconhece na prática como uma forma contemporânea de as
pessoas se relacionarem, inclusive afetando as condutas afetivo-sexuais, por
estarem inseridas em um mundo tecnológico e constantemente cercadas por
dispositivos que contribuem para tal.
Portanto, a forma para lidar com o problema não se dá unicamente
por vias legais que não estão preparadas para a prática de sexting entre jovens,
mas também por pais, professores e instituições de ensino, que precisam
assumir um papel de liderança na gestão deste problema. Continua ainda
que “aqueles com influência devem proporcionar aos jovens conscientização
adequada, supervisão de monitoramento e orientação para o uso responsável
e benéfico da tecnologia para evitar possíveis pesadelos ao longo da vida”, visto
que estas novas formas relacionais dificilmente serão coibidas por legislações
ultrapassadas e que incluem jovens praticantes de sexting na mesma categoria
que homens adultos pedófilos. Sendo as categorias distintas, as suas análises
também deverão sê-la.

4- Espanha

O primeiro artigo identificado produzido na Espanha foi de Gómez


(2017), professora do Departamento de Psicologia de Universidad de Almería,
e analisa as formas de bullying existentes na contemporaneidade, identificando
que quanto maior for a vulnerabilidade da pessoa, mais chances ela terá de
vivenciar situações que atentem contra o seu estado psíquico positivo, podendo
levá-la ao suicídio em casos extremos – mas não raros.
Ainda que a temática do sexting seja abordada muito rapidamente, em
apenas um momento ao longo de todo o texto, ela afirma que “la generalización
y el fácil acceso a estas nuevas formas de comunicación junto con la expansión
masiva de redes sociales como Facebook o WhatsApp permiten la difusión
vírica de contenidos vejatorios”. Pois, como muitos usuários se mantém no
anonimato, muitas formas de violências são praticadas pelos assediadores.
Ela conclui que se faz necessária a utilização das mais diversas
intervenções e ferramentas de combate para que as pessoas vitimadas por estes
violadores receber apoio para enfrentar a situação, ao mesmo tempo em que
alerta para a importância de políticas públicas específicas para as minorias
sociais – reconhecendo assim que, quanto mais expressiva for a sua situação de

24 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


precariedade, maior será a incidência de vulnerabilidade.
O segundo artigo foi escrito por quatro pesquisadoras (Ruido [et all.], p.
2018) da Universidad de Vigo, todas elas pertencente à Facultad de Ciéncias de
la Educación, que realizaram uma entrevista qualitativa com 89 adolescentes,
sendo 48 meninas e 41 meninos, de 14 a 18 anos, e divididas em grupos focais
para melhor facilitar a análise dos dados. As entrevistas duraram 50 minutos no
máximo e foram gravadas para facilitar a análise posterior dos dados, resultando
em quatro categorias principais: “(1) El conocimiento del fenómeno del sexting;
(2) Los comportamientos de sexting; (3) Las motivaciones hacia el sexting; y
(4) Las consecuencias de las prácticas de sexting.” (Ruido [et all.], 2018: p. 402).
Fenômeno até então bastante desconhecido para muitos participantes,
costumava ser confundido com formas de chantagem de uma pessoa com a
outra perante a existência de alguma foto comprometedora que pudesse
prejudicar algum eventual relacionamento afetivo. Inicialmente, apenas 20%
assumiram enviar fotos suas para terceiros, sem conteúdos sexuais explícitos,
apenas do decote, por exemplo. Ao mesmo tempo, muitos participantes
afirmaram receber diversas fotos de conteúdos sexuais. Ou seja, afirmam que
não têm o costume de enviar, mas têm o costume de receber.
Em dado momento, a pesquisa começou a identificar que há uma intensa
troca de imagens e vídeos entre os participantes (enquanto as meninas têm o
costume de enviar mais fotos, os meninos têm mais costume de enviar textos e
vídeos), com afirmação que muitos enviam as imagens recebidas para grupos de
WhatsApp – prática essa que não se enquadra mais na categoria de sexting, visto
que passa a ser um compartilhamento de conteúdos sensuais/pornográficos sem
a autorização da pessoa que a produziu. Ao mesmo, os participantes passaram a
confirmar a realização da prática com seus parceiros disseram conhecer pessoas
que foram chantageadas para o envio/recebimento deste tipo de conteúdo.
Em consonância com outras pesquisas desenvolvidas no mundo e
destacadas neste artigo, as autoras concluíram que a prática do sexting costuma
ocorrer paralelamente à existência de outros fenômenos: grooming, bullying e
cyberslacking (quando a pessoa fica na internet em horários destinados para a
escola e/ou trabalho).

5- Portugal

Desenvolvido por autoras da Escola de Psicologia, da Universidade


do Ninho, em Portugal, PEREIRA e MATOS (2015) realizam uma ampla

Ebook IV SIGESEX 25
discussão conceitual sobre cyberstalking e cyberbullying, e como estes dois
fenômenos vitimam adolescentes pelas mais diversas formas de assédio que, de
acordo com elas, ciberagressão, ciberassédio, spamming, sexting e cyberbullying
não podem ser categorizados como cyberstalking, visto que são violências
diversas, impossibilitando-as de colocar num único guarda-chuva conceitual.
Atentam ainda para o fato de que adolescentes costumam ser as maiores
vítimas desses tipos de violência, por estarem mais conectados e por estarem
criando suas relações de afeto e confiança para com outras pessoas. – mas que,
infelizmente, a maioria dos estudos se concentra na população universitária.
Compreendem a importância de estudar “sobre a vitimação online entre
os adolescentes e as suas implicações para a saúde e o bem-estar global dos
mesmos” (p. 59), visto que muito comumente os cyberstalkers costumam ser
ex-parceiros de suas vítimas, embora os violadores ramifiquem o assédio para
as mais diversas pessoas que despertem seu interesse. Abordam rapidamente
o sexting como forma de ataque destes violadores contra suas vítimas, sem se
debruçar conceitualmente sobre as suas ações e ocorrências.
Notaram a similaridade no modus operandi do stalking e do cyberstalking,
afirmando que o “cyberstalking poderá ser um modo complementar de
perseguir e intimidar no mundo real” (p. 65), e realizando a distinção entre
cyberstalking e cyberbullying: “o contexto, a relação entre perpetrador e alvo, a
posição hierárquica destes e a motivação do agressor.” (p. 65).

6- Brasil

A obtenção de maior quantidade de produções acadêmicas que versem


sobre a temática foi simplificada por se tratar de meu país nativo, facilitando
a identificação de bancos de teses da CAPES, CNPq, periódicos, etc. Nestas
pesquisas, foram verificadas as seguintes produções: BARROS, 2014; SOARES,
2014; SALIM, 2015; GUERRA, 2016; FERREIRA, 2016; MORAO, 2017;
CARDOSO, 2017; MOURA, 2018; GOULART, 2018; SILVA, 2018.
Estes estudos compartilham a preocupação com a forma como os jovens
utilizam as redes sociais e quais benefícios e prejuízos podem trazer para seu
futuro, visto que segundo seu entendimento, em virtude do imediatismo,
eles não medem as consequências que podem posteriormente derivar de seus
comportamentos. As publicações versam sobre as mais diversas áreas, como
Psicologia, Educação e Direito, e discutem também sobre as formas de violência
existentes nas práticas de sexting, bem como tudo o que está relacionado a elas.

26 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Ao reconhecer que estes adolescentes estão inseridos em um mundo
fortemente midiatizado e tecnológico, onde produzem sistematicamente
conteúdos por meio de aplicativos de celulares (que sempre têm as mãos),
afirmam ser importante a implementação de políticas que promovam o bom
uso destas tecnologias e que visem a prevenção de práticas consideradas
perigosas, como a ocorrência da exposição.
Ainda que cada vez mais os jovens brasileiros sejam influenciados
por estes conteúdos produzidos e presentes nos dispositivos de celular,
não podemos nos esquecer que ainda assim, eles são sujeitos de direito
e agentes de si. Ou seja, no tocante à proposição de políticas públicas
específicas de prevenção que busquem mitigar estas ocorrências, estas
nem sempre poderão atingir os objetivos esperados pois, de acordo com
Figueiredo (2015), há uma consciência dos riscos que correm ao consumar
seus desejos e suas práticas.

Considerações finais

O fato de estar familiarizado com os bancos de teses brasileiros como,


por exemplo, da CAPES, CNPQ, páginas de periódicos que publicam
artigos sobre as questões de gêneros e sexualidades na contemporaneidade,
etc., possibilitaram uma maior identificação de produções acadêmicas que
versassem sobre a temática do sexting – o que não quer dizer, obviamente,
que outros países não tenham uma vasta produção a respeito. Como definido
desde o nome do artigo, a intenção foi evidenciar os percursos iniciais de uma
pesquisa em andamento sobre o fenômeno de sexting a partir do que se obteve
na SciELO – com exceção do Brasil, conforme dito no início deste parágrafo.
Nos artigos analisados, foi possível perceber que as autoras se
preocuparam com o fato de que vivenciar o ambiente virtual pode não ser
positivo aos jovens, expondo-os a riscos de práticas sexuais potencialmente
perigosas, uma vez que ao praticarem sexting, sua nudez possa ser
disponibilizada para terceiros. Ao mesmo tempo, percebe-se que raramente
houve discussão sobre os direitos que estes jovens têm de vivenciar suas
sexualidades de forma segura, uma vez que não se identificou um debate
sobre as questões éticas para que isto ocorresse entre os jovens.
Ao reconhecermos que os jovens estão inseridos em um contexto
histórico muito específico - de já nascerem conectados e tendo suas vidas

Ebook IV SIGESEX 27
expostas nas redes sociais ainda na maternidade -, deve-se reconhecer que
as formas de vivenciarem seus corpos e sexualidade são diferentes, da mesma
maneira que ocorreu com outras práticas de outras épocas.
Foi observada a importância de que as produções acadêmicas futuras
debatam sobre como outras formas de exercer e vivenciar a sexualidade podem
trazer impactos significativos naquilo que compreendemos enquanto uso dos
prazeres e construções de existência ética entre os sujeitos.
Afirma-se, por fim, que a prática de sexting entre jovens não pode
ser confundida com a de adultos pedófilos, que buscam suprir seus
desejos perante os corpos de jovens menores de idade, que vivenciam a sua
sexualidade desta forma.

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maio de 2019

Ebook IV SIGESEX 33
Novas configurações familiares e escola: a
busca por uma escola menos excludente

New family configurations and school: the search


for a less exclusive school
Deborah Bem Borges11
Giovanna Bem Borges22

RESUMO: O ponto de partida dessa pesquisa foi a trajetória


das constituições familiares desde a Idade Média, destacando o papel
desempenhado pela mulher em cada cenário e como se estabeleceu a relação
dessas famílias com a escola. Nesse contexto, com o surgimento de novas
configurações familiares emerge uma nova temática a ser analisada na
perspectiva de uma escola menos excludente.
PALAVRAS-CHAVE: Família, Escola, Contemporaneidade.

ABSTRACT: The starting point of this research was the trajectory of family
constitutions since the Middle Ages, highlighting the role played by women in each scenario
and how the relationship of these families with the school was established. In this context,
with the emergence of new family configurations emerges a new theme to be analyzed from
the perspective of a less exclusive school.
KEYWORDS: Family, School, Contemporaneity

Introdução

A atualidade é marcada por uma série de mudanças do modo de pensar


e agir das pessoas. Assim, a sociedade e todos os meios de convívio social são
invadidos pela diversidade. Como não poderia deixar de ser, a constituição da
família também se diversificou.
1. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, pós-graduada em Psicopedagogia Clí-
nica e Institucional pela Universidade Candido Mendes, Psicomotricidade Clínica e Relacional e Atendimento Edu-
cacional Especializado pela Faculdade Única. Aluna especial do Programa de Mestrado em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul
2. Graduanda de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

34 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Dentre os meios de convívio social que são visitados por essas novas
configurações familiares, destaca-se a escola. Por isso, essa pesquisa tem como
objetivo investigar as percepções da escola diante das novas configurações
familiares, buscando revisar as transformações históricas ocorridas na família
com ênfase no papel que a mulher ocupa em cada cenário, bem como o que
são as novas configurações familiares e identificar como se dá, historicamente,
a relação entre família e escola.
A pesquisa de campo utilizou a abordagem qualitativa com pretensão
dialética. A técnica de coleta de dados usada foi a entrevista semiestruturada,
cuja população alvo foi composta por cinco profissionais que atuam na
Educação Básica, pertencentes à rede pública e privada do município de
Três Lagoas-MS.

1- A construção histórica da família

A produção da cultura advém do caráter histórico do ser humano e as


ações e pensamentos inerentes ao homem referem-se às experiências pessoais e
coletivas vivenciadas ao decorrer de sua trajetória histórica. Cada nova geração
recebe a herança cultural produzida no passado. Nesse sentido, para entender
a família é preciso compreendê-la, antes de tudo, como uma construção
histórica, cultural e social.
Em concordância com Araújo (1993), entende-se que o grupo familiar
“se constitui de formas diversas em situações e tempos diferentes para responder
às necessidades sociais. Sua estrutura e funções são determinadas pelo grau de
desenvolvimento da sociedade” (ARAÚJO, 1993, p.11).
Nesse sentido, o recorte histórico contido nesse estudo é feito a
partir da Idade Média, por considerar que é a partir desse período que são
estruturadas as bases da sociedade ocidental contemporânea. Compreendida
aproximadamente entre os séculos V a XV, a Idade Média é organizada por
uma hierarquização da sociedade, na qual os senhores feudais são os detentores
do poder e os camponeses são responsáveis pelo trabalho servil.
É durante o Antigo Regime Feudal que se encontra a família extensa/
aristocrática que habitava os castelos da aristocracia europeia. Representava
um agrupamento de 40 até mais de 200 pessoas, sendo que sua composição
era uma mistura de parentes. O convívio era orientado por uma excessiva
hierarquização e o lugar de cada um era delimitado por rígidas tradições
(POSTER, 1979).

Ebook IV SIGESEX 35
Por outro lado, a família camponesa apresentava uma estrutura bastante
diversa da família aristocrática. Os camponeses se casavam por volta dos trinta
anos e tinham entre quatro e cinco filhos. Como a taxa de mortalidade infantil
era muito elevada, poucas dessas crianças sobreviviam até a idade adulta.
Era possível encontrar na mesma residência até três gerações da mesma
família, sendo forte a proximidade com outros aldeões e parentes. De acordo
com Poster (1979 apud RODRIGUES; ABECHE, 2010, p. 376), “os laços de
dependência com a aldeia eram tão fortes que a sobrevivência não era possível
no nível da unidade familiar [...] as interações cotidianas envolviam toda a
aldeia ou grande parte dela”.
Salvo as diferenças entre os dois modelos, o relacionamento entre os
integrantes dessas famílias se apresentava de modo diverso do que se vivencia
na atualidade. O sentimento de afetividade com relação à criança, por exemplo,
não possuía os mesmos moldes da contemporaneidade. O valor dos filhos, de
modo geral, estava no interesse da perpetuação da linhagem. O intuito era
herdar e transmitir as riquezas da família.
Do mesmo modo, a função primordial da mulher estava em “dar filhos ao
grupo de homens que a acolhe, que a domina e que a vigia” (DUBY, 1989, p. 15).
Assim, por meio do casamento ela era introduzida em outro ambiente no qual
seu pai, irmãos e tios deixavam de ser responsáveis por ela e era subordinada a um
novo grupo de homens (marido, sogro, cunhados, entre outros).

Todos os homens que detêm algum direito sobre o patrimônio [...] con-
sideram [...] como seu direito principal casar os jovens e casá-los bens.
Ou seja, por um lado ceder as moças, negociar da melhor maneira pos-
sível seu poder de procriação e as vantagens que elas podem legar à sua
prole; por outro, ajudar os rapazes a encontrar esposa (DUBY, 1989,
p. 15).

Como o interesse principal nesses matrimônios era formar alianças e


perpetuar a linhagem, essa troca era realizada dentro do mesmo grupo social.
Portanto, conseguir um bom casamento estava condicionado ao casamento
dos pais e à posição que a família, sobretudo a da mulher, ocupava na sociedade
(DUBY, 1989).
Contudo, é importante ressaltar que essas definições delimitam os
modelos mais frequentes. Entretanto, não é possível estabelecê-los como
padrão. Conforme Ariès e Duby (2009):

36 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


[...] na Toscana [...] em 1.427, as famílias se dividiam em um vasto leque de
configurações muito diversas: pessoas isoladas (viúvos ou viúvas, celibatá-
rios); simples famílias conjugais (com ou sem filhos); famílias conjugais
ampliadas (albergando um ascendente em linha direta ou não, ou um des-
cendente, um irmão ou um primo); famílias conjugais múltiplas (famílias
de pais e famílias de filhos, de irmãos etc.) (ARIÈS; DUBY, 2009, p.168).

A partir do século XV, a Europa passa por uma série de mudanças que
acabam transformando a estrutura vigente. Emerge nesse período uma nova
classe social, a burguesia, a grande responsável por mediar as relações de troca
e equivalência. Passa a haver a estruturação do mercantilismo e isso implica no
começo da vida urbana (RODRIGUES; ABECHE, 2010).
As autoras mostram ainda que todas essas mudanças são responsáveis
pela transformação geral do modo de pensar e entender a vida. A sociedade
começa, então, a estruturar bases que norteiam a consciência coletiva do
mundo ocidental (RODRIGUES; ABECHE, 2010).
Dessa forma, através do desenvolvimento das cidades, há a migração
de solteiros. Rompendo laços com as famílias extensivas e constituindo sua
própria família, esses indivíduos desenvolvem um novo modelo familiar
conhecido como família nuclear.
A família nuclear burguesa surge como a classe dominante na sociedade
capitalista. Era composta por poucos indivíduos e não tinha mais a intenção
de perpetuar a linhagem ou resguardar as rígidas tradições. Seu intuito era o
acúmulo de capital e a valorização da escolha individual (POSTER, 1979).
Devido aos avanços na medicina e a uma cultura de valorização do indivíduo,
as crianças são submetidas a cuidados extremos. A criança passa, então, a
ocupar o papel central na estrutura desse modelo familiar, no qual a função
social da mãe era garantir a higiene e o bem-estar dos filhos.
A classe trabalhadora, por sua vez, inicialmente possuía uma estruturação
diferente. Como consequência de salários extremamente baixos, os integrantes
dessas famílias eram obrigados a se submeter a jornadas exaustivas e a péssimas
condições de trabalho e, portanto, o cuidado para com os filhos não era tão
rigoroso quanto nas famílias burguesas (POSTER, 1979).
Com a inserção das mulheres no serviço fabril, surgem as mães
mercenárias, que cobravam para dar abrigo e relativos cuidados aos filhos das
operárias, já que as trabalhadoras não tinham com quem deixar as crianças
durante suas jornadas de trabalho (PASCOAL; MACHADO, 2009).

Ebook IV SIGESEX 37
Criou-se uma oferta de emprego para as mulheres, mas aumentaram os
riscos de maus tratos às crianças, reunidas em maior número, aos cui-
dados de uma única, pobre e despreparada mulher. Tudo isso, aliado
a pouca comida e higiene, gerou um quadro caótico de confusão, que
terminou no aumento de castigos e muita pancadaria, a fim de tornar as
crianças mais sossegadas e passivas. Mais violência e mortalidade infan-
til (RIZZO, 2003 apud PASCOAL; MACHADO, 2009 p.80).

Mais tarde, emerge uma aristocracia dentro do proletariado. Esse novo


padrão alcançado pela qualificação profissional faz com que o modelo de vida
burguesa passe a ser imposto para a classe trabalhadora. Como demonstra
Poster (1979), depois de algum tempo a mulher da família proletária ficou,
cada vez mais, em casa cuidando dos filhos dando início, assim, a reprodução
do modelo burguês de divisão dos papéis sexuais.
Devido à ascensão econômica alcançada por alguns proletários, ocorre
a mudança das famílias dos guetos para os subúrbios das cidades. Dessa forma,
a mulher rompe os laços com a comunidade e passa a viver isolada em seu
próprio lar (POSTER, 1979). Assim, o lugar central dessa família passa a ser
ocupado pelos filhos que até então possuíam um alto grau de independência
com relação aos pais. Nesse viés, essa família passa a seguir plenamente o
padrão burguês (RODRIGUES; ABECHE, 2010).
A família nuclear burguesa progrediu gradativamente para um padrão
de baixa fertilidade e mortalidade, em suma devido ao planejamento familiar
causado pelo advento da pílula anticoncepcional e ascensão dos movimentos
feministas nos anos 1960. Todavia, em sua essência não apresenta diferenças
com relação às novas configurações da contemporaneidade (POSTER, 1979).
A principal mudança trazida pela contemporaneidade foi com relação
ao papel social da mulher, que frente à necessidade econômica, passa a
trabalhar fora de casa. No Brasil, é somente em 1943 que a mulher ganhou esse
direito, segundo a Legislação Brasileira, sem precisar da permissão do marido
(WAGNER, 2002).
Em meados de 1967, a partir da pílula anticoncepcional, o casamento
deixa de ser embasado no dever de se procriar. A sexualidade pôde então, ser
desvinculada da procriação. Além disso, surge a possibilidade de limitação do
número de filhos (HINTZ, 2001).
No cenário das descobertas científicas, há a fertilização e a reprodução
assistida. Esses métodos representam a possibilidade, caso seja desejado,

38 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


de reprodução sem o contato entre os progenitores. Isso pode ocorrer, por
exemplo, através dos bancos de sêmen.
Conforme Uziel et al. (2006), no fim dos anos 1970 é situado o marco
do surgimento do movimento homossexual brasileiro. Todavia, desde o final
dos anos 1960 já havia esforços para que isso acontecesse. Paulatinamente, o
movimento foi ganhando visibilidade e alcançando conquistas que em décadas
anteriores seriam inconcebíveis.
Outro marco que apresenta relação direta com as transformações
ocorridas na família é a regulamentação do divórcio. O que só ocorre no Brasil
em 1977. Até então, no contexto jurídico, não era possível postular um novo
casamento. Entretanto, esse fenômeno já ocorria sem a regulamentação da lei,
mas não tinham reconhecimento ou aceitação social (CANO, et al., 2009).
Mais do que mudanças estruturais, a família contemporânea também
modificou sua dinâmica de funcionamento. Além de novas configurações, o
papel de cada membro também se alterou. A mulher que era mãe e dona de
casa, responsável somente pelos afazeres domésticos, passa a almejar sucesso
profissional e realização pessoal. Ainda que continue sendo a mãe e a dona da
casa, acrescentou em seus ideais novas pretensões (WAGNER, 2002).
Segundo Hintz (2001), o homem detinha o poder econômico e por isso
possuía o controle da família. Cabia à mulher, viver à sombra de seu marido.
Atualmente, a figura do pai se apresenta de forma mais afetiva e presente na
vida dos filhos e no cotidiano familiar.
Surge, paradoxalmente, uma situação alarmante: pais e mães ausentes.
Os chefes de família estão, cada vez mais, fora de casa devido, sobretudo, a
necessidade econômica. Esse acontecimento acaba privando os filhos do
convívio familiar e o processo de socialização da criança fica à mercê das
creches, escolas e outras atividades complementares.
Diante disso, é preciso considerar como essas instituições e meios de
convívio social percebem as novas configurações familiares porque são nesses
espaços que a criança vivenciará a maior parte de suas experiências e relações
sociais.

2- As novas configurações familiares

Independente da configuração ou das alterações a que foi submetida,


o que fica claro é que a instituição familiar possui um alto grau de adaptação.
Por este motivo, a sobrevivência da família na sociedade contemporânea não

Ebook IV SIGESEX 39
está ameaçada. Seja qual for o tempo ou o lugar, é através dela que o indivíduo
recebe subsídios para que se desenvolva.
É demasiadamente difícil definir um modelo familiar da atualidade
porque há diversas novas práticas de relações afetivas que culminam em
diferentes arranjos familiares. Todavia, há que se destacar alguns.
É o caso da família monoparental. Esse termo surge na França em
meados dos anos 1970 e designa as unidades domésticas compostas por
pessoas que vivem sem cônjuges com um ou mais filhos (VITALE, 2002). No
Brasil, é a partir da Constituição Federal de 1988 em seu art. 226, § 4º que
define “Entende-se também como entidade familiar a comunidade formada
por quaisquer dos pais e seus descendentes”.
A esse respeito, é preciso enfatizar que a maior parte dessas famílias são
compostas por mulheres que vivem com seus filhos (DEL PRIORE, 1994). O
que justifica esse fato é que cada vez mais a mulher tem alcançado condições
econômicas suficientes para ter filhos sem a necessidade de possuir um parceiro
comprometido (HINTZ, 2001).
Entretanto, as mulheres de classes sociais mais baixas também possuem
expressiva representatividade dessa configuração familiar. A maioria desses
casos é involuntário. Como por exemplo, a mulher que engravida, não recebe
apoio do pai da criança e por este motivo, precisa assumir o sustento e a
educação do filho sozinha.
A família homoparental é outra configuração que tem ganhado
visibilidade no cenário atual. De acordo com Uziel et al. (2006), em meados
de 1990 passa a eclodir projetos de legalização da união homoafetiva ao redor
do mundo. E, tendo legalizado o casamento, o arranjo constituído por esses
casais e seus filhos, biológicos ou adotivos, passa a ser chamado de família.
Outro arranjo familiar muito comum na contemporaneidade é a família
reconstituída. Essa representa uma união em que um dos envolvidos, ou
ambos, possui pelo menos um filho de um relacionamento anterior. Trata-se,
portanto, de famílias em que um membro, ou mais, fazem parte de mais de um
grupo familiar simultaneamente.
De acordo com Hintz (2001), a família reconstituída não é um
fenômeno novo. Sua origem está relacionada a diversos fatores, como “a
crescente independência econômica das mulheres após a revolução industrial
e as guerras mundiais, a mobilização social, a liberação sexual e a busca pela
felicidade individual” (HINTZ, 2001, p.15).
Para finalizar as configurações aqui destacadas, é preciso traçar a

40 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


perspectiva das crianças institucionalizadas. Essas possuem idealizações e
atribuem valor ao vínculo familiar desejado ainda que tenham acabado de
vivenciar a ruptura, definitiva ou temporária, de suas famílias.
Segundo Lauz e Borges (2013), essas crianças apresentam fortes
laços emocionais com suas famílias de origem. Contudo, a relação com
os profissionais da instituição e com as outras crianças institucionalizadas
também representa um vínculo familiar.

3- Resultados e discussões

A população alvo da pesquisa de campo foi composta por cinco


profissionais que atuam na Educação Básica e que assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. Sua realização se deu por meio da técnica
de coleta de dados: entrevista semiestruturada que tinha como objetivo
compreender a percepção da escola diante dessas “novas famílias”.

4 - Metodologia

A pesquisa está estruturada de acordo com os pressupostos teórico


metodológicos da abordagem qualitativa com pretensão dialética. Dessa
forma, foi realizado um estudo amplo acerca da trajetória histórica da relação
entre família e escola, a fim de se contrapor com a atualidade.
Segundo Engels (1979 apud LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 101),
“[...] a dialética é a ‘grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não
deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um
complexo de processos”. Assim, a dialética encontra-se no plano histórico e
se constitui mediante a uma trama de relações contraditórias sobre as leis de
construção, desenvolvimento e transformação dos fatos.
A técnica de coleta de dados utilizada foi a entrevista semiestruturada
com profissionais que atuam na educação, sendo duas professoras, Fernanda31
e Paula, duas coordenadoras pedagógicas, Maria e Paola, e uma estagiária,
Flávia. Entende-se que entrevista semiestruturada é aquela dirigida por um
roteiro elaborado anteriormente que permite a ampliação das questões de
acordo com as informações fornecidas pelos entrevistados (LAKATOS;
MARCONI, 2003).
3. Os nomes das entrevistadas são fictícios, visando preservar suas identidades.

Ebook IV SIGESEX 41
5- Dados obtidos

As entrevistas duraram aproximadamente 20 minutos e três questões


centrais a nortearam: 1- Em sua concepção, o que são novas configurações
familiares? 2- Na instituição em que trabalha, há muitas crianças inseridas
nessas famílias? 3- A partir de suas vivências, como essas famílias são tratadas
na escola?
Em relação à pergunta: “Em sua concepção, o que são novas configurações
familiares?”, todas as entrevistadas demonstraram ter certa compreensão do
significado desse termo. Conforme Wagner (2002), são abrangidas nessa
definição as famílias com apenas um dos pais vivendo com seus filhos, as com
filhos de adoção, as que vivenciam um segundo casamento, as homoafetivas e
outras.
A análise dos dados obtidos a partir da pergunta: “Na instituição
em que trabalha, há muitas crianças inseridas nessas famílias?”, revela que a
diversificação dos modelos familiares é uma realidade em todas as instituições.
Entretanto, cabe ressaltar que todas as entrevistadas alegaram não haver
dados quantitativos a esse respeito, o que demonstra não apenas a falta de
preocupação do sistema de ensino com a questão, mas também das próprias
instituições educacionais.
Através das respostas fornecidas para a questão: “A partir de suas
vivências, como essas famílias são tratadas na escola?”, pôde-se constatar que
apenas duas de cinco profissionais que participaram da pesquisa afirmam que
há uma relação harmoniosa entre novas configurações familiares e escola.
Como é o caso da instituição em que Paola trabalha, ela afirma que já
foram formulados projetos para que fosse instituído o “dia da família”, em
que todas as famílias pudessem se sentir contempladas (INFORMAÇÃO
VERBAL)42. As demais respostas apresentam-se de forma contrária. Fernanda
afirma que “no contexto escolar, no projeto político pedagógico e nas
nossas reuniões de planejamento esse não é um assunto que entra em pauta”
(INFORMAÇÃO VERBAL)53.
A mesma relata ainda, que devido à falta de atenção voltada para essa
temática é que muitas famílias permanecem alheias à escola. Dessa forma, fica
evidente que isto se torna um fator de exclusão. Nesse mesmo viés, destaca-se a
4. PAOLA. Entrevista I. [out. 2018]. Entrevistadora: Deborah Bem Borges. Três Lagoas, 2018. 1 arquivo .mp3 (20
min.).
5. FERNANDA. Entrevista III. [dez. 2017]. Entrevistadora: Deborah Bem Borges. Três Lagoas, 2017. 1 arquivo
.mp3 (28 min.).

42 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


resposta fornecida por Maria:

Pelo que eu percebo, de modo geral, essas famílias se distanciam do co-


tidiano escolar, evitando datas comemorativas e, até mesmo, reunião
de pais (muitas vezes optando por reuniões/ conversas isoladas apenas
com professor e coordenação). Enquanto coordenadora pedagógica,
vejo que uma das minhas funções é atender as famílias dos alunos da
maneira mais ética, profissional e educada possível, todavia, não ten-
deria a hipocrisia de acreditar que todos os funcionários da escola se
comportam da mesma maneira (INFORMAÇÃO VERBAL)64.

Os dados apontam que quatro das cinco entrevistadas alegaram que


em suas instituições não há nenhum projeto de conscientização, política de
capacitação ou formação continuada que trabalhe com essa questão. Sendo
assim, o professor ou qualquer outro funcionário da instituição escolar não
sabe como proceder diante dessa realidade.
A fim de obter mais informações, foram formuladas algumas perguntas
específicas para as duas professoras que compunham a amostragem. Como, por
exemplo, “Como você trabalha o dia das mães e dos pais?”; “Já experienciou
alguma situação de discriminação, preconceito ou chacota devido a questões
familiares por parte dos alunos e/ou por parte de professores/ funcionários?”;
“O que você, particularmente, pensa sobre essas ‘novas famílias’? ”; “Como
você lida com essas questões em sala de aula?”.
Ambas as professoras relataram não haver, em suas instituições, medidas
efetivas para a abolição ou transformação dos tradicionais “dia das mães” e “dia
dos pais”, sendo considerada obrigatória a comemoração dessas datas e não
demonstrando desejo por parte da instituição educativa de estabelecer diálogo
ou proporcionar reflexão sobre o assunto.
Segundo o relato de Paula, em 2017 ela enfrentou uma difícil situação
nas atividades relacionadas ao “dia dos pais” com uma criança que não tem
contato com o pai. Ela relatou que, “a minha escola valoriza muito essas datas
comemorativas, é uma instituição que se prende e se limita a isso. Trabalhamos
o ano todo em cima dessas datas” (INFORMAÇÃO VERBAL)75.
Quanto a questão “Já experienciou alguma situação de discriminação,
6. MARIA. Entrevista II. [nov. 2017]. Entrevistadora: Deborah Bem Borges. Três Lagoas, 2017. 1 arquivo .mp3
(32 min.).
7. PAULA. Entrevista V. [jan. 2018]. Entrevistadora: Deborah Bem Borges. Três Lagoas, 2018. 1 arquivo .mp3 (24
min.).

Ebook IV SIGESEX 43
preconceito ou chacota devido a questões familiares por parte dos alunos e/
ou por parte de professores/ funcionários?”, as duas professoras alegam não
ter presenciado esse tipo de situação por parte dos alunos, tendo em vista que
ambas lecionam para a Educação Infantil.
Em contrapartida, por parte dos professores e/ou funcionários as
duas relatam que há sim situações preconceituosas. Isso fica claro através das
palavras de Paula, “os outros professores dizem se os irmãos são bons alunos,
ou que o pai acabou de sair da cadeia, ou que a mãe abandou os filhos ou mora
sozinha sem marido e esse tipo de comentário. Então, entre os profissionais
acontece sim” (INFORMAÇÃO VERBAL)8.6.
Parece bem claro que há aqui um assunto que requer atenção. Se já está
evidente que a família não é uma instituição estática e que ela se transforma e
cria novas configurações devido aos fatores sociais, econômicos e/ou políticos,
por que a escola permanece exigindo um padrão de pais, uma estrutura de
família e um modelo de aluno?

6- Reflexão

A escola e a educação formal, historicamente, foram utilizadas como


forma de perpetuação do sistema vigente. Nesse sentido, estiveram desde
os primórdios arroladas de práticas alienantes e reprodutoras de ideais
dominantes. Por este motivo, pensar em diversidade e singularidade é algo tão
difícil para essa instituição.
Conforme Comenius, a relação família-escola sempre se deu em prol
da moralização e das boas maneiras. Em tempos passados, a delimitação do
papel das famílias na escola era definida pela instituição escolar. Os mestres
consideravam que os pais não tinham competência para opinar em questões
sobre o ensino e, portanto, a função dos pais era apenas trazer as crianças e
apresentar contribuições pontuais, “mas eles não deveriam colocar questões
em matéria de pedagogia e, menos ainda, fazer críticas” (MONTANDON,
1994 apud NOGUEIRA, 2006, p. 164).
Surge a partir disso, uma trama de relações delicadas, uma atribuição
de papéis e funções que parecem se confundir frequentemente. É necessário,
portanto, que ambas as instituições (família e escola) estejam abertas ao diálogo.
Uma formação plena que ofereça subsídios para a humanização de
8. PAULA. Entrevista V. [jan. 2018]. Entrevistadora: Deborah Bem Borges. Três Lagoas, 2018. 1 arquivo .mp3 (24
min.).

44 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


qualquer sujeito é algo ainda distante da realidade. Ao contrário disso, a
educação é pensada apenas para alguns grupos e se limita a modelos e padrões
de alunos e (embasando-se nos dados obtidos por esse estudo) de famílias.
Não parece coerente uma educação que imponha um modelo padrão
de família inserida em uma sociedade composta por uma diversificação de
arranjos e configurações familiares, como é o caso da população brasileira.
Os dados apontam que a escola não tem abalado suas estruturas,
permanecendo conservadora e, por isso, excludente. Embora haja diversos
discursos de aceitação das diferenças, no cotidiano escolar isso não acontece
tão simplificadamente quanto nas palavras.
Todavia, é preciso deixar claro que esses apontamentos não visam
culpabilizar os profissionais. Na realidade, a escola se orienta através das
significações presentes na sociedade. E, portanto, responde as demandas de
uma sociedade neoliberal de mercado.
É necessário entender que a igualdade, nesse caso, compõe um fator
de exclusão. Isso porque não é possível pensar em uma educação alheia
as especificidades de cada indivíduo. Nesse viés, a diferença ocupa papel
fundamental na consolidação de uma escola capaz de oferecer uma formação
completa a seus alunos.

Considerações Finais

Com relação as diversificações das famílias contemporâneas, é preciso


estar ciente de que não há mais a opção de não trabalhar essas questões na
escola. Principalmente, se for considerado que a ausência dessa discussão se
configura em um fator de exclusão.
Os profissionais que atuam na educação precisam, portanto, receber
instruções de como lidar com essas famílias, a fim de romper com ideias
conservadoras e ideais preconceituosos, promovendo uma convivência mais
harmoniosa e uma instituição menos excludente.
O caminho, embora já venha sendo percorrido há décadas, ainda é longo.
Nessa perspectiva, o ideal a ser alcançado é a superação de práticas excludentes
e padronizantes tendo em vista uma educação que sirva de alicerce para uma
sociedade composta pela diversidade cuja qual o convívio e a valorização das
diferenças sejam os preceitos primordiais.

Ebook IV SIGESEX 45
Referências

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46 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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Ebook IV SIGESEX 47
Representações de gênero no cinema
histórico nacional: a construção da memória
colonial brasileira no ensino de história
Gender depictions in brazilian historical films:
building the memory of colonial times in
history teaching
Maristela Carneiro11

RESUMO: Proponho discutir as representações de gênero e a


construção da memória colonial nas narrativas do cinema histórico nacional,
tendo como recorte os filmes que tematizam a colonização da América
Portuguesa (1500-1815). Pensado como ato de interpretação histórica e
complementar à historiografia, não resta dúvida sobre o potencial dos usos do
cinema como ferramenta para o ensino de história.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema Brasileiro; Gênero; Ensino de
História.

ABSTRACT: I propose to discuss the depictions of gender and the construction


of the memory of colonial times in the narratives of brazilian historical films, choosing as
framework of analysis the films that are themed around the colonization of Portuguese America
(1500-1815). Thinking of them as acts of historical interpretation and complementary to
conventional historiography, we are certain that cinema bears potetial to be used as a tool for
the teaching of History.
KEYWORDS: Brazilian Cinema; Gender; History Teaching.

A produção cultural resultante da relação entre história e cinema é rica,


extensa e problemática. Inúmeras produções fílmicas situam suas narrativas
no passado, como mera ambientação romantizada, de maneira a explorar
1. Bolsista PNPD junto ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual do Centro-Oeste
do Paraná – UNICENTRO. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG.
Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás – UFG.
E-mail: maristelacarneiro@gmail.com
Telefone Institucional: (42) 3421-3129

48 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


aspectos biográficos de personagens célebres e/ou engendrar enredos de
eventos considerados relevantes; construindo, assim, percepções históricas a
partir da concatenação de recursos audiovisuais. Não é por acaso que filmes
são comumente usados como recurso didático no processo de ensino e
aprendizagem histórica e para fins de contextualização e/ou problematização
em outras áreas de conhecimento.
Por outro lado, como são essencialmente expressões de um grupo de
desenvolvedores – diretores, roteiristas, produtores, estúdios, etc.; convém
salientar que as narrativas fílmicas podem priorizar outros aspectos a
qualquer compromisso acadêmico de investigação histórica, dentre os quais a
composição estética, o valor de entretenimento e as aplicações simbólicas ou
líricas. Assim, tratar da história no cinema pode ser controverso, embora seja
um esforço necessário, uma vez que estes filmes repercutem no imaginário do
público e contribuem para a composição da cultura histórica de uma sociedade.
Pela força de seus recursos técnicos e sua capacidade de perpetuar imagens
icônicas dos temas filmados, é válido observar que a linguagem cinematográfica
se revela capaz de construir e perpetuar percepções sobre determinados
períodos históricos. Além disso, a partir das escolhas do que se exibe ou se
oculta em cada cena; do que é explícito ou invisível em cada narrativa; do que
é incluído ou excluído de cada enquadramento; o filme produz um recorte,
construindo uma memória visual demarcada por intencionalidades, nem
sempre deliberadas. Essa memória visual, por conseguinte, torna-se referência
para a cultura histórica.
Em conformidade com o que defende Rosenstone (2015, p. 18),
ainda que saibamos que uma trama gira em torno de protagonistas fictícios
ou apenas parcialmente baseados em indivíduos reais, filmes históricos
afetam significativamente a visão da tessitura de nossa realidade. O cinema é,
afinal, como outros espaços simbólicos, um exercício de reflexão, um pensar-
se estético e narrativo. Isto posto, é válido ponderar sobre o lugar ocupado
pelo cinema em nossa cultura e na constituição de nossos parâmetros. Por
conseguinte, também é pertinente refletir sobre as potencialidades do uso
dos filmes históricos no âmbito do ensino de história – propósito do presente
texto.
Filme histórico é aqui compreendido enquanto modalidade narrativa.
A rigor, todo filme é histórico e representacional, na medida em que pode ser
tomado enquanto uma fonte documental sobre o período e/ou circunstâncias
em que foi produzido (NAPOLITANO, 2011, p. 67). Mas aqui o propósito

Ebook IV SIGESEX 49
é pensar em filmes que são históricos no sentido que representam eventos
e personagens históricos, ou seja, filmes que possuem temática histórica,
colocando indivíduos – “reais” ou ficcionais – no centro do processo histórico.
Nas palavras de Rosenstone:

Concentrando-se em pessoas documentadas ou criando personagens


ficcionais que são colocados no meio de um importante acontecimento
ou movimento (a maioria dos filmes contém tanto personagens reais
quanto inventados), o pensamento histórico envolvido nos dramas
comerciais é, em grande parte, o mesmo: indivíduos (um, dois ou um
pequeno grupo) estão no centro do processo histórico. (ROSENSTO-
NE, 2015, p. 33)

Peter Burke assinala que o poder de um filme, de temática histórica


ou não, é proporcionar ao espectador a sensação de testemunhar os eventos,
ainda que tal sensação seja ilusória. “O diretor molda a experiência embora
permanecendo invisível. E o diretor está preocupado não somente com o que
aconteceu realmente, mas também em contar uma história que tenha forma
artística e que possa mobilizar os sentidos de muitos espectadores.” (BURKE,
2004, p. 200) Tal premissa é fundamental para discutir as possibilidades e
tensionamentos entre cinema e discurso histórico. Para Burke, tal como uma
história escrita ou pintada, a história filmada também constitui um ato de
interpretação; indo além, no caso específico dos filmes históricos, trata-se de
um ato de “interpretação histórica”.

[...] a história filmada oferece uma solução atraente para o problema de


transformar as imagens em palavras [...]. Aquilo que o crítico americano
Hayden White chama “historiophoty”, definida como “a representação
da história e nosso pensamento sobre ela em imagens visuais e discurso
filmado”, é complementar à “historiografia”. (BURKE, 2004, p. 201)

Portanto, tomado enquanto ato de interpretação histórica e complementar


à historiografia, não resta dúvida sobre o potencial dos usos do cinema como
ferramenta histórica e analítica. Para Ferro: “Entre cinema e história, as
interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a História que se
faz e a História compreendida como relação de nosso tempo, como explicação
do devir das sociedades.” (FERRO, 2010, p. 15) É nesta perspectiva que a ficção

50 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


histórica possibilidade a abordagem de múltiplas facetas da vivência humana,
incluindo as representações das diferenças sexuais e de cultura histórica, as quais
podem ser discutidas e pensadas à luz dos estudos de gênero.

1- Gênero, cultura histórica e cinema

O conceito de gênero tem sido uma categoria utilizada e difundida de


forma crescente, sobretudo a partir da década de 1960. Matos destaca que a
proposta relacional deste conceito ressalta que “a construção do feminino e
masculino define-se um em função do outro, uma vez que se constituíram
social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados.”
(MATOS, 2005, p. 21-22) Essa perspectiva remete às reflexões tecidas mais
largamente pela historiadora e feminista estadunidense Joan Scott ainda em
meados da década de 1980, fundamentais para os estudos feministas e de
gênero no Brasil.
Em seu texto Gênero: uma categoria útil para análise histórica, Scott
pontua que a categoria gênero deve abarcar não apenas as definições biológicas
e/ou as relações de parentesco, mas também o mercado de trabalho e os sistemas
educacional e político, esferas estas sexualmente segregadas e socialmente
masculinas. Para a autora, as relações entre os sexos são construídas socialmente
e correspondem às mudanças nas representações de poder – nos chamados
“campos de força sociais”. Em suas palavras: “(1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de
poder.” (SCOTT, 1995, p. 86)
Diante do pressuposto de que as relações de gênero são um elemento
constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que
distinguem os sexos, devem ser observadas como uma forma primária de
relações significantes de poder, ainda segundo Matos e Scott, evitando-se
as oposições binárias fixas e naturalizadas. Este viés rompe com uma leitura
determinista e/ou biologizante: ser homem e ser mulher vai além da existência
de um corpo masculino e feminino. Segundo Nicholson:

Defendo que a população humana difere, dentro de si mesma, não só


em termos das expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e
agimos; há também diferenças nos modos como entendemos o corpo.
Consequentemente, precisamos entender as variações sociais na dis-

Ebook IV SIGESEX 51
tinção masculino/feminino como relacionadas a [...] diferenças ligadas
não só aos fenômenos limitados que muitas associamos ao “gênero”
(isto é, a estereótipos culturais de personalidade e comportamento),
mas também a formas culturalmente variadas de se entender o corpo.
(NICHOLSON, 2000, p. 14)

Compreender as políticas e demarcações relacionadas ao corpo é


essencial para os estudos de gênero, também no âmbito imagético, porque
os usos e papéis relacionados aos corpos imaginados remetem à estereótipos
culturais pertencentes aos corpos reais. Nesse viés, Lauretis propõe pensar o
cinema enquanto uma das várias “tecnologias de gênero”: “[...] com o poder
de controlar o campo do significado social e assim produzir, promover e
‘implantar’ representações de gênero” (LAURETIS, 1994, p. 228).
Não por acaso Ferro (1975, p. 13) observa que o cinema abre um
caminho régio em direção das zonas psico-sócio-históricas nunca alcançadas
pela análise dos documentos convencionais. Com efeito, ao escolher filmes que
se utilizam de referências históricas para a sustentação dos seus enredos, no uso
público dessas diversas balizas, entendemos que se encontram, entrecruzados,
tensionamentos entre os parâmetros culturais dos grupos envolvidos e os
padrões de produção e consumo midiático, próprios a um objeto da indústria
cultural contemporânea – nesse caso, o cinema, aqui tomado especificamente
enquanto veículo tecnológico de gênero.
De forma alguma isento, um filme dissemina suas predileções e valores,
reificando-as, o que justifica a relevância de se discutir como o cinema nacional
representa as relações de gênero e as diferenças sexuais e como define os
papéis de homens e mulheres – tanto para a caracterização de época, quanto
como padrão de comportamento para a contemporaneidade. A exemplo
de Rossi (2017, p. 231), podemos questionar quais construções de gênero
são frequentemente suscitadas, remarcadas e repetidas nas relações que se
estabelecem socialmente no cinema.

É de suma importância dar visibilidade a construções alternativas, rom-


per a hegemonia das construções que já se tornaram naturalizadas e
que, frequentemente, são confundidas com retratos, senão da realidade
do que um gênero supostamente “é”, mas, de forma mais contundente,
do que um gênero “deveria ser” para que tenha sua existência legitimada
e reconhecida. [...] as implicações das imagens e produções cinemato-

52 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


gráficas enquanto “tecnologias de gênero” são concretas à medida que
promovem e reforçam discursos que são recebidos, reconhecidos e in-
ternalizados na formação de comportamentos e na construção de no-
ções identitárias do público, sendo ainda empregadas como indicadores
da própria subjetividade. (ROSSI, 2017, p. 231)

Há que se pontuar que tais imagens são múltiplas e exploram diferentes


discursos e práticas de gênero. Não obstante seu potencial de reificação, as
alternativas representacionais são diversas e exploram variadas possibilidades
estéticas e narrativas para a composição de seus enredos, seus personagens, suas
vivências e suas disputas – mesmo quando se trata de recompor o passado. Isto
posto, faz-se necessário explorar tanto a composição das mulheres quanto a
dos homens nas ficções históricas, sem desprezar suas nuances e relações com
outros eixos, como sexualidade, raça e classe, numa perspectiva interseccional.
Como observam Shohat e Stam (2006, p. 313), muito embora questões
de raça e etnicidade sejam culturalmente onipresentes, as mesmas estão
muitas vezes ocultas em termos cinematográficos. Esses fatores, assim como
as representações de gênero, classe ou raça, por exemplo, acabam funcionando
como elementos que dão a conhecer tanto a experiência de um passado, quanto
acabam estruturando uma narrativa que dá sentido – em maior ou menor grau
– às experiências de vida na contemporaneidade. Cada interpretação possível,
em cada filme, coloca-se como um veículo informativo de gênero – enfoque
deste texto – mas não apenas.

2- O caso da colonização brasileira no cinema

Embora o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p. 7)


atribua ao Brasil um interesse limitado pelo seu próprio passado, há uma
produção relativamente ampla em torno do tema. O exemplo mais antigo é o
filme O descobrimento do Brasil (Humberto Mauro, 1937), que busca traduzir
as palavras da carta de Pero Vaz de Caminha em imagens épicas, embaladas
pela trilha sonora de Heitor Villa-Lobos, já sinalizando um interesse pelo
gênero da ficção histórica. O romance histórico A Muralha (Diná Silveira de
Queirós, 1954), por exemplo, recebeu cinco adaptações televisivas, em 1954
(Record), 1958 (TV Tupi), 1961 (TV Cultura), 1968 (TV Excelsior) e 2000
(Rede Globo).
Dentre as narrativas fílmicas do cinema ficcional histórico brasileiro,

Ebook IV SIGESEX 53
tomemos como recorte as produções que fazem referência ao período da
colonização da América Portuguesa (1500-1815), ou seja, as narrativas fílmicas
ambientadas no passado colonial, fundamentadas nesse recorte temporal ou
que reportem ao mesmo; mais especificamente, ao passado da colonização da
América Portuguesa, desde a chegada dos portugueses à América, em 1500, até
a elevação do Brasil a reino par de Portugal, em 1815, fim oficial do período
colonial – ainda que o período imperial tenha iniciado oficialmente em 1822,
com a Proclamação da Independência.
Portanto, os filmes históricos selecionados são narrativas históricas
referentes tematicamente ao período da colonização da América Portuguesa,
entre 1500-1815, contando com personagens documentados ou fictícios.
Desse recorte, resultam 22 longas-metragens, produzidos entre 1937 e 2014.
Enredos biográficos, como Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) e Aleijadinho:
paixão, glória e suplício (Geraldo Santos Pereira, 2003), misturam-se a comédias
dramáticas, a exemplo de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (Carla Camurati,
1995). Narrativas de eventos pontuais como Batalha dos Guararapes (Paulo
Thiago,1978) dividem espaço com a adaptação literária Desmundo (Alain
Fresnot, 2003), por exemplo. O conjunto de filmes selecionados foi produzido
a partir de diferentes intencionalidades e denota variadas perspectivas de
narratividade e de enfoque histórico.
A narrativa estruturada em cada um dos filmes eleitos, de O descobrimento
do Brasil (Humberto Mauro, 1937) até Vermelho Brasil (Sylvain Archambault,
2014) é uma teia formada pelos diferentes significados construídos pelos
desenvolvedores, de forma dinâmica e aberta a diferentes tecnologias, conceitos
e fenômenos – dentro dos limites da produção e difusão cinematográfica. Isso
significa que a prática de construir narrativas históricas (no caso, os filmes
históricos) se configura num espaço central da própria experiência de vida
humana, uma vez que esta necessidade e este sentido possível de orientação
temporal constrói uma espécie de conexão com os diferentes entendimentos
do passado e nossas identidades atuais.
Desta maneira, ao se pensar historicamente ou produzir uma narrativa
histórica, ainda que sob a forma de um filme que não possua a pretensão de
desvelar o real, como é o caso das narrativas ficcionais; constrói-se um sentido
para a vivência humana no mundo e o entendimento que se extrai dela –
efetivamente, uma das principais potencialidades para seu uso no ensino de
história. É nessa ótica que é possível explorar os tensionamentos das relações
de gênero no cinema ficcional brasileiro, especificamente no que diz respeito

54 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


às narrativas que têm como horizonte orientador o contexto colonizador
português, conforme pontuado.
Enxergamos neste suporte narrativo um espaço de produção de sentido
histórico, um espaço em que o olhar histórico de uma sociedade pode ser
observado de maneira mais ampla. Trata-se de um espaço de cultura histórica
que, para Rüsen, pode ser definido como: “formalmente, a estrutura de
uma história; materialmente, a experiência do passado; funcionalmente, a
orientação da vida humana prática mediante representações do passar do
tempo” (RÜSEN, 2001, p. 160-161). Em particular, observamos que o cinema
se destaca como forma artística e comunicacional de grande alcance em termos
de público.
Voltados ao entretenimento e produzidos para o consumo em massa,
os filmes dispõem de linguagens caracterizadas justamente pela capacidade
de absorver novos conceitos e reformularem-se continuamente, sendo
privilegiados para a elaboração de narrativas históricas. Isso pode ser notado
na ampliação, relativamente recente, da produção de ficções históricas não
apenas cinematográficas, mas também em séries televisivas, na literatura, nos
quadrinhos e nos jogos eletrônicos. Os filmes aqui abordados estão inseridos
neste fenômeno, altamente prolífico.
Existe uma relação direta entre os espaços de produção do conhecimento
histórico e a constituição de uma racionalidade histórica. É ponto pacífico,
pela própria fluidez de nossa relação com o tempo e com o “estudo dos homens
no tempo”, para usar uma expressão de Marc Bloch (2001, p. 55), que o
conhecimento e a racionalidade histórica não têm uma natureza linear e única,
mas antes têm como base uma multiplicidade de possibilidades e alternativas.
Isso porque, a relação que cada pessoa estabelece com o conhecimento histórico
é fundada na proximidade constante de experiências e na compreensão que
são as questões do presente que se convertem em referencial para o passado,
enquanto um suporte gerador de sentido para as diferentes vivências.
O saber histórico é dinâmico e traz consigo múltiplas narrativas e
construções. Os filmes históricos nacionais em questão refletem esse caráter
diverso e multifacetado, porque também são espaços de conhecimento
histórico, não apenas pela temática histórica em seus enredos e narrativas
(enquanto ambientação, fundamentação ou reportação), mas pela própria
natureza do cinema, conforme já observado. Faz parte da reflexão sobre o
conhecimento histórico, sua natureza e o espaço que ocupa em sociedade
o espaço de “auto-reflexão, como retorno ao processo cognitivo de um

Ebook IV SIGESEX 55
sujeito cognoscente que se reconhece reflexivamente nos objetos de seu
conhecimento, é por certo um assunto que pertence ao trabalho quotidiano
de qualquer historiador” (RÜSEN, 2001, p. 25).
Isto posto, diante das intertextualidades entre conhecimento histórico
e cinema, faz-se possível examinar as peculiaridades das estruturas estéticas
e diegéticas dos filmes e suas potencialidades e limites em relação à cultura
histórica, a fim de discutir o lugar destas narrativas em seu contexto de
produção, bem como as possíveis contribuições no que diz respeito à discussão
e possível desconstrução das representações de gênero que são apresentadas e
que reificam variadas práticas sociais e culturais na contemporaneidade.
Ainda que pareça haver uma única representação possível do masculino
e do feminino, legitimada pelas relações de poder, o gênero, enquanto categoria
analítica, “fornece um meio de decodificar o significado e de compreender
as complexas conexões entre várias formas de interação humana” (SCOTT,
1995, p. 89). Todavia, essa significação não deve ser lida como algo inscrito
de forma unilateral em um sexo previamente dado, entendido como um
simples suporte, conforme pontua Butler (2013, p. 25). Gênero deve designar
também, no entender desta autora, o aparato de produção e estabelecimento
dos próprios sexos – tão construídos e históricos quanto as relações de gênero
e os conceitos de masculinidade e feminilidade.
As representações de gênero presentes nos filmes em questão, por
exemplo, Como Era Gostoso o Meu Francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971)
ou Caramuru, A Invenção do Brasil (Guel Arraes, 2001), decorrem dessa
complexa relação de força e de poder, produtora de sentido. Para observar
como se fazem presentes tais representações, há que se eleger uma perspectiva
interdisciplinar, sem desconsiderar as especificidades dos conhecimentos
históricos, da arte, da cultura visual e da produção cinematográfica.
O estilo de um filme pode desvelar com razoável nitidez as tendências
históricas da visualidade cinematográfica. Um estudo estilístico problematiza
as escolhas feitas pelos cineastas em “circunstâncias históricas particulares”
(BORDWELL, 1997, p. 4), revelando muito sobre como se configura uma
identidade visual dentro de uma conjuntura maior: escolhas da esfera do
micro (o filme enquanto obra individual), que repercutem na esfera do macro
(tendências históricas do cinema). Dentre os aspectos que compõem essa
segunda esfera, está a questão do gênero, no caso, a ficção histórica, responsável
por muitas das decisões criativas que caracterizam uma produção.
Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976) é uma cinebiografia altamente

56 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


estilizada de Francisca da Silva, mulher nascida entre 1731 e 1735, filha
da escrava Maria da Costa (escrava negra) e concubina do contratador de
João Fernandes de Oliveira (ANDRÉ, 2007, p. 163). Xica da Silva, na
visão de Gordon (2009, p. 2-3), opera pela lógica da alegoria, utilizando a
imagem de Xica como figura simbólica do próprio Brasil, pois se envolve
em uma relação com um ilustre português, o contratador, valendo-se
desta relação para promover sua condição social e obter sua medida de
autonomia e poder.
Nesse caso, a narrativa cinematográfica trata da ascensão e queda da
personagem, utilizando uma estética marcada pela hipérbole, por visualidades
extravagantes, uso frequente da musicalidade e humor irreverente. O filme
é uma “celebração carnavalesca” e uma produção evidentemente política,
embora não no sentido tradicional, principalmente por contrapor à solenidade
europeia uma espécie de brasilidade espontânea e autêntica.
Esta brasilidade carnavalesca celebra o humor da protagonista, cujas
demandas por extravagância e vingança são justificadas pelo tratamento que
recebeu enquanto escrava. Seu riso e sua sexualidade são representados como
libertadores, em oposição à hipocrisia de um meio social que há muito vivia a
partir do trabalho forçado dos escravos. Ao final do filme, quando o contratador
é convocado de volta a Portugal para responder por crimes de corrupção,
deixando Xica desamparada e à mercê da intolerância e da hipocrisia do povo
da região do Tijuco, a protagonista se mantém altiva e não se mostra disposta
a abrir mão do riso e do exercício de sua sexualidade.
Por sua vez, Desmundo (Alain Fresnot, 2003) não se trata de uma
abordagem carnavalesca, mas de um esforço naturalista. Também não se trata
da biografia de um indivíduo histórico e mitificado, mas de uma personagem
fictícia e que está situada em um posto de autoridade. Desmundo adapta o
romance homônimo de Ana Miranda (1996), e concerne à narrativa de
Oribela, uma órfã enviada à América Portuguesa, como muitas outras, a fim
de casar-se com um colono.
Embora o envio das órfãs se imponha como uma ação caridosa do estado
português e da igreja, ou ao menos se justifique dessa forma, a prática só é possível
na medida em que as mulheres não são compreendidas como possuidoras da
mesma autonomia que os homens. Para Dona Brites, personagem da narrativa,
às órfãs lhes cabe ser submissas, e que casar é fácil, conquanto sejam obedientes.
Sua função é fiar, tecer, gerar filhos, não abandonando o espaço da casa.
Com tais casos, buscamos pontuar que o cinema é tomado nesse texto

Ebook IV SIGESEX 57
como um agente social que influencia e é influenciado pela estrutura dinâmica
do social, com suas disputas e tensionamentos. Enquanto canal midiático,
constrói suas narrativas tendo como horizonte orientador os referentes sociais
e culturais do meio no qual se insere.

Considerações finais

Embora muitas das narrativas fílmicas em questão apresentem personagens


femininas relevantes para a história, sua caracterização é frequentemente
reduzida ou caricata, quando não apenas sexualizada e objetificada, como se vê
em Caramuru, na construção de Paraguaçu e de Moema. Muitas dessas mulheres
acabam por meio das lentes cinematográficas se tornando menos complexas,
objetificadas, definidas por sua sexualidade e ambição.
Dos filmes selecionados apenas um foi dirigido por uma mulher:
Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, de Carla Camurati. Segundo o Boletim
Raça e gênero no cinema brasileiro (1970-2016), produzido pelo Instituto
de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
o cinema brasileiro está longe de ser um meio artístico-comercial diverso.
Segundo os dados oferecidos pelo boletim, 98% dos filmes com mais de 500
mil espectadores produzidos foram dirigidos por homens.
Tal proporção é indicativa de quão ínfima ainda é a presença feminina no
meio audiovisual brasileiro. Certamente, uma presença tão majoritariamente
masculina no campo da produção cinematográfica nacional impacta no modo
como as mulheres são apresentadas na tela. Qualquer análise futura sobre o
tema das representações de gênero no cinema nacional deve contemplar esta
questão. É com este debate que as presentes reflexões esperam contribuir, não
somente no espaço acadêmico, mas também no âmbito do ensino de história.
Ainda na década de 1970, a feminista Laura Mulvey (1983) constatou
a forte presença masculina na produção cinematográfica dominante, que
levava à criação de filmes inclinados para a satisfação de um público também
masculino. O cenário derivado dessa dinâmica é um cinema falocêntrico, no
qual a mulher ocupa principalmente o posto de objeto de desejo, assumindo a
função de satisfazer o espectador masculino desinteressado na valorização da
mulher. Infelizmente, tal cenário não mudou tanto assim.
Rüsen argumenta que “o narrar passou a ser práxis cultural elementar e
universal da constituição de sentido expressa pela linguagem” (2001, p. 154).

58 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Diante disso, sugere que se investigue como diferentes linguagens se apropriam
deste processo de constituição de sentido, que é próprio da história e sua
narratividade, promovendo a ampliação dos suportes de cultura histórica. Nesse
processo, também são significadas as construções de gênero, que passam a orientar
ou estimular, por consequência, novos discursos e práticas no âmbito social.

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Ebook IV SIGESEX 59
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60 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A invisibilidade feminina na construção
da história regional – os elementos
patrimoniais e imagens do museu José
Antônio Pereira
Female invisibility in the construction of regional
history - the heritage elements and images of the
José Antônio Pereira museum
Silvia Ayabe1

RESUMO: Este projeto faz parte da pesquisa História e Educação


para o Patrimônio: oficinas didáticas na/para a formação de professores,
o qual está sendo desenvolvido na Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul. Influenciadas pela necessidade de abordar os saberes femininos
juntamente com a maneira de ensinar a história pelo prisma da mulher,
iniciamos a pesquisa em Campo Grande/MS no Museu José Antônio
Pereira, com o objetivo de enfrentar o silenciamento da participação
feminina na fundação da cidade. Na metodologia da pesquisa, utilizamos
reportagens de jornais, levantamento em arquivos públicos, elementos
dispostos no museu José Antônio Pereira.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de história; Memória; Mulheres.

ABSTRACT: This Project is part of the research History and Heritage


Education: didactic workshops for teaching training, which is being developed at
the Federal University of Mato Grosso do Sul. Influenced by the need to address
women’s knowledge concomitant with the way of teaching history through the prism
os women, we started the research in Campo Grande/MS at the José Antônio Pereira
Museum, with the objective of facing the silencing of female participation in the
foundation of the city.
KEYWORDS: History teaching; Memory; Women.
1. Graduanda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, bolsista do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência e voluntária no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, no Grupo de
Pesquisa Ensino de História, Mulheres e Patrimônio. E-mail: silvia.ayabe@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 61
Introdução

Na qualidade de bolsista do PIBIC (Programa Institucional de Bolsa


de Iniciação à Docência), pesquiso, durante a graduação, sob orientação da
Professora Doutora Jaqueline Aparecida Martins Zarbato, a invisibilidade
feminina na construção da história regional. Com foco no Museu José
Antônio Pereira e na imagem das mulheres que participaram de toda sua
construção histórica como parte do patrimônio cultural material da cidade de
Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Com o objetivo de analisar e enfrentar
o silenciamento da participação das mulheres na história da fundação desta
cidade, estudamos a ausência de depoimentos e representação feminina nos
jornais e livros regionais.
As discussões e os resultados apresentados aqui advêm de diálogo entre
a História e a Museologia de Gênero que questiona a ausência das minorias
nos espaços museológicos. O processo de arquivamento de material implica
escolhas, inclusões, exclusões, omissões, que são pautadas pela priorização
de grandes heróis, deixando visível a baixa representatividade da mulher nos
arquivos em destaque no País. Somado a isso, raramente encontramos material
pelos quais possamos estudar a mulher do passado sob olhar de sua vida
cotidiana, influenciando o ofício do historiador na lida com as suas fontes e na
escolha de suas pesquisas.
Este artigo se justifica pela possibilidade de suscitar interesse pela
necessidade de abordar os saberes femininos juntamente com a maneira de
ensinar a história pelo prisma da mulher, destaca-se que buscar uma educação
transformadora é um dos elementos centrais das produções teóricas das
universidades, e realizar um trabalho que relacione a participação da mulher
em um momento histórico dominado pelo discurso machista vem estreitar a
relação das meninas em idade escolar com a participação feminina na história,
aumentando o sentimento de pertencimento e identificação, um diálogo
extremamente essencial na promoção da igualdade cidadã e equidade de gênero.
Metodologicamente realizamos a pesquisa em Arquivos Públicos
Municipais, em reportagens de jornais e revistas, em livros comemorativos
da cidade, em visitas ao museu. A ausência de depoimentos e representação
feminina nas fontes de história regional, provocou uma série de
questionamentos e descobertas, gerando a percepção da necessidade em se
elaborar um material que dê destaque a essa importante participação. Essa
pesquisa acadêmica tem como finalidade a elaboração de uma cartilha de

62 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


apoio ao trabalho docente, a ser usada por professores do ensino básico, como
auxílio em visitações e aulas que trabalhem o Museu José Antônio Pereira
como patrimônio cultural material, e local de memória e pertencimento.
Destaca-se que buscar uma educação transformadora é um dos elementos
centrais das produções teóricas das universidades, e realizar um trabalho que
relacione a participação da mulher em um momento histórico dominado
pelo discurso machista vem estreitar a relação das meninas em idade escolar
com a participação feminina na história, aumentando o sentimento de
pertencimento e identificação, um diálogo extremamente essencial na
promoção da igualdade cidadã e equidade de gênero.
Por esse motivo, a finalidade dessa pesquisa é desenvolver um guia didático
de apoio ao trabalho docente, para ser utilizada por professores/as do ensino
básico, como auxílio em visitações e aulas que trabalhem o Museu José Antônio
Pereira como patrimônio cultural material, e local de memória e pertencimento,
além de abordar a representação das mulheres na constituição do Estado de
Mato Grosso do Sul e da cidade de Campo Grande. Através da história de vida
de alguns de seus protagonistas, dar visibilidade e proporcionar reconhecimento
aos sujeitos históricos que participaram da fundação da cidade, sem deixar de
lado a participação feminina, retirando o foco das narrativas androcêntricas e
lançando um olhar crítico sobre os museus enquanto dispositivos de poder, que
acabam por perpetuar posturas sexistas e machistas.

1- Pensar a museologia a partir de uma perspectiva de gênero

É fato que a dificuldade de se encontrar material de pesquisa sobre


mulheres, ou mesmo produzido por elas, se deve também as complexas
relações históricas e sociais que por muitos séculos as trataram como força
de trabalho secundária, prejudicando o reconhecimento do mesmo, sendo ele
científico ou não. A narrativa histórica dominante que priorizou certas esferas
da vida social, dentre elas a política, a religião, as guerras, os reis, os príncipes,
profetas, missionários, padres, guerreiros e colonizadores foram erguidos
como protagonistas de narrativas que davam claro destaque aos sujeitos
masculinos. Solidifica-se a crença de que os homens ocupavam-se dos grandes
acontecimentos, enquanto elas ficavam reduzidas apenas à reprodução da
ordem e do costume, ou seja, aos cuidados domésticos, a colheita, o trabalho
fabril, em todos os casos tarefas desvalorizadas socialmente. Mesmo após três
décadas em que se observa um crescimento constante dos níveis de escolaridade

Ebook IV SIGESEX 63
e das taxas de participação feminina no Brasil, essa noção de inferioridade
presente no imaginário social ainda persiste.
Abordar o colecionismo e as coleções a partir da perspectiva de gênero
busca questionar a hegemonia androcêntrica presente em diversos museus
brasileiros, o que também resulta na manutenção das desigualdades entre homens
e mulheres em diversos contextos. Esse alargamento do campo de estudo museal
e das categorias patrimoniais ao incluir recortes considerados marginais, permite
o alargamento da investigação sobre temáticas socialmente comprometidas.
Pensar a museologia a partir de uma perspectiva de gênero é um grande
desafio, sendo importante lembrar que é errônea a equiparação de “gênero”
com “mulheres”. Segundo Aida Rechena:

Na verdade, gênero refere-se à construção social da masculinidade e da


feminilidade e engloba um complexo sistema de relações que ultrapassa
em muito a relação homem/ mulher, entretanto em campos como os da
identidade e cultura gay, transgênero, transexualidade, bissexualidade,
androginia e o chamado “terceiro sexo”. Isso significa que nos estudos
de gênero estão englobadas todas as formas sociais e culturais de ser
<ser humano>, independentemente do sexo biológico ou da orientação
sexual. (RECHENA, 2014, p. 154)

Sendo esse conjunto de referências materiais e imateriais que fazem


parte do patrimônio integral (natural e cultural) de extrema importância para a
construção das identidades e desenvolvimento dos grupos humanos, é verdade
que a museologia de gênero pode contribuir para alcançar uma igualdade
entre mulheres e homens. A preservação e comunicação desse patrimônio
são finalidades e práticas museológicas, são os museus instituições exemplares
para compreendermos a influência que o caráter político e subjetivo possui na
seleção e preservação das referências patrimoniais, e atribuem sim valores para
justificar quais bens culturais em detrimento de outros serão preservados.
Sendo os museus instituições que assumem um compromisso social
e desenvolvem uma ação ativa na sociedade, os diferentes olhares para
o colecionismo nos estudos atuais apontam para o fato de que é preciso
superar a vinculação das coleções a ideologias e intenções. Colaborando na
valorização das diferenças, trazendo para o museu a inclusão, a acessibilidade,
a multiculturalidade, os movimentos sociais, os feminismos e a igualdade de
gênero, visto que cada prática se insere em diferentes perspectivas.

64 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O contexto atual da museologia brasileira é rico e complexo, abrangendo
ensino básico e acadêmico, políticas públicas e exercício/prática profissional,
o tornando uma instituição dinâmica e comprometida com a sociedade.
Então, a integração de uma perspectiva de gênero no contexto museológico
permite “compreender aspectos fundamentais relativos à construção cultural
da identidade pessoal, assim como para entender como se geram e reproduzem
determinadas hierarquias, relações de dominação e desigualdades sociais”
(Casares, 2008, p.10), porque as relações de gênero são também relações de
poder. Uma relação que se torna visível quando passamos a analisar museus sob
uma perspectiva de gênero como metodologia, tornando claras as hierarquias,
as relações de dominação e as desigualdades sociais.
A museologia de gênero pode atuar no sentido de valorizar a participação
e contribuição das mulheres na sociedade, nesse sentido, é preciso observar
as relações de gênero no estudo do colecionismo. É necessário perguntar se
as coleções que estão nos museus refletem e tornam visíveis as contribuições
femininas nas memórias dessas instituições, e ao olhar essa realidade tomando
o gênero feminino como eixo central de análise podemos questionar os
efeitos dessas relações em diversas esferas da vida cotidiana. Isso implica no
reconhecimento da construção social que diferencia o papel do homem e da
mulher, uma construção situada historicamente e sujeita a mudanças.

2- A Fundação de Campo Grande: e as mulheres nesta história?

Campo Grande, capital do Estado de Mato Grosso do sul, faz parte das
cidades mais importantes da região Centro-Oeste do Brasil. Fundada em 1899
os seus “desbravadores” , segundo as fontes oficiais, chegaram à localidade
pela primeira vez, no ano de 1872. Barros (2010) descreve a intensificação
migratória após a Guerra do Paraguai (Guerra da Tríplice Aliança), tendo
o gado e a terra fértil como os principais incentivadores, o que acarretou a
motivação da Família Pereira a realizar a mudança da cidade de Monte Alegre,
localizada em Minas Gerais, para o Sul de Mato Grosso.
No final do século XIX, era coerente o pensamento de buscar riquezas em
terras desconhecidas, pois, a partir desses movimentos, quem tinha aptidão e/ou
necessidade, poderia vislumbrar novas possibilidades de negócios. As atividades
de cunho capitalista foram as grandes incentivadoras dos primeiros passos do
processo de formação de inúmeras cidades brasileiras, incluindo Campo Grande,
mesmo o sertão nacional não sendo um dos locais mais atraentes.

Ebook IV SIGESEX 65
Tendo notícia da Vacaria, em 4 de março de 1872 José Antônio Alves
Pereira formou uma comitiva composta por cinco pessoas, dentre estas, seu filho
Antônio Luiz, dois escravos de nome João e Manoel e Luiz Pinto. A pequena
caravana partiu de Minas rumo a estas paragens, e após uma longa caminhada
que durou cerca de três meses ao chegarem na região acampam próximo ao rio
Anhanduí. Posteriormente estabelecem o assentamento original as margens do
córrego Segredo e Prosa, o grupo então dá por finda a excursão.

Dessa maneira, observa-se que em 1878 foi construída a primeira igreja


que atualmente encontra-se pelas ruas 7 de setembro, 15 de novembro
e avenida Calógeras. Conhecida no século XXI como Igreja Matriz de
Santo Antônio, esta igreja celebrou no século XIX o casamento de An-
tônio Luiz Pereira (filho de José Antônio Pereira) e Ana Luísa de Souza
(filha de Manual Vieira de Souza), gerando a união de duas famílias
pioneiras, que posteriormente, viriam a ter sua filha chamada Carlinda
Pereira Contar, futura doadora da Fazenda Bálsamo para a construção e
tombamento do Museu José Antônio Pereira. (MOURA, 2017, p.172)

Esse local, onde hoje se situa o Horto Florestal se torna o ponto


inicial da cidade. Com privilegiada situação geográfica, várias notícias
dos Campos de Vacaria e o clima agradável diversas famílias são atraídas
para a localidade, provenientes de Prata, São Paulo, Rio Grande do Sul,
Paraná, Nordeste, entre outros. Surge aí, de forma tradicional com casas
minimamente alinhadas, uma capela central e um cemitério o povoado de
Santo Antônio de Campo Grande da Vacaria – na atual rua 26 de Agosto.
Nessa época a base da economia local era a pecuária bovina, devido a grande
quantidade de terras disponíveis.
Em 26 de Agosto de 1899 depois de cansativas reivindicações, Campo
Grande emancipa-se através da resolução estadual no 225, com um território
de 105.000 km2, eleva-se ao sexto município do sul de Mato Grosso e o último
a ser criado no século XIX.
Assim, podemos observar que o Museu José Antônio Pereira ilustra a
história da família Pereira, com o intuito de manter vivo o histórico de seus
antecedentes. “A casa antiga da fazenda, pertencente a um dos herdeiros
do fundador da cidade, foi transformada em museu, oferecendo uma ideia
de como viviam as pessoas de antigamente nessa região.” (MITIDIERO,
2009, p. 67).

66 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


É importante perceber que os discursos oficiais, como reportagens da
época, livros de memorialistas sedimentam a concepção da história construída
pelo prisma masculino, tendo raramente relatos sobre as mulheres que fizeram
parte dos grupos que migraram para Mato Grosso.
O casarão construído por Antônio Luiz e seu pai José Antônio Pereira,
por volta de 1880 é o mesmo que dá hoje lugar ao museu. Em geral, as sedes
dessas fazendas seguiam padrões arquitetônicos semelhantes: casa térrea,
vários anexos (paiol, casa de monjolo, puxado para carros de boi, engenho).
Os materiais usados eram aqueles encontrados na própria fazenda, como:
pedras, barro e madeira.

Fonte: acervo do Museu José Antônio Pereira | Fonte: acervo particular da autora

Observa-se no quadro abaixo posse da Fazenda Bálsamo por Antônio


Luiz Pereira.

Registro da Fazenda Bálsamo

N. 363
Fazenda Bálsamo
João Luiz da Fonseca e Moraes, intendente geral do
Município de Nioac.
Faço saber aos que o presente titulo verem
ou delle tiverem conhecimento que nesta data, de
conformidade com os artigos 116 e 123 do Reg.° n°
38, approvei por se acharem em devida forma os
documentos que me forão apresentados para registro,

Ebook IV SIGESEX 67
de Antonio Luiz Pereira, de uma posse de terras no
lugar denominado Balsamo, neste município, com a
área de três mil e seiscentos hectares mais ou menos.
Que limita-se: Ao Este com Salatiel José Ferreira,
e Firmo Joaquim Antonio Pereira; Ao Norte, com
Joaquim Antonio Pereira, ao Oeste, com Bernardo
Franco Bais, cuja posse funda-se no artigo 5, § 5°, da
Lei n.° 20 de 9 de Setembro de 1892, e determino que se
expeça ao requerente o presente titulo que lhe permitta
legitimação. Intendência Municipal de Nioac, 15 de
junho de 1894. Eu Jose Nelson de Santiago Escrevente
que o escrevi. Intendente Geral, João Luiz da Fonseca
e Moraes.2
Fonte: acervo do Museu José Antônio Pereira

Essa antiga fazenda foi doada em 1966, pela neta de José Antônio
Pereira, Carlinda Contar, com a intenção de se transformar em um
patrimônio histórico ganhou o nome de Museu José Antônio Pereira. É
registrado pelo Registrado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), conforme o Decreto Municipal nº 4.934, de 20 de abril de 1983,
o Museu José Antônio Pereira localiza-se na Avenida Guairucus S/N, no
bairro Monte Alegre em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Tombado
como Patrimônio Histórico e Cultural em 1983, o Museu José Antônio
Pereira teve sua primeira reforma em 1999, sob a gestão do Prefeito André
Puccinelli, permitindo assim a visitação pública.

3- O Papel da Mulher nos Campos de Vacaria

Na terceira década do século XIX, na província de Mato Grosso


começa a se destacar a agricultura de subsistência e pequena criação de gado.
A análise das fontes e as referências bibliográficas nos levam a notar que a
2. Lê-se: “Faço saber aos que o presente titulo verem ou delle tiverem conhecimento que nesta data, de conformidade
com os artigos 116 e 123 do Reg.° n° 38, approvei por se acharem em devida forma os documentos que me foram
apresentados para registro, de Antonio Luiz Pereira, de uma posse de terras no lugar denominado Balsamo, neste
município, com a área de três mil e seiscentos hectares mais ou menos. Que limitase: Ao Este com Salatiel José
Ferreira, e Firmo Joaquim Antonio Pereira; Ao Norte, com Joaquim Antonio Pereira, ao Oeste, com Bernardo
Franco Bais, cuja posse funda-se no artigo 5, § 5°, da Lei n.° 20 de 9 de Setembro de 1892, e determino que se expeça
ao requerente o presente titulo que lhe permitta legitimação. Intendência Municipal de Nioac, 15 de junho de 1894.
Eu Jose Nelson de Santiago Escrevente que o escrevi. Intendente Geral, João Luiz da Fonseca e Moraes.”

68 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


problematização quanto a ocupação e fixação das famílias ditas pioneiras,
assim como suas redes de relações e o papel social de pessoas pobres livres ou
escravizadas ainda não foi muito trabalhado.
Partícipes ativas nesse processo, as mulheres conviviam com toda sorte
de precariedades e desordens, apesar de serem pouco citadas não se abstiveram
das lutas cotidianas pela conquista. A maioria delas exercia atividades
femininas, eram regidas por uma lógica interna muito própria dos costumes
e cultura local. Mulheres pobres, escravas e forras lutavam contra a miséria,
existiam poucas situações onde uma mulher poderia se impor.
De acordo com Graham, a condição jurídica da mulher brasileira, leia-
se livre e branca, no século XIX, era bem melhor do que a condição jurídica
da mulher inglesa nesse mesmo período, pois o Código Filipino de 1603
permitia que as mulheres tivessem o mesmo direito que seus irmãos quanto
ao falecimento de seus pais; os bens de um casal eram comum aos dois e cada
cônjuge possuía o direito a metade dos bens. Porém, segundo Isabel Camilo
de Camargo:

Entendemos que até certo ponto, a mulher brasileira, considerada bran-


ca e livre, tinha liberdade sobre algumas escolhas, mas não podemos
esquecer que elas eram em sua maioria analfabetas e, por isso, tinham
que ter auxílio de alguém de confiança, que era na maior parte das vezes
um homem (pai, irmão ou esposo), para ler documentos e firmar con-
cordância. Em contrapartida, elas tiveram uma grande participação no
processo de ocupação e fixação no sul do antigo Mato Grosso, pois além
das tarefas domésticas diárias e imprescindíveis para que esse movimen-
to desse certo, muitas vezes elas cuidavam das fazendas após ficarem vi-
úvas, construindo, assim, uma história permeada de conflitos, trabalho
e resistência. (CAMARGO, 2017, p.158)

O modelo patriarcal de família predominava entre os detentores de riqueza


e poder, com o papel da mulher fortemente associado a função de esposa e mãe.
Porém, já eram perceptíveis os sinais de contrastes nas estruturas familiares, com
mulheres chefes e casamentos “ilícitos”, novos estudos sobre a documentação
sugerem uma imagem feminina mais ativa na família e sociedade do século XIX.
Embora seu papel fosse limitado, face à manutenção dos privilégios masculinos,
pesquisas revelam mulheres mais empenhadas na defesa dos próprios direitos,
sobretudo nas camadas mais empobrecidas da população.

Ebook IV SIGESEX 69
4 - Novas Formas de Abordagem histórica: a utilização das
representações femininas nos Museus regionais.

Através de uma abordagem interdisciplinar, com influências dos


estudos sobre gênero, história, antropologia dos objetos, sociologia é possível
analisar os espaços museológicos com uma perspectiva que valorize a história
das mulheres e o saber/ fazer feminino. Reconhecendo a sobreposição e a
coexistência de diversas culturas, identidades, territórios sociais e espaciais.
Com uma vida doméstica e familiar muito ativa, lar de uma mulher do
século XIX diz muito sobre sua história. Sendo o Museu José Antônio Pereira
uma sede de fazenda, ele transmite de forma fiel a vida cotidiana da época. Ao
utilizarmos uma perspectiva de gênero para reavaliar sua estrutura, valorizamos
igualitariamente as diferenças, as contribuições, as realidades e os simbolismos
de homens e mulheres, alargando a aprofundando nosso conhecimento.
No museu encontram-se vários objetos expostos, entre eles destacam-
se: fogão a lenha, camas, cômodas, malas, carros de boi, lamparinas, utensílios
de cozinha, baús, pilão entre outros. O que mais chama atenção são alguns
utensílios que não fazem parte do acervo original da época, mas tentam
ilustrar a família do século XIX, a explicação sobre cada objeto é essencial para
esclarecer aos visitantes sua forma de utilização.
Na cozinha, observa-se a utilização de bacias de cobre, gamelas de
madeira para a preparação de pães, bolos e biscoitos, fogão de barro, panelas
de ferro e outros. Onde as mulheres passavam boa parte do dia preparando
o alimento dos homens que trabalhavam nas lavouras. Esses objetos
podem ensinar aos jovens e crianças sobre o processo de alimentação, do
fazer diário das mulheres, dos utensílios que eram utilizados nas casas no
século XIX.

Fonte: diárioms

70 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No quarto das meninas encontram-se camas feitas de couro, esse
cômodo anexo ao dos pais possuía uma posição estratégica. Para saírem de
seus quartos as moças precisavam obrigatoriamente passar pelo aposento dos
pais, sendo constantemente vigiadas. Esses objetos trazem representações do
controle familiar sobre as mulheres, da própria edificação que era projetada
em torno do ‘cuidado’ com as jovens.

Fonte: diárioms

Atualmente, exige-se dos educadores que trabalhem com conteúdos


que evidenciem a diversidade cultural e de gênero e sua transposição
didática, conforme previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
e nos Temas Transversais da Educação (TTE). Entretanto, existem poucas
publicações dirigidas aos educadores no Brasil que tratam dos aspectos
relacionados à educação e à cultura oferecendo alternativas para a prática
cotidiana. Para tanto, esse trabalho procura mostrar como identificar,
explorar e valorizar o patrimônio cultural regional, juntamente, com o
fundamental papel das mulheres na construção dessa identidade local,
tendo como base as informações conceituais e práticas.
Em suma, podemos dizer que a princípio temos esses objetos museais
para abordar a representação feminina, os quais estão sendo analisados
em contraponto ao fazer cotidiano das mulheres, que circunscreviam o
âmbito doméstico como sua única representação. A pesquisa ainda esta
em andamento e pretendemos aprofundar as demais dimensões do fazer
e saber feminino, com a inserção de outros objetos históricos que eram
utilizados pelas mulheres, que podem compor a exposição no Museu José
Antônio Pereira.

Ebook IV SIGESEX 71
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Ebook IV SIGESEX 73
Educar pelo patrimônio museológico:
diferentes perspectivas além da história oficial
Education by museologic patrimony: different
perspectives beyound the oficial history
Victor P. do Prado1
Jaqueline Ap. M. Zarbato2

RESUMO: Esse artigo faz parte do Grupo de Pesquisa Ensino de História,


Mulheres e Patrimônio, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O estudo
realiza uma análise da construção da história e da cultura que envolve o patrimônio
Campo-Grandense, em especifico do Museu José Antonio Pereira, buscando
referenciar suas diversas perspectivas. Nesse contexto, trabalhar com a educação
patrimonial é permitir o entrelace da valorização cultural e do patrimônio,
fundamentado em diferentes interpretações de estudantes e professores.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Patrimonial; Museu; Identidade
Cultural.

ABSTRACT: This article is part of the reserch group “ Pesquisa Ensino de História,
Mulheres e Patrimônio” of Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. The study makes a
analysis of the construcion of the history and the culture that involves the Campo-Grandense
patrimony, pursuing to reference the variety of perspectives. In this context, work along with
patrimonial education, and permit the interlace of the regional cultural valorization and the
patrimony, bases in the many different interpretetion of students and teachers.
KEYWORDS: Patrimonial Education; Museum; Cultural Identity.

1 - Reflexões sobre a Educação Patrimonial

Esse artigo pretende analisar a construção da identidade Campo-


Grandense e suas reflexões no Patrimônio Cultural Museológico, referenciando
as diversas possibilidades analíticas que norteiam a história do Museu José
1. Autor: Graduando em História Licenciatura pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Membro do Gru-
po de Pesquisa Ensino de História, Mulheres e Patrimônio.
2. Orientadora: Doutora e Professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa Ensino de História, Mulheres e Patrimônio. Faculdade de Ciências Humanas/Campus Campo Grande, Fone:
(067)3345-7000, 79.000-000 Campo Grande - MS / http://www.ufms.br e-mail: jaqueline.zarbato@gmail.com

74 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Antonio Pereira, além de identificar como o entrelace com a Educação
Patrimonial possibilita o olhar para as diversas perspectivas paralelas a história
oficial.
Vários conceitos norteiam o entendimento de educação e patrimônio,
enveredando para análises e reflexões acerca do patrimônio cultural e suas
aplicações na educação básica. São integrantes dessa reflexão debates sobre
identidade, cultura, memória e suas relações com a história.
Se faz necessário abordar o processo histórico que nos trouxe até o
conceito de patrimônio na contemporaneidade. O entendimento nasce
como um valor aristocrático, familiar, que por sua vez, estende-se a tudo que
é propriedade da família e que pode ser deixado por legado no testamento.
Aqui, elucida-se o caráter privado e individual do patrimônio cunhado
na aristocracia. Somente na alta idade média, com ápice do sistema feudal,
surge o patrimônio público através do cristianismo. A igreja e todos os seus
bens tornam-se imponentes patrimônios monumentalizados. Somente no
renascimento que esse quadro se modifica a partir de ideais humanistas que,
prezando o antropocentrismo, revive as antigas práticas patrimoniais, surgindo
uma nova preocupação em colecionar artefatos que remetiam a antiguidade.
(FUNARI & PELEGRINI, 2009)
Posteriormente, na sociedade francesa, após a revolução de 1763,
FUNARI & PELEGRINI (2009) observa como a necessidade de criar um
conjunto de valores, tanto culturais, linguísticos e territoriais, alicerçados a
educação de jovens e crianças, propôs inserir mecanismos de produção para o
ideal de nação. Em outros casos, esses estados precisaram imbuir o sentimento
de pertencimento; criar o cidadão. É assim que surge o conceito de patrimônio
que conhecemos hoje, não como algo privado, aristocrático, ou religioso, mas
sim como tradições culturais de um determinado povo, com origem, língua e
território. (FUNARI & PELEGRINI, 2009)
No início do século XX, tem-se as primeiras leis que regulamentavam
políticas públicas a respeito do patrimônio nos Estados Unidos e na França.
Nesse caso entendido como bem material concreto, caracterizado por valores
comuns a todos, enveredando para aspectos nacionalistas. Esse caráter
identitário nacional associado ao patrimônio eclodiu entre 1914 e 1945, onde
diversos países utilizavam de vestígios do passado triunfante como glória da
nação contemporânea. Movimentos como estes culminaram em guerras de
caráter nacionalista, superadas somente após a Segunda Guerra Mundial,
iniciando um período de quebra de diversas construções do passado, lutas

Ebook IV SIGESEX 75
sociais ganham grande espaço no palco da humanidade. O fim da guerra é um
marco nas representações da sociedade. Os ideais que nasceram no período
moderno, de um só território, com uma só língua em unidade nacional,
estavam sendo minados. (FUNARI & PELEGRINI, 2009)
É nesse contexto de lutas e maiores relações entre os países que nascem
novos conceitos de patrimônio. A diversidade começa a ser pautada a ponto de
reconhecer o patrimônio cultural em diversos grupos sociais, como indígenas,
mulheres e negros. Deixa-se de lado o nacionalismo uno. O conceito de
diversidade ganha espaço dentro das nações. Em meio ao emaranhado de
questionamentos, surgem novas interpretações a respeito do patrimônio. Não
é mais apenas o belo, monumental e material, agora o patrimônio também é
imaterial, não se valoriza só o que é feito como também o modo de fazer, o
tangível e o intangível. (FUNARI & PELEGRINI, 2009)
Segundo o art. 216 da constituição brasileira de 1988, o patrimônio
cultural brasileiro é entendido como os bens de natureza material e imaterial,
tomados como referência da identidade dos grupos formadores da sociedade,
nos quais incluem os modos de criar, fazer e viver, bem como os conjuntos
urbanos paisagísticos, artísticos, arqueológicos, paleontológicos, ecológicos e
científicos. Sendo o patrimônio protegido por lei nos aspectos de restauração,
preservação e utilização para fins de promoção cultural.
Esses elementos favorecem o aprofundamento, a produção de sentido,
o conhecimento das contribuições culturais de diferentes grupos, uma vez
que, no Brasil, temos as contribuições de povos originários com as culturas
advindas de nossos colonizadores, dos escravos, imigrantes europeus, asiáticos
entre outros. Reconhecer e identificar aspectos que compõem a pluralidade
cultural brasileira foi um dos primeiros grandes passos rumo a valorização do
patrimônio.
O patrimônio é detentor de uma história e, portanto, de uma cultura.
Segundo Helena Pinto (2015) “o patrimônio (...) é a expressão de uma
comunidade, da sua cultura, nas suas especificidades e convergências, sendo por
isso um fator identitário”. O bem patrimonial e a identidade são inseparáveis.
Nesse contributo que favorece a cultura de diferentes grupos sociais,
a história local passa a ser valorizada em suas especificidades e nos locais de
memória. Assim, relacionar a história e memória é essencial nesta análise,
pois como afirma Jacques Le Goff (1994, p 477) há memória, onde cresce a
história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro.

76 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Dias (2006, p.78) aponta que um patrimônio, como objeto de análise,
pode ter os seus significados e reinterpretações constantes, em função de
realidades socioculturais do presente. Assim, é no tempo presente que os
processos de qualificação dos bens patrimoniais envolvem as representações
de grupos sociais, suas manifestações e em algumas situações da consolidação,
dominação política e ideológica de alguns grupos.
A metodologia específica da Educação Patrimonial pode ser aplicada
a qualquer evidência material ou manifestação da cultura, seja um objeto ou
conjunto de bens, um monumento ou um sítio histórico ou arqueológico,
uma paisagem natural, um parque ou uma área de proteção ambiental, um
centro histórico urbano ou uma comunidade da área rural, uma manifestação
popular de caráter folclórico ou ritual, um processo de produção industrial
ou artesanal, tecnologias e saberes populares, e qualquer outra expressão
resultante da relação entre indivíduos e seu meio ambiente (Mattozi, 2009).
A educação patrimonial constitui-se de todos os processos educativos
que tem foco no patrimônio cultural. Horta, Grunberg e Monterio (1999, p
6) definem que “a educação patrimonial é um instrumento de ‘alfabetização
cultural” possibilitando “ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia”.
Desta forma, reforça o conhecimento crítico, assim como a apropriação dos
bens patrimoniais pela comunidade, inserindo o processo de preservação e
fortalecendo sentimentos de identidade e cidadania. Com base no Guia Básico
de Educação Patrimonial lançado em 1999 pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) define:

A Educação patrimonial é um processo permanente e sistemático de


trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fon-
te primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo.
Busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento,
apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para
um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção
de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural.
(GUIA BÁSICO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, 1999, p.7)

A educação e o patrimônio também norteiam perspectivas e reflexões


acerca do despertar da consciência histórica. Segundo Rusen (2011) consciência
histórica é o momento em que a informação inerte passa a ser utilizada com
ferramenta do dia a dia. Nesse processo, a educação histórica surge como

Ebook IV SIGESEX 77
uma linha de investigação que pretende analisar, compreender e discutir as
premissas em torno da formação histórica dos alunos. Logo, a história deve ser
apreendida como uma experiência cultural que coloca objetivos orientativos a
disposição do aluno (Rüsen, 2013).
Segundo Helena Pinto (2015), a visitação nos locais de memória, colocados
em evidencia histórica, contribuem para o despertar da consciência histórica:

O uso de estratégias de ensino que envolvam experiências com signifi-


cado, como as visitas a sítios e museus que os jovens possam explorar,
respondendo a questões abertas sobre evidência (de modo a diferen-
ciarem entre ‘saber’, ‘supor’ e ‘não saber’), numa atmosfera de expressão
livre, são fundamentais para o desenvolvimento do seu pensamento his-
tórico. (PINTO, 2015, p 205)

É necessário que o patrimônio seja utilizado como fonte, afim de promover


uma melhor interpretação da localidade, estrutura e relevância histórica, política,
econômica e social, valorizando a especificidade local e cultural junto a identidade
regional. É possível trabalhar a historicidade de uma comunidade através do estudo
dos bens materiais, unindo estudantes e professores, realizando uma experiência
interpretativa das evidencias históricas afim de construir a perspectiva do passado.
A função da didática patrimonial é facilitar a compreensão do passado e presente,
alicerçando posicionamentos futuros (PINTO, 2015).
Nesse processo, a Educação patrimonial favorece um diálogo permanente
entre os agentes que são responsáveis pela preservação dos bens culturais e a
fundamentação educacional como uma troca de conhecimento, visando
sobretudo o entendimento das formas de proteção e preservação de bens
culturais. Ademais, norteia a capacidade de leitura das fontes e de produção
das informações pertinente ao tema, produzindo e organizando informações
inferenciais, sejam elas de tempo, espaço ou temáticas, desenvolvendo um
texto baseado nas informações primárias e, logicamente, sobre aquelas fontes
extras que são colocadas à prova e consolidadas.

2- A Museologia das diversas perspectivas

No contexto das novas perspectivas em relação ao patrimônio cultural,


Hugues de Varine-Boham (1975) trouxe contributos em relação as reflexões
sobre o significado e a função do museu. Segundo LEMOS (2000), “Foi (...)

78 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Hugues de Varine-Boham quem nos fez encarar a problemática do Patrimônio
Cultural de modo bastante abrangente, graças às suas definições emanadas de
observações oportuníssimas”.
Varine-Boham sugere a divisão do Patrimônio cultural em três conceitos.
O primeiro seria o de natureza e meio ambiente, onde a análise permeia em
como a natureza interfere diretamente nos costumes culturais dos grupos sociais.
Em conseguinte, o conceito de saber e conhecimento, pontuando os saberes das
comunidades culturais e suas gerações, dando ênfase no que é intangível. O terceiro e
último é o artefato, simbolizando a mescla do saber, da natureza e do homem, a fusão
destes elementos resultaria no artefato em todo seu significado (LEMOS, 2000).
Esses conceitos precisam ser pontuados nas análises dos artefatos
patrimoniais. Tratar o objeto de forma isolada é categoriza-lo como um mero
fragmento. O museu precisa contextualizar seus artefatos, afim de remeter
toda sua carga de representatividade (LEMOS, 2000). Circe Bittencourt
(2008) aponta os signos que o objeto traz:

Os objetos de museus que compõem a cultura material são portadores


de informação sobre costumes, técnicas, condições econômicas, ritos e
crenças de nossos antepassados. Essas informações ou mensagens são
obtidas mediante uma “leitura dos objetos”, transformando-os em “do-
cumentos”. (BITTENCOURT, 2008, p 353)

Logo, é necessário a contextualização do artefato museulizado,


promovendo a identidade cultural. É nessa perspectiva que Varine-Boham
(1975) conceitua o ecomuseu3, sendo a natureza, saber e artefato uma
relação que elucida de forma explicita o contexto do objeto e a importância
do patrimônio para a construção da cultura ou nacionalidade histórica.
Conforme aponta Carlos Lemos:

[...] algumas coleções ou museus ditos “pedagógicos”, que, isolando ob-


jetos diversificados, nada elucidam, e mais nos constrangem com sua
inutilidade. Daí, também, a oportunidade dos chamados ecomuseus
integrados dentro de sistemas regionais, cujos acervos permanecem em
seus “habitats” naturais, procurando sempre manter inteligíveis as rela-
ções originais que os propiciaram” (LEMOS, 2000, p 12).
3. Ecomuseu seria a reunião de elementos de bens culturais inter-relacionados, dispostos de variadas maneiras, em
diversos lugares apropriados à visitação e dentro do próprio “habitat” de uma determinada sociedade de modo que se
possa apreender todo o seu processo evolutivo cultural (LEMOS 2000, p.12).

Ebook IV SIGESEX 79
Segundo o International Council Of Museums, “o museu é uma
instituição permanente (...) aberta ao público, que adquire, conserva, investiga,
transmite e expõe o patrimônio tangível e intangível da humanidade e de seu
entorno para educação, o estudo e o deleite”. O IPHAN conceitua o museu de
acordo com a LEI N° 11.904, de Janeiro de 2009:

Art. 1o Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições


sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpre-
tam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artís-
tico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas
ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.

Ademais, a lei também pontua os princípios fundamentais dos museus


que tem como vigência a valorização da dignidade humana; a promoção da
cidadania; o cumprimento da função social; a valorização e preservação do
patrimônio cultural e ambiental; a universalidade do acesso, o respeito e
a valorização à diversidade cultural; bem como o intercambio institucional
(BRASIL, 2009).

3- Educação patrimonial em Campo Grande

Trabalhando com as reflexões da educação pelo patrimônio museológico


na cidade de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, foi analisado
como é construída a história e a cultura que envolve o patrimônio Campo-
Grandense, buscando referenciar suas diversas perspectivas que vão permear a
cultura, identidade e representações.
Com a divisão do estado em 1977, houve preocupações acerca da
identidade regional, cultural e histórica desse novo estado, o que, segundo
Jerri Marin & Elda Terra Neta (2014), culminou na necessidade da criação da
história do estado:

[...] a tarefa de construir a história oficial para Mato Grosso do Sul, de


recriar seu passado, de solidificar os mitos de fundação e de ordenar
os fatos até dispersos e trazer à existência essa nova região. Fatos e epi-
sódios eram selecionados de forma a aparecer como ações naturais e
sem historicidade. Evocar o passado e as convicções dos antepassados

80 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


objetivava moldar as gerações ao instituir uma identidade onde todos se
reconheciam e se identificavam. Os fatos históricos e as datas deveriam
ser lembrados para serem festejados. A elaboração da história oficial e
a preocupação com a conservação dos documentos criavam tradições
compartilhadas, aspirações e interesses comuns” (MARIN & TERRA
NETA, 2014, p3)

Fazenda Bálsamo, Correio do Estado 1883.

Logo, a criação dessa história oficial buscava glorificar o passado,


elegendo “figuras que serviriam de modelos e arquétipo para os valores e
aspirações coletivas”, cujo objetivo final era transformar o povo heterogêneo
numa comunidade homogênea. (MARIN & TERRA NETA, 2014).
Nesse contexto, a história oficial atribuiu Jose Antonio Pereira como
fundador da cidade, remetendo todos os locais de memória seu espirito de
um desbravador, civilizador. Teria o mineiro José Antonio Pereira adentrado,
acompanhado de seu filho Antonio Luiz, as terras devolutas do sul de Mato
Grosso, onde apropriou suas primeiras terras, relatas como devolutas, sem
morada ou posse de ninguém. Após, retornou para Monte Alegre, afim de
trazer consigo para Mato Grosso toda sua família em comitiva, no que seria
sua moradia definitiva. Em parceria com Manoel Oliveira de Souza, José
Antonio teria ocupado as terras em 1875. Em 28 de setembro de 1886 o
bispo D. Carlos d’Amour registrou o povoado constituído por 86 casas, sendo
Pereira um representante do povoado (PALHANO, 2015).
No decreto municipal 4.931, de 18 de abril de 1983, é instituído e
denominado o museu pela Prefeita vigente Nelly Elias Bacha, que justifica

Ebook IV SIGESEX 81
sua ação afirmando ser a “antiga morada do fundador de Campo Grande”,
anteriormente denominada de Fazenda Bálsamo.
Predecessor ao decreto da prefeitura, o jornal Correio do Estado
publicou, em 4 de novembro de 1982, uma matéria intitulada “município
tombará o Museu”:

No final de setembro, um grupo de estudantes denunciou a precarieda-


de e o abandono do Museu, pedindo providências urgentes para preser-
var aquela parte da história desta cidade, pois ali morou o seu fundador.
Segundo a secretária Luiza Maria Fernandes Duarte, da Educação, essa
será uma das medidas para que o próximo ano a casa de José Antônio
Pereira possa ser restaurada pela Secretaria Patrimônio Artes Nacional
– SPHAN.

O museu enquanto casa do fundador é relatado como inverídico em 2


de agosto de 1988, pelo jornal Correio do Estado, através da entrevista com
Edson Contar, filho da doadora do Museu Carlinda Contar neta do fundador:

Frisa que existem muitas histórias interessantes sobre o local, mas ao


mesmo tempo várias inverídicas. Por exemplo, explicou que onde fun-
ciona o museu hoje, não foi a casa de José Antonio Pereira; ele a cons-
truiu para o seu filho, Antonio Luiz Pereira, apesar de ter vivido ali os
últimos dias de sua vida. (ARCA, cx11)

Euripedes Barnasulfo Pereira4, trineto de José Antonio Pereira, em


sua obra intitulada História da Fundação de Campo Grande de 2001, aponta
que a Fazenda Bálsamo foi morada de Antonio Luiz Pereira, contrapondo
as perspectivas outrora difundidas até mesmo pela Prefeitura. Entretanto,
até 2008 se vê reportagens jornalísticas que apontam o museu como casa do
fundador de Campo Grande. Por exemplo, em matéria publicada pelo Jornal
“O Estado” em 04 de Setembro de 2008:

Em visita ao museu, a reportagem de O Estado observou diversas racha-


duras e buracos nas paredes da casa de José Antonio Pereira, a maioria
no interior do local e próximas às portas e janelas. (ARCA, cx11)

4. Integrante do grupo de memorialistas defensores da História Oficial de Campo Grande.

82 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Além das divergências referentes ao antigo morador da Fazenda
Bálsamo, também há conflitos quanto quem está representado na escultura
em frente ao Museu. O jornal “Correio do Estado” traz a representação de
Antonio Luiz Pereira, sua esposa Anna Luiza e sua filha Zilda, entretanto, a
matéria do Jornal “O Estado” caracteriza a escultura com uma representação
de Jose Antonio Pereira, com sua esposa, Anna Luiza e uma das filhas.

Foto: Arquivo Pessoal Primeira Reforma da Fazenda Bálsamo em 11 de abril de 1982, Correio
do Estado.

O museu também sofre com seus diversos períodos de abandono, como


registrado pelo jornal Correio do Estado em 1988, em que, após sua abertura
ao público em 1983, o museu estava necessitando de reformas. O mesmo
ocorreu em 1999, quando o IPHAN, a pedido da prefeitura, organizou um
relatório que discorria a situação e as medidas que deveriam ser tomadas para
reforma do museu5. Uma última revitalização foi feita em 2007, sem mais
reformas desde então.
Se faz necessário analisar os mecanismos de proteção ao patrimônio,
tendo em vista o descaso com o Museu José Antonio Pereira. O Decreto-Lei
nº 25/1937, exposto no site do e-gov, estabelece em relação ao patrimonio
“(...) à vigilância permanente do IPHAN, que poderá inspecioná-los sempre
que for julgado conveniente, não podendo os respectivos proprietários ou
responsáveis criar obstáculos à inspeção sob pena de multa”.
A vigilância corresponde a manifestações de poder de polícia
outorgado aos entes federados para que possam tutelar administrativamente
o patrimônio. Tal vigilância só é remetida em função de uma “invocação” da
comunidade, o que implica em certa falta de efetividade, uma vez que pode
5. Arquivo Histórico de Campo Grande, cx 11, p2.

Ebook IV SIGESEX 83
ser de desconhecimento dessa determinada comunidade a necessidade de
invocação. (SOUSA; AZEVEDO NETTO; OLIVEIRA, 2018, p. 39)
Outro mecanismo de proteção do patrimonial cultural é o Tombamento,
previsto no §1º do artigo 216 da Constituição Federal. Esse mecanismo foi
utilizado pela prefeita Nelly Elias Bacha em decreto municipal 4.931, de 18
de abril de 1983. No entanto, a preservação do patrimônio tombado recai,
geralmente, sobre o cidadão, e o trabalho do Estado fica em segundo plano,
culminando, muitas vezes, no ruir do patrimônio por falta de manutenção.
(SOUSA; AZEVEDO NETTO; OLIVEIRA, 2018).
Analisando as divergências históricas da história de Campo Grande, bem
como seus reflexos nos locais de memória da cidade, como realizar atividades
educativas que tenham como objetivo a promoção da identidade e a cultura
campo-grandense, em meio ao emaranhado de conflitos e dúvidas? Afinal, como
se posiciona o estudante diante deste cenário de convergências? Responder esse
questionamento é promover a educação patrimonial na comunidade.
Nesse contexto, trabalhar com a educação patrimonial permite o
entrelace da valorização cultural regional e do patrimônio fundamentado em
diferentes interpretações, além da história oficial, de estudantes e professores,
trazendo toda a divergência historiográfica museológica.
O objetivo é aproximar o museu e a escola. O professor, inicialmente,
é um investigador no museu, analisando sua historicidade e possibilidades de
trabalho com os alunos que irão instigar novas perspectivas problematizadoras,
assim como as possíveis fontes que podem ser utilizadas como base para a
exploração e interpretação dos alunos no local de memória.
Posteriormente, é necessário apresentar o museu, explicando suas
nuances, história e espaço físico, estimulando a exploração de experiências
e quebrando com as frases “não tocar”, “não mexer”, que distanciam os
visitantes do museu. O Educador precisa contextualizar o estudante diante do
patrimônio, levantando aspectos de representatividade e identidade cultural.
Nesse ponto, deve-se adotar uma perspectiva que aproxima o visitante, tendo
este um papel de explorador, fazendo com que ele aprenda através de uma
experiência envolvente com o conhecimento. (SILVA & MORAES, 2015)
Trabalhando a “evidencia” enquanto vestígio do passado que reivindica
interpretações, Pinto (2015, p. 205) traz as experiências de visitação envolvendo
jovens em locais de memória que possam explorar, “respondendo a questões
abertas sobre evidencia (de modo a diferenciarem entre ‘saber’, ‘supor’ e ‘não
saber’), numa atmosfera de expressão livre”.

84 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Nesse processo, além do patrimônio enquanto fonte histórica, pode-se
colocar diante dos alunos fontes documentais que irão auxilia-lo na construção
do saber. Conforme Bittencourt (2008), “o objetivo é favorecer sua exploração
pelos alunos de maneira prazerosa e inteligível, sem causar muitos obstáculos
iniciais”, trabalhando com “documentos que forneçam informações claras”.
O estudante diante das fontes cria possibilidades e interpretações,
identificando inferências baseadas em suposições ou em evidencias. É
necessário que o patrimônio seja utilizado como fonte, a fim de promover
uma melhor interpretação da localidade, estrutura e relevância histórica,
política, econômica e social, valorizando a especificidade local e cultural junto
a identidade regional. Isso é fundamental para o desenvolvimento do seu
pensamento histórico. (PINTO, 2015)
A implantação de cursos de educação patrimonial, assim como da
organização de oficinas-escola contribui com o processo de envolvimento
da população. Segundo FUNARI & PELEGRINI (2009, p. 55) “esse
esforço, articulado com o estimulo à responsabilidade coletiva, contribuirá
para consolidar políticas de inclusão social, reabilitação e sustentabilidade
do patrimônio em nosso país”. Para tanto, é necessário que se trabalhe a
educação patrimonial com o objetivo de promover a consciência histórica e
o conhecimento sobre a relação presente e passado, e como esta evidencia a
cultural local e a identidade regional.
O patrimônio cultural representa a identidade regional de determinados
grupos sociais, sendo ele um local de memória e representatividade. Seu uso
como ambiente de promoção histórica e educacional é um grande contributo
para o desenvolvimento da consciência história e da alfabetização cultural.
A educação patrimonial é um mecanismo de ensino aprendizagem
que se constitui tanto na valorização e preservação do patrimônio regional
quanto na educação de crianças e jovens. O museu é local de aprendizado,
representatividade cultural e construção do saber, mesmo sendo palco de
divergências, uma vez que, tradicionalmente, a história oficial seleciona e
silencia a memória de várias comunidades. O patrimônio museológico pode e
dever ser usando como fonte histórica, afim de construir, na parceria de alunos
e professores, uma perspectiva abrangente, imbuída de pertencimento.

Ebook IV SIGESEX 85
Referências

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88 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O Jornal da Mulher e as representações do
feminino
The Jornal da Mulher and the representations of
the feminine
Lídia Kellenn Brito dos Santos1

RESUMO: Ao analisar o Jornal da Mulher, impresso que circula na


cidade de Corumbá/MS, nos deparamos com discursos que pretendem
(re) produzir papéis de gênero; esses discursos constroem representações
do feminino e masculino e permeiam o imaginário social. O objetivo deste
trabalho é problematizar as representações do feminino e demonstrar a
historicidade dos discursos presentes no impresso.
PALAVRAS-CHAVE: imprensa feminina; representações; Corumbá

ABSTRACT: When analyzing the Jornal da Mulher, printed in the city of Corumbá/
MS, we are faced with discourses that seek to (re) produce gender roles; these discourses
construct representations of the feminine and masculine and permeate the social imaginary.
The purpose of this paper is to problematize the representations of the feminine and to
demonstrate the historicity of the discourses present in the print.
KEYWORDS: women’s press; representations; Corumbá

Introdução

A partir de uma análise da história da imprensa periódica, nota-se o importante


papel que os impressos desempenham na sociedade desde a circulação de alguns
títulos no Brasil Colônia e, mais especificamente no Brasil Império, período no
qual os impressos são produzidos no país. Embora marcado por uma materialidade
simples, devido à falta de tecnologia e tipografias de qualidade, os jornais circulavam
e fomentavam embates políticos, culturais, sociais, econômicos etc.
Entre os séculos XIX e XX, a instalação de novas tipografias, as
1. Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – CPAN. Mestranda do Programa de Pós-
-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES. E-mail: lidia.kbs@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 89
inovações tecnológicas, as mudanças no campo político e cultural do
Brasil podem ser consideradas como as principais características que
resultam no crescimento da imprensa, na diversificação dos periódicos,
numa melhor materialidade (impressão e papéis de melhor qualidade e
inserção de ilustrações) e no crescimento do público leitor. No entanto, é
no século XX que ocorrem as grandes mudanças – período em que surge
a chamada “grande imprensa” ou “empresa-imprensa” –, momento no
qual a imprensa cresce e torna-se dependente do dinheiro da publicidade/
anúncios de produtos e estabelecimentos comerciais e, simultaneamente,
incentiva o consumismo, porém, “ainda que tivessem adentrado o
mundo dos negócios, os jornais não deixavam de se constituir em espaço
privilegiado de luta simbólica, por meio do qual diferentes segmentos
digladiavam-se em prol de seus interesses e interpretações sobre o mundo.”
(LUCA, 2012, p. 108).
As notícias sobre o cotidiano da vida urbana, os discursos que
denunciavam a presença ou a ausência da modernidade, do progresso e da
civilidade eram recorrentes nas páginas dos impressos periódicos da primeira
metade do século XX. (MARTINS, LUCA; 2012). Esses discursos também
apareciam nas páginas dos periódicos que circularam em Corumbá, entre o
final do XIX e as duas primeiras décadas do século XX, como nos informa
João Carlos de Souza (2008).
O município de Corumbá, localizado no atual estado de Mato Grosso
do Sul, iniciou suas atividades relacionadas à imprensa no ano de 1877,
quando Corumbá desfrutava do status de vila e se recuperava da Guerra com o
Paraguai. (SOUZA, 2008). Ressaltamos que a imprensa periódica desta cidade
foi muito produtiva e apresenta uma diversidade de títulos que são utilizados
por vários pesquisadores/as como fonte histórica para tratar de questões
relacionadas a educação e as relações de gênero, enfim, a imprensa periódica
nos dá elementos para apreender a dinâmica da cidade, as representações e as
lutas discursivas de um determinado período.
Considerando a fertilidade do periódico como fonte histórica, elegemos
o Jornal da Mulher para pensar as representações do feminino e evidenciar a
historicidade dos discursos. O periódico circula na cidade de Corumbá desde
08 de março de 2008 e é distribuído gratuitamente em restaurantes e outros
estabelecimentos comerciais que anunciam os seus serviços e, ao mesmo
tempo, contribuem para que o título seja publicado mensalmente.
O título, o design e o subtítulo que apresenta o Jornal da Mulher como

90 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“O Mais Feminino De Todas As Épocas” indicam qual é o público que o
impresso deseja atingir. Ao analisar os exemplares do periódico supracitado,
nos deparamos com discursos que pretendem (re) produzir papéis de gênero;
podemos identificar esses discursos nas matérias sobre maternidade, beleza,
saúde, culinária, relacionamentos, nas dicas que sugerem a forma correta de
educar os/as filhos/as e nos depoimentos de algumas mulheres da cidade.
Além dos conteúdos, o rosa é classificado como a cor oficial do periódico. Os
conteúdos e as características que dão forma ao periódico são utilizados/as
para retratar o “universo feminino”.
Dito isto, os discursos veiculados pelo impresso constroem representações
do feminino e do masculino e nos mostram que, apesar das reivindicações e
conquistas do movimento feminista, os papéis sociais estruturados a partir de
uma visão biológica do gênero permanecem no imaginário social; as pessoas
ainda enxergam o mundo através dos binarismos: a mulher deve se dedicar
aos afazeres domésticos, enquanto o homem deve trabalhar fora de casa para
prover o sustento da família.
A intenção deste trabalho é identificar e problematizar as representações
do feminino e demonstrar que os discursos (re) produzidos no Jornal da
Mulher foram construídos ao longo da história. Neste texto, analisaremos os
últimos exemplares do periódico, mais especificamente as publicações do ano
de 2018 e a edição de março de 2019.

1- O periódico: suas características e a relação com a sociedade

O campo da História não encara mais um documento como o portador


da verdade. A partir das contribuições geradas pelas discussões historiográficas
do século XX os/as historiadores/as não ficam restritos à documentação
oficial, por isso, diversos documentos podem ser transformados em fontes/
objetos, tal questão possibilita que as abordagens e temas se multipliquem;
e os grupos marginalizados pela sociedade e pela história, começam a ser
estudados por outra perspectiva, sendo assim, os indivíduos de cada grupo
tornam-se sujeitos históricos que foram invisibilizados pelas relações de poder,
porém, os pesquisadores/as reconhecem que esses sujeitos deixaram suas
marcas na sociedade, atuaram e resistiram. Essas mudanças no campo teórico-
metodológico caracterizam a (Nova) História Cultural, uma linha de pesquisa
da História que, nos dá elementos para construção deste trabalho.
Neste texto, optamos por trabalhar com a noção de representação para

Ebook IV SIGESEX 91
compreender como e por que determinadas representações aparecem com
frequência nas páginas do Jornal da Mulher. O uso dessa categoria nos ajuda
a evidenciar que os discursos disseminados pela imprensa não são neutros e
pretendem construir e impor um ideal, uma imagem que está de acordo com o
imaginário social do indivíduo ou grupo que produz os discursos.
Conforme ressalta Roger Chartier (2009, pp.51/2),

[...] a noção de representação não nos afasta nem do real nem do social. [...]
as representações não são simples imagens, verdadeiras ou falsas, de uma
realidade que lhes seria externa; elas possuem uma energia própria que leva
a crer que o mundo ou o passado é, efetivamente, o que dizem que é.

Apesar de compartilharmos da perspectiva que entende a “leitura como


produção de sentido” (GOULEMOT, 2011), não podemos desconsiderar que
as representações têm força e podem atingir diversas áreas da vida de homens e
mulheres, assim como, podem restringir as ações dos indivíduos.
O Jornal da Mulher é um projeto encabeçado por duas mulheres,
sendo Jackeline Cosenza a editora-chefe e Melisse Cosenza a responsável pela
arte e diagramação. O periódico tem diversas matérias, algumas são escritas
pela própria editora, outras são assinadas por algum especialista (dentista,
médico/a, psicólogo/a) ou são retiradas de um jornal/revista de circulação
nacional. É importante ressaltar que as organizadoras do Jornal da Mulher
pertencem e estabelecem relações com a classe mais abastada da cidade; essas
relações foram percebidas a partir da análise dos anúncios de restaurantes,
clínicas, instituições de ensino da rede privada e dos mais diferentes
estabelecimentos comerciais que estão estampados nas páginas do periódico,
além disso, notamos que as mulheres e homens entrevistados possuem alguma
ligação com o anunciante, seja por vínculo empregatício ou por pertencer à
família ou círculo de amizade do/a proprietário/a do restaurante, hotel etc.
Com essas informações, concluímos que o Jornal da Mulher “fala de um lugar
social” (CRUZ; PEIXOTO, 2007), representa as ideias e modos de vida de
uma determinada classe.
Observamos que além de ter o público feminino como alvo, o periódico
pretende atingir as leitoras e possíveis leitores da classe média, essa hipótese se
dá a partir do momento em que nos atentamos ao modo de distribuição dos
exemplares; como já foi dito anteriormente, o Jornal da Mulher é distribuído
gratuitamente em alguns locais do munícipio de Corumbá, no entanto, é

92 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


interessante pontuar que a editora distribui as publicações de cada mês entre
os seus anunciantes, dessa forma, o jornal pode ser adquirido nas clínicas, lojas
de materiais de construções, restaurantes e outros locais que, geralmente, não
são frequentados pela população mais pobre da cidade. Tal observação não
tem a intenção de afirmar que o Jornal da Mulher não pode ser lido por pessoas
que não pertencem a classe média do município, a ideia é apenas indicar o
público alvo do título analisado e demonstrar que todo produto da imprensa
periódica é pensado e constituído a partir dos interesses de um grupo.
De acordo com as descrições de Tania Regina de Luca (2013), o
Jornal da Mulher é uma publicação que pertence a imprensa feminina.
Por ser destinado às mulheres, o título não se preocupa em noticiar os
acontecimentos ligados à política e economia, pois tem como objetivo
principal discutir os assuntos que constituem o chamado “universo
feminino”. Além disso, o impresso é marcado por uma linguagem coloquial
que tenta aproximar o público leitor, “tal proximidade que carrega as
marcas da emoção e da afetividade, pode atuar como um importante elo
no processo de transmissão da informação, mas também de convencimento
e mesmo imposição [...]” (LUCA, 2013, p. 218). Tais características são
específicas da imprensa feminina. Ainda sobre esse segmento da imprensa,
Tânia Regina de Luca afirma que temas relacionados à

Moda, beleza, casa, culinária ou o cuidado com os filhos comportam uma


abordagem circular, ligada à natureza e às estações do ano: afinal, receitas,
recomendações e conselhos indicados para o inverno ou verão podem ser
retomados em anos subsequentes, desde que revestidos de ar de atualida-
de e apresentados como a última palavra no assunto. (2013, p. 218).

As publicações do Jornal da Mulher estão organizadas de acordo com as


datas comemorativas ou as estações do ano, e apresentam algumas seções fixas,
são elas: Espaço Gourmet, Design, Moda, Saúde Bucal. Além das características
supracitadas, Tânia Regina de Luca (2013, p. 218) afirma que a presença de
testes, “as receitas de autoajuda”, “os depoimentos e exemplos concretos de
força de vontade e superação” caracterizam esse tipo de impresso que circula
no Brasil desde o século XIX e já foi produzido apenas por homens. Devido
as características da sua materialidade e a quantidade de páginas (entre 32 a 40
páginas) o Jornal da Mulher pode ser classificado como uma revista feminina.
Em uma edição que comemora os oito anos de circulação do impresso,

Ebook IV SIGESEX 93
além de classificar o Jornal da Mulher como “um formato de consultoria”, a
editora aponta que o mesmo é “um projeto inovador na imprensa corumbaense”
e ao longo do editorial traz questões que podem contribuir para a nossa análise

Ao publicar a 100ª Edição, queremos agradecer em primeiro lugar a


Deus, nosso Pai Celeste, que nos guiou mês a mês, dando-nos sabedoria
para editar cada linha escrita durantes esses oito anos de caminhada. A
Ele, toda a Glória!
Mas o sucesso do JM é resultado, além de você leitor (a), de uma estreita
parceria entre a Redação e as empresas que acreditam no nosso traba-
lho. Aos anunciantes, nossas sinceras homenagens. (Jornal da Mulher,
03/2017. p.3).

O agradecimento à Deus expressa a proximidade do impresso com a


religião cristã, especialmente com a Igreja Católica, essa ligação pode ser
percebida na cobertura dos eventos promovidos pelas instituições religiosas
e, nas matérias que se utilizam das doutrinas cristãs e passagens bíblicas para
dar legitimidade aos discursos sobre a feminilidade. O trecho acima também
evidencia a importância da publicidade e da parceria com os empresários de
Corumbá para que o Jornal da Mulher continue em circulação.

2- Maternidade e beleza: atributos do feminino

A capa do mês de maio, destacada acima, traz questões interessantes para


pensarmos a forma como a maternidade
é retratada no Jornal da Mulher. O texto
intitulado “Um Anjo Chamado Mãe”
de autoria desconhecida, apresenta um
diálogo entre Deus e uma criança, ao
longo da conversa Deus tenta sanar as
dúvidas da criança sobre a vida terrena e
diz que uma pessoa, “um anjo” oferecerá
tudo o que ela precisa: amor, carinho,
proteção. O “anjo” também ficará
responsável pelos ensinamentos básicos,
ou seja, a comunicação com as pessoas
(Jornal da Mulher, 05/2018, p.1). e a ligação com a espiritualidade são

94 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


questões que aparecem no diálogo como indispensáveis para sobrevivência da
criança, e devem ser ensinadas pelo “anjo”. Como é possível observar, o “anjo”
representa a mãe que está disposta a fazer qualquer sacrifício para proteger
o/a filho/a, “mesmo que isto signifique arriscar a própria vida. ” (Jornal da
Mulher, 05/2018, p.1). Em síntese, ser mãe é ser uma pessoa paciente, amorosa
e dedicada, é estar disposta a fazer sacrifícios, e para desempenhar esse papel a
mulher deve incorporar todas as qualidades atribuídas à feminilidade.
Ressaltamos que a maternidade faz parte de um processo histórico, nem
sempre a mulher foi valorizada por dedicar parte da sua vida para gerar e cuidar
das crianças, a partir do século XVIII ocorre um “processo de maternalização”
(MEYER, SCHWENGBER, 2015), momento no qual a mulher passa a ser a
pessoa responsável não só pela gestação, portanto, do século XVIII em diante
a figura materna deve proteger, educar e acompanhar os/as filhos/as desde o
nascimento até a vida adulta.
A capa do impresso também apresenta a imagem de um bebê envolvido
por uma rosa, aqui a rosa faz referência ao útero, à delicadeza, à proteção
que este órgão oferece ao feto durante os nove meses de gestação, além
disso, podemos interpretar essa imagem como uma forma de romantizar
a maternidade, questão que pode ser percebida não só durante a análise da
imagem e do texto presentes na capa do periódico, mas também em outras
páginas do Jornal da Mulher. Frases como: “A maternidade é o sentimento
mais sublime...” ou “’Mãe’ é o maior e mais honrado título que uma mulher
pode receber” (Jornal da Mulher, 05/2018, p. 2) expressam o valor que a revista
atribui a esse acontecimento que, aparece como o momento mais importante
na vida de uma mulher.
Os trechos de duas matérias, destacados abaixo, indicam a forma
como o periódico entende o feminino e o masculino. Os papéis de gênero
são interpretados a partir da concepção biológica do gênero, sendo assim,
a feminilidade e masculinidade são, respectivamente, características da
mulher e do homem; são comportamentos que se manifestam e se acentuam,
naturalmente, ao longo da vida.

Algumas coisas que Mães de menina irão descobrir:


Meninas são diferentes dos meninos? Os especialistas são unânimes ao
dizer que o fator hormonal interfere, sim, no temperamento e na per-
sonalidade de cada sexo. Saiba mais! ( Jornal da Mulher, 05/2018, p. 6).
Coisas que Mães de menino irão descobrir:

Ebook IV SIGESEX 95
Novos estudos comprovam o que muitos pais já sabem: desde cedo,
cada sexo revela diferenças de gostos, habilidades e formas de aprender.
(Jornal da Mulher, 05/2018, p. 8).

Nenhuma das matérias está assinada, porém é interessante ressaltar


que, a fim de garantir a legitimidade dos textos que explicam as diferenças
de comportamento entre homens e mulheres, as matérias fazem referência
à algumas pesquisas e especialistas. A presença de especialistas de diversas
áreas é uma marca da imprensa feminina, é uma estratégia que ajuda a dar
legitimidade aos conteúdos veiculados (LUCA, 2013).
A beleza ou a busca pela beleza também caracterizam a feminilidade. Se
a mulher não está de acordo com os padrões de beleza de uma época, as revistas
femininas sugerem a dieta certa para que ela consiga o corpo ideal e oferecem
várias dicas de maquiagem e moda. O Jornal da Mulher, como um produto
da imprensa feminina, abarca diversas matérias sobre moda, beleza e o corpo
feminino, no entanto, vamos destacar uma matéria que discute as mudanças
do corpo feminino e retrata a idade como “um desastre para a saúde e a beleza
feminina”. (Jornal da Mulher, 10/2018, p. 36).

As mulheres ficam transtornadas com as marcas que a vida e os anos dei-


xam em seu corpo. Quilos a mais, rugas, cabelos brancos e pele flácida in-
comodam a todas em maior ou menor grau. O envelhecimento só é natural
no nome. A luta das mulheres para atenuar o inevitável é uma das mais
férreas batalhas da história da humanidade. Finalmente, parece ter chega-
do o tempo de colher algumas vitórias. (Jornal da Mulher, 10/2018, p. 36).

Através da análise do trecho destacado e dos tópicos da matéria “Como


a Mulher Amadurece”, identificamos que beleza e juventude parecem ser
sinônimos. Há um tópico dedicado para cada década da vida de uma mulher;
a matéria apresenta as mudanças no corpo e as estratégias (dietas, exercícios,
tratamentos hormonais e inovações da medicina) que as mulheres podem
utilizar em determinada fase da vida. Ainda de acordo com o texto, a luta pela
beleza e juventude deve começar a partir dos 30 anos, classificada como a idade
“da prevenção”. (Jornal da Mulher, 10/2018, p. 36). Como vimos, a beleza é
um dos elementos que constituem o ideal de feminilidade; não por acaso o
termo “belo sexo” já foi muito utilizado para representar o feminino.
É recorrente, no Jornal da Mulher, a ideia de que há atividades específicas

96 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


para cada sexo. Os papéis de gênero reproduzidos pela revista supracitada são
estruturados por um viés biológico e correspondem à uma construção histórica
e social que se utiliza de diversos discursos (religioso, filosófico, jurídico e
médico) para se legitimar (COLLING, 2014). Esses discursos servem para
organizar e hierarquizar a sociedade, são disseminados por diversas instituições
e veículos de comunicação, enfim, estão presentes no imaginário social. Dito
isto, ressaltamos que as representações contidas no Jornal da Mulher possuem
historicidade.
No presente trabalho utilizamos a categoria de gênero, pois entendemos que

A ideia de gênero, diferença de sexos baseada na cultura e produzida


pela história, [...] tenta desconstruir o universal e mostrar a sua histo-
ricidade. São as sociedades, as civilizações que conferem sentido à di-
ferença, portanto não há verdade na diferença entre os sexos, mas um
esforço interminável para dar-lhe sentido, interpretá-la e cultivá-la.
(COLLING, 2014, p. 28).

De acordo com a análise que nós realizamos até o momento, o impresso


“Mais Feminino de Todas As Épocas” representa a mulher de acordo com o
ideal de feminilidade, isso explica a valorização da figura materna que abdica
de todos os seus desejos para cuidar dos/as filhos/as, a presença das seções
Gourmet e Design que abarcam as dicas de culinária e decoração, e as sugestões
para que a mulher se preocupe com a aparência, para que a beleza e a juventude
sejam mantidas ou conquistadas.

3- Mudanças e permanências

Embora o Jornal da Mulher utilize várias de suas páginas para enaltecer


a feminilidade, ao analisar algumas edições do impresso nos deparamos com
algumas mudanças nos discursos. Na edição dedicada ao dia das mães, há um
texto intitulado “Mães que trabalham” que trata sobre a dupla jornada, algo
que faz parte da rotina de muitas mulheres e é resultado da divisão sexual do
trabalho. De acordo com a matéria, as mulheres que trabalham fora de casa
e são responsáveis pelo sustento da família “estão aprendendo, a duras penas,
a conciliar trabalho e vida familiar simultaneamente. ” (Jornal da Mulher,
05/2018, p. 12). Porém, o texto indica que os papéis sociais precisam ser
repensados, sendo assim, “redefinir os papéis materno e paterno é, mais do

Ebook IV SIGESEX 97
que nunca, absolutamente fundamental. Não que seja fácil, pois as imagens
idealizadas de pai e mãe ainda estão muito fortes em nossas mentes e corações.
” (Jornal da Mulher, 05/2018, p. 12).
A edição do mês de novembro de 2018 sugere como a mulher deve
preparar a casa para as festividades do final de ano, mas também publica um
texto sobre a campanha “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra
a Mulher” e ainda problematiza a dependência afetiva na matéria “Mulheres
que amam demais”.
Algumas matérias que estão presentes na edição de 08 de março também
chamaram a nossa atenção. O texto “Por que 8 de Março? ” aponta algumas
reivindicações do movimento feminista/movimento de mulheres e tenta explicar
as questões que impulsionaram a criação do Dia Internacional da Mulher.
A matéria “Ícones Femininos” destaca algumas mulheres do cenário
nacional, são elas: Princesa Isabel, Chiquinha Gonzaga, Nísia Floresta, Nair
Teffé, Alzira Soriana, Bertha Lutz, Leila Diniz, Nise da Silveira, Zuzu Angel,
Marília Grabriela e Carmen da Silva. O texto é constituído por uma foto e uma
pequena biografia que ressalta as contribuições de cada uma dessas mulheres
para a sociedade.
(Jornal da Mulher, 03/2018, p. 34).

A mesma matéria é publicada novamente na edição de março de 2019,


porém Glória Maria, Maria da Penha e Dilma Rousseff completam o grupo
dos ícones femininos. “Feminismo: o injusto desprezo atual” é o título de uma
reportagem que apresenta e discute a importância do movimento. Além disso,
tópicos que ocupam duas páginas do impresso pretendem apagar a imagem
negativa associada ao feminismo.
As matérias destacadas ao longo desse último tópico destoam do ideal
de feminilidade defendido em diversas edições do impresso, no entanto, as
discussões sobre violência contra mulher, feminismo e dupla jornada de

98 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


trabalho são temas que estão presentes em nosso cotidiano e são debatidos
por vários veículos de comunicação do cenário nacional e internacional. Para
Tania Regina de Luca (2013, p. 226) a imprensa “é um veículo da ordem e
também da mudança e da transformação”, portanto, não podemos esquecer
que a imprensa acompanha e dialoga com o seu tempo.

Considerações Finais

Como foi possível perceber ao longo desse texto, o Jornal da Mulher


apresenta representações do feminino e masculino que são construídas a
partir de um viés biológico do termo gênero. Os discursos presentes na revista
demonstram que, apesar de estarmos no século XXI os papéis de gênero ainda
permanecem no imaginário social.
Por fim, a partir da análise do Jornal da Mulher tentamos demonstrar
que uma publicação da imprensa periódica pode ser uma fonte histórica
interessante para compreendermos não só o cotidiano de uma localidade,
mas também as lutas por representações que constituem uma sociedade, e que
assim como qualquer outro documento, o periódico é pensado para atingir e
representar as visões de mundo de um grupo específico.

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100 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A mulher como “sujeita” de direito: forma
singular e classista de reconhecimento
The woman as a subject of law: singular form and
classist of recognition
Edna Aparecida Ferreira Benedicto1

RESUMO: No artigo procuramos versar sobre o reconhecimento das


mulheres como sujeitas de direito. Discutimos sobre a forma como o direito
moderno se constituiu para compreender o seu reconhecimento, primeiro
como sujeita histórica, condições nine qua nun no Direito moderno para que
tal ocorra. No reconhecimento dos direitos das mulheres não se encontra
incluídas todas as mulheres, mas sim as mulheres consideradas capazes de
estabelecer contratos, possuir propriedades e bens.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher. Sujeito de Direito. Direito Moderno.

ABSTRACT:In the article we try to deal with the recognition of women as subjects
of law. We discuss how modern law was constituted to understand its recognition, first as
historical subject, conditions nine qua nun in modern Law for this to occur. In the recognition
of women’s rights, not all women are included, but women who are considered capable of
establishing contracts, possessing property and goods.
KEYWORDS: Woman. Subject of Law. Modern Law.

Introdução

A História e o Direito têm renegado as mulheres a uma condição de


silêncio, “a muito as mulheres são as esquecidas, as sem-voz da História”
(PERROT, 2003, p.13), ocupam um lugar secundário e são alijadas dos
grandes acontecimentos da história (GUARDIA, 2015). As mulheres não
1. Este artigo compõe parte das discussões da dissertação de mestrado intitulada “Palavra e escrita de homens: as
mulheres no novo código civil brasileiro”. Mestre pelo Programa de Pós Graduação da UFGD (Universidade Federal
da Grande Dourados); Professora da Rede Estadual de Educação/MS. ednabenedicto@gmail.com.

Ebook IV SIGESEX 101


possuem história, não há do que se orgulhar, “toda a história das mulheres
foi feita pelos homens” (BEAUVOUR, 1980, p. 167), “sobre este solo de
história, as mulheres, de forma precária, tornaram-se herdeiras de um presente
sem passado, de um passado decomposto, disperso, confuso” (DEL PRIORI,
1998, p. 217). Porém, “uma História “sem mulheres” parece impossível”
(PERROT, 2007, p.13).

Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em


locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma
inovação do século 19 que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no en-
tanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de
silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais,
da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres,
como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrá-
vel, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento
(PERROT, 2005, p. 09).

Até começo do século XX, no Brasil, as mulheres eram sujeitas


invisibilizadas na História e no Direito, não que elas não existissem. No Direito
a mulher parece ocupar um “não lugar” até se fazer reconhecer como sujeito
de direito. Sua presença histórica foi marcada pelas ausências. Submetidas aos
maridos, pais ou irmãos a quem devia obediência, sua presença histórica foi
pouco registrada. Os espaços de poder, os espaços de fala e o mundo jurídico
não as reconheciam como portadoras de direitos. As atividades econômicas,
por meio do trabalho não eram valorizadas. O mundo científico se fechava
para elas. Encerradas no mundo privado, presa a estereótipos de moça casta e
pura, de mãe, rainha lar, boa esposa. “La Mujer, las mujeres; conocemos esta
tensión sorda entre la imagem idealizada, simbolizada, y la realidad concreta.”
(FRAISSE, 2003, p. 12).
Para se fazer reconhecer como sujeito histórico algumas mulheres
sozinhas ou em grupos ocuparam a cena pública de poder com sua escrita e sua
fala. Por meio desses instrumentos passaram a requerer para si a condição de
sujeito de direitos e cidadãs, quebrando todas as barreiras sexistas do sujeito
universal masculino. Assim, o objetivo do artigo é contribuir com a discussão
sobre o processo de reconhecimento da mulher como pessoa sujeita de direito
e não mais como uma pessoa sujeita ao direito masculino.

102 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


1- A mulher como sujeita de direito

As mulheres para se fazerem reconhecidas como sujeita de direito


primeiramente tiveram que se fazerem reconhecidas como sujeitas de sua história.
A palavra escrita, a fala pública e a ocupação dos espaços masculinos de poder
foi fundamental no processo de abertura para as conquistas de direitos. Não foi
um caminho fácil de ser trilhado. Escrita, falas, ocupação dos espaços públicos de
poder foram manchado com muito suor e sangue ao longo dos séculos.
De acordo com Groppi (1995) e Fraisse (2003), a questão do
reconhecimento da mulher como sujeito de direito começa a se fazer presente
no momento em que há um enfrentamento dos discursos sobre a cidadania
na perspectiva da articulação masculino/feminino. O reconhecimento de
trajetória de mulheres como Olympe de Gouges, na França, ao apresentar a
Declaração dos Direitos da Mulher em 1791 e, quando Mary Wollstonecraft,
na Inglaterra, publica Vindication of the rights of woman, no ano de 1792,
foram fundamentais nesse processo, ao reivindicarem uma co-presença no
terreno político, baseada na ideia de que a diferença de sexo não deve justificar
a exclusão das mulheres do poder político e da cidadania. “O sujeito feminino
quer se juntar ao masculino e não obliterá-lo, no momento em que afirma a sua
especificidade” (GROPPI, 1995, p. 14).
A diferença sexual foi fundamental nas discussões que procuraram
atrelar as mulheres ao discurso da natureza, para não reconhecê-las como
sujeitos de direito, sujeitos históricos e cidadãs. Tanto Laqueur (2001), quanto
Foucault (2015) são categóricos ao apontar que a partir do século XVIII o
sexo, a sexualidade entram na ordem discursiva adentrando o campo do poder,
com finalidade política, econômica de gerir a população, controlar a mão de
obra de forma racional. Os discursos da natureza pesaram mais sobre o sexo e
a sexualidade das mulheres do que dos homens.
Para Laqueur (2001) a construção cientifica discursiva sobre o sexo aponta
para a diferenciação de dois gêneros, seguindo o discurso da existência do “modelo
de sexo único”. Toda discussão sobre a diferença dos sexos só aconteceu “quando
essas diferenças se tornaram politicamente importantes” e foram abertos pela
revolução intelectual, econômica e política dos séculos XVIII e XIX.

O sexo foi também um importante campo de batalha da Revolução


Francesa: “uma contestação entre homem e mulher, onde a criação re-
volucionária da classe média de cultura política validava a cultura po-

Ebook IV SIGESEX 103


lítica dos homens e culpava as mulheres”. [...] As promessas da Revo-
lução Francesa – que a humanidade em todas as suas relações sociais e
culturais podia ser regenerada, que as mulheres podiam atingir não só
liberdades civis como também pessoais, que a família, a moralidade e
as relações pessoais podiam ser renovadas – fizeram surgir não só um
feminismo novo e genuíno como também um novo tipo de antifemi-
nismo, um novo medo das mulheres, e fronteiras políticas que criaram
fronteiras sexuais (LAQUEUR, 2001, p. 242).

Somente a partir do final do século XIX e início do XX é que novamente


as questões relacionadas aos direitos femininos voltam a ser reivindicados.
Simone de Beauvoir (1980) é uma das primeiras pensadoras a questionar o
sujeito universal iluminista e sua presunção ao universal, a neutralidade e a
unidade. “O homem é sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.” (BEVOUIR, 1980,
p. 10).
Dito de outra forma pela autora: “o sujeito só se põe em se opondo: ele
pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objeto”.
Dessa forma, seu argumento aponta que no mundo social existem aqueles
que ocupam a posição não específica, sem marcação social, de raça, religião ou
sexual, pretendendo-se como universal e os que são definidos a partir de uma
redução, a marca da sua diferença, no caso da mulher “o sexo”, que a aprisiona
na sua especificidade – o Outro. Enquanto o homem está envolvido numa
representação de totalidade e possui a qualidade de um gênero diante do outro
(BEAUVOUIR, 1980, p. 12).
Daí decorre, segundo Fraisse (2003), uma dificuldade das mulheres em
se constituir como sujeito de direito, de vincular participação e representação.
Diferente do homem, que desde sempre, corresponde a uma definição geral ou
unívoca, a mulher se deixa apreender em porções susceptíveis de adicionar-se
ao invés de adicionar-se em apenas uma faceta. O sujeito mulher se constituiu
abandonando toda uma série de dependências com relação aos homens e a
sociedade. A incapacidade civil, a tutela da esposa e da filha, a inferioridade
moral e política foram realidades e representações de peso. Já o homem
histórico se constituiu através de suas funções (nobre, proprietário, chefe de
família, trabalhador) e em seguida foi convertido em uma abstração, em uma
entidade representativa dos demais.
De acordo com Wolkmer (2003), a cultura jurídica produzida ao
longo do século XVII e XVIII, na Europa e que irradiou por todo o ocidente,

104 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


inclusive o Brasil, é o resultado de “um complexo específico de condições
engendradas pela formação social da burguesia, pelo desenvolvimento
econômico capitalista, pela justificação de interesses liberal-individualistas e
por uma estrutura estatal centralizada.” (WOLKMER, 2003, p. 21).
Por sua vez, Neder (1995) e Adorno (1988) concordam que o ideário
iluminista chegou ao Brasil antes mesmo do capitalismo ser implantado. Para
Adorno (1988) a agenda liberal significou progresso, liberdade, modernidade
e civilização para as elites proprietárias rurais no início da formação do Estado
Nacional. As mulheres eram consideradas “não-sujeitos”, nem histórico e nem
de direito. A naturalização da sua inferioridade e da sua submissão somada a
forte presença do patriarcado e do autoritarismo predominante nas estruturas
societais e, sua capacidade de se reinventar foi se adequando as transformações
sociais, políticas e econômicas. A organização política e administrativa da
República apesar de afirmar que “todos são iguais perante a lei”, inspirada nos
princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, em “todos” não estavam
incluídas as mulheres, nem mesmo as das elites. “[...] essas mulheres viviam em
estruturas culturais, sociais e econômicas majoritariamente criadas por homens
e para favorecê-los, já que baseadas em ideias de superioridade masculina e de
subordinação feminina.” (HAHNER, 2013, p.43).
A aplicação desses princípios que ordenavam a formação do Brasil
republicano incluíram as mulheres no contexto de formação da sociedade
“moderna” utilizando uma variedade de instrumentos coercitivos para adequá-
las ao novo modelo de família que se projetava.

Modernizaram-se, então, as concepções sobre o lugar da mulher nos


alicerces da moral familiar e social. Ao contrário da ‘família tradicional’,
aquela extensa, com a centralidade no pater-familia (da época colonial
e do período do Império), a ‘nova mulher’ deveria ser educada para de-
sempenhar o papel de mãe (também uma educadora – dos filhos) e era
importante no desenvolvimento da sensibilidade romântica. Sobretu-
do, torna-se figura chave de suporte do homem. A ‘boa esposa’ e ‘boa
mãe’ deveria ser uma mulher prendada e deveria ira à escola, aprender a
ler e escrever para bem desempenhar sua ‘missão educadora’ (NEDER,
CERQUEIRA FILHO, 2007, p. 15, grifos dos autores).

Podemos compreender que todo o conjunto de ordenação jurídica


situa os indivíduos em um mesmo patamar, sem levar em consideração

Ebook IV SIGESEX 105


as desigualdades e as diferenças. Sobretudo quando nos detemos em seus
principais institutos: o direito a propriedade e o contrato. Dentro da cultura
liberal-individual o principal instrumento que permeia as relações humanas é o
contrato, constitui-se em símbolo máximo do poder da vontade do indivíduo, é
celebrado entre sujeitos considerados iguais e autônomos, “contrato é o acordo
de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a
estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo
de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”
(DINIZ, 2008, p. 30). O sujeito referido não é qualquer sujeito, mas o sujeito
de direito que é uma das categorias nucleares do Direito Moderno.
Se, portanto, sujeitos de direitos são compreendidos aqueles capazes
de fazer contratos em condição de igualdade, as mulheres, por não
estarem equiparadas aos homens não são consideradas capazes de fazer
contratos, não são sujeitos de direito. Para alcançar a igualdade propalada
pelos contratualistas e se tornarem sujeitos ou (des)sujeitas de direito,
as mulheres tiveram que travar lutas históricas. Isso por que, segundo
Foucault (2002), a constituição de um sujeito não é dado definitivamente,
ele se constitui no interior mesmo da história e a cada instante é fundado
e refundado pela história, pelas práticas sociais. A emergência de novas
formas de subjetividades está localizada principalmente nas práticas
jurídicas, judiciárias sob a forma de controle, conformando os indivíduos
ou não com a lei no nível do que podem fazer, do que são capazes de
fazer. Dessa forma, a lei capitalista constituída a partir do século XVIII se
desviará da chamada utilidade social, mas ajusta-se ao indivíduo, tirando a
exclusividade do poder judiciário de julgar e punir, utilizando-se de outras
instituições como a escola, a psiquiatria, entre outras para controlar os
indivíduos. O novo saber se ordena em torno da norma, do que é normal
ou não, correto ou não, do que deve ou não fazer. Dessa forma, a sociedade
capitalista foi criando mecanismos que fizeram com que o ser humano se
tornasse um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como sendo
sua. Ou seja, o sujeito é constituído, produzido dentro de uma conjunção
de estratégias de poder, é produto das relações de poder e não seu produtor,
tornando-se um enunciado social, como no caso homem ou mulher,
sujeitos deste ou daquele discurso que será reclamado pelas diferentes
ciências (FOUCAULT, 2002).
Todo esse arcabouço jurídico liberal-individualista foi fundamentado
sobre a ideia central de benefício de único sexo: o sujeito masculino, tendo por

106 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


base, de acordo com Laqueur (2001), uma grande quantidade de escritos do
século XVIII e XIX sobre as diferenças biológicas, que discutiam sobre família,
gênero e argumentavam que as diferenças corporais exigiam diferenças sociais
e legais do novo processo de codificação e que as mulheres eram incapazes de
assumir responsabilidades cívicas.
Para Laqueur (2001), a interpretação do corpo teve raízes também em
circunstâncias menos temporais: A Teoria do Contrato Social. Essa teoria
postulava um corpo indiferenciado nos seus desejos, interesses e capacidade
de raciocínio. A teoria liberal começou com um corpo neutro individual,
com sexo, mas sem gênero, indo em sentido contrário com a realidade vivida
marcada pelo domínio do homem, divisão sexual do trabalho. Para resolver
essa contradição, segundo Pateman (1993) os contratualistas introduziram
características sociais na condição natural. Por outro lado, a biologia ofereceu
uma formula de explicar, afirmando que em estado natural e anterior as
relações sociais as mulheres já eram subordinadas aos homens e que, portanto,
o contato social só podia ser criado entre os homens, um elo fraternal.
“Ironicamente, o sujeito racional sem gênero produziu sexos opostos com
gênero.” (LAQUEUR, 2001, p. 244).
A partir de então, a invisibilidade das mulheres na sociedade burguesa
capitalista foi sendo produzida pela hegemonia do sujeito masculino
universal. No pensamento liberal, formulado pelos pensadores Iluministas, a
noção de sujeito universal está estritamente relacionada ao sexo masculino:
livre, autônomo e racional. Ao conceber o sujeito universal, atribuem a ele um
caráter de homogeneidade, de unidade.
Segundo a teoria contratualista todos os “homens nascem livres” e são
iguais, são “indivíduos”, ou seja, possuem a propriedade de suas pessoas. Sendo
assim, pergunta Pateman (1993): – Como pode existir os direitos políticos?
Responde: Isso só é possível, sem negar o pressuposto inicial da liberdade e da
igualdade, por meio de um acordo. Porém, as mulheres não nascem livres, não
tem liberdade natural. Assim, para todos os teóricos clássicos, exceto Hobbes,
as mulheres não têm nem os atributos e nem as capacidades dos “indivíduos”
– livre, autônomo, racional, proprietário, ou seja, as diferenças sexuais é uma
diferença política, diferença entre liberdade e sujeição. “As mulheres são objeto
do contrato. O contrato sexual é o meio pelo qual os homens transformam seu
direito natural sobre as mulheres na segurança do direito patriarcal civil”. As
mulheres participam do contrato social somente na esfera civil, no contrato
matrimonial e se transformam em subordinadas (PATEMAN, 1993, p.21).

Ebook IV SIGESEX 107


Isso se deve ao fato de que, segundo Pateman (1993), a percepção da
sociedade civil pós-patriarcal, formada a partir da ordem civil moderna, depende
da ambiguidade do termo sociedade civil, compreendida hora como uma ordem
contratual que sucede a ordem pré-moderna do status para o qual foi convertido o
contrato, hora a sociedade civil substitui o estado natural. A maioria dos ocupantes
dos cargos de poder se aproveitam da ambiguidade do termo civil. A sociedade civil
se diferencia de outras ordens pela diferenciação entre as esferas pública e privada.
“O contrato social dá origem ao mundo público da legislação civil, da liberdade e
da igualdade civil, do contrato e do indivíduo.” (PATEMAN, 1993, p. 27).
Na Constituição da República francesa, e movimento semelhante parece
ocorrer na Constituição da República brasileira, aponta Fraisse (2003), o indivíduo
democrático não tem sexo, é um neutro, o que é muito mais importante que a
unidade e a indivisibilidade. Porém, não é simples pensar o neutro. O masculino
se apoderou abusivamente da generalidade do neutro. O movimento por paridade
tem sabido criticar a esta falsa neutralidade, mas enfrenta a necessidade de afirmar
a ambos os sexos no marco da universalidade. Ao mesmo tempo desaparece no uso
da linguagem a descrição sexuada do social. O neutro aparece como uma máscara
da desigualdade e continuará sendo exaltada como virtude política.
Nos séculos XIX e XX, as mulheres se deram conta que elas existiam
na sociedade segundo o pensamento dos homens e para atender as várias
necessidades sociais. Perceberam também que os homens eram mais livres,
tinham mais autonomia e eram mais individualizados, nos seus distintos
espaços de domínio, que vai da casa, passa pela rua, e chega às instituições
políticas de tomada de decisão. As mulheres, para alcançarem o status de
sujeitos de direito na legislação moderna, tiveram que fazer reconhecer-se
que de fato são sujeitos históricos com vasta contribuição à sociedade, sendo,
portanto, merecedoras de direitos e deveres iguais aos dos homens.
No Brasil, o processo de imposição de reconhecimento da mulher
como sujeito histórico começou a ocorrer na segunda metade do século XIX,
quando a situação das mulheres no Brasil começava a se modificar, assim como
toda a estrutura social do país. As Senhoras Abolicionistas, foram, de acordo
com Barreto e Silva (2014), Sant’Anna (2006), as primeiras mulheres a se
despertarem para o reconhecimento das mulheres como sujeitos históricos,
como militantes abolicionistas, portanto, sujeitos políticos. Porém, os autores
não estão considerando as lutas e resistências individuais ou coletivas de tantas
outras mulheres desconhecidas, silenciadas, apagadas da história que lutaram
para defender seu povo, como tantas indígenas e mulheres escravizadas,

108 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


trabalhadoras pobres que lutaram contra sua condição social antes, durante
e após a abolição. Outras tantas mulheres, ainda no século XIX, começam a
dar suas primeiras aparições no meio intelectual e social, como Nísia Floresta,
travando uma luta por direitos constitucionais, principalmente pelos direitos
políticos e de reconhecimento da sua cidadania. Nesse século a questão do
voto feminino já estava em pauta nas mesas de discussões que antecederam a
feitoria da Constituição republicana de 1891.
Conforme demonstra Prado e Franco (2013), as mulheres do século
XIX estavam em plena ação, participando das principais lutas políticas do
país. Prova disso é a ampla participação das mulheres no debate social por
meio de periódicos, como meio de comunicação próprio a partir de 1850. Por
meio desses boletins abordavam pontos que questionava e que reivindicava o
acesso das mulheres a educação, o fim da escravidão, a queda da monarquia
e o voto feminino. Nestes periódicos, mulheres “tentaram incitar mudanças
no status econômico, social e legal das mulheres no Brasil. Confiantes no
progresso, buscaram inspiração e promessa de sucessos futuros nas realizações
de mulheres em outros países.” (HAHNER, 1981, p. 26).
O surgimento da cultura urbana a partir da década de 1910 foi igualmente
marcado pelo surgimento das classes médias e operária que inventaram
novas formas de organização social. Essas transformações revelam que havia
condições para o surgimento de vozes que defendiam direitos e liberdades.
Prova disso são as greves de 1917, a Semana de Arte Moderna e a fundação do
Partido Comunista do Brasil e os movimentos feministas (TELLES, 1999).
Dessa forma, vemos que ao longo do século XIX e XX a mulher vai se
constituindo como “individuo” capaz de fazer contrato e se fazendo reconhecer
paulatinamente como sujeito histórico, no sentido de protagonista das ações
que lhe confere o reconhecimento enquanto tal e de sujeito de direito ao
alcançar o poder estatal que confere legitimidade enquanto personalidade
jurídica. A construção da mulher como sujeito de direito foi alcançada com
muita luta, debate e estratégias para se alcançar as esferas de poder.

Considerações Finais

O século XX, de fato, foi também o século das mulheres. Período


em que se fizeram reconhecidas como sujeito histórico e sujeito de direito.
Por meio de uma revolução quase silenciosa até a metade do século, porém

Ebook IV SIGESEX 109


muito intensa, transformaram radicalmente as condições de vida por meio de
conquistas sociais e políticas importantes que as levaram, na segunda metade
do centenário, já de forma não menos intensa, mas mais barulhenta a alcançar
seus diretos civis.

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112 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A articulação das mulheres no processo de
abertura política através da imprensa
Women’s joint in opening policy process thru of
press feminist
Michele Pereira Sousa1

RESUMO: Durante a ditadura militar brasileira, a Organização das


Nações Unidas (ONU) declarou 1975 como o ano internacional da mulher,
marcado por uma conferência realizada no México com foco na igualdade,
desenvolvimento e paz. A conferência fomentou a criação de jornais feministas,
como o Sociedade Brasil Mulher, que surgiu para promover o Movimento
Feminino Pela Anistia e, ao longo do tempo, acentuou sua abordagem
feminista.
PALAVRAS-CHAVE: jornal, anistia, feminismo.

ABSTRACT: During military dictatorship in Brazil the United Nations (NU)


declared 1975 as the International Year of Women, marked by a conference held in Mexico
focused in equality, development and peace. The conference promoted ter criation of feminist
newspapers, like Sociedade Brasil Mulher, that emerged to promote the amnesty women
movement, but that over time accentuated your feminist approach.
KEYWORDS: newspaper, amnesty, feminism.

Introdução

Ao assistir depoimentos de mulheres militantes que se organizaram


para elaborar jornais como forma de combate a repressão da ditadura militar,
surgiram três questões centrais: Por que a escolha de um jornal alternativo?
Por que a resistência em afirmar que um jornal feito por mulheres e voltado
às mulheres era feminista? E por que era necessário enfatizar suas diferenças
enquanto mulheres entre os próprios companheiros de luta?
1. Pós-Graduanda do curso de especialização em Humanidades - educação, política e sociedade do Instituto Federal
São Paulo - Campus Pirituba, com bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Paulo - Campus Guarulhos. E-mail michele.pereira.sousa@gmail.com.

Ebook IV SIGESEX 113


Para entender melhor essas relações recorri ao Sociedade Brasil Mulher
(BM), primeiro jornal feminista do período. A opção em utilizar o BM
se deu porque, além de ser o primeiro jornal com esse caráter, ele teve uma
regularidade maior em suas publicações.
Além disso, o BM foi o jornal em que a questão de se afirmar ou não
como jornal feminista estava mais presente. Ela se intensificou a tal ponto que
o jornal foi desmembrado duas vezes.
Por fim, ao buscar entender a resistência dos demais movimentos sociais
em relação ao movimento feminista, o BM também pareceu o mais apropriado
por ter uma relação mais próxima com os movimentos sociais, principalmente
com os movimentos de base como associações de bairro, associação de
mulheres, movimentos sindicais, clubes de mães entre outros.
O trabalho desenvolvido demonstrou que, ainda que o BM não tenha se
declarado feminista desde o seu início, ele sempre apresentou pautas feministas
e todas as suas reportagens estavam voltadas de algum modo para essa questão.

1- Metodologia

Além de recorrer ao BM para entender essas questões, recorri a alguns


trabalhos realizados sobre o assunto. O referencial com foco no tema é pequeno
e em alguns casos de difícil acesso, além disso, a maior parte do referencial
encontrado faz um apanhado geral dos três principais jornais Feministas do
período: Sociedade Brasil Mulher, Nós Mulheres e o Mulherio. Isso torna as
questões gerais de mais para enfatizar em um único jornal, mas, por outro lado,
permite um panorama geral da imprensa feminista da época.
Páginas que resistem: A imprensa feminista na luta pelos direitos das
mulheres no Brasil da autora Karina Janz Woitowicz (2009) defende que as
mídias possibilitaram, durante o regime militar, a criação de espaços contra
hegemônicos, importantes na produção de discursos análogos aos do governo
e importante para legitimar a luta por direitos das mulheres.
Escritas Feministas: os jornais Brasil Mulher, Nós Mulheres e Mulherio
(1975-1988) da autora Juliana Segato Tamião (2009), constroe uma
historiografia dos movimentos feministas do período, até chegar aos debates
sobre “políticas do corpo”. Essa historiografia leva em consideração as tensões
entre os movimentos feministas e movimento feminista que se articulara
dentro do jornal, o que geralmente não é pautado, como se os movimentos
feministas do período se estivessem articulados em movimento único.

114 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Brasil Mulher: Joana Lopes e a imprensa alternativa feminista, da
autora Karen Silvia Debértolis (2002), mesmo recente é a referência mais
antiga encontrada a respeito do tema. Sua abordagem é feita quase que
biograficamente em torno da vida de Joana Lopes, dessa forma o BM aparece
enquanto espaço de atuação de sua idealizadora.
A imprensa Feminista no pós-luta armada: os jornais Brasil Mulher e
Nós Mulheres, da autora Rosalina de Santa Cruz Leite (2004), defende que
a articulação do jornal teve seu auge enquanto espaço de contestação, após a
entrada de mulheres que estavam anteriormente vinculadas à luta armada. Essa
tese é a que tem mais influência no presente trabalho, pois Leite também foi
colaboradora do BM em um primeiro momento e em um segundo participou
do conselho editorial do jornal. Tornando-a objeto de sua pesquisa, trazendo
assim vários detalhes que possibilitam um melhor entendimento da articulação
do BM.
Esse trabalho também utilizou diversas entrevistas dadas pelas mulheres
que atuaram no BM e em outros jornais Feministas do período. Em especial
as entrevistas realizadas pelo Instituto Vladimir Herzog, em seu projeto
“Protagonistas desta História”. Esse projeto dá um panorama do que foi a
oposição da imprensa alternativa à ditadura militar.

2- Um jornal feito por mulheres

A origem do Sociedade Brasil Mulher (BM) está vinculada ao Ano


Internacional da mulher, proclamado pela Organização das Nações Unidas
(ONU) no ano de 1975. Isso ocorreu porque os movimentos de mulheres de
países latinos, sobretudo dos países que estavam sob ditadura, se uniram para
buscar apoio da ONU para legitimar suas articulações.
O Ano Internacional da Mulher foi marcado por uma conferência
realizada no México que tinha como foco a igualdade, o desenvolvimento
e a paz, uma forma de chamar atenção para as ditaduras. A conferência
impulsionou a organização de jornais de cunho feminista em toda a América
Latina. Entre os jornais que surgiram está o BM, fundado por Terezinha
Zerbini e Joana Lopes, com o intuito de promover o Movimento Feminino
Pela Anistia (MFPA) e de ser um jornal de mulheres para mulheres.

O reconhecimento oficial pela ONU da questão da mulher como pro-


blema social favoreceu a criação de uma fachada para um movimento

Ebook IV SIGESEX 115


social que ainda atuava nos bastidores da clandestinidade, abrindo espaço
para a formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir
abertamente, como o Brasil Mulher, Nós Mulheres, o Movimento Femi-
nino pela Anistia, citando apenas os de São Paulo (Sarti, 1998, p. 05).

Lançar-se como um jornal alternativo foi a única opção possível para


as redatoras do BM, pois uma de suas principais pautas era a anistia, o que
tornava o jornal um meio de contestação ao regime militar brasileiro.
O BM, por ser um jornal feito por mulheres e que tinha como público
alvo as mulheres, foi desconsiderado pelos órgãos de censura do governo, pois
os mesmos não acreditavam que um jornal elaborado por mulheres pudesse
ter relevância no que diz respeito as discussões políticas, por isso o jornal não
passava por censura, o que possibilitou uma maior liberdade de atuação das
jornalistas.
De início o BM não se apresentou enquanto um jornal feminista e sua
atuação foi mais contida, pois Terezinha Zerbini, uma de suas fundadoras,
acreditava que tais discussões tirariam o foco do que ela considerava ser o
objetivo do jornal: servir de meio de comunicação do MFPA.
Por causa dessa forma contida de atuação, o jornal tornou-se um atrativo
principalmente para as mulheres que atuaram na guerrilheira armada, já que
era uma forma de permanecer na luta contra a ditadura sem chamar a atenção
dos órgãos de repressão, por conta disso elas eram inclusive incentivadas por
seus companheiros de luta a participar do mesmo.
O incentivo por sua vez era restrito a articulação contra a ditadura,
quando o jornal expunha diretamente sua opinião sobre a condição feminina
o mesmo era reprimido e julgado por supostamente dividir o movimento,
justamente por conta dessa atitude de seus companheiros de militância houve
uma resistência para afirmar-se enquanto um jornal feminista.
Enquanto não se declarava feminista o BM se rotulava enquanto um
jornal de mulheres para mulheres, dando indícios de qual realmente era o seu
foco. A primeira vez que o BM se declarou explicitamente feminista foi no
editorial da edição nº 6 de 1976.

A força deste preconceito é tão grande, nessa década que, o jornal Brasil
Mulher, só em seu editorial do seu número seis, é que se autodenomina
feminista. Mesmo apresentando suas matérias e editoriais anteriores,
um conteúdo de defesa dos direitos das mulheres [...] a dificuldade de

116 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


enfrentar o preconceito levou o Brasil Mulher a demorar a expor sua
posição em relação ao feminismo (Leite, 2004, p. 253).

A partir desse momento Terezinha Zerbini deixa a redação do BM e


articula o jornal Maria Quitéria, voltado exclusivamente ao MFPA.
As mulheres ligadas ao feminismo que adentraram o BM quando o
assumiram marcaram o que pode ser considerada a segunda fase da trajetória
do jornal. Algumas dessas mulheres souberam da articulação do jornal
enquanto estavam exiladas e outras enquanto estavam presas por sua atuação
nos movimentos de guerrilha, dentre essas, algumas iniciaram sua atuação
no jornal ainda na prisão, escrevendo cartas sobre as suas condições de presas
políticas.
Essas mulheres, além ter atuado na luta armada, também estavam ligadas
a partidos políticos que atuavam na clandestinidade durante o período, como
o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como dito anteriormente, ao sair da
prisão algumas dessas mulheres ingressaram no BM.
A segunda divisão do periódico aconteceu justamente com esse boom
de mulheres advindas de partidos políticos que adentraram o jornal, trazendo
as pautas dos partidos para a redação do BM, com isso, a outra fundadora do
BM, Joana Lopes, saiu de sua redação.

3- Pautas do jornal

O Tema da anistia foi presente em todas as edições do BM até a edição


nº 6, na edição de nº 7 ele aparece apenas no editorial do jornal como pano de
fundo para a criação do periódico, após essa edição a anistia só aparece quando
a mesma adquire o status de tema relevante para o período, sendo inevitável a
sua abordagem.
Essa mudança ocorre com a saída de Terezinha Zerbini, a principal
responsável por articular as abordagens que o jornal fez sobre anistia,
justamente por ser a criadora do MFPA.
Apesar dessa negação de assumir-se enquanto um jornal feminista, todas
as pautas do BM inevitavelmente tinham por trás uma pauta do movimento,
mesmo que implícita, uma vez que o objetivo de Joana Lopes era criar um
jornal de mulheres para mulheres. É possível notar, através dos seus principais
temas que o jornal sempre esteve disposto, além de contestar o regime militar,
a expor o machismo que as mulheres enfrentavam.

Ebook IV SIGESEX 117


Os principais temas do jornal eram abordados nas páginas centrais do
periódico, pois a abordagem era realizada em página dupla, o que permitia uma
maior articulação do tema apresentado. Mesmo com o jornal se declarando
feminista, apenas na sua 6ª edição é possível notar, através dessas matérias de
destaque, que a anistia nunca foi seu tema exclusivo, dada a frequência com a
qual o tema foi abordado.

TABELA 1.Temas Centrais do jornal Brasil Mulher (1975/1980)

Fonte: LEITE (2004, p. 134). Adaptado

Leite considera que a edição decisiva para a nova forma de atuação do


BM no que diz respeito as pautas feministas, é a edição nº 8, pois após essa
edição, Joana Lopes, idealizadora do BM, deixa a redação do jornal.
No entanto, a primeira abordagem que o BM faz com um caráter
Feminista foi sobre contracepção, publicada já na segunda edição do jornal, a
edição nº 1, em que o jornal critica o uso das pílulas anticoncepcionais.
A crítica é feita com base em dois pontos centrais. O primeiro diz
respeito ao seu perigo para a saúde da mulher quando ingerido de forma
incorreta e sem acompanhamento de um especialista. O segundo defende que
o controle de natalidade é incentivado a uma classe específica, os pobres, e
isso é visto como uma forma de tirar o foco da luta de classes e dos meios de
produção capitalista.
Essa abordagem evidencia que, mesmo com essa resistência em afirmar-
se enquanto um jornal feminista, o fato de o jornal ter como público alvo
mulheres e contestar o regime, inclusive no que diz respeito ao papel que esse
reservava as mulheres, uma abordagem feminista era inevitável.

4- O fim do jornal

O BM encerrou suas atividades em 1980, mas a atuação dessas mulheres


não cessou com o fim do jornal. Com a concessão da Anistia em 1979 e a

118 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


intensificação dos movimentos que desencadearam na abertura política, elas
continuaram defendendo a bandeira do feminismo, mas se empenharam
naquele momento em prol do fim da ditadura militar.

O Brasil Mulher resistiu por cinco anos, nem sempre mantendo sua
periodicidade, mas foram cinco anos de 1975 a 1980. Até que no Brasil
da abertura já não era tão importante a imprensa alternativa, outras for-
mas mais institucionalizadas de divulgar ideias feministas, como o jor-
nal Mulherio, apoiado financeiramente pela Fundação Carlos Chagas e
pela Fundação Ford, já era possível (Leite, 2004, p. 288).

Como forma de fomentar a luta pelo fim da ditadura, as mulheres


se empenharam em uma atuação pública voltada para o processo de
redemocratização. Mesmo com a falta de apoio dos companheiros as mulheres
conseguiram, através de lutas, implementar algumas políticas públicas no
processo de redemocratização, políticas que garantem direitos às mulheres
até hoje, como a criação do Conselho Estadual da Condição da Mulher e das
primeiras delegacias da mulher do país.

Considerações Finais

Ainda que não tenha se declarado feminista desde o começo, o BM


pode sim ser considerado um jornal feminista desde a sua origem. Pois mesmo
não contendo o termo teórico as abordagens do jornal eram todas voltadas
a atuação das mulheres, desde as guerrilheiras até as trabalhadoras rurais e
urbanas; aos seus direitos; a sua saúde, incluindo seu corpo, e às suas lutas e
conquistas.
Além do conteúdo, o motivo pelo qual o jornal nasceu também
pode ser considerado feminista. O BM surgiu como ato concreto do Ano
Internacional da Mulher (1975), com o intuito de fermentar a articulação
das mulheres contra a ditadura, principalmente das mulheres que lutavam
pela Anistia.
Ou seja, a utilização do termo, que levou inclusive a desmembramentos
no jornal, pode ser considerada uma mera formalidade, pois o fato de ser
um jornal político de mulheres feito para mulheres já anunciava que o Brasil
Mulher seria o primeiro jornal feminista da ditadura militar brasileira.

Ebook IV SIGESEX 119


Referências

DEBÉRTOLIS, Karen Silvia. Brasil Mulher: Joana Lopes e a imprensa alternativa


feminista. Faculdade de Biblioteconomia e comunicação, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRS). Porto Alegre, 2002.

LEITE, R. S. C. A imprensa feminista no pós-luta armada: os jornais Brasil


Mulher e Nós Mulheres. Dissertação. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2004.

HERZOG, C. & HERZOG, I. Os Protagonistas dessa História, in. Resistir é


preciso. Instituto Vladimir Herzog. São Paulo, 2011.

GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. 1964: O golpe que derrubou


um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil.
2014. 1ª Edição. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2014.

PINTO, C. Uma história do feminismo no Brasil. Editora Fundação Perseu


Abramo. São Paulo, 2003.

SARTI, Cynthia Andersen. O início do feminismo sob a ditadura no Brasil: o que


ficou escondido. XXI Congresso Internacional da LASA. Chicago, 1998.

SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970:


revisitando uma trajetória. Estudos Feministas, Florianópolis, 2004.

SARTI, Cynthia Andersen. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular, in.


Cad. Pesq. São Paulo, 1988.

TAMIÃO, Juliana Segato. Escritas Feministas: os jornais Brasil Mulher, Nós


Mulheres e Mulherio (1975-1988). Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2009.

WOITOWICZ, Karina Janz. Páginas que resistem: A imprensa feminista na


luta pelos direitos das mulheres no Brasil. VI Congresso Nacional de História da
Mídia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, 2009.

120 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Mulheres em situação de violência
doméstica atendidas na primeira vara de
medidas protetivas do país
Women in the situation of domestic violence
attended in the first court of restraining order
from the country
Vanessa Vieira1

RESUMO: A violência doméstica contra a mulher é um fenômeno


complexo e atinge mulheres de todas as idades, raças, cor, credo e condição
social. Ela tem origem na desigualdade de gênero, perpetuada por uma cultura
patriarcal em que as interpretações valorativas do feminino e do masculino são
repassadas por meio da educação – moralista e não social. Ela se expressa em
um grande número de famílias brasileiras, atingindo de forma brutal a saúde
física e psicológica das mulheres, impedindo o seu pleno desenvolvimento. Para
conhecer o perfil dessas mulheres far-se-á um estudo acerca das informações
coletadas por meio de um questionário sociodemográfico com mulheres que
solicitaram Medidas Protetivas de Urgência durante 3 meses do ano de 2016
no Serviço Social da 3ª Vara de Violência Doméstica.
PALAVRAS-CHAVE: Patriarcado; Gênero; Violência doméstica
contra a mulher; Saúde.

ABSTRACT: The domestic violence against women is a complex phenomenon


and affects women off all ages, races, color, creed and social status. It originates from gender
inequality, perpetuated by a patriarchal culture in which the feminism and masculine values
are passed through education - moralist e non-social. It expresses itself in a large number of
Brazilian families, brutally affecting women’s physical and psychological health, impeding
their full development. To know the profile of these women, a study will be carried out on
1. Especialista em Direito Familiar e Sucessão. Especialista em Saúde da Mulher. Licenciada em Sociologia pela
Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica Dom Bos-
co – UCDB. Asssistente social do Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul/Coordenadoria da Mulher. Parque dos
Poderes. Telefone: 67 33141988 E-mail: va.vieira8@hotmail.com Vanessa.vieira@tjms.jus.br

Ebook IV SIGESEX 121


the information collected through a sociodemographic questionnaire with women who
requested Urgent Restraining Order during 3 months of the year 2016 in the Social Service
of the 3rd Domestic Violence Court.
KEYWORDS: Patriarchy; Gender; Domestic Violence against women; Health.

Introdução

A violência contra a mulher, é um fenômeno social que atinge mulheres


de todas as idades, raças, cor, credo, nacionalidade, orientação sexual e
condição social. Nesse sentido, Saffioti e Almeida (1995) afirmam que se trata
de fenômeno democraticamente distribuído, ao contrário do que acontece
com a distribuição da riqueza.
Referida violência, que se expressa no cotidiano de um grande número
de famílias brasileiras, adentra os lares, atingindo de forma brutal a saúde
física, psicológica e social das mulheres, impedindo o pleno desenvolvimento
de sua cidadania.
Ante a complexidade deste fenômeno e a necessidade de coibir e
preveni-lo, criou-se a rede de enfrentamento à violência doméstica contra às
mulheres, que entre outros, é composta por serviços de saúde, atendimento
psicossocial, programa de geração de emprego e renda, programa habitacional
e o sistema de Justiça.
Em Mato Grosso do Sul, visando a efetivação da Lei Maria da Penha,
o Tribunal de Justiça implantou na comarca de Campo Grande, a 3ª Vara
de Violência Doméstica contra a Mulher, conhecida por ser a primeira
vara exclusiva de aplicação de medidas protetiva de urgência do país, cuja
característica principal é a celeridade processual, ou seja, as medidas são
concedidas em no máximo 48 horas.
O estudo com as mulheres entrevistadas pelo setor de serviço social da
citada Vara, objetiva identificar indicativos que permita além de traçar seu
perfil, pensar e elaborar políticas públicas que atendam suas reais necessidades.

1- Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

Para entender a violência contra a mulher, necessário se faz compreender


o conceito social de gênero, que se refere a uma condição psicológica, uma
construção social que estabelece papéis sociais de natureza cultural sobre o que

122 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


é ser homem e ser mulher na nossa sociedade, ou seja, uma categoria que não
está fundamentada em fatores biológico ou naturais.
De acordo com a teoria dos papéis sociais (Mead, 1999), estes papéis
variam de povo para povo, cultura para cultura, época para época. Nascem da
visão de mundo de uma sociedade, não são imposições biológicas da natureza,
transformam-se com o tempo, com a evolução dos valores e costumes.
Em sociedades de origem patriarcal onde a autoridade da família se baseia
na figura do pai, (o homem sente-se no direito) ao homem é dado o direito
de educar, corrigir e, se necessário, castigar física, psicológica e sexualmente
a mulher. Ela é colocada no mesmo plano de dependência e obediência que
os filhos. Ademais, muitos a exploram, desqualificam suas capacidades e a
utilizam como meros objetos.
A violência contra a mulher é conceituada pela Convenção de Belém
do Pará (1994) como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause
morte, dano ou sofrimento físico, sexual, ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública como na esfera privada”.
Aludida violência ocorre em vários espaços – público e privado, sendo o
de maior invisibilidade, e talvez mais perverso dada a sua naturalização, aquela
que acontece dentro da unidade doméstica lar, cujo algoz, em sua grande
maioria, é alguém com quem a vítima mantém ou manteve uma relação íntima
de afeto.
A violência doméstica e familiar contra a mulher pode se caracterizar de
diversos modos, desde marcas visíveis no corpo (violência física), até formas
mais sutis, porém não menos importantes, como a violência psicológica e a
moral, que traz danos significativos à estrutura emocional da mulher.
Azevedo (1985) apresenta dois grupos de agentes responsáveis pela
violência doméstica: o primeiro grupo se refere à opressão, à competição, ao
machismo, ao desemprego, à situação de vulnerabilidade social e à educação
diferenciada para meninos e meninas; o segundo grupo se constitui pelos
fatores potencializadores como álcool, drogas, estresse, cansaço, que podem
desencadear o descontrole emocional e os atos violentos.
Grande número de vítimas apontam o álcool como causador dos abusos
sofridos, percebem a agressividade do companheiro como situações pontuais
quando estão alcoolizado ou sob o efeito de substância psicoativa, desta forma,
desresponsabilizando o agressor.
Essa situação caracteriza um ciclo, que apresenta três fases distintas, que
podem aparecer com diferenças na intensidade, tempo, variando de casal para

Ebook IV SIGESEX 123


casal e não se manifestando, necessariamente, em todos os relacionamentos.
Tratam-se da fase da tensão, da fase agressão e da fase da lua de mel.
As mulheres encontram dificuldades em romper este ciclo, aquelas que
conseguem atendimento na polícia e/ou nos serviços especializados, mostram-
se confusas, demonstrando uma situação ambígua dada a complexidade da
situação, querem que a violência pare, mas não que seus companheiros ou
familiares agressores sejam punidos, esperam que os serviços, e principalmente
a justiça, façam cessar a violência por meio de “aconselhamentos, sustos,
ameaças”. Elas, embora agredidas, exibem sentimentos contraditórios (amor e
ódio), indecisão de manter ou romper o relacionamento, ficar ou sair de casa,
registrar ou não boletim de ocorrência, revogar ou não a Medida Protetiva
(Lei Maria da Penha), entre outros.
A ambiguidade do comportamento feminino diante da situação
de violência se justifica por vários motivos: ligação afetiva; expectativa de
mudança, receio de repercussão social; culpabilização; dependência ou
interdependência econômica; medo que a violência se transforme em algo
maior; dificuldade em dissolver o casamento.
Em face de tal realidade, desenvolvem-se concepções populares de que as
mulheres “gostam de apanhar”, ou ainda de que “algo fizeram para merecerem
isso”. Essa ideia nega a complexidade do problema e atribui à violência um
caráter individual, oriundo de aspectos específicos da personalidade feminina
(GROSSI, 1995).

2- Lei Maria da Penha

Visando criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher, o Brasil sanciona, em 2006, a Lei 11.340 – Lei Maria da
Penha, considerada pela ONU, uma das três mais completas do mundo, traz
em seu escopo três eixos, o da prevenção e educação, o da proteção e assistência
e o do combate e responsabilização.
Citada lei traz grandes avanços ao tema, à medida que define que
violência doméstica é aquela que acontece dentro de casa, entre os membros
de uma comunidade familiar, com vínculos de parentesco natural (pai, mãe,
filhos) civil (marido, sogra, padrasto, ou outros) afinidade (primo, tio) ou
afetividade (amigo ou amiga, que moram na mesma casa) (art. 5° da Lei n °
11.340/06).
Define ainda, em seu artigo 7°, as formas de violência doméstica e

124 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


familiar contra a mulher em violência física, violência psicológica, violência
sexual, violência patrimonial e violência moral. Outra inovação refere-se as
medidas protetivas de urgência aplicadas em favor da vítima e seus familiares.
No que concerne à violência psicológica, um grande progresso advindo
com a lei foi a tipificação desse tipo de abuso, dada a sua subjetividade e a
dificuldade de identificá-la. Na maioria dos casos, é negligenciada até por
quem sofre, por não conseguir perceber, vez que pode estar mascarada pelo
ciúme, cuidado, controle e excessivo amor.
Ainda hoje, grande parte da sociedade, especialmente os homens,
considera violência doméstica e familiar contra a mulher apenas a agressão
física, aquela que deixa vestígios facilmente identificáveis, pois é mais fácil para
as pessoas aceitarem que, dessa vez, o agressor exagerou.

A violência psicológica compromete a saúde mental, ao interferir na cren-


ça que a mulher possui sobre sua competência, isto é, sobre a habilidade
de utilizar adequadamente seus recursos para o cumprimento das tarefas
relevantes em sua vida. A mulher pode apresentar distúrbios na habilida-
de de se comunicar com os outros, de reconhecer e comprometer-se, de
forma realista, com os desafios encontrados, além de desenvolver senti-
mento de insegurança concernente às decisões a serem tomadas. Ocor-
rências expressivas de alterações psíquicas podem surgir em função do
trauma, entre elas, o estado de choque, que ocorre imediatamente após a
agressão, permanecendo por várias horas ou dias (BRASIL, 2001).

Segundo BIANCHINI (2014), sete são as condutas que podem causar


violência psicológica: 1) conduta que cause dano emocional e diminuição da
autoestima:2) conduta que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento;
3) conduta que vise degradar suas ações; 4) conduta que vise controlar suas
ações; 5) conduta que vise controlar seus comportamentos; 6) conduta que
vise controlar suas crenças; 7) conduta que vise controlar suas decisões.
Acrescenta que todas elas precisam ser praticadas por um dos
seguintes meios: ameaça; constrangimento; humilhação; manipulação;
isolamento; vigilância constante; perseguição contumaz; insulto; chantagem;
ridicularizarão; exploração; limitação do direito de ir e vir; qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
De acordo com SOUZA, H.L., CASSAB, D. A (2010), “a violência
psicológica pode ser considerada como a mais perversa, entre os outros tipos

Ebook IV SIGESEX 125


de violência, ocorrida no âmbito doméstico, em decorrência das marcas
irremediáveis que deixa, perdurando por muito tempo ou, às vezes, por toda a
vida, desta mulher que a sofre”.

3- 3ª Vara da Violência Doméstica e Familiar de Campo


Grande/MS - 1ª Vara de Medidas Protetivas do Brasil

Visando a implementação integral da Lei 11.340/2006 e as


recomendações do Conselho Nacional de Justiça, os Tribunais de Justiça
dos Estados e do Distrito Federal criaram os Juizados ou Varas de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher para entregar às vítimas, respostas
céleres e integrais que colaborem para seu fortalecimento e para o exercício de
seus direitos.
Assim posto, a população de Campo Grande/MS dispõe de três varas
exclusivas de violência doméstica e familiar contra a Mulher, sendo a terceira,
conhecida como a 1ª vara de medidas protetivas do país, instalada em 2015
na Casa da Mulher Brasileira, cuja função é aplicar em caráter de urgência, no
máximo em 48 horas, as medidas de proteção. Não obstante, o juízo da 3ª Vara
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campo Grande tem
decidido as medidas em até 24 horas.
Aludida Vara conta com equipe multiprofissional composta por
assistente social e psicólogo que atuam nos processos cujo objetivo é subsidiar
as decisões judiciais sempre que o(a) magistrado(a) julgar necessário.
No objetivo de traçar o perfil das mulheres em situação de violência
doméstica e familiar atendidas pela equipe técnica da 3ª Vara, nos meses
de agosto, setembro e outubro de 2016, aplicou-se um questionário
sociodemografico perguntando variáveis como: idade, cor, religião, filhos,
tempo de união, escolaridade, renda, tipos de violência, vínculo com o autor
da violência, além das situações ou efeitos físicos e emocionais que a mulher
passou a sofrer após a situação de violência.

4- Resultado

Verificou-se que das 32 mulheres entrevistadas, 44% identificaram-se


como brancas, 3% como pretas, 50% como pardas e 3% não se declararam. A
faixa-etária entre 18 e 25 anos corresponde a 12% das mulheres entrevistadas.
A de 26 a 30 anos totalizou 3%. Os índices maiores estão na faixa-etária de 31

126 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


a 40, representando 44%. A faixa dos 41 a 50 anos, corresponde a 16%. Apenas
4 mulheres são de faixa-etária acima de 51 anos, e 4 não responderam.
38% da mulheres ouvidas, possuem o ensino fundamental incompleto
e 6% o completo; 37% declararam ensino médio, seja completo ou não; 14%
tem ensino superior incompleto ou completo. Apenas 3% não responderam.
No levantamento realizado, no que concerne a renda salarial das
mulheres, 9% não indicaram nenhum ganho, 19% recebem até 1 salário
mínimo; 60% de 1 a 3 salários mínimos, 6% informaram perceber 03 a 8
salários mínimos e outros 6% afirmaram que seu sustento se dá exclusivamente
por meio de pensão alimentícia. Quanto a situação econômica, mais da
metade tem sustento próprio, o que indica ser a provedora ou compartilhar a
mantença familiar.
De acordo com as informações apresentadas, a maioria das mulheres
posicionaram-se católicas, ou seja, 60%. 31% evangélicas; 3% indicaram
serem espíritas e 6% preferiram não responder. No que se refere aos dados da
violência, elas puderam indicar mais de uma, e prevalece a violência psicológica
como a principal agressão, com 90% do percentual, seguida de violência moral
com 65%, violência física com 59%, patrimonial e sexual com 19% cada. As
violências indicadas são as tipificadas na Lei Maria da Penha.
As informações apresentadas no quadro “autor da violência” demonstram
que a violência é cometida em sua maioria por ex-marido e/ou marido, com um
percentual de 47%, seguido do companheiro, com 25% do percentual total. A
agressão cometida por filho aparece com 6% do levantamento feito. Outros
autores, como, ex namorado, pai, irmão, entre outros representam 12% dos
atendimentos feitos no período investigado, e 3% não responderam.
Durante a análise dos dados, constatou-se que as mulheres que
vivenciam ou vivenciaram situação de violência, desenvolveram problemas
emocionais e físicos decorrentes dos abusos sofridos que as afetam ou afetaram
(in)diretamente seu desenvolvimento pessoal, social e profissional.
O medo de que algo ruim aconteça aos seus filhos ou familiares foi
apontado por 84% das vítimas; o sentimento de raiva foi descrito por 81%
das atendidas; a falta de vontade de fazer coisas que antes tinham prazer e
o sentimento de vergonha apareceu em 68% das entrevistadas em cada uma
das situações; o isolamento social foi motivo de queixa de 62% das mulheres;
46% disseram que passaram a ter medo de morrer; 43% narraram situação de
desemprego em função do relacionamento abusivo, enquanto que a culpa e a
falta de apetite reincidiu em 37% das entrevistadas.

Ebook IV SIGESEX 127


O estudo indicou ainda outros efeitos como o uso de álcool ou drogas
ilícitas (9%), interrupção de escola ou curso (12%), incapacidade física (31%),
insônia (28%), pesadelos (15%). Ressalta-se que nesse quesito, as mulheres
indicaram mais de um sintoma.

Considerações finais:

A violência contra a mulher é oriunda de uma educação machista e


patriarcal, baseada na desigualdade de gênero, portanto, um fenômeno social,
extremamente complexo e de multifatoriedade, que ocorre em variados
espaços.
O espaço privado que deveria ser o local seguro para as mulheres é onde
ocorre as mais perversas praticas abusivas, face a subjugação do feminino pelo
masculino, numa relação assimétrica de poder. Nesse contexto, o silêncio das
vítimas desencadeado pelo medo, a vergonha, a culpa, devido a intimidação do
agressor torna-se um aliado poderoso do abusador.
Na perfil das entrevistadas, observou-se ínfimo percentual de mulheres
que se declararam negras, o que suscita dúvida se houve embraquecimento na
indicação da cor de sua pele ou se as mulheres pretas, por questões históricas,
não conseguem acessar o serviço da Vara de Medidas Protetivas.
Percebe-se também que a baixa escolaridade, o que nos remete ao pouco
acesso à informações, aparece como fator de maior vulnerabilidade à relações
abusivas.
As religiões cristãs estão estritamente ligadas à violência doméstica na
medida que ainda supervaloriza o modelo de família patriarcal, chefiadas por
homens, em que mulher e filhos são submissos ao marido e pai, respectivamente.
Na questão dos tipos de violência, embora a psicológica seja difícil de
ser reconhecida pelas vítimas, tal sua naturalização e banalização nas relações
íntimas de afeto, 90% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido violência
psicológica acompanhadas de outras, destacando-se a violência física, presente
em 59% dos casos. Assim, conclui-se que as mulheres são levadas a denunciar
seus agressores quando a violência passa da psicológica para outras violências.
No levantamento das situações ou efeitos advindos dos relacionamentos
abusivos constatou-se que a violência doméstica, apresenta efeitos maléficos
na saúde física e emocional da mulher que perdura, em alguns casos por toda
a vida, e podem chegar a depressão e suicídio. As consequências da agressão
doméstica são as mais perversas e diversas, atingem a autoestima e a dignidade

128 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


da mulher, dificultam seu empoderamento, contribui para a perda da qualidade
de vida, aumenta os custos com cuidados à saúde, além de consistir numa das
mais significativas formas de desestruturação pessoal, familiar e social.
Tendo em vista os dados apresentados, faz-se importante entender
a violência doméstica não apenas sob o prisma punitivo, mas sobretudo
preventivo, compreendendo sua origem no patriarcado, nas relações desiguais
de gênero, trabalhando sob a perspectiva da desconstrução e mudança de
valores socioculturais.

Referências

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Ebook IV SIGESEX 131


A dimensão pedagógica dos estudos Queer
The pedagogical dimension of Queer studies
Anelize Castedo França1
Luís Antonio Bitante Fernandes2

RESUMO: A partir da reflexão dos mecanismos de controle que


perpassam a escola atribuindo a ela o papel de reproduzir e reforçar a
heteronormatividade, este artigo discute os reflexos de uma educação
excludente vinculada a um modelo de pensamento que se opera por uma
lógica binária de entender o mundo. Na contramão, a Teoria Queer, com seu
caráter perturbador, subverte a ordem dominante, ampliando sua análise para
além da sexualidade ao propor uma pedagogia disposta a pensar o impensável.
PALAVRAS-CHAVE: Escola, Pedagogia, Teoria Queer.

ABSTRACT: Based on the reflection of the control mechanisms that pass through
the school, which assigns to it the role of reproducing and reinforcing heteronormativity,
this article discusses the reflexes of an excluding education linked to a thinking model that
operates through a binary logic of understanding the world . On the contrary, the Queer
Theory, with its disturbing character, subverts the dominant order, extending its analysis
beyond sexuality by proposing a pedagogy willing to think the unthinkable.
KEYWORDS: School, Pedagogy, Queer Theory.

Introdução

A escola como espaço de socialização, também tem como desafio lidar


com a diversidade, com um público cada vez mais plural, sujeitos com novas
identidades, uma vez, que as identidades, segundo Hall (2000), são, pontos de
apego temporários às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem
para nós, ou seja, a fixidez é uma ilusão.
1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal de Mato Grosso. Professora da
Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso- SEDUC-MT. anecastedo@hotmail.com. Telefone: (65) 3615-
8122. www.ufmt.br/ufmt/unidade/ppgsufmt.
2. Professor no Programa Pós Graduação em Sociologia- UFMT. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em So-
ciologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Unesp São Paulo. bitante67@hotmail.com.
Telefone: (65) 3615-8122. www.ufmt.br/ufmt/unidade/ppgsufmt.

132 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O espaço do impensável, passa a ser crucial na abordagem de estudos
mais avançados que vem sendo construído em termos de gênero e sexualidade
amparado pelo que se constituiu como Teoria Queer, que em seu conjunto,
rompe com o modo de pensar marcado pelo binarismo ocidental que organizou
e estabeleceu lugares demarcados por uma normalidade compulsória e
reproduzida pela linguagem, na medida em que nada foge ao controle de
interesses estatais, econômicos e biopolíticos, como analisa Foucault (1999),
inclusive os corpos humanos e seus impactos.
Assim, faz-se necessário compreender o termo Queer, em seu desdobramento
teórico e de sujeitos articulados, bem como discutir os mecanismos de controle
que através da apropriação dos corpos, fixa lugares de inclusão e exclusão e como
essas relações são produzidas e reproduzidas através da linguagem.
Este trabalho, também pretende refletir a escola enquanto sistema
educacional, como parte fundamental do projeto de uma sociedade de
controle em que sua suposta neutralidade é questionada. E por último, analisar
o possível ponto de diálogo entre a teoria Queer e a Educação escolar, em que o
que se busca a priori é saber: Qual a dimensão pedagógica dos Estudos Queer?

1- A teoria queer e o controle dos corpos

O termo Queer, que de acordo com Louro (2004, p.38), “[...] pode
ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário”,
foi utilizado pela primeira vez por Teresa de Laurentis, em uma conferência
realizada na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, em fevereiro de
1990, com a finalidade de elucidar o conhecimento sobre as sexualidades
gays e lésbicas, a partir da crítica da categoria gênero, apoiada pela clássica
afirmação de Simone de Beauvoir (2009) de que “não se nasce mulher, tornar-
se”, portanto, gênero, sendo percebido a partir de uma construção social.
Essa visão, embora bem intencionada, mas que percebe o sexo separado
do gênero, passa ser criticada por apresentar um caráter universalista e
reducionista de constituição das identidades, em que a raça, o gênero, classe e
outras, estão imbricadas, sendo assim, impõe limites no seu próprio conceito,
como ressalta Laurentis:

Conceber o sujeito social e as relações de subjetividade com a sociedade


de uma outra forma: um sujeito constituído no gênero, mas não apenas
pela diferença sexual, e sim por meio de códigos linguísticos e represen-

Ebook IV SIGESEX 133


tações culturais; um sujeito “engendrado” não só nas suas experiências
de relações, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto múl-
tiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividi-
do. (1994, p. 208)

Com esse olhar, a autora aponta a existência de um sujeito não completo


e nem único, que se constitui em diferentes aspectos e não somente a partir
do sexo, mas através de representações culturais reforçadas pelo discurso, o
que reflete uma pluralidade de identidades, que não necessariamente poderá
corresponder a um ordenamento binário, respectivamente sexo e gênero.
Ao analisar o binarismo hetéro/homossexualidade, a Teoria Queer
avança por não se limitar nas compreensões teóricas com base na oposição
homem/mulher, ao contrário, pressupõe o resgate de um saber oculto,
fundamental nesse processo de desconstrução de uma “dada” estrutura, afim
de, desmitificar os processos regulatórios que compulsoriamente determinam
modos de viver assimilados como naturais e corretos, como bem percebe
Foucault:

O corpo inteligível abrange nossas representações científicas, filosófi-


cas e estéticas sobre o corpo – nossa concepção cultural do corpo, que
inclui normas de beleza, modelos de saúde e assim por diante. Mas as
mesmas representações podem também ser vistas como um conjunto
de regras e regulamentos práticos, através dos quais o corpo vivo é “trei-
nado, moldado, obedece e responde”, tornando-se, em resumo, um cor-
po “útil”, socialmente adaptado (FOCAULT, 1987, p.136)

Essa perspectiva foucaultiana de pensar o controle dos corpos, que


regulamenta, classifica e produz a subalternidade, contornará o debate da
Teoria Queer ao elucidar que essa apropriação do corpo e da sexualidade,
funcionará como um dispositivo eficiente e difuso ao determinar os prazeres
possíveis, conferido à relação monogâmica e heterossexual, a fim de garantir
a procriação, em que a família desempenhará um papel fundamental na
produção de riqueza. A mulher que se ocupa do espaço privado, enquanto
o homem, o provedor, do espaço público. Ambos serão determinantes na
geração de mão de obra.
Nesse processo de demarcação dos corpos que podem existir, dentro de
um projeto heterossexual, Butler afirma:

134 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma
descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas
quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um
corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.
(BUTLER, 1999: 155).

Ao questionar essa maneira de organização social que exclui aqueles e


aquelas que não se encaixam ao padrão heterossexual, que produz um lugar de
abjeção, ao mesmo tempo se observa que esse poder é falho, pois não possui a
certeza de um empreendimento consumado, devido a necessidade de reforço
constante da ação do gênero, na medida em que:

(...) a ação do gênero requer uma performance repetida. Essa repetição


é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de
significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana
e ritualizada de sua legitimação. Embora existam corpos individuais
que encenam essas significações estilizando-se em forma do gênero,
essa “ação” é uma ação pública. Essas ações têm dimensões temporais
e coletivas, e seu caráter público não deixa de ter consequência(...).
(BUTLER, 2003, p. 200)

Assim para a precursora da Teoria Queer, Butler (2002) se anteriormente


as expressões pejorativas eram consideradas ofensivas, as mesmas passam a
conferir o status de afirmação, ou seja, ser viado ou ser sapatão, passa a ser
sinônimo de orgulho e se opõe a heteronormatividade.
Essas pessoas, não querem ser incluídas ao conjunto social, querem ser
esquisitas, se posicionar como transgressoras, perturbadoras da ordem. Nesse
contexto, Queer tem um sentido político, na medida em que reivindicam a
autonomia sobre os seus próprios corpos.

2- A pedagogia queer e o contexto escolar

No século XX, com o desenvolvimento do capitalismo e a ideia do


Estado laico, ampliou-se a escolarização e a escola tornou-se fundamental
na formação de mão de obra qualificada para atender a produção industrial
e por outro lado o discurso voltado aos ideais de cidadania inspirado no
Iluminismo.

Ebook IV SIGESEX 135


Dessa forma, o sujeito escolar teve que passar por um processo
compulsoriamente disciplinar para responder aos padrões de conduta que
se espera socialmente, submetendo-se a um ambiente minunciosamente
arquitetado, dentro de [...] um espaço fechado, recortado, vigiado em todos
os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os
menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são
registrados [...] (FOUCAULT, 1987, p. 221).
Esse controle exercido pela escola, através da disciplina fez com que esse
lugar tornasse um local de criação de “corpos dóceis”, pois “a disciplina fabrica
assim corpos submissos e exercitados” (FOUCAUT, 1987). Dóceis, porque se
rendem a obediência e assimilação de regras mais facilmente proporcionando
a otimização da energia consumida na produção, atendendo assim a demanda
econômica.
O poder disciplinar legitima-se na medida em que alunos e alunas
internalizam as normas e incorporam os rituais, cumprindo horários,
utilizando-se de uniformes, sentando-se em fileiras, utilizando banheiros
conforme o sexo, entre outras práticas de controle de comportamentos
repetidos pelo discurso, gestos e outros meios que constituem o corpo educado
pela escola.
Para Butler, antes de qualquer coisa, o gênero “é a estilização repetida
do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora
altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de
uma substância, de uma classe natural de ser.” (2003, p.59). Isso quer dizer,
que, os gostos e as preferências aparentemente naturais de homens e mulheres,
passam por um processo de imposição constante, na medida em que meninos
e meninas são conduzidas(os) a seguir padrões estabelecidos pela cultura
inseridos em um referencial de matriz heterossexual, em especial, através das
constantes reiterações dos lugares confinados.
Ainda referenciando a escola, sua marca indica que:

Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem,


provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos in-
dicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo discipli-
nado pela escola é treinado no silêncio em determinado modelo de fala;
concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular. Mãos, olhos e
ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente de-
satentos ou desajeitados para outras tantas. (LOURO, 1999, p.21).

136 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Como bem aponta a autora, essa fase vivenciada na escola, compreende
que a atenção do corpo deverá ser voltada em especial para o aspecto intelectual.
Nesse esquema, meninas e meninos já sabem o que podem ou não fazer e em
especial as meninas, pois suas limitações de poder são ainda maiores no tocante
as escolhas que permitirão a elas alçar espaços equiparados aos dos meninos,
porque a eles cabe à escola potencializar seus “atributos natos”, caracterizado
pela força, valentia, racionalidade e por outro lado a docilidade que faz da
menina ser mais passiva e sensível, voltada para o exercício do cuidado. Suas
curiosidades e desejos ficarão guardados até que chegue o momento oportuno.
A escola irá também reafirmar os padrões socialmente aceitos do que
é ser um homem e do que é ser uma mulher heterossexual, ao mesmo tempo,
que tende a ignorar a existência de vivência de outras formas de sexualidade,
na medida em que,

Silenciar sobre aqueles que se interessam por colegas do mesmo sexo é


uma forma de tratá-los como não sujeitos, desmerecê-los porque não
correspondem aos atributos desejados socialmente e, sobretudo, relegá-
-los ao reino aqueles que não podem nem existir, já que não podem ser
nomeados. Fora da sala de aula, eles serão insultados, uma forma de
declará-los inferiores e abjetos, pois o ato de xingar não os denomina
apenas, antes os classifica como inferiores e indesejados (MISCKOL-
CI, 2010 p.81).

Para o autor, essa forma intencional da escola ignorar, através do


silenciamento a existência de relações homossexuais, é um dos meios que a
escola utiliza para construir identidades ditas como naturais e normais.
Perceber a escola como um espaço tradicionalmente disciplinador e
reprodutor da norma dominante, implica admitir o desafio ou pelo menos a
precariedade de um terreno fértil para as demandas de uma Pedagogia Queer
na sua radicalidade, disposta a subverter e desestabilizar a lógica normalizadora
hegemônica, que emprega o desmantelamento no seu processo analítico ao
questionar o que foi construído como verdade absoluta, na medida em que:

É preciso [...], por essa escrita dupla, justamente estratificada, deslo-


cada e deslocante marcar o afastamento entre, de um lado, a inversão
que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição superior,
que desconstrói a genealogia sublimante ou idealizante da oposição em

Ebook IV SIGESEX 137


questão e, de outro, a emergência repentina de um novo “conceito”, um
conceito que não se deixa mais – que nunca se deixou - compreender no
regime anterior (DERRIDA, 2001b, pp. 48-49).

Nesse deslocamento, os lugares de abjeção, passam a ser ressignificados,


na medida em que a inversão do discurso de desprezo que carrega o xingamento
passa a ser sinônimo de orgulho e reconhecimento.
Em se tratando do contexto educacional, para se utilizar da teoria pós-
crítica, é necessário compreender as premissas da teoria crítica, pois,

Na teoria do currículo, assim como ocorre na teoria social mais geral, a


teoria pós-critica deve se combinar com a teoria crítica para nos ajudar
a compreender os processos pelos quais, através de relações de poder e
controle, nos tornamos aquilo que somos. (SILVA, 1999, p. 147).

O currículo enquanto conjunto de conhecimento não é neutro. Nesse


campo, o conhecimento é fruto de disputas de poder, predomina uma seleção
e uma hierarquia do saber, em que o que não interessa saber fica de fora. E esse
controle não necessariamente se encontra instalado na escola, ela tão somente
executa fazendo valer o que se concebe como conhecimento útil, ao mesmo
tempo em que este vincula-se à nossa trajetória e o processo pelo qual somos
inseridos no lugar que ocupamos e nos constituímos como sujeitos ou não.
Nas palavras de Silva, “tal como o feminismo, a teoria queer efetua uma
verdadeira reviravolta epistemológica” (1999, p.107), pois nos obriga a pensar
o impensável, questionando o próprio conhecimento que ao longo da vida
escolar, foi posto como “verdade”, a partir de um recorte, que nesse diferente
processo, a reedição se ocupa em recuperar as partes que foram cortadas, o que
permitirá uma possível ampliação do pensamento, bem como, uma pedagogia
articulada com a pluralidade.

Considerações finais

A articulação entre o pensamento Queer, na sua radicalidade, e a


educação escolar, é desafiante, tendo em vista, que a escola carrega valores
tradicionais difíceis de serem alterados e por outro lado o poder hegemônico
assume a função de determinar até mesmo a condição de humanidade e

138 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


existência, ou seja, de quem se enquadra como humano e de quem merece
existir. Essa denúncia, amparada nos Estudos Queer, que não se limita as
questões de gênero e sexualidade, tem seu referencial teórico marcado pelo
movimento pós-estruturalista, que vai pensar o modo como o mundo é
organizado ao romper com a lógica binária.
A escola se preocupa com o conhecimento e a dimensão pedagógica dos
Estudos Queer, é um passo que sugere uma viagem epistemológica, ousada e
muito produtiva que não se compromete em parar, mas que se dispõe a pensar
o impensável, a questionar aquilo que ao longo da vida se apresentou como
natural e inabalável, mas que foi determinante na elaboração do nosso ser.

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140 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Diversidade sexual e Teologia da Libertação:
diálogos possíveis entre moral cristã, Teoria
Queer e opção preferencial
Sexual diversity and Liberation Theology: dialogues
between christin morality, Queer Theory and
preferential option
Michel Eriton Quintas1

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo contribuir com a reflexão


acerca da diversidade sexual no campo da religiosidade considerando aspectos da
Teologia Moral, da opção preferencial – recordada pela Teologia da Libertação –
e da teoria queer. Para tanto, são consideradas pesquisas críticas e teóricos que vão
de encontro com documentos eclesiais ultrapassados e leituras fundamentalistas
da Bíblia. Conclui-se, assim, que os cristãos necessitam de uma práxis convergente
com a de Jesus, cuja opção preferencial pelos marginalizados é traço essencial.
PALAVRAS-CHAVE: Diversidade sexual. Teologia da Libertação.
Moral cristã.

ABSTRACT: The present work aims to contribute with a reflection on sexual diversity
in the field of religiosity, based on the Moral Theology, the preferencial option – reminded by
Liberation Theology – and queer theory. For this purpose were considered the researches and
theorists that go against the outdated ecclesial documents and the fundamentalists readings
of Bible. It was concluded, therefore, that Christians need a praxis convergent with that of
Jesus, whose preferential option for the marginalized is an essential characteristic.
KEYWORDS: Sexual diversity. Liberation Theology. Christian morality.

Introdução

A insurgência de temas acerca da diversidade e pluralidade sexual na


contemporaneidade não escapa ao universo da religiosidade e das Igrejas
1. Graduando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR e em Ciências da Religião
pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER; Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq; E-mail: michel.quintas@pucpr.edu.br

Ebook IV SIGESEX 141


cristãs. Embora a hermenêutica teológica, como afirma Queiruga (1999, p.
26), deva se inserir na dinâmica de reconhecer que os produtos do passado,
ainda que tenham contribuído, não respondem categoricamente às demandas
do presente, os cristãos são, ainda hoje, através da utilização de documentos
eclesiais ultrapassados e leituras fundamentalistas da Bíblia, responsáveis pelo
fortalecimento da atual cultura hegemônica, homofóbica e heteronormativa
(WINK et. al., 2008, p. 7-8). Segundo Musskopf (2008, p.2):

Em geral, tem havido um descompasso entre a discussão no âmbito


público (estatal) e a discussão na esfera das igrejas sobre o tema da ho-
mossexualidade. Em diversos países, determinados direitos já são asse-
gurados constitucionalmente. No entanto, o reconhecimento destes
direitos pelas igrejas tem ocorrido apenas num período posterior. No
âmbito das igrejas […] a atitude tem sido mais de respeito e tolerância
pastoral do que de reconhecimento e valorização da sua experiência.

Nesse sentido, urge a necessidade de pensar e repensar constantemente


a temática. No campo da Teologia, é importante não só estabelecer nexos
entre a própria epistemologia, as contribuições de outras ciências como a
Medicina, a Psicologia e a Sociologia e campos de estudos relacionados como
o da teoria queer, mas também e, sobretudo, com as descobertas exegéticas
e compreensões de moral cristã suscitadas a partir do Concílio Vaticano II
(1962-1965) que, segundo Vidal (2013, p. 210-212), são abertas à realidade
humana, a serviço do mundo e contemplam um antropocentrismo axiológico.
Ao estabelecer, portanto, esta reflexão, é indispensável considerar
alguns dos elementos fundamentais da vida moral cristã como o modelo
ideal da figura e de Jesus Cristo e sua práxis, voltada preferencialmente aos
marginalizados, que exige o mesmo de seus seguidores. De encontro a esses
problemas, a Teologia da Libertação pode contribuir positivamente: elaborada
do contexto latino-americano na década de 1960, foi e atualmente continua
responsável por recordar a evangélica opção preferencial pelos pobres às Igrejas
e fiéis cristãos.
O objetivo da Teologia da Libertação é fazer dos cristãos verdadeiros
pobres evangélicos, mas, para tal, entende que o compromisso com os pobres
socioeconômicos é indispensável (BOFF; BOFF, 1985, p. 70-72). Assim,
enquanto as categorias de pobreza teológica/evangélica e socioeconômica
estão intimamente relacionadas, a Teologia da Libertação propõe, na esteira

142 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


das bem-aventuranças, do serviço em prol do outro e da disponibilidade para
torna-se instrumento e sinal do Reino de Deus, o comprometimento com
os que tem fome, mas também com aqueles que são discriminados por raça,
gênero e orientação sexual.
Sabendo que toda definição e leitura religiosa possui uma incidência
prática e, quanto as posições condenatórias, de natureza negativa, podendo
contribuir não só com a permanência de descriminações no imaginário social,
bem como em casos extremos como o do suicídio, a reflexão sobre a diversidade
sexual faz-se extremamente necessária e inadiável, tanto para que se desvelem
caminhos de diálogo, quanto para a promoção de práticas pastorais coerentes
com o terceiro milênio, que acolham os que estão distantes dos pré-requisitos
da moral tradicional, que tenham sensibilidade e que levem em conta, também,
as razões do coração (BRIGHENTI, 2001, p. 36-37).

1- Religião e diversidade sexual

A questão da diversidade sexual na campo moral cristã, que tem a


homossexualidade na linha de frente das condenações, não tem recebido, por
parte de porta-vozes oficias das Igrejas, devida ênfase nos últimos anos. Existe
uma grande resistência em modificar leituras eclesiais feitas no passado. Essa
dinâmica carrega profunda tenacidade, pois, embora se justifique enquanto
deseja zelar pela essência da fé, incorre no risco não só de contrariar, mas
também impedir o progresso e fechar-se à novidade suscitada pelo Espírito
Santo. A este respeito, no entanto, Queiruga (1999, p.22) sustenta que a
dessacralização das formas de compreensão anteriores, embora dolorosa, é
inevitável para manter viva a experiência de fé e para que ela não se torne fóssil
inerte ao passado.
A maior parte dos documentos eclesiais católicos sobre o tema, por
exemplo, é anterior a 1990, anterior a retirada da homossexualidade da lista de
doenças mentais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Estes documentos,
embora já contemplem uma dimensão pastoral de acolhida considerável,
mantém posições ético-morais tradicionais, rígidas e taxativas que ainda não
reconhece a legitimidade das experiências de pessoas não-heterossexuais. Os
posicionamentos se fundamentam, na maioria dos casos, em argumentos de
natureza bíblica, mas até onde a exegese e o método histórico-crítico de análise
estavam desenvolvidos no período em que foram escritos? Seria possível, nos
dias de hoje, chegar a outras leituras?

Ebook IV SIGESEX 143


Na Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das
pessoas homossexuais, elaborado em 1986 pela Congregação para a doutrina da
fé e aprovada pelo então Papa João Paulo II, termos como “homossexualismo”
e “intrinsecamente desordenados” estão presentes. As orientações presentes no
Catecismo da Igreja Católica seguem a mesma mentalidade. Em que medida,
portanto, os documentos oficias antigos escapam à compreensão de época
onde a homossexualidade era tida como doença e desordem? Estas orientações
dão conta de responder aos anseios contemporâneos?
Enquanto as formulações das Igrejas parecem sempre as mesmas, o
desenvolvimento científico vai de encontro com elas. Já em 1908, Sigmund
Freud afirmava “que a sexualidade normal é aquela exigida pela cultura, não
havendo, portanto, normalidade sexual que não seja relativa a algum critério
social” (BARBERO apud MESQUITA, 2008) e na década de 1990, a OMS
retirou a homossexualidade do Código Internacional de Doenças (CID).
Nesse mesmo período, no Brasil, também o Conselho Federal de
Psicologia (CFP) deixou de classificar a homossexualidade como desvio sexual
e passou a orientar os psicólogos para contribuírem no combate ao preconceito
e discriminação. Além disso, as pesquisas atuais – com destaque à teoria
queer – tendem a afirmar que todas as formas de expressão da sexualidade
humana são produtos da relação de fatores psicológicos, biológicos e sociais
(MESQUISTA, 2008). Como fica, então, o discurso que considera orientação
sexual como uma escolha?

2- Bíblia e diversidade sexual

Em se tratando de Bíblia, é preciso, antes de quaisquer análises, orientar a


hermenêutica numa correta perspectiva. Leituras rasas e fundamentalistas podem
acabam justificando orientações éticas inconsequentes. Carlos Mesters (1983,
p. 42-46) sugere que uma leitura bíblia qualificada deve contemplar, além de
uma profunda conexão da exegese com a vida, três fatores: o pré-texto, o texto e
contexto, isto é, analisar não somente a narrativa, mas também o ambiente cultural
e histórico no qual foi escrita e em que contexto deve ser lida na atualidade.
Nesta mesma linha, Bernhard Häring (1991, p. 35-36) sustenta que o teólogo
moralista do terceiro século precisa da hermenêutica-científica como ferramenta
de compreensão não só da Bíblia, mas também dos documentos do magistério.
Em análise propriamente bíblica, geralmente se evocam textos do Gênesis,
do Levítico e das cartas de Paulo para fundamentar proibições e considerar a

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homossexualidade como perversão da ética sexual. Quanto aos textos do Antigo
Testamento (cfr., por exemplo, Lv 18,22; 20,13) não é tão difícil concluir que
apresentam ambiguidades e que não deveriam legitimar posições morais.
Autores como Wink et. al. (2008, p. 10-16; 26-27) evidenciam que
os textos são claros: em suma, eles condenam práticas homossexuais, mas
também proíbem sexo nos dias do período menstrual (Lv 18,19; 15,18-24),
consideram impuros aqueles que tocam sangue menstrual ou sêmen (Lv
15,16-24) e permitem coisas que, para a contemporaneidade, são ilógicas: a
poligamia, o casamento levirato (Dt 25,5-10) e o uso de escravos, concubinas
e prisioneiros (Lv 19,20; 2Sm 5,13; Nm 31,17-20). O próprio documento da
Congregação para doutrina da fé de 1968 deixa claro “que a literatura bíblica é
tributária das várias épocas nas quais foi escrita, com relação a grande parte dos
seus modelos de pensamento e de expressão (cfr. Dei Verbum, n. 12).”
Quanto ao Novo Testamento, as questões são mais complexas. Ainda que
mais próximo da atualidade e que, segundo a mesma Congregação, o mundo já
estivesse “consideravelmente mudado, por exemplo, quanto à situação na qual
foram escritas ou redigidas as Sagradas Escrituras do povo judeu”, Wink et. al.
(2008, p.11) evidenciam que Paulo – único a escrever sobre homossexualidade
na literatura neotestamentária – desconhecia não só a diferença entre
comportamento e orientação sexual, como, obviamente, todas as dimensões
biopsicossociais envolvidas ao fenômeno da sexualidade humana.
Ao lado de muitos outros textos que apresentam com normalidade práticas
hoje desconsideradas como a escravidão e a poligamia, é preciso considerar
a Sagrada Escritura em sua totalidade. O Deus cristão é o Deus da kênosis –
prisma pelo qual se deve compreender o universo bíblico –, o Verbo encarnado
se esvazia da divindade e assume a condição humana em plenitude (Fl 2,6). A
humanização de Deus se dá na perspectiva de indicar o caminho da humanização
dos indivíduos e, existindo pessoas que, independentemente de suas orientações
sexuais, são extremamente humanas, “abandoná-los seria repudiar, creio, nosso
mestre Jesus Cristo.” (MYERS, 1977 apud WINK, 2008, p.19).

3- Diversidade sexual e moral cristã

A teologia moral se insere numa dinâmica processual de


desenvolvimento. Ao longo da história esteve muito próxima do direito e
se estabeleceu, quase que exclusivamente, de forma casuística. No período e
com o Concílio Vaticano II, entretanto, a disciplina retorna aos fundamentos

Ebook IV SIGESEX 145


propriamente teológicos (VIDAL, 2003, p.7), onde as questões da ética social
são privilegiadas e as influências dos paradigmas de subjetividade, liberdade e
felicidade são explicitas.
Para os estudos teológicos atuais, a vida moral não é um simples
cumprimento de normas pré-estabelecidas por parte das Igrejas, mas pressupõe
relacionamento e intimidade com Deus, de onde emanam a consciência e o
compromisso ético. A moral, nesse sentido, está intrinsecamente relacionada
com o teologal: da relação brota o compromisso, da experiência a consciência,
da transcendência a transformação etc.
Tudo isso acontece sem esforço, no sentido de que é radicalmente
contrário a dinâmica da graça e impossível inserir-se no projeto da Santíssima
Trindade por méritos próprios. É, então, a partir da própria teografia, ou seja,
das transformações pessoais que decorrem do contato com o divino, que o
cristão pode se engajar no projeto de Deus. É na medida que cresce a abertura
ao Espírito que se adere a esta práxis, indubitavelmente fundamentada no
amor, na gratuidade, na intimidade e na vontade de conformar-se à Jesus
Cristo, a imagem normativa do ser humano. Para Vidal (2013, p. 168-169),
esta moral iluminada pelo Espírito Santo penetra, transforma e origina os
hábitos do coração que realizam a bondade moral. Portanto, sobre o que diz
respeito ao comportamento ético-moral, Wink (2008, p.17-18) sugere que,
no fim, cada um deve julgar por si se uma normativa eclesiástica é, ou não,
cabível.
Essa dinâmica também deve ser aplicada as orientações que dizem
respeito à sexualidade. Cada fiel, a partir de seu discernimento, é que deve
desenvolver convicções. O discernimento, no entanto, não é o justificar
interesses próprios, mas refletir profundamente sobre a melhor forma de
experimentar a vida cristã, segundo os indicativos do próprio Cristo. É nesse
sentido que Musskopf (2008, p. 15-17) fala da urgência de uma teologia gay,
onde a perspectiva não esteja centrada somente na exegese e na tradição, mas
também na experiência de cada uma destas pessoas, de como elas leem a Bíblia,
se relacionam com o magistério e experienciam o sagrado.
Em suma, o argumento que prevalece e parece irrefutável é o de que
casais homossexuais não podem gerar a vida, mas, como não mencionar que
muitas das crianças abandonadas são adotadas por estes casais? A reflexão
parece sempre estabelecer paradoxos e apresentar diferentes perspectivas.
Nesse sentido delicado e tênue se insere o discernimento pessoal suscitado pelo
Espírito em cada experiência, que é a chave de toda moral neotestamentária

146 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


(CULLMANN, 1967 apud VIDAL, 2013, p. 204). Isto significa que não
existe um único modus vivendi cristão e que, embora a experiência cristã seja
essencialmente comunitária, também é personalíssima.
Dizer isso, contudo, não é negar a fé da Igreja ou descartar a essência do
cristianismo que ela preserva. Não se trata de negar seus dogmas, mas justamente
de traduzir, de maneira pessoal, aquilo que comunitariamente nos é dado através
da tradição. Quando são as questões acerca da diversidade sexual são colocadas
no centro da reflexão teológica, claramente o objetivo não é permitir tudo e
transformar a vida moral em laxismo. O que se deseja sinalizar, em sintonia com
os princípios expressos por Karl Barth a respeito da universalidade da graça e
do julgamento, é justamente o contrário: que a graça não encontra empecilho
em nenhuma condição ou obstáculo humano, que não existe distinção absoluta
entre as formas de expressão da sexualidade humana, que a condição de pecado
se manifesta em todos os estilos de vida e que todos estão debaixo da vontade
graciosa de Deus (WINK et. al., 2008, p.23).

4- Jesus, o defensor dos últimos

A análise do Jesus histórico sempre evidencia sua predileção pelos


marginalizados de forma muito clara. Jesus é o defensor dos últimos (PAGOLA,
2014, p. 219-250). Na sociedade judaica dos primeiros séculos, eles eram
pecadores, pobres, mulheres, crianças e pequenos, cobradores de impostos e
todos aqueles que, por algum motivo, não tinham ou eram assaltados em sua
capacidade de observar a Lei. Jesus, em contrapartida, não deixa ninguém de fora
do anúncio e se coloca ao lado destas pessoas. O faz não porque merecem mais,
mas porque estes são os que mais precisam, sua predileção se dá pela circunstância
objetiva de periferia em que os marginalizados se encontram. O convite de Jesus
é para que estes participem, também, do Reino (RUBIO, 2012, p. 38-45). Para
Vidal (2003, p.171-172; 200-201), esta preferência pelo fraco é o traço básico da
moral vivida por Jesus e deve orientar a atuação dos fiéis.
Para Pagola (2012, 141-142), este traço obriga uma revisão das atitudes
cristãs em relação aos grupos que, hoje, são impedidos de aproximarem
integralmente de Jesus. Ao tentar traduzir esta predileção no contexto atual,
podemos pensar em quem são últimos de nosso tempo. Não seriam também
os LGBTQI+? Se Jesus fosse uma figura histórica contemporânea, não estaria
Ele ao lado desses que são considerados “sodomitas”, “doentes” e “leprosos”?
E quais deveriam ser as atitudes de seus seguidores? Evidentemente “não é

Ebook IV SIGESEX 147


cristão adotar uma postura de condenação ou rejeição nem julgar a vida de
uma pessoa reduzindo-a à sua sexualidade, sem levar em consideração outros
valores e dimensões de sua personalidade” (PAGOLA, 2012, p.142).

5- Diversidade sexual e opção preferencial

A Teologia da libertação, enquanto espaço privilegiado de compromisso


social, pode suscitar reflexões importantes no campo da pluralidade sexual.
Embora nascida da urgência de pensar teologicamente a opressão econômica
presente no mundo, encontra-se, atualmente, interpelada pelos novos rostos
da pobreza. Para Brighenti (2004, p.107-108) este é um desafio à racionalidade
teológica que, desde o surgimento de teologias específicas como a feminista, a
Teologia da Libertação vem respondendo, considerando, também, as questões
de raça, língua, cultura, cor, gênero, idade etc.
Em profunda leitura do Evangelho, a Teologia da Libertação lembra
incessantemente que a Igreja deve zelar pelo princípio de identificação com os
oprimidos e enquanto este princípio se aplica, “a Igreja tem obrigação de estar
ao lado dos homossexuais” (WINK et. al., 2008, p.28), bem como de todos os
LGBTQI+. A Igreja da atualidade, ao passo que precisa conjugar religiosidade
e felicidade para não se tornar obsoleta (BRIGHENTI, 2001, p.36) precisa de
um coração sensível aos que, embora chamados de minorias, representam uma
parte significativa da população. A mensagem de Jesus Cristo também precisa
atingi-los e transformá-los.
Esse efervescência e radicalidade evangélica revelam, como nos lembra
Dom Antônio Carlos Cruz Santos, na homilia da festa de Sant’Ana de 2017,
que o Evangelho mesmo sendo porta estreita e amor exigente, é sempre porta
aberta e, por excelência, mensagem de inclusão. O bispo de Caicó vai além e,
ao apontar que a homossexualidade – e todas as outras – não sendo escolha,
nem doença, sob a perspectiva da fé, só pode ser um dom dado por Deus. Esta
atitude certamente está em consonância com a ideia de Igreja da práxis do
amor. Segundo Brighenti (2001, p. 36-37).

Sem cair no emocionalismo, é preciso dar guarida a outras formas


de razão, também em teologia, como a razão emocional, intuitiva,
experiencial e comunicativa. [...] Só uma instituição com o coração
põe a pessoa no centro de suas preocupações. [...] Uma correta con-
jugação entre razão e coração é a medida para toda instituição, sobre-

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tudo para a Igreja, que tem a missão de prolongar a missão do próprio
Jesus na história.

Se considerarmos, como sugere o teólogo Jon Sobrino, que “fora


dos pobres não há salvação”, não podemos manter discursos ambíguos e
inconsequentes. Se a Igreja deseja ser sinal, salvaguardar a fé e transmiti-la
pelos séculos, ao passo que se evidencia a desumanização das pessoas, processo
que sempre reduz a totalidade à uma única característica como a cor, o gênero
ou a sexualidade, e ao passo que problemas como o suicídio, depressão, a baixa
expectativa de vida destas populações e preconceitos que ameaçam a vida
rondam o universo religioso, as respostas não podem mais ser as mesmas.

Considerações finais

A tarefa de pensar teológica e religiosamente a diversidade e pluralidade


sexual é inadiável, complexa e ampla. Na contemporaneidade, com a
valorização da subjetividade, a Teologia e a Igreja devem cultivar a razão sensível
colocando-se ao lado dos marginalizados e preconizando a humanidade sobre
leis e normativas. Nesse sentido, ambas devem ir muito além de se posicionar
contra os preconceitos e acolher parcialmente as pessoas. Elas devem, segundo
a universalidade da graça, fazer o convite sem nenhuma ressalva, sem impedir
a totalidade do encontro com Deus.
Valendo-se do discernimento, ao passo que uma simples orientação sexual
– a priori – não é suficiente para condenações ou para determinar um estado de
pecado, cada cristão deve decidir por si. Somando forças, a Igreja deve orientar
seus fiéis sem carregar, de forma explícita ou velada, o discurso hegemônico de
preconceito e exclusão. Se a comunhão é a medida da comunidade cristã, esta deve
caminhar para o progresso, para a libertação de quaisquer relações funcionalistas
ou reducionistas entre os seus. Se os membros desta comunidade desejam seguir,
como discípulos, o Jesus do qual falam os Evangelhos, é inevitável que sejam,
como o Mestre, defensores dos últimos.
Nesse contexto é que está a sexualidade e a moral sexual, válida enquanto
deseja salvaguardar relações de comunhão e não de objetificação, mas que deve
ser vivida de forma saudável e não desvirtuada de sua função essencial, o que
se verifica quando as Igrejas utilizam do princípio fundamental de comunhão
para justificar segregações e proselitismos.

Ebook IV SIGESEX 149


É importante ressaltar, ao final, que os fins não justificam os meios, isto é,
para a espiritualidade e para religiosidade, negar a própria identidade para alcançar
um “bem” é completamente contrário ao projeto instaurado por Jesus Cristo.
Aludindo à teologia do corpo místico, excluir qualquer pessoa do convívio da
comunidade ou restringir seus direitos de participação é flagelar o corpo do Senhor.
Uma Igreja de coração sensível, portanto, deve ser uma Igreja aberta
a todos, incluindo aqueles que por suas orientações sexuais são excluídos
e deslegitimados de suas condições humana e de fiel cristão. A Igreja vem
progredindo, já existe muita abertura por parte de líderes religiosos, Dom
Antônio Carlos, por exemplo, o Padre Júlio Lancellotti, na diocese de
São Paulo, e até mesmo o Papa Francisco em suas declarações. No então,
não são suficientes para estabelecer, entre pessoas e Igreja, uma comunhão
completamente livre de preconceitos e ressalvas. Daí a necessidade de pensar
e repensar estas questões, eclesial e teologicamente, para que não cessem os
esforços em prol da fraternidade universal, da plena comunhão humana, da
justiça, da paz e da libertação.

Referências

BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo. Como fazer teologia da libertação. 4. ed.


Petrópolis: Vozes, 1985. 141 p.

BRIGHENTI, Agenor. A Igreja do futuro e o futuro da Igreja: perspectivas para


a evangelização na autora do terceiro milênio. São Paulo: Paulus, 2001. 52 p.

__________. A Igreja perplexa: A novas perguntas, novas respostas. São Paulo:


Paulinas, 2004. 148 p.

GOURGUES, Michel. O fariseu e o publicano. In:______. As parábolas de


Lucas: do contexto as ressonâncias. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 185-200 p.

HÄRING, Bernhard. Teologia Moral para o terceiro milênio. São Paulo: Paulinas,
1991. 171 p.

JOÃO PAULO II. Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento
pastoral das pessoas homossexuais. Vaticano, 1986.

150 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


MESQUITA, Teresa Cristina Mendes. Homossexualidade: constituição ou
construção? Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Psicologia) -
Centro Universitário de Brasília. Brasília, 2008.

MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo.
Petrópolis: Vozes, 1986. 209 p.

MUSSKOPF, André Sidnei. À meia luz: a emergência de uma teologia gay, seus
dilemas e possibilidades. Cadernos IHU ideias. Ano 3, n. 32. São Leopoldo,
2015. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/
ideias/032cadernosihuideias.pdf>. Acesso em: 02 out. 2018.

PAGOLA, José Antônio. Defensor dos últimos. In:______. Jesus: aproximação


histórica. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 219-254 p.

__________. O caminho aberto por Jesus: Lucas. Petrópolis: Vozes, 2012. 392 p.

GARCIA RUBIO, Alfonso. O encontro com Jesus Cristo Vivo: Um ensaio de


cristologia para nossos dias. 15. ed. São Paulo: Paulinas, 2012. 186 p.

VIDAL, Marciano. Nova Moral Fundamental: O lar teológico da Ética.


Aparecida, SP: Aparecida; São Paulo: Paulinas, 2003. 912 p.

QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a Criação: por uma religião mais


humanizadora. São Paulo: Paulus, 1999. 350 p.

WINK, Walter. et al. Homossexualidade: perspectivas cristãs. São Paulo: Fonte


Editorial, 2008. 183 p.

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Sexualidade (s): uma questão pública 1
Sexuality (ies): a public question
Carlos Igor de Oliveira Jitsumori2
Dayana de Oliveira Arruda3

RESUMO: Problematizar, com base nos referenciais foucaultianos,


que a sexualidade é construída histórica, social e culturalmente. Este trabalho
envolve jovens LGBT, de uma escola pública de Campo Grande - MS. Tem por
objetivo demonstrar que a escola é um espaço público em que as sexualidades
são produzidas numa relação de saber/poder. Logo, desde o século XVIII a
sexualidade se tornou pública.
PALAVRAS-CHAVE: LGBT; estudantes; público.

ABSTRACT: Discuss the problematization based on the references of Foucault that


sexuality is historically, socially and culturally. This present study engages the LGBT youngsters
from a public school in Campo Grande city, state of Mato Grosso do Sul. The main purpose is
to demonstrate that a school is a public space where sexualities are produced in a correlation
between knowledge and authority. Therefore, since century XVIII sexuality has become public.
KEYWORDS: LGBT; students; public.

Introdução

Este trabalho visa discutir, problematizar e demonstrar que a sexualidade


e suas práticas não são e não estão reduzidas ao ambiente familiar. Mas que elas
expandem a essa instituição e vão encontrar eco no espaço escolar. Podemos
dizer que nesse ambiente elas entram em colapso e provocam as dissenções. A
1. Discussão teórica articulada com dados do campo de pesquisa de um estudo em andamento intitulado “O precon-
ceito LGBT interrogado: possibilidade de conhecimento e cuidado de si”, que tem por objetivo compreender como
os sujeitos envolvidos (jovens adolescentes) lidam com preconceitos e exercitam suas práticas de si. É uma pesquisa
que ocorre com alunos e alunas LGBT, de uma escola pública de Rede Estadual de Ensino do Estado de Mato Grosso
do Sul, no município de Campo Grande, matriculados no Ensino Médio. Vinculado à Linha de Pesquisa “Educação,
Cultura, Sociedade” do Programa de Pós-Graduação em Educação – Curso de Doutorado, da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (PPGEdu/UFMS), sob orientação do Professor Dr. Antônio Carlos do Nascimento Osório,
e ao Grupo de Estudos e de Investigação Acadêmica nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF/UFMS).
2. Professor e Mestre em Educação (UCDB). Aluno do Curso de Doutorado em Educação (PPGEdu/UFMS).
3. Cientista Social e Mestre em Educação (UFMS). Aluna do Curso de Doutorado em Educação (PPGEdu/UFMS).

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postura e discursos dos próprios estudantes desconstroem e reverberam todo e
qualquer discurso que se pretenda proibitivo, moralizador e repressor.
O lastro teórico parte dos postulados Foucaultianos, sustentado por uma
base empírica e analítica, cujos procedimentos a serem adotados privilegiam
aspectos etnográficos, como o cotidiano escolar e a educação, concebidos
pelos processos das práticas sociais e culturais, pelos diferentes mecanismos
de seleção que subsidiem registros que indiquem significados e percepções dos
alunos, alunas e professores sobre aqueles que são identificados LGBT.
Se por um lado o espaço escolar não tem o interesse em reconhecer
outras sexualidades e até mesmo discutir sobre sexualidades; por outro lado,
o que se observa é um espaço que por todos os meios exige e reclama uma
discussão sobre práticas sexuais. Possivelmente, porque seja mais fácil, menos
doloroso e conflitante padronizar as sexualidades consideradas desviantes
a ter que lidar com toda uma pluralidade de sexualidades. O que não deixa
de produzir e gerar tensões. Talvez não porque há uma essência histórica e
cultural determinada da sexualidade. Mas porque há interesses que perpassam
a história nas suas dimensões de ordem médica e jurídica.
Cabe frisar que não compreendemos a heterossexualidade como sendo
fechada e acabada, assim como não há qualquer sexualidade limitada que
não marca relação com outras formas sexuais. Pois, estabelecer que há uma
fundamentação de natureza nas práticas e orientações sexuais seria “[...]
desconhecer diferenças fundamentais que dizem respeito ao tipo de relação
consigo e, portanto, à forma de integração desses preceitos nas experiências
que o sujeito faz dele próprio” (FOUCAULT, 2014, p. 178).
As diversas experiências do sujeito não são fruto de um fator fisiológico,
meramente, mas de todo um processo de relações de poder que se produzem
diante dos valores culturais. O que cabe pensar que a sexualidade não é uma
categoria somente do privado, mas o extrapola. A sexualidade não se adquire
no interior dos próprios hormônios, tampouco fora das relações intersubjetivas
e muito menos restrita a um saber médico, ou de âmbito religioso (em
muitos casos). A questão sexual é pública e, por isso, não deixa a escola de ser
copartícipe dessa responsabilidade.
Instigante, que se porventura pensa que o inimigo da norma, o
LGBT, não tem causa natural quanto às suas práticas e vida sexual, logo, ser
homossexual, travesti, bissexual, transexual, transgênero, lésbica depende de
uma lógica da construção histórico, social e cultural. Sendo assim, as relações
de poder são dispositivos do sujeito histórico e social (FOUCAULT, 2017).

Ebook IV SIGESEX 153


Nesses mecanismos, os indivíduos produzem e constroem dispositivos
que alteram relações normatizadoras. É possível observar alunos e alunas que
ocupam outras sexualidades inverterem o pressuposto de uma submissão e
inferioridade, aparentemente permanente, e ocuparem o poder. Por isso que
o poder é flutuante, móvel (FOUCAULT, 2014). Sendo assim, não é possível
prever e traçar um modo de se posicionar frente aos eventos que ocorrem na
escola e durante as aulas. Não tem como prever como um aluno recebe certos
discursos durante uma aula e percebe em certas circunstâncias momentos que
lhe convida a inferir questões sobre si.

1- Discussão

“Olha! Tudo o que eu sei sobre os estudantes LGBT na escola; sei por
conta da Zélia (nome fictício de uma estudante que se considera transexual).
Ela é uma aluna bem articulada e se relaciona bem com os alunos da Escola e
com os professores.” (Fala de um professor). Em um outro momento, durante
uma discussão na aula de humanas, um estudante, abre a discussão sobre um
vídeo que abordava a chegada do homem à Lua. “É isso! É a evolução das
espécies querida, o homem ir para a Lua. É o mesmo dos homossexuais, o
homo sapiens era bissexual, com a evolução o homo sapiens sapiens o homem
se torna homossexual e deixa de ser bissexual.” Uma outra aluna objetiva.
“Credo guri, você é doido?” E ele rebate. “Lógico que não. A bissexualidade
é uma falda de evolução, eu sou evoluído, assim como os heteros.” Momentos
de risos. “Mas é professor. Os gays estão no pico da evolução, estão decididos,
sabem o que são. Por isso, sou gay tranquilamente e me aceito.” (Diário de
campo, do dia 18 de abril de 2018)4.
Trazemos à discussão esses dois episódios, que, aparentemente
desconexos e incoerentes entre si; mas que carregam uma base comum. Ambos
discursos ocorrem no espaço escolar. Ambiente que a princípio se espera que
não discuta, não debata e nem traga à baila de discussão, pois, que, a sexualidade
e quaisquer assuntos relacionados a gênero, práticas sexuais, diversidade sexual
é discursivamente inaceitável.
Uma fala se passa em um diálogo conosco com uma professora pelos
corredores da escola e o outro se dá durante uma aula sobre o progresso
científico desde a chegada do homem à Lua. Não iremos trazer neste momento
4. Este diário de campo, é um instrumento de coleta de dados, que foi adotado desde o primeiro momento que aden-
tramos ao campo de pesquisa. Diário esse em que são realizadas todas as anotações referentes ao campo de estudo. O
primeiro contato ocorreu desde março de 2018.

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todas as possíveis discussões que essas falas nos incitam em torno da complexa
e bem orquestrada questão da sexualidade, que para Foucault (2017) é um
modo de se relacionar com o outro na modernidade.
É possível olharmos por detrás dessas construções discursivas, que elas
ocorrem em um ambiente, que digamos de passagem, foi estabelecido para ser
percebido como um espaço da não-fala sobre sexualidade. Mas, que é explorada
exatamente até as fissuras do não espaço das falas para se tornarem ambientes
da manifestação do discurso sobre sexualidade. Assim como a fala desse aluno
que clama e exige um espaço para o discursso sobre sexualidade acontecer, ou
melhor, um espaço para a fala de si.
No discurso de que a escola é heteronormativa, já se estabelece
um dispositivo, que coloca os jovens dentro de uma lógica reguladora de
sexualidade. O que torna inconcebível o discurso de que a escola não é espaço de
se discutir, explorar e debater sobre sexualidade. A sexualidade é uma questão,
ela surge nos corredores durante uma aula cujo objetivo, aparentemente, nada
tinha a ver com sexualidades, práticas sexuais, etc. Mas tal questão aparece. Se
é legítimo que a escola seja heteronormativa, essa sexualidade, por si só, não
regula todos os outros modos de expressão da sexualidade, mas a incita em
todas as suas possibilidades.
Entendemos, por conseguinte, que há um discurso que defende a ideia
de que a sexualidade não é o foco no ambiente escolar, mas, esse discurso é
precário e insuficiente. A escola passa a ser, por exigência de uma aluna que
incita a professora a conhecer outros semelhantes a ela no espaço escolar, um
local que se

[...] cumpre falar do sexo, como de uma coisa que não se deve simples-
mente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade,
regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo.
O sexo não se julga apenas, administra-se. (FOUCAULT, 2017, p. 27).

E se administra de diversos modos, assim como é administrado por uma


jovem que busca orientar o olhar da professora quanto as questões que lhe
interessam a saber, sobre os seus semelhantes na escola. Sendo assim, falar do
sexo, falar sobre sexualidade no espaço escolar ecoa por todos os lados como
um modo de regular condutas de outros sujeitos frente aqueles com os quais se
espera um outro modo de se comportar, perceber e recebe-los. Talvez esteja aí
uma questão de fundo ético.

Ebook IV SIGESEX 155


Falar sobre sexo, para Foucault (2017) por volta do século XVIII, passou
a ser uma questão de interesse público colocá-lo em discurso. Diferentemente
do que se imagina, que falar sobre sexo era escasso e que as práticas sociais
encaminhavam-se para uma censura que interrompessem todo e qualquer
discurso em torno desses eventos é precário e insuficiente, pois o que mais se
observou foi “[...] um refinamento, uma reviravolta tática no grande processo
de colocação do sexo em discurso.” (FOUCAULT, 2017, p. 25).
E isso ocorre em grande parte com o exercício da pastoral cristã e todas
as suas técnicas de confissão. Confessar se tornou o meio pelo qual os sujeitos
eram convidados a falar sobre si, sobre sua prática sexual, para posteriormente,
aos olhos de um confessor ter sua possível sexualidade guiada, conduzida.
Podemos voltar ao exposto pelo aluno, que encontra uma brecha
para falar de si, expor suas inquietações, chocar o sistema, enfrentar o
espaço heteronormativo, trazer à tona o que não era no momento, decorre,
possivelmente, a partir do próprio sujeito. Podemos entender que se num
dado momento histórico do séc. XVII, o indivíduo era conduzido à confissão,
percebemos agora que esse dispositivo se altera. Isto é, o indivíduo adequa o
espaço-aula e vê nesse ínterim o momento de poder falar de si, de dizer sobre
si, “[...] de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem, o mais frequentemente
possível, tudo o que possa se relacionar com o jogo dos prazeres, e pensamentos
inumeráveis que, através da alma e do corpo, tenham alguma afinidade com o
sexo.” (FOUCAULT, 2017, p. 23).
Além disso é ocupar o espaço escolar como um ambiente da confissão.
Parece-nos que em tudo os jovens estudantes se veem pensando de modos
inimagináveis, aquilo que lhe afloram a alma e o corpo. É como se exigissem
da escola, do currículo, das aulas, da dinâmica institucional um algo a mais
que pudesse falar de si. É como se exigisse dessa instituição que ela olhasse,
pensasse, refletisse, se posiciona frente as suas sexualidades e práticas sexuais
omitidas, negadas e produzidas num discurso para a censura e do não espaço.
Quando o aluno traz para si e para o grupo uma discussão que
aparentemente nada tinha a ver com sexualidade e práticas sexuais,
possivelmente ele coloca em questão um conteúdo escolar o emponderamento
masculino e supostamente heterossexual e heteronormativo de um modo de
se pensar e produzir o conhecimento e gerenciar a discussão sobre assuntos
que perceber ocupar um espaço de poder. Para Foucault (2010) o poder não é
circunscrito num grupo, numa esfera social, num indivíduo e numa sexualidade
que se fez histórica e culturalmente; mas o poder se faz circulante e contestador

156 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sobre todas as coisas. Assim como foi possível observar esse aluno trazendo a
discussão para sua vivência sexual. Nisso é perceptível o poder que atua em
todos os ambientes em momentos diversos. O poder se faz nas relações.
Por conseguinte, problematizar a homossexualidade como evoluída,
é confessar-se publicamente é “[...] procurar fazer de seu desejo, um
discurso.”(FOUCAULT, 2017, p. 23). Um discurso que chacoalhe as
estruturas, ou aquilo que se convencionou enquanto estrutura escolar, de
que a escola é o espaço do debate, do embate, do enfrentamento, do poder,
do desejo, do prazer, portanto, das sexualidades. Isso, desconstrói o jargão
histórico, social e cultural, de que a escola não é espaço de se falar e debater
sobre sexualidades e práticas sexuais. Falar sobre sua sexualidade é produzir
uma estética de si que se apresenta na instituição como um modo de viver.
(FOUCAULT, 2010).
Para Foucault (2017) o sexo passou, a partir do séc. XVI a ser uma
questão de discurso. Não há sexualidade fora do discurso, da história, da
cultura, da instituição. A sexualidade passa a ser um dos constituidores e
constituintes do discurso. Logo, deve-se falar publicamente e sem restrição
sobre sexualidades. O que nos leva a considerar que “[...] a partir do fim do
século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de sofrer um processo de
restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação;”
(FOUCAULT, 2017, p. 18).
Neste momento, Foucault nos relata que os cuidados em relação as
práticas sexuais passam a ser uma economia necessária de controle social para
atender as demandas e exigências de um capitalismo que teve como precursor
desse processo um anseio burguês de produzir um modelo de família. Do
mesmo modo que surge a necessidade de contornar um referencial para
guiar a sexualidade desde a infância. (FOUCAULT, 2010). Por isso, tanto o
mercado, quanto a Igreja Católica não exterminaram ou reprimiram a questão
das práticas sexuais, muito diferente disso, incitaram os indivíduos a falarem,
e falarem muito sobre isso; mas de modo que pudesse ser rigorosamente
depurado, controlado por meio de práticas de censura. A censura não aniquilou
esses discursos, mas produziu outros modos de se falar sobre isso.
Em a História da Sexualidade: a vontade de saber (2017) é possível
observar que Foucault nos chama a atenção para entender que a partir do
advento do capitalismo a sexualidade não foi reprimida, muito diferente disso,
a sexualidade passou a se manifestar, foi incitada à confissão. É notável que
a sexualidade vai sendo introduzida para ser uma questão pública, e não um

Ebook IV SIGESEX 157


fator privado. Ela é gerenciada no seio familiar por uma instituição médica e
jurídica para ser sentida publicamente. O outro passou a ser uma instância de
referência ou de orientador de uma sexualidade.
O que nos faz crer que se estabeleceu um movimento de direcionamento
do outro a partir da sexualidade. Para isso, trabalhou no sujeito e o preparou
a uma vivência que estivesse conectada com a sexualidade. Para isso, múltiplas
instituições nos convidam a esse exercício da enunciação sobre a nossa sexualidade.
Porque a sexualidade precisa ser corrigida, direcionada, disciplinada.
Mas isso não deve ser compreendido pelo viés de repressão sexual, muito
diferente disso; como a sexualidade é produzida, o anormal, o desviante sexual
também é gestado nas relações de poder. E todo esse mecanismo é histórico e público,
ou seja, social. O que nos permite afirmar, com muito contundência. que hoje esse
jogo não é diferente. Se existe um discurso de que a escola nada tem com isso, já é
por si só uma relação de poder que estabelece um modo de lidar sobre determinadas
sexualidades. Uma vez que o que é posto em questão por diversos discursos não é a
heterossexualidade e, sim, as consideradas desviantes. Ao se impor censura às escolas
de não discutir sobre sexualidade, já é um modo de falar sobre sexualidade por
mecanismos de censura. (FOUCUALT, 2017). Sendo assim, não só o heterossexual
é irrigado socialmente, o homossexual, o pervertido é criado. O jogo é esse.
Ainda nessa obra, Foucault abre para a compreensão de que passou a
existir uma vontade de saber sobre a sexualidade para se estabelecer um campo
conhecido e, assim, um campo de domínio. A confissão é, por excelência, uma
estratégia de controle dos indivíduos e, por conseguinte, das populações. Cada
sociedade agindo e se produzindo dentro de mecanismos bem próprios.
As sexualidades desviantes, assim estabelecidas pela vigilância de um
saber “sagrado” sobre a sexualidade, aparecem e incendeiam, alastram-se por
todos os lados. Mas é quase que inaceitável que perambulem pelas instituições
onde não deveriam estar, pois se são ilegítimas, inadequadas que vivenciem
esses despautérios em outras instâncias em que possam ser aproveitadas.
Uma vez que podem e são necessárias nos meandros improdutivos para
uma lógica da normalidade, mas são produtivos em outros espaços. “Se for
mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro
lugar: que incomodam lá onde possam ser reinscritas [...]” (FOUCAULT,
2017, p. 8) e não no ambiente escolar. Mas se assim o é hoje, que sejam eles
produtores de alguma coisa. Digamos de passagem, sempre produtivas; que
sejam para serem os indivíduos que precisam ser atendidos, amparados,
corrigidos, disciplinados, ou seja, que deem função para alguma instância.

158 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No entanto, toda essa convenção e pudor para se falar sobre a sexualidade,
sobre o sexo que hoje temos, em especial no espaço escolar é fruto de séculos
em que se produziram um olhar de reclusão para o sexo. (FOUCAULT, 2017).
Por isso, que não é de se espantar o discurso na atualidade de que falar de sexo
e sexualidade é assunto que se crê ser exclusivo da família e não da escola e do
espaço público, por exemplo. Criou-se um pudor que revestiu tal economia do
ser. “A questão que gostaria de colocar não é por que somos reprimidos, mas
por que dizemos, com tanta paixão, tanto rancor contra nosso passado mais
próximo, contra nosso presente e contra nós mesmos, que somos reprimidos?”
(FOUCAULT, 2017, p. 13).
Por isso, que chama a atenção, quando um aluno conduz a aula para
aquilo que lhe é importante e central, por exemplo, a sua homossexualidade.
Do mesmo modo que a aluna Zélia (nome fictício de uma aluna que se
considera transexual) sempre que pode chama o professor para relatar sobre
outros estudantes que são LGBT na escola.
Logo, o artifício viável, adotado por esses jovens percebemos em
Foucault (2017) que afirma que foi importante reduzir a sexualidade a nível da
linguagem. Com isso, desde o próprio vocabulário, de onde, como e quando
falar sobre sexualidade,

[...] em que situações, entre quais locutores, e em que relações sociais;


estabeleceram-se, assim, regiões, se não de silêncio absoluto, pelo me-
nos de tato e discrição: entre pais e filhos, por exemplo, ou educadores e
alunos, patrões e serviçais. É quase certo ter havido aí toda uma econo-
mia restritiva. (FOUCAULT, 2017, p. 20).

É possível ter ocorrido aí todo um aparato de vigilância e policiamento


sobre o indivíduo. Mas o que Foucault nos chama a atenção, é que a partir de
tudo isso o que ocorreu foi uma incitação institucional a falar efusivamente
sobre sexo e falar o máximo sobre isso.

Considerações finais

Tudo isso nos leva a entender que, embora há todo um discurso de


censura sobre o sexo, sobre sexualidade, o que mais se observa é que ela está
implícita, inserida, imersa nos diversos discursos e práticas sociais. Pois, falar

Ebook IV SIGESEX 159


sobre sexualidade é, também, regular e administrar tudo isso. Por isso, não
seria hoje, a escola uma instituição que se isentaria de falar e regular também
tudo isso. Se de um lado ela se propusesse a isso, os estudantes reclamariam
tudo isso de um outro modo.
No local em que mais se visa reprimir a sexualidade e suas práticas, mais
se faz apelo para que ela se irrompa de modos mais variados possíveis. Até
mesmo quando, porventura, o momento transparecer não propício. Como no
caso da aula sobre progresso científico.
Portanto, o que observamos nessas falas e situação de aula foi uma
reconstrução dos modos de confissão. Isso afirmamos, porque se nos séculos
XVII e XVIII houve toda uma articulação sobre como regular e controlar a
sexualidade, isso é uma atividade ininterrupta. Em cada momento histórico as
práticas vão se rearranjando de outros modos. As estratégias são outras, mas a
questão é a mesma, falar sobre si e suas práticas sexuais. É o apelo para a não
interdição de si.

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad: Raquel


Ramalhete. 42. ed. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2014.

________. História da sexualidade, 1: a vontade de saber. Trad: Maria Thereza


da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2017.

________. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collége de France (1981


– 1982) 3º ed. Trad: Márcio Alves da Fonseca, Salma annus Muchail. São Paulo:
Ed. WMF Martins Fontes, 2010.

160 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A educação de jovens e adultos como
dispositivos de enfrentamento sobre a vida:
problematizações em Foucault1
The education of youths and adults as coping
devices on life: problematizations in Foucault
Dayana de Oliveira Arruda2
Carlos Igor de Oliveira Jitsumori 3

RESUMO: O artigo problematiza a educação de jovens e adultos como


dispositivos de agenciamento da vida, esquadrinhamentos que atravessam
corpos e condições singulares de existência. As noções de biopolítica no
bojo dos referenciais foucaultianos explicitam que discursos e práticas forjam
saberes e poderes pelo aprimoramento de mecanismos ininterruptos de
correção e sujeição, visando docilidades possíveis.
PALAVRAS-CHAVE: educação de jovens e adultos; dispositivos;
biopolítica.

ABSTRACT: The article problematizes the education of young people and adults
as devices of agency of the life, scans that cross bodies and unique conditions of existence.
The notions of biopolitics within the Foucaultian referential point out that discourses and
practices forge knowl edge and power through the improvement of uninterrupted mechanisms
of correction and subjection, aiming at possible docilities.
KEYWORDS: youth and adult education; devices; biopolitics.

1. Subsídios teóricos do estudo em andamento intitulado “Efeitos da educação de jovens e adultos: discursos e prá-
ticas como jogos de verdade”, que tem como objetivo, identificar implicações do complexo jogo de expectativas na
perspectiva de egressos desta modalidade de ensino, da Escola Estadual Elvira Mathias de Oliveira, localizada no
município de Campo Grande, no estado de Mato Grosso do Sul; vinculado à Linha de Pesquisa “Educação, Cultura,
Sociedade” do Programa de Pós-Graduação em Educação – Curso de Doutorado, da Faculdade de Educação, da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGEdu/FaEd/UFMS), sob orientação do Professor Dr. Antônio
Carlos do Nascimento Osório; e ao Grupo de Estudos e de Investigação Acadêmica nos Referenciais Foucaultianos
(GEIARF/UFMS).
2. Cientista Social e Mestre em Educação (UFMS). Doutoranda em Educação (PPGEdu/FaEd/UFMS).
3. Professor e Mestre em Educação (UCDB). Doutorando em Educação (PPGEdu/FaEd/UFMS).

Ebook IV SIGESEX 161


Introdução

Este artigo aproxima incursões analíticas de um dado movimento de


pesquisa pela possibilidade de outros olhares acerca da educação de jovens
e adultos, campo de elementos históricos, econômicos, políticos, sociais e
culturais diversificados na esfera da escolarização, explicitados nos arranjos
e decorrentes operacionalidades de políticas educativas, que em si mesmas
esquadrinham e atravessam corpos e condições singulares de existência dos
sujeitos.
Os apontamentos que seguem tangenciam problematizações a partir
dos referenciais de Michel Foucault em seus domínios e ferramentas enquanto
tentativas de teorizações continuamente dinâmicas do autor e desse modo, em
constantes deslocamentos e modificações.
Marcas singulares do pensamento foucaultiano, referenciais utilizados
na perspectiva de instrumentais teóricos e metodológicos que redimensionam
regularidades e racionalidades de discursos e práticas como dispositivos4 de
constituição do(s) sujeito(s), isto é, multiplicidades e disposições nas quais tais
processos constitutivos operam, circunscritos pelas noções de tempo e espaço,
entrecruzadas nas relações de poderes e de saberes. (FOUCAULT, 2008).
Ressaltamos para efeitos das considerações alinhavadas neste texto,
que os sentidos desencadeados pela problematização enquanto instrumental
especulativo demasiado amplo, clarificam uma dada liberdade de pensamento
em Foucault (2010a), pela tarefa fundamental de resgatar, questionar e exaurir
as condições de existência de discursos e operacionalidades sociais e culturais,
enquanto objetos de reflexão e análise, por intermédio da qual tencionamos
concepções e enfoques acerca da educação de jovens e adultos.
Aparato extensivo, em permanente modificação e aprimoramento, campo
de saberes e de poderes em suas respectivas atribuições e lógicas requeridas
pelo corpo individual, social e cultural, a instituição escolar coaduna formas
ou tecnologias de controle e disciplinamento em detrimento dos sujeitos que
resguarda, por mecanismos de seleção e classificação, em face de necessidades e
demandas sempre transitórias, visando níveis de docilidades possíveis.
Exercícios dispostos, mas continuamente (re)configurados em vistas a
propósitos e interesses unilaterais que delineiam a materialidade de normas e
dispositivos pedagógicos, características que conformam a instituição em seus
4. “O dispositivo é a rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos, institui-
ções, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas, o dito e o não dito.” (CASTRO, 2016, p. 124).

162 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


diferentes cenários, premissas e finalidades, como “[...] espaço de disposição,
arranjo, formação, instrução, educação do corpo e da mente; marcada por
princípios, métodos, sistemas e doutrinas.” (OSÓRIO, 2010, p. 101).
Aproximações nos termos da biopolítica, apreendida na perspectiva
dos referenciais foucaultianos (FOUCAULT, 2008) como engrenagens
estratégicas e racionais de ortopedias políticas e neste caso, pedagógicas,
sobretudo quando arranjadas em pressupostos que forjam a educação de
jovens e adultos como campo multifacetado de elementos heterogêneos.
Ao transpor compreensões necessárias e fundamentais da
organicidade das políticas de educação de jovens e adultos no Brasil, este
artigo – configurado como exercício analítico e problematizador – pretende,
para além de apreensões estritas ao arcabouço histórico de leis, planos e
prescrições normativas, provocar desconstruções e outras concepções à
educação de jovens e adultos mediante noções e apropriações da biopolítica.
(FOUCAULT, 2008).
Aproximações ao jogo de saberes e de poderes estruturados e
necessariamente organizados em torno/em função da vida, dos fenômenos e
acontecimentos próprios aos viventes, na medida em que os sujeitos vinculados
a práticas e discursos da educação de jovens e adultos por diferentes fatores,
são cotidianamente implicados como objetos de interveniências singulares do
campo, alvos salutares e imediatos de práticas refletidas de governo.

1- Educação de jovens e adultos: alguns discursos e arranjos

Constitutivo de regras que o vincula e condiciona como tal à


materialidade estratégica das relações sobretudo institucionalizadas pela
noção de descontinuidade, Foucault (2014) situa e conjectura o discurso em
diferentes campos e domínios como condições que conformam as práticas,
cuja disposição e regularidade de enunciados, signos, bem como demais
produções e produtos discursivos e não discursivos, jogam num mesmo
sistema de formação.
No que tange às configurações discursivas intrínsecas às esferas da
educação escolar, seus arranjos e movimentos possíveis, vislumbramos a
existência de um conjunto de suportes institucionais dispostos em rede que
estabelecem, selecionam, classificam, distribuem e reproduzem determinadas
verdades que, por sua vez, se ajustam e adequam a diferentes tempos e espaços,
conforme ressalta Foucault (2014, p. 41):

Ebook IV SIGESEX 163


A educação embora seja de direito, o instrumento graças ao qual todo
indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer
tipo de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que
permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância,
pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os
saberes e os poderes que eles trazem consigo.

Neste sentido, o acesso aos conhecimentos institucionalizados,


aprioristicamente apreendidos nos espaços escolares como necessários a uma
vida produtiva cujo eixo é o trabalho, em seus distintos âmbitos e em toda sua
amplitude e diversidade, bem como os efeitos apontados como positivos que
deles podem decorrer –, é delimitado, restrito a determinados interesses de
poderes vigentes, nem sempre condizentes aos anseios, urgências e demandas
reais de estratos populacionais requerentes, nas condições de sujeitos de
direitos, não implicando necessariamente na melhoria de modos de vida dos
mesmos e seus respectivos grupos.
Situada nos meandros do discurso em termos de adequações transitórias
e portanto, modificáveis em face de circunstâncias institucionais, a educação
de jovens e adultos compõe um conjunto plural de políticas das quais emergem
sistemas, programas e em decorrência, práticas formais e não formais de
acesso, permanência e conclusão da escolaridade básica. Arranjos dispostos
pela oportuna aquisição ou complementação de conhecimentos, habilidades
e competências basilares, por sujeitos em descompassos no que concerne,
sobretudo, a processos elementares de ensino e aprendizado.
Operacionalizada num arcabouço fundamentalmente institucionalizado
de estratégias de escolarização em termos de tentativas recorrentes de compasso
à histórica e progressiva organização do sistema nacional de educação escolar, a
chamada educação de jovens e adultos, conforma dinâmicas que se estruturam
e desestruturam a propósitos, interesses e agendas governamentais específicas.
(HADDAD; DI PIERRO, 2000; MACHADO, 2016).
Neste sentido, a partir dos anos de 1990, período de latente reordenamento
e expansão em âmbito nacional, de políticas sociais e em decorrência, das
instituições públicas e suas respectivas atribuições e domínios em face de
demandas e necessidades populacionais em evidência – vislumbramos diferentes
marcas e movimentos que estabeleceram prerrogativas constitucionais à
educação escolar pública em seus diferentes níveis, etapas, modalidades.

164 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Acontecimentos econômicos e políticos definidos pelas condições de
desenvolvimento e industrialização do país enquanto marcas capitais, cujos
intentos versavam pela urgência de recursos humanos via instrução e consequente
utilização da população em diferentes tempos e espaços orientados ao trabalho
e à produção (PAIVA, 2015), forjaram circunstâncias em vistas à legitimidade e
institucionalização da educação de jovens e adultos como modalidade de ensino
da educação básica, conforme normativas vigentes. (BRASIL, 1996).
Internacionalmente ratificada como marco político-conceitual e
parâmetro de orientações e diretivas em vistas ao estabelecimento de ações e
práticas respaldadas pelo direito universal à educação de base, a Declaração de
Hamburgo e Agenda para o Futuro (UNESCO, 1999, p. 19) – produto da
V Conferência Internacional de Educação de Adultos realizada em 1997 em
Hamburgo, na Alemanha – preconiza a educação de adultos como processo,
na perspectiva de uma educação ao longo da vida, conforme segue:

A educação ao longo da vida implica repensar o conteúdo que reflita cer-


tos fatores, como idade, igualdade entre os sexos, necessidades especiais,
idioma, cultura e disparidades econômicas. Engloba todo o processo de
aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas adultas
pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conheci-
mento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcio-
nando-as para a satisfação de suas necessidades e as de sua sociedade.

Referência normativa em vigência, a Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDBEN), nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996
(BRASIL, 1996) integra organicamente ao ensino básico comum, a educação
de jovens e adultos como modalidade de ensino, estabelecendo em seu Artigo
37, sua oferta pública gratuita a todas as pessoas que não tiveram acesso ou
continuidade dos estudos no ensino fundamental e/ou no ensino médio nas
respectivas faixas etárias consideradas próprias, regulares, assim estabelecidas.
Em períodos subsequentes, emergem quadros abrangentes de normativas,
deliberações e princípios específicos regimentados em documentos, leis,
projetos e suas extensões, decorrentes dos cenários e conjecturas locais, no
que tange à disposição de estados e municípios em face da educação escolar
requerida como direito de todas as pessoas em suas diferenças e especificidades,
como àquelas destinadas a jovens e adultos em desalinho a processos de ensino
e aprendizado. (HADDAD; DI PIERRO, 2000; MACHADO, 2016).

Ebook IV SIGESEX 165


Institucionalidades (re)dimensionadas por tentativas de transformações
e adequações de relações explicitadas em outros contextos, períodos e suas
particularidades, em vistas a tentativas de reconhecimento de demandas de
ordem coletiva e ao mesmo tempo singulares, tangenciadas pela certificação
escolar como razão essencial à vida em sociedade, bem como à afirmação e
ao exercício da cidadania – encadeamentos e articulações que configuram
suas bases, como afirma Paiva (2015, p. 207) ao esquadrinhar processos
constitutivos da educação popular e da educação de adultos:

Por isso, a educação dos adultos convertera-se num requisito indispen-


sável para uma melhor organização e reorganização social com sentido
democrático e num recurso social da maior importância, para desen-
volver entre as populações adultas marginalizadas o sentido de ajusta-
mento social.

Entendemos, neste ínterim, que a orientação de práticas de escolarização


direcionada a jovens e adultos em condições de inclusão/exclusão escolar, que
se pretende abrangente em função de outros exercícios e direitos para além dos
espaços e prerrogativas da escola – estão alinhavadas sob uma perspectiva que
implica no processo educativo-escolar como um todo, um conjunto de ações
resolutivas e redentoras de desigualdades e males sociais, cuja sustentação abarca
interesses econômicos, de manutenção e de aprimoramento de dispositivos.
Diante disto, os determinantes regulatórios que atravessam o intrínseco
e necessário pertencimento dos sujeitos a processos de escolarização regular
e progressiva, conjugam condições multifacetadas de marginalização e
desprestígio aos sujeitos da educação de jovens e adultos, que por sua vez,
demandam um misto de estratégias e mecanismos de seletividade e controle,
suporte dos mencionados processos de escolarização.
A existência de sujeitos e decorrentes situações e respectivas
conjunturas que contrariam a previsibilidade de diretrizes e bases curriculares
e pedagógicas de um projeto educativo-escolar que se almeja regular, linear,
sequencial, corresponde a um desafio de instâncias governamentais que leva
à constituição de políticas e programas educacionais compensatórios, como
persistem fadadas as práticas da educação de jovens e adultos.
Instituições nas quais são operacionalizadas estratégias que tanto
quanto regularizar, visam ajustar condutas e comportamentos dos sujeitos e
grupos, desencadeando a elaboração de políticas atravessadas pelos elementos

166 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que imperam a necessidade da escolarização a pessoas jovens e adultas em
descompassos nestes processos, quando em uma outra possível verdade, “Os
lugares de exclusão vão sendo redistribuídos e aperfeiçoados, tendo todos um
propósito comum, a guarda, a partir de critérios de anomalias sociais [...]”.
(OSÓRIO, 2007, p. 310).
Operatividades e princípios que em suas características, significados e
efeitos outros, inevitavelmente ultrapassam os espaços, condições e termos
delineados como acertados, bem como decorrentes discursos, propósitos e
fronteiras da instituição escolar como ambiente historicamente edificado,
constituído e reservado a diferentes arranjos em vistas à (re)produção de
conhecimentos, cujos fins podem corroborar outros interesses como via da
escolarização de pessoas jovens e adultas em tempos e espaços distintos.

2- A educação de jovens e adultos como dispositivos

O campo da educação escolar perscrutado em suas práticas


aprioristicamente de cunho educativo-formativo destinados ao ensino,
aprendizado, legitimação e reprodução de conhecimentos sistematizados,
valores e princípios historicamente instituídos como verdades, baliza outras
materialidades e relações quando problematizado sob um conjunto estratégico
de dispositivos institucionais, transpostos como pedagógicos.
Ao explorar o arcabouço foucaultiano como construto analítico que
rompe e também engendra outros olhares sobre saberes e práticas no campo
educativo, Ziliani (2013, p. 45) afirma que “Pensar a escolarização como
dispositivo, implica conceber uma rede que se estabelece frente a elementos
heterogêneos que envolvem os discursos, o espaço-tempo escolar, o currículo,
os procedimentos administrativos e outros, como leis, regras, instituições, etc.”
Intervenções as quais estabelecidas como pretensas garantias no campo
do direito, mas que somadas a processos distintos de formação escolar, são
responsáveis por legitimar, neste espaço institucional, uma engrenagem
de técnicas e mecanismos específicos, os quais versam sobre tentativas de
normalização e regularização de sujeitos e grupos categorizados em suas
demandas, por sua vez aglutinados em suas diferenças, sobretudo de renda e raça.
Desse modo, é possível vislumbrar a escola (em sentido amplo) como
referência imediata que conduz à proteção contra possíveis perigos e injustiças
sociais, lócus historicamente constituído sobre reconhecidos pilares de demandas
sociais e políticas, para fins de instrução e reprodução de conhecimentos e

Ebook IV SIGESEX 167


competências – configurada institucionalmente como espaço circunscrito
por determinados propósitos, interesses e práticas, sendo estas respaldadas por
regulamentações técnico-pedagógicas e toda ordem de dispositivos.
Artefato institucional como outros em suas respectivas finalidades,
domínios, sistemas e doutrinas, as características da escola como instituição
de ensino em seus reais pressupostos que versam sobre regularizações de toda
ordem para além do currículo, atravessam atribuições e responsabilidades
historicamente adquiridas pelo estado em face do agrupamento heterogêneo
de indivíduos e suas demandas como população, conforme Gallo (2017, p.
14 – grifos do autor):

Uma vez cidadãos, eles podem ser governados, ter suas condutas condu-
zidas segundo os mesmos preceitos gerais, reafirmando e valorizando a
soberania nacional. Em outras palavras, escola é apresentada como ins-
trumento da inclusão, da afirmação do dentro do sistema governamen-
talizado. E, na medida em que se procura abarcar toda a diversidade de
culturas e grupos sociais brasileiros, nada resta fora do governo demo-
crático das condutas.

Neste sentido, a educação de jovens e adultos corrobora diferentes


e amplas estratégias de seletividade, controle, enquadramento e correção
individual e social, situadas em discursos e práticas que se adequam e
jogam em interfaces a um campo de expectativas, perspectivas, idealidades,
materialidades e subjetividades dos sujeitos que a ela recorrem.
Sujeitos tais, conduzidos a programas e projetos enquanto operatividades
de processos de escolarização unilateralmente pensados e elaborados em
termos de diferentes denominações e formatos, seja sob a perspectiva de
uma educação integral e abrangente ao longo da vida, ou de processos de
alfabetização e letramento orientados às possibilidades sempre urgentes de
empregabilidade e renda dos sujeitos que por ela transitam.
Neste ínterim, ressaltamos em Foucault (2010b, p. 185) que “O
indivíduo, com suas características, sua identidade, em sua referência a si
mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre corpos,
multiplicidades, movimentos, desejos, forças.”
Nesta biopolítica sob o enfoque dos referenciais foucaultianos,
entendida em termos de estratégia recorrentemente aprimorada de estatizações
pelas multifacetadas formas de intervenção na vida dos sujeitos, alinham-

168 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


se diferentes mecanismos e tecnologias de reconhecimento e condução das
diferenças em uma pretensa totalidade, sendo a educação de jovens e adultos
em seus limites e particularidades, apenas uma das técnicas de governamento
instituídas como política – poderes e saberes que se ajustam em torno da vida.

As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois


polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre
a vida. A instalação durante a época clássica, desta grande tecnologia de
duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, vol-
tada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida –
caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas
investir sobre a vida, de cima a baixo. (FOUCAULT, 2013, p. 152).

Redes de procedimentos, estratégias e respectivas intervenções dadas


em face da sujeição dos corpos e controle dos grupos como exercícios do
biopoder – intencionalidades concretas que ordenam, sistematizam e orientam
possibilidades de mediações a problemas e situações de ordens coletiva e
individual, não necessariamente vislumbradas como mera finalidade desses
arranjos, mas como elementos determinantes para uma efetiva e ampla gestão,
calculada em minuciosos detalhes e refletida na positividade de seus efeitos.
Imperativos suscitados em detrimentos de sujeitos caracterizados,
classificados e ordenados em suas diferenças, distribuídos e organizados
em grupos, setores, conjuntos, filas e demais ordenamentos nos diversos
e diferentes espaços, repartições e suas funcionalidades, ancoradas sob a
perspectiva do aumento da eficácia e da produtividade, independentemente
de suas finalidades e interesses, sempre atravessados por relações de poderes.
Não há possibilidades de dissociações – a escola problematizada em
seus espaços, fronteiras e influências políticas e sociais, delimitações, códigos e
interesses, vislumbrados no conjunto de suas práticas exercidas cotidianamente,
está configurada como lócus privilegiado, engrenagem que movimenta e inova
poderes e saberes pela regulação da vida.
Diante disto, a educação de jovens e adultos contida no arcabouço de
dispositivos regulatórios, circunda e envolve processos intersubjetivos pela
recorrente tarefa de gerir processos de escolarização intercorrentes, de modo
que os elementos que efetivamente caracterizam suas implicações, extrapolam
não apenas os espaços da escola em seus propósitos, atribuições e práticas,
ultrapassam ainda todas as relações, discursos e intentos que marcam e ainda

Ebook IV SIGESEX 169


persistem atrelados a dispositivos e suas pretensões que em suma, não abarcam
sentidos e complexidades tamanhas.

À guisa de considerações: outras discursividades

Consideramos a pesquisa em educação como atividade ininterrupta e


processual de produção de conhecimento, suscetível a diferentes e múltiplas
possibilidades e cenários, cuja disposição está contínua e dinamicamente forjada
pela relevância de inquietações, viabilidade de contradições, diferentes olhares
e conflitos em face de realidades, sujeitos, práticas e relações, apreendidas em
seus contextos, campos e especificidades como problematizações, fenômenos
ou objetos, sempre redimensionados pelas mudanças e transformações sociais.
Enfatizamos esforços deste estudo em vistas a promover rupturas de
entendimentos restritos e muitas vezes desconexos de uma realidade complexa e
contraditória em suas reais potencialidades, como denota a existência multifacetada
de políticas e práticas da educação de jovens e adultos. Rupturas que carecem
de análises de conjunturas, de considerar e validar o contraditório, realocando
ainda, valores e concepções que se não transgredidas, seja por ações e pela própria
pesquisa enquanto parte destas, não promoverão mudanças pretendidas.
Entendemos que a educação de jovens e adultos transita por campos de
saberes e de poderes, que por sua vez envolvem individualidades e coletividades
como vias de regularizações de toda ordem. Operacionalidades que ocorrem,
são cotidianamente produzidas e reproduzidas, principalmente em face de
intencionalidades e propósitos legitimados e documentados que em si mesmos,
beiram a correção de níveis de escolaridade, tangenciadas e categorizadas como
irregulares ou desajustadas, a considerar padrões e normativas vigentes – mas
que caracterizam e oportunizam vazão a modos singulares de agenciamento
da vida como técnicas, mecanismos e tecnologias que extrapolam fronteiras
de processos pedagógicos.

Referências

BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e


Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
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170 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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172 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O pânico moral no brasil: a “Ideologia de
Gênero” e o plano estadual de educação do
Paraná1
The moral panic in brazil: the “Gender
Ideology” and the Paraná state education
plan
Karina Veiga Mottin2

RESUMO: A partir da obra da antropóloga Gayle Rubin (2015),


procura-se refletir sobre o desencadeamento do processo de “pânico moral”
no Brasil. A retirada da palavra “gênero” do Plano Estadual de Educação do
Paraná (2015-2025) é entendida como parte desse fenômeno, e neste artigo
são problematizados os argumentos utilizados por deputadas/os do Estado do
Paraná para retirar a palavra “gênero” deste documento. Por fim, é proposta
uma reflexão sobre os impactos que a exclusão da pauta de gênero representa
no cotidiano escolar.
PALAVRAS-CHAVE: Pânico moral, “ideologia de gênero”, escola.

ABSTRACT: Starting from the work of the anthropologist Gayle Rubin (2015),
in this paper the objective is to reflect on the triggering of the process of “moral panic” in
Brazil. The removal of the word “gender” from the Paraná State Education Plan (2015-2025)
is understood as part of this phenomenon. The arguments used by State representatives to
remove the word “gender” from this document are problematized. Finally, it is proposed
a reflection on the impacts that the exclusion of the gender agenda represents in the daily
school life.
KEYWORDS: Moral panic, “gender ideology”, school.

1. Este artigo tem sua origem na minha dissertação de mestrado (MOTTIN, 2019), que contou com financiamento
da Capes.
2. Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Educação, na linha Educação: Diversidade, Diferença e Desigual-
dade Social, pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Corpo, Gênero e
Subjetividades na Educação (LABIN). Campus Rebouças, avenida Sete de Setembro 2645, telefone (41) 35356255.
E-mail: karimottin@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 173


Introdução

Recentemente no Brasil temos visto a proliferação de discursos sobre a


chamada “ideologia de gênero. Mas este não é um fenômeno restrito ao contexto
brasileiro. Segundo Junqueira (2017), a “ideologia de gênero” é “uma invenção
católica que emergiu sob os desígnios do Conselho Pontifício para a Família
e de conferências episcopais, entre meados da década de 1990 e no início dos
2000” ( JUNQUEIRA, 2017, p. 26). A batalha contra a suposta “ideologia”
está presente em mais de quarenta países e na América Latina ganhou força
e militantes principalmente a partir da década de 20103. No Brasil a partir
de 2011 esta expressão passou a ser utilizada principalmente por aqueles que
criticavam o programa “Escola Sem Homofobia” e depois, em 2014 e 2015,
por aqueles que defenderam a retirada da palavra “gênero” do Plano Nacional
de Educação e dos Planos Estaduais e Municipais de Educação.
Neste artigo, primeiramente será analisado o desencadeamento do que
a antropóloga Gayle Rubin (2015) chamou de “pânico moral” no Brasil. Na
sequência, serão discutidos alguns dos argumentos utilizados por deputadas e
deputados do Estado do Paraná para justificar a retirada da pauta de gênero do
Plano de Educação desse estado, bem como a sua convergência com esse processo
de “pânico moral”. Por fim, na segunda parte, proponho uma reflexão sobre o
reflexo que o apagamento de tais questões representa no cotidiano escolar.

1- O pânico moral

Existem momentos na história em que conflitos ligados a “valores


sexuais” ou à “condutas eróticas” ganham certo destaque na cena pública/
política. Pode-se dizer que existem muitas semelhanças entre os discursos que
se proliferam em contextos como estes. Em seu ensaio “Pensando o sexo: notas
para uma teoria radical da política da sexualidade”, publicado pela primeira
vez em 1984, a antropóloga norte americana Gayle Rubin (2017) desenvolveu
o conceito de pânico moral, ao pensar as similaridades entre esses diversos
contextos históricos. Relacionado com crises políticas e econômicas, os pânicos
morais “são o “momento político” do sexo, durante o qual atitudes difusas
são canalizadas na forma de ação política e, a partir disso, de transformação
3. Publicado em 2010, o livro do advogado argentino Jorge Scala foi considerado por Judith Butler um possível
“ponto de virada para as recepções de “gênero” no Brasil e na América Latina.” A matéria completa está disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-gene-
ro-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml> (acesso em 27/03/2018)

174 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


social” (RUBIN, 2017, p. 109, grifos da autora). Nestes momentos de pânico,
também chamados pela autora de “guerras do sexo”, cria-se uma “histeria
erótica”. Ou seja, o medo circula devido ao anúncio de uma suposta catástrofe
que se desencadearia em razão da atividade sexual de determinados grupos.

Durante um pânico moral, esses medos são projetados sobre uma po-
pulação ou atividade sexual desfavorecida. A mídia fica indignada, o
público vira uma multidão furiosa, a polícia é acionada e o Estado pro-
mulga novas leis e regulamentos. Após passar o furor, alguns grupos
eróticos inocentes terão sido dizimados, e o Estado terá ampliado seu
poder para novas áreas do comportamento erótico. (ibidem)

O Brasil teve como gatilho o programa Escola sem homofobia, de 2011,


para o desencadeamento de um desses momentos de pânico moral. Maria
Rita de Assis César e André Duarte (2017) analisaram o contexto brasileiro
apresentando um histórico, desde os anos 2000, dos avanços de políticas
públicas que visavam combater o preconceito e a violência relacionada ao sexo e
ao gênero. Dentre estas conquistas, estava o programa “Brasil sem homofobia”,
de 2004, e o “Escola sem homofobia”, de 2011. Este último foi alvo de grande
polêmica ao ser acusado de fazer “propaganda” LGBT e ficou conhecido
pejorativamente como “kit gay”. Para César e Duarte, este fato marca o início
do processo de pânico moral no Brasil: “Se pensarmos nos termos de uma
genealogia do nosso recente pânico moral, ele se iniciou com as polêmicas em
torno do ‘kit gay’ e prosseguiu com a introdução no debate nacional da noção
de ‘ideologia de gênero’.” (CÉSAR; DUARTE, 2017, p. 148)
A “batalha” contra a pauta de gênero se expandiu consideravelmente
a partir das discussões dos Planos de Educação4, mas os argumentos
utilizados seguiram uma linha similar àqueles que criticavam o programa
“Escola sem homofobia”. Esse programa desenvolveu o “Caderno Escola
sem Homofobia”5, que continha explicações teóricas e práticas para o
seu desenvolvimento. Junto com o caderno havia um kit de ferramentas
pedagógicas com sugestões de materiais para serem utilizados na formação
e/ou prática docente. Mesmo após o programa ter sido suspenso em 2011
4. O artigo ““Ideologia de gênero”: do pânico à lei” (2019, no prelo), de Jasmine Moreira, debate sobre o “auge” de
buscas sobre esse termo nas mídias sociais. A partir de 2015 (e nos anos subsequentes) há um aumento considerável
no número de buscas pela expressão “ideologia de gênero” na plataforma de pesquisa Google. Da mesma forma, au-
mentaram as postagens no Facebook da página do MESP e do MBL.
5. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2015/11/kit-gay-escola-sem-ho-
mofobia-mec1.pdf> Acesso em 01/02/2019

Ebook IV SIGESEX 175


pela então presidenta Dilma Rousseff, em diferentes momentos, políticos
utilizaram livros que supostamente fariam parte deste material para “provar”
que o MEC estaria implementando a “ideologia de gênero” nas escolas. Essa
estratégia, que alimentou o pânico moral em torno do tema, também foi
utilizada pelo deputado Gilson de Souza (PSC), quando ele defendeu a
retirada da pauta de gênero do PEE do Paraná. Nas suas palavras:

Sr. Presidente, mas tenho aqui em minhas mãos um material que mos-
tra, de forma muito clara, qual o objetivo disso. Parece tão inofensi-
vo, mas quero mostrar à família paranaense esse material que tenho
em minhas mãos. O tema do livro é: “Mamãe, como eu nasci?” E aqui
mostra, nas escolas nossas, ensinando crianças a manipularem os seus
órgãos genitais para poder atingir o prazer. Aqui mostra também, Sr.
Presidente, meninos manipulando os seus órgãos genitais… (...) Família
paranaense, ensinando os adolescentes a fazerem sexo. Isso não é uma
política contra a discriminação. Vemos outro livro: “Aparelho sexual e
companhia. Guia inusitado para crianças descoladas”. Isso ensina para
as nossas crianças nas escolas expondo órgãos genitais e ensinando a
fazer sexo. O livro é “Porta Aberta”, onde mostra um quebra-cabeça,
mostrando outro padrão de família. Cartilha “Menina Esperta”. Tudo
isso do Governo Federal, mostrando meninas descoladas, promovendo
o lesbianismo nas escolas, campanha do Ministério da Saúde ensinando
a usar cachimbo para o crack e ensinando a fazer sexo seguro, homem
com homem. É isso que os nossos filhos estão recebendo nas escolas.
(...) Esse é o material, prestem atenção, a inofensiva ideologia de gênero
diz assim, este material, organizado por Lilian Rossi, do Ministério da
Saúde, diz o seguinte: “Uma educação diferenciada poderá fazer desa-
brochar em todo menino o seu lado feminino e em toda a menina o seu
lado masculino, afinal as crianças nascem para serem felizes”. Família
paranaense, será que isso é luta pela discriminação, ou é promoção ao
homossexualismo? (BRASIL, 2015b)

Cada um destes livros envolve polêmicas diferentes6, que serão


apresentadas sucintamente com intuito de expor a repetição de argumentos
que fomentam o pânico moral relacionado às escolas. O livro “Mamãe, como
eu nasci?”, lançado em 1988 pela editora Moderna, é um sucesso de público
6. Não me deterei em analisar as publicações, mas em expor as polêmicas ou boatos nas quais elas foram envolvidas.

176 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


e crítica7, foi escrito por Marcos Ribeiro, autor premiado pela Academia
Brasileira de Letras e considerado referência nacional no tema da educação
sexual infanto-juvenil. O livro foi recolhido das escolas municipais de Recife
em 2010 após críticas similares feitas por pais, professoras/es e até mesmo na
Câmara Municipal desta cidade8.
O livro “Aparelho sexual e companhia: guia inusitado para crianças
descoladas” também foi objeto de discussões. A publicação, destinada a
crianças de 11 a 15 anos, é assinada pela francesa Hélène Bruller e pelo suíço
Philippe Chappuis, publicado em 2001 e lançado no Brasil em 2007, pela
Companhia das Letras. Ainda na campanha para presidência da República,
o então candidato Jair Bolsonaro levou este livro para uma entrevista que
concedeu ao Jornal Nacional, programa televisivo da emissora Rede Globo.
Em 2011, quando ainda era deputado federal, o mesmo fez um vídeo (que
voltou a ser compartilhado durante sua campanha) no qual ele afirmava que a
publicação era parte do “kit gay” (o programa Escola sem homofobia) e teria sido
distribuído em escolas públicas. A declaração foi constatada como inverídica
após o MEC comprovar que comprou 28 exemplares para bibliotecas públicas,
não para escolas públicas9.
“Porta Aberta” é o nome de uma coleção de livros didáticos da editora
FTD, destinados à primeira etapa do ensino fundamental. Não dispõe-se de
maiores informações sobre essa publicação, mas existe uma “denúncia” feita
por uma mãe no site do MESP10, sobre a forma com que o tema “educação
sexual” é abordado no livro do 5º ano desta coleção. O material intitulado
“Menina esperta vive melhor” foi produzido pela prefeitura de Porto Velho
em 2009 e também foi alvo de críticas11. Este é um dos livros que a psicóloga
cristã Marisa Lobo acusa de estar divulgando a “ideologia gayzista” nas escolas
(LOBO, 2017). A princípio a frase “ensinando a usar cachimbo para o crack”,
proferida pelo deputado Gilson de Souza (PSC), parece não fazer sentido,
mas possivelmente o deputado está se referindo à uma cartilha produzida pelo
7. Apresentação do livro no site da editora Moderna: <http://modernaliteratura.com.br/infantismarcosribeiro/pdf/
historico2.pdf> acesso em 22/01/2019.
8.<https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/recife-retira-livro-sobre-educacao-sexual-de-escolas-3017765>
acesso em 22/01/2019.
9. <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/31/politica/1535670243_981377.html> acesso em 22/01/2019.
10. <http://www.escolasempartido.org/educacao-moral/384-mae-de-estudante-manifesta-insatisfacao-com-abor-
dagem-de-educacao-sexual-em-livro-didatico> acesso em 23/01/2019
11. Uma análise técnica desse material foi feita a pedido do Ministério Público Federal por Fernando Seffner, profes-
sor do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tema-
tica/pfdc/informacao-e-comunicacao/eventos-1/direitos-sexuais-e-reprodutivos/audiencia-publica-avaliacao-pro-
gramas-federais-respeito-diversidade-sexual-nas-escolas/apresentacoes/pareceres/parecer-prof-fernando-seffner>
acesso em 22/01/2019.

Ebook IV SIGESEX 177


SUS, que estava disponível em Unidades Básicas de Saúde (UBS), destinada a
usuários de drogas. Sobre isso, Marisa Lobo escreve:

Outra cartilha foi produzida pelo SUS: ela também chegou às mãos de
crianças da mesma idade. Em vez de ensiná-las a nunca experimentarem
drogas, a cartilha ensina como usá-las. Segundo ela um usuário deve
passar manteiga de cacau nos lábios antes de usar crack para não resse-
car os lábios. Deve também usar canudo de plástico para cheirar coca-
ína, pois canudos de papel têm bactérias. E se for comprar ecstasy, não
pode comprar de qualquer traficante. Dá para acreditar nisso? (LOBO,
2017, s/n, grifos da autora)

Assim como quando disse “ensinando a fazer sexo seguro, homem com
homem”, o deputado Gilson de Souza (PSC) pode estar se referindo a outra
cartilha produzida pelo Ministério da Saúde destinada ao público adulto
masculino, chamada “De homem para homem”. Esta referência também foi
feita por Marisa Lobo em seu livro “Famílias em Perigo” (LOBO, 2017).
Pode-se perceber que nem todas as publicações citadas pelo deputado
tinham “crianças” como seu público alvo, algumas eram destinadas à adultos,
adolescentes e à formação de professores. Mas, para além dos equívocos sobre
o público alvo, a questão central é a produção de uma junção narrativa que se
utilizou de uma série de referências diferentes (que grande parte da população
não tem acesso para analisar e opinar) e que unidas, iria se tornar a “prova” de
que a “ideologia de gênero” não só existiria, mas estaria sendo implementada
nas escolas. Então o deputado conclui:

(...) é que eu postei que o Governo Federal tem um material vasto para
implantar ideologia de gênero, e foi dito que isso era uma piada, que
isso não existe. Piada é subestimar a inteligência desse povo que ama a
família e que respeita os valores cristãos. Existe, sim, um material vasto
para implantar a ideologia de gênero, que entendemos que é um lixo
para a família brasileira e para a família paranaense!” (BRASIL, 2015b)

A fala do deputado expressa a ideia de que existe um plano por trás


da palavra “gênero”, que seria implementar uma “ideologia” cujo objetivo
é “criação” de uma sociedade “sem gênero”. Nesse ponto, a conspiração da
“ideologia de gênero” se conecta com a chamada “doutrinação marxista”, que

178 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


estaria disseminando ideais comunistas nas escolas. A ligação entre as duas
está na crença de que a implementação do comunismo ocorreria somente
quando todas as pessoas se tornassem iguais e isso só poderia acontecer com a
eliminação das diferenças de gênero. (SCALA, 2010)
Essa junção de inimigos, a “ideologia de gênero” e a “doutrinação
marxista”, não é uma exclusividade do Brasil. Rubin já afirmava que “a relação
que a ideologia de direita estabelece entre o sexo fora da família, o comunismo
e a fraqueza política não é novidade” (RUBIN, 2015, p. 74). É interessante
observar as semelhanças entre os argumentos e o contexto da retirada da pauta
de gênero do PEE do Paraná e alguns exemplos utilizados pela antropóloga.
Um deles cita os ataques que militantes da extrema direita fizeram ao Conselho
de Educação e Informação Sexual dos Estados Unidos (SIECUS) no fim da
década de 1960. Livros e panfletos foram lançados com objetivo de atacar o
órgão, acusando-o de “armar um complô comunista para destruir a família
e enfraquecer o ânimo nacional” (idem, p. 74). Também nesse contexto a
UNESCO foi alvo12, recebendo acusações de estar em conluio com o SIECUS
para ações como “promover a aceitação de relações sexuais anormais” ou
“degradar os padrões morais absolutos”, dentre outras.
No contexto brasileiro em que se desenvolveu o pânico moral relacionado
à “ideologia de gênero” observa-se a mesma relação, quando se analisa, por
exemplo, o papel que esses pânicos morais exerceram no impeachment da
presidenta Dilma Rousseff13 e na eleição do atual presidente Jair Bolsonaro14.
A conexão entre o PT e a suposta implementação da “ideologia de gênero”
é sugerida “sutilmente”, como na fala já citada do deputado Gilson de Souza
(PSC), “tudo isso do Governo Federal”, ou de maneira mais explícita, como na
fala do deputado Felipe Francischini (SD):

(...) porque tem Partido de Esquerda - e aqui não me cabe dizer qual
é - que é um que está no Poder hoje, que tenta, a todo custo, destruir as
12. Utilizo a palavra “também” pois a UNESCO é uma agência da ONU, é responsável pelas
ações relacionadas à educação. Como já citado no capítulo 2, as referências conservadoras
citam que a ONU supostamente seria também responsável pela implementação da “ideologia
de gênero”.
13. Na votação do impeachment foi notável a quantidade de vezes que as palavras “deus”
e “família” foram citadas. Ver <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/18/politi-
ca/1460935957_433496.html> acesso em 23/01/2019.
14. A expressão “combater a ideologia de gênero” foi amplamente citada antes e depois das elei-
ções em outubro de 2018. Cito apenas um exemplo, em entrevista à Rede Gospel de Televisão,
o então candidato afirmou que “se eu for presidente, ideologia de gênero vai deixar de existir”.
Disponível em: <https://www.gospelprime.com.br/jair-bolsonaro-presidente-ideologia-de-
-genero-nao>

Ebook IV SIGESEX 179


instituições do nosso país, e toda vez que tem discussão de uma ques-
tão de família brasileira, eles não querem discutir, como foi visto aqui
agora. O PT não quer discutir quando a questão envolve a família bra-
sileira, porque o projeto de poder deles envolve o fim das instituições e
também a desnaturação da família. (BRASIL, 2015a, p. 6)

O pânico moral acionado nesses discursos retira o foco da violência que


pretendia-se discutir incluindo a pauta de gênero nos Planos de Educação.
Na próxima parte deste artigo, pretendo discutir a relação entre a “ideologia
de gênero” e a escola, evidenciando o contexto de violência e exclusão a que
mulheres e sujeitos LGBTs estão expostos neste ambiente.

2- A escola

A escola está no centro da polêmica sobre a “ideologia de gênero”. O


pânico moral disseminado com o anúncio de destruição da família e da
sociedade está conectado com a educação, na medida em que se acredita que é
através da escola que o Estado pode interferir na família e que tal “ideologia”
pode ser implementada. Ao tornar-se um local a ser protegido, devido à sua
influência na formação das crianças e adolescentes, a escola tem um papel
fundamental nessas discussões. A relação entre o pânico moral, as crianças e a
educação é expressa na fala da Deputada Cantora Mara Lima (PSDB):

Existe uma desconstrução, uma desconstrução! É isso que querem, De-


putado Rusch, não quero isso para as futuras gerações. O direito de es-
colher a sua sexualidade na fase adulta é de cada um, cada um faz o que
quer! Agora, querer que os meus filhos, os meus netos, a nossa família
participe com seis, sete anos de idade de algo assim, já é demais! Dei-
xem-nos fora disso! (...) Existe um provérbio na Bíblia Sagrada, 22:06
que diz: “Instrui o menino no caminho em que deve andar e até quando
ele envelhecer não se desviará dele”. Usar as escolas como laboratório
para desconstrução da nossa família, usando os nobres professores para
dar uma matéria dessa, é pedir demais para nós. Não à ideologia de gê-
nero! (BRASIL, 2015b).

O tom da deputada, ao pedir “deixe-nos fora disso!” ou ao exclamar


“usando nossos nobres professores para dar uma matéria dessa” indica a sua

180 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


repulsa quanto à pauta de gênero e mostra seu posicionamento contra as
demandas por direitos da população LGBT. Apesar do esforço para parecer
“tolerante”, “o direito de escolher a sua sexualidade na fase adulta é de cada um,
cada um faz o que quer!”, essa tolerância acaba quando estas questões adentram
a sua família. Em oposição à educação cristã, representada como o “caminho
que deve andar”, estão as diversas experiências representadas pela palavra
“gênero”, indicando desvio, pecado, erro, perigo. A escola é potencialmente
o local onde crianças e adolescentes podem se deparar com tais influências
“perigosas”, que poderiam “desviá-las” do caminho para elas traçado dentro
da ideologia religiosa cristã. Esse apelo às crianças é um aspecto fundamental
no acionamento do pânico moral. Rubin (2017, p.70) afirma que “ao longo
de mais de um século, nenhuma tática para incitar a histeria erótica tem se
mostrado mais eficiente que o apelo à proteção das crianças.”
É possível refletir sobre alguns pontos a partir da afirmação da deputada
de que a escola é potencialmente transformável em um “laboratório para
desconstrução da nossa família”. O primeiro é acerca das/os profissionais que
nela trabalham. Rubin destaca que as/os profissionais ligados à docência são
especialmente monitorados quanto à sua conduta moral e/ou sexual.

Quanto maior a influência de uma pessoa sobre a geração seguinte, me-


nos liberdade lhe é permitida em relação à comportamento e opinião.
O poder coercitivo da lei assegura a transmissão dos valores sexuais
conservadores por meio desses tipos de controle sobre a parentalidade e
a prática docente. (RUBIN, 2015, p.99).

Nesse sentido, pode-se refletir sobre a conexão entre a “cruzada” para


a retirada da palavra “gênero” do PEE do Paraná e a proposta do Movimento
Escola Sem Partido. O projeto de lei proposto por este prevê a fixação de um
cartaz em todas as salas de aula. Intitulado “Deveres do Professor”, o cartaz
mostra-se bastante regulatório com relação à atividade docente. O projeto
de lei ficou conhecido como “lei da mordaça” e educadores criticaram a
fomentação de uma “cultura da vigilância” nas escolas, justamente pelo seu
caráter proibitivo, que interfere na liberdade de cátedra das/os docentes15.
Outro questionamento possível é sobre o papel da escola como um todo
na formação de crianças e jovens que passam boa parte de suas vidas nesses
15. <https://novaescola.org.br/conteudo/13291/influencia-do-escola-sem-partido-cresceu-nas-eleicoes> acesso em
25/01/2019

Ebook IV SIGESEX 181


espaços. Para a socióloga Berenice Bento “a escola, que se apresenta como uma
instituição incapaz de lidar com a diferença e a pluralidade, funciona como
uma das principais instituições guardiãs das normas de gênero e produtora da
heterossexualidade.” (BENTO, 2011, p. 555). Além disso, a autora ressalta a
violência que pessoas trans sofrem diariamente nas escolas, “as reiterações que
produzem os gêneros e a heterossexualidade são marcadas por um terrorismo
contínuo. Há um heteroterrorismo a cada enunciado que incentiva ou inibe
comportamentos, a cada insulto ou piada homofóbica.” (idem, p. 552).
A socióloga afirma que existem vários mecanismos que atuam no sentido
de reforçar o heteroterrorismo. As “verdades” sobre o gênero são repetidas de
diversas formas e por diversas instituições, incluindo a escola. Brinquedo “de
menina”, cor “de menino”, “coisa de bicha”, são assertivas que as crianças ouvem
em casa, na escola, na rua, e tantos outros espaços. No entanto, o fracasso
da unidade desejada é exposto por corpos que “se põem em risco porque
desobedeceram às normas de gênero” (idem, p. 551). Isso não acontece sem
dores, conflitos, medos. No esforço para manter a fictícia “verdade” do gênero,
aquelas/aqueles que a transgridem tornam-se alvos da tentativa de apagamento
de suas identidades. A invisibilidade, portanto, também se configura como um
aspecto do heteroterrorismo, pois “o outro”, “o estranho”, “o abjeto”, aparece no
discurso para logo em seguida ser eliminado. (BENTO, 2011) Rubin (2017,
p. 98) também chama a atenção para esse silenciamento:

Em vez de reconhecer a sexualidade dos jovens e tentar se ocupar dela


com cuidado e responsabilidade, nossa cultura nega e pune o interesse
e a atividade erótica de qualquer pessoa com idade de consentimento
menor que a permitida localmente. A quantidade de leis dedicadas a
proteger os jovens de uma exposição prematura à sexualidade é de tirar
o fôlego.

Esse processo de “apagamento” de pessoas LGBT foi reforçado


com a exclusão da pauta de gênero do PEE do Paraná. Apesar de não haver
uma proibição explícita com relação ao tema, o não reconhecimento da
importância em trabalhar questões de gênero nos Planos de Educação significa
um retrocesso, na medida em que impossibilita que as muitas questões que
envolvem gênero sejam trabalhadas, devido à ausência de metas. Além disso,
significa que não há incentivo para a melhora na formação das/os docentes
para lidar com a violência de gênero, além de outras possíveis políticas públicas

182 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que visam diminuir a desigualdade de gênero.
Apenas para sugerir um ponto para reflexão sobre as perdas que a
retirada da pauta de gênero do PEE do Paraná significa, cito novamente a
socióloga Berenice Bento, que afirma:

No entanto, não existem indicadores para medir a homofobia de uma


sociedade e, quando se fala de escola, tudo aparece sob o manto da in-
visibilidade da evasão. Na verdade, há um desejo de eliminar e excluir
aqueles que “contaminam” o espaço escolar. Há um processo de expul-
são, e não de evasão. É importante diferenciar “evasão” de “expulsão”,
pois, ao apontar com maior precisão as causas que levam crianças a não
frequentarem o espaço escolar, se terá como enfrentar com eficácia os
dilemas que constituem o cotidiano escolar, entre eles, a intolerância
alimentada pela homofobia. (BENTO, 2011, p. 555).

Referências

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política reacionária - ou: A promoção dos direitos humanos se tornou uma
“ameaça à família natural”? In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES,
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sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017. p. 25 - 52.

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Ebook IV SIGESEX 183


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Assembleia Legislativa do Paraná: o caso do Plano Estadual de Educação.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Paraná. Paraná.
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RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. Ubu Editora LTDA-ME, 2018.

SCALA, Jorge. La ideología del género o el género como herramienta de poder.


Rosário: Ediciones Logos Ar, 2010.

184 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Meu corpo é político: uma análise sobre a
política do nome social da UFSC
My body is political: an analysis of social name politics at UFSC

Keo Silva1

RESUMO: É o proposito desse texto observar a relação entre estrutura


e sujeito sob um prisma critico à cisnormatividade observo como o sistema de
ensino reverbera a norma social cisgênera. Contudo, analiso também quais
os percursos da política de nome social na Universidade Federal de Santa
Catarina desde se implementação até a última resolução. Em seguida busco
compreender se a presença sujeitos/as trans* na Universidade repercute na
construção/produção de outros olhares e epistemologias.
PALAVRAS-CHAVE: cisnormatividade, nome social, pessoas trans.

ABSTRACT: It is the purpose of this text to observe the relationship between


structure and subject under a prism critical to cisnormativity. In this way I observe how the
education system reverberates the cisgender social norm. However, I also analyze the pathways
of the social name politics at the Federal University of Santa Catarina from implementation
until the last resolution. Next, I try to understand if the presence trans people in the University
resounds in the construction / production of other looks and epistemologies.
KEYWORDS: cisnomativity, social name, trans people.

No intuito de compreender a relação entre sujeito e estrutura nas


relações de pessoas que se identificam como trans* e as instituições de ensino,
Nesse artigo me proponho a pensar as relação dada entre alunos e alunas trans
na UFSC e os efeitos em suas experiências das lutas por reconhecimento. Em
especial, atento neste trabalho para a importância do uso da política de nome
social por tais estudantes. Metaforicamente utilizarei a ideia de roda-gigante
1. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestrando no Programa de
Pós-Graduação em Educação pela mesma universidade, atualmente recebe financiamento CNPq para realizar sua
pesquisa de mestrado. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC/CNPq)
e pesquisador do Núcleo de Estudos das Travestilidades, Transexualidades e Transgeneridades (NeTrans/UFSC/
CNPq). Universidade Federal de Santa Catarina Campus Florianópolis R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferrei-
ra, s/n - Trindade, Florianópolis - SC, 88040-900. Fone: (48) 3721-9000. Email: keo.ech@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 185


no sentido de fazer uma explicação que se inicia por questões estruturantes,
por tanto, no topo da roda-gigante. Para esse primeiro movimento, explicarei
como a cisgeneridade se constitui enquanto norma social vigente estruturante
da sociedade ocidental moderna e como ela está presente nas instituições
de ensino. Na sequência, analiso como a política de nome social funciona
como uma política sob o viés de cidadania precária (BENTO, 2014) para
pessoas trans, mesmo diante desse modelo de fazer política para as minorias
no Brasil, essa política opera como produtora de subjetividades (MASSA,
2018) e funciona como elemento de acesso e permanência de pessoas trans
na Universidade (OLIVEIRA; SILVA, 2018). Após analisar as resoluções
normativas que garantem o uso do nome social na UFSC, me debruço sobre
algumas trajetórias de alunos e alunas trans (incluindo a minha própria
experiência) para pensar o que se modificou no percurso entre a implementação
da política até os dias de hoje.

1- Cisnormatividade ou a naturalização da cisgeneridade

A sociedade ocidental moderna é organizada em diversas polaridades.


Um dos pilares que é sustentado por essa polaridade é o sistema sexo/gênero
(RUBIN, 1984), onde o gênero da pessoa é definido pelo sexo biológico
muitas vezes antes do nascimento. Assim o mundo se organiza entre aqueles
que tem pênis – homem e aqueles que tem vagina- mulheres, essa organização
corresponde então ao alinhamento em que gênero é sexo. Esse alinhamento
por sua vez é naturalizado nas relações sociais, onde se pressupõe que todas as
pessoas devam correspondem a essa definição. Dessa forma a cisgeneridade
(alinhamento entre sexo-gênero) é considerada “natural” e funciona como
critério para separar corpos que podem ou pertencer a certos espaços, como
o espaço da universidade.
Podemos chamar essa norma social que naturaliza o alinhamento
entre sexo e gênero de cisnormatividade. Segundo a definição da teórica
transfeminista Viviane Vergueiro a cisnormatividade pode ser entendida
como:

[...] um conjunto de dispositivos de poder colonialistas sobre as diver-


sidades corporais e de gênero, sendo tais dispositivos atravessados por
outras formas de inferiorização, marginalização e colonização intersec-
cionais (VERGUEIRO, 2016. p.72).

186 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


As experiências que ultrapassam a fronteira que determina o gênero a
partir do sexo são regulados sob diversos processos de exclusão, marginalização,
preconceito, perda do status de humanidade, acessos precários a cidadania
e até a morte, ainda como ressalta a autora citada acima, somado a outros
marcadores sociais essas “consequências” se acentuam. Em outras palavras a
ruptura com a norma social vigente imposta pela cisnormatividade implica em
consequências como a desumanização e negação da cidadania. A cisgeneridade
pode ser entendida como um privilégio, considerando que ela possibilita
acesso a determinados lugares de poder e também de saber.

2- No espaço de ensino

A cisnormatividade enquanto regra habita diversos espaços da sociedade,


cumprindo sua função regulatória. As instituições de ensino dizem respeito
aos espaços mais tensionados em relação a ação da cisnormatividade frente
a diversidade corporal e identidade de gênero (VERGUEIRO, 2016). No
âmbito institucional do reconhecimento vemos que o preparo pra atender as
demandas da população trans é tardio. Ao mesmo tempo, a própria estrutura
destes espaços é excludente. Um exemplo são os banheiros. Indo mais além, os
espaços de ensino também produzem uma exclusão intelectual.Nos espaços
de ensino a cisnormatividade é estruturante e opera na exclusão ou não dos
corpos, tanto na ordem mais burocrática de reconhecimento quanto na ordem
de do espaço físico e também de ordem intelectual. Em uma pesquisa realizada
pela Fundação Latino Americana de Ciência Sociais (FLACSO) junto ao
MEC em 2015 intitulada de Juventudes na Escola, sentidos e buscas: Por que
frequentam? Apontam dados de que 19,3% dos alunos entrevistados em
diversas escolas do Brasil não gostariam de ter alunos gays e trans. Esse dado
elucida a realidade de não aceitação de pessoas trans no ambiente de ensino.
Nossas experiências geralmente são marcadas pela impossibilidade
de permanecer no espaço de ensino, além da falta de reconhecimento o
preconceito é um dos principais fatores que contribui para essa realidade. Em
outra pesquisa publicizada pelo periódico online Correio Brasiliense em 2016,
aponta que o Brasil concentra o dado de 82% de evasão escolar de pessoas
trans, principalmente de mulheres trans e travestis. No entanto, sabe-se que a
lógica cisnormativa não faz com que essas pessoas evadam, mas sim que sejam
expulsas da escola. Para a socióloga Berenice Bento (2008) não há evasão, há
um cenário de expulsão das pessoas trans do espaço de ensino, afinal quando a

Ebook IV SIGESEX 187


escola/universidade se omite em relação ao reconhecimento daquele indivíduo
ela não está estabelecendo condições de permanência.
A aposta aqui é de que a promoção de acesso e permanência para pessoas
trans do ensino básico ao superior pode ser um fator que reverta essa lógica de
marginalização e exclusão destino de muitos e muitas. Nesse sentido o esforço
da próxima seção é de problematizar políticas voltadas ao acesso a educação de
pessoas trans.

3- O nome social: uma alternativa à brasileira

O nome social pode ser defino como o nome pelo qual uma pessoa
trans é reconhecida em sua comunidade e em todos os âmbitos das relações
sociais. Esse nome, na maioria das vezes é diferente do nome que consta nos
documentos oficiais de identificação. Em casos em que a pessoas trans não
realizou a retificação de nome, ela pode solicitar o nome social nos ambientes
de ensino. Desde 2016 após o decreto2 da então presidenta Dilma Rousseff, o
nome social passou a ser um direito garantido dentro dos órgãos públicos para
o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans.
Nas universidades o nome social vem sendo utilizado desde 2007. A
Universidade Estadual do Rio de Janeiro foi a primeira universidade a utilizar
a política após a demanda de uma aluna que ingressara. A UFSC só passa a
utilizar o nome social após a implementação da resolução normativa (18/
CUn/2012), é a sexta universidade a utilizar a política em território nacional.
O nome social pode ser pensado como política de acesso e permanência
de pessoas trans na universidade (OLIVEIRA; SILVA, 2017), ao passo que
produz acesso, permanência e também subjetividade (MASSA, 2018) é também
uma política que tem seus limites bem muito definidos, pois funciona apenas em
território universitário, ou seja, o reconhecimento é só no sentido institucional.
Nesses termos, Berenice Bento (2014) aponta que o Brasil tem um “jeitinho”
específico de fazer política no que diz respeito aos direitos das minorias.

Há um modus operandi historicamente observável das elites que estão


majoritariamente nas esferas da representação política no Brasil, qual
seja: a votação/aprovação de leis que garantem conquistas para os ex-
2. Após o decreto de 29 de abril de 2016 assinado pela então presidenta Dilma Rouseff que dispõe sobre o uso do
nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da adminis-
tração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
Ato2015-2018/2016/Decreto/D8727.htm > Visualizado em: 21/04/2019.

188 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


cluídos (econômicos, dos dissidentes sexuais e de gênero) são feitas a
conta-gotas, aos pedaços. E assim se garante que os excluídos sejam in-
cluídos para continuarem a ser excluídos. (BENTO, 2014. p.166)

Desta forma a autora também destaca o nome social como uma política
que corresponde ao modelo de cidadania precária.

A cidadania precária representa uma dupla negação: nega a condição


humana e de cidadão/cidadã de sujeitos que carregam no corpo de-
terminadas marcas. Essa dupla negação está historicamente assentada
nos corpos das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e das
pessoas trans (travestis, transexuais e transgêneros). Para adentrar a ca-
tegoria de humano e de cidadão/cidadã, cada um desses corpos teve que
se construir como “corpo político”. No entanto, o reconhecimento po-
lítico, econômico e social foi (e continua sendo) lento e descontínuo.”
(BENTO, 2014, p. 167).

Frente ao modus operandi de fazer política a conta gotas para as


populações vulnerabilizadas e marginalizadas historicamente a única
possibilidade de adentrar ao status de humanidade e também de cidadania
é construção de seu corpo como um corpo político que se constitui diante
as imposições normativas que tentam ceifar esses modos de vida. Na sessão
seguinte analisarei as duas resoluções normativas sobre a política de nome
social na Universidade Federal de Santa Catarina, observando algumas
modificações de uma resolução para outra e na sequência comentarei alguns
relatos de experiência percebendo quais as modificações nesse trajeto desde a
implementação até os dias de hoje.

4- A UFSC: Das resoluções às experiências e mais.

A política de nome social passa a ser implementada na UFSC depois


da votação e decisão unanime do conselho universitário em abril de 2012. É
importante ressaltar que a política só foi desenvolvida porque houve demanda
de alunas transexuais e travestis que entraram nos cursos de graduação.
Em 2015 é feita uma nova resolução com o intuito de suprir as falhas que
apresentava a resolução de 2012, falhas que foram apontadas também pelas
alunas e alunos que utilizaram o nome social durante esses anos.

Ebook IV SIGESEX 189


Elencarei algumas das modificações entre as resoluções de 2012 e 2015
e sem seguida destacarei alguns efeitos da política de nome social no que
diz respeito a entrada de sujeitos não hegemônicos nos espaços de ensino e
produção de conhecimento.
Das principais modificações realizadas na resolução de 2012 destaco no
artigo primeiro em que nesta resolucao constava assim:

Art. 1.º Fica assegurada a possibilidade de uso do nome social aos tra-
vestis e transexuais nos registros, documentos e atos da vida acadêmica,
na forma disciplinada por esta Resolução Normativa. (Resolução Nor-
mativa (CUn/18/2012)). (Grifos meus)

Na resolução de 2015 o artigo primeiro é modificado para:

Art. 1º Fica assegurada a possibilidade de uso do nome social para pes-


soas trans(travestis, transexuais e transgêneros) nos registros, documen-
tos e atos da vida acadêmica, em qualquer nível de ensino ou atividade
acadêmica na forma disciplinada por esta Resolução Normativa. (Reso-
lução Normativa 2015 (CUn/59/2015)) (Grifos meus)

O que ressalto é que na resolução de 2015 foi incluído o termo “pessoas


trans” para substituir “aos travestis e transexuais”, essa mudança no termo
demonstra que há sentido de humanização afinal é mencionada a palavra
pessoas. Isso demonstra como a universidade enxerga nossas vidas.
Além dessas modificações destaco outras como a alteração do prazo
para a mudança de nome no sistema. A resolução de 2012 previa um prazo de
180 dias, ou seja, um semestre inteiro que o aluno/a tinha que ir às aulas sendo
chamado pelo nome de registro até que houvesse a alteração. Na resolução
de 2015 o prazo foi diminuído para o prazo de até 30 dias após a solicitação,
facilitando o acesso e permanência das pessoas trans na universidade. Outra
mudança significativa é que na resolução de 2012 constava que o nome social
apareceria ao lado do nome de registro nas listas de chamada e afins, o que
poderia ser um fator gerador de constrangimento ao aluno e aluna trans. Na
resolução de 2015 consta que a apenas o nome social deve aparecer nas listas
de chamadas e afins.
A resolução de 2015 também permite que o aluno/a utilize o nome
social desde o vestibular. É importante destacar que o uso do nome social desde

190 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


o vestibular na UFSC antecede o decreto federal de 2016, fazendo a UFSC
pioneira em termos de reconhecimento institucional para pessoas trans.
No intuito de demonstrar o percurso e as experiências de quem utilizou
a política de nome social na UFSC trago fragmentos de relatos de Laura
Martendal (2018) e de alguns interlocutores da minha pesquisa de mestrado
Caetano e Carolina tirados de entrevistas semi-estruturadas realizadas no final
do ano de 2018. O propósito é apresentar os efeitos da inserção e permanência
de pessoas trans na universidade em termos de respeito às diversidades.
O primeiro relato é de Laura, aluna do curso de serviço social:

Chegou 19 de fevereiro de 2012, primeiro dia de aula (...) Como já espera-


va, pela falta de vontade com relação ao meu caso, que percebi na conversa
com a coordenadora do curso, já no primeiro dia de aula apareceu meu
nome civil. No segundo dia, no terceiro dia ele estava lá e eu não respondia
à chamada. Depois da aula, eu conversava com a/o professora/or e ela/ele
me dava presença. Em um dos casos em que eu já havia falado com a pro-
fessora e ela me chamou novamente pelo nome civil, o problema persistiu
e, na segunda vez em que me chamou pelo nome civil, levantei da cadeira,
fui em direção à sua mesa, peguei a caneta da mão dela e botei um O no
tamanho da folha da chamada e disse pra ela que na sala não há nenhum
homem, só mulheres, inclusive eu. Sou LAURA e já tinha conversado
contigo sobre isso, acho uma falta de sensibilidade e de informação por
sua parte, professora. Me desculpe a minha ignorância, mas a sua é bem
maior e saí da sala de aula (MARTENDAL, 2018. p. 174.)

A entrada de Laura é anterior a vigencia da primeira resolução de nome


social. Laura entrou em na ufsc em fevereiro e a política passou a ter vigor
somente no final de abril. Contudo, percebe-se que Laura mesmo sem a política
vigorar tentava encontrar meios de ser reconhecida. As estratégias de Laura se
deram por meio de acordos verbais ou através de táticas mais incisivas e foram
legítimas. Tais investidas nos apontam como a cisnormatividade é operante
em todos os espaços. As narrativas de Caetano e Carolina ambos ingressos
depois da resolução de 2015. Já são alunos que concentram outros marcadores
sociais, ambos são jovens e vem de trajetórias de pessoas que terminaram a
escola e acessaram a universidade, diferente de Laura que só viu a universidade
enquanto possibilidade de vida depois de percorrer outros caminhos comuns
a quem transgride a normas sociais vigentes.

Ebook IV SIGESEX 191


Ao ser questionado sobre o reconhecimento do nome social na
universidade Caetano que ingressou na universidade em 2016 aponta:

Só teve algumas vezes que o sistema não se adaptou ao nome. Alguns luga-
res, tipo a B.U, o labUFSC e uma vez que fui fazer a carteirinha do R.U
quando eu entrei. Várias pessoas tiveram esse problema na verdade, que
a carteirinha do RU não identificava o nome social e tal. Mas assim, só
coisinhas burocráticas, o sistema não está totalmente adaptado. Mas
no interpessoal, assim, com as pessoas nunca tive problema. (Grifos meus)

Percebe-se que a narrativa dele não demonstra o mesmo enfrentamento


presente na narrativa de Laura. Ele aponta apenas “coisinhas burocráticas”,
dizendo que o sistema não está totalmente adaptado ao nome.
O comentário de Carolina, que ingressou na universidade em 2017,
também vai nessa direção:

Eu achei particularmente, super simples assim. Tipo, aqui eu consegui des-


de o vestibular. Foi super tranquilo as listas de chamadas, os editais. Eu
nunca passei constrangimento em relação a isso não.(...)O que eu acho é
que a experiência foi diferente na UFSC, é que aqui já tinha pessoas
trans antes. E tipo assim, as discussões de gênero aqui não são novas
há muito tempo. Pelo contrário, já estão até meio saturadas, assim. Mas
aqui, inclusive tiveram outros alunos trans. Então ninguém ficou tipo,
nossa! Inventou a roda, sabe?! (Grifos meus)

A experiência de Carolina foi descrita por ela como “super simples”


e que não houve nenhum contrangimento em relação aons editais etc. ela
aponta que a presença de outras pessoas trans que a antecederam foi um fator
facilitador para ela.
Nesse sentido, observo que algumas mudanças nesses anos de percurso
com a política de nome social são significativas. Estima-se que na UFSC tenha
mais de 20 alunos trans entre cursos de graduação e pós-graduação. Em 2018
foi criado o NETRANS (Núcleo de estudos e pesquisas das travestilidades,
transexualidades, transgeneridades) formado apenas por pesquisadores e
pesquisadoras trans da UFSC. Este cenário deixa mais evidente que a garantia
do reconhecimento da identidade de genero nos possibilita mobilizar e ir
além da luta por reconhecikento, trazendo a tona outras questões que tocam

192 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


as experiencias e opensamento de pessoas. Em 2019 o NETRANS realiza o
primeiro seminário organizado pelo núcleo, intitulado TRANS*FERIDAS
possibilitando que apresentássemos nossas pesquisas e a abertura de um
diálogo entre nós do grupo e a comunidade a acadêmica.
Dessa forma podemos considerar que a entrada e a permanência
de pessoas trans na universidade impacta na produção de conhecimento.
Quando novos sujeitos acessam lugares de saber e, portanto, de poder ocorrem
transformações nos moldes instituídos e hegemônicos de produzir e pensar.
Esse movimento afeta a ordem estrutural da sociedade. Favorece a diversidade
e se coloca em defesa da pluralidade de corpos e de vidas. Cria trajetórias
que desviam do caminho mais comum às pessoas trans*, a exclusão social.
Em alguma medida isso desestabiliza a norma social vigente e isso não é uma
questão menor.

Referências

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frequentam? / Miriam Abramovay, Mary Garcia Castro, Júlio Jacobo Waiselfisz.
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Ebook IV SIGESEX 193


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Tradução: Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da
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UNIVERSIDADE DE SANTA CATARINA. Conselho Universitário.


Dispõe sobre o uso do nome social por travestis e transexuais para fins de
inscrição no concurso vestibular e nos registros acadêmicos no âmbito da
Universidade e dá outras providências. Resolução Normativa nº 18, de 24 de
abril de 2012. Repositório UFSC. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
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194 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


UNIVERSIDADE DE SANTA CATARINA. Conselho Universitário.
Dispõe sobre o uso do nome social por pessoas trans para fins de inscrição no
concurso vestibular e nos registros acadêmicos no âmbito da Universidade
Federal de Santa Catarina. Resolução Normativa nº 59, de 13 de agosto de
2015. Repositório UFSC. Disponível: http://propg.ufsc.br/files/2010/07/
Resolu%C3%A7%C3%A3o-Normativa-59.CUn_.2015-13-de-agosto-de-
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inclusão. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, v. 14, n. 2, maio/
ago. 2018.

Ebook IV SIGESEX 195


As artes cênicas na sala de aula: o eu, o
outro e o nós – a diferença que inclui o
diferente.
The science arts in the classroom: the self, the other
and us - the difference including the different.
Leonardo Arruda Calixto1
Lucilene Soares da Costa2

RESUMO: O Teatro e a Dança como áreas de conhecimento rompem


barreiras dentro da escola, podem e devem proporcionar ao aluno e aluna
liberdade para expressar-se, dando-lhes autonomia e posicionamento crítico
para as diferenças encontradas na escola. Tratar da homossexualidade na
educação é um assunto importante para ser discutido na contemporaneidade.
“Lutar” pelo reconhecimento das diferenças é necessário, e a sala de aula é um
dos lugares para se tratar das diferenças.
PALAVRAS-CHAVE: Homossexualidade. Artes Cênicas. Escola.

ABSTRACT: Theater and Dance as areas of knowledge break down barriers within
the school, can and should provide the student freedom to express themselves, giving them
autonomy and critical positioning for the differences found in the school. Dealing with
homosexuality in education is an important subject to be discussed in contemporary times.
“Fighting” for the recognition of differences is necessary, and the classroom is one of the
places to deal with differences.
KEYWORDS: Homosexuality. Performing Arts. School.
1. Autor mestrando em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), licenciado em Artes
Cênicas: Teatro e Dança pela UEMS/UUCG. Especialista em Arte Educação e Cultura Regional do MS. Gradua-
do em Direito pela UNAES. Docente pela Prefeitura Municipal de Campo Grande – componente curricular arte:
Educação Infantil, fundamental I e II. End.: Av. Dom Antônio Barbosa (MS-080), 4.155, em frente ao Conjunto
José Abrão. CEP 79115-898 Campo Grande – MS. Mestrado Profissional em Educação (67) 3901-4608. (leoarru-
dacalixto@gmail.com).
2. Coautora licenciada em Letras (Português/inglês) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), mestre
e doutora em Letras pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo
(USP). Desde 2006 atua como docente do quadro efetivo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, onde mi-
nistra disciplinas na área de Literaturas de Língua Portuguesa, Teoria Literária, Literatura infanto-juvenil e Literatura e
outras artes, na Graduação em Letras, e Literatura infantil e Itinerários culturais no Mestrado Profissional em Educação
(Profeduc). End.: Av. Dom Antônio Barbosa (MS-080), 4.155, em frente ao Conjunto José Abrão. CEP 79115-898
Campo Grande – MS. Coordenação Letras Bacharelado (67) 3901-4622. (lucilenecosta@uems.br).

196 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Introdução

A pesquisa parte das reflexões e da inquietação, do autor, em dar


visibilidade às Artes Cênicas: o Teatro e a Dança no contexto escolar.
Entendemos ser necessário desconstruir a perspectiva tradicional, esta
cartesiana, generalista, com formas e receitas, coberta pelo pragmatismo. A
pesquisa caminhará pela perspectiva da teoria crítica, como base científica,
mas não desprezará outras que contribuirão para explicar as Artes Cênicas e
as diferenças.
Infelizmente a Arte dentro da escola ainda é conhecida como
entretenimento, entre outras palavras, não tem a mesma importância que
os demais componentes curriculares. Esta é uma afirmação relacionada à
prática docente do autor, professor de Arte. O “fazer” arte dentro da escola
está ligado às comemorações festivas, painéis, murais, sem que haja uma
construção de saberes.
Entende-se que a Arte é liberdade de expressão, logo, pode proporcionar
ao sujeito, aluno/aluna, a reflexão e com isso a tomada de consciência, que
resulta na sua emancipação enquanto ser pensante.
A escola é o lugar das diferenças, sejam as de identidade de gênero,
orientação sexual, sexo biológico, relacionadas à cor de pele, étnicas,
questões culturais, religião, entre tantas outras. Tais assuntos são latentes na
contemporaneidade que precisam ser discutidos, dentro do espaço escolar.
Pensando nesta diversidade de seres, a pesquisa propõe tratar das diferenças,
em sala de aula, atrelada a prática em teatro e dança.
A pesquisa iniciou na graduação de Direito no ano de 2006. Posteriormente
no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com o título “A Busca pelo Direito
de Igualdade na filiação Homoparental Brasileira”, no qual o objetivo foi tratar
das relações homoafetivas na sociedade frente à Constituição Federal de 1988,
assegurando aos filhos (das relações homoafetivas) o direito à igualdade na
filiação, amparando-os ao direito à pensão por morte, à pensão alimentícia, o
direito de herança, bem como todos e quaisquer direitos assegurados por casais
heterossexuais, sejam casados civilmente ou em uniões estáveis.
Na graduação em Artes Cênicas a pesquisa tomou um novo formato,
desenvolvendo o projeto “A Diversidade Sexual na Educação através das Artes
Cênicas”, com a finalização de uma cena teatral. Esta foi encenada na escola
pública municipal Professora Iracema de Souza Mendonça situada em Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, com as turmas do 9º ano (A e B) do Ensino

Ebook IV SIGESEX 197


Fundamental II. A cena teatral abarcou a homossexualidade, pelo viés do
trabalho de dois grandes artistas ( João do Rio e Nijiski). Na plateia alunos e
alunas com idade entre 13 a 17 anos. Com isso, buscou-se identificar questões,
impressas em folha de papel, entregue antes e depois da apresentação da cena
teatral para os alunos e alunas, como forma de mensurar as informações e
fomentar o conhecimento a respeito do tema. A cena teatral foi apenas um
dos passos necessários na busca de reverter essa situação de preconceito e
discriminação, assim os alunos e alunas, diante dos novos conhecimentos,
tiveram oportunidades para mudar a postura perante os homossexuais e
qualquer outro tipo de diversidade sexual, servindo como uma fonte de
reflexão em relação à sua própria sexualidade.
Na devolutiva dos alunos e alunas, que assistiram a apresentação cênica,
ficou claro que é preciso discutir as diferenças na escola, e a arte proporciona
esta relação de diálogo, dando-lhes autonomia, posicionamento crítico,
emancipação, pensamento reflexivo e liberdade para expressar-se.
Com a apresentação da cena, ficou claro a necessidade em continuar
tratando da diversidade sexual na escola. As respostas dos questionários
(entregues antes e depois da apresentação cênica) mostraram que, de fato, os
alunos e alunas têm pouco ou nenhum conhecimento e informação acerca da
homossexualidade. Respostas informando que ser homossexual é uma doença,
escolha, ou mesmo, respostas como “me dá nojo”, diante de questões como:
“qual a sua reação diante de um casal homossexual se beijando?”, mostrou que
as diferenças ainda não são discutidas na escola em relação à diversidade sexual.
De posse das pesquisas, ficou evidente que ao assunto merece mais
atenção. Para tanto com o ingresso na docência, no componente curricular
Arte da educação básica e a prática em sala de aula, mostrou ao autor que seria
indispensável continuar a pesquisa. O mestrado em Educação preencheria esta
nova etapa de pesquisador, ao lado da coautora e orientadora.
Nesta nova fase como mestrando e professor de Arte, a pesquisa propõe
uma intervenção, que se fará por meio de oficinas de teatro/dança em uma
escola pública de Campo Grande, preferencialmente no contra turno. Neste
“espaço” o sujeito/aluno/aluna terá oportunidade em conhecer e olhar os
“outros” e suas diferenças, especialmente a homossexualidade, ao mesmo
tempo, experienciará o contato com as artes cênicas, logo, poderá expressar-se,
com liberdade.
O foco da pesquisa será reconhecer a importância das Artes Cênicas,
como uma área de conhecimento, valorizando sua prática, na educação,

198 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


olhando para o EU, o OUTRO e o NÓS, ao tratar da diversidade sexual
“(des)encontrada” na escola.
Discutir, na escola, as diferenças é mostrar que as mesmas são inerentes
ao ser humano e está na sociedade. Somos um país de multiplicidade, de
multiculturalismo3 e precisamos entender o que há ao nosso redor.

1- Dialogando com a diversidade de autores

A Teoria Crítica faz uma análise da sociedade e do indivíduo, das


experiências, habilidades, costumes, que representaria o todo, diverso,
harmônico, mais justo, uma teoria mais legitima. Tem a proposta de transformar
a forma passiva e estruturada de pensar. Torna o SER emancipado, ensinando-o
a refletir, sem que haja as amarras da ciência dominante (HORKHEIMER;
ADORNO, 1983).
Para tentar problematizar, antes de confirmar a importância das Artes
Cênicas, seguem algumas explanações abordadas por autores e pesquisadores.
O Teatro na Educação como uma nova área do conhecimento
(KOUDELA, 2006) é uma conquista. Ainda assim, há limitações e
dificuldades acerca das pesquisas teóricas, pois as produções científicas seguem
uma predominância do “Paradigma Moderno, Cartesiano ou Racional”
(CAVASSIN, 2008, p. 40), ou engessado como na Teoria Tradicional. A
relação Arte e ciência é bastante inovadora.
Em relação à dança, a mesma sempre esteve numa situação inferior,
as demais manifestações artísticas, embora seja reconhecida pelo Ministério
da Educação - MEC4, como um curso superior com diretrizes próprias,
costuma ser vista na educação básica, como conteúdo da educação física
(STRAZZACAPPA, 2002).
Para a autora Strazzacappa (2002), quando a dança aparece dentro da
escola, como uma atividade em si, dirigida/ministrada pelo profissional da
área, surge como disciplina extracurricular. Toda esta constatação deixa uma
sensação de que a dança não é uma área de conhecimento.
Legitimando o ensino da Arte, as Artes Cênicas e suas linguagens, o
Teatro e a Dança, estão explícitos no artigo 26, § 2º, da Lei de Diretrizes e Bases
3. Multiculturalismo: Costuma referir-se às intensas mudanças demográficas e culturais. É a convivência pacífica de
várias culturas. O Multiculturalismo em educação envolve a natureza da resposta que se dá nos ambientes e arranjos
educacionais, ou seja, nas teorias, nas práticas e nas politicas. Envolve um posicionamento claro a favor da luta contra
a opressão e a discriminação a que certos grupos minoritários têm. (Este conceito encontra-se no livro: Multicultura-
lismo: Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas, de Candau e Moreira, referenciada neste artigo).
4. Ministério da Educação – órgão do governo Federal.

Ebook IV SIGESEX 199


da Educação Nacional - LDBEN5 que trata da arte na educação “O ensino
da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente
curricular obrigatório da educação básica” (BRASIL, LDBEN, 1996, grifo
nosso).
Ademais o ensino da arte compõe quatro linguagens que o parágrafo 6º,
do mesmo artigo e lei apresenta: as artes visuais, a dança, a música e o teatro,
tornando as linguagens obrigatórias. Isso expõe segurança jurídica e mais, o
reconhecimento que o teatro e a dança, assim como a música e as artes visuais,
são formas de conhecimento e desenvolvimento do ser humano na educação.
Partindo da ideia de que a Arte é um caminho valioso de conhecimento
na educação escolar, Reverbel6 foi pioneira nos estudos e práticas das relações
entre teatro e educação no Brasil. A autora que é considerada nacionalmente
uma das precursoras do movimento conhecido como Teatro e Educação,
colocou lado a lado os assuntos da cena e da educação contemporâneas
presentes nos debates sobre ensino de teatro. Olga trabalha a pedagogia de
expressão, teatro como expressão somado com a pedagogia. O Teatro é a arte
de manipular os problemas humanos, apresentando-os e equacionando-os
(REVERBEL, 1979).
A Arte mostra caminhos com possibilidades diversas, sendo assim a
Dança mostra-se como linguagem em sala de aula de fundamental importância.
Utiliza o movimento, que é inerente ao ser humano, traz possibilidades
expressivas e de reflexão. Portanto Salvador (2013) entende que:

[...] os estudos do movimento em dança passam, não só por suas rela-


ções com o social, com o cultural ou com o físico, mas instigam, tam-
bém, a pensar em signos, em narrativas e em possibilidades de comuni-
cação e expressão através desse corpo que é soma (SALVADOR, 2013,
p. 39 - 40).

Conforme Salvador, a dança cria possibilidades de comunicação, logo,


sugere esse diálogo em sala de aula, o que contribui para tratar da diversidade
na educação. O trabalho da dança na escola tem grande importância na
conscientização, deste modo Salvador (2013, p. 99) descreve: “[...] o grande
valor do processo de aprendizado e do desenvolvimento da criatividade e da
expressividade do aluno”.
5. Lei nº 9.394 de 1996.
6. Olga Garcia Reverbel. Itaú Cultural. Teórica, autora e professora. Disponível em: < http://enciclopedia.itaucultu-
ral.org.br/pessoa513967/olga-reverbel>. Acesso em: 29 maio 2019.

200 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“Para que o aluno se expresse é preciso, antes de tudo, que seja respeitada
a sua liberdade” (REVERBEL, 1995, p. 11). Ainda neste sentindo, Reverbel
(1995, p. 11) defende que: “o estímulo constante à criação permite ao aluno
liberar sua personalidade pela espontaneidade e formá-la pela cultura”. Isto é
SER emancipado para refletir, olhando para o sujeito, este em construção.
A Dança e o Teatro na educação estimulam um clima de liberdade
no qual os alunos/alunas liberam as suas potencialidades, por meio dos seus
sentimentos, emoções, angústias e sensações. Na “experiênciação” é que o
aluno/aluna mostra uma parte de si mesmo, revelando como sente, pensa e vê
o mundo. É no fazer “teatro e dança” que permite ao aluno/aluna expressar-
se que explora a comunicação humana. Neste momento é que ocorre o
desenvolvimento de cada um, baseado nas diferenças, na diversidade, pois assim
pode ocorrer a construção do conhecimento do ser humano, dos “saberes”.
A Arte fala de diferentes formas de cognição, que compreende os
saberes do corpo, da sensibilidade, da intuição, da emoção, que englobam o
fazer, o fruir, a reflexão. Propicia a liberdade, seja de pensamentos, de criações,
de ações e de atitudes. A prática em teatro e dança permite experiências novas
e conduz para uma percepção sensível.
Toda arte é expressão, nesse sentido o ensino do Teatro e da Dança
na educação é fundamental, pois através de jogos de imitação, criação
e movimento do corpo, os alunos e alunas são estimulados a várias
possibilidades, entre elas, conhecer a si mesmo, conhecer o outro, conhecer
o que há ao seu redor, etc. Utilizar o teatro e a dança aliado à educação
oportuniza aos alunos/alunas um conhecimento diversificado e lúdico,
existindo um clima de liberdade, que libera as suas potencialidades,
expressando seus sentimentos, emoções, aflições e sensações, pois é um meio
de expressão para o aluno e aluna (REVERBEL, 1989).
As Artes Cênicas são privilegiadas para fomentar a discussão e a
problematização da pluralidade cultural, gênero e diversidade sexual em nossa
sociedade. O não reconhecer o “outro” como ser humano, em direitos, cor,
idade, etnia, sexualidade, classe social, resulta em violência. Não é necessário
concordar com o “outro”, apenas respeitar. Para respeitar é preciso conhecer, e
o conhecimento deste tema também pode (e deve) iniciar na educação escolar.
A educação escolar no Brasil vem sofrendo questionamentos por parte
da sociedade, dos professores/professoras e dos próprios alunos/alunas. Isso
tem diferentes dimensões como a universalização da escolarização, qualidade
da educação, projetos politico-pedagógicos, dinâmica interna das escolas,

Ebook IV SIGESEX 201


entendimentos curriculares, relações com a comunidade, função social da
escola, indisciplina e violência escolares, processos de avaliação no plano
institucional e nacional, formação de professores e professoras entre tantas
outras (CANDAU, 2011). O professor/professora de hoje tende a limitar o
conhecimento, quando na realidade deve conduzir conhecimento sem que
haja limitações. O professor/professora deve conduzir o ser humano sensível
para as diversidades existentes em sala de aula, levando em conta que cada
aluno e aluna têm uma especificidade.
A diversidade sexual é uma “diferença” encontrada em nossa sociedade
que está imbuída de preconceitos e discriminação, sobretudo quando
se trata da homossexualidade. Explicando e fazendo uma crítica Candau
(2011) entende:

A nossa formação histórica está marcada pela eliminação física do “ou-


tro” ou por sua escravização, que também é uma forma violenta de ne-
gação de sua alteridade. Os processos de negação do “outro” também
se dão no plano das representações e no imaginário social (CANDAU,
2011, p. 17).

Segundo Candau (2011) a formação histórica valoriza a cultura


hegemônica e isso tem a ver com a nossa construção sociocultural ao qual
negamos e silenciamos. O Brasil é o país das diferenças e fechamos os olhos
para as mesmas. A autora aborda um novo termo para explicar as diferenças na
sociedade: “O daltonismo cultural tende a não reconhecer as diferenças étnicas,
de gênero, de diversas origens regionais e comunitárias [...]” (CANDAU,
2011, p. 27). A diferença se dá no âmbito de um processo social, desassociado
do natural ou do inevitável. Está intimamente ligada ao conjunto de princípios
de seleção, inclusão ou exclusão.
Por questões culturais, pelo machismo imposto em nossa cultura, por
fortes influências da igreja temos alguns erros relacionados ao tratamento
homossexual no que refere-se à expressão homossexualismo. A própria palavra
“homossexualismo” denota algo ruim. O sufixo “ismo” significa doença, como
tabagismo, alcoolismo, embora não seja doença e a Organização Mundial de
Saúde – OMS - tenha confirmado que ser homossexual é saudável. Ainda existem
pessoas proliferando o “ismo” gerando preconceito e discriminação. O correto é
utilizar o sufixo “dade”, de homossexualidade, já que ele indica algo que é natural,
próprio, como heterossexualidade. “A sexualidade integra a própria condição

202 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


humana. É direito humano fundamental que acompanha a pessoa desde o seu
nascimento, pois decorre de sua própria natureza” (DIAS, 2010, p. 200).
A diversidade sexual, a homossexualidade significa algo novo ou
desconhecido para muitos alunos/alunas e mais, é promovida em tons
pejorativos, ofensivos, preconceituosos e discriminatórios, pelo simples fato
de não respeitar e aceitar que o outro é diferente.
Acredita-se que as Artes Cênicas, o Teatro e a Dança, podem romper
a barreira do preconceito e da discriminação, tratando assim todos com
igualdade. O ser humano deve ter acesso à igualdade, seja ela qual for, e a
“luta” por esse direito começa na escola. A luta pelo direito de igualdade é a
preservação da personalidade do ser humano.
O Estado democrático de direito nos assegura as garantias constitucionais,
que é tratar os iguais com igualdade e os desiguais na mesma proporção de
suas desigualdades, mas ainda assim, não basta às garantias existirem se faz
necessário “lutar” para que sejam alcançadas por todos aqueles que vivem à
margem de uma sociedade que não reconhece as nossas diferenças.
A multiplicidade e o multiculturalismo são naturais ao brasileiro, então
por que apontamos o dedo para aquele que aparenta ser “diferente”? Esquecemos
que o OUTRO também sou eu? É na mistura que surge um indivíduo que não é
branco, indígena, negro, heterossexual, homossexual, bissexual, travesti, transexual,
transgêneros, apenas existe o brasileiro, fruto do hibridismo e de diversas culturas.
Lidar com as diferenças deveria ser natural, pois essa é a nossa identidade brasileira.
A educação está intimamente ligada aos processos culturais. Não há
como fugir das questões culturais da sociedade. Existe uma relação intrínseca
entre educação e cultura. O ensino formal trata das culturas locais, da
diversidade que há nas diversas culturas. A educação não está desassociada da
cultura, cada aluno e aluna em sala de aula tem uma vivência, uma cultura
própria e por intermédio desta diversidade cultural, deste multiculturalismo,
é que se constrói uma relação dialética entre professor/professora e aluno/
aluna. O professor/professora deve perceber que os alunos e alunas são os
cidadãos de hoje, indivíduos que participam de um mundo social do qual a
escola representa apenas uma de suas instâncias. Isso implica respeitar suas
experiências de vida, sua linguagem e seus valores culturais, pois não existem
conhecimentos que sejam melhores ou mais legítimos do que outros.
As Artes Cênicas podem disparar mecanismo de reflexão, pois são áreas
de conhecimento, que produz discursos críticos, e isso ocorre também em
relação à diversidade sexual.

Ebook IV SIGESEX 203


Acreditando no diálogo e na socialização, é inevitável discutirmos a
homossexualidade no contexto escolar, pois urge na contemporaneidade. A
Arte sempre esteve de alguma forma, ligada à educação. Em sentido transversal a
todas as disciplinas, ela pode apresentar possibilidades de soluções, de reflexões
para muitos acontecimentos, eventos que, lamentavelmente, continuam no
nosso cotidiano escolar, dentro da sala de aula.
A pesquisa não tem o intuito de afirmar que há uma verdade, pois ela
não se acaba, e não está fechada, assim como entende a Teoria Crítica.
A intervenção prática na escola funcionará no formato de oficinas
de teatro/dança. Posteriormente o trabalho será voltado com o enfoque na
vida e em uma obra do João do Rio, que manifesta-se em uma frase: “Sou
gordo, negro e homossexual”, que confirmará usar o termo diferenças. Será
feito recorte sobre a biografia do artista João do Rio, com o olhar para alguns
elementos da obra: “O Bebê de Tarlatana rosa”. A escolha de determinados
elementos constitui a partir do foco da proposta de intervenção: a questão da
diversidade sexual.
João do Rio demonstra claramente em suas obras, o que era a diferença,
mas trazendo para o contexto atual, mostra-se que as diferenças ainda são
desconhecidas. Além de ser brasileiro, o recorte em sua obra contribui
para fomentar a literatura brasileira, o teatro brasileiro, a nossa diversidade
enquanto seres humanos.
A pesquisa segue além da escrita, parte para a prática em sala de aula, pois
acreditamos que sentir, experienciar, promover trocas, estratégias de diálogos,
olhar o outro, pode de fato mudar um comportamento de preconceito, ódio e
discriminação, pelo simples fato em não conhecer o outro.

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Ebook IV SIGESEX 205


Em tempos de “Ideologia de Gênero”, o
NEPGS como espaço institucional para
abordar estudos de gênero na escola
In times of “Gender Ideology”, the NEPGS as an
institutional space to address gender studies in
school
Olívia Pereira Tavares1

RESUMO: Esta pesquisa objetivou problematizar como o Núcleo de


Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (NEPGS) do IFRS/campus
Canoas vem atuando como um espaço institucional de promoção de ações
afirmativas e de possibilidades para compreensão acerca das temáticas de
gênero e sexualidade, em tempos de movimentos com slogan de “ideologia de
gênero”.
PALAVRAS-CHAVE: Ações Afirmativas. Ideologia de Gênero.
NEPGS.

ABSTRACT: This research aimed to problematize how the Nucleus of Studies and Research
in Gender and Sexuality (NEPGS) of IFRS/campus Canoas has been acting as an institutional
space to promote affirmative actions and possibilities for understanding about issues of gender
and sexuality in times of movements with slogan of “ideology of gender”.
KEYWORDS: Affirmative Actions. Gender Ideology. NEPGS.

Introdução

A tentativa de devastar qualquer abordagem que envolva as temáticas


de gênero e sexualidade do território escolar está sendo vivenciada no
contexto presente pela tentativa de combate a estes campos. Por meio de
1. Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha Educação, Sexualidade e Relações
de Gênero. Atua como servidora técnica administrativa em educação no Instituto Federal do Rio Grande do Sul
(IFRS)/campus Canoas. End: R. Dra. Maria Zélia Carneiro de Figueiredo, 870A – Canoas/RS. Tel: (51) 3415-
8200. E-mail: olivia.tavares@canoas.ifrs.edu.br.

206 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


movimentos endereçados sob o slogan “ideologia de gênero”, os estudos
de gênero e de sexualidade, que pareciam estar consolidados no campo
educativo, passaram a sofrer ataques e considerados como “doutrinação
ideológica”. Como educadora, vivencio este abalo à educação por estes
movimentos antigênero. E dou-me conta das incertezas, da instabilidade e
da transitoriedade dos espaços aparentemente conquistados pelos campos
dos estudos de gênero e de sexualidade. Espaços que são constantemente
tensionados e necessitam ser reafirmados para manter seus espaços para o
enfrentamento deste contexto. Neste sentido, promover os estudos de gênero
e de sexualidade é visto como um ato político, mas também de rebeldia e
de subversão, pois, ao desenvolver estes estudos, vivenciamos a polêmica, os
tensionamentos, os julgamentos.
Os movimentos com o slogan “ideologia de gênero” parecem
produzir um duplo movimento: ao mesmo tempo em que visam combater
estudos de gênero e de sexualidade, também parecem funcionar como
uma estratégia para colocar os estudos de gênero e de sexualidade em
foco. Na direção deste pensamento, objetivo apresentar algumas ações
realizadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade
(NEPGS) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Sul (IFRS)/campus Canoas, que tem tentado burlar os
ataques aos estudos de gênero e de sexualidade, em busca de efetivação
desta recente política institucional. Além disso, tenho a pretensão de
inspirar educadores no desenvolvimento de atividades que abordem os
temas relacionados a gênero e sexualidade na escola e manter vivos os
debates e discussões sobre a temática, em prol de uma educação para a
diversidade.
Para isso, primeiramente, apresento brevemente a formação dos
NEPGSs, pautado na política de ações afirmativas do IFRS. Em seguida,
abordo os movimentos com o slogan “ideologia de gênero”, a formação
e consolidação destes movimentos antigênero e como esses podem ter
um efeito contrário e colaborar para pôr em evidência o NEPGS do
campus Canoas. Por fim, apresento algumas atividades, com o objetivo de
demonstrar as experiências do núcleo que possibilitaram trabalhar gênero
e sexualidade na escola básica. Trago agora, em linhas gerais, algumas
legislações que fomentaram a institucionalização da política de ações
afirmativas do IFRS para a promoção dos estudos em gênero e sexualidade,
por meio da criação dos NEPGSs.

Ebook IV SIGESEX 207


1- Sobre os NEPGS

As diretrizes nacionais para a educação em direitos humanos, na


Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012 (BRASIL, 2012), estabelece que as
temáticas de gênero e de sexualidade devem ser abordadas em território escolar.
Estas têm por objetivo a minimização e até a superação de preconceitos, o
combate à violência, com o alcance da equidade entre os gêneros.
No sentido de promover uma educação pautada no que está previsto
nesta resolução, o estatuto do IFRS, em seu art. 3º, inc. I, pauta “o compromisso
com a justiça social, equidade, cidadania, ética, preservação do meio ambiente,
transparência e gestão democrática” (BRASIL, 2016, p. 2). Em linhas gerais,
este princípio sinaliza a preocupação da instituição em buscar a justiça social,
equidade e cidadania e, para isso, vai elaborar políticas institucionais, em
busca de efetivar uma educação para a diversidade, que pautem as temáticas de
gênero e de sexualidade.

Ao trabalhar com currículo, gênero e sexualidade é necessário ter em


conta, portanto, que muitas vidas têm dificuldades de serem vividas em
diferentes espaços, inclusive no currículo. Todas as estratégias de poder
vinculadas ao slogan ‘ideologia de gênero’, que buscam intimidar, coibir
e impedir qualquer trabalho na escola com temas gênero e sexualidade,
estão contribuindo exatamente para aumentar o número de vidas não vi-
víveis; aumentar o número de mortes sociais (PARAÍSO, 2018, p. 24).

Marlucy Paraíso me inspira a pensar que vivenciamos um momento na


educação de disputas entre a possibilidade de uma educação para a diversidade,
com um currículo que aborde as temáticas de gênero e de sexualidade na escola
e o combate a estas temáticas por meio de movimentos antigênero. E é neste
contexto que o IFRS aprovou a Resolução nº 22, de 25 de fevereiro de 2014,
a política institucional de ações afirmativas, que estabelece em seu art. 1º a
seguinte premissa:

Fica instituída a Política de Ações Afirmativas do IFRS, orientada para


ações de inclusão nas atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão, para a
promoção do respeito à diversidade socioeconômica, cultural, étnico-
-racial, de gênero e de necessidades específicas, e para a defesa dos direi-
tos humanos (BRASIL, 2014, p. 1).

208 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Este artigo estabelece as ações que devem ser promovidas nos campi do
IFRS para efetivar a Política de Ações Afirmativas. Para isso, foram criados os
núcleos de atuação para possibilitar o desenvolvimento e a institucionalização
desta política: os Núcleos de Assistência a Pessoas com Necessidades Específicas
(NAPNEs), os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs),
os Núcleos de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (NEPGSs) e os
Núcleos de Ações Afirmativas (NAAFs).
A regulamentação dos NEPGSs se fez pela Resolução nº 37, de 20 de junho
de 2017, estabelecendo em seu art. 1º que cada campus vai instituir um núcleo por
meio de uma portaria, com os seus respectivos membros e funcionará como “é um
setor propositivo e consultivo, que estimula e promove ações de ensino, pesquisa
e extensão orientadas à temática da educação para a diversidade de gênero e
sexualidade” (BRASIL, 2017, p. 3). Nesta esteira do que estabelece o regulamento,
os NEPGSs têm como objetivo propor políticas, programas, ações e/ou atividades
que envolvam as temáticas relacionadas a corpo, gênero, sexualidade e diversidade,
assim como estudar e promover a produção científica sobre as temáticas abordadas.
Vale ressaltar que a criação destes núcleos precede sua regulamentação.
Em breve retrospectiva, o NEPGS do campus Canoas iniciou suas atividades
em 2015, sendo o segundo dos campi do IFRS a instituir este núcleo. Em 2016,
o núcleo de Canoas submeteu seu primeiro projeto, vinculado à extensão,
enfocando em cines debate com a participação de servidores e estudantes
voluntários. Já no ano de 2017 o núcleo ampliou seu espaço de atuação na
instituição, por meio de um novo projeto veiculado com a área de extensão,
em que teve seu olhar voltado para a interação entre comunidade acadêmica e
comunidade externa ao campus. Houve um aumento no número de atividades
e maior envolvimento dos alunos e alunas da instituição. Este envolvimento
se deu em um momento de tensionamento dos estudos de gênero. E é
sobre algumas dessas atividades que pretendo abordar, mas antes considero
importante pontuar a historicidade do slogan “ideologia de gênero” e como
este pode estar contribuindo para colocar em destaque o NEPGS Canoas.

2- “Ideologia de gênero” colocando em evidência os estudos de


gênero e de sexualidade

É importante compreender que o slogan “ideologia de gênero” emergiu


em meados da década de 1990 e início dos anos 2000, por meio de um
ativismo religioso reacionário, empreendedor de ações políticas e com apelo

Ebook IV SIGESEX 209


à reafirmação e imposição de valores morais tradicionais. Estes movimentos
passam a condenar a diversidade e colocam o gênero como inimigo da
sociedade (LOWENKRON; MORA, 2017). Pregado por dissidências
religiosas neofundamentalistas católicas, reacionária antifeminista, e que,
mais tarde, seria apropriada por religiões neopentecostais, estes movimentos
não podem ser associados, exclusivamente, como invenção católica, mas
teriam sido “mobilizadas figuras ultraconservadoras de conferências
episcopais de diversos países, movimentos pró-vida, pró-família,
associações de terapias reparativas (de “cura gay”) e think tanks de direita”
(LOWENKRON; MORA, 2017).
Dito de outro modo, as matérias alvo destes movimentos com slogan
“ideologia de gênero” se referem a pautas de direitos sexuais e reprodutivos, que
envolvem discussões como a descriminalização do aborto, reconhecimento de
uniões entre homossexuais ou a inclusão de temas como diversidade, estudos
de gênero e educação sexual nas escolas (MISKOLCI; CAMPANA, 2017).
As forças conservadoras passam, então, a buscar enterrar todo e qualquer
debate promovido em prol da diversidade e se constituem por “uma avalanche
de ideias reacionárias que busca inundar a todos e todas com moralismos,
divisões naturalizadas, identidades fixas, generificações hierárquicas, silêncios
interessados, ódios destruidores, omissões desastrosas, retrocessos inaceitáveis”
(PARAÍSO, 2018, p. 25).
Estes movimentos se lançam sobre a educação, apresentando-a como
ambiente doutrinador e com desejo de corromper a família, a moral e os “bons
costumes”, e passa a ser denunciada como promotora de uma cultura em prol
de minorias sexuais subversivas, antifamília e “abortista”.
O cenário apresentado não parece se mostrar favorável a promoção dos
estudos de gênero e de uma educação para sexualidade no território escolar.
Contudo, esta tentativa de censura e de tirar das pautas educativas estas
questões, parecem promover um duplo movimento: ao mesmo tempo em que
as temáticas tentam ser excluídas da pauta, também parece ter aguçado um
maior interesse dos estudantes por estes campos de estudo. Neste sentido,

De formas muito concretas, temos sido lançados a situações absoluta-


mente imprevisíveis, algumas trágicas, outras fascinantes, quase todas
inexplicáveis. Mais que nunca nos percebemos vulneráveis, sem qual-
quer preparo para enfrentar os choques e os desafios que aparecem por
toda parte (LOURO, 2010, p. 41).

210 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A fala da autora inspira-me a ponderar neste período de incertezas e
movimenta-me a pensar estratégias para sobreviver em meio a tantos ataques
aos estudos de gênero e de sexualidade. No caso do NEPGS Canoas, vimos
o crescimento do interesse e da participação dos estudantes em projetos
vinculados ao núcleo e com as temáticas que estão no bojo de suas discussões.
Assim como o crescimento do número de projetos submetidos e uma maior
articulação com os projetos que aconteciam no campus. O ataque à temática
parece ter proporcionado maior destaque ao NEPGS perante a comunidade
acadêmica, ao mesmo tempo em que assumimos uma postura de nos
colocarmos em evidência.
Este núcleo passa a se configurar como espaço de resistência e permite
que ações, por ele promovidas, fortaleçam os estudos de gênero e de
sexualidade. Na seção seguinte, passo a apresentar três atividades organizadas
no ano de 2017 pelo NEPGS Canoas como possibilidades de realização do
debate de gênero e de sexualidade no âmbito acadêmico e levá-lo para a
comunidade externa.

3- Eventos e atividades promovidas pelo NEPGS que o


colocaram em evidência

Esta seção se destina, então, a apresentar e descrever três atividades


organizadas pelo NEPGS do IFRS/campus Canoas, que são: o “I Encontro de
Diversidade Sexual e de Gênero”; a oficina “Estudar gênero e sexualidade pra
quê?”, realizada na Escola SESI Arthur Aluízio Daudt; e a exposição “Coisa de
Mulher Negra é...”, realizada em parceria com o NEABI.
O I Encontro de Diversidade Sexual e de Gênero2 foi pensado para
divulgar pesquisas acadêmicas em gênero e sexualidade, realizadas por
distintas/os pesquisadoras/es, de diferentes níveis, desde graduandas/os
até doutoras/es e advindos de diferentes instituições de ensino. A atividade
objetivou fazer a integração destas pesquisas acadêmicas com o ensino básico
– médio integrado e proeja – e os cursos superiores, além da participação da
comunidade externa ao campus. Desta forma, as pesquisas realizadas no âmbito
acadêmico passam a ter um viés educativo-formativo para a educação básica.
A primeira edição do encontro aconteceu em dois dias, em 10 e 11 de maio
de 2017, nos turnos da manhã e da tarde e visou contemplar as turmas dos
cursos superiores e os integrados ao ensino médio. Foi um momento de troca
2. Este encontro teve uma segunda edição no ano de 2018 e está sendo organizada sua terceira edição, que está prevista
para acontecer nos dias 29 e 30 de maio de 2019.

Ebook IV SIGESEX 211


de conhecimentos, propiciando o debate de assuntos como o feminicídio, a
contribuição da biologia para as discussões de gênero e de sexualidade, estudos
de gênero e de sexualidade na cultura pop, a invisibilidade lésbica e debates
sobre transfobia.
Para além da possibilidade da troca de aprendizados e a experiência
dos estudantes com o evento, este espaço contribuiu para iniciar a construção
de uma rede de pesquisadores, que participam e auxiliam na construção de
atividades do NEPGS Canoas. A Figura 1 mostra a programação do evento.

Figura 1 – Programação do I Encontro de Diversidade Sexual e de


Gênero

Fonte: NEPGS IFRS/Canoas (2019).

A segunda atividade organizada pelo NEPGS foi a oficina sobre gênero


e sexualidade intitulada “Estudar gênero e sexualidade pra quê”, realizada em
20 de outubro de 2017, na Escola SESI Arthur Aluízio Daudt, localizada na

212 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


cidade de Sapucaia do Sul. Esta atividade foi apresentada em duas sessões,
para turmas do ensino médio. A oficina pretendeu pautar as temáticas que
a escola havia informado ter dificuldade de abordagem, como diferenças
entre sexo biológico, gênero, sexualidade e expressão de gênero. A oficina foi
ministrada pela então coordenadora do Núcleo, Olívia Pereira Tavares, e por
duas estudantes do IFRS participantes do projeto, Milleny Cristina da Silva
Dubiel e Brenda Mensch de Oliveira.
A ideia da participação das estudantes foi tentar a aproximação e a
abordagem para um grupo com a mesma faixa etária delas. Esta estratégia
pareceu um facilitador do debate e propiciou uma maior participação do público
com questionamentos. As estudantes ministrantes utilizaram exemplos de
personalidades midiáticas para a compreensão das identidades de gênero. Dentre
os exemplos pautados, foi citado o caso de Pablo Vittar, um homem cisgênero
e homossexual, que performa uma drag queen, distinguindo-o de uma mulher
transgênero. Outro exemplo foi a personagem transgênero Ivan (interpretada
pela atriz Carol Duarte) da novela “Força do Querer”, da emissora Globo, que na
época estava sendo transmitida, trazendo o assunto para debate.
A terceira atividade a ser apresentada neste trabalho se trata da exposição
“Coisa de Mulher Negra é...”, elaborada e apresentada pela primeira vez no evento
“Fórum Étnico Racial Afirmativo”,3 promovido pelo NEABI dentro do IFRS/
campus Canoas, durante a Semana da Consciência Negra. A principal responsável
pela elaboração da exposição foi à estudante Milleny Cristina da Silva Dubiel. Foi
ela quem realizou a pesquisa e a seleção das mulheres negras, na integração entre
NEABI e NEPGS, devido a sua atuação nos projetos destes dois núcleos, como
voluntária e bolsista, respectivamente. Ainda é importante ressaltar a atuação da
estudante Júlia Pollmann, que elaborou a arte gráfica da exposição.
A Figura 2 apresenta um fragmento da exposição, a qual foi apresentada
pela primeira vez para estudantes do IFRS/campus Canoas e estudantes
convidados da escola Erna Würth, localizada na região de Porto Alegre – RS.
A importância da realização deste trabalho propôs-se mostrar aos estudantes
participantes “a luta pelo espaço da mulher negra através das áreas do
conhecimento e ver que a existência dessas mulheres subvertem a invisibilidade
imposta, trazem a desconstrução de padrões de gênero e étnico-raciais ainda
fixados na sociedade contemporânea” (DUBIEL, TAVARES, TAVARES JR.,
2018, p. 2).
3. A exposição foi apresentada em outros eventos do IFRS, dentre eles destaco o evento da III Workshop de Diversi-
dade e Inclusão no IFRS. Além disso, esta atividade resultou na produção de um artigo científico publicado nos anais
do evento do V CONEDU.

Ebook IV SIGESEX 213


Dentre as mulheres expostas, apenas Viola Davis era conhecida
pela maioria de estudantes participantes, propiciando o debate sobre (in)
visibilidade da mulher negra, tanto nos espaços artísticos quanto nos espaços
acadêmicos. Assim, na articulação das temáticas étnico-raciais e de gênero,
este trabalho trouxe para a cena do debate o empoderamento das mulheres
negras e a importância do feminismo negro nesta conquista, além de ter
gerado publicações de artigos sobre a atividade.

Figura 2 – Imagens da exposição “Coisa de Mulher negra é...”

Fonte: DUBIEL, TAVARES JR., TAVARES (2018).

Vale ainda ressaltar que a elaboração da exposição consistiu em produzir


uma composição entre resumos e ilustrações, conforme mostra a Figura
2. Nelas, são registradas “a história da personalidade e o porquê de ela ser
considerada um modelo de subversão capaz de contrapor a invisibilidade”
(DUBIEL, TAVARES JR., TAVARES, 2018, p. 6). Dentre as 10 mulheres
negras selecionadas, estão presentes personalidades negras, tanto internacionais
(Harriet Tubman, Viola Davis, Angela Davis, Nina Simone e Ellen Sirleaf )
quanto nacionais (Virgínia Bicudo, Deise Nunes, Lélia Gonzalez, Luciana
Leadina e Dandara Zumbi).

3- Possibilidades para seguir promovendo os estudos de gênero


e sexualidade

As três atividades descritas neste artigo inferem estratégias possíveis


para pensar a abordagem de temáticas de gênero e sexualidade na escola, em
tempos de movimentos com o slogan “ideologia de gênero”.

214 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


As atividades realizadas pressupõem um envolvimento institucional e a
constituição de redes de apoio externas à instituição para defender a importância
dos espaços conquistados pelos núcleos. Por meio de integrantes dos núcleos e
acadêmicos que contribuem com suas pesquisas para eventos no IFRS/campus
Canoas; de escolas que demandam a participação do núcleo para promoção de
oficinas e o envolvimento estudantil para pesquisa; e da elaboração de exposições,
com a participação efetiva de estudantes, vimos a (re)existência de um núcleo
que promove e suscita o debate sobre as temáticas no âmbito da escola básica e
possibilita outras formas de pensar o gênero e a sexualidade.

Referências

BRASIL. Resolução CNE/CP 1/2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a


Educação em Direitos Humanos. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de maio de
2012, Seção 1, p. 48. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/
rcp001_12.pdf. Acesso em: 4 maio 2019.

BRASIL. MEC. IFRS. Resolução n. 22, de 25 de fevereiro de 2014. Política de


ações afirmativas do IFRS. [S.l.: s.n.], 2014. Disponível em: https://ifrs.edu.br/
wp-content/uploads/2017/09/resolucao-22-14.pdf. Acesso em: 1 maio 2019.

BRASIL. MEC. IFRS. Estatuto do IFRS. [S.l.: s.n.], 2016. Disponível em:
https://ifrs.edu.br/wp-content/uploads/2017/08/Estatuto-IFRS-Atual.pdf.
Acesso em: 1 maio 2019.

BRASIL. MEC. IFRS. Resolução n. 37, de 20 de junho de 2017. Resolução do


NEPGS. [S.l.: s.n.], 2017. Disponível em https://ifrs.edu.br/wp-content/upl
oads/2017/08/2017617145038539resolucao_037_17_completa.pdf. Acesso
em: 4 maio 2019.

DUBIEL, Milleny; TAVARES JUNIOR, Paulo Roberto Faber; TAVARES, Olívia


Pereira. Coisa de Mulher negra é...: NEPGS e NEABI discutindo a invisibilidade
social imposta. In: Congresso Nacional de Educação, 5., Olinda, 2018. Anais...
Campina Grande: Realize Eventos Científicos & Editora, 2018. Disponível em:
http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/TRABALHO_
EV117_MD1_SA7_ID9214_02092018231658.pdf. Acesso em: 1 maio 2019.

Ebook IV SIGESEX 215


JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria
política reacionária – ou a promoção de direitos humanos se tornou uma “ameaça
a família natural”? In: RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES, Joana
Lira Corpes (org.). Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade.
Rio Grande: Editora da FURG, 2017. p. 25-52.

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, Gênero e sexualidade: o “normal”, o


“diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane;
GOELLNER, Silvana Vilodre (org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate
contemporâneo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

LOWENKRON, Laura; MORA, Cláudia. A gênese de uma categoria. Entrevista


com Rogério Junqueira. Rio de Janeiro: CLAM/IMS/UERJ, 2017. Disponível
em: http://clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=12704. Acesso em: 16
abr. 2019.

MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”:


notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade
e Estado, v. 32, n. 3, p. 725-747, set./dez. 2017.

NEPGS IFRS/Canoas. Facebook: nepgsifrscanoas. Disponível em: https://


www.facebook.com/nepgsifrscanoas/. Acesso em: 16 abr. 2019.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Fazer do caos uma estrela dançarina no currículo:


invenção política com gênero e sexualidade em tempos do slogan “ideologia de
gênero”. In: PARAÍSO, Marlucy Alves; CALDEIRA, Maria Carolina da Silva
(org.). Pesquisas sobre currículos, gêneros e sexualidades. Belo Horizonte: Ed.
Mazza, 2018, p. 23 -52.

216 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


As consequências da falta de igualdade de
gênero no acesso à água potável
The consequences of lack of gender equality in
access to drinking water
Alexsandra Matilde Resende Rosa1
Vera Lúcia de Miranda Guarda 2
Kerley dos Santos Alves3
Mie Hangai Costa 4
Deilton Ribeiro Brasil5

RESUMO: O acesso à água e ao saneamento não estão disponíveis da


mesma forma para homens e mulheres. As mulheres foram consideradas pela
Organização das Nações Unidas (ONU) como as mais afetadas pela escassez
hídrica. Este estudo tem como objetivo demonstrar porque as mulheres são
mais afetadas pela falta de água em ambiente doméstico. O estudo foi realizado
sob a forma de levantamento bibliográfico, nas bases de dados Scielo, PubMed
e Google Acadêmico, utilizando os descritores escassez, gênero e recursos
hídricos. Trabalhos brasileiros publicados no período de 2008 a 2019 foram
selecionados, sendo um total de 27 estudos. Conclui-se que as diferenças de
papéis sociais, atribuídos conforme o gênero influenciam ao acesso à água.
A falta de água aumenta a sobrecarga das mulheres, as expõem a riscos de
saúde e a própria segurança. A ausência de saneamento e ações voltadas para
o tratamento das águas contribui para agravar a situação de vulnerabilidade
1. Mestranda do PPGD – Sustentabilidade socioeconômica ambiental da Universidade Federal de Ouro Preto-MG,
em parceria com a Cátedra UNESCO: água, mulheres e desenvolvimento. Especialista em Direito Ambiental pela
FAVENI. Graduada em Psicologia pela UFSJ. Graduada em Direito pela UNIPAC/Mariana-MG.
71. Pós-doutora em Ciências Farmacêuticas pela Université Joseph Fourier – Grenoble I, França. Doutora em Ciên-
cias Farmacêuticas pela Université de Grenoble I, França. Mestre em Ciências Farmacêuticas pela UFRGS. Professora
titular do Departamento de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto-MG.
72. Doutora em Psicologia pela PUCMinas com estágio Sandwich pela Universitat Autonoma de Barcelona, Es-
panha. Professora adjunta do PPGD – Mestrado em Sustentabilidade socioeconômico ambiental da Universidade
Federal de Ouro Preto-MG.
4. Graduanda em Serviços Sociais pela Universidade Federal de Ouro Preto-MG. Pós-Doutor em Direito pela Uni-
versità degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela UGF-RJ. Professor da Graduação e do PPGD – Mes-
trado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG e das Faculdades Santo Agostinho-
-FASASETE.
5. Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela UGF-RJ. Professor
da Graduação e do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG e das
Faculdades Santo Agostinho-FASASETE.

Ebook IV SIGESEX 217


social em que muitas mulheres se encontram, principalmente, aquelas
localizadas nas periferias urbanas e comunidades rurais.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero, escassez, recursos hídricos

ABSTRACT: Access to water and sanitation is not available in the same way for men
and women. Women were considered by the United Nations (UN) as the most affected by
water scarcity. This study aims to demonstrate why women are most affected by the lack of
water in the domestic environment. The study was carried out in the form of a bibliographic
survey, in the databases Scielo, PubMed and Google Scholar, using the descriptors scarcity,
gender and water resources. Brazilian papers published between 2008 and 2019 were
selected, with a total of 27 studies. It is concluded that differences in social roles, attributed
according to gender, influence access to water. Lack of water increases the burden on women,
exposing them to health risks and safety itself. The lack of sanitation and water treatment
actions contributes to aggravate the situation of social vulnerability in which many women
find themselves, especially those located in urban peripheries and rural communities.
KEYWORDS: Gender, scarcity, water resources

Introdução

Tradicionalmente, tem sido considerado como grupos minoritários


aqueles grupos com características religiosas, étnicas ou linguísticas diferentes
da maior parte da sociedade. Atualmente, esse conceito tem sido ampliado, e
abrange todo grupo que apresenta desvantagem econômica, social, política,
cultural ou jurídica. Dentro dessa concepção, são consideradas minorias:
as mulheres, as pessoas com necessidades especiais, os idosos, entre outras
(CARMO, 2016). A Constituição Federal (CF), também, previu como
dever do Estado garantir a igualdade entre todas as pessoas, sem nenhuma
discriminação (BRASIL, 1988). Assim, é dever do Estado criar medidas para
atender as necessidades dos grupos considerados minoritários. Para isso, é
necessário entender as dificuldades enfrentadas por eles.
O reconhecimento das mulheres como cidadãs foi ampliado após a
Constituição Federal (CF) estabelecer a igualdade de direitos entre homens
e mulheres. A ONU (Organização das Nações Unidas) estabeleceu como
objetivos do desenvolvimento sustentável: garantir o “acesso universal e
igualitário à água” e “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as
mulheres e meninas”, entre outros (ONUBR, 2016).

218 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Em contrapartida, em 2016, a UNICEF (Fundo das Nações Unidas
para a Infância) divulgou estudos que demonstram que mulheres e meninas
utilizam 200 milhões de horas por dia buscando água para abastecimento
doméstico, no mundo. Na África Subsaariana, por exemplo, caminham em
média 33 minutos, por dia, em áreas rurais, e 25 minutos em áreas urbanas, para
coletar água. Na Ásia, caminham por 21 minutos e 19 minutos, em áreas rurais
e urbanas, respetivamente (ONUBR, 2016). Essa também, é uma realidade
no Brasil, várias pesquisas brasileiras mostram que as mulheres gastam muito
tempo transportando água para uso doméstico no país (ORRICO, 2003;
MALVEZZI et al., 2010; HORA et al., 2012; SILVA, 2017).
A coleta de água, em locais que apresentam escassez desse recurso,
geralmente, se torna uma tarefa feminina. Apesar da crescente participação
da mulher no mercado do trabalho, em muitos lugares, elas, ainda, são as
principais responsáveis por realizar as atividades, domésticas e de cuidado com
os filhos e, para essas tarefas a água é essencial.
Muitas pesquisas (GARCIA, 2007; NARCISO et al 2010;
STEVENSON et al., 2012; CORTE, 2015; CASTRO & SALOMÃO,
2018) demonstraram que por assumirem o papel de cuidar da família e realizar
as atividades domésticas, as mulheres são as mais prejudicadas com a falta de
água. Em locais onde há escassez de água são as elas que assumem o papel do
abastecimento doméstico, na gestão e na proteção da água. Quando falta água
em casa, elas passam horas buscando água para beber, cozinhar, lavar a roupa,
dar banho nos filhos, limpar a casa, etc. (CORTE, 2015).
A incorporação de uma perspectiva de gênero nas políticas públicas
sobre água e saneamento é necessária de acordo com Soares (2009).
Inicialmente, é preciso medir a dimensão do problema, realizando pesquisas
sobre a distribuição de gênero em relação ao acesso de serviços de água e
saneamento. E nesse mesmo ano, os estudos de Barban (2009) afirmando
que dados desagregados sobre gênero são essenciais para o planejamento e a
tomada de decisão em relação a gênero e ao fortalecimento das mulheres no
setor da água ratificaram os estudos de Soares (2009).
Em 2001, na Alemanha, ocorreu a Conferência Internacional sobre
Água Doce, que determinou a importância que os dados referentes à água
sejam desagregados por sexo, para que possibilite a criação de políticas
de água e sistemas de gestão que levem em conta necessidades específicas
de ambos os sexos. Até hoje, no Brasil, não existem informações sobre a
relação entre água e gênero nas bases de dados do governo e do Instituto

Ebook IV SIGESEX 219


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que dificulta estudos sobre
o assunto.
Vários documentos criados em reuniões internacionais (Tratado
Internacional Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, Declaração de Dublin, Agenda
21, Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação,
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre
a Mulher, Declaração e Programa de Ação da Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Social ente outros) enfatizam a importância feminina na
gestão da água.
Na legislação brasileira, ainda não há nada que articule água e gênero
especificamente, mas a Lei n° 9.433 de 1997, que institui a Política Nacional
de Recursos Hídricos estimula a participação de todos os indivíduos na gestão
da água. Essa lei tem como fundamento uma visão participativa e democrática
para o uso sustentável das águas e objetiva garantir o direito ao acesso aos
recursos hídricos a todos (BRASIL, 1997).
Este estudo tem como objetivo demonstrar porque as mulheres são mais
afetadas pela falta de água em ambiente doméstico. O estudo foi realizado sob
a forma de levantamento bibliográfico, nas bases de dados Scielo, PubMed
e Google Acadêmico, utilizando os descritores escassez, gênero e recursos
hídricos. Trabalhos brasileiros publicados no período de 2008 a 2019 foram
selecionados, perfazendo um total de 27 estudos.

1- A escassez hídrica e as mulheres

No contexto da gestão da água, papéis relativos ao gênero determinam


como homens e mulheres são afetados pela forma com que os recursos hídricos
são desenvolvidos e geridos. Vários autores (GARCIA, 2007; NARCISO et al
2010; STEVENSON et al., 2012; CASTRO & SALOMÃO, 2018) afirmam
que as mulheres são as principais prejudicadas com a má gestão da água,
devido, basicamente, aos papéis sociais que assumem por atividades que lhes
são atribuídas por razão do seu gênero.
Tradicionalmente, os homens são considerados os responsáveis pelo
sustento financeiro das famílias e pela administração da propriedade e as
mulheres recebem o papel materno, de cuidado com a família e com a casa. As
atividades relacionadas à água estão dentro da esfera de trabalho das mulheres,
considerando o âmbito doméstico.

220 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A mulher é quem controla o uso da água nas casas, para beber, preparação
de alimentos e na higiene pessoal da família (STEVENSON et al., 2012).
De acordo com Garcia (2007), a escassez de água, sobretudo no meio rural,
impacta muito mais mulheres e meninas, considerando que na maior parte das
culturas, a divisão sexual do trabalho confere-lhes as tarefas de buscar, carregar,
manipular e armazenar a água.
Razzolini & Günther (2008) afirmaram que o transporte manual de
água pode ser associado ao gênero, pois a responsabilidade pelo provimento de
água no domicílio é considerada atribuição feminina, compartilhada apenas
com as crianças. E essa atividade se caracteriza por ser recorrente nas mais
variadas culturas (SOARES, 2009). Seja em regiões africanas onde as mulheres
gastam até mais de cinco horas diária em busca de água para consumo. Ou
em comunidades rurais indianas, aonde as mulheres chegam a disputar água
com animais. Essa realidade, também, pode ser observada no Brasil em regiões
semiáridas do Nordeste e demais regiões (HORA et al., 2012).
E dez anos após, Castro & Salomão (2018) ainda afirmam que a
falta de acesso à água afeta a saúde, sustento, segurança e qualidade de vida,
particularmente das mulheres e meninas.
Malvezzi et al (2010) contam que ao realizar uma pesquisa no sertão
brasileiro ficaram chocados ao ver multidões pelas estradas, basicamente
mulheres e crianças, carregando uma lata de “lama” na cabeça para saciar a
sede dos membros da família. A caminhada das mulheres em busca da água,
também é reflexão nos estudos de Campos (2011), seus estudos revelam que
elas chegam a andar de 20 a 30 km, diariamente, para ter acesso ao recurso.
Suas observações mostram que onde há escassez de água são as mulheres que
desempenham o papel de abastecimento doméstico, proteção e gestão da água.
Estudos de Orrico (2003) relatam que nas comunidades do semi-árido
baiano (Vila Cardoso, Lajinha, Jacunã, Piaus, Taquari e Gameleira), o tempo
médio gasto por mulheres para a obtenção de água é de 1,3 horas, com o
máximo de 2 horas e o mínimo de 42 minutos, por dia. E alguns anos depois,
trabalhos de Silva (2017) afirmam que ainda hoje, no nordeste brasileiro, na
época de seca, as mulheres percorrem grandes distâncias para ter acesso a água,
carregando até 18 litros de água em baldes na cabeça, ou então, gastam tempo
enfrentando filas para conseguir água no caminhão pipa.
Melo (2005) cita, também, os casos da mulher agricultora, que possui
uma íntima ligação com a água, sendo responsável no cuidado com essa para o
consumo da família, agropecuária e trato de animais de pequeno porte. Desde

Ebook IV SIGESEX 221


bem novas, por volta dos sete anos de idade, essas mulheres ingressam na
atividade agrícola, realizando-a até a velhice. Esse fato é confirmado por Sales
(2007), quando afirma que no semiárido, é possível observar muitas meninas
entre oito e doze anos carregando água, alimentando animais e cuidando da
casa e dos irmãos.
Vários estudos relatam que as mulheres utilizam muito tempo com o
transporte de água, reduzindo o tempo que poderia ser utilizado em atividades
geradoras de renda, no cuidado da saúde dos filhos e em atividades educacionais
(SOARES, 2009; BARBOSA, 2013; BROWN et al., 2016; CORDEIRO,
2016). Além do tempo que gastam andando para buscar a água, ainda precisa
despender seu tempo em filas para ter acesso ao recurso. Acordar cedo para
buscar água diminui as horas de sono e descanso de muitas mulheres, que não
são compensadas durante o dia, devido às diversas atribuições que possuem
(SOARES, 2009).
As mulheres e as crianças sacrificam seu tempo e seu acesso à educação
para cumprir essa tarefa (BARBOSA, 2013). A pesada carga diária para
a obtenção de água afeta o bem-estar e faz com que muitas meninas não
possam frequentar a escola. A UNICEF (1998) já havia divulgado dados em
que informa que, na época, 50 milhões de meninas estavam fora da escola,
ocupadas na coleta de água e lenha (GARCIA, 2007).
A falta de água modifica a rotina das mulheres, pois elas precisam dedicar
muito tempo para buscar o recurso, comprometendo todas as suas atividades
e afetando sua dieta, rotina de trabalho, renda (RIBEIRO et al 2016). Há
casos em elas gastam mais de uma hora por dia nessa atividade, tempo que
poderiam estar realizando outras atividades sejam escolares, geradoras de
renda, cuidando da saúde (BROWN et al., 2016).
Não apenas a mulher do semiárido possui estreita relação com a água.
Em todos os lares, as atividades domésticas são necessárias, e na maioria deles,
ainda continua sendo competência das mulheres (SOARES, 2009). O acesso
à agua reorganiza as relações familiares, garante a segurança alimentar, libera
as mulheres e crianças para outras atividades.
A divisão sexual do trabalho leva a visão das mulheres como gestoras
dos recursos naturais. Elas são responsáveis pelo manejo, gestão e conservação
desse recurso, utilizando-o em seu cotidiano para atividades produtivas
e para o abastecimento doméstico. Em numerosas comunidades elas são
essencialmente, as administradoras da água.
Em situação de escassez, quando há falta de abastecimento de água em

222 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


casa, o trabalho da mulher aumenta. Ela precisa além de administrar a água
dentro da residência, transporta-la e também, lidar com as doenças devidas
à água de má qualidade. De acordo com a Organização Mundial para Saúde
(OMS), 80% das doenças são de origem hídrica e no Brasil cerca de 22,6
milhões de pessoas não têm acesso à água potável (ONUBR, 2016).
Conforme Hernández (2010), as mulheres dos países do terceiro
mundo, são mais afetadas com a escassez de recursos, porque não tem condições
de comprar os bens e serviços disponibilizados pelo sistema de produção. A
ausência de saneamento e ações voltadas para o tratamento das águas contribui
para agravar a situação de vulnerabilidade social em que muitas mulheres
se encontram, principalmente, aquelas localizadas nas periferias urbanas,
comunidades rurais ou assentamentos precários (HORA et al, 2012).
As mulheres pobres, de grupos minoritários e setores vulneráveis
sofrem os maiores impactos da escassez hídrica (BRASIL, 2014). Isso leva a
desigualdade até entre as próprias mulheres. Nesse sentido, para Freire (2008)
“há relações de poder no interior de cada gênero: de mulheres sobre mulheres,
de homens sobre homens” (SILVEIRA, 2012, p. 06).
Orrico (2003) relatou que, durante o seu estudo 95,9% das mulheres,
queixaram-se de dores nas costas seguidas de outros agravos, como diarreias
(70,9%), dores de barriga (44,9%) e doenças de pele (22,1%). Esses dados
ilustram que a escassez hídrica leva as mulheres a apresentar vários problemas
de saúde. Elas realizam o transporte de recipientes de água na cabeça, o que
se inicia, geralmente, na infância, quando a ossatura das meninas não está
devidamente formada, causando graves problemas de coluna (RAZZOLINI
& GÜNTHER, 2008). Conforme a ONUBR (2016), mesmo quando a água
é captada de uma fonte segura, o transporte e o armazenamento aumenta
consideravelmente o risco de contaminação dela. O que pode levar ao agravo
da saúde, com diarreias com consequente desidratação de crianças e idosos,
colaborando para o aumento do número de óbitos.
Além de tudo, as mulheres se tornam vulneráveis à violência e aos
abusos sexuais, que podem acontecer durante o percurso para a coleta de água
(BROWN et al., 2016).
As mulheres sentem mais dificuldades também quando falta saneamento
adequado. A falta de privacidade resulta em grande stress psicossocial nas
mulheres (WUTICH, 2009; STEVENSON et al., 2012; HIRVE et al., 2015;
HULLAND et al., 2015). O fato de não ter banheiro em casa e a necessidade de
fazer suas necessidades fora do domicílio gera medo, insegurança, desconforto

Ebook IV SIGESEX 223


e vergonha, além de outros problemas de saúde, como infecção urinária, por
segurar a necessidade e desidratação por limitar a quantidade de água ingerida.
A água de má qualidade, também, aumenta a sobrecarga das mulheres,
que geralmente, são as responsáveis por cuidar dos doentes, cuja moléstia
advém da ingestão de águas contaminadas e relacionadas a escassez. (LISBOA
& MANFRINI, 2005). Stevenson et al., (2012) ressaltou que um dos fatores
que causam estresse nas mulheres nas áreas rurais são experiências, onde são
obrigadas a economizar água para as atividades domésticas.
No sertão, as mulheres mesmo não sendo consideradas como provedoras da
família assumem um papel importante na ajuda financeira de suas casas. Nessa região
são as mulheres que mais percebem os problemas da escassez hídrica. Muitas vezes no
semiárido, é comum a migração sazonal dos homens em época de seca. Devido a essa
migração masculina, muitas sertanejas passam a se tornar chefe das famílias.
Quando assumem a chefia das famílias possibilitam que os maridos
viajem durante grandes estiagens. Muitas vezes, essas mulheres ficam conhecidas
como “viúvas da seca”, pois, algumas vezes, seus maridos formam outra família e
não voltam (BRANCO, 2000; GALINDO, 2008). Assim, isso faz com que as
mulheres possam ser consideradas relevantes ao lidarem com a seca, já que, em
geral, não migram em busca de um emprego remunerado (MELO, 2005).
As atividades públicas vêm ganhando espaço no universo feminino
no sertão. Elas têm consciência dos problemas socioeconômicos e políticos
gerados pela seca. Ao buscarem a mitigação dos efeitos da seca, ingressam em
espaços públicos, participam de movimentos, associações e outras entidades, e
incorporam novas relações de poder e saber (MELO, 2005).
Assim, a mulher tem necessidades específicas geradas pela falta de
água, e elas são as mais indicadas para falar e decidir o que pode ser feito
para melhorar essas situações. As mulheres e os homens possuem diferentes
percepções, necessidades e realidades. Ambos os sexos sofrem com os impactos
da falta de água, mas as mulheres sentem de forma maior quanto aos impactos
da atividade de captação de água e saneamento fora do domicílio.

Conclusão

As mulheres enfrentam os problemas da falta de água de forma mais


intensa do que os homens. Em muitos países, as mulheres executam sozinhas
as atividades domésticas, sendo responsáveis pela gestão do uso doméstico da

224 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


água e, por isso são as mais afetadas pela escassez de água em âmbito doméstico.
Apesar das mudanças no pensamento da sociedade e nas leis, em muitos lares a
mulher ainda é educada para realizar as atividades domésticas.
A água de má qualidade aumenta a sobrecarga das mulheres. O tempo
em que as mulheres estão transportando água impede que elas se dediquem à
outras atividades seja cultural, de lazer, produção de renda ou estudo. A falta
de água em banheiros expõe a mulheres a riscos de saúde e a própria segurança.
Garantir o direito das mulheres ao acesso à água doce leva a um impacto
de forma direta na comunidade. A água em quantidade suficiente está ligada a
garantia da saúde da família, o alcance do bem-estar, a diminuição dos conflitos
sociais etc. A disponibilidade de água garante melhor saúde às mulheres, além
de mais tempo disponível para realização de outras atividades, melhorando
sua qualidade de vida.
Uma redefinição dos valores da mulher é necessária, contrária aos
valores machistas e aos modelos tradicionais. O peso da quantidade de tarefas
atribuídas às mulheres, por estarem presentes tanto no mercado de trabalho
externo como no doméstico, demanda uma divisão sexual do trabalho de
forma mais equilibrada.
A análise de gênero é essencial na criação de projetos mais eficazes e
benéficos para as comunidades. É necessário que os projetos envolvam as
mulheres, divulgando seus conhecimentos, valorizando seu papel e experiência
e mostrando a importância do seu trabalho na manutenção dos membros da
família e em relação ao meio ambiente.
É preciso adotar medidas que possibilitem uma maior participação
das mulheres e também, que possibilite que elas consigam expressar de
forma profunda seus problemas. Possuir uma fonte de renda, por exemplo,
garante a independência financeira e possibilita mais autonomia e decisão às
mulheres. Assim, é fundamental a valorização de experiências que incentivem
a participação das mulheres como sujeitos de direito. A cultura da participação
deve ser inserida nas comunidades, permitindo novos hábitos e novas escolhas.

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Ebook IV SIGESEX 229


A escola e a pedagogia do armário: rondam
corpos, decepam línguas, prendem almas....
The school and the pedagogy of the wardrobe:
roam bodies, cut off languages, trap souls....
Eduardo Mariano da Silva1
Angela Maria Guida2

RESUMO: Este artigo tem por objetivo problematizar a questão


da sexualidade, mais especificamente a temática LGBTQI+ na agenda de
educação das escolas públicas brasileiras, em um cenário no qual a sexualidade
ainda parece se configurar como um problema de grandes proporções e de
consequências nefastas, sobretudo, para quem não se encaixa no padrão
tido como normal: homem/mulher. Além disso, buscamos refletir acerca
do conjunto de normas, valores e crenças que são mobilizadas no contexto
escolar, tal como, elementos estruturantes, a saber: racismo, classismo, sexismo,
heterossexismo, homofobia, dentre outros que estão marcados pelo processo
de colonização do ser, do poder e do saber, o que deixou feridas que ainda
continuam abertas. Para tanto, o desenvolvimento da discussão dar-se-á com
base na abordagem bibliográfica e nos estudos desenvolvidos pelo coletivo
Modernidade/Colonialidade da América-Latina.
PALAVRAS-CHAVE: Colonialidade; Educação; LGBTQI+.

ABSTRACT: This article aims to problematize the issue of sexuality, more specifically
the theme LGBTQI + in the education agenda of public Brazilian schools, in a scenario in
which sexuality still seems to be set up as a problem of large proportions and of harmful
consequences, especially for those who do not fit the standard taken as normal: Man/woman.
In addition, we seek to reflect on the set of norms, values and beliefs that are mobilized in
the school context, such as racism, classism, sexism, heterosexism, homophobia, among
others that are marked by the process of colonization of the being, of Power and knowledge,
1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul (PPGEDUMAT/UFMS), Campo Grande, Brasil. E-mail:eduardomariano92@hotmail.com. Bolsista Capes.
2. Pós-Doutora em Estudos Literários, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGEDUMAT/UFMS), Campo Grande, Brasil. E-mail: angelaguida.
ufms@gmail.com. Profa. Orientadora.

230 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


so that it left wounds that still remain open. Therefore, the development of the discussion
will be based on the bibliographic approach and in the studies developed by the collective
modernity/coloniality of Latin America.
KEYWORDS: Coloniality; Educatión; LGBTQIA+.

Introdução

Pesquisas recentes apontam um cenário nada alentador em relação à


comunidade LGBTQIA+ no Brasil. Em 2015, uma pesquisa da Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
(ABGLT3) apontou que a escola tem sido um ambiente hostil a essa comunidade,
marcada pela insegurança, assédio moral e sexual, violência física e verbal. Nesse
sentido, discursos, imagens, gestos e enunciados presentes no cotidiano escolar
revelam a produção de identidades e aprofundam o fomento de diferenças.
No âmbito institucional, sofrer violências deste teor, direcionadas a esse
público pode acarretar uma série de problemas de saúde, comportamentais e
de socialização. Além da escola ter papel fundamental na formação identitária
e que envolve a subjetividade de estudantes, ela possui um currículo formal e
um currículo oculto. O currículo em si é um artefato político e na interação
de um conjunto de práticas pedagógicas e saberes se aloca o que denominamos
“pedagogia do armário”.
Diante disso, nos propomos problematizar a questão da sexualidade,
mais especificamente a temática LGBTQIA+ na agenda de educação de
escolas públicas brasileiras, em um cenário no qual a sexualidade ainda parece
se configurar como um problema de grandes proporções e de consequências
cruentas, sobretudo para quem não se encaixa em uma normalidade, isto é,
heteronormatividade.
A partir disso, buscamos refletir sobre a colonialidade no ambiente escolar,
tendo a ferida colonial caracterizadora da opressão aberta e constantemente
revisitada por meio das relações de poder que, como efeito, tendem a conduzir
para discriminação, homofobia, racismo, classismo, sexismo, heterossexismo.
Em vista do impacto causado aos indivíduos, seus efeitos classificam corpos
e identidades em armários, forçando alguns a entrarem em gavetas apertadas
e outros em um fundo falso de modo que se veem obrigados a ocultar sua
existência, em nome de um bom exemplo para os demais, ou seja, se o aluno se
3. http://static.congressoemfoco.uol.com.br/2016/08/IAE-Brasil-Web-3-1.pdf.

Ebook IV SIGESEX 231


esconde em sua identidade de gênero, ele corresponde ao desejo de uma escola
heteronormativa e passa “bons” ensinamentos a colegas.
O coletivo Colonialidade/Modernidade, em especial as reflexões de
María Lugones, destaca a importância de notar gênero como uma das formas
de opressão colonial, tal como sexo, seus recursos e produtos. Por isso, faz
necessário que articule uma esfera epistêmica, política e de resistência ao
sistema colonial de poder com o intuito de questionar padrões eurocêntricos.

1- A opressão de um discurso colonialista

Ao pensarmos no perfil de escola, devemos estar cientes que estamos


sujeitos a discutir e refletir concepções teóricas e práticas que a atravessam como,
por exemplo, o currículo, as políticas públicas, as práticas docentes, dentre
outras. Com isso, ao considerar a escola uma instituição moderna e ao criticar a
esfera escolar é de antemão criticar a modernidade, pois, a escola, assim como a
modernidade assegura o funcionamento e a manutenção da sociedade capitalista.
De acordo com Mignolo (2017), a modernidade aloca em seu lado
mais escuro e obscuro, a colonialidade. Assim, nos apropriamos dos estudos
do coletivo Modernidade/Colonialidade que apontam para ações de pensar e
repensar a América Latina em suas várias facetas vislumbrando em tais estudos
uma possibilidade de pensar questões ligadas ao gênero e a racialização.
Acreditando que a escola, ao contrário do que deveria ser, reproduz efeitos
de colonialidade do poder e do saber, nos damos conta de que escola também
esconde em seu currículo oculto, que é a colonialidade, presente em signos,
significados, códigos, nos discursos e na pretensão de uma linguagem universal,
que atenda a um sujeito universal e padrão.
Além disso, o ambiente educacional moderno apresenta uma relação
substancial de fator econômico e político, esferas que operam a colonialidade
do poder. O termo foi cunhado por Aníbal Qüijano, de modo a caracterizar o
alicerce da administração colonial inferidas por culturas coloniais amparadas
em uma matriz colonial/moderna capitalista.
Ao enunciarmos a presença de resquícios eficientes do colonialismo,
instituições escolares são fortes aliadas para a construção de identidades
hegemônicas. Por isso, talvez, nem seja construção e sim um fuzilamento
de identidades não normativas que após mutiladas são trancafiadas nas
gavetas de sua “pedagogia do armário”. Nesse âmbito, cabe mencionar
que a indissociabilidade de pesquisador e objeto/tema mencionado neste

232 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


artigo entristece e elucida as razões de seus traumas, angústias, bloqueios e
silenciamentos mobilizados com a experiência na esfera educacional. Porém,
buscamos um relativo afastamento para ter um leque panorâmico que permite
melhor visualizar tais enquadramentos de desumanização e marginalização de
corpos e identidades.
A colonialidade é uma representação desses apagamentos identitários,
ela ronda os corpos, decepa línguas e prende almas. De acordo com o coletivo
ela é estabelecida em três bases principais, a colonialidade do poder, do saber e
do ser, às quais María Lugones acrescenta a colonialidade de gênero. Ademais,
raça, gênero e trabalho foram as três linhas principais de classificação que
constituíram a formação do capitalismo mundial colonial/moderno no século
XVI (Qüijano, 2000).
Para María Lugones, existe um sistema moderno e colonial eurocêntrico
de gênero que ignora as categorias de raça e classe em sua constituição e
compreende “a hierarquia dicotômica ente o humano e o não-humano como
a dicotomia central da modernidade colonial” (LUGONES, 2014, p. 936).
Nesse sentido, o homem branco é humano e detém a razão e inteligência, a
mulher branca é mera reprodutora da dominação colonial e da mentalidade
dominante, e bestializados são LGBTQIA+, negros e indígenas, em termos
coloniais, primitivos e sodomitas. É importante destacar que mulheres
indígenas ou negras não são representadas na categoria universal de “mulher”,
tampouco, em categorias de indígena ou negro.
A forma homogênea com a qual tratamos o conhecimento e a educação
mostra a afirmação e validação de um regime de produção de saberes que
legitima esta lógica e a faz funcionar, que impera sobre uma imagem de vida,
de comunidade, de ensino e aprendizagem e de ser também colonizadas.
Nesse sentido, assume a proposta de cristalizar o momento histórico da
colonização da América Latina e pressupõe numa imagem de educação a ideia
de desenvolvimento que impõe a hierarquização e o servilismo aos envolvidos
nesse processo.

2- A colonialidade e sua estreita relação com o armário

Discriminação, preconceito e violência são ações decorrentes das


relações hierárquicas de poder amparadas pela colonialidade. Nesse sentido,
podemos considerar que são situações que atingem a homossexuais femininos
e masculinos, com maior intensidade a mulheres trans e atenua-se quando

Ebook IV SIGESEX 233


apresentada a camada interseccional negras/negros e indígenas no Brasil.
A pedagogia do armário explicita por meio do currículo hegemônico
atitudes como anteriormente mencionadas frente à diferença. O que estamos
entendendo por diferença? Segundo Tomaz Tadeu da Silva, “a identidade e
diferença estão em uma relação de estreita dependência” (2014, p.74), com
isso, a diferença não existiria se considerássemos a existência de um mundo
mais igualitário. Em outras palavras, enquanto a identidade é aquilo que
eu sou, a diferença é aquilo que o outro é, comumente nos tomamos como
parâmetro, porém, buscamos convergir a nossa identidade a uma identidade
hegemônica, e apesar de soar natural esse efeito é a constatação da colonialidade
vigorosamente operante.
É importante notar que a colonialidade consegue habitar em contextos
socias, no qual inclui a escola, por meio de estruturas, tais como, racismo,
classismo, sexismo, heterossexismo, homofobia, dentre outros que estão
marcados pelo processo de colonização do ser, do poder, do saber e do
gênero. São estruturas que corroboram com o processo de desumanização,
de estigmatização dos corpos e das identidades que exercem a exclusão, que
reforça a ideia de universalidade e normalidade, face a isto, são essas estruturas e
processos que mobilizam e expõem violentamente o/a estudante a “pedagogia
do armário”.
Destarte, a “pedagogia do armário” não é somente percebida nas práticas
pedagógicas, mas também a arquitetura da escola, pois, ela não percebe ou finge
que não percebe as atrocidades e o assédio contínuo a esses corpos e identidades.
Comumente, escolas apresentam aos estudantes banheiros e filas dicotômicas,
atividades esportivas divididas em menino e menina, dentre outras. É evidente
compreender que o currículo oculto transcende a sala de aula, a estrutura
arquitetônica nega corpos e identidades, tais como, trans, intersexuais e pessoas
que não se encaixam na classificação dicotômica de gênero.

Apesar de que na modernidade eurocêntrica capitalista, somos todos/


as racializados e atribuídos a um gênero, não todos/as somos domina-
dos ou vitimados por esse processo. O processo é binário dicotômico e
hierárquico. (LUGONES, 2008, p. 82, tradução do autor).

A lei que rege o currículo escolar e o ambiente escolar, em geral, é a


heteronormativa. A escola, diversas vezes amparada pelo Estado- nação,
secretarias de governo e até mesmo pela religião, compactua, cultiva e

234 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


promove a homofobia e a heteronormatividade compulsória repercutindo o
que se produz em outros contextos sociais contribuindo para a construção,
aprofundamento e enraizamento de concepções hegemônicas. Ademais, as
concepções hegemônicas são frutos de um patriarcado expelido durante a
invasão colonial, utilizam do racismo, classismo, heterossexismo e homofobia
como ferramentas de alienação identitária e epistemológica, é uma lógica que
subalterniza e anestesia o pensamento.
Os mecanismos de estruturação são dispositivos que produzem identidades
em função de um regime de verdade universal, muitas vezes tido como legítimo
por cientistas e religiosos. As segregações, vigilâncias do sexo e gênero para que
não caracterizem como práticas sodomitas, a desumanização de negras/negros e
indígenas são fundamentadas em função da hierárquica manutenção do poder
expelida pela ordem da matriz moderna/colonial capitalista.
Diante disso, é compreensível o naturalizar da violência, pois para
garantir a discriminação e práticas homofóbicas, tal como, a pedagogia
do armário, silencia essas ações e tenta apagar as evidências dessa opressão.
Os resultados coadunam para efeitos nefastos, como o sofrimento pessoal
motivado pela não aceitação social da diferença inerente ao indivíduo e até
mesmo repercutindo no fracasso escolar e, por conseguinte, ao êxodo de um
lugar que deveria se abrir às possibilidades de se pensar e viver as diferenças.
Cabe ressaltar que o professor não é agente culpado, não estamos
culpabilizando nenhum profissional da educação, pois é sabido também que a
família do estudante habita o mesmo espaço e é imbuída desta responsabilidade,
apenas estamos denunciando a presença da colonialidade neste contexto que
mostra a não neutralidade ideológica, e que na maioria das vezes o Estado a
reconhece e internaliza para a manutenção e permanência do/no poder.
Para elucidá-los da dimensão do que foi abordado, temos resultados de
uma pesquisa realizada em 2015 pela ABGLT sobre o cenário educacional do
Brasil. Primeiramente, apresentamos o relato de uma/um estudante.

Certa vez ao sair da escola com a minha amiga (lésbica), dois garotos da
nossa sala nos perseguiram até quase chegarmos à minha casa (moro a 5
km da escola). Enquanto corríamos com medo, os dois gritavam coisas
como: aberrações, filhos do capeta, abominação e coisas do tipo. Depois
do ocorrido fui para a escola por mais uma semana, e depois desisti de
estudar aquele ano (2015), pois não me sentia seguro. (depoimento de
estudante de 16 anos, estado do Mato Grosso). (ABGLT, 2016, p. 27).

Ebook IV SIGESEX 235


Em segundo momento um apontamento do relatório sobre o cenário
educacional que

[...] retrata níveis elevados e alarmantes de agressões verbais e físicas,


além de violência física; ao mesmo tempo expõe níveis baixos de res-
postas nas famílias e nas instituições educacionais que fazem com que
tais ambientes deixem de ser seguros para muitos estudantes LGBT, re-
sultando em baixo desempenho, faltas e desistências, além de depressão
e o sentimento de não pertencer a estas instituições por vezes hostis.
(ABGLT, 2016, p. 13).

Isso denuncia antes de qualquer coisa a intenção e a omissão do Estado


em amenizar a desigualdade e a violência. Além disso, vemos que o/a estudante
tem sua orientação sexual vigiada e se sente monitorado pelos educadores,
gestores e os próprios colegas de sala. Não podemos esquecer a intensidade
da colonialidade quando pensamos a vigilância anterior a uma pessoa negra
e/ou indígena, se não promiscuamente estereotipadas como primitivos ou
bandidos e vândalos.
É importante reforçar que corpos e identidades que não correspondem a
padrões de normalidade são alvos de termos pejorativos. Ademais, as vozes, os
toques, os risos, cochichos e a interpelação destas identidades se assentam no
recreio da escola, na sala de aula, na fila para o lanche, no habitar este espaço,
porém, estes atos ultrapassam o âmbito escolar e nem sempre advêm dele,
pois, querem prender estes corpos e identidades no meio da rua, na intriga
familiar, na confissão religiosa, no silenciamento: “Bicha”, “Viado”, “Baitola”,
“é lésbica porque não conheceu o cara certo ainda”, “é falta de Deus”, “Qual
você gosta mais: de homem ou mulher?”. Audacioso, talvez, seria dizer, que ao
considerar LGBTQIA+ indivíduos marginalizados, são identidades e corpos
que preambulam na exterioridade da fronteira.

Considerações Finais

A escola é tida como um cenário alvo de intenções ideológicas do


governo e um cenário em que a colonialidade transita livremente porque o
Estado vê seus mecanismos de subalternização como colaborador de seus
interesses. De antemão, a pedagogia do armário camufla e perpetua os estragos

236 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


da colonialidade para que seus dispositivos operem nas esferas do poder, do
ser, do saber e do gênero sejam naturalizados.
Contudo, a escola é um espaço onde devemos iniciar o tratamento de
questões como as mencionadas neste artigo, pois, além de ser um espaço de
identidades e diferenças múltiplas, devemos potencializar debates com vista a
um pensamento que rompa a lógica colonial, por meio do longo processo de
ensino-aprendizagem promovendo assim um ambiente em que as pessoas de
diferentes raças e condições sociais possam conviver com o maior respeito e
equidade.
A colonialidade busca colocar LGBTQIA+ dentro de uma bolha
passível de um controle, a matriz colonial/moderna capitalista busca manter
o domínio sobre as diferenças, por isso, o armário agride e fere as identidades
e os corpos, porque estas identidades por si só ultrapassam os limites da
margem e quebram a hegemonia imposta pela colonialidade. Por fim, com
a Constituição Federal de 1988 versando sobre universalidade dos direitos
sociais, sem discriminação de qualquer espécie, apresentando a diversidade
como valor social, questiono, como a escola poderá oportunizar a equidade
incluindo as diferenças nas práticas pedagógicas e no currículo escolar?

Referências

Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.


Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no
Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT,
2016.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula rasa, n. 9, 2008.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. Revista Estudos


Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.

MIGNOLO, Walter D.; OLIVEIRA, Marco. Colonialidade: o lado mais


escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017.

Ebook IV SIGESEX 237


QÜIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of
world-systems research, v. 11, n. 2, p. 342-386, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença In:


SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Vozes, p. 73-102, 2014.

238 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Prostituição e marginalidade no brasil:
uma análise das apropriações políticas da
categoria “puta”
Prostitution and marginality in brazil: an analysis
of political appropriations on category “hooker”
Karla Ignes Luna1

RESUMO: Este trabalho busca analisar o movimento social intitulado “puta


feminismo” e a tentativa de combater os estigmas correlacionados ao trabalho do
sexo pago, além de evidenciar que, a temática diz respeito a todas as mulheres. Desse
modo, compreende-se que as reinvindicações dessas ativistas não se encerram apenas
na busca da legitimidade de seu trabalho, mas no combate a um imaginário social,
sustentado pelo patriarcado, que desenvolveu o padrão de “mulher” a ser seguido.
PALAVRAS-CHAVE: Prostituição; movimentos sociais; gênero.

ABSTRACT: This work seeks to analyze the social movement entitled “fucking
feminism” and the attempt to combat the stigmas correlated to paid sex work, in addition to
showing that the theme concerns all women. In this way, it is understood that the claims of
these activists are not limited only to the search for legitimacy of their work, but in the struggle
against a social imaginary, supported by patriarchy, which developed the pattern of “woman” to
be followed.
KEYWORDS: Prostitution; social movements; gender.

Introdução

Este artigo foi desenvolvido a partir da disciplina “Movimentos Sociais,


Política e Cultura no Brasil Contemporâneo” do curso de Ciências Sociais –
UEM, e teve por intuito analisar os usos e as apropriações da categoria puta
no ativismo brasileiro a partir da atuação de um movimento de mulheres
denominado puta feminismo.
1. Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. Atividade desenvolvida na disciplina op-
tativa “Movimentos Sociais, Política e Cultura no Brasil Contemporâneo” do curso de Ciências Sociais – UEM.
Orientado pela Prof.ª Dr. Carla Cecília Rodrigues Almeida.

Ebook IV SIGESEX 239


Este movimento se articula no combate e na contestação de estigmas
misóginos relacionados a prostituição no Brasil. Partindo do princípio de que
as reinvindicações vinculadas ao puta feminismo não se encerram apenas na
busca da legitimidade formal de seu trabalho, mas também no combate de um
imaginário social, sustentado pelo patriarcado, que desenvolveu um padrão
de “mulher” a ser seguido, via de regra relegada as tarefas do bem cuidar e da
esfera doméstica, em que lhe é expropriado a oportunidade de conhecimento
e autonomia do seu próprio corpo e de se entender enquanto sujeito que luta
por seus direitos. Ademais, ressalta-se que as putas feministas, ao defenderem
o processo de conscientização de seu trabalho, como algo que deveria ser
institucional, colocam em discussão outros aspectos estruturais da prostituição.
O objetivo foi analisar o puta feminismo na qualidade de um movimento social.
Em diálogo com a ideia de demonstrar as pluralidades das formas de se fazer
democracia, buscou-se entender como as ativistas constroem suas identidades,
enquanto atores políticos e em que medida suas pautas convergem para o
combate as opressões de gênero. Algo que, segundo elas, perpassa o imaginário
social regulado pela ordem patriarcal e atinge todas as mulheres, putas ou
não. Desse modo, de forma mais especifica, foram escolhidos dois elementos
presentes na trajetória do movimento, a “DASPU”, visando compreender a
dimensão simbólica que essa grife agregou ao movimento, para além de um
respaldo econômico, e o “PutaDei”, enquanto um palco de atuação política e um
canal de denúncia/debate acerca dos estigmas sofridos pela categoria.Para tanto,
tivemos como ponto de partida o período da reabertura democrática (1988), que
é tido por TARROW (2009) como um momento de oportunidades políticas.
O trabalho foi desenvolvido em formato de estudo de caso, como uma estratégia
de valorizar as singularidades das agentes, sem perder de vista a reivindicação
das mesmas enquanto um movimento social, que se organiza tendo por ideal e
convicção o fato serem putas e feministas. Para tanto, foi feito um levantamento
bibliográfico de textos, artigos acadêmicos, blogs e entrevistas já existentes sobre
este movimento e de seus desafios tanto para o plano social, quanto para os
debates mais amplos do feminismo contemporâneo.

1- O movimento

O movimento social intitulado puta feminismo surgiu no Brasil


na década de 80, mediante a toda efervescência do período de reabertura
democrática, tido para Tarrow (2009) como um momento de oportunidades

240 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


políticas para vários movimentos sociais terem visibilidade, inclusive o
movimento feminista. E este, naquele momento, não atendia as pautas das
trabalhadoras do sexo pago, devido a isso, surge tal movimento, fundado
pela ativista Gabriela Leite, que cursava Ciências Sociais na Universidade
de São Paulo. De acordo com uma entrevista que Gabriela Leite cede
ao site UOL (2012), houve entre 1978 e 1979, uma forte repressão às
prostitutas na cidade de São Paulo, pois, se tratava de uma perseguição e
abuso de autoridade do delegado local, em que até mesmo duas amigas
da ativista naquele momento foram consideradas desaparecidas. Por meio
desse enredo foi que a fundadora do puta feminismo tomou suas primeiras
atitudes, na direção de um engajamento político, conversando com suas
conhecidas de profissão para um ato coletivo a ser realizado na praça da
Sé.mConsequentemente, após o êxito de suas reivindicações, Gabriela Leite
compreendeu que poderia aprofundar-se ainda mais com a ideia de lutar
pelo direito das prostitutas. Contudo ela percebeu que quando obteve um
resultado positivo na sua luta contra os abusos de autoridades locais naquele
momento, houve uma dissolução do movimento. Desse modo, ela entendeu
que precisava ter acesso a outros saberes e outras localidades com demandas
similares que convergissem para os seus anseios de reconhecimento e
combate aos estigmas da categoria. Com isso, não é possível afirmar que
já nessa primeira mobilização de Gabriela Leite o puta feminismo teve sua
origem enquanto movimento social pois, segundo Tarrow:

As sequencias de confrontos políticos baseadas em redes sociais de


apoio e em vigoroso esquema de ação coletiva e que, além disso, de-
senvolve a capacidade de manter provocações sustentada contra opo-
sitores poderosos. Mas todos são parte de um universo mais amplo do
confronto político que pode surgir, de um lado, de dentro das institui-
ções e, de outro, pode se expandir e se transformar em revolução [...]
A ação coletiva do confronto é a base dos movimentos sociais não por
serem estes sempre violentos ou extremos, mas porque é o principal e
quase sempre o único recurso que as pessoas comuns têm contra oposi-
tores mais bem equipados ou estados poderosos. Isto não significa que
os movimentos não fazem outra coisa se não confrontar: eles formam
organizações, elaboram ideologias, socializam e mobilizam seus mem-
bros, e estes se engajam em auto desenvolvimento e na sua construção
de identidades coletivas. (TARROW, 20009 p. 18-19)

Ebook IV SIGESEX 241


Isto posto, segundo Gabriela Leite (2012), houve uma série de processos
até que o puta feminismo viesse a ser consolidado. Sua primeira fala em uma
organização institucionalizada em prol das prostitutas se deu no Rio de
Janeiro em 1982 por meio de um evento (Primeiro Encontro de Mulheres de
Favela e Periferia) realizado pela vereadora Benedita da Silva, que era recém
eleita. Posteriormente a isso, Gabriela passa a ser convidada para falar sobre
prostituição em diversos lugares, inclusive em colégios como o Colégio
Flamengo, em que neste conhece o diretor do instituto de estudo da religião
que a convidou para um passo definitivo, que seria a sistematização política de
seu projeto de representar a luta pelo direito das “trabalhadoras sexuais”.

2- Apropriações e tensões políticas

Uma das atividades notáveis do movimento liderado por Gabriela foi


realizar dia mundial das prostitutas “2 de junho”, - batizado posteriormente no
Brasil como Puta Dei- um encontro para discutir as demandas dessas mulheres,
realizado no dia 2 de junho de 1987, com representantes de 15 Estados
brasileiros (Leite 2012). Nesse evento, foi posto em discussão, os aspectos tanto
ao que se refere as opressões da indústria mercantil da sexualização, quanto
as questões vinculadas a moral estigmatizam-te, aprisionando e punindo as
mulheres que rompem os padrões conservadores, até ao que está dado no
âmbito do jurídico, que corrobora para uma concepção de criminalização das
prostitutas, quando na verdade as obstruções legais são para as casas irregulares
e a prostituição infantil, por exemplo. No seguinte trecho Prada expõe a ideia
da puta imaginada, que é combatida pelas putas feministas.

A Puta Imaginada* – a trapaceira, a enganadora, a traficada, a oprimi-


da, a louca, a andarilha, a cortesã, a dominatrix – é usada como uma
ferramenta para manter as mulheres na linha, e sob o jugo do contro-
le patriarcal. Não é à toa que o feminismo hegemônico, o feminismo
corporativo, o feminismo de Angelina Jolie e Sheryl Sandbergs neste
mundo, então campeão na indústria do resgate; que fabrica estatísti-
cas, uma máquina de mentiras que confunde trabalho sexual voluntário
com tráfico sexual. Se o feminismo corporativo quer libertar mulhe-
res, por que não começa pelas trabalhadoras migrantes clandestinas da
América? Por que não começa com as que sofrem com terríveis condi-
ções de trabalho, sem direito de mudar de empregador, sob o amarrado

242 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sistema de vistos do Reino Unido? Elas não vão, por que ainda querem
as marginalizadas e controladas limpando seus quartos, depenando suas
galinhas e cuidando de suas crianças. Mas não como prostitutas; nunca
como prostitutas. (PRADA, 2016)

Ainda hoje, mesmo 30 anos após o surgimento do movimento, persistem


desavenças, pois algumas vertentes do feminismo não enxergam a prostituição
como uma forma de trabalho, e a vinculam como uma das formas máximas de
opressão à mulher na sociedade. Este fator pode ser considerado como um dos
elementos de tensões e discordâncias dentro do próprio movimento feminista,
o que nos mostra diferentes demandas acerca do pensar mulher dentro da
sociedade, tanto nas estruturas sociais quanto nas organizações e movimentos
dispostos até então, a discutir e a representar a luta de todas as mulheres.
Na citação abaixo, da puta feminista Aline Lopez, temos um relato em que
podemos observar tais tensões. Elas acontecem partindo das percepções do
movimento feminista radical em relação a organização do grupo de puta
feministas, ocorrido no SESC-SP, ao chegarem para um debate sobre suas
demandas.

Lutamos por espaço e para que nossa voz seja ouvida a fim de acabar
com o estigma que nos cerca, chegamos aos debates e somos obrigadas
a ver outras mulheres se levantando e virando as costas como forma
de protesto contra nossa presença, somos deslegitimadas o tempo todo
muitas vezes por termos o básico como o acesso e o uso da internet para
nos reafirmamos socialmente. Isso também faz parte da manutenção
do patriarcado a qual somos todas submetidas e parte de mulheres que
muitas vezes dizem estar contra a violência que todas sofremos. Não
se dão conta do quão grave podem se tornar ações que consideram pe-
quenas e inofensivas a nós, como o termo “estupro pago”. Acreditam
que atacam o sistema machista que vivemos dessa forma, no entanto
o que conseguem é alimentar a violência e disparar gatilhos e traumas
fortíssimos para muitas mulheres que foram violentadas por “serem pu-
tas” auxiliando no processo de perpetuação do estigma como forma de
controle sobre as outras mulheres. (LOPEZ, 2017)

Uma das pautas centrais do puta feminismo consiste em desnaturalizar


alguns estigmas correlacionados ao trabalho do sexo pago, pois de acordo

Ebook IV SIGESEX 243


com Monique Prada (2013) há marcações sociais no papel feminino, que
permeiam o âmbito da moral, contribuindo para que a prostituta seja vista
sempre como uma mulher a ser “resgatada” de uma vivencia de mazelas e
ausências de oportunidades.
Assim sendo, podemos ressaltar a ressignificação da palavra PUTA sendo
um dos mecanismos de enquadramento interpretativo (TARROW, 2009)
utilizado pelo grupo do puta feminismo, sobretudo no sentido primeiramente
de provocar a desnaturalização das opressões universais que atingem todas
as mulheres, para reafirmar a sua subalternização e por outro lado, para
transcender o debate com as feministas que reprovam suas objeções políticas.
Ao mesmo passo, tal apropriação é tida como uma plataforma que promove
“solidariedade/identidade” do grupo e amplia a possibilidade de integração ao
movimento, para outras mulheres que exercem este trabalho, mas que muitas
vezes acabam a não se reconhecem enquanto sujeito político. Logo, podemos
encontrar na reapropriação da palavra puta, feita pelo movimento, um eixo
central de engajamento, pois ambiciona transcender as políticas públicas tidas
até o momento, que pensam essas mulheres pela ótica do âmbito jurídico e
penal, essencialmente, abrangendo o tema saúde (apenas da cintura para
baixo) e criminalidade, em outras palavras, o puta feminismo busca também a
difusão ideológica das prostitutas enquanto pessoas capazes de exercer, fazer e
agir político (cidadania).
Tal afirmativa pode ser localizada na tese de doutoramento de Diana
Helene Ramos intitulada de “Preta, Pobre e Puta: A segregação Urbana da
Prostituição em Campinas – Jardim Itatinga”, em que a autora nos mostra
um estranhamento de Gabriela Leite diante da fala de sua amiga também
prostituta que ao invés de se reafirmar enquanto tal, opta por se declarar como
“menina” termo utilizado naquele momento pelas pastorais que de certa forma
tinham coalizões para com o puta feminismo. Segue as observações de Ramos
em relação a biografia de Leite:

A abertura do Encontro de Salvador foi num Teatro Castro Alves lota-


do. O bispo de Juazeiro do Norte, dom José Rodrigues, estava presidin-
do a mesa que era composta por várias freiras, o [Leonardo] Boff, eu,
uma colega de Minas Gerais e mais duas prostitutas. Eu ainda era crua
nas nuances da política de movimento social. A colega mineira falou
antes mim e se apresentou assim: “boa noite, meu nome é Suely e eu sou
uma ‘menina’ de Uberaba.” Menina? Virei pro Boff e falei: “Por que ela

244 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


está falando que ela é uma menina?” E o Boff: “A pastoral [PMM] acha
muito forte o nome prostituta e resolveu criar uma denominação cari-
nhosa, que é menina.” Até hoje eles usam essa terminologia. Aí chegou
minha vez de falar: “Meu nome é Gabriela, e, ao contrário da minha
colega de Uberaba, eu sou uma prostituta e atualmente vivo no Rio de
Janeiro”. Na hora do debate o auditório estava lotado e todo mundo
queria saber por que a mineira falava menina e eu falava prostituta. Aí
começa minha grande questão com as denominações politicamente
corretas, um dos maiores temas do meu trabalho até hoje. Eu respondia
à plateia: “eu acho que é porque as pessoas tem vergonha da palavra
prostituta.” Aquilo foi um rebu na pastoral (apud RAMOS; LEITE,
2009, p. 43-43)

Desse modo, com base na leitura de blogs de ativistas, autodeclaradas


puta feministas, podemos observar que suas reinvindicações estão para além de
uma regularização trabalhista, haja vista que para essas mulheres há um grande
esforço de se fazer entender, que seu trabalho distingue-se da exploração sexual
ou do que muitos intitulam como “estupro-pago”. Rótulos que a sociedade dá a
elas, fazendo com que a luta dessas mulheres se torne ainda mais adversa. Nesse
seguimento, em concordância com Monique Prada (2015), é que as ativistas
se apropriam de um fato ocorrido em 2 de junho de 1975, em Lyon na França,
onde cerca de 150 prostitutas ocuparam a igreja em protesto contra as violências
vividas e pela perseguição policial, que posteriormente, foi consagrado como
dia internacional das prostitutas, e dá impulso as lutas organizadas dessas
trabalhadoras por todo o mundo. Mediante a isso, surgiu o Puta Dei no Brasil,
um dia de confraternização, debates e lutas pelos direitos das trabalhadoras
sexuais, que permite para além da discussão sobre seus direitos trabalhistas,
trazer à tona temáticas que envolvem a percepção social e estigmatizam-te do
corpo feminino e a condição de subalternidade da mulher, sobretudo, enfatizar
que isso permeia uma construção histórica, política, cultural e social de gênero
que é naturalizada para reafirmar a estrutura patriarcal. Esta comemoração
realizada pelas putas feministas, é muito significativa, no sentido da promoção
de um sentimento de uma causa que dialogue com pautas universais no que se
refere a condição do “ser puta”, embora não descarte a trajetória e o histórico
de cada uma que integre ou não este movimento.
Para tanto, uma das atividades do Puta Dei, seria o desfile, proporcionado
pela grife DASPU que procura potencializar seu discurso político ao quebrar

Ebook IV SIGESEX 245


as regras (de um desfile comum), ao contemplar corpos tidos socialmente
como desviantes e incorporando identidades marginalizadas.
A DASPU trata-se de uma grife que surgiu em 2005, segundo Gabriela
Leite em entrevista para TV Feevale - Moda Insights (2010), em meio a
grandes tensões e as oportunidades do acaso. Gabriela, em uma conversa com
suas amigas de profissão em uma mesa de um botequim carioca, especulavam
meios para angariar fundos para o movimento Putafeminismo.
Todavia, no dia seguinte ao ocorrido, Gabriela depara-se com uma
pequena nota de jornal, naquele momento, que dizia que as prostitutas
da Tiradentes estavam montando uma grife, com apoio de uma empresa
norueguesa (em uma entrevista a mesma diz não ter conhecimento disso).
Com isso, houveram grandes repercussões inclusive midiáticas que
deram visibilidade tanto as intenções comerciais, quanto ao engajamento
político, que lançava Gabriela e suas companheiras. Ocorreu também o fato
de que a empresa Daslu – uma empresa do ramo do vestuário feminino muito
famosa, inclusive por sonegação- mediante tamanha repercussão, enviou-lhes
uma notificação jurídica reivindicando direitos autorais, e ao mesmo tempo,
alegavam que o nome fantasia da grife de Gabriela “denegria” a imagem
comercial da Daslu. Diante disso, a ativista do “putafeminismo” opta por
recorrer a imprensa para defender o direito de usar o nome DASPU. Embora
não tivessem de fato uma empresa em funcionamento, todo o bombardeamento
da mídia sobre a grife, contribuiu para fomentação e o desenvolvimento desse
projeto, idealizado por Gabriela, para alcançar recursos econômicos para o
movimento.
Haja vista que, para essa ativista fundadora do movimento, o grande
desafio até então sempre foi desmistificar a ideia da “puta imaginada”, ou seja,
quebrar os estigmas do que compõe o imaginário social sobre o que vem a
ser a prostituição. Ademais Gabriela Leite ao frisar todas as adversidades em
sua trajetória, enquanto profissional e sujeito político, buscou por meio da
DASPU não somente fundos pra o movimento, mas também uma identidade,
para que assim fosse reafirmado o “ser puta”, na condição de plataforma política
para o reconhecimento e fortalecimento da causa.
Portanto, podemos localizar que o Puta Dei e a DASPU, vão de encontro
ao enriquecimento das estratégias de visibilidade do putafeminismo, pelo
fato de que, além de criar enquadramentos identitários, também possibilita
a oportunidade de um novo repertorio de ação (TARROW, 2009), que
consiste nos desfiles, em que nesses as protagonistas são as próprias prostitutas.

246 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Sendo que, resulta no fortalecimento do grupo, deslocando-as de um
sentimento de marginalidade – direto para a passarela-, e também corrobora
para um potencial de percepção e o conhecimento/divulgação do que seria
o putafeminismo. Partindo dessa ideia, as putasfeministas acreditam que, o
processo de esclarecimento/conscientização de seu trabalho como algo que
deveria ser institucional, colabora no combate, por exemplo: da prostituição
forçada, do não reconhecimento de direitos comum a qualquer trabalhador e
de violências cotidianas - devido ao fato de serem estigmatizadas -, inclusive a
violência policial como menciona Amara Moira, em seu blog “E Se Eu Fosse
Puta”:

O problema não é a prostituição em si, mas as diversas opressões que


condicionam o seu exercício precário? Prostituição, enquanto for caso
de polícia e não de justiça do trabalho, enquanto não permitir que tra-
balhemos em cooperativas ou nos organizemos em sindicatos, vai con-
tinuar nos deixando reféns tanto dessas opressões a que estamos sujei-
tas (pobreza, machismo, racismo, transfobia, xenofobia, dentre outras),
quanto dos abusos cometidos por policiais, clientes e donos de casa.
(MOIRA, 2016)

Conclusão

A partir da realização deste estudo, pode-se constatar: divergências e


dificuldades de aceitação do Putafeminismo por parte de algumas correntes
que fazem a discussão de gênero; outro fator, seria segundo PRADA (2017),
um recorrente enfoque e debate acadêmico voltado para a temática prostituição
partindo da perspectiva do cliente, por outros temos, é necessário uma maior
visibilidade dessas mulheres como agentes políticos. Ainda por meio deste
trabalho, foi possível refletir sobre os desdobramentos do papel social da
mulher, no que tange o seu devir ser que é sintetizado como: submissa, dócil,
frágil, relegada as tarefas do bem cuidar e da esfera doméstica, em que lhe é
expropriado a oportunidade de conhecimento e autonomia do seu próprio
corpo e de se entender enquanto sujeito que luta por seus direitos, e aquelas
que destoam deste modelo muitas vezes são vistas como: insubordinada,
bruta, grosseira e por fim puta. Por isso, a dimensão do simbólico no sentido
de reapropriação dos padrões como uma ferramenta de luta, para essas

Ebook IV SIGESEX 247


mulheres, nos instigou e nos revelou um grande objeto que merece ser melhor
compreendido.
Ao final deste trabalho, nos deparamos com a compreensão de como
a propagação simbólica do termo puta, por essas agentes, consegue garantir,
para além de seu enquadramento interpretativo (TARROW, 2009), uma
possibilidade das mesmas levarem suas causas, de forma mais ampla, para
diversos conjuntos de instituições. Além disso, verificou-se que aspectos tão
peculiares ao seu grupo, podem alcançar instâncias capazes de efetivar interesses
que perpassam esferas comuns a todas as mulheres. Ademais, acreditamos que
este estudo também possibilita a expansão da compreensão de cidadania e das
diversidades de agências e interesses contidos no Estado de direito pelo fato de
tratar das putas feministas enquanto atores políticos que se organizam para o
reconhecimento social de seus direitos trabalhistas.

Referências

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político”. Tradução: Ana Maria Sallum. Petrópoles. Vozes.

RAMOS, Helene, D. “Preta, Podre e PUTA”: A segregação urbana da


prostituição em Campinas – Jardim Itatinga. 2015. 334 f.tese (doutorado
em Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Cadernos de Redação UOL A criadora da ONG Davida reflete: “Prostituição


é uma coisa complexa, por que só a prostituta leva o estigma?” disponível em:
<https://revistatrip.uol.com.br/trip-transformadores/gabriela-leite> acesso
em: 22/10/2012.

LEITE, Gabriela. TV Feevale - Moda Insights 2010 - Gabriela Leite


Daspu - Parte 01 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_
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248 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


LOPEZ, Aline. O debate sobre trabalho sexual não é sobre o cliente. Disponível
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MOIRA, Amara. Enquanto for caso de polícia. Disponível em: <http://www.


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PRADA, Monique. PUTA DEI – Dia internacional da Prostituta. Disponível


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visibilidade-direitos-dignidade/> Acesso em: 19/12/2017. PRADA, Monique.
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PRADA, Monique. Você pode ser feminista e trabalhadora sexual. Disponível em:
<http://mundoinvisivel.org/voce-pode-ser-feminista-e-trabalhadora-sexual/>
acesso em: 03/11/17.

Ebook IV SIGESEX 249


Mulheres na ciência: a importância de
Carolina Bori para a Psicologia no Brasil
Women in science: the importance of Carolina
Bori for Psychology in Brazil
Karolaine Santos Deleprani Silveira1
Maisa Barbosa da Silva Cordeiro2

RESUMO: Resgata-se a carreira da psicóloga comportamental


Carolina Bori (1924-2004) na perspectiva da crítica feminista, e analisa o
lugar ocupado pela mulher na ciência, partindo do gênero como categoria de
análise. É no atravessamento dos lugares ocupados e dos almejados pela crítica
feminista que nasce o desejo de trazer as experiências de Bori, que não teve
reconhecimento necessário em seu tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Carolina Bori, Mulheres, Produção Científica.

ABSTRACT: The career of behavioral psychologist Carolina Bori (1924-2004) is


rescued from the perspective of feminist critique, and analyzes the place occupied by women
in science, starting from gender as a category of analysis. It is in the crossing of the occupied
places and those sought by the feminist critique that the desire to bring the experiences of Bori
is born, which did not have necessary recognition in its time.
KEYWORDS: Carolina Bori, Women, Scientific Production.

Introdução

No meu primeiro ano do curso de Psicologia em 2017, no Centro


universitário da Grande Dourados, no segundo semestre, durante a disciplina
de Análise do Comportamento I, tive meu primeiro contato com a professora
Carolina Martuscelli Bori (1924-2004). A pesquisadora e professora Carolina
Bori foi, no campo da análise do comportamento no Brasil, um dos poucos
nomes femininos a ganharem destaque.
1. Aluna do curso de Psicologia do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN). E-mail: karolbjj@
outlook.com
2. Professora do curso de Psicologia do Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN). E-mail: maysa_
bdasilva@yahoo.com.br

250 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Este fato pessoal é mencionado por estar vinculado aos dois propósitos
deste trabalho: defender a importância da professora Carolina Bori como
mulher pesquisadora, e realizar uma análise crítica do lugar ocupado pela
mulher na ciência a partir do conceito de gênero enquanto categoria de análise,
pautando-nos, para esta análise, na discussão de Joan Scott em “Gênero: uma
categoria útil para análise histórica” (1995).
A escritora inglesa Virginia Woolf ([1929] 2014), no célebre Um teto
todo seu, partindo da questão “as mulheres e a ficção”, reflete sobre as condições
das quais as mulheres dispunham para escrever ou não, denunciando o
silenciamento histórico das experiências de mulheres. De maneira assertiva,
demonstra que, mesmo na falta de dinheiro e de tempo, as mulheres ousavam
escrever, mas que as condições materiais eram fundamentais para que
conseguissem progredir e evoluir profissionalmente no campo da escrita.
Mais recentemente, e em um cenário brasileiro, Léo Velho e Elena
León (1998), abordando a participação das mulheres na ciência, realizaram
um mapeamento da presença delas na Universidade Estadual de Campinas –
Unicamp. Os resultados obtidos pelos pesquisadores mostraram que, apesar
do aumento da participação feminina na docência na pós-graduação após os
anos 1970, as mulheres ainda são minoria, e concentraram-se em algumas áreas
do conhecimento, como ciências sociais, biologia e apresentam dificuldades
de acesso em outras áreas como física e química, conforme o resulto do estudo
nessa universidade.
Discutindo os avanços das mulheres na ciência brasileira, Jacqueline
Leta (2003) apresenta estatísticas que mostram crescimento da participação
das mulheres na ciência, mas questiona o fato de que com raras exceções
essas mulheres ainda não assumem cargos e posição de destaque. Assim, ao
confrontar considerações feitas desde Woolf sobre a profissionalização da
mulher, é possível perceber um crescimento lento da participação da mulher
no campo científico, e, especialmente, na participação das mulheres em cargos
de chefia nas universidades. Acresce-se a isso os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (2018), que revelam que as mulheres seguem
recebendo cerca de ¾ do que os homens recebem. Os resultados mostram
uma elevação na desigualdade quando comparado os resultados desagregados
por nível de instrução, que apontam que as mulheres com ensino superior
completo ou mais, receberam 63,4% do que os homens, em 2016.
No que tange à psicologia, as contribuições de Carolina Bori se
concentram na busca pela implantação e consolidação dela como profissão no

Ebook IV SIGESEX 251


Brasil: no registro de memória do CNPQ, que destaca que, ao ser criado o
Conselho Regional de Psicologia, Carolina recebeu o registro de número 1
por ser a única mulher dentre os constituintes e também é uma das pioneiras
da Análise do Comportamento no Brasil, sendo responsável por sua difusão e
pela formação de futuros analistas do comportamento.
Observa-se a importância da pesquisadora para a consolidação da
tradição científica no Brasil também em sua participação na Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC):

Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a pro-


fessora Carolina assumiu funções de primeira secretária (1973-1977),
vice-presidente (1977-1981/1981-1986), presidente (1985-1989)
e presidente de honra (1989), tendo acompanhado esta Sociedade e,
portanto, a evolução da ciência brasileira, por mais de três décadas. En-
frentou fatos políticos difíceis no país e, durante o período da ditadura,
ajudou a configurar a SBPC como uma referência de resistência acadê-
mica e intelectual (SBPC, 1998). (TOMANARI, 2005, p. 242).

O evento anual da instituição, em 2019, realizou-se em Campo Grande,


Mato Grosso do Sul, e, assim, sua 71ª edição da Reunião Anual, tem Carolina
Bori como um dos nomes importantes à sua história e à história da pesquisa
no Brasil.
Analisar e compreender as questões relativas à mulher na ciência é
uma tarefa complexa, que vai além de saber que elas ocupam lugares menos
privilegiados, ou que ainda não atingiram status de equidade. Entretanto, é
nesse atravessamento de querer fazer com que as mulheres tenham seu valor
na ciência e ouvir sobre apenas um nome feminino na apresentação da referida
disciplina que cursei é que nasce o desejo de trazer as experiências da professora
Carolina Bori.

1- Metodologia

A nossa proposta parte, inicialmente, das definições de Elaine Showalter,


em A crítica feminista no território selvagem (1994 [1980]), que mapeia a
existência de vertentes na crítica feminista, campo no qual se subinscreve nosso
trabalho. Entre as vertentes apontadas por Showalter (1994), está o resgate
histórico de mulheres importantes para o campo da pesquisa, da ciência ou

252 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mesmo da literatura. Questiona-se, assim, o privilégio e o domínio histórico
do homem no espaço para além do doméstico, mas, também e, principalmente,
contribui para mostrar que as mulheres não ficaram relegadas e passivas no
espaço do lar. Mesmo com uma série de dificuldades, conseguiram romper
barreiras e participarem de espaços de dominação masculina, mas, apesar
disso, a história não considera muitas delas. A crítica feminista, então, entre
suas diversas contribuições, possibilita que as contribuições dessas mulheres
sejam trazidas a público, promovendo certa reparação histórica.
Nosso objeto de pesquisa é, dessa forma, a história de Carolina Bori,
pesquisadora a frente de seu tempo, com pesquisas fundamentais para o campo
da Análise do Comportamento. Pareia-se às contribuições de Bori na ciência
a sua militância e atuação em prol da pesquisa e a importância de sua atuação
para a SBPC.
Sua atuação na SBPC3 é inestimável, antes mesmo de chegar à
presidência, exerceu funções e se dedicou para a difusão da ciência. Sua
presença é referência até os dias de hoje. No ano de 2018, a SBPC realizou no
dia 11 de Fevereiro – data em que se comemora o Dia de Mulheres e Meninas
na Ciência, o seminário “SBPC e as Mulheres e Meninas na Ciência”, na sede
da entidade, em São Paulo. E, neste seminário, foi anunciado que a partir de 11
de fevereiro de 2020 irá iniciar a entrega do Prêmio Carolina Bori Ciência
e Mulher. Foram realizados encontros para debater temáticas feministas,
o que foi importante para levantar reflexões sobre conceitos até então não
vistos a respeito dessa luta para que homens e mulheres sejam igualmente
reconhecidos em suas diferenças, fazendo sanar as injustiças de gênero. Foi
realizada, também, uma revisão da literatura para obtenção de dados. A
história de Carolina Bori foi resgatada, em nosso trabalho, ao mesmo tempo
em que se mostrou a dificuldade das mulheres em se constituírem não somente
como pesquisadoras e profissionais, mas para se destacarem enquanto nomes
canônicos na ciência, mesmo que suas contribuições tenham sido suntuosas.
Foram realizadas pesquisas em livros, revistas, e nas bases de dados
científicas Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC), Scientific Electronic
Library Online (SciELO), e também em links de trabalhos constantes nos artigos
encontrados, que foram considerados importantes para o desenvolvimento da
pesquisa.
3. Fundada em 1948, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência é uma entidade civil, sem fins lucrativos ou
posição político-partidária, voltada para a defesa do avanço tecnológico, e do desenvolvimento educacional e cultural
do Brasil. Ela exerce um papel importante na expansão e no aperfeiçoamento do sistema nacional de ciência e tecno-
logia, bem como na difusão e popularização da ciência no Brasil.

Ebook IV SIGESEX 253


Com relação às bases de dados científicas, foram analisados, para a
revisão de literatura, duas vertentes de artigos: uma que possuíam em seu título
o termo Carolina Bori, e outra Feminismo e Psicologia. A partir da realização
da pesquisa e da leitura e interpretação do material obtido, foi feita a síntese
para as discussões.

2- Carolina Bori: Mulheres na/pela ciência

Carolina Martuscelli Bori (1924-2004) graduou-se em Pedagogia


pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
em 1947. Logo após concluir o antigo Curso Normal foi contratada, pela
própria USP, como Professora Assistente de Psicologia, em 1948. Nessa
mesma instituição, desenvolveu seu doutorado. Seus trabalhos foram para a
Educação, Psicologia e para a Ciência em geral, buscando melhores politicas
científicas.
Carolina Bori exerceu e continua exercendo influência sobre a
comunidade científica. Uma prova disso é que desde 1998, onde obteve
uma edição especial, encontrada no Volume 9, n.1 da revista Psicologia
USP, dedicada a ela, até 2016 são encontrados artigos científicos em sua
homenagem. Esse fato demonstra que não apenas em vida, mas até os dias de
hoje sua maneira de fazer ciência trouxe inúmeras contribuições.
Maria Amélia Matos, nome importante para a Psicologia, conhecida
como uma das pioneiras da Análise do Comportamento, faz, em artigo
intitulado “Carolina Martuscelli Bori: uma cientista brasileira”, uma
homenagem à professora Carolina Bori, apresentando seu encontro com ela e
a sua importância para a psicologia (MATOS, 1998). Suas palavras mostram o
quanto Bori era ativa na busca da Psicologia como uma profissão. Ela, em suas
aulas, discutia a formação acadêmica, o exercício profissional, a necessidade de
o Brasil valorizar a pesquisa acadêmica e valorizar o profissional formado no
ensino superior. Como mostra Matos (1998) as:

[..] propostas não ficavam no papel: ela organizava grupos de estudan-


tes e profissionais para irem a campo obter assinaturas de apoio da co-
munidade aos estatutos do exercício da profissão de psicólogo no Bra-
sil; organizava comissões de professores, profissionais e estudantes para
visitarem políticos e obterem apoio para a aprovação da lei que regula-
menta a formação em Psicologia. (MATOS, 1998, s.p).

254 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Ela também é referência quanto à prática docente. São encontrados em
relatos de seus orientandos e também por pesquisadores que tiveram sua forma
de atuação marcada pelo contato com ela, como Nivaldo Nale (1998), Gizelda
Moraes (1998), Aziz Ab’Saber, (1998) e Alberto Villani (1998). Esses relatos
mostram que Bori apresentam Bori em sua prática enquanto pesquisadora.
Seus ex-alunos apresentam que ela fazia levantamentos pontuais, era atenciosa,
mas, sobretudo, levava seus orientandos a pensar que seus trabalhos estavam
diretamente relacionados com a preocupação sobre problemas sociais.
Nale (1998) relata a importância de Carolina Bori para o desenvolvimento
da programação de ensino individualizado. Aponta que ela foi determinante
para que sua percepção sobre o que era objetivo comportamental dentro da
programação de ensino fosse gerada. Ela enfatizava, em suas orientações, que

[..] um objetivo deve representar uma classe de comportamentos que


faça sentido na vida da pessoa, seja como profissional, seja como cida-
dão, e não um desempenho isolado, que os alunos emitem apenas em si-
tuações típicas de ensino-aprendizagem, na escola (NALE, 1998, s.p.).

Foi uma das profissionais que antes do reconhecimento legal da


Psicologia como profissão em 1962, já atuava na área e militou não apenas
pelo reconhecimento legal da Psicologia, mas como pela formação de novos
acadêmicos. Nos trabalhos de Matos (1998) e Nale (1998), é possível ver
pesquisadores relatando eventos onde Carolina Bori foi imprescindível. Sua
experiência como professora de psicologia experimental para o curso de filosofia
da faculdade de São Paulo, também a inspirou para buscar que fossem implantados
nos cursos de psicologia laboratórios e cursos de psicologia experimental. Esse
fato a torna uma das difusoras da Análise do Comportamento no Brasil.
Maria do Carmo Guedes (2005) relembra os percursos de Carolina na
ciência e como sua contribuição se dava não apenas na formação de pessoal,
mas nas formas de difusão do conhecimento produzido no Brasil. Defensora
da pesquisa, ela orientava pessoas das mais diversas abordagens, e não deixava
de ensinar programação de ensino para quem quisesse aprender como visto
em NALE (1998) que relata a orientação da Carolina na sua área da biologia.
Tomanari (2005) aponta que Bori era pioneira na busca de uma
psicologia generalista, visando uma ciência multidisciplinar, que se preocupa
em formar bons pesquisadores. Ele defende Bori como “impecável” em sua
diversidade de pensamento, pois:

Ebook IV SIGESEX 255


[...] foi assim que ela orientou, com muita competência e propriedade,
mais de 50 dissertações de mestrado e 50 teses de doutorado (certamen-
te a lista de publicações da professora Carolina seria bem mais extensa,
caso ela aceitasse ver o seu nome como co-autora dos trabalhos dos seus
alunos) (TOMANARI, 2005, p. 243).

Sua participação na luta pela ciência brasileira lhe rendeu a aclamação


como Presidente de honra da SBPC em 1989, a mais abrangente associação
de pesquisadores do país. Também na SBPC, participou como secretária
e vice-presidente, dedicando décadas de sua vida para o avanço da ciência.
Entretanto, sua atenção não se voltava apenas ao ensino universitário, mas
também em outros níveis de ensino como é visto em seu Projeto “Escola em
extensão” que criou no período entre 1990 e 1994 em que dirigiu a Estação
Ciência, centro de difusão científica, tecnológica e cultural da Pró-Reitoria de
Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo.

3- Descolonização da produção científica

Feminismo é um movimento que busca uma igualdade de direitos entre


as mulheres e os homens. Com o objetivo de promover e garantir os direitos
das mulheres, o feminismo tem se consolidado ao longo dos anos. Analisando
os resultados obtidos, anos após a formulação da teoria feminista, é possível
constatar que o feminismo mudou a posição das mulheres na ciência. Essa
mudança está diretamente ligada à pressão feita por grupos de mulheres,
especialmente por organizações de mulheres cientistas nas organizações
profissionais (KELLER, 2006).
Um direito que foi conquistado, mas que ainda deve ser constantemente
buscado é o da representatividade feminina na área acadêmica. A necessidade
de acompanhar os avanços das mulheres na ciência é essencial para revisar a
forma com que elas estão inseridas nesse meio, suas formas de incentivo.
Conforme Leta (2003):

Historicamente, a ciência sempre foi vista como uma atividade reali-


zada por homens. Durante os séculos XV, XVI e XVII, séculos marca-
dos por diversos eventos e mudanças na sociedade que possibilitaram
o surgimento da ciência que conhecemos hoje, algumas poucas mu-
lheres aristocráticas exerciam importantes papéis de interlocutores e

256 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


tutores de renomados filósofos naturais e dos primeiros experimenta-
listas. (LETA, 2003, p. 271).

Analisando os procedimentos de controle do discurso, Michel


Foucault ([1996] 1970), em seu livro A ordem do discurso, defende que
uma das maneiras de controle é a determinação das condições de seu
funcionamento, delimitar as regras para que assim nem todo mundo tenha
acesso. Ou seja, ainda que exista a possibilidade de um discurso, com regiões
abertas e de fácil acesso, também haverá regiões impenetráveis, proibidas.
Leta (2003), a respeito do aumento de pesquisadoras nos grupos de pesquisa
brasileiros, defende que é um fruto da maior entrada de mulheres no sistema
de Ciência e Tecnologia:

Apesar do crescimento da participação de mulheres nas atividades de


C&T, as chances de sucesso e reconhecimento na carreira ainda são
reduzidas. Isso está traduzido na questão da concessão das bolsas de
produtividade (Tabela 3) e na participação das mulheres em cargos
administrativos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a maior
universidade do sistema federal, como mostra a Tabela 4. Os dados
indicam que as mulheres representam hoje, em 2003, 43,7% do total
de docentes da universidade. No entanto, elas ocupam somente 24%
dos cargos administrativos da instituição. Vale destacar que nem mes-
mo nos centros onde elas são maioria, como no Centro de Filosofia e
Ciências Humanas e no Centro de Letras e Artes, o quadro se reverte.
(LETA, 2013, p. 277).

A citação mostra uma correlação com a afirmativa de Foucault, pois é


uma busca constante de acesso a lugares impenetráveis. Uma forma de controle
é a monitoração da produção científica feminina.
A produção de conhecimento sempre está inserida em um contexto
social-cultura, que tem seus próprios valores e ideias. Portanto, é ingênuo
pensar em uma produção de conhecimento neutra, pois será vista como um
papel político (ALVES, 2013). Por muito tempo o conhecimento científico
legitimou o discurso biologizante das condições das mulheres. Conceição
Nogueira (2001, p. 2) dirá que “houve ao longo dos tempos grande quantidade
de discursos, teorias, visões acerca da mulher, essencialmente associados à sua
capacidade de reprodução”.

Ebook IV SIGESEX 257


Não foi diferente na Psicologia, que em sua concepção para ganhar
posição de ciência se aproximou das ciências naturais, sob a grande influência das
ciências positivistas, se amparando e reproduzindo concepções biologizantes.
Relembramos a importância de Carolina Bori porque como mulher,
psicóloga, professora e pesquisadora, ela ocupava os lugares e abria espaços para
outras mulheres. Fato que corrobora isto é o lançamento do prêmio4 Carolina
Bori pela SBPC, que incentiva a participação e permanência da mulher na
ciência. Suas ações somaram com as de outras na luta pelo desenvolvimento de
uma ciência com participação feminina mais efetiva.
Muitas mudanças aconteceram na produção científica psicológica no
decorrer dos anos, a presença das mulheres foi uma delas. Essas mudanças
foram resultado de pressões travadas por grupos de mulheres reivindicando
esses lugares, que eram majoritariamente masculinos. Assim analisar qual o
lugar que as mulheres têm ocupado na ciência atualmente é uma atitude que
se faz necessária, uma vez que esse é um lugar conquistado a partir de lutas.

Conclusões

Carolina Bori empreendeu esforços para que a Psicologia Brasileira fosse


reconhecida como ciência. Ela atuava na busca de uma formação qualificada
para os futuros psicólogos, criou e disseminou laboratórios de psicologia
experimental no Brasil e foi presidente de várias sociedades da Psicologia.
Concomitantemente, militava pela ciência em geral.
Resultado disso é ter um currículo tão diverso, atuando em várias
áreas de pesquisa. Seus esforços resultaram em novos espaços abertos para as
mulheres na ciência, na produção de conhecimento. Nos cargos de lideranças,
Carolina Bori passou por eles abrindo novas possibilidades para se reconhecer
e investir nas mulheres nesses espaços. Esforços empreendidos por grupos de
mulheres garantiram um aumento gradativo na participação das mulheres na
ciência, mas a necessidade de continuar reivindicando esses espaços é essencial.
Investir esforços na descolonização da produção cientifica é assumir a posição
de que existem aspecto na ciência que precisam ser constantemente revisados visto
que ela é produtora de verdades. Nas palavras de Keller (2006), sobre o impacto do
feminismo na ciência ela faz a afirmação provocadora que foram feitas mudanças na
ciência sim, por conta do feminismo, ainda que não exatamente como muitas das
4. http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-lanca-premio-para-incentivar-mulheres-e-meninas-nas-ciencias/

258 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mulheres envolvidas imaginavam essas mudanças. Essas conquistas reverberam na
vidas de outras mulheres e seguimos o ciclo falando e dando voz a outras mulheres.

Referências

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Ebook IV SIGESEX 261


Feminismos, interseccionalidade e construção
de diálogos em rede: comunicação feminista
em vozes, vezes e viéses
Feminisms, intersectionality and the construction
of network in “vozes, vezes and viéses”
Letícia de Faria Ávila Santos1

RESUMO: O objetivo deste presente artigo é caracterizar as mediações


e construções feministas a partir das características de difusão, pluralidade
e coletividade do ambiente web; desenvolvendo uma reflexão teórica sobre
as ondas feministas e uma contextualização do feminismo relacionado a
interseccionalidade para a produção de conteúdo com perspectiva de gênero. A
proposta inicial, como parte de pesquisa mais ampla de dissertação de mestrado
sobre feminismo e comunicação, é situar as relações dos movimentos feministas
motivados pelas interações digitais e suas perspectivas de mobilização social.
PALAVRAS-CHAVE: feminismo, interseccionalidade, jornalismo.

ABSTRACT: The purpose of this article is to characterize feminist mediations


and constructions from the diffusion, plurality and collective characteristics of the
web environment; developing a theoretical reflection on the feminist waves and a the
contextualization of feminism related to intersectionality for the production of content with
a gender perspective. The initial proposal, as part of a broader dissertation on feminism and
communication, is to situate the relationships of feminist movements motivated by digital
interactions and their perspectives of social mobilization.
KEYWORDS: feminism, intersectionality, journalism.

Introdução

Para compreender o feminismo enquanto movimento social, vinculado


à lutas, reivindicações e conquistas, é necessário a percepção por igual de que
1. Mestranda em Comunicação no Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, graduada em Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e-
-mail: le.lele.avilla@hotmail.com

262 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


esta história não parte de um ponto de vista linear, senão construído a partir
de uniões e cisões, por tensionamentos e conflitos.
Este presente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla de dissertação
de mestrado sobre feminismo e jornalismo, e portanto, encontra sentido em
buscar como as revoluções feministas alcançaram espaço mediante o ambiente
virtual e conseguiram encontrar diálogo (ou não) a partir destas mediações, e
ainda, em uma perspectiva interseccional, que pode ser entendida enquanto
teoria social, estudo de sobreposição ou intersecção das identidades sociais,
de observar as relações humanas a partir de localidades sociais, com diferentes
correntes teóricas e autores pós-coloniais e/ou decoloniais (PELUCIO, 2012).
Somado a isto, faz-se essencial ainda demarcar a construção deste
diálogo a partir de um viés subalterno e decolonial, compreendendo as
análises e reflexões dos caminhos feministas a partir de suas ramificações de
entendimento e em ênfase ao pensamento pós-feminista, desenvolvido a partir
dos anos 80 por suas características descentralizadas e interseccionais.
Como afirma Pelúcio (2012, p.399), falar de saberes subalternos é
perceber outras gramáticas e epistemologias, “outras referências que não
aquelas que aprendemos a ver como as ‘verdadeiras’ e, até mesmo, as únicas
dignas de serem aprendidas e respeitadas”. A subalternidade, portanto, ergue-
se pela necessidade de pluralização de conhecimentos e versões. O conceito de
decolonialidade surge na produção de conhecimento incentivado pelas teorias
pós-coloniais, que investiam nessa trajetória de estudos literários e culturais na
crítica da modernidade eurocentrada (ROSEVICS, 2014), partindo do uso de
epistemologias e autores que rompessem com o conhecimento geocentrado,
buscando emancipação sobre o diálogo político, econômico e cultural dos
povos de saberes deslegitimados.
Essa construção a partir da homogeneidade de vivências teve fortes
influências no discurso eurocêntrico, racista e orientalista infere diretamente,
ainda, nos conceitos e teorias feministas que tendiam aos universalismos ao
categorizar mulheres a partir das mesmas variantes opressoras, ignorando
diferentes localidades sociais e produzindo conhecimentos por uma única
ótica, invisibilizando quaisquer outras e operando a partir de um único
discurso (PELUCIO, 2012).
Como espaço de disputas e levantes sociais, enquanto mobilizador
de direitos, o campo comunicacional acontece a partir do coletivo; permeia
interesses democráticos, lutas de poder e tensiona desigualdades (LEMOS,
2009). Relacionado a isto, a história do feminismo é construída a partir de

Ebook IV SIGESEX 263


pluralidade: um movimento social em vários movimentos, desenvolvido
em feminismos, em diferenças, sobretudo enquanto gênero, raça, classe,
sexualidade, nacionalidade e religião.
Feminismos deve ser percebido sempre no plural: o movimento é
construído por extenuantes momentos históricos, acompanhando as demais
percepções humanas e mudanças sociais. Como breve contextualização
deste fenômeno social, utilizarei o termo “ondas feministas”, não para fins
demarcatórios, mas sim por suas mutações e reconfigurações, sendo,
assim, parte de movimentos que se organizam e desorganizam a partir de
necessidades sociais ao longo dos tempos.

1- Movimentos feministas, ondas, ressignificações históricas sobre


os direitos das mulheres: das lutas pela cidadania às interseccionalidades

Desde o início das lutas pelos direitos civis, como a Revolução


Francesa no século XVIII, é possível identificar a presença de mulheres na
reivindicação de cidadania (PINTO, 2003). A primeira onda feminista
reuniu suas efervescências na luta dos direitos políticos no final do século
XIX ao início do século XX, com o direito ao voto e a participação por
candidatura feminina. O questionamento, vinculado ao ideal pelos
direitos iguais, desenvolvia-se a partir da perspectiva de desigualdades
sociais legalizadas entre homens e mulheres pela diferenciação sexual. “Se
a subordinação da mulher não é justa, nem natural, como se chegou a ela, e
como ela se mantém?” (PISCITELLI, 2009, p. 127).
Embora vinculada às questões de ocupação de espaço e também
alcance de poder social, a primeira onda do movimento feminista ficou
entendida em sua contraditória relação com o ideal sobre mulher, por
propor pautas generalizadas que não situavam a complexidade das opressões
femininas e da relação de subalternidade da mulher em relação ao homem
(BITTENCOURT, 2015).
Em 1949, em meados da segunda onda feminista, Simone Beauvoir
publicou O Segundo Sexo e trouxe pesquisas revolucionárias para a
época, construindo reflexões, críticas e diferenciações sobre sexo e gênero.
“Ninguém nasce mulher, torna-se”; a célebre citação de Beauvoir refere-se
a construção social da categoria mulher, por via da diferença entre sexo,
simplesmente biológico, e gênero, desenvolvido socialmente mediante
comportamentos e padrões.

264 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O gênero, segundo Beauvoir, está intrinsecamente às condições
naturalizadas dos homens e das mulheres nas construções sociais, ditados
dentro da cultura e das relações humanas. Assim desenvolve o conceito de O
Outro, no qual a mulher determina-se socialmente a partir do homem, não
simplesmente em oposição como também em subalternização. “O sujeito só
se põe se opondo; ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o
inessencial, o objeto” (BEAUVOIR, 1970, p.12).
Durante a década de 1980, na terceira onda feminista; a conceituação
de gênero passou por uma série de reflexões e críticas pelos grupos de estudo
sobre gênero e feminismo. Compreendendo as especificidades nas diferenças
identitárias, feministas negras dos Estados Unidos e de países subalternizados,
como países latino-americanos, começaram a desenvolver paralelos sobre
a falta de representatividade desse sistema social ao desconsiderar questões
sociais como classe, raça e nacionalidade. “O poder opera através de estruturas
de dominação múltiplas e fluidas, que se intersectam, posicionando as mulheres
em diferentes lugares e em momentos históricos particulares” (PISCITELLI,
2009, p. 141).
O foco do sistema sexo/gênero, desenvolvido anteriormente por Gayle
Rubin em meados dos anos 1970 e 1980, foi considerado como teoria que
dispunha certa invisibilidade às demais formas de opressão e visto, por muitas,
como um pensamento direcionado a um feminismo branco e imperialista.
O conceito de pós-feminista, dentro das compreensões da terceira onda
feminista e a partir dos anos 1980, desenvolveu na contradição da ótica de
que os direitos das mulheres tivessem sido alcançados (PISCITELLI, 2009).
Este processo social trouxe críticas às próprias atuações feministas, como
pondera Bittencourt (2015, p. 203), “como a percepção dos recortes de classe
e raça e o avanço do feminismo para além das mulheres brancas e de classe
média, abandonando as relações estruturais imbricadas que o patriarcado e o
machismo assumem com o racismo e com a exploração capitalista”.
Uma das pesquisas que tensionam tais relações é a da antropóloga
estadunidense Judith Butler, que, na terceira onda feminista, nos anos 80,
trouxe importantes contribuições acerca das teorias de estudo de gênero e
queer, desenvolvendo-se contra a legislação não-voluntária da identidade, para
desvelar mecanismos sociais que criam imposições acerca da identidade do
indivíduo (MISKOLCI, PELUCIO, 2007).
Segundo Miskolci (2009, p.5), “compreendem a sexualidade como um
dispositivo histórico do poder”; perspectiva de rompimento com os valores

Ebook IV SIGESEX 265


e normas estabelecidos para desconstruir as óticas atuais – principalmente
relacionadas à heteronormatividade compulsória e quem não se encaixasse no
conceito de “normalidade”, sejam gays, travestis, transsexuais; fosse considerado
abjeto, como Butler (2003) relaciona, às práticas e performances estabelecidas
socialmente.

O gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, ét-


nicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.
Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das inter-
secções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e
mantida (BUTLER, 2003, p.20).

As compreensões de feminino, masculino e as noções de sexo não


exemplificavam a complexidade dos fenômenos de construção de gênero
e tampouco a fixidez do sexo, como se a ele não permitisse alteração ou
reformulação. O caráter do sexo pode ser culturalmente construído como
o gênero, e ainda, pondera Butler, “homem e masculino podem, com igual
facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher
e feminino, tanto um corpo masculino quanto um feminino” (BUTLER,
2003, p. 25).

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e


sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um
devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma
origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está
aberto a intervenções e re-significações (BUTLER, 2003, p. 59).

As pesquisas sobre as naturalizações dos papeis sociais e as desconstruções


acerca da identidade interagem às perspectivas interseccionais, observando
os intercruzamentos de raça, classe, gênero, sexualidade e nacionalidade. As
próprias teorias feministas apresentaram tensões e divergências acerca de
alguns enquadramentos serem considerados, em sua perspectiva, imbricados
em uma ótica eurocentrada e considerada inferior de mulheres de países
subalternizados, como os latino-americanos, asiáticos e africanos, “uma
perspectiva vitimizadora, essencializadora e até mesmo salvacionista na maneira
como o feminismo produzido nos países tidos como centrais pensavam essas
alteridades” (PELUCIO, 2012, p. 407).

266 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


As tensões epistemológicas foram incisivas ao questionarem as produções
relacionadas a um feminismo branco, produzido a partir de um único lugar
de fala e trazendo perspectivas por vezes generalistas ao abordarem diferentes
questionamentos sob o olhar singular enquanto discurso. E, por conseguinte,
consolidando a universalização da categoria mulher e dos reducionismos
rejeita sujeitos que não se encaixem nesses padrões pressupostos.
Neste sentido, diferentes pesquisas em feminismo e gênero desenvolveram-
se a partir de vivências e pesquisas subalternas, vindo de um feminismo mais
pluralizado para incluir problematizações de todas as categoriais sociais e
localidades de mulheres. Alguns exemplos de pesquisadoras: Donna Haraway,
Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Ella Shohat, Bell Hoocks, Audre Lorde,
Norma Alarcón e Glória Anzaldúa.
A partir desses olhares interseccionais, teorias feministas atentaram-se
para as posições sociais a partir de seus lugares de fala. A luta pela visibilidade
das histórias, compreendendo os contextos de raça, gênero, sexualidade, classe,
e, em uma perspectiva pós-colonial, nacionalidade.

[…] uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou


mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas
experimenta a opressão a partir de um lugar que proporciona um ponto
de vista diferente sobre o que é ser mulher em uma sociedade desigual
racista e sexista. Raça, gênero, classe social e orientação sexual reconfi-
guram-se mutuamente […] Considero essa formulação particularmente
importante não apenas pelo que ela nos ajuda a entender diferentes fe-
minismos, mas pelo que ela permite pensar em termos de movimentos
negro e de mulheres negras no Brasil. Este seria fruto da necessidade de
dar expressão a diferentes formas da experiência de ser negro (vivido
através do gênero) e de ser mulher (vivida através da raça) (BAIRROS,
1995, p. 461 apud RIBEIRO, 2017, p.70-71).

A teoria interseccional articula tais categorias em relação a “diferença,


em sentido amplo para dar cabida às interações entre possíveis diferenças
presentes em contextos específicos” (PISCITELLI, 2008, p. 265). Ou seja,
compreender seus intercruzamentos sem generalizá-los, e sim mediante suas
perspectivas próprias.
Construir narrativas a partir de sua própria história: a partir da
perspectiva interseccional, os movimentos sociais lutaram por suas conquistas

Ebook IV SIGESEX 267


e lutas invisibilizadas ao longo da história. A partir dessas perspectivas
interseccionais e também da segmentação de feminismos por diversas lutas,
podemos entender a necessidade não apenas da construção de um diálogo
pluralizado, mas também de um espaço que consiga condicionar, parafraseando
o título deste artigo, vozes, vezes e viéses de fala. Unidos à luta dos negros,
das mulheres, das transsexuais, das lésbicas e de grupos excluídos dentro dos
princípios dos direitos humanos, o feminismo começou a desenvolver-se assim
em uma perspectiva mais plural – a partir da visão interseccional de que não
seria preciso pertencer a determinada classe oprimida para assim lutar com ela.
Como Ribeiro pondera, conclusivamente, é preciso analisar lugares de
fala como localidades sociais, a partir da perspectiva de que determinados grupos
são subalternizados, e assim, têm seus discursos, narrativas e atos silenciados –
em suas produções intelectuais, saberes, vozes e espaços sociais. Similarmente,
não apenas grupos subalternizados podem falar em suas próprias visões de
mundo, opressões e espaços como também grupos hegemônicos contribuir com
conhecimento e reflexões a partir de seus privilégios sociais – e nisto, a autora
enfatiza a necessidade de que mulheres brancas pensem sobre feminismo negro,
que homens brancos tensionem e combatam o racismo e machismo, e, em assim,
que apresentem seus lugares de fala a partir de suas localidades sociais.
Se até meados de 1980 as reuniões de mulheres que discutiam
direitos civis e feminismo aconteciam em pequenos grupos, em movimentos
singulares em casas ou coletivos fechados por proximidade social, como um
clube de leitura, por universidade ou classe social; agora as ações e pautas
sociais configuram-se mais dispersas, difusas e pluralizadas. Motivados pela
necessidade de discutir posições sociais, os grupos feministas começaram como
um feminismo de prestação de serviço, mais generalizado e instrumentalizado,
mas também e enfaticamente como feminismo mais segmentado, e, em certo
ângulo, coletivo.
Reivindicações igualitárias somaram discursos pela necessidade de lutar
por espaço e produção de sentidos no cenário social para existir enquanto ser
humano e necessário de direitos em perspectivas diferentes. Neste sentido,
o feminismo encontrou, a partir dos anos 1990, uma onda interseccional
ligada a diversas segmentações do movimento, abarcando levantes de várias
causas e defesas, a exemplo o feminismo negro, lésbico, ecofeminismo e até o
feminismo radical.
Enquanto símbolo e produção de disputas, o campo comunicacional
envolve em interesses democráticos, lutas de poder e tensiona desigualdades.

268 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A partir dos anos 1990, emergiu-se nos contextos de conflitos e interesses
identitários, com ênfase para a participação interativa na internet
(LEMOS, 2009).

2- Comunicação, feminismo e participação coletiva em rede

A comunicação enquanto ambiente web e virtual desenvolveu-se nos


últimos anos e a rede foi reconhecida não como uma amostra mas sim como
campo de construção social dentro das rotinas cotidianas. (CARDOSO,
CASTELLS, 2005). Em um movimento social conhecido como a quarta onda
do feminismo, esse contexto de mudanças sociais e transformações digitais e
midiáticas desenvolve-se intrinsecamente relacionado aos novos ambientes em
rede. Assim, mesmo desenvolvendo-se enquanto um feminismo pluralizado,
somado a várias vertentes, gerações e formas de atuação ativista, pode ser
entendido como unitário em sua aproximação virtual dos grupos identitários.
A utilização das ferramentas comunicativas virtuais, assim, não apenas
aproximou e formou grupos feministas e de outros movimentos sociais como
também possibilitou a criação e produção de saberes, pautas e trabalhos
relacionados a gênero, tanto nas áreas da literatura, da arte e da própria
comunicação; atores sociais passaram a utilizar a internet para produzir,
veicular e trocar informações sobre feminismo e relações de gênero.
Uma das marcações das manifestações contemporâneas são as campanhas
sociais em rede, que através da mobilização virtual, especialmente por redes
sociais como Twitter e a Facebook, desenvolvem discussões e permeiam ações
públicas. Um dos exemplos a serem citados ocorreram enquanto movimento
de difusão em rede a partir dos protestos contra o aumento de tarifas de
ônibus em todo o Brasil, em junho de 2013; iniciativa que levou milhares de
pessoas não apenas a debaterem e protestarem a partir dos espaços virtuais
como também levou às pessoas a um movimento em massa para as ruas.
Através de vídeos, fotos e utilização de hashtags, como #WhiteMonday,
#VemPraRua, alcançaram 20 mil compartilhamentos no primeiro dia, 17 de
junho, levando 270 mil pessoas para as ruas; e fizeram parte de um movimento
de ocupação de 130 cidades do país, com 1,4 milhão de pessoas três dias depois
(HOLLANDA, 2018). As pluralidades de vozes dos movimentos sociais que
agruparam-se em meados de 2013 tendo em vista a repercussão dos protestos
de junho de 2013 trouxeram forças para as formações e construções dos
movimentos feministas, seja a partir do movimento negro, lésbico, trans e

Ebook IV SIGESEX 269


outros que tiveram espaço não apenas nas redes como também nas ruas.
Não tendo relação partidária, a autonomia das reivindicações “não
dependiam exclusivamente do sistema político e operavam também por meio
das ações diretas e dos debates e laços criados na ocupação coletiva dos espaços
públicos” (HOLLANDA, 2018, p. 27). As reivindicações e lutas nas novas
e velhas linguagens dos grupos feministas tiveram importante demarcação e
crítica sobre a objetificação e a opressão do corpo feminino. A Marcha das
Vadias, que surgiu em 2011 no Canadá e concentrou-se em diversos países
no mundo, como o Brasil, foi uma manifestação contra a cultura do estupro
na normatização da violência sexual contra a mulher. Por diversas capitais e
cidades do país, mulheres saíram às ruas com roupas normais e também as
consideradas “provocantes”, como saias e lingeries, para satirizar e repelir
a crença de que a mulher provoque crimes como assédio sexual e estupro
mediante a roupa que use.
Outro exemplo foi a campanha “Ni Una a Menos”, após o feminicídio
de Lucía Perez, na Argentina, que gerou grandes protestos por toda a América
Latina contra os crimes causados por relação de gênero. A descolonização
do corpo e sua desconstrução como manifesto de protesto e também a
ressignificação do termo “vadia”, usado em sinal de desvalorização, assim como
a luta pela igualdade de gênero e pelo fim da violência foram pontos-chave na
lógica da manifestação, como também pondera Ivana Bentes:

Destaco a emergência de novas linguagens nesses movimentos urbanos:


as mulheres da Marcha das Vadias exibindo seus seios e corpos pintados,
reivindicando direitos e liberdade […] Ou seja, falamos de uma reinser-
ção do corpo e dos corpos nas manifestações. Estamos nesse momento
intenso de potencialização política e da emergência de novos discursos
e atores que usam as redes sociais e se organizam conectando as redes
digitais com os territórios e os corpos. Olhando para as imagens pro-
duzidas, cartazes, memes na internet, hashtags, vídeos e fotografias,
encontramos uma transversalidade e complementaridade desses movi-
mentos e discursos (BENTES apud HOLLANDA, 2018, p. 24-25).

A mobilização de conteúdos feministas por meio das redes sociais


alcançou internautas de todos os lugares do país; no Facebook, páginas como
Não me Kahlo (1.236.214 curtidas) e Diários de uma feminista (980.471
curtidas) são exemplos de produções feministas em rede. Campanhas e

270 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mobilizações em prol do combate a violência contra a mulher e do machismo,
racismo, transfobia e homofobia encontraram respaldo não apenas nas internet
e nas redes sociais, com as trocas de experiências entre mulheres de diferentes
gerações e localidades sociais.
Campanhas de mobilização em rede como #CarnavalSemAssedio,
incentivava o debate sobre o assédio feminino, e #MamiloLivre, contra a
censura do corpo feminino e pela luta de gênero, são exemplos que mesclam
feminismo, comunicação e mobilização em tempos virtuais, para questionar
os espaços públicos e as opressões sofridas pelas mulheres em sociedade; além
de utilizar a hashtag como potencial de organização e distribuição de conteúdo
(HOLLANDA, 2018).
Outro exemplo foi a campanha “Chega de Fiu-Fiu”, desenvolvida pelo
portal feminista ThinkOlga, desenvolveu uma pesquisa com oito mil mulheres
sobre casos de assédios em ruas, ônibus, metrôs e outros espaços públicos; as
vítimas podiam compartilhar ou denunciar o caso e construindo estatísticas
pelos recursos multimídias e de geolocalização (SOUZA, 2015). Desenvolveu
ainda, para impressão e download, uma cartilha informativa combatendo a
lógica das cantadas e elogios nos espaços públicos, com informações e serviços
de acolhimento, além do vídeodocumentário “Chega de Fiu-fiu” que retratou
a realidade dos assédios em vias urbanas em várias capitais do país, exibido pelo
país inteiro por meio de ONG’s, universidades e outros órgãos relacionados
aos direitos da mulher.
A partir de referências de difusão, coletividade e o pluralismo em suas
várias localidades sociais, as pautas feministas encontraram novas e antigas
ferramentas e expressões de lutas, como os protestos nas ruas, manifestações
e grupos reivindicando igualdade de direitos e contra opressões cotidianas. A
identificação de todas por todas, a partir da empatia com pessoas oprimidas
por questões sociais que não necessariamente precisam ser as suas, a exposição
virtual de temas considerados tabus, como relacionados ao corpo, a dinâmica
da exposição e do anonimato; pode ser perceptível nas manifestações em rede
como narrativa que, como expressa Hollanda (2018, p. 36):

Expõe uma empatia que não se dá através de laços estreitos e íntimos,


preestabelecidos por relações de proximidade e convívio anteriores ao
evento da manifestação, mas por uma paradoxal pessoalidade impes-
soal. Aqui, é importantíssimo sublinhar que essa experiência desafia
diretamente um limite conhecido das ações coletivas tradicionais, que

Ebook IV SIGESEX 271


sempre esbarravam na dificuldade de identificação subjetiva entre os
participantes dos protestos.

“Os feminismos em rede se empenham no uso e na forma de novos


instrumentos em suas lutas. Mais do que defender racionalmente ideologias,
os grupos produzem laços que tecem uma expressiva percepção comum”
(HOLLANDA, 2018, p. 47). A narrativa, deste modo, acontece de
maneira repetida, integrando a experiência coletiva e em uma espécie de
horizontalidade, pelos mecanismos empáticos de que todas são afetadas, como
na campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”, realizada em 2016 após o
estupro coletivo de uma jovem de 16 anos; que levou milhares de mulheres às
ruas no país contra a cultura do estupro.
O movimento feminista relacionado às estratégicas comunicacionais e
envolvido na quarta onda não pode ser entendido simplesmente pelas novas
formas interacionais em rede, como também pelos movimentos de união,
difusão e pluralização de vozes – neste sentido, a interseccionalidade pode
ser entendida como uma das perspectivas -, um momento em que mulheres
negras, brancas, indígenas, trans, cis, lésbicas produzem conteúdos e levantes a
partir de suas diversas localidades sociais.
Por conseguinte, integram pluralidades de encontros e de lutas e com a
força potencializadora da difusão do ambiente em rede, configurando-se em
uma perspectiva ampla de faixas etárias, vinculando diferentes gerações de
mulheres para pautas em comum e partindo da capacidade multiplicadora da
internet, e ainda, intensificou “uma estratégia feminista histórica, que se baseia
na força agregadora do privado e das narrativas pessoais (HOLLANDA,
2018, p. 60).

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Ebook IV SIGESEX 273


A vida é minha, o corpo é meu: análise
sobre a autonomia reprodutiva da mulher e
a intervenção do Estado
Life is mine, the body is mine: analysis of
womens reproductive autonomy and the State
intervention
Mirella Lacerda Teixeira de Souza1

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de discutir as intervenções


do Estado no que concerne as decisões das mulheres quanto à reprodução
e aos seus corpos. A análise foi realizada a partir das leis que restringem e
criminalizam o aborto no Brasil, as limitações quanto à autonomia reprodutiva,
principalmente no que tange às burocracias encontradas quanto a seu direito
de reproduzir ou não, além de levantamento documental para verificar as
ocorrências da prática ilegal em grupos de mulheres no país.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo; Mulher; Autonomia reprodutiva

ABSTRACT: This work aims to discuss the interventions of the State regarding the
decisions of women as for reproduction and their bodies. The analysis was based on the laws
that restrict and criminalize abortion in Brazil, limitations on reproductive autonomy, especially
regarding the bureaucracies found about their right to reproduce or not, as well as a documentary
survey to verify the occurrences of the illegal practice in groups of women in the country.
KEYWORDS: Body; Woman; Reproductive autonomy

Introdução

O corpo da mulher sempre foi alvo de constantes debates e,


consequentemente, foco de intervenções conservadoras e patriarcais que
impunham um modelo a ser dominado por organismos detentores do poder.
Em virtude disto, alguns temas não são esquecidos e estão sempre no centro das
1. Estudante do mestrado em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail: mirellala-
cerda@gmail.com

274 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


discussões no Brasil, como é o caso da autonomia reprodutiva, do planejamento
familiar e do aborto. Assuntos que envolvem direitos reprodutivos da mulher,
ainda são motivos para causar muita polêmica no país. Quer seja pelas políticas
de planejamento familiar com inserção de métodos contraceptivos, quer seja
pelo levante feminista que reivindica o direito ao aborto legal e seguro. Estes
assuntos estão diretamente ligados à mulher e à agenda feminista, cujas pautas
estão presentes os movimentos que lutam pela ampliação das políticas públicas
e de um sistema de saúde mais humanizado.
Neste trabalho, a literatura revisada é fundamental para poder dar base
e fundamentar as questões que se quer analisar: a contracepção e a autonomia
da mulher sobre seu corpo. Diante das transformações sociais e do avanço das
profundas lutas travadas pelas feministas, faz-se necessário transferir à mulher
o direito a decidir sobre reprodução e todas as escolhas que envolverem seu
corpo ao longo da vida. No entanto, o Estado se coloca na contramão desta
questão interferindo diretamente nos direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, utilizando-se das leis impostas para interferir nos desejos individuais
de cada uma.
Para a escrita deste trabalho, foi necessário realizar um levantamento
bibliográfico de autores que já escreveram sobre a temática, bem como a utilização
da legislação para justificar a intervenção do Estado sobre o corpo feminino.
O trabalho é desenvolvido da seguinte forma, primeiramente é abordado o
estudo da implementação de políticas públicas voltadas para o planejamento
familiar e em seguida, a luta das mulheres para conquistar o direito a garantir as
intervenções que acharem pertinentes acerca do seu próprio corpo.

1- Breve histórico das Políticas Públicas Brasileiras quanto à


reprodução

No Brasil, a luta por direitos protagonizada pelas mulheres ocorre


desde o século XIX, quando em 1827 já é garantido o acesso à educação.
Com o passar do tempo, as mulheres seguem na luta e conquistam direitos
como o ingresso na educação superior; o direito ao voto; e, a igualdade de
direitos, através da Carta das Nações Unidas. Ações para retirar o estigma de
mulher como reservada aos afazeres domésticos foram constantes na pauta das
feministas, por isso, aos poucos, as mulheres entraram no mercado de trabalho
e desempenharam funções que rompiam com o papel social que outrora lhes
foi atribuído.

Ebook IV SIGESEX 275


Com a mulher ocupando outros espaços sociais e o mercado de trabalho,
havia necessidade de pensar a contracepção e a implantação de políticas públicas
voltadas para o planejamento familiar como fundamentais para a questão
da saúde e do bem-estar da mulher. Na década de 1970, com o assunto sobre
a demografia mundial em evidência, sobretudo a de países pobres, a ausência
de posicionamento por parte do Ministério da Saúde do Brasil, permitiu o
crescimento de instituições que agiam de forma a controlar a natalidade.
Neste sentido, vale ressaltar que muitas políticas públicas de controle
de natalidade foram difundidas no mundo, sobretudo nos países mais pobres
e mais populosos. Os programas são frutos da teoria Neomalthusiana, criada
após a Segunda Guerra Mundial pelos países do norte desenvolvido para
justificar o atraso dos países do sul subdesenvolvidos e a fome que acometia
uma grande parte da população destes países. O caso mais conhecido de
políticas de controle de natalidade consiste na política do filho único da China.
Criada na década de 1970, a lei permitia que casais tivessem apenas um filho,
e caso tivessem mais de um, os casais eram punidos. O Brasil, diferentemente
da China, não interferiu na dinâmica demográfica, deixando livre o direito às
pessoas de decidirem quanto à reprodução.
Na década de 1980, a situação dos brasileiros é amplamente debatida
quanto à qualidade de vida, o acesso aos serviços básicos e as desigualdades
sociais. O governo militar começa a proferir discursos a favor do controle de
natalidade, no entanto, as feministas da época, mesmo estando em número
incipiente e espalhadas pelas cidades do país confrontaram o posicionamento
dos militares, lançando ao debate as suas pretensões, já que numa política
controlista o objeto principal é o corpo da mulher. (COSTA; GUILHEM;
SILVER, 2006). E debater estes assuntos possibilitou pensar em políticas
que propusessem às pessoas, principalmente às mulheres, o planejamento da
família que se pretendia. Os movimentos sociais principalmente o movimento
feminista foi importante naquele momento para desconstruir o discurso
neomalthusiano bastante difundido na década anterior, além de protagonizar
um debate crítico sobre a legalização do aborto e o uso indiscriminado da
laqueadura. Mesmo no período de ditadura militar que o Brasil enfrentava, o
movimento feminista continuava expressando seus desejos:

A participação das mulheres na luta contra a ditadura dava-se igual-


mente na busca dos direitos civis e políticos, porém, alguns grupos de
mulheres, dentro da lógica de expansão desses direitos, foram, parale-

276 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


lamente as lutas antiditadura, inserindo a discussão da sexualidade e
reprodução, ou seja, o direito de ter ou não ter filhos e a relação com os
serviços de saúde. Essas reivindicações faziam com que as mulheres bra-
sileiras, a partir dos anos 60, processassem uma ruptura com o clássico
e exclusivo “papel social” que lhes era atribuído, contribuindo para uma
redefinição das relações sociais como um todo. Buglione (2000, p.24
apud ALECRIM et al., 2014, p. 165).

Conforme citação anterior, a ditadura militar não foi fator impeditivo


para que o movimento feminista não continuasse a sua pauta na conquista pelos
direitos da mulher. Sendo assim, em 1983 o Ministério da Saúde lança o Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISAM, a fim de garantir o acesso
das mulheres a qualquer informação acerca dos meios de prevenção à gravidez
indesejada. Pela primeira vez no país um programa foi pensado para fornecer
uma variedade de métodos contraceptivos e informações dos mesmos, tanto
para as mulheres quanto aos profissionais de saúde, a fim de possibilitar que cada
mulher tivesse autonomia sobre seu corpo, escolhendo a melhor contracepção e
a quantidade de filhos que gostaria de ter. É a partir dos anos 1970 que o número
de filhos por mulher no país sofre uma drástica redução, havendo transformação
na fecundidade em todas as faixas de idade. (ALVES, 2017).
Nota-se que, na década de 1980 a preocupação governamental brasileira
estava centrada no controle demográfico como difundido pelos teóricos
europeus, mas com a participação da sociedade no debate, a intenção mudou
e prevaleceu o acesso ao conhecimento quanto à definição do tamanho da
família que se pretendia ter. Por isso, a proposta do programa PAISAM era
deixar aberta à escolha da mulher acerca do que seria melhor para o seu corpo,
e para isso eram necessários instrumentos que difundissem o conhecimento,
deixando-a livre quanto ao exercício do direito de escolha. O movimento
feminista teve importância nas mudanças governamentais quanto às políticas
públicas para o planejamento familiar, já que pressionou o Estado para
prevalecer o desejo de cada mulher quanto ao seu corpo e as suas escolhas.
A saúde é assegurada na Constituição Federal de 1988 como direito de
todos e obrigatoriedade do Estado de prover aos cidadãos políticas e ações
quanto a redução de doenças, meios de prevenção e acesso à informação. Ainda
no sentido da saúde, o texto consagra no art. 226 o direito dos casais quanto ao
acesso a conteúdos educacionais e científicos para decidirem livremente acerca
do planejamento familiar. Não escapa a observação acerca do termo “casal”

Ebook IV SIGESEX 277


utilizado na Constituição de 1988 e isso infere a questionar sobre as mulheres
solteiras. Estariam elas à margem do direito de receberem informações no que
se refere ao planejamento familiar?
Diante do questionamento anterior, no ano de 1996, o presidente
da República sanciona a lei 9.263 do planejamento familiar. Assim, no seu
art. 2º, a lei modifica a redação dada na Constituição e amplia os serviços de
planejamento familiar às mulheres e aos homens, independente do estado
civil. Ainda nesta questão, a lei prevê serviços que deverão ser prestados pelo
Sistema Único de Saúde - SUS: atendimento à concepção e contracepção;
pré-natal; assistência ao parto; informações quanto às doenças sexualmente
transmissíveis; campanha de atenção e prevenção aos cânceres que acometem
os órgãos de reprodução e de mama.
Alguns campos científicos começam a pesquisar a questão da mulher,
tendo em vista as mudanças demográficas que ocorreram no Brasil sem que
existisse uma política de controle realizada pelo Estado. Alguns fatores podem
ser observados e possibilitam compreender essa mudança, como o ingresso
maciço das mulheres no mercado de trabalho e o tempo reduzido para dedicação
à prole; o acesso à educação; a urbanização que forneceu uma nova organização
social ao espaço; e a industrialização que reduz a necessidade de mão de obra. Os
fatores mencionados ocorrem simultaneamente à transformação da população.
A autonomia da mulher se refere a decisão de escolher o que ela
acredita ser bom para si. É a liberdade de tomada de decisão que deve ser
ofertada às pessoas e respeitada a sua opção de escolha. No entanto, para que
esta autonomia seja respeitada é indispensável que a sociedade disponha de
amplo conhecimento para que o seu direito seja efetivamente reconhecido.
No campo do planejamento familiar, se há falta de métodos contraceptivos
ou mesmo pessoas capacitadas para propagar informações pertinentes ao
assunto, a autonomia não está de fato sendo respeitada, além de tornar as
pessoas vulneráveis, principalmente as mulheres. Não há pessoas autônomas
se há privação na área de saúde ou se a lei é punitiva quanto a julgar as decisões
tomadas pela mulher no que se refere a seu corpo.
Pelo histórico de serem vistas como procriadoras - porque este foi o
papel social que lhes foi atribuído durante muito tempo - não é incomum que
mulheres em idade fértil sejam cobradas pela sociedade para serem mães, e
caso resistam a desempenhar essa construção social, são vistas como pessoas
sem humanidade por não quererem enfrentar o que seria o desejo natural. É
também neste sentido que o movimento feminista se levanta com o objetivo

278 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


de proteger as escolhas individuais das mulheres que não desejam ser mães e
lutam pelo direito de escolha do melhor para o seu corpo como os métodos
contraceptivos, a esterilização e o aborto.
A maternidade não deve ser imposta à mulher, cada uma deve ter o direito
de escolher a quantidade, o tempo entre uma gestação e outra e até mesmo se
deseja ou não ter filhos. No entanto, algo que deve ser disponibilizado a todas
é o acesso a informação por parte do Estado, além de capacitar pessoas para
serem difusoras de conhecimento quanto a reprodução.

2- Autonomia reprodutiva e o papel do Estado sobre a vida

A falta de conhecimento adequado acerca dos métodos contraceptivos


pode conduzir às mulheres à gravidez indesejada. Uma gravidez indesejada pode
ser evitada quando o conhecimento dos métodos contraceptivos é disseminado,
proporcionando às pessoas o uso da contracepção mais adequado ao corpo.
Os métodos contraceptivos são classificados em reversíveis e irreversíveis.
Os métodos reversíveis são: tabelinha; método da ovulação ou do muco cervical;
coito interrompido; preservativo (camisinha); espermicidas; diafragma;
Diu (dispositivo intrauterino); pílula anticoncepcional; anticoncepcionais
injetáveis; implantes subcutâneos; anticoncepcional de emergência (pílula do
dia seguinte). Os métodos irreversíveis são: ligação de trompas (laqueadura) e
vasectomia. (MOREIRA, 2011).
A possibilidade de ineficácia dos métodos contraceptivos é uma
possibilidade de aumento para o número dos abortos clandestinos no
Brasil. Como a interrupção de uma gravidez só é possível no Brasil em casos
ressalvados em lei – feto anencéfalo, gravidez resultante de estupro e risco de
morte para a gestante – à mulher só resta seguir com a gravidez indesejada ou
recorrer às clínicas de aborto com métodos que não garantem o seu bem-estar
físico. A problemática do aborto no Brasil gira em torno da forma como ele é
realizado, sendo uma questão de saúde pública.
Nenhum método contraceptivo ainda inventado possui total eficácia
na prevenção à gravidez. Os métodos que possuem o risco de falha menor,
são os que mais promovem efeitos colaterais e os métodos que tem o menor
risco de provocar problemas à saúde, são os que menos garantem eficácia.
(CARVALHO; SCHOR, 2005). No entanto, na ocorrência de uma gravidez
indesejada por falha no método contraceptivo utilizado pela mulher, a lei
brasileira não permite a interrupção da gestação, salvo os casos já citados.

Ebook IV SIGESEX 279


A mulher deve ter o direito de assistência à saúde como previsto na
Constituição Federal e deve ter o direito de decidir sobre o seu corpo. Essa
situação esbarra na legislação brasileira a ponto de impedir que as mulheres
sejam os sujeitos que protagonizam a sua história. Embora a escolha do método
contraceptivo tenha permitido à mulher decidir acerca da melhor forma de
evitar uma gestação indesejada, o seu corpo ainda é ambiente do Estado.
A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 29/2015 voltou a ser
pauta no Senado este ano após ser desarquivada. Nela está previsto o acréscimo
do termo “desde a concepção” no que se refere ao texto da inviolabilidade do
direito à vida. Se ocorrer a mudança proposta, abortos previstos em lei poderão
ser proibidos, já que outras interpretações poderão ser dadas à nova redação.
A escrita põe em risco a vida e a dignidade da mulher, principalmente a que
se encontra em extrema vulnerabilidade, já que homens que legislam sobre os
corpos femininos se acham no direito de defenderem embriões e ignorarem
mulheres que vivem num país de contextos diversos e desiguais.
A interrupção da gravidez em clínicas clandestinas é sem dúvidas uma
injustiça social que leva mulheres à morte principalmente as solteiras e as
divorciadas, além de acometer a população de maior vulnerabilidade “[...] de
mulheres pobres e negras, com baixa escolaridade; as mais jovens e aquelas
com menor acesso à informação”. (ANJOS et al., 2013). E já que no Brasil
ainda não há possibilidade de abortar de maneira segura, as mulheres recorrem
a maneira mais desumana, mesmo com a possibilidade de levá-las à morte.
Sem dúvidas, entre outros fatores já mencionados, os métodos
contraceptivos modernos foram fundamentais para promover a emancipação
da mulher no país. A intensa procura por laqueadura no país na década de
1980, sobretudo nas áreas mais pobres, preocupou agentes públicos e a
população em geral, como os movimentos sociais e pesquisadores. Acreditava-
se estar acontecendo no país o financiamento da esterilização das mulheres
por instituições internacionais que faziam os repasses para clínicas de
planejamento familiar. Acredita-se que tentavam controlar a fecundidade
das mulheres brasileiras com a gratuidade da cirurgia ou cobrando preços
irrisórios. (CAETANO, 2014, p.312).
A esterilização feminina foi muito utilizada no Brasil. Acredita-se que
em 1986, o número de mulheres esterilizadas entre 15 e 54 anos no Brasil
correspondia a 31,1% e em 1996 aumentou para 40,1%. Trata-se do método
mais utilizado no país naquele período. Berquó, (1999 apud CARVALHO;
SCHOR, 2005).

280 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A lei do planejamento familiar 9263/96 permite a esterilização voluntária
de homens e mulheres no seu 10º artigo. Mulheres que completam vinte e
cinco anos ou que possuam dois filhos vivos podem manifestar o interesse para
realização da laqueadura tubária. Para tanto, a lei adverte que essas mulheres
devem receber o prazo de sessenta dias a partir da data em que manifestarem
o interesse, pois é possível que dentro deste prazo haja a desistência do desejo.
Para além do prazo dado, as mulheres devem ser atendidas por uma equipe
multiprofissional que possa informá-las sobre todos os outros métodos de
contracepção com a finalidade de evitar arrependimentos após o ato cirúrgico.
A falta de conhecimento e acesso a alguns métodos contraceptivos,
além da falta de estrutura do sistema de saúde contribuem para a mulher optar
pela laqueadura. Outro motivo que aumenta a procura pela cirurgia é o fato de
haver ineficácia nos métodos convencionais e o risco de provocar uma gestação
indesejada. As mulheres optam por um método que tenham uma possibilidade
de falha reduzida, que não provoque riscos à saúde e que seja bem aceito pelo
parceiro. Antes de realizar a laqueadura tubária, a possibilidade é que a mulher
já tenha utilizado dois métodos contraceptivos anteriormente e somente
depois se submetido a uma intervenção cirúrgica. (CARVALHO; SCHOR,
2005). Como há desestímulo à realização da cirurgia, por um bom tempo no
Brasil, uma das preferências foi a realização da laqueadura quando se fazia uma
cesariana. (GONÇALVES; GARCIA; COELHO, 2008).
Potter et al (2003, apud CAETANO, 2014) comenta que a maior
parte das cirurgias após o parto, foi mais certo de ocorrerem em mulheres nos
hospitais particulares do que nos hospitais públicos, deixando evidente que
as desigualdades sociais foi durante algum tempo problema para a efetivação
da Lei nº 9.263, na qual está explícito que todas as mulheres que manifestem
voluntariamente sua vontade em realiar a cirurgia deve ser atendida. Além de
terem observado que o aumento de cesarianas desnecessárias foi elemento para
incentivar a esterilização.
No Brasil, há mulheres cada vez mais jovens que manifestam o interesse
pela realização da laqueadura, e, posteriormente à cirurgia, a insatisfação é
grande e algumas optam pela reversão da esterilização. (GONÇALVES;
GARCIA; COELHO, 2008). Embora os marcos legais amparem as mulheres
a realizar a laqueadura tubária, existem casos de que os médicos impõem
dificuldades para as mulheres que resolvem tomar a decisão, possivelmente
para evitar que haja arrependimento, processos e reversão. Algumas burocracias
impedem que as mulheres tenham seu direito respeitado quanto à realização

Ebook IV SIGESEX 281


da laqueadura, inclusive por parte dos médicos e do serviço de saúde. Berquó;
Cavenaghi (2003 apud CAETANO, 2014).
Quanto a reversão da laqueadura tubária, Gonçalves; Garcia; Coelho,
(2008, p.732) esclarecem: “uma outra consequência, ainda mais séria, é a
observação que tem sido feita em ambulatórios de Ginecologia, de um número
considerável de mulheres arrependidas com a esterilização, expressando o
desejo de realizar a recanalização tubária”. Por esta questão há de se pensar
na importância de ampliar o acesso ao conhecimento quanto aos métodos
contraceptivos para analisar qual a melhor opção para o seu próprio corpo.
Embora seja uma opção legítima e de direito da mulher, a possibilidade mínima
de reversão da laqueadura deve ser esclarecida a fim de evitar que as decisões
tomadas sejam precipitadas.

Considerações finais

O assunto exposto neste trabalho serve para percebermos que, embora


a democratização dos métodos contraceptivos e do planejamento familiar
seja uma realidade para as mulheres brasileiras, ainda é possível perceber que
nem todas conseguem ter acesso e conhecimento irrestrito acerca do assunto.
Fatores como situação econômica e cultural ainda pesam nesta questão e
provam que o acesso ao conhecimento e aos métodos contraceptivos não
devem ser considerados os únicos itens importantes no que tange o direito
reprodutivo.
De fato, a Lei nº 9.263 que regulamenta o planejamento familiar trouxe
pontos importantes para a efetivação da cirurgia, como a possibilidade de
mulheres a partir dos vinte e cinco anos e tendo capacidade plena para saber
tomar suas decisões pudessem ser permitidas a realizarem a cirurgia, bem como
o impedimento da cirurgia em mulheres no parto e no pós-parto como forma
de evitar que as cesarianas sejam incentivadas. Outra questão importante é
as instituições que recebem o credenciamento terem uma equipe que possa
esclarecer sobre outros métodos reversíveis para que as mulheres possam
decidir pela melhor contracepção para si, antes de efetivar a cirurgia. No
entanto, não previu a obrigatoriedade no cumprimento da mesma por parte
das médicas/os e instituições de saúde que não efetivam a laqueadura como
objetivado no planejamento familiar, mesmo que a mulher que decide pela
intervenção goze de plena saúde física e mental.

282 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Na possibilidade de haver governos mais repressores e conservadores,
as mulheres são as que possivelmente perdem a voz e o direito às escolhas.
Quanto ao aborto, nota-se que o corpo da mulher pertence ao Estado e por
isso ele decide as regras. Muitas mudanças já ocorreram em relação à situação
da mulher na sociedade, mas ainda deve haver luta quanto aos direitos sexuais
e reprodutivos, principalmente no que se refere ao aborto, já que a maior parte
dos que são realizados é de maneira clandestina e que leva as mulheres à morte.

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284 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A questão de gênero nos intramuros das
aulas de matemática
The gender issue whitin the walls of
mathematics’ class
Elenilton Vieira Godoy1
Fernanda Dartora Musha2
Yasmin Cartaxo Lima3.

RESUMO: A escola costuma ser o primeiro contato do indivíduo com


o mundo social fora do ambiente familiar. Mesmo com a interculturalidade
brasileira, ainda vemos a prevalência de discursos excludentes - dentre eles,
o machismo, que costuma ser naturalizado. Temos como objetivo analisar
como gênero aparece em um dos elementos dos intramuros da escola: os livros
didáticos de Matemática dos 6º e 9º anos.
PALAVRAS-CHAVES: Gênero; Livro Didático; Matemática

ABSTRACT: The school is usually the first contact of the individual with the social
world outside the family environment. Even with brazilian interculturality, we can still
perceive the prevalence of some excludent discourses - among these, the sexism, that, for many
times, is naturalized. The objective of this paper is to analyze how gender appears in one of the
intramural elements of the school: Middle School’s Mathematics textbooks.
KEYWORDS: Gender; Textbooks; Mathematics

Introdução

É recente a relação do Estado com os livros didáticos no Brasil, tendo


início em 1937 com a criação do Instituto Nacional do Livro (INL), que tinha
1. Possui graduação em Bacharelado em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998), gra-
duação em Licenciatura Plena em Matemática pelo Centro Universitário Sant'Anna (1999), mestrado em Educação
Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e doutorado em Educação pela Universidade
de São Paulo (2011). Pós-doutorado em Educação pela Universidade de Educação (2018).
2. Possui ensino-medio-segundo-grau pelo Centro Universitário Franciscano do Paraná(2014). Tem experiência na
área de Matemática.
3. Possui Ensino Fundamental e Médio completos pelo Colégio Bom Jesus Nossa Senhora de Lourdes. Fez estágio no
PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) da Universidade Federal do Paraná no período de
2013 até 2018, Concluiu o curso de Bacharel em Ciências Biológicas pela UFPR

Ebook IV SIGESEX 285


como um de seus objetivos baratear o custo, melhorar e aumentar a edição dos
livros no Brasil e facilitar a exportação de livros estrangeiros. No ano seguinte,
foi fundada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), que atuou na
legislação da produção dos livros didáticos no país. No Decreto-lei do CNLD,
já era deixado claro que não seriam aprovados materiais que contivessem
aspectos ofensivos às diferenças. Em 1985, com a volta da democracia no Brasil,
é instituído o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), tendo como
proposta a aquisição e distribuição gratuita de livros didáticos para alunos da
rede pública (CARRETA, 2017; CASSIANO, 2007). Dentro das diretrizes
do atual Decreto do PNLD (Decreto nº9.099 de 19 de julho de 2017) estão
inscritos os seguintes itens: respeito às diversidades sociais, culturais e regionais;
e, respeito à liberdade e o apreço à tolerância (BRASIL, 2017). Mas será que, de
fato, tais inscritos são avaliados na escolha dos livros didáticos?
O livro didático é de suma importância, sendo um dos materiais mais
utilizados pelos professores para planejarem suas aulas, porém, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) de 1997, está claro que tal material não deve
ser a única referência para a formulação das aulas (BRASIL, 1997; FRISON et
al., 2007). O livro didático também pode atuar como formador de valores que
“configuram concepções de conhecimentos, de valores, identidades e visões de
mundo” (FRISON et al., 2007), podendo ser visto como um reflexo da sociedade.
Tendo em vista tamanha importância desse material curricular didático, torna-
se relevante analisar como nele estão dispostas as relações de gênero, pois tais
representações podem servir de modelo para os estudantes no processo de
construção de suas identidades (CASAGRANDE & CARVALHO, 2006).
No ensino tradicional da matemática é comum que ocorra um
cerceamento do ambiente que envolve seus conceitos, delimitando um
afastamento da área de humanas. Skovsmose (2000) afirma que a educação
matemática tradicional limita soluções a uma única resposta dentro da
prática de exercícios. Como o livro didático é elemento chave nas aulas de
matemática, seus exercícios são ferramentas para essa tendência de isolamento
da matemática das questões sociais. Skovsmose (2000) defende que a educação
matemática seja suporte da democracia, criticando e sendo criticada. Nesse
sentido, o papel do livro didático deveria ser inclusivo.
Diversas instâncias atuam como possíveis constituintes de uma pedagogia
cultural, dentre elas, a escola atua como um espaço de legitimação de ideologias
sociais e culturais, porém, de forma discreta, de modo a fazer com que pensemos
que a sociedade em que vivemos é justa e natural (LOURO, 2019; APPLE, 1989).
A sexualidade é uma das questões pedagogizadas na escola, já que “ela
é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de

286 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam,
que instauram saberes, que produzem ‘verdades’” (LOURO, 2019). Assim, a
escola como sendo um local de reproduções sociais acaba por refletir relações
de poder existentes na nossa sociedade, dentre elas, a heteronormatividade,
que tem como seu “representante oficial” o homem branco, heterossexual,
cristão de classe média urbana (LOURO, 2008).
Para Butler (2019), gênero é um conjunto de atributos flutuantes com
efeito performativamente produzido e “imposto pelas práticas reguladoras
da coerência de gênero”, tendo o poder operando na produção da estrutura
binária (masculino-feminino) em que se pensa tal conceito. Dessa forma, é
impossível separar a noção de gênero dos embates políticos e culturais nos
quais ele é produzido e mantido. Os chamados “gêneros inteligíveis”, são aqueles
que estão em estado de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual
e desejo, tal configuração, acaba assumindo o lugar de “real”, consolidando e
incrementando “sua hegemonia por meio de uma autonaturalização apta e bem-
sucedida”. Dessa forma, os “gêneros inteligíveis” da nossa cultura ocidental, como
citado acima por Louro (2008), seriam os homens brancos e heterossexuais, e
todos aqueles que têm sua expressão de gênero incoerente com a norma cultural
imposta, têm a sua existência questionada (BUTLER, 2019).
Tendo em vista tais gêneros inteligíveis, construídos sob uma perspectiva
heteronormativa, são produzidos padrões de como deve ser o comportamento
de um menino ou menina. Se, por exemplo, uma garota gosta de jogar futebol,
comportamento normalmente atribuído ao gênero masculino, ela poderá
sofrer discriminação e ser desencorajada a praticar tal esporte. Tais atribuições
de gênero também ocorrem no campo das ciências, sendo as ciências exatas
uma área normalmente representada por figuras masculinas, escapando da
tal neutralidade que lhe é conferida (LINS; MACHADO; ESCOURA,
2016). Os livros didáticos, não só de matemática, têm papel fundamental na
reprodução de padrões de gêneros, pois a “coerção é introduzida naquilo que a
linguagem constitui como domínio imaginável do gênero (BUTLER, 2019).
Louro (1997), também comenta do papel dos livros didáticos em seu livro
“Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista”:

Os livros didáticos e paradidáticos têm sido objeto de várias investi-


gações que neles examinam as representações dos gêneros, dos grupos
étnicos, das classes sociais. Muitas dessas análises têm apontado para a
concepção de dois mundos distintos (um mundo público masculino
e um mundo doméstico feminino), ou para a indicação de atividades

Ebook IV SIGESEX 287


“características” de homens e atividades de mulheres. Também têm ob-
servado a representação da família típica constituída de um pai e uma
mãe e, usualmente, dois filhos, um menino e uma menina. [...] A ampla
diversidade de arranjos familiares e sociais, a pluralidade de atividades
exercidas pelos sujeitos, o cruzamento de fronteiras, as trocas, as solida-
riedades e os conflitos são comumente ignorados ou negados.

A forma celebrativa como são tratadas as diferenças nos livros didáticos


tem o problema de não questionar as relações de poder que atuam na produção
de tais distinções, gerando novas dicotomias, como “a do dominante tolerante
e do dominado tolerado ou da identidade hegemônica, mas benevolente e da
identidade subalterna, mas ‘respeitada’” (SILVA, 2009). É necessário entender
e trazer à sala de aula discussões do porquê certos padrões são considerados
os certos na sociedade em que vivemos e como eles foram construídos. Essa
análise histórico-cultural ajuda a compreender a atual situação em que
vivemos e constrói um pensamento crítico acerca de identidade de gênero
(LOURO, 2011; MAIA et al., 2012). A falta de discussões, como essas, levam
à reprodução de desigualdades e preconceitos dentro do ambiente escolar
(ALMEIDA; LUZ, 2014).
Tendo isso em vista, o objetivo do atual trabalho é verificar como
a questão de gênero aparece em um dos intramuros da escola do Ensino
Fundamental II, qual seja o livro didático de matemática.

1- Metodologia
Os livros utilizados para análise foram os livros de matemática dos 6º e
9º anos do Ensino Fundamental da edição “Nos dias de hoje” da editora Leya,
ambos escritos por Marília Centuríon e José Jakubovic e aprovados no PNLD
de 2017, ainda em vigência. A escolha dos anos se deu, considerando o Ensino
Fundamental II, pelo início e fim dessa etapa de ensino.
Realizamos então uma análise quantitativa das imagens com
representações humanas e, dentre essas, analisamos quais reforçam os
estereótipos de gênero e quais vão contra. Além disso, quantificamos o
número de representações de pessoas pensando, perguntando e respondendo,
e o número de professores e professoras. Com base na bibliografia utilizada,
também investigamos de forma qualitativa tais imagens, separando algumas
que chamaram mais atenção no sentido de manutenção ou de oposição a
estereótipos de gênero para uma análise mais concreta.

288 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


2- Análise quantitativa
Na Tabela 1 estão organizados os dados coletados. O primeiro resultado
obtido foi a Tabela 1, onde constam os dados quantitativos da análise dos livros
didáticos do 6º e do 9º ano.

Tabela 1: Imagens com representações humanas

Fonte: Os autores (2019)

No livro do 6º ano analisado, das 127 representações humanas,


temos 39 imagens (aproximadamente 30,5% destas) de pessoas apenas
pensando, perguntando ou respondendo alguém, resolvendo uma questão
ou dando informações sobre o conteúdo em questão. É interessante notar
que temos uma divisão praticamente igualitária de homens e mulheres nessa
situação, comumente retratada nos livros didáticos de matemática. Não
temos o domínio masculino da fala e do conhecimento - mulheres também
são questionadoras e detentoras do conhecimento. No livro do 9º ano, as
proporções são praticamente as mesmas: das 67 imagens com representações
humanas, 20 imagens (aproximadamente 30%) são de pessoas em ações
de pensar, perguntar ou responder e a distribuição de meninas e meninos
nessas atividades tem uma média variação. No livro do 6º ano, consistindo
em pouco mais de 11% das imagens com representação humana, as figuras
docentes apresentam um cenário distinto: temos 11 professores homens,
representando 78,5% do total de docentes, e apenas 3 professoras mulheres,
aproximadamente 21,5% do total de docentes. Nesse aspecto, observamos
uma discrepância entre os livros dos anos inicial e final do Ensino
Fundamental II, uma vez que no material curricular do 9º ano tem-se um
número igual de professores e professoras (5 de cada).

Ebook IV SIGESEX 289


Quando consideramos o ethos feminina e masculina, no livro do 6º ano
temos ainda 23 imagens com mulheres e homens divididos em seus papéis
tradicionais, o que constitui 18,0% das imagens em questão; e, no livro do
9º ano, existem 11 imagens que vão de encontro com os estereótipos de
gênero, constituindo 16,5% das imagens com representação humana do livro.
Dentre elas, temos a mulher associada à moda, família, cuidados da casa,
planejamento de festas, culinária e trabalhos manuais mais delicados, como
origami; e o homem carregando peso, praticando esportes, encarregados de
serviços gerais de reforma e até dirigindo. O homem é uma figura imponente,
aventureira e detentora de poder, usualmente vista fora de casa, enquanto a
mulher é delicada, feminina e é responsável pelos afazeres da casa, tais como
as compras do mês.
Para se contrapor à manutenção dos estereótipos dos papéis de gênero,
temos 6 figuras não convencionais – 5,0% das imagens consideradas, no
livro do 6º ano; e apenas 2 imagens combatendo os rótulos convencionais de
homens e mulheres – 3% das imagens, no livro do 9º ano. Nessas imagens são
retratadas mulheres em lugares de prevalência masculina - motogirl, atletas,
jogatina -, e homens dividindo espaço com mulheres em atividades manuais -
dobradura, recorte e desenho.

3- Análise qualitativa

Com base na bibliografia apresentada, realizamos uma análise qualitativa


de quatro imagens, sendo 3 do livro do 6º ano e uma do livro do 9º ano.

Figura 1: Mulher às Compras

Fonte: Centuríon e Jakubovic (2015, 6º ano e p.47)

290 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Na Figura 1, temos uma mulher com a filha comprando materiais
escolares e outros itens - cadernos, tintas, pincéis, tesoura, cola, esquadro,
transferidor. A caixa da loja, também mulher, recebe o dinheiro da mãe pelos
itens. A imagem reproduz muitos estereótipos de gênero em uma situação
simples: a mulher associada à imagem familiar e, como mãe, responsável por
atender às necessidades da criança; a garota associada ao trabalho manual
delicado, claro pelos itens comprados (materiais de pintura, desenho, recorte
e colagem); a caixa da loja, como mulher, em um trabalho majoritariamente
feminino. Não temos homens representados nessas situações, comuns para
quem tem crianças, e nem como caixas de papelaria, supermercados etc. Temos
poucos garotos representados desenvolvendo trabalhos manuais. Mulheres
continuam como alvo dessa representação: elas começaram a aparecer em áreas
de prevalência masculina, mas eles continuam em seus lugares tradicionais.
Naturalizar essas situações é reafirmar o papel da mulher da sociedade
tradicional: esposa, mãe, cuidadora do lar, delicada, recatada.

Figura 2: Crianças brincando na praia e mulheres praticando atletismo

Fonte: Centuríon e Jakubovic (2015, 6º ano e p.225 e 47, respectivamente)

Podemos ver na Figura 2-A duas crianças brincando na praia. O garoto,


mais à frente da imagem, joga bola, enquanto a garota constrói esculturas
de areia ao fundo. Reforça-se a ideia do garoto bom em esportes e da garota
graciosa e com gosto pelos trabalhos manuais delicados. Garotas tem pouco
incentivo para a prática de esportes, considerando as modalidades femininas
invisibilizadas e as atletas pouco reconhecidas. Um exemplo disso é a Copa do
Mundo de Futebol Feminino, que, em 2018, teve sua premiação aumentada pela
FIFA para US$30 milhões, porém, a premiação para a competição masculina
chegou a ter uma premiação de US$400 milhões em sua última edição
(PAULINO, 2018). Tendo isso em vista, a Figura 2-B, do Mundial Júnior

Ebook IV SIGESEX 291


de Atletismo de 2012, é de grande importância para uma representatividade
positiva que vai de encontro aos estereótipos de gênero.

Figura 3: Refeição em Família

Fonte: Centuríon e Jakubovic (2015, 9º ano, p.225)

Na Figura 3, do livro do 9º ano, vemos mais uma representação estereotipada


da figura feminina, nesse caso, a ilustração da “família tradicional” com pai, mãe
e duas filhas, e a mulher dando comida para a filha mais nova, reafirmando e
naturalizando a noção de que é papel da mulher cuidar das crianças.

Considerações finais

Como elemento central das aulas de matemática, o livro didático pode


tanto legitimar quanto questionar um pensamento (ideologia) dominante
nos intramuros da sala de aula. Os livros adotados pelo mais último edital
do PNLD devem ser compostos de iniciativas de inclusão que respeitem a
diferença e ambicionem a equidade e a justiça social. Nesse sentido, podemos
ver que os livros analisados não se mantém apenas no arquétipo submisso e
recatado da mulher: temos mulheres alcançando novos espaços, dominados
por homens, temos mulheres questionadoras e detentoras do saber. A mulher
é diversa, frequente e está em ambientes masculinos; ela, todavia, continua
como alvo do machismo estrutural e dificilmente divide seu lugar concebido (o
lar e seus afazeres, suas profissões típicas, suas atividades e interesses delicados)
com o homem. Temos que notar o avanço da concepção de mulher, mas buscar
cada vez mais representações assertivas que respeitem a pluralidade da mulher
e do homem, bem como sua igualdade como indivíduos perante a sociedade.

292 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Futuramente, pretendemos analisar coleções de livros didáticos adotadas
antes do Plano Nacional do Livro Didático e que foram reformuladas devido
ao PNLD. Tais análises pretendem observar como a questão do gênero era
tratada, nos livros didáticos, antes do PNLD. Por fim, essas análises pretendem
contemplar coleções de diferentes anos e disciplinas escolares.

Referências

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escola?. Curitiba: Appris, 2014.

APPLE, M. W. Currículo e poder. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre,


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nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997.

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Representações de gênero nos livros didáticos de matemática. Atas ANPEd, 29ª
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Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) à entrada do capital internacional
espanhol (1985-2007). 2007. Dissetação (Doutorado em Educação: História,
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Ebook IV SIGESEX 293


CENTURIÓN, M; JAKUBOVIC, J. Matemática nos dias de hoje, 6º ano: na
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294 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Mulher transexual e negra: voz excluída
Transsexual and black woman: excluded voice
Antonio Germano1

RESUMO: O presente trabalho discorre sobre a interseccionalidade


das categorias de gênero e raça que atravessam e marcam o corpo da mulher-
negra-transexual no contexto de inclusão/exclusão escolar. A pesquisa teve
como objeto de estudo a análise do discurso de uma jovem mulher negra
transexual na cidade de São Paulo, e teve como base a seguinte questão
norteadora: Em que medida posições de gênero e raça se relaciona com o seu
acesso à educação?
PALAVRAS-CHAVE: Raça, Sexualidade e Gênero.

ABSTRACT : The present paper discusses the intersectionality of the categories of


gender and race that cross and mark the body of the black-transsexual woman in the context
of school inclusion / exclusion. The research had as its object the analysis of the discourse of
a young black transsexual woman in the city of São Paulo, and was based on the following
guiding question: To what extent does gender and race positions relate to their access to
education?
KEYWORDS: Race, Sexuality and Gender.

Introdução

Este texto trata da interseccionalidade das categorias de gênero,


sexualidade e raça que atravessam e marcam o corpo da mulher-negra-
transexual no contexto de inclusão/exclusão escolar. Acredita-se que tal
intersecção é produtora de uma tripla vulnerabilidade em relação ao acesso à
educação, pois tais categorias tomadas como relações de poder colocam este
mesmo corpo, em pelo menos três registros distintos que se multiplicam para
rebaixá-lo e torná-lo submisso em detrimento às condições mais privilegiadas
1. Mestre em Educação com o tema “A efetivação da História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas no ensino Público
e privado: Um estudo comparativo entre duas escolas” (Uninove, 2016). Especialização em Gênero e Diversidade na
Escola (Unifesp). Doutorando em Educação pela Uninove. Professor na Educação Básica do município de São Paulo.
Contato: cafeatoa@hotmail.com. Tel.: (11)958809933

Ebook IV SIGESEX 295


de seguir com os estudos. Para nos ajudar nesse debate, contamos com a
contribuição da Samantha,2 uma mulher-trans-negra.
Em que medida posições de gênero, raça e sexualidade de uma
determinada pessoa ou população se relacionam com o seu acesso à educação?
Essa pergunta é estruturante para o texto e trata-se de um ponto de partida
complexo e difícil de responder, pois, num primeiro aspecto, tais posições
só podem ser discutidas a partir do contexto cultural que se inserem. E no
caso brasileiro, a exemplo de diversas ex-colônias espalhadas pelo mundo, as
experiências de cerceamento dos modos de vida das mulheres, da população
negra e mais especificamente das pessoas com identidades divergentes ao
padrão heterossexual, ganham contornos de vulnerabilidade social e guardam
raízes profundas na própria constituição do país.
Outro aspecto bem mais abrangente relaciona-se com o fato de que os
recortes de gênero, raça e sexualidade - apesar de inerentes a cada cultura - são
também categorias progressivamente mais universalizáveis e rentabilizadas
por um sistema econômico cada vez mais hegemônico. Numa dimensão mais
macroestrutural ou molar do capitalismo contemporâneo, este processo de
valoração ocorre por relações de poder que recortam as pessoas em operações
binárias. Deste modo, seccionam-se os indivíduos polarizados por gênero
- homem/mulher, por raça - branco/negro, por sexualidade - homossexual/
heterossexual e assim por diante.
A inter-relação destes recortes também contribuem para definição de
quem está mais ou menos favorecido na ordem do capital vigente. Há uma
relação entre eles (e suas possíveis intersecções) e o chamado capitalismo
mundial integrado3 que homogeneíza, organiza e ranqueia modos de vida a
partir de um sistema de valoração. Incluem-se, nesse sentido, quais populações
terão uma espécie de cidadania plena - com direitos básicos reservados tais
como: educação, saúde, trabalho, moradia, etc - e quais populações se
constituirão como cidadãos de segunda e de terceira classe, ou seja, com algum
ou nenhum direito preservado.
No caso brasileiro, a mulher-negra, a mulher negra-lésbica, a mulher-
negra-transexual, mas também a “bicha-preta-periférica”4 são exemplos de
registros de pouco valor para este sistema em detrimento de outras posições
mais privilegiadas. Portanto, figuras recortadas por estas intersecções são alvo
2. Nome fictício para preservar a identidade de nossa colaboradora
3. No sentido pensado por Felix Guattari (DE CAMARGO, 2011)
4. São rótulos pejorativos, preconceituosos, que acompanham o morador gay e sobretudo negro das periferias do
Brasil.

296 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


de maior violência estrutural, incluindo racismo, homofobia, transfobia por
parte das instituições e da vida social, e são produtoras de marginalização.
No Brasil, a escravização de povos africanos foi praticada oficialmente
pela coroa portuguesa por mais de três séculos. O sofrimento do povo negro
escravizado atravessou grande parte da História do país. No dia-a-dia das
províncias e das cidades que se desenvolviam, acostumou-se a ver os negros
nas posições mais abjetas. Seus corpos objetificados e explorados estavam
expostos à venda - por vezes nus - em mercados. Eram açoitados e castigados
das maneiras mais horrendas em praça pública para toda gente ver.
Os negros e negras vistos como mercadoria eram explorados, mutilados,
esquartejados e estuprados e isso não seria alvo de revolta durante séculos, em
grande parte, por movimentar a economia local. O horror de tal prática foi
naturalizado na vida cotidiana do país em formação e contribui enormemente,
desde os tempos da colônia, para a consolidação de um racismo de estado
estruturante no caso brasileiro.
Na medida em que o projeto escravocrata começava a diminuir, os
homens e mulheres racializados em posições inferiores, isto é, os negros, os
índios, mas também os mestiços que iam constituindo em toda a parte o povo
brasileiro eram vistos com desconfiança para o desenvolvimento do país e
foram alvo privilegiado da medicina higienista do século XIX.
Raça é uma palavra corriqueira na sociedade, está presente no imaginário
popular. De acordo com Schwarz (2012. p.33), “raça, é, pois, uma construção
histórica e social, matéria-prima para o discurso das nacionalidades. É
sobretudo um conceito biológico, social e identitário.
A raça negra seria relacionada pela ordem médico/criminal como
inferiores, mais propensos a cometerem crimes, propensos aos vícios,
portadores das mais diversas doenças, e toda ordem de impurezas que
atravancaria o desenvolvimento da nação. Tanto que segundo esta ordem
médica-criminal os negros, mas também a população mais pobre e os que mais
ou menos destoavam da tentativa de branqueamento do país, foram população
privilegiada dos manicômios do século XIX.
O fim oficial da escravidão no país não significou exatamente uma
mudança na relação de poder a partir da noção de raça. Muito pelo contrário,
a “libertação” dos negros até então escravizados não veio acompanhada de um
projeto de reparação imediata por parte do estado. Os cortiços e depois as
favelas seriam as novas senzalas destinadas ao povo negro e provavelmente
superamos muito pouco o racismo de estado. Os corpos negros passariam todo

Ebook IV SIGESEX 297


o século XX criminalizados e engrossando os presídios brasileiros. Teriam
também menos acesso, mesmo em tempos mais democráticos, a direitos sociais
básicos como moradia, saúde, educação etc.
Na construção das sociedades, na forma como negros e brancos são
vistos e tratados no Brasil, a raça tem uma operacionalidade na cultura e na
vida social. Se ela não tivesse esse peso, as particularidades e características
físicas não seriam usadas por nós para identificar quem é negro e quem é
branco no Brasil. E mais, não seriam usadas para discriminar e negar direitos
e oportunidades aos negros em nosso país. É essa mesma leitura sobre raça,
de uma maneira positiva e política, que os defensores das políticas de ações
afirmativas no Brasil têm trabalhado. (GOMES, 2005)
Enfim, discutir o conceito de raça leva-nos a uma reflexão sobre a
sociedade ter um papel de construtora na formação dos cidadãos e promotora
de ações e políticas que visem criar oportunidades iguais para negros e brancos,
entre outros grupos raciais, nos mais diversos setores. É preciso ensinar para as
novas gerações que algumas diferenças construídas na cultura e nas relações de
poder receberam uma interpretação social e política.
Em nosso artigo buscamos abordar a figura da mulher-“trans”-negra e
sua passagem pelo mundo da escola em função da seguinte formação discursiva:
a intersecionalidade dos segmentos raça, gênero e sexualidade e o acesso e
permanência na escola. A entrevista foi realizada no dia 27 de maio de 2017.

1- Análise e discussão dos dados

1.1 – Formação discursiva: a intersecionalidade dos segmentos


raça, gênero e sexualidade

Saímos pelas ruas da região central de São Paulo entre a Praça da


República e o Largo do Arouche. Este pedaço da cidade é um tradicional e
histórico território de ocupação da população LGBTTT5. Na Avenida Vieira
de Carvalho, uma espécie de artéria principal de circulação de lésbicas, gays,
bissexuais, homens e mulheres “trans”, paramos num dos bares frequentados
por toda essa diversidade sexual.
Ali, conhecemos Samantha, uma linda jovem de 26 anos, muito
simpática que prontamente topou conversar conosco e contribuir com nosso
5. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.

298 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


estudo. Ela nos contou um pouco da sua história. Negra e oriunda da região
leste de São Paulo, nos diz que passou por quase todo período escolar na
condição de menino homossexual apesar de se considerar transgênero desde
os 9 anos. Desde os 20 anos, quando começou a se apresentar socialmente
pelo gênero feminino, passou pelo processo de hormonização. Atualmente
este processo é acompanhado em atendimentos médicos e psicológicos pelo
Centro de Triagem e Aconselhamento (CTA) da Penha.
Samantha nos conta que durante a adolescência, mesmo sendo
identificada como menino, preferia as atividades de mulher. Sua socialização em
atividades tidas como masculinas como jogar futebol com outros meninos era
restrita e acabava optando por atividades físicas como jogar vôlei. A condição
social de Samantha trouxe poucas oportunidades para que ela desenvolvesse
mais cedo sua expressão como mulher. Acredita que se houvesse chance na
família teria feito antes. Mas como tática de sobrevivência, para expressar sua
transgeneridade, ainda morando com a família, utiliza-se dos banheiros do
transporte urbano para conquistar sua feminilidade:

Eu saia, saia de lá [da casa dos pais], começava a me maquiar dentro do


trem... [...] e, eu me trocava dentro do banheiro masculino. E eu saía de
dentro do banheiro masculino. Assim, com a roupa feminina. Aí sem-
pre tinha um ou outro, um cara querendo me pegar. [Para transar, ou
para pegar para bater?] - Os dois.

Travestis, Transexuais e Transgêneros tencionam e desnaturalizam a


cisgeneridade pela via da despatologização de suas identidades. Contudo, mais
difícil do que dar vozes a essas expressões individuais, é realizar esses recortes
interseccionais como quando relacionado à raça, sexualidade ou classe social.
Além disso, a população contida na chamada letra T é muito variada pois,

[...] não se refere à orientação sexual (onde está o meu desejo) como
lésbicas, gays e bissexuais. Refere-se à identidade de gênero. Incluem-
-se aqui mulheres trans, homens trans, pessoas trans não binárias,
monstras, tenebrosas e que querem mesmo aterrorizar o sistema.
Dentro da população as pessoas também tem orientação sexual. (In-
formação verbal)6
6. Explicação fornecida por Angela Lopes acerca das identidades “Trans” durante a mesa de debate LGBTQIA +
Mínimo Denominador Comum, 2ª CONFERÊNCIA INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL, no
Centro Cultural São Paulo, São Paulo, em 19 de novembro de 2016.

Ebook IV SIGESEX 299


Quando perguntamos sobre as questões de raça e gênero, Samantha nos
relatou que o fato de ser mulher transgênero e negra tornou sua vida escolar
muito mais difícil.

Foi. Mais difícil para mim. Juntou a duas coisas. Fora essas duas coisas,
juntou outras coisas a mais. Que nem, a família não aceitava muito bem
a minha condição, não queria saber, queria que eu mudasse o jeito, que-
ria mudar tudo. Eu tinha que mudar as coisas todinhas.

Pudemos observar, no contexto onde foi realizada a entrevista, o desejo


de Samantha em ter condições – inclusive financeiras – de seguir com seu
processo de “transformação” e realização corporal segundo o estereótipo do
que é ser uma mulher. Quando criança se identificava como menino gay, mas
as suas atividades eram como mulher. Seu pensamento vai ao encontro do
Manual de Comunicação LGBT que define brevemente:

[...] seria uma pessoa transexual, a qual o documento define como uma
Pessoa que possui uma identidade de gênero diferente do sexo designa-
do no nascimento. Homens e mulheres transexuais podem manifestar
o desejo de se submeterem a intervenções médico-cirúrgicas para re-
alizarem a adequação dos seus atributos físicos de nascença (inclusive
genitais) a sua identidade de gênero constituída. (s/d, p.17)

Entendemos, de acordo com o discurso de Samantha, que sua


transexualidade supera a ordem de gênero preestabelecida pela sociedade. Ela
é mais que isso, é uma experiência identitária que está permanentemente em
construção, observação e seus desejos foram reprimidos na infância e durante
sua passagem pela vida escolar.

Considerações Finais

Chegamos à conclusão de que o breve relato da vida escolar de Samantha é


representativo quando se pensa no debate da interseccionalidade de raça, gênero
e sexualidade como produtora de violência estrutural, por meio do racismo e da
transfobia vivenciados nas instituições e na vida social. Tal condição de vulnerabilidade
afetou, dentre outros aspectos da vida, o ingresso e, sobretudo sua permanência escolar.

300 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Esta permanência, quando ocorre, é conflituosa e agressiva. Também o
tensionamento produzido faz com que o equipamento escola pública se reveja
muito pouco, o que acaba anexando essa instituição a um sistema muito maior,
de caráter opressivo também em relação aos negros e às negras e, sobretudo às
populações divergentes da heteronorma. A escola, em seu projeto político-
pedagógico deveria, dentre muitos aspectos, estar mais preparada para lidar
com estas questões enquanto proposta estruturante. Contudo, o acolhimento
às questões de Samantha em seu ambiente - pontual e circunscrito a
determinados profissionais - é desproporcional em relação à violência sofrida.
Obviamente, a atenção escolar à transgeneridade sozinha não é capaz de
reverter toda a vulnerabilidade vivida socialmente por figuras com histórias de
vida como de nossa interlocutora. O convívio familiar conflituoso, uma rede
de apoio restrita e poucas oportunidades de trabalho também contribuem
para a construção de um modo de vida mais precário.
Outra questão frequente na vida social das mulheres-trans, resultante
dos efeitos das intervenções corporais e também dos diversos graus de
formalização de seu nome social, é a chamada passabilidade cisgênera. Ou
seja, quando uma mulher transexual é passável, vista socialmente como uma
mulher cisgenera, sem ser notada em sua transgeneridade.
Mulheres-trans com alta passabilidade são aquelas mais facilmente
assimiladas pelo sistema de regulatório de gênero. Isto significa também que
tais mulheres conseguem uma passagem menos violenta pelas instituições
formais, como no âmbito escolar, por exemplo. A passabilidade, conforme
Marta Lamas, é entendida como característica de sujeitos conseguirem apagar
ao máximo seu sexo imposto ao nascer e colocar em si características sociais da
identificação de sexo que deseja ser reconhecido.
Contudo, a alta passabilidade não é uma possibilidade ou mesmo
desejo de todas. Aquelas mulheres que não passam ou não querem ser
facilmente assimiladas são consequentemente muito mais violentadas,
marginalizadas, expulsas dos espaços de convivência social ou mesmo mortas.
Assim, a intersecção que recorta a mulher-trans-negra contribui para uma
baixa passabilidade no atual sistema regulatório de gênero e racial, pois são
desqualificadas pelos signos de poder que organizam a cisheteronormatividade.
Por fim, basta saber quem estará na linha de frente deste conflito.
Recentemente, ganhou a mídia o horror do espancamento e morte da travesti
Dandara filmada por seus próprios assassinos. Provavelmente, uma mulher
negra transexual, ainda mais com uma história de violência estrutural de

Ebook IV SIGESEX 301


Samantha, está no fio da navalha para se manter viva e muito mais exposta a
um sistema que, quando não consegue assimilar, MATA!

Referências

ABGLT. Manual de comunicação LGBT. s/d. Disponível em: http://www.abgt.


org.brdocs/manualdeomunicacaoLGBT . Acesso em: 20.06.2017.

BENTO, Berenice. O que é transexualidade. São Paulo: Editora Brasiliense,


2008.

DE CAMARGO, André Campos. Félix Guattari: o capitalismo mundial


integrado. VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar Anais,
p. 69, 2011.

GOMES, Lino Nilma. Alguns Termos e Conceitos Presentes no Debate sobre


Relações Raciais no Brasil: Uma breve discussão. In: Educação Anti-racista:
Caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília, 2005, p.39 – 62.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São


Paulo: Editora 34, 1999.

302 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A representação feminina sob o olhar
masculino na sitcom Everybody Hates Chris
The female representation under the male gaze
on sitcom Everybody Hates Chris
Bruna Loreny de Oliveira1

RESUMO: O ocorrem presente trabalho tem o objetivo de analisar uma


representação feminina na sitcom Everybdoy Hates Chris, que por um olhar
masculino. Para tal análise, partiremos das ideias dos Estudos Culturais, com
Kellner (2001) sobre os produtos midiáticos, que são pedagogizantes e tem um
papel importante, nos dando material que nos ajuda a formar identidades. E a
comédia, pode ser usada, para a reprodução de discursos, por isso, pensaremos
a respeito do termo ‘’politicamente correto. ’’ Ainda para a análise, pensaremos
com Angela Davis (2013) sobre a história sócio cultural das mulheres negras
nos EUA. A análise ainda usará como suporte à linguagem cinematográfica e
a estrutura de sitcom, de Ferreira (2018) e Sedite (2006).
PALAVRAS-CHAVE: Estudos Culturais; Mulher; Comédia.

ABSTRACT: The present work present takes aim to analyze a female representation
on the sitcom Everybody Hates Chris, who by a masculine look. For this analysis, we will
start from the ideas of Cultural Studies, with Kellner (2001) on media products, which are
pedagogic and play an important role, giving us material that helps us to form identities.
And comedy can be used for the reproduction of speeches, so we will think about the term
‘’politically correct. ‘’ Still for the analysis, we will think with Angela Davis (2013) about the
socio-cultural history of black women in the USA. The analysis will still use as support to the
cinematographic language and the sitcom structure, of Ferreira (2018) and Sedite (2006).
KEYWORDS: Cultural Studies; Woman; Comedy.

1. Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis. Localizado na Avenida dos Estu-
dantes, Sagrada Família. 5055. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Programa de Pós-Graduação em Educação,
na linha de pesquisa: Infância, Juventude e Cultura Contemporânea: direitos, políticas e diversidade. Conta PPGe-
du: (66) 3410 4035/ 4038. Sob orientação do Prof. Drº Flávio Vilas-Boas Trovão. Bolsista da CAPES, Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Brasil. E-mail: bruna-loreny@hotmail.com

Ebook IV SIGESEX 303


1- Mídia e Educação

A princípio, devemos refletir a respeito da educação. Gosto de


pensar que todos os sujeitos estão de algum modo ligados a educação, seja
ensinando, aprendendo, jogando, trabalhando, conversado, assistindo,
o termo que Brandão usa sobre educação, se enquadra bem; “processos
sociais de aprendizagem. ” As representações no cinema, séries e
desenhos animados, tem ligação com a educação, à medida em que é uma
representação do real, e muitas vezes é um reflexo do sócio histórico vivido
no momento. E traz representações de nós, como pessoas, sociedade, raça,
profissão e etc.
Para Bernstein (2001), vivemos em uma “sociedade totalmente
pedagogizada. ” Desde a infância o sujeito possui contato com essas
mídias e essas podem contribuir diretamente com a formação desses. Para
Kellner (2001) as mídias são fontes de informação e entretenimento,
sendo assim, pedagogias culturais, que acabam por ajudar a modelar o
comportamento social, a identidade, as opiniões políticas. Partindo desse
pressuposto, o livro Luz, Câmera e História, faz uma discussão interessante
sobre o uso do cinema na educação, ele explica que deixarmos de analisar
grandes sucessos de público é deixar de refletir como uma grande parte
da população passou a entender os acontecimentos e as pessoas que
constituem a história.
Partindo dessa mesma ideia, Brandão (1981), nos teoriza que para que
ocorra aprendizagem não é necessário estar no ambiente escolar. Com foco
no artefato cultural que iremos discutir aqui, que é muito popular no Brasil,
e está disponível em vários horários da TV aberta, podemos dizer que a série
Everybody Hates Chris2, atravessa os jovens brasileiros, possibilitando contato
com várias representações do que é ser negro, do que é ser jovem, do que é ser
mulher, Brandão (1981) completa:

Não há uma forma única, nem um único modelo de educação; a escola


não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o
ensino escolar não é sua única prática e o professor profissional não é
seu único praticante. [...] na prática, a mesma educação que ensina pode
deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que
faz, ou do que inventa que pode fazer. (BRANDÃO, 1981, p.4)
2. Conhecida no Brasil como: Todo mundo odeia o Chris, vinculado até hoje pela TV Record.

304 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Considerando essas questões, temos a proposta de analisar a sitcom3
Everybody Hates Chris, por meio dos estudos culturais, das pedagogias
culturais, da linguagem cinematográfica e de sitcoms, nos propondo a analisar
a representação feminina dentro da série sob o olhar do protagonista Chris
enquanto personagem e do Chris enquanto narrador.

2- Podemos Rir de Tudo?

Berman (1992) discute o termo “politicamente correto” que surgiu


no fim dos anos 80 e início dos anos 90. O termo foi criado pela direita em
um momento em que ocorreram as guerras culturais, nos quais abrangiam
raça, gênero, classe, nacionalidade entre outros marcadores sociais. Ainda de
acordo com Berman (1992) a direita fazia constantes acusações, e atacava as
universidades, acusando-as de promover a eliminação da cultura americana do
currículo, é importante frisar que durante esse período a mídia foi uma grande
aliada nesses ataques, sendo responsáveis por títulos como: “eliminação da
cultura ocidental no currículo das universidades americanas” e “assassinato de
Shakespeare e Platão. ” O autor explica que a direita argumentava:

The postmodern professors promote a strange radical ideology that decries


the United States and the West as hopelessly oppressive and that focuses on
the reactionary prejudices of Western culture. […] the postmodern profes-
sors have set out to undermine the traditional study of literature and the
humanities. […] they have reduced literary criticism to a silly obsession
with political questions that don’t belong to literature, and to a weird con-
cern with sexual questions. In some cases they have gotten their students to
study cheap products of Marxist and feminist propaganda instead of the
masterpieces of world literature. They fan the flames of ethnic and sexual
discontent among the students (BERMAN, p. 17, 1992)4

Nos últimos anos, nos EUA, essa discussão continua. Recentemente Donald
Trump fez piadas e criticou o politicamente correto. O documentário Explained,
no seu quarto episódio, faz um debate muito interessante sobre o esse tema. E
3. Sitcom é uma abreviação de Situation Comedy, ou seja, uma situação cotidiana que envolva humor.
4. Os professores pós-modernos promovem uma estranha ideologia radical que deprecia os Estados Unidos e o Ocidente como
opressivos e que se concentra nos preconceitos reacionários da cultura ocidental [...] os professores pós-modernos se propuse-
ram a minar o estudo tradicional da literatura e das humanidades. [...] eles reduziram a crítica literária a uma tola obsessão por
questões políticas que não pertencem à literatura e a uma estranha preocupação com questões sexuais. Em alguns casos, eles
conseguiram que seus alunos estudassem produtos baratos da propaganda marxista e feminista, em vez das obras-primas da
literatura mundial. Eles atiçam as chamas do descontentamento étnico e sexual entre os estudantes. (Tradução nossa)

Ebook IV SIGESEX 305


mostra que em 2015 nos EUA, uma grande parte da população concordava com
a frase “um grande problema desse país é o politicamente correto.” Traz ainda que
durante entre 2015/2016 vários jornais, debates, filmes, símbolos e propagandas,
faculdades, shows de stand up usaram o termo politicamente correto.
Então, devemos avaliar que as representações midiáticas vão de
acordo com o meio social em que transitam, nós como ocidentais, temos
representações, costumes, gostos similares e apesar de contextos históricos
diferentes, temos muito em comum em assuntos como racismo, machismo,
homofobia e etc. E no Brasil, além dessa sitcom ser extremamente popular,
seguimos esse mesmo padrão de se discutir sobre o politicamente correto.
Ao pensarmos na realidade brasileira, recentemente, o atual presidente
Jair Bolsonaro aparece em um vídeo falando que libertará o Brasil do socialismo
e do politicamente correto. Se pensamos no humor brasileiro nos últimos anos,
veremos que o politicamente incorreto sempre se fez presente, se pensarmos
nos Trapalhões em que faziam piadas de cunho racial, A Praça É Nossa5 em
que ocorria muitas piadas de cunho sexual, entre outros. E mais recentemente,
temos os casos de dois famosos humoristas Rafinha Bastos e Danilo Gentilli
que fazem piadas com estupro6, com judeus entre outros temas polêmicos.
O documentário O Riso do Outro, dirigido por Pedro Arantes, faz
uma discussão muito interessante a respeito dessa mesma temática, diversos
profissionais apresentam seus pontos de vista sobre o politicamente correto.
Nesse mesmo documentário a cartunista Laerte, diz que “o humor muitas vezes
serve para reforçar visões que são tradicionais, conservadoras e claramente
preconceituosas. ” Já Ana Maria Gonçalves, que é uma ativista do movimento
feminista, argumenta que a “a piada é uma caricatura, ela pega um determinado
ponto, que muitas vezes é a característica que determina uma identidade e que
é comum a um grupo e ela exagera isso e nem sempre a maneira como faz isso
é a maneira que está respeitando esse grupo ou pessoa.”

5. Os Trapalhões e A Praça é nossa, foram programas humorísticos brasileiros, que se passaram entre os ano
80/90/2000, na tv aberta, nos canais de Rede Globo e SBT, em que eram muito populares e se fazia diversas piadas
com as minorias, devido ao contexto sócio histórico dos períodos em questão.
6. Ambos humoristas estão envolvidos em casos polêmicos. Rafinha Bastos em seus shows de stand up frequentemen-
te fazia piadas sobre estupro, chegando a dizer que “uma mulher feia deveria agradecer por ser estuprada” e também
fez uma piada de estupro com a cantora Wanessa Camargo, em que foi condenado pela justiça a pagar um valor de 150
mil reais. Disponível em: https://veja.abril.com.br/entretenimento/rafinha-bastos-e-condenado-pelo-stj-a-pagar-
-r-150-mil-a-wanessa-marido-e-filho/https://veja.abril.com.br/entretenimento/rafinha-bastos-e-condenado-pelo-
-stj-a-pagar-r-150-mil-a-wanessa-marido-e-filho/. Acesso em 25 de junho de 2019. Já Danilo Gentilli, igualmente
polêmico, frequentemente faz piadas de cunho sexista, recentemente, comentou que a deputada Maria do Rosário
“mereceria sim ser estuprada” fazendo referência a fala de Bolsonaro, em que ele afirmou que a mesma deputada
“não merecia ser estuprada por ele”. Disponível em: https://jovempan.uol.com.br/entretenimento/famosos/danilo-
-gentili-diz-que-maria-do-rosario-merece-ser-estuprada.html. Acesso em 25 de junho de 2019.

306 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Nesse mesmo documentário, Danilo Gentilli, acusa que os defensores
do politicamente correto estão defendendo a censura, ele se defende dizendo
que “toda piada tem um alvo. ” O cartunista André Dahmer contra argumenta
que “ se o humor precisa de uma vítima [...] por que bater nos negros e
mulheres que já apanharam bastante? ” Jean Wyllys pontua que “os humoristas
e comediantes tem que ter liberdade para fazer piada, mas eles não podem
achar que não podem ser contestados, uma vez que a liberdade se encerra no
direito do outro. ”
Outra opinião importante sobre esse assunto é a Djamila Ribeiro,
que traz em seu livro “quem tem medo do feminismo negro? ”, ela traz sua
experiência pessoal enquanto negra, e como usavam o humor e piadas para
praticar o racismo, ela argumenta que o humor não está imune do racismo e
completa que:

O que se vê é um humor rasteiro, legitimador de discursos e práticas


opressores, que tenta se esconder por trás do riso. Sendo a sociedade ra-
cista, o humor será mais um espaço onde esses discursos são reproduzi-
dos. Não há nada de neutro — ao contrário, há uma posição ideológica
muito evidente de se continuar perpetuando as opressões. (RIBEIRO,
p. 19. 2018)

Chris Rock tem várias piadas baseadas no “politicamente incorreto”.


Em uma entrevista para a revista Vulture, ele diz que parou de fazer shows em
universidades, pois eram muito conservadores nas suas visões socias e sobre não
ofender ninguém. Por isso, Kellner (2001) definiu as mídias como paradoxais,
uma vez que nos dão matérias que ajudam a moldar quem nós somos e em
contrapartida nos dão matérias para questionarmos isso. Porém, talvez seja
importante pensar, que para entendermos muitos assuntos apresentados
na mídia, como a ironia, devemos ter um amadurecimento intelectual, para
compreender.

3- Análise da Sitcom: Rochelle, a Mãe Histérica

A sitcom, Everybody Hates Chris, no Brasil, Todo Mundo Odeia o


Chris, possui 4 temporadas, com 88 episódios. Foi produzida entre 2005 e
2009, mas foi exibida no Brasil, na Rede Record a partir de 2006, estando até
hoje no ar, com um intervalo de quase dois anos sem ser exibida pela emissora

Ebook IV SIGESEX 307


entre 2017-2019, os criadores são Chris Rock e Ali LeRoi. Se passa entre os
anos 1982 e 1987, a narrativa é inspirada na vida do humorista Chris Rock,
que morava no bairro Bed-Stuy, região central do Brooklyn, em Nova York.
Chris, o personagem principal, aborda de forma bem-humorada, suas relações
familiares e sociais. Sua família é formada, por Julius, seu pai, que possui dois
empregos, sabe o preço de todas as coisas, é tido como o provedor; quase nunca
está presente e não sabe sobre os problemas que envolvem as crianças.
A mãe, Rochelle, que tem como trabalho cuidar das crianças; ir à
escola resolver problemas de notas, cuidar da casa, pagar as contas, e quando
necessário ela consegue um emprego para ajudar nas despesas da família,
mas nunca fica muito tempo. Ainda, seu irmão Drew, com quem divide um
quarto, e que mesmo sendo o irmão mais novo do Chris, é maior que ele, tem
mais habilidades com esportes e com as garotas. E sua irmã mais nova, Tonya,
que sempre coloca o Chris em problemas, ela por ser a mais nova é muito
protegida pelo patriarca da família. Enquanto os pais estão fora de casa, Chris
é o responsável por Drew e Tonya.
A cena inicial de Everybody Hates Chris, no primeiro episódio intitulado:
“Everybody Hates the Piloto. ” O narrador, que é o protagonista, está contando
sua história do futuro. A cena mostra Chris dormindo e sonhando, e como
narrador ele liga o ser adolescente a “mulheres, dinheiro e ficar fora até tarde”
e logo em seguida ele é acordado aos gritos pela mãe, Rochelle. Essa sequência
de planos, usa o plano médio - segue dando zoom e fica em primeiro plano,
de acordo com Ferreira (2018) nesse plano o principal elemento da cena é o
sujeito, nos dando sensações de emoções e sentimentos, já nessa primeira cena,
sabemos que Rochelle, é uma mulher brava.

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

A partir de 01 m e 14 s, Chris começa a nos apresentar a família dele. A


primeira a ser apresentada é a mãe. Ele narra, que a mãe, convenceu o pai a se
mudar dos projects, (que são apartamentos subsidiados pelo governo, que são

308 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


associados a drogas e violência), ou seja, a última palavra sobre uma decisão
importante nessa família seria do pai.
Já de primeira, Rochelle que está feliz por estar se mudando para um
apartamento, ocorre a transição de feliz para zangada, quando percebe que
garotos negros estão pichando as paredes, e já sugere que se pegar os filhos
fazendo isso, “ela irá dar um chute tão forte nas suas bundas, que eles terão
dedos no lugar dos dentes”, é importante frisar, que essa fala dela é direcionada
apenas para os filhos do gênero masculino, como se a pichação fosse uma
atividade exclusivamente masculina.

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

Na sequência das cenas, em 02 m 31 s, Chris o narrador, diz “essa era


minha mãe Rochelle. ” Na cena seguinte, vemos ela, de roupão, em plano
médio, com cara de zangada e olhar intimidador e ele explica que ela tinha
várias receitas de como acabar com alguém, entre elas: “Garoto, vou bater nos
seus joelhos até tirar a pele deles”, “eu vou te bater de hoje até amanhã”, “eu vou
te bater até tirar seu nome da lista telefônica e ligar para Ma Bell. ”7

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

Em 03m 23 s, Chris questiona Rochelle, de o porquê ter que pegar dois


ônibus, atravessar a cidade para ir em uma escola em Brooklyn Beach, uma
vez que os irmãos estudam no bairro mesmo. Ela responde, que o colegial do

7. bell era a única empresa que fornecia linhas telefônicas entre 74 e 84, começaram a chamar de Ma Bell, por ser um
monopólio, fazendo referência a maternidade

Ebook IV SIGESEX 309


bairro é uma escola de delinquentes e que crianças brancas recebem uma boa
educação. Essa sequência de cena, traz representações interessantes do contexto
familiar. Primeiro, que Rochelle se senta na ponta da mesa, se analisarmos
diversos filmes e seriados americanos, normalmente, o homem se senta a ponta
e a mulher ao lado, nesse momento eles estão tomando café da manhã sem a
presença paterna, que quando chega se senta na outra ponta da mesa.
Isso nos indica, que mesmo, que as decisões importantes tenham a
última palavra do pai, existe uma relação de equivalência na relação pai e mãe.
Nas cenas que seguem, Julius está sentado na mesa e Rochelle, está organizando
a mesa depois do café da manhã, nessa cena, Julius questiona de que encontrou
uma conta que ele já havia dado o dinheiro para pagar, e que foi paga pela
metade e ela diz que ele está questionando o julgamento dela a respeito das
contas. Essa cena, ao mesmo tempo que Julius demonstra um certo receio pelo
modo como fala com ela, ele também demostra uma certa dependência, pois
no fim da discussão pergunta onde estão alguns selos.

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

A seguir, em 05m e 59 s, Rochelle relembra que Chris tem funções,


como ela vai para o trabalho, no horário correto, Chris deve acordar o pai e
esquentar o jantar para ele. Nas cenas que seguem, Rochelle e Julius mais uma
vez discordam sobre as contas. Rochelle está indo para o trabalho e Julius está
sentado à mesa conferindo-as e ela fica irritada. Julius questiona se ela acordará
ele no horário certo e ela diz que Chris fará isso, ele pergunta se Chris estará
no horário certo para acordá-lo e ela diz que não vê o futuro. Nessa cena, ela já
não está presente e ele grita que ela poderia prever o futuro e confere para ver
se ela ouviu o que ele falou com um certo medo.
Chris, ao chegar em casa, sem perceber, come o jantar que seria do pai. A
narrativa da série traz uma analogia muito interessante, o maior pedaço de frango
é do pai, porque ele é o provedor, ignorando o fato que a Rochelle também está
no trabalho e acumula uma carga horária dupla com as tarefas domésticas.

310 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

No horário certo, Rochelle liga para casa do trabalho aos 16 m 10 s da


narrativa, para conferir se Chris tinha feito as funções por quais era responsável,
algumas cenas antes, em 07m 27 s, nos vemos Rochelle deixando um prato
pronto para Julius, Chris narra que não importa que se a mãe estivesse brava
com o pai, ela sempre fazia o jantar dele. Nessa cena, Chris percebe que comeu
o pedaço grande de frango do pai e fica devastado. Em 16 m 48 s, vemos que
Rochelle está brigando com o Chris, que ela já disse várias vezes que o pedaço
grande é do pai, pois ele é um homem grande e que se ele não comesse direito
e perdesse o emprego, eles teriam de voltar para os projects.

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

Na continuação da cena, em 17 m 43 s, Julius pede desculpas a Rochelle,


diz que não estava tentando dizer a ela o que fazer, mas que ele trabalha duro
para pagar o lugar onde estão morando. Ela diz para ele “que só porque ele
ganha o dinheiro, não quer dizer que ela saiba gastá-lo”. É muito interessante,

Ebook IV SIGESEX 311


porque no começo do episódio, Rochelle estava sentada na ponta da mesa,
assim como Julius, nessa cena, ela está sentada ao lado dele, justo na cena em
que ele é reconhecido como o provedor, que ganha o dinheiro, ignorando
completamente a carga horária dupla da Rochelle.

Fonte: elaborada pela autora, a partir da captura de imagens da sitcom Everybody Hates Chris. (2005)

A cena final, é Rochelle gritando, uma característica da série é que


Chris sempre se dá mal no final. É importante frisar que durante esse primeiro
episódio, Rochelle é representada em torno de 15 vezes, como uma mulher
brava, agressiva, que grita e que o próprio marido tem medo, em uma total
discrepância, com sua representação de suave, feliz, amorosa, que foi em torno
de 4 vezes.
Partindo sobre a ideia da linguagem da sitcom, Sedite (2006) nos traz o
conceito de sight gags (p. 53) que seriam os elementos que contém na cena, que
ocorrem de formas não verbais, a linguagem corporal, as reações e expressões
do personagem, ajudam os telespectadores a chegarem a uma conclusão sobre
determinada cena, esse elemento é muito usado, as expressões do rosto de
Rochelle, nos induzem o tempo todo a pensar que ela é mulher brava, incluído
as expressões de outros personagens.
Ainda nesse viés de linguagem e estrutura da sitcom, Sedita (2006) nos
explica que dentro desse tipo de narrativa, existem 8 tipos de personagens
que encontramos basicamente em todas as sitoms, e esses ajudam a dar graça
e ritmo a narrativa. Baseada nas características, descritas por Sedite, Rochelle
seria a o terceiro tipo de personagem The neurotic.
Esse tipo de personagem, é um dos mais complexos, porque são
profundos e apresentam muitos conflitos. Eles dizem o que pensa sem filtros,
ficam extremamente frustrados quando contrariados. Eles possuem regras e
acredita que todos as devem seguir, e quando quebradas, nos mostram sua
face de desequilíbrio e nervosismo. Esse tipo de personagem tende a perder

312 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


a paciência rapidamente, mais do que qualquer outro personagem, eles não
entendem como alguém pode discordar ou ignorá-los. O autor ainda define
como características desses personagens, ser: controlador, nervoso, rígido,
sarcástico, inflexível, falante e perfeccionista.
Como foi possível perceber nesse primeiro episódio, podemos ver
algumas cenas duais na relação da Rochelle e da família. Às vezes é possível
perceber uma relação de igualdade e de medo dá parte masculina referente
a essa mulher. Mas também percebemos, que Julius, é demarcado, inclusive
por ela como o provedor, quem deve comer o maior pedaço do frango. Então,
seguindo esse viés Kellner (2001) nos dá uma definição de mídia como

Uma arena de lutas que os grupos sociais rivais tentam usar o fim de
promover seus próprios programas e ideologias, e ela mesma reproduz
discursos políticos conflitantes, muitas vezes de maneira contraditória.
Não apenas nos noticiários, mas sim o entretenimento e a ficção articu-
lam conflitos, temores, esperanças e sonhos dos indivíduos e grupos que
enfrentam um mundo turbulento e incerto. (KELLNER, p 31, 2001)

Acredito que seja interessante pontuar também que a relação homem


x mulher é diferente se compararmos relações de brancos e negros, porém o
machismo se perpetua em todos os níveis da sociedade. Nesse sentido Davis
(2013), argumenta que durante a história EUA, as mulheres negras sempre
trabalharam fora, primeiro que como escravas elas trabalhavam lado a lado
com os homens e não existia uma diferença entre as produtividades que ambos
deveriam dar nos campos de algodão e tabaco. A autora continua explicando
que quando surgiram as industrias as mulheres negras também estavam lá
trabalhando, então como se viam como iguais no âmbito de trabalho haveria
também mais igualdade dentro de casa.

Conclusão

Concluímos, que os produtos midiáticos, são construtores de significados


sociais. Esses são produtos que refletem o histórico social e legitima muitos
discursos vigentes, nos dando material para a construção de identidades. A
série Everybody Hates Chris, nos mostra que mesmo a população negra tendo
uma história diferente, e demonstrando mais equidade na relação homem

Ebook IV SIGESEX 313


x mulher, ainda percebemos que a masculinidade, a heterossexualidade e
os padrão familiar homem provedor/mulher dependente são exaltados. E
esse discurso é normalizado e reproduzido, usando a comédia, que permite
que assuntos tão sérios como esse sejam naturalizados, por isso, é necessário
fazermos uma análise crítica das mídias.

Referências

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watch?v=uVyKY_qgd54&t=1511s. Acesso em 18 de Abril de 2019.

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1992.

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the contribution of Basil Bernstein to research. New York: Peter Lang, 2001. p.
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Bauru, São Paulo, 2001.

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314 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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Ebook IV SIGESEX 315


Diferenças no ambiente escolar:
experiências contemporâneas de jovens
dissidentes de gênero e sexualidade nas
escolas de Mato Grosso do SuL1
Differences in the school environment: contemporary
experiences of young dissidents of gender and
sexuality in the schools of Mato Grosso do Sul
Fabricio Pupo Antunes2
Tiago Duque3

RESUMO: Este artigo analisa as experiências positivas de jovens


dissidentes de gênero e sexualidade nas escolas em MS. Do ponto de vista
teórico-metodológico, utilizou-se a perspectiva pós-crítica. Com base
em relatos coletados por meio de um blog, foi possível apontaram práticas
consideradas positivas para o acolhimento das diferenças: a liberdade das
manifestações de afetividade; os momentos de discussão e informações; o uso
do banheiro por identidade de gênero; o encontro com a diferença; o uso do
nome social; oferecimento de uma educação crítica.
PALAVRAS-CHAVE: Juventude; Educação; Diferenças

ABSTRACT:This article analyzes the positive experiences of young dissidents of gender and
sexuality in schools in MS. From the theoretical-methodological point of view, in this research the
post-critical perspective was used. Based on reports collected through a blog, it was possible to point
out practices, considered positive for the reception of the differences: the freedom of manifestations of
affectivity; the moments of discussion and information; the use of the bathroom by gender identity;
the encounter with difference; the use of the social name; offering a critical education.
KEYWORDS: Youth; Education; Differences.
1. Artigo Premiado na 17ª Feira Brasileira de Ciências e Engenharia – FEBRACE - USP com o primeiro lugar em
Ciências Humanas.
2. Fabricio Pupo Antunes, Colégio Novaescola/Bolsista PIBIC-Júnior (fabriciopupo1206@hotmail.com).
Colégio Novaescola – Rua Rio Grande do Sul, 665
3. Tiago Duque, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Programa de Pós-graduação em Educação do Campus
Pantanal e Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Ciências Humanas (tiago.duque@
ufms.com). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Av. Costa e Silva, s/n.

316 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Introdução

O projeto toma como base o estudo dos enfrentamentos de Lili Elbe na


Dinamarca dos anos 1920 e os desafios na luta em defesa da sua identidade.
Na história narrada por Ebershoff (2016), Lili faz a transição de gênero,
orientação sexual e “sexo” depois de viver um casamento heterossexual com a
artista plástica Gerda Wegener. O estudo dessa transição é resultado de estudo
anterior (ANTUNES, 2017). Este atual, buscou analisar as experiências
contemporâneas de jovens dissidentes de gênero e sexualidade, avaliadas por
eles como sendo positivas, nas escolas de Mato Grosso do Sul.
Sendo a adolescência, uma fase de transformações, descobertas e
vivências da sexualidade, faz-se necessário, cada vez mais, a discussão, o
estudo e a problematização das relações no que diz respeito à construção das
identidades. Se compreendermos a sexualidade de uma forma mais abrangente,
como por exemplo, desejo, relacionamento e afeto, veremos que a sexualidade
é construída por processos de socialização – e daí destaca-se a educação.

É na escola e dentro da maioria dos processos educativos que a maioria


de nós aprende o que é socialmente prescrito como forma de desejar, o
que é rejeitado como inaceitável e abjeto.
Assim, é de extrema importância tomar distância do senso comum e do
que já está convencionado para se refletir de forma crítica e esclarecida
sobre a sexualidade e sobre o papel da escola no que diz respeito ao
entendimento do corpo e da afetividade. (MISKOLCI, 2014, p.92).

Nesse sentido, não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto


rebelde, que por sua vez esgota-se na tentativa de dominá-la. Nas relações
de poder, sexualidade não é a mais rígida, mas um dos elementos dotados de
maior instrumentalidade, podendo servir como ponto de apoio, de articulação
às mais variadas estratégias (FOUCAULT, 2017).
Ao longo da história, a sexualidade tomou um lugar de destaque na organização
educacional, que se baseou em meios silenciosos de controle, padronizando
comportamentos e ditando o que poderia ou não ser aceito em relação ao desejo, o
que consolidou ao longo do tempo a heterossexualidade como “natural”. Assim, ao
pensarmos em sexualidade e gênero, é fundamental compreender que é um equívoco
acreditar em uma base natural binária e sexuada, em que a cultura simplesmente age
sobre o que já está definido como macho ou fêmea (DUQUE, 2014).

Ebook IV SIGESEX 317


A escola é um dos locais em que mais se ensina a “ser menino ou ser
menina”, reforçando a ideia da “natureza” nos gestos brutos dos meninos ou
delicados das meninas. Esse modelo tem ocultado as sexualidades alternativas,
silenciando-as e por consequência colocando-as na marginalidade. Assim, ela
faz crer que alguém com pênis (“sexo”) deva necessariamente ser masculino
(gênero) e se sentir atraído sexualmente (desejo) por uma pessoa do “sexo”
oposto. Essa associação se baseia num imperativo que determina um único
modelo aceitável (BUTLER, 2003).
A desconfiança, diante do “natural”, ajudaria a evitar a propagação,
principalmente na escola, dos preconceitos. A escola é um espaço de muito
preconceito em relação aos jovens LGBT, os índices são alarmantes e revelam
um espaço escolar bastante inseguro. Tal afirmação é verificada ao analisar os
dados do ano de 2016 da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transsexuais (ABGLT). A pesquisa foi realizada com jovens
dissidentes de gênero e sexualidade em ambiente escolar, dos quais 60% se
sentem inseguros em sua instituição educacional devido a sua orientação sexual
e 40% pela forma como expressa seu gênero. No entanto, também existem
experiências positivas em relação a valorização das diferenças de gênero e
sexualidade nas escolas. A partir dessas experiências surgiu o questionamento
que norteia o estudo: como são as experiências contemporâneas, de jovens
dissidentes de gênero e sexualidade, avaliadas por eles como sendo positivas,
nas escolas de Mato Grosso do Sul?
Sem a pretensão de comparar a sociedade dinamarquesa dos anos 1920,
contexto em que viveu Lili Elbe, com a sociedade brasileira do século XXI,
as questões sobre o direito de se experiênciar o gênero e a sexualidade são
bastante pertinentes. O Brasil mantém um dos mais altos índices de matriz
homofóbica, sem que isso suscite clamor público, não sem razão, o campo da
educação tem sido apontado como um dos mais estratégicos ( JUNQUEIRA,
2009). Ao fazer um recorte dos dados para um ambiente mais específico, nesse
caso, o estado de Mato Grosso do Sul, as questões relacionadas às vivências
dissidentes da sexualidade chamam atenção, principalmente pelas dúvidas e
falta de informação. Isto ocorre pelo fato de que Mato Grosso do Sul ocupa
o espaço de um dos estados com menos estudos e índices sobre diversidade
sexual e diferenças no Brasil. Os poucos estudos que temos revelam, segundo
pesquisas apontadas pelo Grupo Gay da Bahia (2016), que Mato Grosso do
Sul é o 12º estado do país mais violento em relação à população LGBT. Vale
citar os dados da pesquisa nacional “Escola sem Homofobia”, conduzida pela

318 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


ONG Reprolatina no ano de 2011, que indica o despreparo das escolas para
receber alunos LGBT. Essa pesquisa foi realizada em onze estados brasileiros
e Mato Grosso do Sul não participou, fortalecendo a necessidade de pesquisas
como a proposta deste projeto.
Considerando a sociedade em que vivemos, heterossexista e
heteronormativa, os jovens que desafiam as normas de gênero e sexualidade
vivem um dilema de se assumirem para si e para os outros, podendo sofrer
com a vitimização. O que está em discussão não são apenas as vivências das
sexualidades e gêneros desafiadores dentro da escola, mas como elas são
experienciadas e o que os jovens aprendem com a liberdade ou com as violências
diante das diferenças. Assim, se faz cada vez mais necessário identificar as
práticas capazes de ressignificar a escola diante das vivências e produção das
diferenças.

1- Sobre os caminhos e como os percorremos

A pesquisa teve início com o estudo das experiências vividas por Lili
Elbe e contada por meio da obra A Garota Dinamarquesa (EBERSHOFF,
2016). Assim, foi necessário buscar detalhes da sua adolescência no sentido
de entender como se deram as primeiras experiências em relação à gênero e
sexualidade durante a sua juventude. Com o apoio do jornalista dinamarquês
Nikolaj Pors, por intermédio do autor, foi colocado à disposição um material
de pesquisa elaborado por Nikolaj desde o início da década de 1990. O
material “Uma vida através de duas criaturas: Einar Wegener e Lili Elbe” conta
com entrevistas feitas com amigos e parentes de Lili, além da única entrevista
dada por ela em 28 de fevereiro de 1931 ao jornalista dinamarquês Loulou.
Hoje, Nikolaj possui direitos sobre o material que gentilmente foi cedido para
essa pesquisa.
Ter acesso ao material sobre os desafios de Lili quanto a sua sexualidade
na juventude funcionaram como inspiração na análise de experiências
contemporâneas de jovens em escolas do estado de Mato Grosso do Sul. É
preciso que se compreenda, que não se trata de comparação entre pessoas e
nem mesmo lugar ou contexto histórico, mas que, a partir dos enfrentamentos
e vivências de Lili em relação a gênero e sexualidade, foram analisadas essas
experiências contemporâneas.
A etapa seguinte consistiu em um estudo bibliográfico sobre escola,
juventude, gênero e sexualidade, através da leitura de artigos e livros. A busca

Ebook IV SIGESEX 319


foi feita via base de dados como Scielo, Grupo de Trabalhos das Reuniões
Nacionais da ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação) e Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, com recortes que
datam 2013 – 2017.
A terceira etapa se caracterizou pela busca dos dados, nos relatos
dos jovens dissidentes de gênero e sexualidade, através do acesso blog
Transidentidades. Nele os jovens puderam deixar seus relatos de experiência
no que diz respeito à sexualidade vivenciadas especificamente na escola. Por
questões éticas, a identidade dos jovens foi preservada, deixando público
apenas os relatos autorizados no preenchimento do formulário no blog.
Também foi possível a obtenção de relatos apenas para a pesquisa.
Foram priorizados os relatos avaliados pelos jovens como positivos
para uma compreensão sobre a questão da resistência em uma realidade
preconceituosa. Puderam participar da pesquisa jovens entre 18 e 25 anos, que
tiveram experiências dissidentes em relação à sexualidade em escolas públicas
ou particulares de Mato Grosso do Sul. Para a análise dos relatos apresentados
com a pesquisa qualitativa foi utilizado a perspectiva pós-críticas em Educação.
Essa escolha relacionada principalmente a possibilidade de ressignificar as
práticas que já existem a partir das necessidades do problema de pesquisa
formulado. A pesquisa pós-crítica é aberta, aceita diferentes traçados e é
movida pelo desejo de pensar coisas diferentes (MEYER, PARAÍSO, 2014).
Para se produzir as análises, a partir da metodologia pós-crítica, foi
preciso recorrer ao estudo de conceitos como regimes de verdade, modos
de subjetivação, relações de poder e diferenças. Assim, a pesquisa parte do
pressuposto que a verdade é uma invenção, uma criação. Não existe “verdade”,
mas “regimes de verdade”, isto é, discursos que funcionam na sociedade como
verdadeiros (FOUCAULT, 2017). Isso faz com que se considere, na pesquisa,
que todos aqueles que são objetos de análise são parte de uma luta para
construir as próprias versões de verdade.
É importante ressaltar que os discursos também podem ser
desnaturalizados, questionados e desconstruídos, e rupturas podem ser
introduzidas, numa transformação constante de relações de poder instauradas
(PARAÍSO, 2010). Nesse sentido, busca-se nas análises, ativar os saberes
desqualificados e não legitimados e relacioná-los aos saberes verdadeiros, no
sentido de expandir os campos teóricos na produção de novos sentidos. É
possível afirmar que as pesquisas pós-críticas têm contribuído para a conexão
de campos, para o desbloqueio de conteúdos, proliferação de formas e contágio

320 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


dos saberes minoritários (MEYER, PARAÍSO, 2014). Os sentidos são
multiplicados e os conhecimentos expandidos. Além disso, existe um sentido
em dar espaço e visibilidade nas palavras dos jovens dissidentes de gênero e
sexualidade frente às experiências normativas, o que remete às escritas sobre
uma “literatura menor”. Em meio a este aspecto, é preciso salientar que menor/
maior não se definem pelo contingente numérico. Para Deleuze e Guattari,
“a menoridade de algo é reflexível na sua apresentação como diferença e
pluralidade frente ao que se estabelece como padrão e norma, propondo uma
dobra na natureza do que é fixado e que se apresenta como identidade. Nesse
sentido, a maioridade é condição de existência de uma dada menoridade”
(2017, p. 35).
Tudo é político em uma literatura menor. E esse imediato político refere-
se eminentemente ao enfrentamento e contestação de um estado de coisas
ordenado e legitimado como hegemônico. Esse trabalho de ressignificação e
reflexão a respeito da norma tem ganhado força, já que desarruma o que já tem
sido pensado e mostra a importância de significar de outro modo, de criar de
outra maneira, de produzir e multiplicar pensamentos e desconstruções.

2- Resultados e Análises

Para análise e estudo das experiências apresentadas nos relatos, deixadas


pelos jovens no blog Transidentidades, foram utilizadas diferentes autoras/
es contemporâneas/os pós-críticas/os. Conforme Louro, “a escola produz
diferenças, desigualdades e distinções o tempo todo. Cabe aqui fazer as
perguntas: se as diferenças desestabilizam tanto, por que devem ser respeitadas
e valorizadas na educação escolar? Não seria mais fácil deixá-las de fora do
debate e das práticas?” (2017, p. 93).
A resposta é não e é justamente para refletir sobre o modo como a
escola lida (ou não lida) com as diferenças em relação a gênero e sexualidade
que a análise dos relatos se propõe. Em uma perspectiva voltada para a
diversidade, não se questiona como as identidades a partir de hierarquizações
são socialmente estabelecidas. Enquanto a diferença é submetida às exigências
da representação, ela não é e nem pode ser pensada em si mesma (DELEUZE,
2018). No depoimento de Bianca pode-se perceber importância do encontro
com as diferenças nesse espaço comum “Tive a chance de encarar essa
descoberta de forma natural. Havia um círculo muito grande de homossexuais
e bissexuais que fez com que eu me sentisse a vontade e segura”. Antes de se

Ebook IV SIGESEX 321


aceitar a diversidade como diferença natural que deve ser integrada, é preciso
levar em conta a perspectiva das diferenças como parte de questionamentos
das normas. Segundo Miskolci, “a diferença nos convida ao contato com
a transformação; ela convida a descobrir o Outro como uma parte de nós
mesmos. Assim é preciso reconhecer a diferença para reconhecer as posições
hegemônicas” (2012, p.15-16).
Buscar uma política de diferenças no contexto escolar visa a
transformação desse espaço, exigindo questionamentos e reflexões sobre os
valores e as normas que estão fortemente marcados nas práticas escolares.
Segundo Deleuze, “deixando de ser pensada, a diferença dissipa-se no não
ser. Daí se conclui que a diferença em si permanece maldita, devendo expiar
ou então ser resgatada sob as espécies da razão que a tornam passível de ser
vivida e pensada, que fazem dela o objeto de uma representação orgânica”
(2018, p.56).
Uma vez que a escola exerce participação na produção das identidades,
faz parte de suas funções a garantia de um espaço acolhedor e democrático
para todas as pessoas, na qual todas elas estejam representadas. Sendo assim, é
imprescindível, um olhar mais crítico acerca do que se experencia na instituição.
Algumas análises produzidas através de trechos de relatos são potentes para
o entendimento da escola como campo fundamental para constituição de
representações e que buscam construir espaços de mudança e de resistência.
Os relatos apontaram seis práticas, consideradas positivas pontualmente
ao acolhimento das diferenças, às manifestações de afetividade, os momentos
de discussão e informações promovidas em sala de aula como importantes
ações na diminuição do preconceito. Nesse contexto, a escola, os conflitos
dos diferentes comportamentos, valores e modos de vida tornam-se muito
evidentes e a instituição tem dificuldade de lidar com as diferenças uma vez que
foi criada para padronizar os diferentes. É preciso esforço para que ela se torne
democrática e aberta às diferenças. A escola é um espaço muito importante
para a socialização e faz parte do trabalho do professor garantir essa interação
atendendo as representações (VENCATO, 2014).
O relato de Aurora evidencia a importância da abordagem sobre o tema
em sala de aula “Tive um professor de sociologia e atualidades que me deu
muito apoio, fortalecendo minha identidade, levando o assunto para sala
em diferentes momentos no último ano escolar.” Dessa forma, o professor se
dispor à discussão e a busca da informação sobre sexualidade também promove
uma análise de processo social de lidar com a diferença. É importante que

322 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


essa discussão se torne comum, a rotina da discussão da temática incentiva o
respeito entre as diferentes representações diante da diferença dos corpos e das
manifestações de afetividade.
Um outro apontamento importante foi o uso do banheiro, como
exposto no relato de José Fernando “Na escola, no Ensino Médio pude usar
o banheiro do gênero em que me identifico. Tudo isso é importante, pois
evita-se a evasão escolar”. A partir da reflexão do uso desse espaço é preciso
pensar que não se trata de atender as “vontades” de algumas pessoas, trata-se de
uma grande reflexão no âmbito pedagógico, complexo o suficiente para exigir
informação e um refino conceitual das percepções sobre gênero e sexualidade,
a questão sobre a relação entre genitália e gênero ou o debate sobre arquitetura
marcada por relações de poder.
De acordo com Paul/Beatriz Preciado, “o banheiro funciona como
reforço da identidade, onde a arquitetura parece ser apenas a serviço das
necessidades mais básicas, portas e janelas regulam o acesso e a procura,
operam em silêncio e discretamente como uso efetivo de ‘tecnologias de
gênero’” (2012, p.14-17).
Assim a discussão sobre banheiros não é sobre banheiros para homo
ou heteros, mas como ocupamos os espaços públicos a partir de gênero.
Outra marca de aceitação apontada em alguns relatos é o nome social,
como exposto por José Francisco “Tive o nome social respeitado por todos
funcionários, professores e coordenadores. O nome estava no armário, nas
provas e na chamada, possibilitando um melhor aproveitamento dos estudos”.
É compreensível que o uso do banheiro ou do nome social podem representar
dado às questões de constrangimento que o desrespeito a esses direitos pode
causar, além dos altos índices relacionados à violência sofrida pela população
trans. De acordo com a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e
Transexuais, 90% dos transgêneros dependem da prostituição para sobreviver.
Segundo Bento,

Os indivíduos LGBT são submetidos a isolamento social, zombaria e


agressões por parte de seus colegas. O ambiente escolar, assim, se torna
tão opressor, que o indivíduo transgênero se sente expulso do ambiente,
o que culmina no abandono escolar. Em vez de serem tipificados como
“evasão”, esses casos deveriam ser classificados como “expulsão”, pois são
frutos de omissões da pedagogia escolar alinhada às normas de gênero
hegemônicas (2001, p. 553).

Ebook IV SIGESEX 323


Deve-se questionar a neutralidade da escola e propor uma abordagem
pedagógica que busque problematizar para o reconhecimento das diferenças.
A escola pode representar esse potencial transformador para fortalecer
identidades para vivência em um espaço receptivo e plural. Sobre a menção a
respeito de uma educação crítica e consciente, é possível pensar na educação de
inclusão e nos mecanismos e metodologias que a escola tem ao seu dispor e que
podemos levar a ela. Vale citar os PCN´s (Parâmetros Curriculares Nacionais)
(1998), e a proposta de ensino como um tema transversal. Os PCN´s são um
importante instrumento para garantir o trabalho sobre o assunto na escola. A
importância da criticidade foi apontada no depoimento de Sofia “A educação
crítica da minha primeira escola e o ambiente com muitas pessoas como eu
na segunda escola fizeram com que eu não tivesse que passar pelo doloroso
processo, para muitos, de ‘sair do armário’”.
É preciso pensar continuamente naquilo que não é oficialmente
conteúdo da escola, mas que está nela, como gênero e sexualidade, de modo a
compreender as diferenças e incluí-las no fazer pedagógico. Segundo Vencato,

A prática dentro da escola deve se pautar pela desconstrução de pré-


-conceitos e estereótipos. Também se faz necessário formar professores
que entendem melhor as diferenças e lidem melhor com ela no coti-
diano da escola, é fundamental discutir porque a escola hoje não é um
lugar para as diferenças e de que modo isso fomenta as desigualdades
exclusões. (2014, p.52).

É possível que essa criticidade citada em alguns relatos seja a tentativa


da escola em compreender a sexualidade de uma maneira mais ampla. Não
seria a hora da escola parar de resistir à mudança dos tempos e adequar-se aos
seus novos papéis em sociedade? Trazer reflexões para além dos conteúdos,
das convenções e reforçar ideias mais transformadoras que resultem na
consideração de vivências para além das normas e propõe novas perspectivas
em relação aos desafios da sexualidade dissidente. Diante dos apontamentos
considerados positivos, pelos jovens e vivenciados nas escolas, é importante
ressaltar o potencial acolhedor que essas práticas sinalizam. Sendo a escola
um espaço, historicamente disciplinador e regulador, ela se torna também um
espaço de manifestação de resitência. Assim, observa-se o acolhimento nas
práticas escolares quando esta “reconhece a resistência de maneira a incluir
o tema em seu currículo. Assim, necessário considerar o currículo escolar de

324 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


forma mais abrangente, incluindo os conteúdos e valores implícitos e explícitos
das práticas pedagógicas” (BALIEIRO, RISK, 2014, p. 32).
É preciso dar atenção as convenções e modelos de comportamento que
são repassados na escola, a discussão sobre sexualidade e gênero incorporado
à pauta didática se mostra um importante instrumento na diminuição da
vulnerabilidade dos jovens LGBT dentro do espaço escolar. Segundo Tomaz
Tadeu Silva, “a pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer
oportunidades para que os jovens desenvolvessem capacidades de crítica e
questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação de
identidade e diferença” (2009, p. 92). Assim, a partir do que foi exposto,
enquanto experiências positivas nos relatos dos jovens e fundamentado na
análise do potencial acolhedor da escola, é possível repensar e propor uma
“outra escola”, um espaço que esteja aberto ao debate sobre o preconceito
presente na sociedade, proporcionando reflexões e ações transformadoras aos/
às jovens.

Considerações finais

As questões de gênero e sexualidade são temas bastante inerentes no que


diz respeito à juventude. Quando se faz um recorte para o espaço escolar, é
possível refletir sobre esses temas a partir da produção das identidades que nele
ocorrem. A escola, os professores e os jovens vivem a realidade escolar onde
as identidades são constantemente produzidas, mesmo que essa produção
não esteja descrita em lei (norma). Isso ocorre porque a instituição escolar
possui um caráter claramente normativo. Assim, qualquer comportamento
fora do esperado, exclui o sujeito e o marca como diferente. O que acontece,
posteriormente, é que essas diferenças auxiliam processos normativos e o
controle dos corpos pela disciplina.
Desse modo, os sujeitos se relacionam com determinados mecanismos
disciplinadores que têm a função de docilizar os corpos, tornando-os úteis
(FOUCAULT, 2017). É perceptível como a disciplina opera nas escolas e
como o dispositivo da sexualidade produz discursos e estereótipos de gênero,
um dispositivo de controle que naturaliza a heterossexualidade e não permite
a expressão pública de comportamentos que dela divirja. Segundo Miskolci
(2014), aqueles que não se identificam com as normas habitam a esfera da
abjeção e, portanto, encaixam justamente na alteridade a ser socialmente

Ebook IV SIGESEX 325


repugnada. Aqueles que não se adequam à norma são os dissidentes. Os
valores defendidos pela escola ou pela família deixam de lado que universos
masculinos e femininos se misturam no cotidiano dos jovens. Segundo Bento
(2011), o processo de naturalização das identidades e a patologização fazem
parte desse mecanismo de produção das margens, local ocupado pelos seres
abjetos. Isso fica muito evidente no caso do ambiente escolar.
Ao realizar o estudo e as apresentações que aqui foi sumariamente
relatada pode-se perceber que, a despeito destes temores mais conservadores,
há algo mais urgente e imperioso e que deve ser alvo de atenção: refere-se ao
interesse demonstrado pelos jovens na discussão deste tema, nas instituições
escolares. Curiosamente, eles revelam que confiam na escola como um espaço
de liberdade, em que preconceitos e exclusão possam ser postos à prova. Esta
confiança não pode ser desconsiderada; deve ser valorizada, uma vez que
pode funcionar como alavanca que revitalize a educação no país. Assim, ao
integrar esse assunto à rotina de saberes e conhecimento dentro da escola,
seja em sala de aula ou outros espaços, possibilita-se a construção de posturas
mais democráticas e respeitosas diante das diferenças e dos enfrentamentos
de colegas que desafiam as normas de gênero, então o grande desafio da escola
pode ser contribuir para que os jovens exponham suas dúvidas e as esclareçam,
superem preconceitos e estereótipos e desenvolvam atitudes saudáveis
relacionados ao gênero e à sexualidade.

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328 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“Você é travesti, você é homossexual, de
dia trabalha e de noite faz programa”:
representações travestis no judiciário
baiano de 2007 a 2017
“You’re a ‘travesti’, you’re homosexual, in the
daytime you’re a worker and at night a whore”:
travesti representations in the judiciary of the
state of bahia from 2007 to 2017
Joalisson Oliveira Araujo1

RESUMO: Objetivei descortinar como o Estado, na figura do Estado-


Juiz, constituiu simbolicamente as travestis no Estado da Bahia entre 2007
e 2017. Para isto, construí uma etnografia do arquivo através de análises de
enunciado em decisões do Tribunal de Justiça baiano. Evidenciei os locais
sociais delimitados às travestilidades pelas práticas discursivas dos magistrados,
bem como suas contradições ancoradas em normativas binárias de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: travestilidade, identidade de gênero, etnografia
do arquivo.

ABSTRACT: I intended to discover how the State, specially the Judiciary field,
presented travestis in the State of Bahia between 2007 and 2017. To achieve that, I constructed
an ethnography of the archive based on “analysis of statements” methodology in decisions of
Bahia Court of Justice. I pointed out the social locus delimited to travestilities by the discursive
praxis of the magistrates, as well as their contradictions linked to binary gender roles.
KEYWORDS: travestility, gender identity, ethnography of archive.

1 - “Baseado em carne viva e fatos reais”


A noção de “gênero” com que conduzimos as análises de dissidências
é consideravelmente nova, de meados do século XX, tendo surgido a partir
1. Mestrando no Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados (PP-
GAnt/UFGD). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). PPGAnt/
UFGD – Rodovia Dourados/Itahum, Km 12 – Unidade II. Caixa Postal 364, CEP 79.804-970. (67) 3410-2271.
araujojow@outlook.com

Ebook IV SIGESEX 329


de disputas de narrativas em campos da ciência, especialmente as da psique.
Entretanto, as transgressões elas mesmas existiam há muito mais tempo,
havendo relatos já na antiguidade clássica (LEITE JR, 2008).
A despeito disto, as mudanças mais significativas, nessa dimensão,
acabam sendo a forma como tais dissidências são representadas na tradição
ocidental eurocêntrica, principalmente a partir do ideal racionalista e das
tecnologias de biopoder, surgidas a fins do século XVIII e intensificadas
no século XIX, por meio de práticas discursivas – em especial nos campos
científico e jurídico (FOUCAULT, 2013). Assim, a tais existências se relegou
o papel social (GOFFMAN, 1999) de monstruosos, pecadores, perversos ou
pervertidos, transtornados, não havendo uma projeção linear que superasse
completamente o paradigma anterior, pelo contrário: se retroalimentam e
reforçam-se uns aos outros.
Esse constructo acabou por “associar as travestis com a periculosidade
de uma ‘perversão’ e uma ‘falsidade’” (LEITE JR, 2008, p. 160), traçando um
ideário de desvio marginal fetichista, que merece punições por sua própria
existência ininteligível aos moldes binários, que chafurda nos vícios sociais:
uma vida nua (AGAMBEN, 2010).
Afora essa acepção patológica e estigmatizante, aponto que as travestis
definem a si mesmas como “pessoas que vivem uma construção de gênero
feminino, oposta à designação de sexo atribuída no nascimento, seguida de
uma construção física, de caráter permanente, que se identifica na vida social,
familiar, cultural e interpessoal, através dessa identidade” (ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, ANTRA, 2016,
online).
Tais nuances me impeliram a questionar como o poder estatal, na
figura do Estado-Juiz – que, em tese, são a salvaguarda destas pessoas – as
representavam em suas práticas discursivas, tendo em vista o caráter imperioso
dos discursos jurídicos.

2 - “Estou procurando, estou tentando entender”

Realizei o levantamento entre 29 de setembro e 13 de outubro de 2018


no Portal JusBrasil, que foi escolhido por ser, à época, uma base de dados
gratuita, de uso irrestrito, cujo mecanismo de indexação busca os termos
inseridos em todos os tribunais, inclusive no inteiro teor das decisões, não só
em suas ementas ou em eventuais palavras-chave, dentre outros filtros de busca.

330 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Elegi doze tags2, que serviram como primeiro critério de inclusão,
que entendi como possíveis de abarcar matizes consideráveis de existências
travestis no âmbito jurídico. Como segundo quesito inclusivo, observei a
temporalidade: terem sido publicadas de 2007 a 2017. Como último critério
de inclusão, o objeto da ação jurídica analisada teria de se situar no território
baiano.
Findas as buscas, listei os processos encontrados a fim de melhor ilustrar
em quais campos do judiciário as vozes transexuais e travestis reverberaram
de forma mais presente neste período. Entretanto, enfoquei somente estas
últimas para construção deste texto.
Para construir uma etnografia de arquivo, fiz uso da “análise de
enunciado” de Régine Robin (1973), que se apropriou dos conceitos
foucaultianos de enunciado e arquivo ao elaborar este método. Assim, elegi
como enunciados excertos extraídos do inteiro teor de cada uma das peças
processuais que dizem respeito à travestilidade a fim de dar conta do modo
como as travestis são presentadas – ou não – nas práticas discursivas do poder
judiciário baiano.

3- “Sem vergonha, sem justiça, tem medo de nós”

Após ter seguido os procedimentos metodológicos conforme


descrevi acima, me deparei com os seguintes documentos: as apelações de
n. 0001837-83.2010.8.05.0080; 0133812-87.2004.8.05.0001; 0307881-
36.2013.8.05.0146; 0302885-28.2015.8.05.0274 e o habeas corpus n.
0012731-23.2017.8.05.0000, todos processados e julgados pelo Tribunal de
Justiça3 do Estado.
Havia encontrado também uma apelação que seguiu o rito do Juizado
Especial Cível, sob o n. 104516-4/2006, mas pude constatar que este processo
só apareceu como potencial componente do corpo de pesquisa por conta de os
magistrados terem usado o verbo “travestir” no corpo do texto. Como não se
tratava de matéria ligada a transidentidades ou travestilidades nem envolviam
pessoas trans ou travestis em seu bojo, logo o descartei.
Ressalto aqui que, dos cinco processos destacados para compor esta
análise, em apenas um deles há uma travesti como uma das partes processuais,
2. Tais termos foram: transexual; transgênero; travesti; traveco; mulher trans; homem trans; transformista; transexu-
alismo; transexualidade; disforia de gênero; transgenitalização; e mudança de sexo.
3. Daqui em diante utilizarei “TJ” para me referir a este órgão judiciário.

Ebook IV SIGESEX 331


em que lhe coube um papel mais proeminente na construção dos relatos –
porém nem tanto assim; nas outras narrativas, elas aparecem como elemento
cenográfico, que compõe o palco (GOFFMAN, 1999), como aspectos
acessórios nos casos, ou figuram como atores que representam um papel
periférico em relação aos acontecimentos.

3.1 Apelos ordinários


As apelações são o mecanismo que, em geral, é usado em caso de
discordância para com a decisão da pessoa juíza e se deseja sua reforma no todo
ou em parte dela. Três dos apelos processuais que analiso a seguir são de matéria
criminal e somente um, de caráter cível, trata de indenização por dano moral.
A de n. 0133812-87.2004.8.05.0001 trata do furto de trezentos euros
e duzentos e cinquenta dólares em espécie, que renderam uma condenação
de 2 dois anos, determinada pela 9ª vara criminal de Salvador. O enredo dá
conta de que

[...] o Apelante, em companhia do travesti de vulgo “Verônica”, apro-


veitou-se da ausência de sua própria irmã que havia viajado com o ma-
rido, para adentrar no apartamento da Vítima utilizando uma cópia
de chave, feita sem o consentimento daquela. O Apelante e “Verônica”
foram ao citado imóvel a pretexto de tomarem banho e, quando aquele
se encontrava no banheiro, esta subtraiu as cédulas de euro e dólar. Em
seguida, “Verônica” confessou que havia subtraído a res furtiva e o Ape-
lante concordou em dividi-la. (p. 4)

Conforme aludi acima, Verônica, a travesti implicada neste caso,


aparece como um dos personagens secundários na relação processual pois,
embora tenha sido narrada como a causadora do ato ilícito, posto que havia
“retirado as cédulas de euro e dólar guardadas na sua mala [da vítima]” (p.
4), não é ela mesma uma das julgadas pelo aparato judicial. Inclusive não
consegui encontrar qualquer menção a ter sido ela alvo de persecução penal
do Estado, pelo menos no âmbito deste tribunal de justiça e em relação a estes
acontecimentos.
Interessante observar como o nome de Verônica sempre estava acompanhado
de aspas duplas. O recurso gráfico, usado como indicador dá um certo tom de
ironia, e, neste caso, funciona como um demarcador de que o nome – a que
chamaram de “vulgo” (p. 4) – não corresponde à realidade, que foi travestida.

332 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Já na apelação de n. 0307881-36.2013.8.05.0146, o objeto da ação é uma
tentativa de estupro. A travesti ocupa aqui um papel social vinculado aos vícios, pois
a ofendida relata “que estava numa festa quando o travesti LELECO lhe chamou para
cheirar pó na casa do réu e que no caminho o réu deu dois reais para o LELECO comprar
cigarro” (p. 4). Porém, tão grave e violento quanto a desconsideração da travestilidade
como identidade feminina e sua vinculação com os vícios sociais foi ter me deparado
com a perquirição sobre a índole da mulher – cisgênera –, alvo da violência sexual.
Na transcrição de seu depoimento, pude dar conta de que a todo momento
lhe foi indagado se possuía vínculos anteriores com o agressor, sobre locais em
que esteve antes naquele mesmo dia, sua conduta, roupas que vestia: “que tem
sua vida livre e já recebeu cantadas de outros homens e que algumas aceitou mas
outros não e que nunca tinha ocorrido isso antes” (p. 5); “que na noite da festa
bebeu mas não bebeu com o réu, mas apenas com o travesti” (p. 4); “que o réu era
usuário de drogas e que a declarante também” (p. 5). “que entrou no muro para
cheirar pó e não tinha interesse sexual no réu” (p. 5); “que disse “não” para o réu
e o réu continuou insistindo” (p. 5); “que na verdade, o réu sem pedir começou
a agarrar e começou a tocar nas suas partes íntimas, seios e vagina, e foi quando a
declarante disse que não queria e o mesmo passou a lhe agredir” (p. 5).
Compreendo isso como uma tentativa – mais do que comum nos
aparelhos de estado, maculados por algum ranço vitimológico4 – de atribuir
à própria pessoa vitimada alguma, se não toda, a responsabilidade pelas
violências e violações que lhe tenham ocorrido.
Não obstante tal cruzada inquisitorial em busca de medir quanto
“a vítima” contribuiu para que o crime que lhe sobreveio, isso não impediu
que, em toda a decisão, esta “vítima” não alçasse outro lugar além deste a qual
foi designada: seu nome ou qualquer outra referência a sua dignidade ou
humanidade simplesmente inexistem, ao passo que sua condição de “vítima”
se queda explicitada reiteradamente, pois verifiquei que o vocábulo aparece
vinte e quatro vezes ao longo das quatorze páginas5, enquanto todos os outros
personagens deste enredo, sem exceção, são tratados por seus nomes.
No roubo majorado de que trata a apelação n. 0302885-
28.2015.8.05.0274, a travesti “Rafa” foi vitimada junto com sua prima
4. A Vitimologia é um campo da Criminologia que estuda a vítima, implicações psíquicas de crimes que tenham vin-
do a sofrer, suas condições psicossociais e suas implicações, além de duas influências, comportamentais ou psíquicas,
para o resultado do crime.
5. Obtive este número pois não levei em consideração as citações de outros textos e julgamentos, utilizados em caráter
ilustrativo e argumentativo na decisão, apenas o texto produzido pelos próprios desembargadores da segunda turma
da segunda câmara do TJ. Se partirmos para uma contagem indiscriminada, o número de vezes que a palavra “vítima”
aparece naquelas quatorze páginas totaliza trinta e nove correspondências.

Ebook IV SIGESEX 333


Gabriela, de quem foram levados celulares. Saliento que, curiosamente, no
começo do acórdão, no trecho da sentença em que se faz o relatório do caso
com base na decisão judicial que primeiro julgou a causa, a travesti é tratada
apenas no feminino, quando “a vítima Gabriela, ouvida mediante carta
precatória, afirmou que estava companhia de sua prima Rafa, quando foram
abordadas” (p. 7, grifo meu).
Mais adiante, pude ler que “o acusado Gabriel afirmou em seu
interrogatório inquisitorial (fls. 12), que teria praticado em companhia do
adolescente e de Fábio, um roubo a dois travestis, momentos antes de praticar
o assalto no Supermercado” (p. 7) na periferia de Juazeiro. Daí em diante,
momento em que o Judiciário se dá conta de que, em verdade, Gabriela é uma
mulher cisgênera e “sua prima, Rafa” não o é, outra construção discursiva
“quanto ao roubo majorado praticado contra a vítima Gabriela Dias Ramos e
seu primo Rafael” (p. 6, grifo meu) passa a existir.
Isto porque “Gabriela ao ser ouvida em Juízo, por carta precatória,
informou que sua prima apelidada de Rafa é homessexual, o que justifica o réu
Fábio afirmar sobre os roubos a ‘travestis’” (p. 7), constatação ratificada logo
a seguir: “Por seu turno, em suas declarações, a vítima Gabriela Dias Ramos
afirmou que ela e seu primo ‘Rafa que é homossexual’, foram abordados por
três elementos que se encontravam em um veículo” (p. 8).
A partir deste ponto, o epíteto “Rafa que é homossexual” é o assumido
pelo Estado-Juiz enquanto real, como pano de fundo para discorrer e decidir
mais uma vez sobre a verdade envolvendo “os roubos perpetrados contra
Gabriela Dias Ramos e Rafael Oliveira santos” (p. 15), ainda que “Rafa” ela
mesma não tenha sido ouvida em juízo.
Por fim, a apelação de n. 0001837-83.2010.8.05.0080 vêm da cidade de
Feira de Santana, numa das regiões metropolitanas da Bahia e tem como mote
uma indenização por dano moral devida pelo Jornal Folha do Estado a Renildo
Cerqueira de Jesus. A ação se fez necessária pois o autor teve seus dados veiculados
a matéria diferente da que havia contribuído em entrevista concedida ao periódico:
em vez de ter sua opinião sobre a praias de nudismo publicada, sua imagem e nome
foram associados à matéria sobre uma travesti feirense, Priscila Dion.
Segundo argumenta Renildo,

[...] tal veiculação [tendo] repercutido negativamente em seu desfavor,


na sua vida profissional e pessoal, pois casado e com uma filha, que passa-
ram a ser alvo de piadas, brincadeiras e chacotas, causando-lhes prejuí-

334 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


zos de ordem moral, o que deu azo à ação indenizatório respectiva para
a condenação da ré ao pagamento dos danos morais em valor [que dese-
ja que] não seja inferior a quinhentos salários mínimos. (p. 1, grifo meu)

Ao que me parece, o judiciário baiano não concordou que ter sua imagem
vinculada à de uma travesti seja algo tão negativo que valha uma indenização
de duzentos e cinquenta e cinco mil reais6; inobstante, considerou ruim o
suficiente para determinar “o pagamento pelos danos morais no importe de
R$65.160,00, acrescida de juros e correção monetária” (p. 1).
Justificaram os desembargadores da terceira câmara cível do TJ que
“não se pode olvidar que ainda persiste em nossa sociedade, principalmente
no interior do Estado, grande dose de preconceito contra homosexuais,
transformistas, travestis e outros gêneros, ainda que proibida a discriminação
por conta dessas opções” (p. 3), sendo tal acontecimento capaz de “causar
ofensa à reputação, à honra, à imagem ou à dignidade” (p. 4), por isso mesmo
merecedora de tal reparação pecuniária, já “que os clientes do salão, inclusive
o próprio depoente [testemunha no processo], passaram a fazer brincadeiras,
referindo-se ao autor como Priscila Dion e de que estariam agora cortando o
cabelo com um transformista” (p. 5).
Nessa mesma dimensão outra testemunha ouvida no processo aponta
que “se dizia que o mesmo [Renildo] durante o dia trabalhava no salão e à
noite se travestia como travesti, homossexual”, e prossegue: “o fato causou
constrangimentos ao requerente [Renildo] o qual passou a ser alvo de
brincadeiras, gozações, do tipo: você é travesti, você é homossexual, de dia
trabalha e de noite vai fazer programa.” (p. 5).
Escolhi esta última proposição para intitular este trabalho simplesmente
pelo fato de ela evocar tantas camadas de análise numa construção
aparentemente tão simples e ingênua mas que, apesar disso, carrega uma série
de significantes em seu bojo. Vejamos.
Primeiro, a confusão, como se uma só coisa fossem, entre a travestilidade
e a homossexualidade, que continua concebendo as travestis como homens
homossexuais que se travestem, o que atrela essa identidade a uma nuance
fetichista claramente homossexual; em segundo lugar, o elo estabelecido
entre ambas existências dissidentes e uma visão negativista delas, posto que
podem ser usadas para causar constrangimento, gozações e ofensas, o que não
condiria, a priori, com sua imagem de homem, cisgênero, casado, pai de uma
6. Em 2010, quando a ação foi proposta, o salário mínimo médio no Brasil era de R$510,00 (quinhentos e dez reais).

Ebook IV SIGESEX 335


filha; deste modo, o tal sujeito tece uma narrativa que

[...] projeta uma definição da situação e com isso pretende, implícita ou


explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, [o que] automa-
ticamente exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a
valorizá-lo e a trata-lo de acordo com o que as pessoas de seu tipo tem o
direito de esperar (GOFFMAN, 1999, p. 21, grifo meu).

O terceiro ponto é a relação com o trabalho. De acordo com


levantamentos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA),
conjuntamente com o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), “90%
da população de Travestis e Transexuais utilizam a prostituição como fonte
de renda, e possibilidade de subsistência” (2019, p. 19). Entretanto, este lugar
não pode ser tomado como natural, por ser resultado de “baixa escolaridade
provocada pelo processo de exclusão escolar, gerando uma maior dificuldade
de inserção no mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação
profissional causada pela exclusão social” (p. 19); estima-se que “cerca de
0,02% [de travestis e transexuais] estão na universidade, 72% não possuem o
ensino médio e 56% o ensino fundamental” (p. 19).
Ademais, a fala do depoente descaracteriza o trabalho sexual como
trabalho, pois existe uma clara diferenciação entre o “trabalhar”, que se realiza
durante o dia, e o “prostituir-se”, que se consubstancia numa atividade noturna,
numa relação de signos oferecidos quase como que diametralmente opostos.
Acredito imprescindível salientar que apenas “10% da população de travestis
e mulheres transexuais estão em outras atividades [que não a prostituição] (6%
em informais sem vínculo empregatício e apenas 4% em empregos formais com
fluxo de carreira)” (BENEVIDES, AGUIAR, 2019, p. 47). Além disso, “70%
dos assassinatos de pessoas LGBT+ em 2017 no Brasil vitimaram profissionais
do sexo e 55% deles aconteceram nas ruas” (p. 48), das quais as pessoas negras
compuseram um percentual significativo dessas vidas matáveis: 80%.

3.2- Que tenhas o teu corpo


O habeas corpus7 é o instrumento que se deve lançar mão nas ocasiões
em que, segundo o art. 5º, LXVIII da Constituição Federal de 1988, “alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
7. Expressão latina formada pela junção do verbo habere e do substantivo corpus; comumente traduzida como “que
andes com o corpo”, “tomai o teu corpo”, ou ainda, “que tenhas o teu corpo”.

336 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Assim, o habeas corpus de n. 0012731-23.2017.8.05.0000, trazia como
pedido basilar a possibilidade de que a pessoa apenada fosse posta em prisão
domiciliar “por ser portador do vírus HIV e tuberculose, não podendo ser
privado de sua liberdade, já que mantém tratamento diário que não poderá ser
ministrado dentro da prisão. Aduz que o paciente, por ser ‘travesti’, corre risco
de morte, se for preso.” (p. 2).
Ocorre que, na decisão, os desembargadores da primeira turma da
segunda câmara criminal do TJ utilizaram vocábulos e declinações de gênero
masculinas em todo o texto: o paciente (p. 1, 2, 3), o condenado (p. 1, 2), o
acusado (p. 2), o réu (p. 4).
Para além disso, apesar de as condições argumentadas sobre saúde
e a própria segurança da travesti – que não tem seu nome mencionado em
nenhum lugar da decisão; apenas o nome civil é citado –, o pedido foi sumária
e unanimemente negado. O argumentado pelos desembargadores é de que
houve uma inadequação do destinatário da ação. A pena de 5 anos e 6 meses
deveria prosseguir seu cumprimento em privação de liberdade, portanto.

4 - “Tentei falar com várias pessoas e ninguém me deu atenção,


só porque sou travesti”

Por conta da aparente contradição que detém o Estado entre tutelar


e garantir direitos a essas pessoas e ao mesmo tempo as impelir a um locus
social marginal e patológico, ancorado em tecnologias biopolíticas, é que se
fez necessário este estudo.
Não consegui aferir o acesso à Justiça por travestis no estado da Bahia
simplesmente por elas não terem tido acesso ao Judiciário; no decênio
analisado, sua presença nas narrativas processuais as tomam como elemento
cênico no estabelecimento de relações de outra ordem. Ainda assim, persiste a
vinculação ao crime, ao ilícito, à fraude, à dissimulação, à desonra, numa sanha
lombrosiana que liga o caráter e a moralidade à constituição física do sujeito.
Pude dimensionar o quanto esses corpos abjetos, transgressores, são
evocados, nestas instituições, enquanto signo que estabelece uma relação causal
com a marginalidade, com o inarrável; tais representações as destituem de
dignidade enquanto (re)produzem conceitos e terminologias que perpetuam
violências simbólicas e que atentam frontalmente contra direitos e garantias
mínimas, como um nome com que se reconheçam e se identifiquem. Nem um

Ebook IV SIGESEX 337


espaço sequer, para algum apelo em seu próprio favor, a fim de que se invistam/
travistam dignamente de seus corpos e suas trajetórias.
Acredito que esta seja uma forma de demonstrar repulsa a sua existência nos
mesmos espaços criadores e mantenedores de cidadania e humanidade, para que
não convivam condignamente com aqueles mais alinhadas à cartografia traçada
pelo abismo médico-jurídico que normatiza – e normaliza – o que é um corpo
aceitável: cisgênero, heterossexual, masculino e branco, a bíos agambeniana.
A mensagem que mora nos bastidores da prática de uma pessoa cisgênera
ao buscar reparação pecuniária por danos morais por ter sido (publicamente)
apresentada como travesti. é de que não deseja nem acredita ser aceitável carregar
consigo o conjunto de estigmas que lhe seriam destinados, do outro lado da linha
abissal, caso tivesse transgredido de forma tão veemente as normativas de gênero.
Para além deste cenário, travestis têm se organizado em ações contra-
hegemônicas, a exemplo de atuações da ANTRA e do IBTE junto à
comunidade, aos observatórios de violência e políticas públicas e órgãos dos
sistemas de justiça e direitos humanos. Também pela atuação profissional de
travestis advogadas e em criações artísticas como as de Linn da Quebrada,
cujos versos intitulam as seções deste texto.

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Ebook IV SIGESEX 339


Corpos da sarjeta: travestilidades,
espacialidades em movimento com mc linn
da quebrada
“Sarjeta’s” bodies: transsexuality and spaces in
motion with linn da quebrada
Luiz Felipe Rodrigues1
Dalila Tavares Garcia2
Joselaine Dias de Lima Silva3
Roberto Carlos Correia e Silva4

RESUMO: Entendendo o corpo como espaço relacional, móvel e


fluido, traremos à discussão blasFêmea, um trabalho cenográfico de MC Linn
da Quebrada, uma mulher trans periférica, que coloca em debate questões por
vezes ignoradas pelo “contrato social” hegemônico. BlasFêmea reflete sobre as
diferentes formas de “mulheridades”, e nos permite compreender que o corpo
é uma construção socioespacial e que ao transitar entre diferentes espaços e
marcações de diferença, configuram eles mesmos, espaços de conflito, de
resistência e de tensionamento.
PALAVRAS-CHAVE: transsexualidade; espaço; corpos.

ABSTRACT: Understanding the body as a relational, mobile and fluid space, we


will bring to the discussion blasFêmea, a scenographic work by MC Linn da Quebrada, a
peripheral trans woman, which raises questions that are sometimes ignored by the hegemonic
“social contract”. BlasFêmea reflects on the different forms of “womanhood”, and allows us
to understand that the body is a socio-spatial construction and that when passing between
different spaces and markings of difference, they configure themselves spaces of conflict,
resistance and tension.
KEYWORDS: transsexuality; space; bodies.

1. Doutorando em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: luiz.felipe.r@outlook.com
2. Mestranda em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: dalila.tavares@hotmail.com
3. Doutoranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: joselainesilva_9@hotmail.com
4. Mestrando em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: robertoccorreia@hotmail.com

340 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


1- O corpo e o poder

O corpo é o meio de comunicação e experiência com o mundo e com


os outros, e é por meio dessas relações que nos produzimos. Nossos corpos
são relacionais, móveis, fluídos, e estão sempre em negociação e transformação
em nossas trajetórias. Sempre em construção, o corpo não é um fato dado,
natural ou universal, mas, formas que adquirem sentido no tempo e no espaço,
fazendo diferença em nossas experiências socioespaciais de acordo com sua
aparência, comportamento e práticas (SILVA e ORNAT, 2016. 62).
Assim, a cultura e as relações de poder intrínsecas da produção societária
atravessam os corpos atribuindo-lhes diversos significados e marcações
que constituem diferenças: identidade, nacionalidade, pobreza, raça, etnia,
sexualidade, etc. Tais marcações reproduzem relações de poder hierarquizadas.
Ao mesmo tempo em que o corpo é produzido nessas instâncias, ele também
é produtor.
O corpo nesses moldes é marcado de uma forma que legitime a
estruturação do poder hegemônico e sua reprodução. Como exemplo, temos
os escritos de Quijano (2005) que disserta sobre como a colonialidade do
poder no sistema capitalista utilizou-se da invenção da “raça” para assegurar
suas relações de dominação. Os corpos para tal sistema constituem formas
com papéis pré-estabelecidos na sociedade – são controlados, categorizados,
instrumentalizados e normatizados por uma série de dispositivos de poder
num processo complexo de tensionamentos e resistências. Os dispositivos de
poder∕saber são constituídos por um conjunto heterogêneo de instituições,
arquiteturas, leis, discursos, proposições filosóficas, morais e científicas
(FOUCAULT, 1979, p. 244).
Desse modo são criados padrões de corpos que a todo o tempo são
impostos por pressões advindas da mídia, do mercado, e de outras instâncias
disciplinares. Os corpos que não se enquadram nesses padrões acabam sendo
considerados anormais, imorais e aberrações que devem ser eliminadas,
pois, desprovidos de suas condições humanas pela ordem social, não são
reconhecíveis como vidas (BUTLER, 2015). Assim, se tornam corpos
marginalizados e segregados, mas que também servem ao sistema para legitimar
ordens classificatórias, já que o self se constitui a partir da coexistência do
Outro. Nisso, a construção da identidade precisa da diferença, pois, ambas são
indissociáveis e relacionais em um processo impregnado de poder e disputa
(SILVA, 2009).

Ebook IV SIGESEX 341


A compreensão desses processos nos exige abarcar a dimensão espacial,
pois, como aponta Carlos (2014, p. 53), há uma relação dialética entre sociedade
e espaço, em que um se realiza no outro e através do outro. Conforme a autora,
a produção no espaço nos leva a noção de apropriação que se realiza nos atos e
situações dos agentes sociais envolvendo o corpo e todos os sentidos humanos,
sendo estes, extensão do espaço (CARLOS, 2014, p. 63).
Essa produção envolve um permanente exercício dialético de poder
e contra-poder em que os corpos não são passivos, mas sim agentes. Dessa
maneira, “[...] o corpo jamais pode ser compreendido fora de um determinado
espaço e tempo, ele é móvel, fluido, ativo e sua materialidade está em eterna
negociação com a exterioridade e, nesse sentido, o corpo é sempre posicionado
socialmente e geograficamente” (SILVA e ORNAT, 2016, p. 62).

[...] o corpo é territorializado, desterritorializado e reterritorializado por


modalidades de identificação, por mecanismos psíquicos de defesa, pela
autoridade internalizada, por sentimentos intensos, por fluxos de poder e
significados. Os corpos assim, são constituídos dentro de uma constelação
de relações de objetos (como a família, o estado, a arte, a nação e assim por
diante). Os corpos não são espaços passivos sobre os quais o poder de ou-
tros espaços se realiza. Pelo contrário, os corpos também produzem espaço,
seus próprios mapas de desejo, gozo, prazer, dor, amor e ódio. Os corpos
em permanente processo de negociação com outros espaços ajustam suas
posições no mundo, sendo, também eles lugares de aglutinação de negocia-
ções externas e internas do poder (SILVA e ORNAT, 2016, p. 64).

Ainda que nós, enquanto sujeitos corporificados, estejamos submetidos


a uma série de dispositivos de controle em nossos cotidianos, somos portadores
de uma qualidade sensível que é inerente à materialidade mundana do real, e
por isso, nossos corpos, a partir da prática vital, possuem um caráter criativo
relacionado a uma implicação objetiva inesgotável (LIMA, 2014).

2- O corpo como espaço: A produção do corpo travesti em


Blasfêmea∕Mulher

Mc Linn da Quebrada é uma artista, cantora e ativista LGBT. Em


entrevistas, ela costuma declarar-se uma bicha transviada, preta, periférica, da
quebrada. Suas músicas e entrevistas apresentam enredos que trazem o corpo

342 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


como uma potência de reflexão e luta. Na música “blasFêmea∕Mulher”5, Linn
da Quebrada canta sobre as existências travestis, a pluralidade de mulheridades-
feminilidades e a potência dos corpos em (re)existir a partir da produção de
outros espaços e subjetividades subversivos. Mas não é qualquer corpo travesti
que é retratado. É um corpo travesti negro, pobre e periférico, o que traz a
importância da interseccionalidade dos diferentes marcadores sociais de
diferença para entender a complexidade das diferentes situações de exclusão
e violências.
Nisso, Megg Rayara Gomes de Oliveira, em seu trabalho titulado
“Nem o centro, nem a margem: o lugar da bicha preta na história e na
sociedade brasileira”, afirma que “[...] a negritude se constitui a partir da
heterossexualidade hegemônica e a homossexualidade a partir da branquitude,
o que contribui para a manutenção de uma masculinidade hegemônica branca
e cis heterossexual” (OLIVEIRA, 2017, p. 3), questionando assim, qual é o
lugar desse corpo que carrega diferentes marcadores sociais dissidentes que o
colocam numa situação de exclusão radical.
Em Mulher∕Blasfêmea, Linn relaciona a existência travesti a
determinadas espacialidades, temporalidades, práticas, e subjetividades que
denotam suas condições periféricas e que demonstram a produção de uma
identidade corporificada na qual espaço, movimento e ação são indissociáveis.
Vejamos o trecho a seguir:

De noite pelas calçadas, andando de esquina a esquina ∕ Não é homem


nem mulher ∕ É uma trava feminina ∕ Parou entre uns edifícios ∕ Mos-
trou todos os seus orifícios ∕ Ela é diva da sarjeta ∕ O seu corpo é uma
ocupação ∕ É favela, garagem, esgoto ∕ E pro seu desgosto, tá sempre em
desconstrução ∕ Nas ruas ∕ pela surdina ∕ É onde faz o seu salário ∕ Aluga o
corpo a pobre, rico, endividado, milionário ∕ Não tem Deus, nem pátria
amada, nem marido, nem patrão ∕ O medo aqui não faz parte do seu vil
vocabulário. (LINN DA QUEBRADA, Mulher∕Blasfêmea).

O corpo nesta narrativa é o da trava6 feminina, que não é homem


e nem mulher. É um corpo que ocupa temporalidades e espacialidades de

5. Audiovisual disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-50hUUG1Ppo. Acesso: 08∕04∕2018.


6. Travesti é uma identidade exclusivamente latina, a trans que precisa ir à rua para sobreviver é automaticamente
chamada de travesti. Sendo assim, o uso do termo transexual ou travesti é uma questão de auto-identificação. Linn da
Quebrada apropria-se do termo “trava”, palavra que é muitas vezes utilizada de modo pejorativo para lhe ofender, para
subvertê-lo e transformá-lo numa posição de resistência.

Ebook IV SIGESEX 343


margem na sociedade. Entendemos que é um corpo de entre-lugar, que não
se encaixa no padrão binário imposto pelos padrões de modernidade∕cisheter
onormatividade. O entre-lugar é entendido enquanto uma zona criada pelos
“descentramentos” que debilitam “esquemas cristalizados de unidade, pureza
e autenticidade”, testemunhando a heterogeneidade e o devir (HANCIAU,
2010, p. 127). Podemos compreender a noção de entre-lugar enquanto:

[...] um “terceiro espaço” que tem por objetivo abalar ou ultrapassar


as oposições binárias que se insinuam nos “sistemas de pensamento” e
nos “pensamentos de sistema”, um espaço novo, intersticial, que provê e
promove estratégias de resistência e desenvolvimento, no qual a sutileza
e a abertura imperam (HANCIAU, 2010, p. 137).

Das espacialidades contidas nesse trecho da música, podemos colocar


as calçadas, as esquinas, o “entre-edifícios”, as ruas. É um corpo da sarjeta. A
sarjeta enquanto situação é sinônimo de decadência, indigência, humilhação,
imoral. Mas Linn da Quebrada nos mostra uma dialética entre violência e
resistência: “Ela é diva da sarjeta”. Ser diva na sarjeta pode ser sinônimo da
resistência que é ser travesti.
Na música, o corpo travesti também é colocado enquanto espaço – é uma
ocupação, favela, garagem, esgoto. Este corpo é situado enquanto um lugar sujo
que é explorado, ocupado, negado e marginalizado. Novamente Linn da Quebrada
subverte esses corpos e posições: para o “desgosto” da ordem social dominante,
é um corpo que “tá sempre em desconstrução”, e, portanto, em movimento –
questionando assim, a fixidez em que os corpos são categorizados e situados.
Nesse sentido, esses corpos dissidentes e seus processos de resistência constituem
contra-espaços, que em movimento, questionam os espaços hegemônicos que
imperam na lógica da “pureza”, da fixidez, do binarismo e da dualidade.
BlasFêmea∕Mulher nos apresenta um corpo político, que é um contra-
espaço que negocia e que resiste, trazendo “[...] a noção de um “feminino
travesti” como sendo sempre negociado, reconstruído, re-significado e fluído”
(DUQUE, 2009, p. 84). Desse modo, por meio de jogos e procedimentos
“minúsculos e cotidianos”, os sujeitos nem sempre se conformam com os
mecanismos da disciplina, buscando alterá-los, subvertê-los, constituindo a
rede de uma antidisciplina (CERTEAU, 1998, p. 41-42).
Das temporalidades, o corpo da trava feminina costuma se movimentar
na noite, na surdina – uma espacialidade∕temporalidade silenciosa, embaçada,

344 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que não deve ser vista ou ouvida, pois é considerada imoral. Seus usos se dão nas
margens noturnas da sociedade, obedecendo ao tempo (e espaço) do modelo
imposto de família tradicional (DUQUE, 2009, p. 96). O corpo representado
é também um corpo sempre em movimento: “pelas”, “entre”, “andando”,
demonstrando ser um entre-lugar, produto (sempre inacabado) da própria
experiência (inesgotável). Um corpo que se expressa com um “vil” vocabulário
– ordinário, sem valor, que não presta – onde o medo não faz parte.
É nessas situações espaço-temporais que a trava feminina sobrevive, “faz
o seu salário”, mostrando os orifícios e alugando o corpo a homens de diversas
situações socioeconômicas. O corpo aqui se torna mercadoria a ser comprada
e consumida. Em uma das partes da música, Linn da Quebrada coloca: “ela é
feita pra sangrar, pra entrar é só cuspir, e se pagar ela dá para qualquer um...
mas só se pagar hein? Que ela dá, viu?” demonstrando o consumo e a violência
a que o corpo travesti está submetido. Muitas vezes, é apenas no mercado do
sexo que esses sujeitos encontram espaço e aceitação para a transgressão das
normas de gênero (DUQUE, 2009, p.149).
Por se tratar de corpo que não corresponde ao padrão heteronormativo
hegemônico, a trava feminina, como diz a música blasFêmea∕Mulher. “não
tem Deus, nem pátria amada, nem marido e nem patrão”. Deus, pátria amada,
marido e padrão nesse contexto, parecem representar instituições disciplinares
da ordem social dominante que buscam produzir determinados tipos de corpos
e determinados tipos de subjetividades. Em outro trecho, a cantora enuncia:
“Homem que consome, só come, fudeu e some”. Um corpo colocado como
servil, que apenas serve para “ser comido” – comprado, usado e descartado, que
representa um prazer proibido e imoral que deve ser realizado às escondidas. Linn
subverte essa posição da travesti na sociedade: “ela não quer pau, ela quer paz”.
Em diálogo com Linn da Quebrada, podemos compreender que o corpo
travesti, é um corpo que vive em espacialidades e temporalidades dissidentes,
como a sarjeta, a esquina, a surdina, a noite, a favela, a garagem, o esgoto.
Nesse sentido, entendemos que o sistema moderno ocidental hegemônico
se reproduz a partir de uma linha abissal que tem a capacidade de produzir
exclusões radicais, dividindo a realidade em dois espaços: o das visibilidades
e o das invisibilidades (SANTOS, 2007). O corpo da travesti, da sarjeta, se
encontra no lado das inexistências dessa linha abissal, numa situação de exclusão
radical, mas que (re)existe e subverte padrões hegemônicos estabelecidos.
Segundo Agripina Pequeno (2017, p. 19), travesti graduanda em
História da Arte pela UFRJ, “[...] os estereótipos de gênero que funcionam

Ebook IV SIGESEX 345


como mecanismos de controle para o corpo de mulheres cisgêneras operam
também no corpo das mulheres trans”. Nessa perspectiva, Carvalho (2017, p.
56) traz a compreensão de Patricia McFadden (2006) da existência de uma
femocracia ocidental norte-cêntrica que define uma identidade comum para
representar toda a pluralidade de outras mulheres. Nesse sentido, se estabelece
um discurso monolítico que legitima hierarquias e subordinação de “uma
Outra sobre as Outras”, negando a diversidade epistêmica e social do mundo
(CARVALHO, 2017, p. 56).

3- O corpo e o espelho utópicos: A posição do feminino e as


diferentes possibilidades de fazer-se mulher

No início do audiovisual blasFêmea∕Mulher, Linn da Quebrada senta em


posição de oração. Aparecem então duas figuras andrógenas masculinas, e Linn
tira a roupa. O órgão sexual masculino dessas divindades é representado com
velas. Durante a cena, Linn acende essas velas com um maçarico, que queimam
e derramam a cera (que parece ser uma metáfora à ejaculação masculina) em
seu corpo. Ao final, uma das divindades aparece fazendo gesto de que teve um
orgasmo, e logo, Linn aparece seminua, jogada ao chão, aparentemente sem
forças, e com o corpo todo banhado de cera. A cena parece demonstrar o papel
de servitude atribuído ao sujeito feminino pela ordem social hegemônica. E
também a posição do corpo travesti ao ser usado para o prazer às escuras e
estigmatizado às luzes. Em uma entrevista para a NOIZE (2017)7, Linn da
Quebrada revela que o jogo de palavra, trocando blasfêmia (insulto ao que é
considerado sagrado) por blasfêmea, é feito no sentindo de um ato profano de
enfrentamento do sagrado que é ocupado pelo masculino.
Em uma entrevista para o canal melissachannel no youtube8, Linn
da Quebrada fala do audiovisual blasFêmea∕ Mulher e declara que sua obra
fala de “mulheres, mulheridades e da diversidade do feminino”, tratando de
demonstrar o poder de cada um desses corpos e a potência do feminino nesses
corpos, cada um em seu contexto. O feminino é visto a partir da pluralidade,
podendo ser construído de diversas formas de acordo com os diferentes
contextos e com as diferentes travestilidades9.
7. Disponível em: http://noize.com.br/exclusivo-demolicao-sagrado-e-nova-construcao-de-feminino-por-linn-da-
-quebrada-em-blasfemea/#1. Acesso em 14∕04∕2018.
8. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ptoK2ODrEGI&t=3s. Acesso em 11∕04∕2018.
9. Duque (2009, p. 76) toma o termo “travestilidade” de Peres (2005) para se referir à “variedade de processos identi-
tários pelos quais os sujeitos travestis passam para se constituírem enquanto femininos”.

346 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Sobre a produção da mulheridade travesti, na música blasFêmea∕Mulher
temos algumas partes instigantes: “Ela tem cara de mulher, ela tem corpo de
mulher, ela tem jeito, tem bunda, tem peito, e o pau de mulher”. O “pau de
mulher” é uma singularidade da mulheridade travesti, que é uma das tantas
outras feminilidades que podem se construir. Se o pau é um órgão genital de
uma sexualidade biológica considerada masculina, no corpo travesti, esse pau
pode ser feminilizado.
Outro trecho diz: “Ela é amapô (mulher) de carne e osso, silicone
industrial, navalha na boca, calcinha de fio dental”. Podemos pensar esse
trecho, assim como o anterior, como parte da produção desse corpo travesti
feminino. O peito de silicone industrial é parte desse processo de construção
de uma mulheridade∕feminilidade travesti periférica. A calcinha de fio dental
também pode ser pensada enquanto objeto portador de significado e que faz
parte da construção do feminino no corpo, assim como tantos outros. Para
Duque (2009, p. 114), são objetos que constituem “próteses de gênero”. Já a
navalha na boca traz a situação de violência e resistência que atravessa a vivência
das travestis periféricas. Podemos também pensar o corpo e a sua produção a
partir da seguinte fala de Linn da Quebrada em um audiovisual titulado “Linn
da Quebrada – Eu não quero me finalizar” disponível no canal melissachannel
no youtube10:

É uma estética que não é estática. É uma estética que se move, que é
trânsito, que é trans. Eu sinto que o meu corpo é um processo inaca-
bado [...] É justamente por isso que eu venho experimentando o meu
corpo nessas diversas instâncias, espaços e territórios: teatro, dança,
performance, rua, casa, palco, música, silêncio. LINN DA QUEBRA-
DA (2016).

Silva e Ornat (2016, p. 67) trazem a ideia de Adrienne Rich (1984)


em que ela considera que seu corpo é “[...] geopoliticamente localizado, na
medida em que as mesmas características materiais de seu corpo, dependendo
de sua localização, podem estabelecer diferentes subjetividades”. Sobre o
universo travesti, Duque (2009, p. 145) coloca que “[...] a multiplicidade e
contingencialidade das experiências desses sujeitos lhes confere biografias
diversas, inúmeros referenciais identitários e diferentes interesses na
manipulação de estigmas”.
10. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc. Acesso em 10∕04∕2018.

Ebook IV SIGESEX 347


No audiovisual “Eu não quero me finalizar”, Linn da Quebrada declara que
estamos habituados a reproduzir e reconhecer apenas dois tipos determinados de
corpos: homens e mulheres. De acordo com ela, nesse (cis)tema que impõe essas
formas de ser como únicas, quem não se enquadra está submetido a ser tratado
como qualquer coisa, como nada. Temos então um dispositivo de poder que
inventa o Outro a partir de uma lógica binária que reprime as diferenças e exclui
de seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência
das formas de vida concretas (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 169).
A ordem social dominante impõe um padrão de ser mulher, de ser
feminino. Na música, Linn da Quebrada coloca uma frase da crônica “O
Ritual” (1984) de Clarice Lispector: “Seu segredo ignorado por todos e até pelo
espelho: Mulher”. De acordo com Soler (2015), o ser mulher a partir do olhar
feminino é diferente de ser mulher no olhar masculino∕patriarcal. Na análise
desse trecho e de outros das obras de Lispector, Soler coloca que “a mulher é
constituída a partir de uma visão masculina que a olha e devolve uma imagem
baseada nos atributos físicos, sem, no entanto, conseguir atingir o cerne da
identidade feminina” (SOLER, 2015, p. 245). Nesse sentido, o espelho onde
“as mulheres confirmam sua identidade e sua beleza” é um “espelho mágico,
arquetípico e masculino” (SOLER, 2015, p. 248), e que consequentemente,
ignora as diversas mulheridades em face da femocracia dominante.
No caso de Linn da Quebrada, podemos considerar que o espelho
e a sociedade ignoram a sua mulheridade, já que a heterocisnormatividade
dominante aceita apenas um tipo universal de mulher: branca, hétero, cis,
ocidental, etc. Por isso, em algumas das partes de blasFêmea∕Mulher, Linn da
Quebrada recita, às vezes em tom de afirmação: “E uma mulher é sempre uma
mulher!”, e às vezes de indagação: “E Outra mulher, é sempre uma mulher ?”
Olhar-se no espelho, nessa perspectiva, é ao mesmo tempo um olhar
disciplinar perante a ordem societária, podendo ser um ato de se autovigiar e
de se autopunir na busca de um padrão que muitas vezes é inalcançável. Isso
pode demonstrar uma micropenalidade do corpo em que o poder, a disciplina
e a regra são internalizados nos próprios sujeitos (FOUCAULT, 2007, p. 149).

4- “Eu não quero me finalizar”: Por nossos corpos e espaços outros

Na entrevista ao canal melissachannel no youtube sobre


blasFêmea∕Mulher, Linn da Quebrada afirma que o desafio é reconstruir
o “sagrado” a partir da formação de redes de apoio para romper com a

348 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


lógica de um feminino preterido e que é colocado numa “posição de
servitude e sexo”. Para Linn da Quebrada, é preciso tomar o poder dos
próprios corpos para construir um espaço de força, resistência, amor,
afeto e desejo. A proposta de construção desse Outro contra-espaço
parte da necessidade de uma “disputa pelo próprio corpo”, diz Linn da
Quebrada.
Ao colocar em evidência as diversas mulheridades, Linn nos
mostra com sua arte que “ser mulher” não corresponde simplesmente ao
sexo biológico. Devemos considerar que fazer-se mulher é um processo
que se constitui culturalmente a partir de experiências sociais e espaciais,
o que corresponde há múltiplas possibilidades e maneiras de “ser”.
Assim, para subverter a linha abissal da modernidade ocidental
eurocêntrica, precisamos buscar e construir contra-espaços que
potencializem as capacidades sensitivas e criativas de nossos corpos,
e que possibilitem a abertura para a pluralidade de mulheridades que
se produzem em diferentes corpos, nos diferentes contextos, e com
diferentes coisas. As artes podem ser um dos meios para a experimentação,
potencialização e abertura à alteridade. Podemos pensar essa construção
a partir da ideia de uma ecologia de saberes que se constitui no
reconhecimento da pluralidade e da diversidade epistemológica do
mundo para confrontar a narrativa monolítica que nega determinadas
existências (SANTOS, 2007).
Em nome da pluralidade de mulheridades que (re)existem todos os
dias, temos que considerar que sujeitos corporificados não são passivos
frente a mecanismos disciplinares, preconceitos, humilhações, estigmas
e explorações, já que o corpo, enquanto máquina desejante, conforme
Deleuze e Guatarri (1976), se constitui sempre numa multiplicidade de
possibilidades como uma potencia criativa e transformadora da própria
realidade.
Podemos então verificar, uma microfísica de resistência que
as gentes produzem cotidianamente a partir de seus corpos. É nas
minuciosidades da existência que se constroem vias de escape, de
contornamento e de confronto às forças que buscam nos dominar e
nos “desenraizar da vida”, como bem apontou Simone Weil (1996). É
no movimento e nas espacialidades de sarjeta que as travestis batalham
para conquistar o direito de “viver, brilhar, e arrasar” (LINN DA
QUEBRADA, Mulher∕Blasfêmea).

Ebook IV SIGESEX 349


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Ebook IV SIGESEX 351


Movimento LGBT na pluralidade do
movimento Sem Terra
LGBT movement in the plurality of the Landless
movement
Marco Aurélio de Almeida Soares1

RESUMO: A proposta deste artigo é discutir a diversidade LGBT


incorporada pelo Movimento Sem-Terra e a sua interculturalidade e a
preocupação com a identidade de gênero do companheiro de luta. O
crescente impacto do neoliberalismo tem imposto mudanças de larga escala
no Movimento, focando-se na sua luta original pela Reforma Agrária,
compreendendo que a pluralidade de sexualidade e de gêneros compõe a
revolução.
PALAVRAS-CHAVE: Interculturalidade – Movimento sem Terra – LGBT

ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the LGBT diversity embodied
by the Landless Movement and its interculturality and the concern with the gender identity of
the fighting companion. The growing impact of neoliberalism has imposed large-scale changes
in the Movement, focusing on its original struggle for Agrarian Reform, understanding that
the plurality of sexuality and gender make up the revolution.
KEYWORDS: Interculturality - Movement without Land - LGBT

Na educação, temos movimentos de resistência em busca de condições


de formação para o trabalho e para a cidadania. O que se verifica é a interlocução
de movimentos sociais heterogêneos. No caso das resistências não-urbanas,
que buscam luta pela terra, também há ramos do movimento feminista e
movimento LGBT, na luta junto com o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST).
Estamos em novos tempos, com outras exigências educacionais, na
busca de inclusão e não da exclusão. Estamos no século XXI com muitas
mudanças, entre as quais o empoderamento da identidade LGBT. O primeiro
de março de 2018 foi considerado um dia histórico para o movimento Trans
1. Mestre em Educação, hallymarco@gmail.com

352 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


pela conquista da retificação do nome, com o direto de mudar o gênero sem
precisar fazer cirurgia de designação sexual, inclusive equiparando-se com
a legislação vigente argentina, posto que agora não precisa mais passar pela
judicialização, podendo-se passar apenas por procedimentos de cartório.
Pensando na decisão do STF, as demandas LGBT sempre avançam na
luta, na garra. Hoje podemos dizer que a gay poc poc2 também pode ir para a
escola concluir os seus estudos.
As gay, trans e lésbicas dos movimentos que também lutam por um
lugar ao sol, estão conquistando o seu direito, seja no movimento do MST,
encontrando neste movimento um espaço sem os olhares conservadores
viciados na cidade, tendo o respeito do movimento socialista.
Quando observamos que o MST está indo além dos princípios que
encontramos na atual sociedade, pensamos que podemos mudar concepções
de educação, pois o ambiente escolar, muitas vezes, ainda um local conservador
e reprodutor das relações sexistas e homofóbicas.
Mas mudanças estão ocorrendo no sentido de incluir no sistema
educacional os LGBT, como revela a Portaria do MEC publicada em 18 de
janeiro de 2017 que inclui o direito ao nome social no lugar do nome de
registro nas chamadas desde o ensino fundamental, desde que, no caso de
ser um menor de 18 anos, haja declaração assinada pelos pais autorizando o
tratamento devido.

A escola precisa ser vista como um espaço para aprender a viver. É ne-
cessário redescobrir o vínculo entre sala e a vida fora da escola para a
qualificação de ambas. Para tal, é preciso que os cursos de licenciatura
levem em conta tais exigências na formação de novos professores e que
processos de formação continuada se ocupem também de tais dimen-
sões. (XAVIER, 2010, p. 95).

Com essas transformações acontecendo no início 2017, não podemos


pensar numa formação de professores como ocorria nos últimos anos. Devemos
repensar e discutir a formação inicial, ou seja, na Universidade que forma esse
profissional para atuar com um pensamento que não discrimine as diferenças
de gênero. Repensar o papel da escola e da formação é importante não somente
para analisar as funções e compromissos da instituição escolar, como também
a sua produção de conhecimento no desenvolvimento do discente.
2. Um gay afeminado descontruído

Ebook IV SIGESEX 353


Em primeiro lugar, é preciso destacar a complexidade da desejada e
necessária convivência entre professor e alunos, membros de diferen-
tes gerações, marcados por diferenças de cultura, de papéis e funções,
bem como salientar a importância dessa relação para que a escola possa
dar conta de uma de suas mais importantes funções, a de educadora de
crianças, adolescentes e jovens. (XAVIER, 2010, p. 103)

A relação entre professor e aluno sempre nas escolas, seja ela na cidade ou
no campo, é fundamental para a criação de uma sociedade que não discrimine
as diferenças de gênero e de sexualidade.

1- Escola chegay

A escola, muitas vezes, é um lugar onde predominam pensamentos


conservadores em relação às identidades de gênero que não seguem a
heteronormatividade. É importante que se possa questionar essas atitudes para
formar sujeitos capazes de conviver com a diferença sem que a discriminem.

A escola, apesar de ser um espaço onde a diferenças sempre coexistiram,


nem sempre reconheceu sua existência ou a considerou na sua comple-
xidade. Durante muito tempo, negou-se a existência das diferenças no
processo pedagógico. (MARQUES, 2012, p.103).

Negar a diferença na escola é negar a própria característica da escola,


pois toda a escola é plural, e cada sujeito deve poder expressar a sua identidade
sem se preocupar com a mesmidade/normalidade.
Podemos fazer uma analogia com um guarda-chuva ao descrever a escola
onde encontramos uma diversidade que deveríamos respeitar sem ter que seguir a
norma heterossexual de convívio social imposta pela sociedade. Nos últimos anos,
o movimento do MST, se abre para esse guarda-chuva rompendo paradigmas,
aceitando o diferente na sua causa, abrindo um viés de socialismo para todos.

Rompe-se assim com a dicotomia paradigmática do normal versus


anormal, do capaz de ajudar versus o necessário de ajuda etc. Todos,
no caso, têm o mesmo valor existencial e, por isso mesmo, devemos
compartilhar do mesmo espaço tempos, sem qualquer discriminação.
(MARQUES, 2012, p.109).

354 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Essa diferença pode ser discutida com os estudantes de forma mais
ampla, enfrentando os conservadorismos lá presentes. Importa reconhecer que
as identidades de gênero e sexuais são construções culturais, portanto, devem
ser iguais em termos de direitos. Esse reconhecimento está sendo conquistado
de forma gradativa, graças a luta dos LGBTs, para que esse reconhecimento
se dê de forma mais rápida, a participação dos professores e do campo da
educação é fundamental:

Torna-se de suma importância que se parta da mudança das identidades


dos professores e da professora, alunos e alunas, escolas, de modo que
todos os sujeitos possam assumir sua condição de agentes das situações
e nunca de objetos dos quais se fala ou se refere; e das representações,
de modo que denunciem a situação de status quo que a sociedade vive,
visando questionar e problematizar os atuais discursos heterogêni-
cos imersos no contexto social, para que façam sentidos as mudanças
(MARQUES, 2012, p.113).

A interculturalidade no movimento MST dentre de suas escolas está


muito além das discussões que encontramos na escola urbana, o debate
realizado pelo MST hoje se encontra muito mais voltado para abordagem da
pluralidade de gêneros.
Pensar que há uma pluralidade de gênero no MST e que há pessoas
LGBT atuando na causa, lutando pelos seus direitos, ocupando espaços e
tendo protagonismo e participação cidadã, é importante para mostrar para a
sociedade heteronormal que o LGBT não está associado à marginalidade, mas
a defesa de seus direitos.
O papel de uma escola democrática é contribuir para a construção
de diferentes identidades, para que todas possam existir sem serem
discriminadas:

O espaço escolar tem sido historicamente constituído como um de-


marcador de fronteiras que elege, legitima e classifica quem fica den-
tro ou fora. Tal demarcação de fronteiras, responsável pela separação
e distinção de comportamentos, atitudes de pessoas e grupos afirmam
e reafirmam as relações de poder, classificando e hierarquizando, con-
forme a identidade e a diferença atribuídas às pessoas e aos grupos
(AKKARI, 2015, p.35).

Ebook IV SIGESEX 355


Essa hierarquização só interessa aos grupos hegemônicos. Na perspectiva da
interculturalidade elas devem ser questionadas e subvertidas. É possível construir
uma educação que não legitime ou reforce as hierarquias de gênero, embora essa
tarefa não seja fácil, ela pode ser realizada com a participação dos professores.
O não reconhecimento da diferença e a tentativa de homogeneização
sexual trazem muitas dificuldades para os grupos diferentes. Mas esses grupos
resistem, não se curvam à norma, eles lutam por direitos que ainda não estão
garantidos ou efetivados. A incorporação da luta dos LGBTs à luta do MST,
mostra que se trata de um movimento muito articulado. Ele busca o respeito
às identidades dos seus pares que têm o mesmo objetivo coletivo. Esse respeito
é construído historicamente, assim como o não respeito. Desnecessário dizer
que na educação importa fazer circular o saber historicamente construído
em torno do respeito aos diferentes e questionar o saber construído para
discriminar e rotular os diferentes. Isso é fundamental para

[...] que a humanidade não tenha que reinventar tudo a cada nova ge-
ração, fato que a condenaria a permanecer na mais primitiva situação, é
preciso que o saber esteja permanentemente sendo passado para as gera-
ções subseqüentes. Essa mediação é realizada pela educação, entendida
como a apropriação do saber historicamente produzido. Disso decorre
a centralidade da educação enquanto condição imprescindível da pró-
pria realização histórica do homem (PARO, 1997b, p. 108).

A humanização encontrada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais


Sem Terra, dá-se pela mediação por meio da aceitação do outro sem tornar
a diferença como em fonte dos preconceitos reproduzidos historicamente.
Ele luta por um ideal (a reforma agrária), articula-a com a luta da inclusão
social e sexual, associando valores interculturais ao movimento. Com isso
ela não reinventa a roda, mas fortalece a luta por uma sociedade mais justa e
democrática.
A diversidade de gênero, assim como em qualquer espaço, é evidente
nos movimentos populares. Convém que seja compreendida, respeitada
e valorizada. Com isso, reafirma-se o compromisso ético-político com a
transformação da sociedade, desde uma posição crítica, de gênero, popular,
política, social e comunitária.
Um dos princípios originários da educação popular é a criação de uma
nova epistemologia, baseada no profundo respeito do conhecimento popular,

356 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


em Foucault pelos saberes locais, pelos saberes não acadêmico-científicos e/
ou institucionalizados. Esse conhecimento dos setores populares apreendidos
em sua prática cotidiana, não estão em posição de inferioridade em relação aos
saberes científicos, como nos ensina a perspectiva intercultural de educação.

2- Por uma escola sem LGBTfobia


Considerando que as identidades são fluidas, o movimento do MST
reforça a importância da sexualidade na luta. Essa luta não é somente individual,
trata-se de uma luta que é também coletiva.
O movimento sempre teve na sua composição militantes LGBT.
Podemos afirmar que devido a muita luta temos um grande número de
militantes que se sentiram seguros para saírem do armário e afirmar sua
diferença, lutando para que sejam respeitados. Essa luta tem sido fundamental
para que deixem de ser invisíveis, inclusive, nos espaços escolares:

O outro é a identidade negada e invisível no espaço escolar, é aquele


que, submetido aos critérios de classificação, torna-se diferente, in-
disciplinado e, portanto, discriminado pela cultura escolar. O proces-
so de discriminação institucional constrói progressivas barreiras que
impedem a participação e a aprendizagem de todos os estudantes,
destituindo determinados grupos do direito de aprender (AKKARI,
2015, p.40).

A marginalização infelizmente ainda existe em muitos espaços


escolares. Falta respeito com os sujeitos diferentes, com suas identidades. Isso
além da discriminação propriamente dita, gera também violência, aumenta a
vulnerabilidade social e produz uma sociedade mais injusta e menos igualitária.
Na contemporaneidade podemos perceber que é insustentável
invisibilizar uma parcela da sociedade, com seu papel muitas vezes oprimido.
Segundo as noções de poder de Foucault: “o domínio e a consciência de seu
próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo
pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a
exaltação do belo corpo”. A relações de sujeito e poder é exercido sobre nosso
corpo, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra o
poder” (FOUCAULT, 1993, p.146).
A escola, apesar de ser um espaço de homogeneização, é também um
espaço de resistência. Os sujeitos, cujas identidades são vistas como anormais

Ebook IV SIGESEX 357


e indesejáveis, mostram outras formas de existir e viver. Isso, como já afirmado,
tem produzido alguns direitos, como foi o caso do direito de usar modificar
seu nome. Essas lutas podem ser situadas no contexto do multiculturalismo e
do interculturalismo:

O conceito de multiculturalismo tem dois componentes (intercultura-


líssimo e de cultural), que, em nossa opinião, necessitam de ser anali-
sados separadamente. Esse exercício analítico irá destacar as diferenças
teóricas e políticas importantes no uso do conceito. Para destacar essas
diferenças é fundamental para o debate sobre as limitações e potencial
de um conceito que vem ganhando força em cenários diferentes e dife-
rentes atores. (RESPTREPO, 2014, p.12).

Os movimentos sociais estão se fortalecendo por meio da união das


diferenças, respeitando a bagagem cultural de cada gênero que compõe o
movimento. Essa interculturaralidade, ainda que presente em diferentes
políticas, precisa sempre ser vista com um olhar crítico, pois não raras vezes ela
vem acompanhada de um viés neoliberal que não contribui para transformar
as relações sociais:

Neste sentido, as diferentes reformas na área de educação incorporam


a perspectiva intercultural, seja como um dos eixos articuladores dos
currículos escolares, seja introduzindo questões relativas às diferenças
culturais como temas transversais. No entanto, se este alargamento de
conceito e de seu impacto progressivo, não deixa de estar permeando
por fortes ambiguidades, pois esta incorporação se dá no contexto de
governos que estão comprometidos com a implementação de políticas
de caráter neoliberal, que assumem a lógica da globalização hegemôni-
ca e a agenda dos principais organismos internacionais. (CANDU &
RUSSO, 2010, p.163).

Toda e qualquer incorporação do interculturalismo deve ser constituído


junto com a educação crítica e do campo popular. Essa incorporação deve ser
no currículo escolar indo além do contexto hegemônico, temos que aprender
a respeitar os diferentes, desarmando-nos dos pré-conceitos moralistas, o
patriarcalismo e capitalismo. Segundo a Carta Mundial das Mulheres para a
Humanidade:

358 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Esses sistemas se reforçam mutuamente. Eles se enraízam e se conjugam
com o racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, o
colonialismo, o imperialismo, o escravismo e o trabalho forçado. Cons-
tituem a base dos fundamentalismos e integrismos que impedem às
mulheres e aos homens serem livres. Geram pobreza, exclusão, violam
os direitos dos seres humanos, particularmente os das mulheres, e põem
a humanidade e o planeta em perigo (DOIMO, 2005, n. 6).

Encontramos na carta cinco valores de suma importância: igualdade, liberdade,


solidariedade, justiça e paz. Embora sejam reinvindicações do Movimento de Mulheres,
pode-se dizer que esses valores são defendidos por vários movimentos sociais.
As mudanças na sociedade na perspectiva dos oprimidos só ocorrem
com muita luta e pressão social. Foi por causa delas, que a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, lançou um
documento referente aos direitos à sexualidade:

A crescente mobilização de diversos setores sociais em favor do reconhe-


cimento da legitimidade de suas diferenças tem correspondido a uma
percepção cada vez mais aguda do papel estratégico da educação para a
diversidade. Ela é vista como fator essencial para garantir inclusão, pro-
mover igualdade de oportunidades e enfrentar toda sorte de preconceito,
discriminação e violência, especialmente no que se refere a questões de
gênero e sexualidade. Essas questões envolvem conceitos fortemente re-
lacionados, tais como gênero, identidade de gênero, sexualidade e orien-
tação sexual, que requerem a adoção de políticas públicas educacionais
que, a um só tempo, contemplem suas articulações sem negligenciar suas
especificidades. (BRASIL, MEC/SECAD, 2007, p. 9).

As conquistas realizadas pelos movimentos sempre foram através de


lutas, lutas essas que os Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
sabem enfrentar bravamente.

Conclusão

A construção dos sujeitos vai além de rotulações impostas pela sociedade.


O MSM ao incorporar a luta dos LGBTs mostra o quanto a sociedade está

Ebook IV SIGESEX 359


parada no tempo, no sentido de que a cidade nem sempre é mais progressista
que o campo, sendo o MST um foco de resistência ao conservadorismo de
gênero. Seus conhecimentos e suas luta, mostram que nem sempre são os
saberes científicos que provocam grandes transformações sociais.
Precisamos repensar a forma de olhar para os nossos pares. Algumas
propostas inovadoras do interculturalismo/multiculturalismo se encontram
no MST, como a diversidade sexual e de gênero. Isso mostra que o movimento
está atento às transformações sociais e incorpora novas demandas que o
fortalecem como movimento. Com isso aumenta seu potencial de luta,
inclusive contra à opressão neoliberal que culminou no atual governo,
ilegítimo, golpista e retrógado.
O MST está aprendendo a aceitar o outro como um outro, sem
rotulações, aceitando as identidades de gênero sem seguir os estereótipos,
fortalecendo tanto a luta pela terra, quanto a luta pela liberdade de gênero.
Pode-se dizer que o MST, é um exemplo para os demais campos que, levando
em consideração a interculturalidade, se proponham a fazer resistência ao
neoliberalismo, ao Golpe de Estado, à ditadura, à propriedade privada, às
desigualdades de classe e de gênero.

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360 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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MARQUES, Luciana Pacheco. Cotidiano escolar e diferenças. Núcleo, v. 251,


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RESTREPO, Eduardo. Interculturalidad Preocupados: Paredes e Potencial.


Âmbito de reuniões. Volume 7, número 1 de 2014, pp9-30.

PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo, Ática,
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XAVIER, Maria Luisa Merino de Freitas. Escola contemporânea: o desafio


do enfrentamento de novos papéis, funções e compromissos. IN: Pedagogias
Sem Fronteiras. Org. BUJES, Maria Isabel H. e BONIN, Iara T. Canoas: Ed.
ULBRA, 2010.

Ebook IV SIGESEX 361


Grafismo Boe Bororo: reflexões
antropológicas a partir das performances
de gênero
Boe Bororo graphism: anthropological reflections
starting from gender performances
Neimar Leandro Marido Kiga1

RESUMO: Este artigo busca investigar e compreender as relações


existentes entre os grafismos Boe e a habilidade de pintar o corpo perceptível
em homens homossexuais desta etnia. Entre as diversas funções sociais
distribuídas entre os Boe, algumas são realizadas somente por mulheres, outras,
somente por homens. Atualmente, é possível observar a transição de homens
homossexuais no que diz respeito às performances de gênero em contexto
étnico. O artigo tenciona valorizar o grafismo e empoderar os homossexuais
indígenas.
PALAVRAS-CHAVE: Boe, Grafismo, Sexualidade.

ABSTRACT: This article seeks to investigate and comprehend the existent relations
between Boe graphism and the ability to paint the body, as seen in homosexual men of this
ethnicity. Among the diversity of social functions distributed between the Boe, some are
performed only by women, other, only by men. Nowadays it’s possible to observe the transition
of homosexual men in what regards the performance of gender in an ethnic context. The
article tends to value the graphism and empower the indigenous homosexuals.
KEY WORDS: Graphism, Sexuality, Performance, Boe.

Introdução

Durante a infância nas aldeias Boe (Bororo), a observação da produção


cultural por meio do grafismo é algo frequente e usual, assim nasce o viés dessa
1. Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Mato grosso do Sul (UFMS). Email: maridoki-
ga@gmail.com.. Artigo apresentado ao IV Sigesex – Gêneros, Sexualidades e Conservadorismos: A Política dos Cor-
pos, Os Sujeitos e a Disputa pela Hegemonia dos Sentidos Culturais. Faculdade de Ciências Humanas – Cidade
Universitária s/n. Campo Grande/MS, Cep: 79070-900, Número: (67) 3345-7585 E-mail: ppgas.fach@ufms.br.

362 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


pesquisa, a relação entre cultura e habilidade. A pesquisa surge após o interesse
por uma particularidade cultural Boe, o grafismo. Após a graduação em Design
pela UCDB, com a monografia voltada a essa temática aumenta o interesse
pelo grafismo Boe. Outro viés da pesquisa é em relação a homossexualidade
entre os homens Boe. Visto que é presente em várias aldeias desta etnia e
por mim, o autor dessa pesquisa também ser indígena Boe e identificar-se
enquanto homossexual. O artigo tem o intuito de mostrar ao meu povo a
nossa capacidade de realizar os mesmos trabalhos que não os não indígenas
realizam. Como membros pertencentes à comunidade, conhecedores da
realidade interna e as necessidades, com o intuito de realmente ajudar, trazer
melhorias e serem protagonistas de suas próprias conquistas.
O objetivo desse artigo é mostrar, por meio dos grafismos, o diferencial
Boe, como forma de preservar, valorizar e levar visibilidade a essa particularidade
da cultura. Bem como despertar a valorização pelo próprio sistema cultural a
fim de fomentar futuros projetos educacionais e sociais para garantir às futuras
gerações toda riqueza Boe. Analisar a relação existente entre os grafismos
Boe e a habilidade perceptível em jovens homossexuais desta etnia, levando
em consideração as performances de gênero e promover o debate frente a
discriminação e preconceito vivenciado por jovens que não seguem a sexualidade
hétero normativa. A metodologia foi composta pela fundamentação teórica
com literaturas relacionadas ao tema abordado, tais como grafismo, gênero,
sexualidade e o povo Boe. Por meio de entrevista e conversas informais obtive
o conteúdo para realização do artigo. As entrevistas foram feitas pelo Facebook,
WhatsApp, algumas conversas diretas com os interlocutores e a partir da
observação em suas redes sociais, além de pesquisa bibliográfica e documental.
O Olhar e o Ouvir foram fundamentais para realização da pesquisa, a respeito
dessa metodologia, Roberto Cardoso de Oliveira nos diz:

Evidentemente tanto o Ouvir quanto o Olhar não podem ser tomados


como faculdades totalmente independentes no exercício da investiga-
ção. Ambos se complementam e servem para o pesquisador como duas
muletas (que não nos percamos com essa metáfora tão negativa...) que
lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhe-
cimento.

As entrevistas foram feitas em Campo Grande/MS com acadêmicos


indígenas homossexuais da aldeia Meruri, município de General Carneiro/MT.

Ebook IV SIGESEX 363


Percebe-se que por conta do processo de colonização, muitas
comunidades indígenas perderam ao longo do tempo suas práticas culturais, se
adaptando ao novo sistema imposto. Como sabemos, existem várias culturas
e cada uma com o seu diferencial, seja nas práticas religiosas, econômicas,
organizacional, etc. Diversos grupos são reconhecidos por características
distintas, diferenciando-se dos demais por meio da cultura material e imaterial.
A cultura não é estática, é dinâmica e está sempre em movimento. O
conceito sobre a cultura foi formado por vários antropólogos ao longo do
tempo, cada um tem suas percepções e teorias. Segundo Laraia (2001, p. 25):

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germâni-


co Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de
uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se
principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos
foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês
Culture, “que tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costu-
mes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem
como membro de uma sociedade.

Com a união que Tylor criou entre kultur e civilization nasceu o


primeiro conceito sobre cultura, originou-se a palavra culture que era capaz de
reunir todos os conhecimentos e práticas adquiridos por certo grupo ao longo
do tempo. Como podemos observar, a cultura está sempre em movimento,
igualmente, a cultura do povo Boe, através do tempo. Algumas mudanças
ocorrem em consequência de adaptações ao meio ambiente, outras motivadas
pela região habitada e influência de outras sociedades.

1- O povo boe

Boe é o termo que um determinado grupo étnico se autodenomina para


diferenciar-se dos demais, inclusive dos não indígenas, podendo ser traduzido
para “pessoas, gente ou povo”. Porém são mais conhecidos como Bororo, pelos
pesquisadores e sociedade em geral.
Bororo é um pátio na aldeia, próximo ao Bai managejewu (casa central),
pátio das danças, praça aonde são realizados vários rituais, como nominação das
crianças ou o funeral. Adugoenau (2015, p. 43) nos fala sobre a população Boe

364 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“(...) o Povo Bororo soma 2.348 indivíduos e tem seus territórios localizados
em cinco diferentes municípios”, esses municípios estão todos no estado de
Mato Grosso. Segundo Scotti e Boffi (2011, p. 11):

A palavra “bororo” significa páteo, praça, aldeia. “Orarimugudoge”


é o nome nacional, mas, normalmente, eles se autodenominam BOE
(gente). Aceitam o nome Bororo, já consagrado na língua portuguesa e
nas demais línguas. Outros nomes utilizados para indicar esse povo, ou
grupos pertencentes a ele, são: Coroado, Coxiponês Cabaçal e Bororo
da Campanha.

Pelo fato do Bororo ser uma praça onde acontecem os rituais, esse termo
era usado com frequência entre os Boe e para identificá-los como uma etnia foi
colocado esse nome. Esse povo se autodenomina Boe, atualmente preferem
ser chamados dessa maneira e estão em processo de mudança do nome, já que
durante décadas viveram subordinados aos colonizadores em diversos aspectos
culturais. Para Scotti e Boffi (2001, p. 12):

Em 1902, os Salesianos se dirigiram à localidade “Tachos”, onde ini-


ciaram um novo estilo de aproximação dos Bororo, sob a direção do
Padre Bálzola. Ele procurou se adaptar ao estilo de vida dos índios, não
os obrigando a seguir as regras de vida dos brancos. O sucesso levou os
Salesianos a fundarem outras missões: no rio das Garças (1905) e em
Sangradouro (1906).

Scotti e Boffi colocam que não houve nenhuma imposição cultural sobre
essa etnia, no entanto discordo desse posicionamento. Ouvi relatos por parte
dos próprios indígenas que quando tiveram contato com os Salesianos eram
obrigados a não praticar a cultura, não falar o idioma e se quisessem realizar
alguma prática cultural naquela época teriam que ir a algum lugar distante.
Ao longo do tempo, esse processo colonizador foi diminuindo, mas ainda
acontecem práticas etnocêntricas, porém de forma mais pacífica e disfarçada.
Na descrição do célebre antropólogo Levi-Strauss (1957, p. 227) acerca
da aparência física do Povo Boe, destaca “os Bororo são os maiores e os mais
belos indígenas do Brasil. Sua cabeça redonda, sua face alongada, com traços
regulares e vigorosos, seus ombros de atleta, evocam certos tipos patagões
aos quais talvez se liguem do ponto de vista racial”. De forma comparativa,

Ebook IV SIGESEX 365


atualmente ainda se percebe um grande porte físico dos Boe, porém, nem
tanto como na época que Lévi-Strauss os pesquisou. Devido a influências
externas, houve mudanças genéticas ao longo do tempo, o espaço onde estavam
inseridos foi mudando e com isso também a alimentação, as atividades físicas e
pelo contato com outras sociedades que seguiam o modelo europeu e cristão.
Os Boe têm rituais de grande importância e significado, momentos que
são realizados com muito prazer. Para que um boe etore (criança) pertença ao
mundo e esteja preparado é necessário que passe pelo ritual de nominação. Tem
grande relação com o mundo espiritual, aroe doge (espíritos), realizam o ritual do
funeral onde se conectam entre o mundo físico e espiritual, um dos rituais mais
impressionantes da etnia. E em todos esses rituais estão presentes os grafismos.

2- O grafismo boe

O Grafismo é arte mais relevante às formas, as cores e aos detalhes do


que a figura e representação. Forma de representar o objeto ou composição por
meio das linhas, pontos e cores. Os grafismos dos povos indígenas chamaram
a atenção dos viajantes, desde a chegada dos primeiros Europeus ao Brasil.
Os indígenas sempre pintaram o próprio corpo e também decoravam suas
peças. Lux Vidal (2000, p. 282) comenta “o grafismo enquanto estrutura
representacional e enquanto simbolismo sociocultural, refere-se, assim, à
estrutura formal, interna e semântica das representações, e ao significado e
função destas na cosmologia e na sociedade”, o grafismo é identidade.
Para representação de determinado assunto ou forma, muitas vezes é
necessário também que eles sejam transmitidos graficamente, para melhor
compreensão. Os Boe usam o grafismo em suas pinturas faciais e corporais
para representar de alguma forma os animais, as aves ou alguns espíritos que
não estão entre mais eles. Com os traços e cores fazem essa relação entre esses
seres. Não somente representações, mas também usam como prevenção de
alguma doença e a partir das grafias podem se identificar, já que são divididos
em clãs. Para Lux Vidal (2000, p. 13):

O homem ocidental tende a julgar as artes dos povos indígenas como se


pertencessem à ordem estática de um Éden perdido. Dessa forma, deixa
ele captar, usufruir e incluir no contexto das artes contemporâneas, em
pé de igualdade, manifestações estéticas de grande beleza e profundo
significado humano.

366 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Atualmente ainda se vê a desvalorização das culturas indígenas. As
referências usadas em produtos, por exemplo, são internacionais, estampando
a colonialidade do povo Brasileiro. As culturas indígenas muitas vezes são
vistas somente como algo primitivo e sem valor envolvido.
Os Boe sabem a importância e significados de seus grafismos. São muito
hábeis em desenhos ou pinturas faciais, que usam com frequência e prazer, mesmo
na vida cotidiana. A pintura do rosto tem 3 finalidades distintas: ornamentação,
tratamento de alguma moléstia ou dor e preventivo contra malefícios.
Os mesmos traços podem servir para os três fins, porém o segundo e
terceiro casos é comum encontrar-se na matéria da pintura também o jorubo
(vegetal mágico). A pintura, quando feita para fins ornamentais, é privativa
de determinados clãs: nos outros casos pode ser usada por todos. A prática do
grafismo é muitas vezes realizada pelas mulheres, em seus maridos e parentes,
atualmente se percebe essa prática realizada também por homens homossexuais,
que nessa performance expressam a habilidade e vontade em pintar.

3- A homossexualidade boe

Outro ponto que merece ser destacado, sobre as primeiras ideias para
a proposta do presente artigo é a homossexualidade em contexto indígena.
Visto que, por ser um assunto pouco discutido e explorado entre os próprios
indígenas, não indígenas e as pesquisas acadêmicas. Os homossexuais
indígenas das aldeias Boe atualmente são vistos na maioria das vezes somente
como pontos negativos e a discriminação é um grande problema enfrentado
por todos, sobretudo a não aceitação da família ou pessoas da comunidade,
pelo fato de terem uma ideologia totalmente cristã. Muitas vezes é grande a
falta de respeito com essas pessoas, trazendo várias consequências aos mesmos.
A desvalorização dessa parcela das comunidades também é muito grande,
muitos os tratam como se não fossem pertencentes à espécie humana. Digo
isso, por ser da indígena, homossexual e ter relação direta com a aldeia.
Em sua pesquisa sobre a homossexualidade indígena no Brasil a partir
de uma perspectiva comparada com os Estados Unidos, Fernandes (2014, p.
161) traz informações sobre o two-spirit:

[...] esse movimento vem buscado recuperar o papel xamânico que in-
divíduos com dois espíritos (de homem e de mulher, daí o nome do
movimento: two-spirit) tradicionalmente ocupavam em suas culturas.

Ebook IV SIGESEX 367


Segundo ativistas e intelectuais two-spirit, eles seriam xamãs, líderes e
embaixadores em potencial, pois, tendo os dois espíritos, operariam
como intermediadores entre diferentes universos: espiritual e terreno,
indígena e não indígena, masculino e feminino, etc.

Não muito diferente na cultura dos Boe, essas pessoas eram capazes
de transitar em diversos espaços e as práticas (performances) de gênero. A
diferença é que no povo Boe essas pessoas são enxergadas atualmente de forma
pejorativa. Há relatos de conhecedores da cultura tradicional, que há alguns
anos existiam entre os Boe pessoas transgêneros, que transitavam entre os
espaços masculinos (como poder ver o aije: espíritos, junto aos homens, cujo
mulheres não vêem) e femininos (possibilidade de cantar o canto que somente
as mulheres cantavam). Com aceitação da comunidade, não havendo naquele
período a discriminação, surge após o processo colonizador.
Cariaga (2015, p. 446), relata que de acordo com suas investigações
e entrevistas com “indígenas gays”, “a ideia de que a homossexualidade é um
“traço cultural” dos brancos, que não pode ser vista como uma prática sexual
comum entre os Kaiowa”. Entre os Boe a concepção não é diferente, muitos
acreditam que a homossexualidade é um fruto vindo de braedoge (sociedade
não indígena) e muitas vezes, é visto como uma perda da cultura tradicional.
Esse ponto de vista também pode ser concebido pelas pessoas não indígenas e
alguns indígenas de outras etnias.
Na dissertação do mestrado em Educação de Félix Adugoenau, membro
pertencente ao povo Boe, ele nos coloca a prática homo afetiva entre os Boe
a partir da perspectiva de autores padres salesianos, que por muito tempo
maquiaram suas práticas em relação a vários fatores culturais/tradicionais desta
etnia. Por mais que a imposição sobre a homossexualidade Boe atualmente
tenha diminuído, ela ainda acontece de forma mais pacífica e menos forçada.
Eu, o autor dessa pesquisa falo com propriedade, por ser homossexual desta
etnia e até hoje sofrer por essas imposições religiosas cristãs na aldeia.
Segundo Adugoenau, os autores de sua pesquisa denominaram essa
prática de pederastia2. Nos mostra que Steinen apud Albisetti e Venturelli
(1962, p. 288) “[...] Steinen afirma que não era desconhecida na choupana
central, mas que só a praticavam quando havia grande falta de meretrizes”. Eles
nos colocam que nesse período a prática existia, mas com algumas restrições.
2. Contato sexual entre um homem mais velho e um garoto bem mais jovem. Disponível em: < https://www.dicio.
com.br/pederastia/>. Acesso em: 10. Maio. 2019.

368 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Atualmente a homossexualidade está presente nas aldeias Boe e não podemos
negá-la, visto que vários homossexuais estão presentes em funções distintas
e fundamentais em prol de suas comunidades, seja no âmbito cultural/
tradicional, como levantes da cultura ou dando continuidade a ela ou em
locais junto a sociedade não indígena, como nas universidades em busca de
melhorias para suas comunidades, conciliando conhecimento tradicional e
científico.
Como Adugoenau (2015, p. 20) coloca “Outrossim, não encontramos
um nome originário para designar a homo afetividade tanto masculina como
feminina no idioma bororo”. Ao ato homo afetivo não há uma nomenclatura,
como Félix nos coloca, mas muitas vezes são dirigidos de forma negativa,
ofensiva e pejorativa aos homossexuais o nome de Pobogo (veado) ou biaraka
(bia: orelha, raka: duro ou em pé), ou seja, veado. E eram usadas com grande
frequência entre a comunidade em relação aos homossexuais, mas percebe-
se que essa prática ofensiva, carregada de preconceito e deboche diminuiu
recentemente, substituída pelo respeito.

4- Grafismo e sexualidade boe

A relação entre grafismo e sexualidade surgiu da observação em dias de


práticas culturais na aldeia Meruri ou em eventos indígenas e indigenistas,
onde vários jovens homossexuais eram convidados ou se “auto-convidavam”
para exercer a função de “pintores”. Realizam principalmente pinturas faciais,
pela habilidade, praticidade e rápida identificação enquanto pertencentes à
essa etnia.
A aldeia Meruri, município de General Carneiro/MT, no qual fui
nascido e criado, é um local com eventual acesso de não indígenas, vindos
de diversos locais. Sempre que possível os não indígenas têm o interesse
de se caracterizarem com os elementos do povo Boe. Uma das formas de
ornamentação, mais rápida, fácil e representativa é o grafismo. E na maioria
das vezes os jovens homossexuais são convidados a ajudar nessa prática, por
geralmente serem grupos de não indígenas, então é necessária a presença de
mais pessoas para esse procedimento. Esses jovens sabem da sua importância
em contribuir com a cultura, a importância da cultura e contribuem de
forma positiva para que ela, a cultura, tenha continuidade. Contribuem
como “levantes” da cultura. A graduação em Design me possibilita observar a
habilidades desses jovens na produção e confecção dos grafismos.

Ebook IV SIGESEX 369


Sabem do valor fundamental da terra/território para a sobrevivência
dos povos indígenas e a preservação das práticas culturais, extraem dela
vários materiais para sua subsistência, como por exemplo, as matérias primas
do grafismo. O antropólogo Aguilera Urquiza (2012, p. 273) sobre os Boe
descreve:

O povo Bororo, que se autodenomina Boe, que ocupava até fins do sé-
culo XVIII grande parte do centro sul do atual estado de Mato Grosso,
após mais de um século de contato intermitente com o entorno regio-
nal e com a atuação de missionários salesianos e de órgãos do Estado,
na atualidade estão reduzidos a um pouco mais de mil pessoas vivendo
em 6 terras indígenas.

Como Aguilera Urquiza coloca, o território Boe é dividido em algumas


aldeias. Inicialmente eu tinha conhecimento de homens homossexuais
somente da minha aldeia, com o tempo tive a oportunidade de conhecer
novas aldeias do meu povo, como a Tadarimana e Korogedu Paru, na região de
Rondonópolis/MT. Depois dessas viagens, que serviram como intercâmbio
entre as comunidades Boe, tive o contato com outros jovens homossexuais
da minha etnia, onde criamos um laço de amizade e semelhanças entre
experiências muito grande, principalmente em relação a como somos tratados
em nossas comunidades.
Em 2015, aconteceu em Palmas/TO os Jogos Mundiais dos Povos
Indígenas, que reuniu indígenas de diversos países e a nossa etnia foi convidada
a participar deste evento. No período da escolha dos atletas Boe, foi dito
que não seria possível a escolha de indígenas “brancos”, gordos, de cabelos
enrolados ou homossexuais. A indignação frente ao preconceito, mesmo em
eventos esportivos e festivos, foi um dos motivadores da pesquisa, para o nosso
empoderamento. Particularmente, sempre participava dos Jogos Indígenas
para correr, por ter certa velocidade e resistência. Além de outros indígenas
homossexuais que eram convidados para realizar alguns auxílios, como a
pintura facial e corporal.
Nesta pesquisa trouxe alguns jovens e amigos homossexuais Boe, para
contribuição e realização deste trabalho. A partir das minhas observações
escolhi os que tinham mais proximidade com o tema abordado e proximidade
física comigo para um melhor contato e possível entrevista ou conversa
informal. O primeiro interlocutor há alguns anos realiza a prática de pinturas

370 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


em telas, com temáticas indígenas, principalmente dos Boe. Essa dedicação
em pinturas torna-o mais prático ao realizar os grafismos. Coloco “primeiro”
interlocutor porque a pesquisa está em andamento e futuramente farei a
mesma entrevista com outros homossexuais.
Na entrevista com o jovem homossexual Boe, que preferiu ser identificado
com o nome na língua materna Akiró, me contou sua perspectiva em relação ao
tema. Durante a conversa fiz algumas perguntas como: Qual a sua relação com o
grafismo? Você acha que com essa prática pode contribuir com a cultura do seu
povo? Tem facilidade nessa função? Em sua devolutiva ele me diz:

Bom! A minha relação com os Grafismos da nossa


Cultura eu coloco como uma das coisas principais no meu
ponto de vista e muito importante! E em relação se eu gosto de
me pintar! Eu gosto muito e acho muito importante o nosso
povo se interessar nas coisas que envolvem nossa cultura!
E uma delas é o Grafismo, eu falando por mim é uma das
coisas que mais nos identifica quando saímos da aldeia! Bom
é uma das identificações, pois também temos o nosso nome boe
bororo, e o nosso nome que levamos no documento e a nossa
própria língua. Em relação as coisas que envolvem a nossa
cultura, acho que deveria ser uma ação coletiva e unificadora,
pois somos todos iguais, não diferenciamos de nenhum deles,
somos um povo só de uma cultura muito rica. Acho que
deveria ser muito mais que comum! Deveria ser uma união
sem indiferença! Agora o que o povo pensa de mim problema
é deles! Só me rebato com o meu silêncio e mostro através da
nossa cultura o meu conhecimento sobre ela! Pois muitas
vezes os que nos criticam não sabem o verdadeiro sentido
de “ser humano”! E tem muito pouco conhecimento sobre a
nossa cultura, quem nos critica, deveria entender muito bem
de tudo sobre as nossas culturas! Mas, no entanto, né? Nós
estamos sempre ativos nas coisas que envolve a nossa cultura!
E com toda certeza tenho facilidade em pintar e desenhar.

As respostas foram muito relevantes, superando minhas expectativas


de forma que não esperava. Após a conversa com esse jovem foi possível
perceber a afirmação da identidade enquanto indígena e homossexual e ao

Ebook IV SIGESEX 371


nos relatar suas experiências fica visível a contribuição de forma positiva
com a sua cultura. Logo, percebe-se também o empoderamento em relação
ao preconceito dentro e fora da aldeia, e a partir dessa prática se defendem
contra a homofobia em contexto indígena e não indígena.

Referências
ADUGOENAU, Félix Rondon. Saberes e fazeres autóctones do povo bororo:
contribuições para a educação escolar intercultural indígena. –2015.

CARIAGA, Diógenes Egidio. Gênero e sexualidades indígenas: alguns aspectos


das transformações nas relações a partir dos Kaiowa em Mato Grosso do Sul.
Cadernos de Campo - Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia
Social da USP, v. 24, p. 441-464, 2015.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de


Janeiro: Jorge “Zahar Ed., 2001.

LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: ANHEMBI, 1957.

SCOTTI, Osvaldo; BOFFI; Giulio. A Epopéia Bororo. Campo Grande:


UCDB, 2001.

AGUILERA URQUIZA, Antonio Hilario. Civilizar o índio: a dupla face da


catequese positivista na prática dos missionários entre o povo Bororo no Mato
Grosso. In: MARIN, Jérri Roberto; orgs. Religiões e Identidades. Dourados: Ed.
UFGD, 2012, pp. 259-278.

VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. Lux Vidal,


(organizadora). - 2a ed. - São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000.

FERNANDES, Estevão Rafael. Pensando de forma não situada: Dilemas no


estudo das homossexualidades indígenas no Brasil. ACENO, Vol. 3, N. 5, p. 14-
38. Jan. a Jul. de 2016.

372 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Racismo (des)velado
Racism (um)veiled
Tatiana T. de S. Bilemjian Ribeiro1
Anta Bernardes Guazzeli2

No cenário mundial dentre outras mil


No universo dentre as nações
Já não és se quer apenas uma estrela
Sendo bela quanto as mais belas constelações
Teu passado espelha bem tanta cultura
Teu presente mostra bem tanta fartura
Teu futuro não eu nem posso comentar
A emoção me cala a voz do coração
Terra dos coqueirais e dos babaçuais, é claro
Terra dos cafezais e dos algodoais, por certo
Terra onde o anil do céu é bem mais anil, pra sempre
Terra do povo pacato e gentil
Vem ver
A sociedade no asfalto
Gastando seu salto alto,
Sambando a pleno vapor
Vem ver
Um morro na arquibancada
Apreciando a moçada
Desfilando com garbo esplendor
Vem ver
Que aqui não há preconceito
O negro tem a alma branca
A igualdade sem par
Vem ver
Esse povo hospitaleiro
1. Bacharel em direito, Psicóloga e Psicanalista doutoranda em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco.
tatsiqueira@uol.com.br 984088454
2. Docente permanente da Universidade Católica Dom Bosco, Pósdoutorado em Psicologia pela Universidade de
Coimbra, UC, Portugal. anitabernardes1909@gmail.com 98408845

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Em cujo o peito há um pandeiro
Eternamente a tocar e cada vez melhor
Vem ver
Esse povo hospUitaleiro
Em cujo o peito há um pandeiro
Eternamente a tocar

RESUMO: Este texto trata de uma reflexão sobre preconceito, bem


como a sua respectiva tentativa de negação acompanhados de uma análise
qualitativa sobre o assunto. Será apresentada uma vinheta de um caso clínico
de uma pessoa vítima de preconceito, analisado sobre o referencial teórico
psicanalítico e a dimensão incontornável do racismo para pensarmos o nosso
presente. Preconceito, segregação e horror as diferenças sempre estão presentes
na história humana. Como a psicanálise compreende isso? Buscaremos refletir
sobre a negação muitas vezes reforça e camufla o preconceito.
PALAVRAS-CHAVE: racismo, negação e preconceito.

ABSTRACT: This text deals with a reflection on prejudice, as well as its respective
attempt of negation accompanied by a qualitative analysis on the subject. We will present
a vignette of a clinical case of a victim of prejudice, analyzed on the theoretical reference
psychoanalytic and the unavoidable dimension of racism to think about our present.
Prejudice, segregation and horror differences are always present in human history. How
does psychoanalysis understand this? We will seek to reflect on denial often reinforces and
camouflages prejudice.
KEYWORDS: racism; denial; prejudice.

1- Racismo (des)velado

Partamos da música do Gonzaguinha que lindamente canta assim “Vem


ver. Aqui não tem preconceito. O negro tem a alma branca é uma igualdade sem
par.” nesta bela canção de 1974 o compositor retrata de uma maneira muito
delicada a forma com que o Brasil de seu tempo lidava com o preconceito.
Preconceito narrado pelo poeta é o racial, mas também pode se manifestar de
formas diversas: podendo ser sexual, social ou religioso etc. Sendo que todos, em
grande parte das vezes que é praticado é logo em seguida negado ou camuflado.
Ao entonar “negro da alma branca” o autor faz referência a uma forma
popular que se costumava (ou costuma?) se referir aos negros ou a pessoas que

374 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


são alvo de preconceito. É muito comum em conversas cotidianas ouvir “não
sou preconceituoso, tenho até um amigo negro, ou gay” ou “não sou machista,
tenho uma filha”. Apesar, de tais tentativas de negação, o preconceito ocorre,
há desigualdade racial, o racismo ocorre, há desigualdade de gênero, ocorre o
machismo ou homofobia. A segregação e violência podem ser expressadas de
maneiras diferentes, tendo como resultado único um grande sofrimento para
quem é vítima.
A desigualdade racial no Brasil é ainda evidente, incontestável,
principalmente quando se leva em conta o risco de vida que um jovem negro
corre neste país, de modo a indicar uma necropolítica, ou seja, formas de
extermínio de certas vidas. A população negra é mais afetada pela violência.
Estudo realizado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
publicado em 2017 (Atlas da violência), que analisa os números e taxas de
homicídios no país entre 2005 e 2015 mostra que jovens negros são principais
vítimas de violência no país. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são
negras. De acordo com o Atlas os negros possuem 23,5% de chances a mais de
serem assassinados no Brasil, comparados como outras raças.
Mesmo com dados tão expressivos, ou em razão deles, muitas vezes
lidamos com nosso preconceito de maneira velada, silenciando o sofrimento
desta população. Assim, buscaremos entender o preconceito a luz da
psicanálise e sua relação com a tentativa de encobrimento/desvelamento de
tais acontecimentos. Para tanto iniciaremos o trabalho com apresentação de
uma vinheta clínica de uma pessoa que sofre preconceito e tem seu sofrimento
não legitimado, silenciado ou negado.

2- Preconceito negado – a dor de ser diferente

O racismo está presente em nosso cotidiano, em nossos consultórios,


em nossa clínica, em nossa cultura, assim se faz necessário que pensemos
sobre a segregação e preconceito inerentes na nossa sociedade. Neste sentido,
apresentaremos uma vinheta de caso clínico de uma jovem negra que chega na
clínica relatando, dentre outras coisas, que era diferente de sua família.
Afirma que seus cabelos eram mais crespos, sua pele mais escura. Filha de
um pai negro e de uma mãe negra, mas que devido à grande miscigenação do povo
brasileiro e do racismo embuto na nossa cultura, ela não se reconhece como tal.
Em sua fala revela a dor de não ser parecida como sua família materna,
sua mãe, avó, tia e primas todas são diferentes dela. Relata que quando era

Ebook IV SIGESEX 375


criança sua avó que cuidava dela quando a mãe trabalhava, e quando tinha que
pentear os cabelos era muito difícil, pois lhe causava inclusive dor física. Em
sua fala: “minha avó e minha mãe não sabem cuidar do meu cabelo, o meu
cabelo sempre foi mais crespo”.
Seu cabelo e sua maneira de relacionar-se com ele foi se modificando
com o caminhar de sua análise. Quando ela chegou na clínica seus cabelos eram
longos e lisos, depois ela colocou lindas tranças coloridas e hoje seu cabelo é
um belo e exuberante “black”. Em certa sessão, ela narrou algumas vezes que
ela foi ao principal shopping da cidade ela percebeu que estava sendo seguida
por seguranças. Notou que eles a seguiam por corredores e lojas, e ela associa
tal atitude com a cor da sua pele e a forma de usar seu cabelo. Acrescentou que
ao contar o fato a familiares obteve como resposta “é impressão sua” ou “isso
não acontece” ou “será que você estava desarrumada”. Assim, além da violência
de ser seguida como uma ladra, seu sofrimento não foi levado em consideração
por sua família.
Infelizmente este relato narrado na vinheta de caso clínico não é um
fato isolado, ao contrário, é acontecimento comum em nosso cotidiano. Neste
sentido, buscarem com a análise da dimensão individual, da dimensão clínica,
pensarmos o coletivo. De maneira que, o sofrimento individual será utilizado
como disparador para reflexão do racismo formador da nossa sociedade.

3- Resultado e discussões

Os fatos atuais são imperativos para que se discuta a segregação. O


racismo e o preconceito são verdadeiros sintomas sociais. Vivemos em um
tempo no qual, se por um lado tem-se a intenção de negar o preconceito,
escondendo, camuflando, não legitimando as formas de violências vividas,
por outro ele muitas vezes é gritado em redes sociais e em diferentes formas
de violência cotidiana. Isso implica compreender o que Mbembe assinala
como constitutivo das sociedades moderna ocidentais, a partir, sobretudo, dos
processos de colonização de países africanos e da américa latina.
Para este autor, o ocidente deve pensar no racismo não como uma
categoria ou um evento, um acontecimento social; ao contrário. O racismo
deve se pensado a priori, com elemento fundador de tais sociedades. Neste
sentido, não há como se questionar se determinado país é ou não racista por
suas práticas ou ações, e sim pensar no elemento segregador constituinte, que
por consequência gera práticas e ações, que são por essência racistas.

376 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Pensemos agora com a psicanálise, que não trata diretamente do racismo,
e sim do sujeito do inconsciente. Freud recorreu a noção de narcisismo das
pequenas diferenças para tratar o tema da segregação. Inicialmente ele aborda
o tema em seu texto “Tabu da virgindade” ele argumenta que:

[...] cada indivíduo é separado dos demais por um tabu do isolamento


pessoal e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas
que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos sentimen-
tos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa
ideia e derivar desse “narcisismo das pequenas diferenças” a hostilidade
que cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sen-
timentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos
os homens devem amar seu próximo (Freud, 1910-2006, pág. 206 e 207)

O homem e sua forma de formar laços sociais sempre foram objeto de reflexão
da psicanálise. Freud questionava sobre aquilo que funda a civilização, em textos
como “Psicologia das Massas e análise do eu”, “Moisés e monoteísmo” percebemos
que existe algo além de corpos que vivem juntos, há algo que liga os sujeitos.
Neste sentido, a segregação seria uma forma de discurso que enlaça a
sociedade atual. Ocorre que, esse discurso atual racista também faz laço social,
que conforme Soler (2016), o laço não se trata apenas das pessoas dividirem
um mesmo espaço físico, uma mesma sociedade, há um inominável, um real
que funda o laço social. “não existe civilização que não seja um tipo de laço”.
Assim Freud utiliza do mito de “Totem e tabu” para designar esse real, essa
perda original e fundadora de toda sociedade, como veremos a seguir.
Foi em “Totem e tabu” que Freud desenvolveu sua tese sobre a união dos
homens, mito este que funda a civilização, a sociedade. Sem utilizar esse termo,
estudou mito formador do laço social, que consiste na existência na horda
primeva de um pai gozador, tirânico, o qual é o detentor do prazer absoluto,
o único que tem o direito a todas as mulheres, e interditando os demais ao
acesso à este gozo com violência. O assassinato do pai primevo, tendo como
consequência o totemismo, evidencia um corte que marca o surgimento do
laço social. Conforme Soler.

Com efeito, o mito é precisamente uma narração fabulatória, mas cujo


a função é designar um real, um impossível de se formular. Que real,
neste caso? Aquele de uma perda original como condição primária e

Ebook IV SIGESEX 377


fundadora de todos os laços de qualquer sociedade. No mito freudiano,
trata-se da perda do objeto de gozo absoluto que designa “todas as mu-
lheres” o Pai primitivo, ao qual cada membro da horda supostamente
aspirava, e que se torna proibido depois da morte do pai. Proibido não
mais pela força do Pai das origens, mas doravante, proibido pela lei con-
tratual à qual se submetem os irmãos. Vê-se que essa lei segundo a morte
metaforiza, faz passar ao simbólico o obstáculo real que era o suposto
Pai primitivo da história na concepção de Freud. (Soler, 2016, pág. 18).

Como mitificado por Freud, Lacan (O Aturdito,1972), considera e


que Totem Tabu evidencia que é necessário que haja uma perda original para
que se fundar o laço social. Neste sentido, a perda, a falta de gozo é o que
torna possível a vida em sociedade. Mas a tal perda é ressentida pelo sujeito, e
acabar por eleger um culpado, um responsável por sua falta e de consequência
dirigindo a este a agressividade, promovendo a segregação. A união dos iguais
pressupõe a segregação dos “diferentes”.
Assim, para a compreensão do laço social é necessário que o pensemos
a partir de uma identificação como um ideal, e o consequente sentimento de
pertencimento a determinados lugares, grupos ou indivíduos. Neste sentido
a agressividade e hostilidade é direcionada para quem de qualquer maneira é
diferente ou estranho. Assim, a experiencia do preconceito racial está articulada
com outras narrativas segregadoras como por exemplo opressão de classe e ou
de gênero. Todos os elementos se combinam, excluindo e fazendo sofrer.
Para pensamos no racismo faz-se necessário pensarmos na sociedade
e no que nos une enquanto tal, ou seja, o laço social, que contém em si um
elemento segregador. Assim, um grupo se afirma pela segregação de um outro
diferente. Neste sentido, como Lacan em “Televisão” (1973), não há um ato
humano que não esteja revestido no racismo.
No Brasil, como a aplicação da necropolítica, conforme Mbembe, há
uma escolha por um inimigo fictício, um estranho, que se torna um perigo
aparente é no qual depositamos toda hostilidade e contra o qual é exercido
o direito de matar. Com o pretexto de defesa dos “cidadãos de bem” há
uma autorização de uma política que executa e expõe a violência toda uma
população.
Voltemos a vinheta clínica, este caso narrado o preconceito e desrespeito
sofrido pela jovem foi negado e não legitimado por seus familiares. Mais uma
vez, buscando partir do individual para compreensão do coletivo, essa negação

378 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


e tentativa de encobrimento do preconceito ocorre e é uma forma de negação
da necropolitica.
Além disso, neste caso, a jovem negra foi discriminada em um shopping
center, portanto, conseguimos compreender como o racismo se organiza na
cidade, como “determinados” lugares são para “determinadas” pessoas. Assim
na cidade os espaços são delimitados, a circulação é de certa maneira controlada,
além disso há espaços que a morte é permitida. Conforme Nogueira:

O que está em jogo é a produção de “cidades”, ou ainda, zonas deli-


beradamente demarcadas como territórios em que o livre direito ao
assassinato está consagrado. Considerando que tal análise suscita uma
“série de perguntas empíricas e filosóficas”167, vale a pena ilustrar com
comentários feitos no ano de 2007 pelo então secretário de segurança
pública do Estado do Rio de Janeiro: “Um tiro em Copacabana é uma
coisa. Na Favela da Coréia é outra.

Nesse sentido a necropolítica pode ser analisada ao encontro do


que Butlher coloca sobre vidas passíveis de luto. Assim há uma diferença
a ser ressaltada entre vivos e vidas; quais vidas são passíveis de luto. O que
nos faz pensar dos números de negros relatados no atlas da violência acima
citado e como muito desses vivos que são executados em nosso país não são
consideradas como vidas.
Assim há uma sistemática criminalização da pobreza, da população
negra, o que faz com que se torne legítima a necropolitica praticada, com e a
eliminação de corpos vivos que não são considerados vidas. Além disso há um
outro elemento: a consequente tentativa de encobrimento ou de negação de
tais acontecimentos.
Voltemos ao Gonzaguinha e a sua arte a frente de seu tempo, sua música
por mim citada, foi composta 1974. É espantoso perceber que mais de 40 anos
depois ainda estamos no mesmo lugar, não evoluímos, ou será que regredimos?
Ainda nos assustamos ou incomodamos com os seus versos: “aqui o negro tem
alma branca” por refletir de claramente nossa realidade, e ter o racismo (des)
velado como cultural.
Um exemplo dessa tentativa de encobrimento da segregação racial
foi quando o presidente da república afirmou que não existia racismo no
Brasil em um programa de uma rede de televisão aberta. Qual o motivo
dessa afirmação/negação? Neste sentido trona-se imperativo a discussão do

Ebook IV SIGESEX 379


preconceito como constituinte de nossa sociedade bem como a tendência
de se negar essa realidade.
Conclusão

Ainda hoje, (ou mais do que nunca), o preconceito, o racismo estão


presentes em nossa realidade. Situações de segregação ocorrem de maneira
cotidiana, de maneira que podemos considerar o racismo como um sintoma
social que tem como base a origem da sociedade ocidental. Pensando o elemento
segregador como constituinte do laço social e formador das sociedades, temos a
dimensão do racismo como uma prática que nos constitui enquanto sociedade.
Neste sentido, torna-se importante percebemos que paralelo ao elemento
segregador temos a tentativa de negar o camuflar esta forma de violência. Essa
tentativa de encobrir, revela também, uma tendência a não se alterar as formas
de necropolitica praticadas. Faz-se necessário o desvelamento do racismo e dos
elementos que o compõe tais como: a criminalização da pobreza e delimitação
espacial na cidade, para construção de outras formas de política.

Referências

BUTLER, J. (2015). Introdução - Vida precária, vida passível de luto. In Butler,


J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto (pp. 13-55). Rio de Janeiro:
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Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v22n3/12163>. Acesso em
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de Janeiro: Imago. 2006. Coleção Standart Brasileira. Volume XVIII (1925 – 1926).

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380 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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outros textos (1920-1923) / Sigmund Freud: tradução Paulo César de Souza. –
1ª ed. – São Paulo: Companhia das letras.

________ . Obras completas vol. 18: O mal estar na civilização, novas conferências
introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) / Sigmund Freud:
tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das letras.

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Ebook IV SIGESEX 381


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revisão da tradução Cícero Alberto de Andrade Oliveira . – São Paulo: Escuta;
2016.

382 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


As descendentes de Lídia: atividade
criadora e emancipação da mulher
The descendants of Lídia: criative activity and
emancipation of women

Kimberly Weiss Calves1


Vera Lúcia Penzo Fernandes2

RESUMO: A artista Lídia Baís é referencial de experiências artísticas,


por isso investigamos a sua história e se seu processo criador. A partir desta
referência elaboramos nossa investigação, de caráter bibliográfico, destacando
as ações desenvolvidas pelo Coletivo As descendentes de Lídia. Acreditamos
ser um possível caminho para discutir o empoderamento da mulher latino-
americana, conceituando-a enquanto ser ativo e transformadora da sociedade
e da cultura.
PALAVRAS-CHAVE: atividade criadora; ruptura, mulher.

ABSTRACT: The artist Lídia Baís is a reference of artistic experiences, that is why
we investigated her history and her creative process. Using it as a base, we elaborated our
investigation, of bibliographical character, highlighting the actions developed by the Collective
The descendants of Lídia. We believe it is a possible way to discuss the empowerment of Latin
American women, conceptualizing her as an active and transforming society and culture being.
KEYWORDS: creative activity, rupture, woman.

Introdução

O presente texto apresenta resultados parciais do trabalho de conclusão


de curso de licenciatura em artes visuais, cuja temática aborda a mulher no
ensino de artes visuais. Temos como referência a artista campo-grandense
Lídia Baís, como corpo vivo de experiências artísticas a ser estudado sobre
1. Acadêmica de Artes Visuais – Licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. kimweissc@gmail.
com, (67) 99249 2570
2. Professora de Artes Visuais – Licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. vera.penzo@ufms.br,
(67) 99160 1657

Ebook IV SIGESEX 383


gênero e criatividade, como caminho para o empoderamento das mulheres
latino-americanas, destacando as ações do Coletivo As descendentes de
Lídia Baís.
O estudo tem início em experiências pessoais como mulheres, que desde
a infância encontraram dificuldades para a criação artística espontânea, e
também na evidência falta de referências de mulheres artistas dentro do ensino
das artes durante a formação escolar.
Ao tomarmos conhecimento, em tempos diferentes, da vida e obra
da artista Lídia Baís a tomamos como referência enquanto mulher, artista e
militante. Lídia teve sua trajetória de vida marcada por imposições sociais,
visto que residiu em Campo Grande, cidade ainda em formação e que se
tornou capital, e pertencia a uma das famílias mais influentes da região. Era
julgada pela população como louca, pois com suas pinturas criou um universo
para si, utilizou o seu corpo e vida de forma performática, dedicava-se às suas
produções artísticas, muitas das quais a mulher era a protagonista. A artista
foi pouco compreendida no meio em que vivia, não se adequava aos padrões
de feminilidade, utilizou de sua própria existência a fim de negar conceitos
patriarcais impostos e nunca se tornou esposa e nem mãe.
Haja vista o sistema patriarcal vigente, onde nós mulheres somos
enquadradas em marcadores sociais de gênero desde antes do nascimento,
ao sermos reconhecidas enquanto sexo feminino, o que deriva em
condicionamentos emocionais, psicológicos, físicos, estruturais e sociais,
como também, deturpar o processo de criação individual.
Nossa pesquisa segue a abordagem sócio-histórica, e se apoia nas autoras
Walsh (2008), Reis (2017), Saffioti (2004), (2013), Rivas (2010), Rocha
(2009), Carneiro (1994), Swain (s/d), entre outros. Neste texto, apresentamos
um estudo inicial sobre os conceitos de gênero e decolonidade.

1- Algumas reflexões iniciais sobre gênero e deconolidade

A América do Sul é resultado de ações e luta de movimentos ancestrais.


A decolonialidade é fruto da relação com a refundação do estado, que visa a
insurgência política e epistêmica das matrizes ancestrais para delinear novos
caminhos (WALSH, 2008). Com efeito, o presente projeto visa propor uma
perspectiva decolonial sobre as marcas sociais em relação a mulher.
A colonização firmada nos países latino-americanos possuí raízes
históricas que se fazem presente em toda construção de não-identidade

384 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


dos países, entre as relações políticas, culturais, epistêmicas e sociais. Esta
não identidade advém, justamente, dessa imposição cultural trazida pelos
colonizadores europeus, que implantaram um olhar patriarcal, colonizador,
cristão, eurocêntrico e hegemônico sobre os habitantes destas terras, rompendo
com as relações firmadas entre os povos nativos e impondo uma outra lógica de
racionalidade e uma nova perspectiva de existência (WALSH, 2008).
A partir deste olhar hierárquico a concepção sexista de gênero criada
pelo patriarcado, foi imposto entre as relações dos nativos, afim de sistematizar
uma unificação para subjugá-los, sendo assim, ficou armazenado no imaginário
histórico brasileiro a concepção de povos selvagens, homossexuais, canibalescos,
dos quais os mesmos foram “salvos” pelos europeus e catequizados pela Igreja
Católica para serem moldados à imagem e semelhança eurocêntrica.
Segundo Walsh (2008), a posição de colonialidade, pressupõe uma
relação de poder sobre o outro, indagando uma suposta superioridade a partir
de múltiplas arestas de discriminação racial, machistas e homofóbicas. Assim,
a hierarquia sexual e racial advém do padrão eurocêntrico que visa unificar
e neutralizar a identidade dos povos nativos, bem como o colonialismo
que pressupõe o posicionamento eurocêntrico como única perspectiva de
conhecimento. Estas são formas excludentes e invisibilizadoras da existência
do outro. A imposição de conceitos fundamentalistas, essencialistas, sexistas
e racistas fazem parte da construção e criação do pensamento próprio em
que sistematiza os povos, pautando-os em “raça”, esta por sua vez, pressupõe a
diferenciação entre seres humanos, acarretando em hierarquias entre os povos,
constitui-se em mais um mecanismo de colonização.
Os modelos dos paradigmas históricos são carregados em nossa trajetória
e sobressaem, por meio da linguagem, que foi construída dentro do sistema
de supremacia patriarcal, e traz consigo o peso das representações de gênero.
Swain (s/d) expressa que androcentrismo se faz presente na construção da
linguagem, quando as experiências masculinas são consideradas a experiências
de todos os seres humanos, impondo uma norma universal, em que todos os
seres humanos podem ser chamados de “homens”, mesmo que haja mulheres
no conjunto.
Em relação ao Brasil, após a “descoberta” das novas terras pelos
portugueses vivemos em uma colonização, que nos é imposta e nos condiciona.
Em seguida, outros países europeus adentraram as essas mesmas terras e
também contribuíram para a colonização do nosso país. A raiz eurocêntrica
foi fincada dentro dos países da América Latina, difundindo a ideologia de

Ebook IV SIGESEX 385


supremacia do sistema patriarcal e sua própria perspectiva sobre os moldes
sociais e crenças, em detrimento às características dos povos nativos.
A relação de gênero encontrada entre os povos nativos foi descrita pelos
europeus como “imorais”, tendo em vista que a moralidade eurocêntrica era
pautada na construção da Igreja Católica. Segundo Swain (s/d), os europeus
encontraram um mundo totalmente díspar do que eles conheciam, as relações
entre os indígenas se estabeleciam de forma diferente. Os homens não tinham
autoridade sobre as mulheres, e também era comum a liberdade sexual.
Mas, para os estrangeiros essa liberdade de costumes era considerada heresia
homossexual e, as mulheres que participavam dessa prática eram julgadas como
prostitutas. Até mesmo o trabalho produzido pelas mulheres dentro da aldeia
foi desvalorizado pelo colonizador, que não possuía o entendimento sobre a
conotação da base dos nativos, da qual a agricultura era designada apenas as
mulheres que, assim como a natureza, possuía o ‘’dom’’ da criação de vida, da
qual os homens não eram dignos.
Swain (s/d) afirma ainda, que a concepção de binariedade não se aplicava
dentre estes povos, os valores e normas na sociedade nativa era conduzida em
nuances, em que a relação binária é decorrência de pautas heteronormativa do
sistema patriarcal, da qual não faz parte das relações naturais cultivadas entre os
antigos povos nativos brasileiros. Com efeito, os indivíduos escolhiam a forma
de se portar dentro da estrutura social, a liberdade de posição e sexualidade
não se aplica a partir do sexo biológico. Os indivíduos transitavam entre os
papéis sociais, não havia determinações “naturais” ou sociais que impusesse
hierarquia de poder sexual.
Em suma, todas as singularidades da sociedade indígena brasileira são
apagadas de um só gesto, que determina os sentidos e lhes confere um cunho
universal (SWAIN, s/d), o esquecimento é um mecanismo de silenciamento e
apagamento das sociedades ancestrais. Por isso, sobre a perspectiva decolonial
propõe refundar o lugar da mulher em conjunto com sua historicidade em
pluralidade.
Segundo Rocha (2009, p. 43), na pré-história, durante o período
paleolítico, a maternidade era prioridade, a mulher era considerada poderosa,
com caráter divino, mágico, celebrada como a deusa do amor e da fertilidade,
em virtude de sua capacidade de conceber e dar à luz, similarmente associado
aos ciclos de criação da natureza. Assim, a mulher era responsável pela colheita
e posteriormente pelo cultivo agrícola. O mistério da procriação feminina
protegia as mulheres, o papel masculino neste processo era totalmente

386 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


desconhecido. “Apesar das mulheres representarem papéis predominantes em
todos os aspectos da pré-história, não havia sinais de que a posição dos homens
fosse de subordinação ao sexo feminino” (ROCHA, 2009, p. 45).
Conforme o desenvolvimento de técnicas sobre a dominação do fogo e
as construções de aldeias, a caça deixou de ser uma atividade diária e os homens
passaram a ter mais tempo livre, neste momento foi possível observar com
maior profundidade o processo da criação da vida humana, o que acarretou na
descoberta sobre a participação efetiva do homem na concepção (ROCHA,
2009, p. 48).
Assim sendo, o homem possuía dois aspectos cruciais para a construção
de uma nova organização social: o reconhecimento deste dentro do papel da
procriação humana e o domínio de técnicas e ferramentas para abate de suas
caça. Logo, a agressividade ligado a força física, como também a desmitificação
da procriação deu iniciou a formação da imposição do sistema patriarcal
sob todas as relações existentes. Segundo Saffioti (2004, p. 60), o processo
da implantação de um regime de dominação-exploração das mulheres foi
extremamente lento:

O processo de instauração do patriarcado teve início no ano 3100 a.C.


e só se consolidou no ano 600 a.C. A forte resistência oposta pelas mu-
lheres ao novo regime exigiu que os machos lutassem durante dois milê-
nios e meio para chegar a sua consolidação. Se a contagem for realizada
a partir do começo do processo de mudança, pode-se dizer que o pa-
triarcado conta com a idade de 5.203-4 anos. Se, todavia, se preferir fa-
zer o cálculo a partir do fim do processo de transformação das relações
homem–mulher, a idade desta estrutura hierárquica é de tão-somente
2.603-4 anos. Trata-se, a rigor, de um recém-nascido em face da idade
da humanidade, estimada entre 250 mil e 300 mil anos.

Desse modo, tendo os povos nativos como base, a perspectiva decolonial


visa a reconstrução da identidade dos povos latinos-americanos, mas para
que haja essa reconstrução é necessário, prioritariamente, a destruição do
sistema patriarcal visando também a reconstrução das relações sociais e,
consequentemente, de gênero.
Contudo, o Brasil, desde a colonização, possui dependências deliberais
com o centro de dominância europeu, em decorrência disto foi construído um
sistema econômico periférico, subdesenvolvido, que vigora até os dias atuais.

Ebook IV SIGESEX 387


A independência administrativa do país não acompanhou a independência
econômica, consequência da exportação de recursos naturais como base
econômica, em subsídio ao capital estrangeiro. Portugal instituiu a colônia
brasileira como seu patrimônio, assim sendo, “a estrutura de poder da sociedade
colonial brasileira pode ser, ainda que apenas formalmente, caracterizada
como estatal-patrimonial – patriarcal” (SAFFIOTI, 2013, p. 232).
A figura da mulher na sociedade de classes brasileira foi reforçada dentro
dos padrões imposto pelo colonizador, em que a mulher negra está na base de
maior marginalização. Seu corpo é altamente sexualizado e imposto também
como instrumento de trabalho, os senhores a estupravam e alugavam aos
demais homens brancos. A posição da mulher negra na sociedade de classes é
altamente nociva, esta não é tida como ser humano, mas como objeto de posse
do colonizador para desenvolvimento de trabalhos braçais, sexuais, maternos
e operante (SAFFIOTI, 2013, p. 350).
A mulher negra é a-sujeitada, a ela é negado a posição enquanto
ser humano, e imposto a “coisificação”, não possui identidade ou unidade,
ela constitui a mais intensa camada periférica marginalizada da sociedade
escravocrata brasileira. Segundo Carneiro (1994, p. 192):

As mulheres negras advêm de uma experiência histórica diferenciada, e


o discurso clássico sobre a opressão da mulher não dá conta da diferença
qualitativa da opressão sofrida pelas mulheres negras e o efeito que ela
teve e ainda tem na identidade das mulheres negras.

Enquanto a mulher branca permanece reclusa no lar sem atuação


social, a mulher negra era colocada em funções de trabalhos braçais das
colheitas, também aos trabalhos domésticos e cuidado dos filhos dentro
da casa grande, designados pela mulher branca. Além de tudo, também era
forçada a ser escrava sexual dos senhores. A miscigenação entre as raças de
classe nasce dos abusos sexuais acometido entre mulheres negras e senhores
brancos, desse modo, se estabelece novas gerações hibridas, miscigenadas,
torna-se uma problemática para a permanência do sistema de castas.
(SAFFIOTI, 2013, p. 375).
A mulher branca no Brasil escravocrata possuía apenas dois destinos,
o matrimônio, que por sua deveria ocorrer antes dos 18 anos e condicionava
as mulheres a prisões domiciliares e a maternidade. A outra opção seria o
convento, como forma de internato e exclusão das mulheres de “má conduta”.

388 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Essa classificação dá-se a partir de comportamentos rebeldes de algumas
mulheres, que contradiziam com a posição de moralidade que as mesmas
deveriam seguir, “mulheres recatadas e do lar”. A castidade da mulher branca só
foi possível por existir os abusos acometidos a mulher negra. Também haviam
mulheres brancas que pertenciam a baixa camada social que prostituíam
seus corpos como forma de sub-existência, o que notoriamente cria um ciclo
de abuso e dominação característico da sociedade patriarcal colonizadora
(SAFFIOTI, 2013, p. 370).
Durante o período colonial brasileiro as poucas mulheres que possuíam
acesso ao sistema educacional eram sobretudo mulheres brancas, burguesas
e filhas de estrangeiros. Segundo Saffioti (2012, p. 390) a única forma de
instrução escolar advinha da Igreja. Esta por sua vez, ao mesmo tempo
que instruía também catequizava, adentrando o universo feminino com a
moralidade religiosa cristã, onde a mulher branca era sacralizada.
A igreja é uma das maiores ferramentas do sistema patriarcal, que
vigora desde os primórdios civilizatórios, onde pressupõe à mulher a posição
de submissão ao homem, sendo este responsável pela base da sociedade, uma
vez que o Deus, o grande criador referenciado pela Igreja é inscrito enquanto
homem, pai de todas formas de vida. Consequentemente essa afirmação
religiosa consolida a perspectiva em que o homem humano também possuí
atuação livre sobre todas as formas de vida. A mulher por sua vez, possuí
lugar secundário, a mística feminina é criada sobre o pressuposto de sacralizar
a mulher, para que estas não se revoltem contra todo o sistema imposto, e
entendam que são inferiores e necessitam da presença do homem como forma
de “proteção”. (SAFFIOTI, 2013, p. 380).
A inconsciência da mulher sobre uma possível transformação social é
decorrência da dominação histórica acometidas a elas, o domínio patriarcal
tem raízes tão profundas que muitas mulheres assumem com veemência
este papel subalterno e acreditam ser este o seu lugar na sociedade, hoje
ainda é notório as raízes patriarcais na construção humana entre o intelecto
e social da mulher.
Haja vista, que o Brasil possui suas bases em fatores condicionantes
de desregulamento sexuais, é território de dupla moralidade, legitimador da
prostituição, no qual o homem branco possui total direito sobre todos os
corpos, em que o estrangeiro colonizador impõe a relação de dominância e
poder sobre os demais. Assim, a sexualização da mulher é instrumento de
domínio patriarcal.

Ebook IV SIGESEX 389


2- Os caminhos do estudo a ser realizado
O coletivo As Descendentes de Lídia reivindica o lugar de ser mulher,
adentra a necessidade de emancipação e afirmação da mulher, defendendo-a
como ser ativo e transformador da sociedade e da cultura, mas para isso é
necessário que as mesmas possam situar-se na historicidade e enfrentar o
machismo enraizado.
Em suma, a pesquisa visa contribuir com as perspectivas sobre a
construção da história da arte, tendo como referências os studos sobre
decolonialidade e a presença das mulheres artistas no ensino da arte. A
artista Lídia Baís como referencial e corpo vivo de experiências artísticas a ser
estudado sobre mulher e processos de criação, visando um possível caminho
para o empoderamento das mulheres latino-americanas.
Segundo Rivas (2010), a construção da história da arte se estabelece a
partir do olhar do homem, tendo em vista toda a construção sócio-histórica
do sistema patriarcal vigente enraizado em todas as áreas de conhecimento,
cultura e sociedade, incluindo a arte. Sendo assim, as imagens são formadas
a partir desta construção, uma vez que, até pouco tempo espaços de fala e
espaços de criação artística desenvolvidos por mulheres eram mínimos em
comparação aos espaços majoritariamente dominados por homens, isso deve-
se ao condicionamento desse sistema machista.
Mas, referente ao ensino da arte, os artistas apresentados seriam todos
artistas de suma importância, ao ponto de se tornarem indispensáveis para o
estudo da arte? Mesmo que, em muitos casos, a imagem da mulher apresentada
reproduza as marcas sociais e a erotização de nossos corpos, até que ponto
um período histórico representado em uma imagem pode influenciar as
perspectivas do imaginário coletivo sobre a presença da mulher na sociedade?
A existência de artistas mulheres dentro da história é inegável, ainda que
mínima, então, por que os estudos não perpassam sobre suas obras? Seria por
falta de adequação estética, se sim, a partir do olhar de quem esse critério estético
se justifica, ao ponto de ignorar mulheres de diferentes períodos e localidades?
Essa não aparição da mulher artista dentro da história da arte se constrói
a partir do olhar colonizador e masculino, dá-se a necessidade de uma nova
perspectiva sobre o ensino da história da arte, não como recusa, mas em união
ao que já está definido, em conjunto as artistas mulheres apagadas da história.
Estas questões se articulam com a atual situação de ensino brasileiro, na qual
assistimos a luta pelo reconhecimento da representatividade histórica das
mulheres, dos negros, dos povos indígenas e LGBT.

390 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Rivas (2010) propõe uma nova perspectiva sobre a construção da
história da arte, uma ruptura com o que está estabelecido dentro do ensino,
adaptação a respeito da imagem da mulher sobre seu próprio olhar. Seguindo
essas provocações e abordagem conceitual, desenvolveremos os estudos sobre
a presença das mulheres artistas no ensino da arte, tendo a artista Lídia Baís,
como referencial a ser estudado sobre mulher e processos de criação e o
coletivo As Descendentes de Lídia, como objeto de estudo vez que consolida e
evidencia a força da Lídia Baís e apresenta propostas inovadoras para a atuação
do artista, podendo servir como referência para o ensino de arte na escola.
Vislumbramos, assim, um possível caminho para o empoderamento das
mulheres latino-americanas, com o intuito de modificar o condicionamento
das marcas sociais impostas enquanto “ser mulher’’, mediante de desenvolver
uma construção social, da qual a mulher assume a posição de protagonista de
sua história.

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Mônica. A mulher brasileira é assim. Brasília: Rosa dos tempos. 1994, p. 192.

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RIVAS, M. d. (2010). La imagen de las mujeres a través de su propria mirada.


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WALSH, C. (2008). Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad:


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392 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Psicologia e trajetividades femininas1
Psychology and feminine trajectivities

Luciana Codognoto da Silva2


José Sterza Justo3

RESUMO: Nesta pesquisa, buscaremos problematizar, por meio


do estudo bibliográfico, as trajetividades de mulheres trecheiras. Em nossos
levantamentos preliminares, verificamos que os estudos realizados sobre
trecheiros encontram-se vinculados às realidades do Estado de São Paulo, não
sendo encontrados estudos sobre nomadismos e relações de gênero tanto no
campo da Psicologia quanto no Estado de Mato Grosso do Sul - MS.
PALAVRAS-CHAVE: Estudos em Psicologia; Mulheres Trecheiras;
Nomadismo Feminino.

ABSTRACT: In this research, we will try to problematize, by means of the


bibliographic study, the attire of women women. In our preliminary surveys, we verified that
the studies carried out on trecheiros are related to the realities of the State of São Paulo, and
no studies on nomadisms and gender relations were found in the field of Psychology and in
the State of Mato Grosso do Sul.
KEYWORDS: Studies in Psychology; Women Trecheiras; Female Nomadism.

Introdução

Nosso interesse pelo tema “mulheres, errâncias e nomadismos” surgiu


a partir de nosso ingresso no Grupo de Pesquisa “Figuras e Modos de
Subjetivação no Contemporâneo” (cadastrado no CNPq) e filiação a uma das
linhas de pesquisa do Pós-Doutorado em Psicologia da Universidade Estadual
1. Artigo referente à pesquisa de Pós-Doutorado em Psicologia – Programa de Pós-Graduação em Psicologia –
UNESP/Assis.
2. Pós-Doutoranda em Psicologia (UNESP/Assis). Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul - UFMS/CPNA. Endereço eletrônico: luciana.codognoto@ufms.br
3. Professor Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UNESP/Assis. Endereço eletrônico:
sterzajusto@yahoo.br

Ebook IV SIGESEX 393


Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Assis, voltada à investigação dos
processos de subjetivação constituídos em torno das condições de mobilidade
e dromologia femininas contemporâneas. Recorremos ao levantamento
de literatura sobre o tema “mulheres, nomadismo e errância” em livros,
dissertações, teses, anais de eventos e periódicos científicos voltados ás
pesquisas em Psicologia.
Buscamos novas vertentes em nossos estudos sobre as mulheres que
fogem das chamadas normatividades de gênero, propomos novos olhares
sobre o sujeito do Feminismo, ao trazermos as vozes que estavam, até então,
subalternas no contexto histórico e social – principalmente a ideia de mulheres
no coletivo – momento onde os conceitos de raças/cores, gêneros, classes e
sexualidades passam a ganhar contornos ainda mais definidos de análises
dentro dos debates propostos ciências humanas e sociais e repercutidos nas
discussões levantadas pela Psicologia.
Logo, torna-se necessário promover novos olhares que contemplem
a multiplicidade do humano e as suas interlocuções com diferentes saberes
rumo às práticas de uma Psicologia mais comprometida com o político e com
as questões que fazem referência aos sujeitos psicossociais e errantes em uma
sociedade dromológica.

1-Mulheres, Mobilidades e Nomadismos

Entendemos o termo “trecheiras” a partir de Justo (2004/2015)


e Freitas (2014), que o diferenciam de outras terminologias, como
“migrantes, andarilhos e mendigos”. Para Justo (2015), por exemplo,
“andarilhos” seriam as pessoas que vivem andando a pé pelos acostamentos
e pelas rodovias, enquanto que “trecheiros” seriam as pessoas que vivem
em constante trânsito de cidade em cidade. Já em Freitas (2014, p. 16),
“trecheiros” fazem referência aos “sujeitos que perambulam de cidade em
cidade, permanecendo nas ruas e sobrevivendo de ajuda de serviços públicos
de assistência social ou de achaques (pedido de ajuda feito com educação,
esperteza e justificativa convincentes)”.
Nos estudos em Psicologia, a dromologia é utilizada, dentre outros, por
Justo e Colaboradores (1998; 2004; 2005; 2011; 2012; 2014) e Nascimento
(2008; 2012) para problematizar os modos de vida que fogem de uma
subjetividade assentada, identitária, solidificada e estática. Para os autores, as
pessoas são constituídas, na atualidade, pela condição de movimentação, seja

394 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


no plano cognitivo, emocional, afetivo ou no próprio relacionamento com
outras pessoas. Trata-se, segundo Justo (2004), de subjetividades em ebulição,
em processo e metamorfose, tendo como expressão máxima de sua atuação o
fenômeno da errância.
Para Swain (2000), os estudos feministas e o movimento de mulheres
têm se preocupado, nos últimos anos, em criar outros espaços de discussão
sobre o feminino para além dos limites hegemônicos estabelecidos
dentro/pelo próprio Movimento Feminista, sobretudo da Primeira Onda,
estabelecendo, assim, espaços contra hegemônicos – de visibilidade das
diferenças a mulheres e aos grupos que questionam modos normativos de
pensamento e comportamento. Para ela: “as questões levantadas por esta
realidade que nos interpela exigem um olhar voltado para o novo, o criativo,
o contraditório, o paradoxal, ali mesmo onde se pensava haver encontrado o
caminho” (SWAIN, 2000, p. 87).
Esses corpos, apresentados como híbridos e constituídos por múltiplas
referências, segundo bem salientou Haraway (1995), são atravessados
por uma representação estética e moral que, muitas vezes, diverge do
que é concebido pela sociedade como perfeito, ideal e equivalente a um
padrão preestabelecido de mulher, ou seja, que escapa das normativas de
inteligibilidades e coerências que Butler (2003) demarcou como sendo
restrito a uma matriz heteronormativa.
Tais práticas, que acabam por converterem-se em definidores de
sujeitos, direcionam reflexões a partir de um olhar autorizado, segundo
uma lógica androcêntrica, binária e essencialista. Há que destacarmos que,
apesar da importante contribuição apresentada pela autora em relação aos
padrões de sexo-gênero instituídos socialmente, sua teoria volta-se muito
diretamente à questão da desnaturalização da opressão vivida pela mulher
(no singular), objetivando enfatizar a separação de natureza – a fêmea – da
cultura – a mulher domesticada.
Logo, faz-se necessário pensar em tais pressupostos a partir de uma
perspectiva mais ampla, de forma a conceber não mais o termo mulher, mas
mulheres no plural, haja vista que cada uma delas carrega em si as marcas
das relações de poderes, pressupostos de saberes e também de resistências
a dados modelos considerados, até então, inquestionáveis em grande parte
das instituições regulatórias de produção e manutenção de certo modelo de
sociedade, como é o caso das mulheres que vivem em condição de errância,
as chamadas “mulheres trecheiras”.

Ebook IV SIGESEX 395


2- Trajetividade e Errância Feminina: Revisitando as Pesquisas
em Psicologia

Constatamos a inexistência de estudos, sobretudo da Psicologia, que


retratam o modo de vida de mulheres trecheiras. Para Costa (2005), a negligência
em relação às mulheres andarilhas ou trecheiras pode ser verificada pela extrema
carência de pesquisas e falta de quaisquer dados sobre elas em censos demográficos
ou outro tipo de levantamento de dados e estudos sobre população e pela ausência
de políticas públicas de assistência social dirigidas, especificamente, para elas. Em
nossos levantamentos bibliográficos preliminares, verificamos que os estudos
realizados, até o presente momento, sobre trecheiros encontram-se vinculados
às realidades locais do Estado de São Paulo, sendo problematizadas, com maior
frequência, por universidades, como em (JUSTO, 1998; 2004; 2005; 2011;
2012; 2015), (NASCIMENTO; 2008; 2012) e (FREITAS, 2014).
O que encontramos, no campo da assistência social, são projetos e
iniciativas destinados a pessoas em situação de rua, cada vez mais crescentes no
país, principalmente a partir do ano de 2004, quando se deu a implantação do
Sistema Único da Assistência Social, criado pela Lei Orgânica da Assistência
Social n° 8742 - LOAS, e que podem fazer alguma referência a trecheiros.
Os dados apresentados pela Pesquisa Nacional sobre População em
Situação de Rua (BRASIL, 2008) apontam que esta população é composta
majoritariamente por homens, uma média de 82%. Estes dados ainda sofrem
interferência, quando percebemos que tal pesquisa, assim como tantas outras,
considera apenas algumas cidades de grande porte como fonte de dados oficiais
e estatísticos dessa população no país.
Quando recortamos, especificamente, andarilhos, trecheiros e questões
de gênero, fica ainda mais evidente a inexistência de estudos e pesquisas – seja
no âmbito acadêmico, seja no governamental – de mulheres trecheiras. No
levantamento realizado, encontramos as pesquisas de Tiene (2004), intitulada
“Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais”, de Alves
(2013), intitulada “As moradas de rua entram em cena: a violência contra a
mulher moradora de rua como uma das expressões da questão social” e de Rosa
e Brêtas (2015), denominada “A Violência na vida de mulheres em situação
de rua na cidade de São Paulo”. Trata-se de duas pesquisas vinculadas ao curso
de Serviço Social e uma, de Enfermagem, ligadas, restritamente, à população
de rua feminina, e não à temática específica de mulheres vivendo no trecho, se
deslocando de uma cidade à outra.

396 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No âmbito da Psicologia, encontramos apenas uma pesquisa,
referente à dissertação de mestrado de Verônica Bem dos Santos, intitulada
“Mulheres em vivência de rua e a integralidade no cuidado em saúde”,
defendida no ano de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Todas as pesquisas, antes
mencionadas, estão voltadas à problematização exclusiva da violência
e da saúde coletiva de mulheres que vivem em situação de rua, e não de
trecheiras, centralizando suas análises em grandes centros urbanos, como
as cidades de São Paulo (SP) e Fortaleza (CE), e um munícipio que se
constitui em um importante pólo universitário no Estado do Rio Grande
do Sul (RS).
Por fim, observamos que existe uma quantidade expressiva de
pesquisas sobre pessoas em situação de rua, poucas sobre andarilhos e
trecheiros, concentradas no grupo de pesquisa da UNESP-Assis, porém,
não localizamos, em nossos levantamentos, nenhuma pesquisa específica
sobre trecheiras ou andarilhas conduzida na perspectiva dos estudos de
gênero. Até mesmo as pesquisas com mulheres em situação de rua não
privilegiam, com maior clareza, a questão específica do gênero e do trecho.

Considerações Finais

É importante salientar que grande parte da Psicologia ainda tem se


mantido presa aos valores calcados nos essencialismos e/ou relativismos e nos
ideais de uma ciência meramente positivista e moralista, datados no século
XIX.
Acreditamos que essa pesquisa poderá contribuir com os estudos
de gênero, focalizando um aspecto relevante dessa questão praticamente
inexplorado e, por outro, poderá contribuir com subsídios para a formulação
de políticas e assistências públicas voltadas às mulheres trecheiras.
Logo, esta pesquisa poderá chamar a atenção dos gestores de políticas
públicas, principalmente no âmbito da saúde e da assistência social, para
a condição das mulheres em situação de rua, especialmente de trecheiras,
deixando, assim, de privilegiar apenas os homens, incluindo em suas
ações e problematizações as particularidades do feminino em um espaço
historicamente ocupado e destinado aos homens – o lugar do nomadismo, da
transição, da ebulição e do movimento.

Ebook IV SIGESEX 397


Referências

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contra a mulher moradora de rua como uma das expressões da “questão social”. IN: VI
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BRASIL. Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília, 2008, 16p.

______. LOAS Anotada. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à


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398 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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TIENE, Izalene. Mulher moradora de rua: entre violências e políticas sociais.


Campinas: Alínea, 2004.

Ebook IV SIGESEX 399


A performance como um ato político:
a potencialidade da arte para o
empoderamento feminino
Performance as a political act: the potentiality of
art for feminine empowerment
Venise Paschoal de Melo1

RESUMO: Propomos reflexões sobre a performance como movimento


artístico que evidencia a importância das ocupações da cidade como
locais de denúncia sobre as realidades sócio-culturais e políticas de nosso
tempo. Relacionando os aspectos teórico-práticos desta produção artística,
apresentamos o processo criativo da performance “Mulheres de Luz”, que
visou conscientizar e promover o empoderamento feminino.
PALAVRAS-CHAVE: Performance; Política; Feminismo.

ABSTRACT: We propose reflections on the Performance as an artistic movement


that evidences the importance of the city’s occupations as places of denunciation about
contemporary political and social reality. Relating the theoretical and practical aspects of this
artistic production, we present the creative process of the Performance “Women of Light”,
which aimed to raise awareness and promote women’s empowerment.
KEYWORDS: Performance; Policy; Feminism.

1- Arte, cidade e política

A arte contemporânea põe em questão as relações espaciais e expositivas


quando se desloca para além dos museus e galerias e transforma o objeto
artístico em experiência e participação. Este rompimento dos limites espaciais
produz uma relação mais direta, próxima e cotidiana com o público. Com
as possibilidades de transitoriedade e fluidez da arte nos espaços da cidade,
observamos suas potenciais aberturas para o olhar crítico sobre a sociedade,
1. Doutora em Tecnologia e Sociedade (UTFPR), Mestre em Estudos de Linguagens (UFMS) e Professora do Curso
de Graduação em Artes Visuais/Bacharelado – FAALC/UFMS. E-mail: venisemelo@gmail.com

400 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que ocorrem por meio de diálogos e evidenciação das fraturas sociais, da
subversão, da denúncia e das manifestações coletivas.
Tal deslocamento, dos espaços institucionais para os espaços urbanos,
faz com que a arte se volte para a realidade plural da metrópole, se tornando
presente nas ruas, nas praças, nas avenidas, nos muros, nos viadutos e sobretudo,
na provocação de se constituir como elemento integrante da própria vida dos
transeuntes. A obra sai do local hermético do museu, dos centros culturais e
das galerias, para ser experienciada em meio ao caos da concretude urbana.
Desta forma, muitos artistas têm buscado uma maior interlocução com o
público, propondo, nestas aberturas, a concepção de manifestações poéticas
que buscam dialogar com o espectador, e apontam para uma arte voltada para
o estabelecimento de ações coletivas, convidando a multidão para importantes
reflexões cotidianas, sociais e políticas.
Para Chaia (2007) a arte possui a qualidade de alterar a percepção
do mundo e neste aspecto, pode ser compreendida como mediadora das
transformações dos valores sociais. Ao se aproximar do público e se vincular
com a vida cotidiana, a arte se torna ação política, pois colabora direta ou
indiretamente com as discussões a cerca dos espaços em que transita, além de
levantar importantes questionamentos sobre os círculos de poder.
O artista, através de sua consciência crítica, possibilita ao espaço
coletivo novas sensibilidades, distintas e libertas dos aspectos transitórios
de mercadoria e consumo. A arte, no contexto da cidade, utiliza a paisagem
urbana como “arena de lutas políticas e sociais”, segundo Veloso (2004). Não se
insere no espaço apenas como intervenção, mas também como desconstrução e
reconstrução de significados e narrativas. Por meio da exposição dos problemas
sociais, ao questionar os valores dominantes, expõe as contradições, criando
um constante estado de estranhamento da realidade.
Inserido neste pensamento o filósofo Jacques Rancière (2005), nos
afirma que a política, além de um exercício de poder ou luta pelo poder,
é um recorte de um espaço específico, um local de “ocupações comuns”, de
conflitos e de sujeitos incluídos neste contexto. Deste modo, a arte é politica
quando há um recorte sobre o espaço-tempo e suas competências em relação
à ocupação dos sujeitos, dos objetos, do privado e do público. Neste ponto
de vista, a arte não é caracterizada apenas por meio das relações estéticas
ou pela discussão voltada para suas estruturas internas, a arte é política, [...]
pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal, que determina
maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de.

Ebook IV SIGESEX 401


Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado
tempo, enquanto os objetos, com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que
ela confere a esse tempo, determinam uma forma de experiência específica, em
conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade,
uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação,
velocidades específicas, mas também e antes de mais nada, formas de reunião
ou de solidão (RANCIÈRE, 2005, n.p.).
Pensando sobre estas afirmativas de Rancière (2005), acreditamos
que a inserção da arte, diretamente sobre o tecido social da cidade, nesta
associação com a vida cotidiana, faz com que haja uma espécie de resgate
democrático dos valores comunitários e heterogêneos, permitindo níveis
diferenciados de experimentações e interpretações, tanto pelos artistas quanto
pelos espectadores. A arte se transforma em redes de sociabilidade e diálogos,
possibilitando ressignificações sobre a realidade.
Contribuindo com estas argumentações, Pallamin (2000, p. 10) afirma
que, a arte realizada no espaço público, entendida como gesto, intervenções,
eventos, acontecimentos, instalações, espetáculos, ou arquitetura, “exerce sobre
o social preexistente um impacto, em que talvez a hegemonia seja confirmada
ou desafiada, mas, mais importante que isso, em que algo do novo desse social
passa a ter existência”. Neste pensamento, é necessário compreender que as
relações estabelecidas entre a arte pública e o espaço urbano não são apenas
como ilustrações dos valores identitários e culturais, e sim ampliações das
inscrições comunitárias nas transformações do contexto social.
Ainda segundo Pallamin (2000, p. 24), a arte urbana pode ser vista
como uma prática social, apresentada com múltiplos significados, valores
e simbologias, que se desdobram através da apropriação coletiva, que se
embrenham nos veios da cidade, a partir dos “planos imaginários de seus
habitantes”. A obra de arte inserida no contexto urbano carrega em si as
contradições, interdições e conflitos contidos nas conexões entre os sujeitos
e os espaços, suas interpretações históricas e vivências do cotidiano. Ou como
a autora nos descreve: “um terreno privilegiado para efeitos de choque de
sentidos (negação, subversão ou questionamento de valores)”, ou ainda, um
modo de “pensar sobre a vida social, aproximando-se, de certo modo, pelo
qual as pessoas se produzem e são produzidas no âmbito da ordem simbólica”.
Neste aspecto ao pensarmos a respeito da arte urbana, necessariamente
devemos discernir, conforme Canevacci (2004, p. 17), o espaço público como
“vozes polifônicas de subjetividades” ou como, “um coro que canta com uma

402 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


multiplicidade. É neste espaço múltiplo e heterogêneo que a arte estabelece
práticas e reflexões, diante de um público não especializado, que se depara,
muitas das vezes, com ela de modo inesperado, funde sua experiência estética
com a realidade cotidiana, e consequentemente, faz a transfiguração de seus
valores, das interações sociais e educativas, para os valores da cidade, por
meio da velocidade dos transeuntes, da curiosidade, da atenção distraída, do
passeio apressado, do lazer, do lúdico e se apresenta como forma de interação
e mediação.

2- Performance como mediação social

Inserida neste contexto urbano, a performance é uma manifestação


artística, proveniente da década de 1970/1980, que apresenta um discurso
de proximidade da arte com a vida, realizada nos espaços públicos, a partir
da utilização do corpo que interfere e dialoga com cenário da cidade. É
uma arte viva, que pretende causar reações e transformações no público
heterogêneo, que transita pelas ruas, parques e avenidas. Segundo o
pesquisador Renato Cohen:

A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior,


uma maneira de se encarar a arte; A live art. A live art é a arte ao vivo e
também a arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma
aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o na-
tural[…] (COHEN, 2002, p. 38)

Desta maneira, viva e ao vivo, a performance é a evidenciação e


presentificação do “aqui e agora”. Revelando-se com enorme potencialidade
para denunciar as questões do momento presente, a mesma se coloca misturada
ao público para sua atuação, fazendo com que este se torne cúmplice e também
testemunha da obra como um acontecimento social. De forma geral, utiliza de
linguagens híbridas, das mesclagens, mixagens, colagens estéticas e conceituais
de elementos visuais cênicos e sonoros, se comportando como um objeto
artístico aberto, em constante processo, com a durabilidade efêmera de um
evento transitório.
Incorporando a noção de arte de contestação, militante e engajada
politicamente, esta manifestação artística se mostra, por vezes, com um
discurso de confronto e luta, para Perette e Nosella (2018, p.08), “politizada

Ebook IV SIGESEX 403


em suas raízes, a performance chega aos dias de hoje como filha herética
de seu tempo, refletindo, traduzindo e contrapondo as inquietações e
desmobilizações da sociedade contemporânea”. Desta maneira, o artista sai
as ruas como se fosse para um manifesto, usa as calçadas e viadutos como
se fosse uma tribuna, a fim de lançar ao povo seu ponto de vista crítico,
sua insatisfação diante da realidade e das injustiças sociais. Este artista,
ao firmar seu corpo no trânsito urbano, além de legitimar sua existência e
pertencimento do espaço por meio de sua ocupação, se coloca no importante
papel de propositor de reflexões em tempo real.
Desta maneira, a performance pode ser considerada como arte da
presença e experiência do corpo. Pensar sobre sua relação com a cidade é refletir
sobre sua própria presentificação e (re) existência do artista no contexto da
realidade. Diante desta afirmativa, Santos (2018) nos fala sobre a presença
simultânea dos “entrecorpos”, conforme nos explica:

A recepção oscila entre a contemplação e experiência, elaboração me-


diada e reação imediata, momento de pausa e deambulação […] Nas
artes da presença, o corpo do artista atua na cidade, mas na rua há três
corpos: do artista, do transeunte e da cidade. Entrecorpos. Na inter-
venção urbana, como na performance, o corpo se apresenta em toda sua
intensidade, nos campos entre o relacional e vibracional, provocando
afetos como perturbação, ironia, desordem, a suspensão da significân-
cia, hostilidade, ou então, gerando reações como solidariedade, dialogi-
cidade e delicadeza. (SANTOS, 2018, p. 54).

À vista disso, ao propor experiências ao público, a performance


convida para reconstruções e inversões de olhares sobre a vida urbana.
No acontecimento experimentado, ao propor reflexões sobre a própria
existência, o lugar público é apresentado como meio propenso para o
despertar da potencialidade de agenciamento e de participação ativa
de quem transita. Seu significado é coletivo, aberto, colaborativo e
multiplicador.
Para a pesquisadora Zalinda Cartaxo (2018, p.37) na ação
performática urbana há sempre o “corpo latente”, conceito este voltado
para o corpo do artista, que ao atuar, se expõe em diversas questões
espaço-temporais, psicológicas e sociopolíticas, que uma vez reveladas nas
intervenções “reverberam todas as estruturas conceituais que constroem a

404 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


poética da obra” e por meio do público desvelam também uma “narrativa
subjetiva” que se constrói fazendo do espectador uma peça fundamental
para que se complete o objeto artístico. Neste aspecto, o espectador
participa e contribui em certo grau para a formação da obra artística,
a partir do momento em que se estabelece relações entre o objeto.
Considerar o outro dentro da obra, em sua centralidade interpretativa é
parte fundamental do processo.
Com um modo semelhante de pensamento, o pesquisador e
crítico de arte Nicolas Bourriaud (2009) nos aponta a importância de
trabalhos artísticos que promovem gradualmente um diálogo aberto com
o espectador, e que consequentemente vem contribuindo para a alteração
do estado da arte, transformando-a em fenômeno de ação, acontecimento
e contribuindo para a agência do sujeito sobre o mundo. O referido
autor nos afirma que os movimentos cotidianos devem ser repensados,
assinalando a urgente necessidade de transformar a realidade por meio de
nosso comportamento e hábitos.
Fazendo uma leitura a respeito da arte contemporânea, Nicolas
Bourriaud (2009, p. 21), defende a ideia da “Arte Relacional”, como uma
forma de arte que, mais do que a visibilidade de um espaço meramente
simbólico, autônomo e privado, se preocupa com os aspectos teóricos sobre
as interações humanas e seu contexto social. Sua teoria é fundamentada na
ideia primordial da obra que necessita da proximidade do espectador para
que ganhe valor e sentido, a obra contemporânea se apresenta como uma
“duração a ser experienciada”.
Articulando tais pensamentos, no que se refere a arte urbana,
sua abertura e proximidade com o público, suas relações diretas com o
cotidiano em discursos sociais que apontam para ações de manifestações
políticas, propomos apresentar estas relações teóricas com a observação de
uma experimentação prática que ocorreu por meio do desenvolvimento de
uma performance artística direcionada às questões feministas.

3- Arte e Feminismo: e Performance Mulheres de Luz

O feminismo pode ser compreendido como uma extensão do


movimento pelos direitos humanos. Para a filósofa e professora Tiburi (2018,
p.11) , o feminismo “é um instrumento de transformação da sociedade”, que
vai para além das questões de gênero e se insere nas lutas de classes, de raça e das

Ebook IV SIGESEX 405


minorias sociais. O feminismo é uma luta de mulheres “ […] e não mulheres,
pessoas inscritas no âmbito LGBT e também homens – sujeitos e assujeitados
a um mundo patriarcal”. Ou como a pesquisadora explicita:

O feminismo é um operador teórico-prático […] Ele é acionado


para desativar o dispositivo do poder da denominação masculi-
na patriarcal.[…] O patriarcado é também uma forma de poder.
Ele é como uma coisa, uma geringonça feita de ideias prontas
inquestionáveis, de certezas naturalizadas, de dogmas e de leis
que não podem ser questionadas, de muita violência simbólica
e física, de muito sofrimento e culpa administrados por pessoas
que tem o interesse básico em manter seus privilégios de gênero,
sexuais, de raça, de classe, de idade, de plasticidade. (TIBURI,
2018, p.40)

Para Tiburi (2018), o feminismo é uma ação contra diversos


tipos de sofrimentos acumulados, é uma luta contra encarceramentos,
domesticação, escravização e docilização. É um fazer de desconstrução
de poder. Para tal processo é necessário que aquelas e aqueles que
empunham a bandeira deste ideal de luta se conscientizem sobre a
importância de sua emancipação. Neste sentido o empoderamento deve
ocorrer individualmente e coletivamente. Para a luta feminista, é preciso
conscientização da força coletiva, do corpo e da voz, para que a mulher
possa conceder poder a si mesma e para tantas outras mulheres. Ainda
para a autora (TIBURI, 2018, p.115) “O lugar de fala é fundamental para
expressar a singularidade e o direito de existir”.
Pensando na importância da conscientização e empoderamento
feminino como um processo coletivo, “Mulheres de luz” foi a performance
produzida como uma ação a ser realizada no dia Internacional de Luta da
Mulher em 8 de março de 2019 (Figuras 01 e 02) na cidade de Campo
Grande/MS. Foi uma atividade prática, desenvolvida em tempo limitado e
de modo coletivo com o Movimento Mulheres pela Democracia. O intuito
da ação junto as mulheres deste grupo foi propor o conhecimento e uso
da arte da performance como mediadora dos discursos políticos, sociais
feministas, a fim de experienciarem seu próprio corpo como instrumento
de luta e protesto.

406 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Figura 01
Apresentação da performance no centro da cidade de Campo Grande/MS.

Fotografia de Janete Maroli.

Figura 02
Apresentação da performance no centro da cidade de Campo Grande/MS.

Fotografia de Janete Maroli.

A execução da performance o correu a partir de diversos “encontros-


laboratório”, cujo propósito era a observação individual e coletiva do próprio
corpo e de sua junção em um pensamento de coletividade. Foi trabalhada
a fala pessoal sobre a temática feminista através de rodas de conversas,
articulando formas de expressividade e a afetividade em trocas interativas de
movimentos corporais (Figura 03). Houve também explanações sobre a arte
da performance e o seu importante papel social quando inserida no contexto
da cidade, além da apresentação da temática feminista e experimentação/

Ebook IV SIGESEX 407


vivência dos elementos e materiais visuais que iriam ser utilizados no decorrer
da composição performática.

Figura 03 – Roda de Expressão Corporal no MARCO.

Fotografia acervo Ipêrformático.

Com a fundamental intenção de fazer uma denúncia crítica, de modo


artístico, aos atos de violência física, psicológica, moral e ética proferidos à
figura feminina, a performance foi utilizada como meio de intervenção
no espaço público, propondo levantar discussões sobre as identidades
minoritárias, dissidentes, subalternas, tornando o espaço do corpo um lugar
estratégico para a manifestação de transgressões.
A arte performativa foi usada como laboratório de crítica social,
para proporcionar às mulheres participantes reflexões ao desconstruir
identidades hegemônicas e criar consciência política. O desenvolvimento
de todo o processo, desde a sua elaboração até a execução da obra em
lugares públicos, teve como objetivo sensibilizar e conscientizar estas
mulheres quanto ao seu pertencimento do espaço, na valorização de seu
corpo e sua voz. Em toda a sua elaboração, a fundamental preocupação foi
o reconhecimento de sua identidade e o despertar a consciência para seu
empoderamento.
A performance “Mulheres de Luz” foi composta por diversas
mulheres que vestiam, dos pés à cabeça, um tecido fino e semitransparente
da cor roxa (Figura 04e Figura 05), seguravam placas com frases de
denúncia e protesto e flores nas mãos, de modo dramatizado e organizado,

408 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


caminhavam em marcha lenta e solene, a partir do som ritmado de um
tambor grave e acordes dissonantes de um violino.

Figura 04 – Apresentação da performance no evento Ipêrformático/


MARCO/FCMS

Fotografia de Janete Maroli.

Figura 05– Apresentação da performance no evento Ipêrformático/


MARCO/FCMS

Fotografia acervo Ipêrformático.

Conceitualmente, o uso destes elementos teve o propósito de


representar simbolicamente um conjunto de valores que pudessem denunciar
sentimentos duplos: (1) O tecido sobre os corpos e o modo como o grupo
caminhou e percorreu os trajetos, podem tanto despertar nos espectadores a

Ebook IV SIGESEX 409


ideia de “mortalha” - evidenciando aspectos da violência, morte e injustiça,
quanto de manto de luz – representando a vida, empoderamento, ritual,
mística, acolhimento, esperança, coletividade e força feminina. (2) As
mulheres seguravam flores junto as placas, que simbolizavam esperança e/ou
enlutamento; (3) O ritmo e som do tambor e violino visavam representar a
dor, violência, opressão e luto e por vezes, eram a representação de calmaria e
ordem; (4) O transitar solene em forma de marcha poderia ser a representação
de enterro e dor ou da solidez de mulheres dispostas estrategicamente em fila,
união, com passos firmes para encarar a luta coletivamente.
Posteriormente às três apresentações realizadas no Dia Internacional
de Luta da Mulher/2019, a performance foi executada mais outras 04 vezes
na cidade de Campo Grande/MS nos seguintes espaços: Ato Marielle Franco
(Feira dos Imigrantes), Ato político contra a Comemoração da Ditadura
(Ministério Público), Ato de apoio à família de Mayara Amaral (julgamento
de seu assassino no Fórum) e no evento Ipêrformático (MARCO/FCMS).

Considerações Finais

Diante do exposto, as relações que se estabelecem entre teoria e prática


do discurso artístico por meio da proposta de elaboração da performance
“Mulheres de Luz”, é possível refletir sobre a importância da arte como
mediação social. Através das experiências estéticas, produzimos relações, por
meio da arte podemos proporcionar possibilidades de encarar e vivenciar a
vida real.
Por meio da performance um grupo de mulheres tiveram a oportunidade
de refletir sobre a importância do pensamento feminista e da urgente
necessidade do empoderamento feminino. Foi durante a ocupação das ruas,
diante do público que transitava, que cada mulher pode sentir, na vida real,
a força da coletividade. Foi através da abertura da arte experimental que estas
mulheres, durante a ação, se permitiram se tornar visíveis, no reconhecimento
do real pertencimento ao espaço, como pessoas vivas e ativas. O corpo
individualizado e coletivo tomou forma e ganhou o espaço da liberdade de
atuação.
Desta forma, como arte viva, a performance proporcionou a este grupo
de mulheres um momento de troca, de aprendizado e de socialização, e para o
grande público, no contexto da cidade, a obra de arte em trânsito oportunizou
a suspensão da realidade cotidiana para permitir reflexões sobre as questões

410 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sociais. As fraturas da sociedade, no que diz respeito à opressão e violência
feminina ficaram expostas, e neste acontecimento os encontros ocorreram:
o do corpo individualizado e interior, o do corpo coletivo, o da coletividade
com o outro, o encontro com a cidade, o encontro com o feminismo e o mais
fundamental para esta pesquisa, o encontro com a potencialidade social e
política da arte.

Referências

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412 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Mulheres transexuais e travestis no cárcere:
entre violências e resistências
Transexual women and travestis in prision:
between violence and resistance
Ana Carolina Santana Moreira1
Rosalice Lopes2

RESUMO: As mulheres transexuais e travestis encarceradas enfrentam


variadas formas de violências, inclusive a condição de invisibilidade para
o sistema penitenciário e para a legislação penal. Porém também criam
espaço para suas resistências. O objetivo deste trabalho é apresentar algumas
considerações levantadas durante o Projeto de Extensão I Grupo de Diálogos
Trans-Femininos no Cárcere, realizado no ano de 2018 com mulheres
transexuais e travestis encarceradas na Penitenciária de Dourados-MS.
PALAVRAS-CHAVE: Transexuais, Cárcere, Violência.

ABSTRACT: The incarcerated transexual women and travestis faces many forms of
violence, including an invisibility condition for the prison system and for the criminal legislation.
However they also creates some space for their resistance. The goal of this work is to show some
considerations raised during the Extension Project I Group of Trans-feminines Dialogues in
Prison, held in 2018 with transexual women incarcerated on the Prison of Dourados-MS.
KEYWORDS: Transexual, Prison, Violence.

Introdução

As prisões são instituições seculares e não foram poucos os autores que


elucidaram, não apenas sua vocação à reprodução da criminalidade, o controle
da vida da/o interna/o e o assujeitamento da pessoa encarcerado, como bem
traduziu Foucault em várias de suas obras (1977, 1984, 1987, 1996). Goffman
1. Artigo elaborado a partir de observações realizadas durante o projeto de extensão I Diálogos Transfemininos no
Cárcere, realizado em 2018 pelo NEDGS/UFGD, na Penitenciária de Dourados.
2. Doutora em Psicologia Social e Mestra em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Vice-chefe do Núcleo de Estudos de Diversidade de Gênero e Sexual da
UFGD. Rodovia Dourados/Itahum, Km 12 - Unidade II, Dourados-MS. Telefone: 3410-2704. Endereço eletrônico:
rosalicelopes@ufgd.edu.br.

Ebook IV SIGESEX 413


(1975), outro estudioso das chamadas instituições totais, afirmava em seu texto
que as prisões se encarregam de retirar, gradativamente, toda a experiência que
um ser humano tem de ser ele mesmo.
A prisão, retira das pessoas que lá cumprem suas penas não apenas
a autonomia - subtração radical e inegociável - mas vai instalando
gradativamente, dia a dia, na sequência permanente de grades que se fecham e
que lembram ao humano que lá está, que ele perdeu sua capacidade de ir e vir;
das impossibilidades de sabonetes, pastas de dente, desodorantes. Para que?
perguntariam alguns menos informados sobre o inferno que habita as prisões.
Não podemos dizer que no inferno cotidiano que todas as prisões
produzem, na absoluta falta de confiança naqueles que dormem ao seu lado
e na constatada ausência de atenção para suas necessidades específicas, que as
mulheres transexuais e as travestis estejam recebendo a atenção que necessitam.
Se trabalhar com - ou pensar sobre - populações humanas confinadas em
prisões superlotadas não é uma tarefa fácil para nenhum interessado no tema,
entendemos que as transexuais constituem hoje, um grupo não-inteligível às
políticas de atenção às pessoas presas durante a execução penal.
Muito pouco se sabe sobre quem são, o que pensam e do que
necessitam as mulheres transexuais e as travestis que estão no cárcere da
Penitenciária de Dourados, da mesma forma como ocorre em outras prisões
de nosso país. A necessidade de que estas vozes que estão à margem das
margens sejam ouvidas sensibilizou as autoras, pois entendem ser o diálogo
entre diferente pessoas uma das poucas alternativas capazes de produzir
uma compreensão verdadeiramente empática da complexidade que envolve
a experiência humana.
Cumpre salientar que o Projeto de Extensão I Diálogos Trans-femininos
no Cárcere não teve a pretensão de mudar a prisão, mas sim de minimizar o
sofrimento de pessoas que muitas vezes são condenadas a ‘penas adicionais’
durante a execução da pena e que falar sobre elas, encontrar estratégias de
solução e enfrentamento pode ajudar significamente a suportar os anos de
isolamento e perda da autonomia.
Os relatos das pessoas participantes, tanto das mulheres transexuais e
das travestis encarceradas quanto das pessoas da comunidade acadêmica, são
cruciais para vislumbrar o alcance dos objetivos do projeto e, além disso, para
trazer à tona não apenas as violências concretas que assolam a população Lgbt
dentro de presídios, mas também suas estratégias de resistência. Neste trabalho
buscamos contextualizar as normas e legislações existentes sobre a situação das

414 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


pessoas Lgbts encarceradas e também trazer recortes de alguns relatos feitos
durante os encontros do Projeto.

1- Transexuais e Travestis e o sistema prisional

A sexualidade humana, independentemente das mudanças sociais


introduzidas pela luta daqueles que querem ter garantidos seus direitos de
serem quem são, ainda enseja preconceitos, discriminações, estigmatização
e exclusão social. No entanto a garantia de respeito à diversidade sexual está
amparada pelos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito,
principalmente os relacionados à igualdade, à liberdade e à dignidade da
pessoa humana.
A Constituição Federal Brasileira, em seu inciso IV, parágrafo 3º
estabelece que nossa república deve promover o bem de todos, sem que
tenhamos preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade ou qualquer outra
forma de discriminação. É fato que avanços ocorreram em nossa sociedade
quando da oficialização da união civil de pessoas do mesmo gênero, da adoção
de crianças por mães/pais que mantém uma relação homoafetiva, dentre
outras, porém ainda há muito no que se avançar.
Segundo Manfrin (2013) as definições, identidades e manifestações
sexuais foram modeladas no interior de relações de poder, nas quais a
norma é a heterossexualidade, devendo se oferecer, ao que rompe com este
modelo heteronormativo “[...] o desprezo, a insignificância, a hostilidade e o
preconceito” (2013, p.32). Às palavras de Manfrin (2013), que realizou um
trabalho pioneiro de pesquisa sobre diversidade sexual numa unidade prisional
de São Paulo, acrescentaríamos que no caso das transexuais e travestis que hoje
ocupam as prisões a situação é de absoluta invisibilidade e a desconsideração.
A ideia de heteronormatividade ou heterossexualidade compulsória foi
profundamente trabalhada por Butler (2013), e traduz uma relação direta,
absoluta e linear entre sexo, gênero e orientação sexual. Segundo Bento (2006)
a transexualidade fere a lógica dos gêneros inteligíveis, ou seja, aqueles que
mantêm uma continuidade entre sexo, gênero, desejo e, se algo caso algo
transgrida esta ordem estabelecida, se o sistema binário-normativo for negado
adentramos o campo das patologias.
Para Butler (2013) a matriz cultural por meio da qual a identidade de
gênero se torna inteligível exige que certos tipos de identidades não possam existir,
ou seja, pessoas nas quais o gênero não decorre do sexo ou ainda aquelas cujo

Ebook IV SIGESEX 415


desejo não decorre nem do sexo e nem do gênero são marginalizadas, excluídas
do convívio social e, no limite, são assassinadas com requintes de crueldade.
As chamadas sexualidades desviantes, não apenas as transexuais, mas todas que
subvertem a lógica compulsória sexo, gênero e desejo heterossexual, estão assim
destinadas à desconsideração, exclusão, preconceito e eliminação sumária e cruel.
Dessa forma sexualidades não-inteligíveis ou desviantes não seriam
apenas as transexuais, mas todas as que subvertem a lógica “sexo, gênero
e desejo sexual”. Assim, travestis, transgêneros, drag queens, drag kings e os
demais “infratores” de gênero são aqueles que desfazem a relação simplista
vagina-feminino, pênis-masculino e engendram infinitas possibilidades pois
nem toda transexual deseja passar por uma cirurgia de transgenitalização,
assim como nem toda travesti deseja apenas se travestir de mulher.
Assim as mulheres transexuais e travestis no ambiente prisional acabam
por sofrer diversas formas de violência, expressas em comentários, olhares,
risos, xingamentos, escárnio, preconceito, discriminação e agressões físicas e
verbais. Nesse ambiente elas

[...] ameaçam e rompem duplamente com a lógica interpretativa da


continuidade entre sexo, gênero e desejo [...] Tais gêneros transgresso-
res e transviantes atuam como marcadores da intolerância social por
romperem com a norma hegemônica de gênero e constituírem o que
entenderem adequado em seus corpos. (SANZOVO, 2017).

O sistema penitenciário brasileiro é marcado por um grande número


de violações dos direitos humanos, prisões superlotadas, falta de assistência
adequada à saúde, independentemente de considerarmos a questão gênero.
Inexistem indicadores penitenciários sobre os grupos LGBT e o Departamento
Penitenciário Nacional apresenta seus dados no binarismo homem/mulher.
A Lei de execução Penal não faz referência às populações LGBT, sendo que
existe apenas uma resolução conjunta nº 1 do Conselho Nacional de Combate
à Discriminação (CNCD/LGBT) e do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP).
Segundo o Relatório de Gestão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ
que objetivava apresentar dados de fiscalização e monitoramento das unidades
prisionais no Brasil, destaca-se inicialmente que em nosso país existem, ao todo,
1.424 unidades prisionais. Quatro desses estabelecimentos são penitenciárias
federais. As demais unidades são estabelecimentos estaduais.

416 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No relatório é admitido que existe um desvirtuamento da destinação
originária de grande parte desses estabelecimentos, sendo que embora mais
da metade dessas unidades fossem destinadas ao recolhimento de presos
provisórios, 84% delas também confinam pessoas em cumprimento de pena
definitiva e naqueles destinados a cumprimento de pena em regime fechado
existem condenados a outros tipos de regimes (80%).
Das cerca de 377.000 vagas no sistema prisional brasileiro, a região
Sudeste apresenta a maior capacidade média das unidades prisionais (485
vagas), seguida da região Sul (317 vagas), da região Centro-Oeste (148 vagas),
da região Norte (145 vagas), e, por fim, da região Nordeste (128 vagas).
Realizamos uma busca no documento por informativos sobre a
população LGBT ou mais especificamente sobre as transexuais que são o
foco de nosso projeto. A única informação existente é que os pesquisadores
tiveram uma postura respeitosa ao entrevistar “[...] mulheres e pessoas LGBT.”
Mulheres seriam seres de uma categoria distinta e particular de “pessoa?
Nada mais aparece neste documento que possa colocar em evidência o que as
transexuais vivem nos cárceres.
Diante do levantamento realizado, da superpopulação prisional e da
ausência absoluta de estatísticas sobre os grupos LGBT é certo que não há
ações suficientes para a população LGBT nessa área. Em nosso estado na
Penitenciária Estadual de Dourados, foi mencionada a existência de duas celas
– por vezes uma – por raio, para acolher estas pessoas, sendo que a cela das
transexuais e travestis é separada da cela dos gays e bissexuais.
A falta de tratamento digno para a população LGBT em presídios fere
variadas normas do ordenamento jurídico brasileiro, como por exemplo os
Princípios de Yogyakarta, que integram a legislação internacional de Direitos
Humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero; a medida
5 do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que trata do
reconhecimento da diversidade no sistema prisional; a Política Nacional de
Saúde Integral das Populações LGBT de 01/12/2011 e as Resoluções da II
Conferência Estadual de Políticas Públicas para populações de gays, bissexuais
e transgêneros.
Diante de todos estes fatos que revelam o triste panorama de
atendimento aos grupos LGBT encarcerados em nosso país, entendemos
que se fez necessário inaugurar na Penitenciária de Dourados – MS, um
espaço de diálogo com as transexuais de modo que elas possam ser ouvidas,
compreendidas e que tenham a oportunidade não apenas de expor suas

Ebook IV SIGESEX 417


necessidades como também trocarem ideias, posicionamentos e opiniões com
os membros da universidade e da comunidade.

2- O Projeto e seus Relatos

O Projeto de Extensão I Diálogos Trans-femininos no Cárcere foi


realizado por meio do Núcleo de Estudos de Diversidade de Gênero e Sexual
da UFGD e consistiu em encontros quinzenais entre estudantes, técnicos
e docentes da universidade e um grupo de mulheres transexuais e travestis
encarceradas na Penitenciária de Dourados. Os encontros ocorreram dentro
da PED e havia em média 7 a 12 participantes da universidade e entre 06 a 09
transsexuais e travestis. Consideramos nomear participantes da universidade
como os “de fora” e as pessoas encarceradas como “de dentro”, ecoando assim
diversas falas das transexuais e travestis, que em todos os encontros faziam
questão de lembrar essa diferença.
Os encontros eram temáticos e os temas foram escolhidos pelo grupo
em conjunto. Foram encontros sobre amor, amizade, família, música, ciúmes,
sexo, trabalho, sonhos, saudade e identidade. As dinâmicas dos encontros eram
preparadas de maneira alternada, ora pelos “de fora”, ora pelos “de dentro”.
Apresentamos abaixo alguns relatos que foram feitos durante a execução
do Projeto, acompanhados de breve contextualização e reflexões feitas pelas
autoras.

3- Relatos “de dentro”

“Aqui não tem nada pra fazer o dia todo. São 20 horas de cela e 4 de
sol” A.J. - Essa transexual se mostrava sempre agitada, muito falante e por
vezes gritava. Seu comportamento pode ser considerado como o de bode
expiatório para as angústias e aflições que as outras sentiam, uma vez que ela
era considerada rebelde, que não se enquadrava nas normas da instituição e
por vezes não comparecia aos encontros devido a estar cumprindo “castigo”.
“Quando estou aqui estou presa também, quase igual a elas” Agente J.
- Esse desabafo demonstra como o cárcere aprisiona não só quem cumpre as
penas, mas também quem trabalha nesse ambiente.
“Vim pra entender a cabeça dela e também a minha” M. - Em
determinado momento as transexuais e travestis afirmaram que os maridos
tinham ciúmes e não queriam deixar que elas participassem dos encontros.

418 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Foi quando autorizamos a ida dos maridos e um deles fez essa fala. Trata-se
de uma vontade de compreender essa identidade “desviante” e também de se
compreender, afinal era um homem heterossexual cisgênero que estava casado
com uma transexual e não sabia exatamente como encarar essa situação, devido
à construção de sua masculinidade.
“Eu não gosto de falar quando tem muita gente” R. - Essa fala foi feita
em um dos primeiros encontros, ainda no primeiro semestre de 2018. Ao final
do projeto, em novembro de 2018 essa transsexual estava bem articulada,
falando e rindo muito, havia começado a trabalhar na horta da instituição e
apresentava desejo de sair do cárcere para se reconciliar com sua família.
“Parece que vocês não ajudam, mas ajudam muito” T. - Com esses
dizeres podemos afirmar que os resultados do projeto foram ofertados às
transexuais e travestis no decorrer dos encontros, pois devido à natureza do
projeto e da instituição carcerária, não havia outro resultado possível a não ser
o sentimento de acolhida e escuta causado e relatados por elas.
“Adorei ajudar a organizar. Movimenta nossa vida, além de poder bater
vários kits com a dona J.” N. - Nesse momento percebemos como o momento
de ajudar na organização dos encontros proporcionou a esta transsexual
não apenas diversão e entretenimento, mas também a possibilidade de estar
próxima à agente penitenciária, seja para solicitar algo, seja para recorrer a ela
em momentos estratégicos. Essa pode ser uma das únicas resistências possíveis
para quem está encarcerada: ter proximidade com funcionários da instituição.
A título de curiosidade a gíria usada por ela “bater um kit” se refere a conversar,
trocar ideias, dialogar.

4- Relatos “de fora”

“Chegamos animados e saímos calados. Foi pesado hoje.” A. - Esse foi


um sentimento relatado no encontro sobre família, pois os relatos de toda/os
foram muito densos e difíceis.
“Vocês não estão com frio?” R - Essa pergunta foi feita às transexuais e
travestis em um dia muito frio e no qual elas estavam todas de chinelo, algumas
apenas de camiseta e uma delas vestida com shorts do uniforme do presídio. A
resposta imediata delas foi que não, que não estavam com frio porque nos raios
estava mais quente do que na ala em que nos reuníamos. Porém nesse mesmo
dia e em outros momentos algumas delas confidenciaram para participantes
que muitas não possuem acesso a roupas de frio, objetos de higiene pessoal,

Ebook IV SIGESEX 419


hormônios, barbeador e etc. Isso devido à lógica mesma da prisão, que cerceia
o acesso a itens básicos, ao mercado de compra, vendas e trocas interno e
também à falta de que alguém “de fora” leve tais itens para alguém “de dentro”.
“Pensei que ia chegar lá ‘levando conhecimento’ e vi que todo dia é um
aprendizado diferente” L. - Esse foi um dos expoentes do efeito que o projeto
teve em todas/os participantes da universidade, pois tirou as pessoas do pedestal
universitário para aprenderem com as transsexuais e travestis encarceradas.
Afinal não é apenas em ambientes escolares que existe aprendizado.

Considerações Finais

Este projeto situou-se no grupo daqueles que se preocupam em diminuir


o sofrimento das pessoas por ações que são de simples execução e custo baixo.
Objetivamos aproximar seres humanos, partícipes de uma mesma e englobante
realidade social que, no entanto, constrói diferenças entre as pessoas, por vezes
irreconciliáveis.
É necessário que tenhamos disposição, determinação e coragem de
enfrentar a necessidade de ampliarmos nossa consciência sobre o crime, o
criminoso, a criminalidade e os efeitos do aprisionamento;que exista um
profundo desejo de acolhimento e compreensão de pessoas que, como todas
as outras, têm uma história produzida na sociedade que nos é comum, mas que
oportunizou para uns e outros, nós e elas, lugares muito distintos.

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422 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Quando o parentesco encontra resistências:
famílias homoparentais no Brasil atual
When kinship encounters resistance:
homoparental families in Brazil
Anna Carolina Horstmann Amorim1

RESUMO: Este trabalho reflete sobre a formação de famílias


homoparentais através do acesso às tecnologias reprodutivas no Brasil e
o reconhecimento legal e social que estes arranjos familiares encontram
atualmente no país. Especificamente, discute os enfrentamentos, violências e
resistências que tais famílias têm encontrado no cenário atual de avanço do
conservadorismo que parece seguir um contínuo de desrespeitos e preconceitos
voltados a todas as formas de expressão de sexualidade e família desviantes da
norma heterossexual no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: homoparentalidade, política, violência.

ABSTRACT: This paper seeks to reflect on the formation of homoparental families


through access to reproductive technologies in Brazil and the legal and social recognition that
these family currently find in the country. Specifically, this article discusses the confrontations,
violence and resistance that such families have found in the current scenario of conservatism,
which seems to follow a continuum of disrespections and prejudices aimed at all forms of
expression of sexuality and family deviant from the heterosexual norm in the Brazil.
KEYWORDS: homoparentality, politic, violence

1- Famílias homoparentais e parentesco no Brasil atual

Há algumas décadas as sociedades ocidentais têm sido marcadas


por transformações no campo da família. A possibilidade de divórcios, as
pesquisas sobre DNA e as novas tecnologias reprodutivas (NTR) adicionam
novos componentes nos já estabelecidos modos de fazer e pensar o que são
1. Professora adjunta de Antropologia no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS)- Unidade Amambai/MS. - Endereço institucional: Rua José Luís Sampaio Ferraz, 3353, Vila Gisele-
Amambai/MS. Telefone institucional: 067-39031185 - annac.hamorim@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 423


famílias e como se estabelecem conexões entre pessoas. Nestes contextos, entra
em cena um processo interessante de produzir emparentamentos (HOWEL,
2006) que dizem muito mais sobre escolhas, agenciamentos e manipulações
de relações biológicas e consanguíneas que sobre a primazia de uma biologia
imóvel e balizadora do que é ou não ser parente. Neste cenário, variados
formatos familiares emergem e entre eles vigoram as famílias homoparentais.
É certo que as famílias formadas por mães e pais homossexuais não
são uma novidade absoluta e já figuravam como construções possíveis nas
sociedades complexas e dentro do campo analítico da Antropologia antes
mesmo do aparecimento das novas tecnologias reprodutivas. Contudo,
e principalmente através do uso destas tecnologias reprodutivas o que
acompanhamos atualmente é um acelerado crescimento de famílias que se
formam a partir da conjugação de lesbianidade e maternidade, construindo
um campo de estudos que têm vivenciado um florescimento das pesquisas
acadêmicas e debates: as homoparentalidades ou lesboparentalidades2. As
possibilidades técnicas derivadas dos avanços no campo da reprodução
humana permitem, aí sim de forma inovadora, a construção intencional das
famílias lesboparentais como famílias que derivam do casal de mulheres e que
não são, portanto, consequência de outras relações anteriores ou de arranjos
que exigem a participação de algum amigo ou conhecido na fabricação de uma
criança.
Carregando já um longo caminho de avanços e pesquisas desde o
nascimento do primeiro bebê de proveta em 1978, na Inglaterra, as novas
tecnologias reprodutivas perderam, ao menos um pouco, seu ar de novidade
e já carregam consigo uma considerável consolidação como polo produtor de
crianças e famílias. Este emaranhado de procedimentos médicos/técnicos/
científicos que permitem a dissociação entre reprodução/concepção e ato
sexual é responsável por transformar a conjugalidade homossexual em
potencialmente reprodutiva.
Doações de gametas, reprodução sem sexo, gravidez de substituição,
todas estas possibilidades dadas pelos avanços técnico/científicos na área da
reprodução estabelecem novos passos na coreografada articulação que produz
famílias e filhos dentro dos pressupostos ocidentais clássicos de parentesco3,
2. Termo referido a configuração familiar onde pelo menos uma pessoa exercendo a função parental se reconhece enquanto
lésbica. Tem como intenção se distinguir das configurações parentais formadas por gays no exercício da função parental.
3. Neste trabalho tomo a noção ocidental de família como referência para pensar os modelos de parentesco no Brasil.
Certo que existem significativas diferenças e mesmo diversificadas nuances dentro das aproximações que nos permi-
tem estabelecer este contexto dentro dos marcos da ocidentalidade, porém são as proximidades de um modelo padrão
de parentesco vigente que me levam a considerar o Brasil como ocidentail.

424 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


cujo parâmetro é um modelo reprodutivo (STRATHERN, 1992)4 que tem
na relação sexual seu símbolo fundador, como nos informa David Schneider
(1980). As novas tecnologias reprodutivas introduzem nesta dança novos
modos de conectar substâncias reprodutivas, de manipular, conservar e gestar
embriões. Modos que escapam da habitual necessidade de conexão sexual entre
dois corpos distintos para produção de crianças. Os momentos da reprodução
são fragmentados, novos atores são adicionados no escopo daqueles necessários
para fazer parentes. Biólogos, geneticistas, pipetas e microscópios fazem, agora,
parte da reprodução. Observamos a implementação de novas técnicas e de
novos itinerários reprodutivos que necessitam de planejamento, investimento
e acordos para que alcancem os resultados esperados, visto que estes já não
derivam apenas do enlace amoroso entre um casal naturalmente reprodutivo.
As NTR ganham terreno ao entrarem de vez na realidade e no campo
das representações e compreensões possíveis sobre a reprodução. Elas estão
aí, comentadas, difundidas e de certo modo desejadas, configurando uma
estratégia possível (se falamos em técnicas e não em legislações) na construção
do desejo por filhos5. Deste modo, observo como diferentes casais formados
por pessoas do mesmo sexo constroem suas famílias através do recurso a tais
tecnologias. Em específico aponto como casais de mulheres lésbicas, cisgêneras,
brasileiras e entrevistadas por mim, durante os anos de 2012 e 2013, constroem
relações familiares baseadas na premissa de uma dupla maternidade. Neste
sentido, analiso como essa configuração familiar, embasada na existência de
duas maternidades concomitantes, é circunscrita na vida cotidiana dos casais
ao mesmo tempo em que despontam em um universo público, marcado pelo
reconhecimento legal/estatal destas relações e por embates e questionamentos
de sua legitimidade. Eventos que podem resvalar em tensões e resistências
dadas pela defesa de um modelo único e tradicional de família que ancora em
premissas da heterossexualidade e da complementaridade dos corpos como
norma no que toca a vida social e também as famílias.
Deste modo, observo como o tema da família e das NTR ganham
destaque publicamente e como os eventos que antes pertencentes ao foro
íntimo do casal, são carregados para debates públicos envolvendo especialistas
(médicos, biólogos, antropólogos, juristas...) de diferentes áreas. Estes buscam
4. By Kinship I understand not just the ways in which relatives Interact with another, but how relationships as such
are held to be constituted. Having sex, transmitting genes, giving birth: these facts of life were once take as the basis
for those relations between spouses, siblings, parents and children, in turn, taken as the basis of kin relations. Incor-
porated into such a reproductive model were suppositions about the connection between natural facts and social
constructions (STRATHERN, 1992, p. 5).
5. Ver como exemplo de discussões sobre o desejo por filhos os trabalhos de Mariana Viera Cherro (2015).

Ebook IV SIGESEX 425


estabelecer se os usos destas tecnologias e se as tais “novas” configurações
familiares são interessantes ou marcam um exagero de intervenção técnica
sobre processos até então compreendidos como “naturais”.
Se as famílias homoparentais não são devedoras de um encontro
sexual compreendido como naturalmente reprodutivo, elas se constroem
intencionalmente. São efetivadas através do recurso tecnológico e demonstram
o processo criativo que é acionado na produção da família e dos vínculos entre
as pessoas. Novos sentidos de conexões são estabelecidos e aquele dado pelo
partilhar o mesmo sangue como idioma central do parentesco ocidental,
identificado pelo antropólogo David Schneider (1980), é posto ao lado de
outras possibilidades conectivas que também densificam as relações familiares
de mulheres lésbicas e as inscrevem sob a rubrica do parentesco.
Ressalto, portanto, o “fazer parentesco” colocado em ação pelos
casais de mulheres no momento mesmo em que se engajam na produção de
duas maternidades. A dupla maternidade é o fio condutor do processo de
fazer relações e parentesco que analiso neste trabalho. Destaco que dupla
maternidade é uma categoria êmica presente em reportagens brasileiras em
referência ao ganho do reconhecimento legal das duas maternidades partilhadas
pelo casal de mulheres lésbicas. Neste trabalho este termo também é utilizado
em referência a maternidade partilhada pelo casal mesmo quando ela não é
reconhecida legalmente. A dupla maternidade faz referência a um processo
criativo no qual se produzem duas maternidades conjuntas. Duas maternidades
que possam ter o mesmo reconhecimento e o mesmo sentido apregoado à
maternidade para as duas partes do casal. Aqui se evidencia um processo que
não é simples ou rápido, mas que se espalha ao longo de um percurso que os
casais trilham para elaborar e ver reconhecida a dupla maternidade. Não sendo
uma relação de parentesco evidente ela tem de estar em constante construção
e afirmação ou validação. Interessa, portanto compreender quais os caminhos
e elementos que estabelecem e contam para a produção da dupla maternidade
como uma realidade de parentesco. Assim, antes de ser pensada apenas como
uma categoria, a dupla maternidade é aqui elaborada enquanto uma pergunta,
um fazer: como se constrói a dupla maternidade?

1.1 Dupla maternidade


“Eu nunca pensei que eu ia ser mãe, eu sempre achei que por ser lésbica
eu não podia ser mãe, né. Um belo dia foi que caiu a ficha que eu tinha útero e
que sêmen era doado”. É assim que Margarida, 35 anos, professora de inglês

426 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


em uma cidade do nordeste brasileiro, relata os primeiros passos de seu desejo
de maternidade. Tendo se reconhecido lésbica desde a infância Margarida
acreditava estar excluída do campo da reprodução e do parentesco, entendidos
como redutos da heterossexualidade enquanto norma e enquanto único
caminho reprodutivo possível. A fala de Margarida expressa um pensamento
e sentimento comum de muitas mulheres, na faixa geracional dos 30/50 anos,
quando refletem sobre a maternidade depois de se entenderem enquanto
lésbicas.
Como nos informam diferentes pesquisas, parece que as possibilidades
tecnológicas para produção da família e filiações lesboparentais despontam
como preferência entre os casais formados por mulheres em diferentes países
(DARIUS; DECHAUX, 2016 para o contexto francês; ROCA i ESCODA,
2016 para o contexto espanhol; ALLEBRANDT, 2015 para o contexto
canadense; MACHIN; COUTO, 2014; AMORIM, 2013 para o contexto
brasileiro). De tal, é principalmente através do uso de tecnologias reprodutivas
que acompanhamos hoje um acelerado crescimento de famílias que se formam
sob o jugo da conjugação de homossexualidade e maternidade/paternidade.
Observa-se que a própria fala de Margarida, que trouxe no início deste
capítulo, demonstra que é apenas após a descoberta de que o sêmen pode ser
doado que ela começa a visualizar uma possibilidade de maternidade. Destaco
aqui que esse sêmen que pode ser doado não relaciona-se a uma dimensão
simples de parentesco na qual uma mulher entrará com o óvulo e se tornará,
por isso, mãe e um homem participará com o sêmen, tornando-se portanto
pai. A revelia dessa conexão apressada entre gametas e parentalidade, o que os
casais de mulheres lésbicas ambicionam é um sêmen doado que não produza
paternidade, mas que seja alavanca para produção de duas maternidades
calcadas justamente na ausência de qualquer figura paterna, entendida muitas
vezes como ameaçadora da configuração familiar desejada. Em resumo, é no
deslocamento de uma percepção da reprodução enquanto exclusividade de um
encontro sexual heterossexual que está a possibilidade parental de Margarida,
informada já por possibilidades tecnológicas que colocam em ação a separação
entre sexo e reprodução e entre gametas e parentalidade que ela agencia a união
entre lesbianidade e maternidade.
A reprodução humana passa a ser um objeto de intervenção tecnológica,
quando se trata do seu uso e produção em laboratório. As novas tecnologias
reprodutivas ganham força e adeptos em nosso país, em especial, a partir dos
anos 1990, quando muitos médicos e cientistas trazem de suas viagens ao

Ebook IV SIGESEX 427


exterior uma gama variada de novos métodos e informações. O uso de tais
técnicas reprodutivas experimenta no Brasil desta época um florescimento
fixado em seu caráter positivo sem, no entanto, propiciar uma maior reflexão
sobre seus efeitos políticos, sociais e econômicos. As primeiras técnicas
de RA consistiam em procedimentos simples como o sexo cronometrado
(TAMANINI, 2003) realizado, ainda, em um espaço de intimidade do
casal. Entretanto, com o desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas
conceptivas a intimidade do casal é levada para dentro do laboratório, onde a
técnica e a intervenção médico/científica especializada e capacitada é dirigida
à manipulação de gametas, de órgãos e de embriões confeccionados de forma
exterior ao corpo, demarcando de maneira sensível a separação entre sexo e
reprodução e embrião.
A possibilidade de deslocamento entre sexo e reprodução é responsável
pelas investidas das pessoas LGBT nestas clínicas. Agora, é possível contornar
a necessidade do intercurso sexual e a micromanipulação e doação de gametas
abrem brechas para que distintas configurações familiares se efetivem. Ainda
que tenham surgido como paliativo para auxiliar a ausência de filhos em casais
heterossexuais, as NTR abrem caminhos para formulações de parentesco
outras, que não aquelas fundadas sobre os signos da relação sexual hetero.
Neste sentido a procriação pode deixar de ser consequência natural
de uma relação de conjugalidade/casamento ou sexual entre um homem e
uma mulher e passa a ser um projeto construído em uma relação entre duas
mulheres, que ainda que estejam em um relacionamento lésbico, não deixam
de ter útero, como bem nos lembra Margarida.
Um dos primeiros elementos a ser destacado neste cenário das
lesboparentalidades dadas através das NTR é a consolidação do filho que
nasce do casal, como marco da família, conforme o casal de advogadas Íris e
Magnólia, moradoras da cidade de São Paulo e mãe de Valentina destacam:

Íris: Eu nunca quis ser mãe, eu nunca pensei. Não é que eu nunca quis,
eu nunca pensei em ser mãe. Eu nunca tive uma relação assim sólida
a ponto de pensar numa maternidade, mas com a Magnólia foi di-
ferente.
Magnólia: Não, não era uma coisa assim: morro de vontade de ser mãe,
e nem: não de jeito nenhum quero ser mãe. Acho que é bem o que a Íris
falou. Como eu nunca vivi uma relação estável também nunca aflorou
isso. Acho que é uma insanidade pensar num filho com alguém do jeito

428 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que era. Então foi quando a gente ficou junto, o próprio amadureci-
mento como pessoa e da relação que foi levando a isso. Eu acho que
foi o curso normal das coisas. [Grifos meus]

No caso acima, a maternidade é construída tendo como premissa a


existência de duas mães. A filiação é planejada, como também o é a busca pelas
clínicas de reprodução assistida. O casal aparece como ponto de partida para
os projetos parentais e as tecnologias reprodutivas aparecem como caminho
possível para tal ao permitirem a realização da família sem a necessidade de
participação de um terceiro. Importa destacar que não é apenas a busca por
filhos que esses casais apontam, mas sobremaneira, evidenciam a demanda pela
existência de filhos com duas mães. São filiações planejadas tendo como ponto
de partida a maternidade partilhada pelas duas mulheres que compõem o casal.
Deste modo, a busca pelas clínicas de reprodução assistida parece acenar para
o desejo de não interferência de outras pessoas e para a consolidação de uma
nova configuração familiar, aquela formada exclusivamente por duas mulheres
exercendo a maternidade de uma mesma criança.
Em um dos trabalhos pioneiros sobre a temática do parentesco
homossexual no Brasil, Miriam Grossi (2003) destaca que, apesar de mudanças
nas configurações familiares, a maioria dos trabalhos sobre parentesco até
os anos 1970 tomam o sexo como uma categoria “natural”, bem como a
heterossexualidade. A autora informa que é a partir dos anos 1970/1980,
com o surgimento da antropologia feminista, que parte das reflexões sobre
parentesco passou a incorporar o recorte de gênero em suas análises, ainda
assim são poucos os antropólogos e antropólogas que se debruçaram sobre o
lugar das relações entre indivíduos do mesmo sexo nas estruturas de parentesco
de diferentes sociedades.
Como informa Cristian Paiva (2007), o advento da homoconjugalidade
e da homoparentalidade tem assumido relevância na agenda política dos
movimentos homossexuais no mundo ocidental a partir dos anos 1990.
As discussões relativas aos direitos homossexuais ganham lugar no debate
político trazendo à tona questões como casamento, parentesco e reprodução.
A visibilidade da conjugalidade homossexual, enquanto modalidade familiar
começa a ganhar contornos, permitindo que gays, lésbicas e mais recentemente
pessoas transexuais e travestis passem a assumir para si e publicamente uma
preocupação sentimental em suas relações amorosas, como analisa Luiz Mello
(2005). Rompendo com limites de parentalidade e conjugalidade, exigem

Ebook IV SIGESEX 429


além do direito à cidadania individual, o direito à constituição de uma família,
ou o direito ao reconhecimento de suas relações de parentesco.
Em consonância, as relações familiares forjadas por casais de mulheres
lésbicas e seus filhos concebidos por entremeio de tecnologias reprodutivas
estão aí, ainda que muitas vezes sobre a rubrica das “famílias não hegemônicas”
ou “diferentes”. Isso porque escapam da habitual conexão entre gametas
fornecidos e reconhecimento da parentalidade. Deste modo, nos colocamos a
refletir sobre os impactos de uma maternidade que deixa de ter uma associação
necessária com quem gera, ou seja, uma parentalidade que para se efetivar deixa
de ser exclusivamente dependente de corpos e materiais genético de homens
e mulheres.
Os impactos que tais tecnologias reprodutivas e seus usos realizados
por casais LGBT fazem ecos em embates sobre a validade destas famílias no
contexto atual do Brasil. Se as NTR abrem uma gama de novas possibilidades
de arranjos sociais no que toca as famílias, parece que os discursos que
envolvem os debates sobre sexualidade e família tratam rapidamente de
negá-las. A maternidade continua sendo abençoada e sacralizada no interior
do casamento heterossexual e a insistência sobre o biológico como forma de
legitimação das relações com a tecnologia não permite facilmente a ampliação
das concepções sobre família, parentesco e filiação.

2- O Brasil atual: quando o parentesco encontra resistência

Como vinha pontuando acima, as novas tecnologias reprodutivas


se destacam no Brasil por permitirem a formulação de lesboparentalidades
fundadas na inexistência da figura do pai e na valorização da dupla maternidade
como pressuposto do que seja família e parentesco entre os casais formados por
mulheres lésbicas no Brasil. Entretanto, vivemos no ano de 2019, momentos
críticos no que toca os avanços das pautas de gênero e sexualidade no campo
da política em nosso país.
Elegemos um presidente abertamente de direita e combativo em
relação a luta por equidade de gênero e as diversidades de orientação sexual.
Neste caminho, alocou como ministra da mulher, família e direitos humanos
uma advogada pastora que defende com força a família heterocentrada e a
necessidade romantizada do par homem (descrito por ela como o príncipe que
vem em um cavalo branco) e mulher (que sonha e espera passivamente por seu
príncipe) para a consagração da ordem social e do avanço do país.

430 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Ao defender abertamente este modelo social de relação como o certo,
tal ministra reafirma uma lógica vigente de conjugalidade e parentesco
balizada pela heterossexualidade como premissa da reprodução sexuada e por
isso naturalizada enquanto destino obrigatório. Em um vídeo que circulou
a internet tal ministra chegou a afirmar, sobre uma personagem de desenho
animado, que ela termina o filme sozinha por ser lésbica e se revolta por
estarmos abrindo brechas para que meninas sonhem com princesas ao invés
de sonharem com o príncipe que vem à cavalo. Em seu posicionamento, há
uma importante colocação: o rechaço a toda transformação existente em
uma ordem moral desigual e heterossexista que já vem sendo rompida e
questionada. Destaco que as famílias homoparentais já são realidades no Brasil
e, muitas vezes, já encontram reconhecimento legal perante o Estado. A dupla
maternidade adentrou o rol do que é ser família no Brasil e é justamente essa
possibilidade que se está buscando varrer do mapa no atual plano de governo
brasileiro.
Ainda que as colocações do atual presidente e de sua ministra religiosa
estejam na pauta do dia, não é de hoje que os avanços conservadores no Brasil,
mas também em outras partes do mundo, se espraiam sobre a questão da defesa
da família e da criança. Neste ínterim, as discussões e as elaborações teóricas
e sociais a respeito da pluralidade de formas de expressão da sexualidade
humana, do gênero e das identidades de gênero estão sob ataque.
É por tal motivo que a a renomada filósofa que dedicou-se ao tema das
relações de gênero, Judith Butler, foi atacada com xingamentos e perseguição
ao deixar o Brasil após sua participação em um simpósio sobre democracia que
aconteceu na cidade de São Paulo em 2017. Aos gritos de pedófila e assassina
de criancinhas, manifestantes clamavam violentamente por seu afastamento
do país em nome da defesa de nossas crianças. Ao falar sobre igualdade,
pluralidade e ao desestigmatizar identidades que permaneceram por longo
período nos marcos da exclusão e patologização, o campo de estudos de
gênero parece ameaçar todos aqueles que não vislumbram uma sociedade mais
plural. Armados em nome da defesa da família e das crianças destilam ataques
virulentos contra qualquer questionamento da ordem posta.
Destaco que não é uma ampla defesa da famílias que é acionada por
estes discursos conservadores, mas a defesa de um certo modelo familiar, que
não aquele dado pelo recurso as tecnologias reprodutivas, que não aquele
forjado fora da complementaridade essencial do par homem (príncipe) e
mulher (princesa). Ao despontar em defesa da família e das crianças, se está

Ebook IV SIGESEX 431


defendendo uma norma sexual edificada sobre a heterossexualidade como
pilar procriativo e se varre para fora do tapete qualquer outra existência ou
formato familiar.
A revelia dos muitos modelos familiares, o Brasil de 2017 e 2019 parece
destilar violência contra toda forma de diferença, avanço e questionamento
das bases naturalizadas da hierarquia de gênero e sexualidade.
Portanto, vale dizer que o parentesco, as famílias e a busca por
reconhecimento social e também legal para os mais variados formatos de
família ainda encontram resistência, pois abrem brechas para a existência e
reconhecimento da própria homossexualidade em nossa sociedade. Assim,
retomamos a máxima feminista de que o pessoal é político para defender que
as concepções acerca do que é família e parentesco também o são.

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Ebook IV SIGESEX 433


Mulheres migrantes no presente: violências,
gênero e agendas feministas
Women migrants in the present: violence, gender
and feminist agendas
Claudia Regina Nichnig1

RESUMO: Este artigo traz reflexões sobre as histórias de mulheres


migrantes, buscando refletir sobre a experiência diaspóricas de mulheres
que vivem na região da grande Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. Ao
enfocar a temática das migrações, nossa proposta é pensar algumas questões
como as violências, a aplicação da Lei Maria da Penha, a apropriação ou não
da linguagem e cultura brasileiras e a subjetividade da pesquisadora que narra
uma história sensível.
PALAVRAS-CHAVE: Mulheres; Migrações; Violências contra as
mulheres; Estudos de Gênero.

ABSTRACT: This article brings reflections on the stories of migrant women, seeking
to reflect on the diasporic experience of women living in the region of Dourados, Mato Grosso
do Sul, Brazil. In studying the issue of migration, our proposal is to think about some issues such
as violence, the application of the Maria da Penha Law, the appropriation or not of the Brazilian
language and culture and the subjectivity of the researcher who narrates a sensitive history.
KEYWORDS: Women; Migration; Violence against women; Gender Studies.

As mulheres nas margens, nas fronteiras são analisadas a partir do debate


sobre violências de gênero. A partir da pesquisa que desenvolvo na cidade de
Dourados, uma região de fronteira seca, importante porta de entrada para
imigrantes no país, apresento minhas primeiras impressões sobre como contar
histórias de mulheres em situação de migração/refúgio e as relações com a
história oral e do tempo presente. Ao enfocar a temática do refúgio, vou debater
a produção de fontes pela própria historiadora ao narrar suas experiências de
1. Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal da Grande Dourados –
UFGD. É pós-doutora em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e em Antropologia Social
pela École des hautes études en sciences sociales – EHSS, em Toulouse/França. É doutora pelo programa Interdisci-
plinar em Ciência Humanas da UFSC, na área de Estudos de Gênero. claudianichnig@gmail.com.

434 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


migração, através das ferramentas da história oral. Minha proposta é enfocar
a temática das violências através das experiências diaspóricas de mulheres em
redes migratórias transnacionais.
Minha proposta é discutir como a história oral pode ser um útil para
fazer emergir as histórias de pessoas invisibilizadas em situação de refúgio,
marcadas por dor e sofrimentos, a partir das lentes dos estudos da história das
mulheres, dos estudos de gênero e da interdisciplinariedade.

1- Pesquisas possíveis a partir da História das Mulheres e


Estudos de Gênero

O Brasil é um destino procurado por pessoas que migram de países


como Haiti e Venezuela, sendo que a região da Grande Dourados por
ser uma fronteira terrestre, se traduz em importante região de entrada
para a o Centro-Oeste do Brasil. Após o trânsito pelas fronteiras muitas
pessoas migrantes/refugiadas se estabelecem na região, passando a
compartilhar experiências com outras pessoas da mesma nacionalidade,
apontando para o fenômeno definido como “efeito de constituição de
redes, ou seja, o fato de que os imigrantes tendem a migrar para áreas onde
já existem comunidades de nacionais deste país” (OLIVEIRA, 2017).
O fato de se aproximarem de pessoas da mesma nacionalidade, além
de partilhar experiências de superação proporciona fortalecer redes de
solidariedade. Na cidade de Dourados o grupo de acolhimento realizado
a partir de um projeto extensão da UFGD2 proporciona estes encontros e
compartilhamento de experiências.
Apesar de que geralmente os venezuelanos e haitianos procuram os
grandes centros, ou mesmo cidades da região Sul do Brasil a permanência em
cidades de pequeno e médio porte significam uma possibilidade de existência
e resistência. Nesta pesquisa pretendo realizar entrevistas com as mulheres
imigrantes que vivem na cidade, procurando obter relatos sobre a história
de vida, as experiências de acesso ao mercado de trabalho formal e violências
sofridas. Mesmo que já existam pesquisas sobre os Haitianos em outras
localidades do Brasil (CONGO, 2014; MACEDO, 2018) e inclusive uma
pesquisa em andamento em Dourados, minha proposta visa não apenas pensar
as especificidades desta nacionalidade, mas pensar as mulheres nos processos
2. O projeto de extensão coordenado pela professora Carolina De Campos Borges, da Programa de Psicologia da Uni-
versidade Federal da Grande Dourados. Disponível em: http://eventos.ufgd.edu.br/enepex/anais/arquivos/2459.
pdf. Acesso em: 05.05.2018.

Ebook IV SIGESEX 435


de migrações, e principalmente a partir do momento que fixam residência
neste local e passam a reivindicar direitos e acesso a políticas públicas.
“Nos tempos atuais, quando as identidades de origem são, via de regra,
identidades “nacionais”, essa identidade que se presume perene e imutável teria
sido adquirida pelos indivíduos e grupos em seu país natal. ” (WEBER, 2013,
p.9). Ao se conectarem com pessoas da mesma nacionalidade se reafirmam
como grupo no país de chegada.
É importante lembrar que o Brasil é marcado por processos migratórios,
sendo um primeiro do Século XIX a década de 1980, e um que inicia a partir
da década de 1980 que é chamado de “migrações internacionais recentes”
(MAGALHÃES, 2017). Segunda esta mesma autora “esta fase também
abarca a entrada de estrangeiros no Brasil vindos de países mais pobres, como
os imigrantes da América Latina e da África”. (MAGALHÃES, 2017, p. 9).
A presença de um grande número de mulheres nos processos migratórios
“tem acarretado implicações políticas relevantes, no sentido de reivindicações
por melhores moradias e por mais extensivos serviços de assistência social”
(KOSMINSKY, 2007, p. 786). As pesquisadoras Isabelle Dias Carneiro
Santos e Patrícia Nabuco Martuscelli trazem um debate sobre a condição de
meninas e mulheres refugiadas no Brasil. As autoras afirmam que no caso de
“uma criança do sexo feminino, tem-se uma tripla vulnerabilidade, ou seja,
além dos elementos gênero e refúgio, há também o fator etário, que somados
configuram-se numa ampliação do risco de violação aos direitos humanos”
(2017, p. 42)
Minha pesquisa trará em seu centro mulheres marcadas por sua
nacionalidade, classe, gênero, raça e situação do refúgio. Pretendo contar
uma história do tempo presente, articulando principalmente os direitos
humanos, a história e a antropologia, pensando as especificidades dos direitos
das mulheres migrantes e refugiadas. Existem reivindicações específicas? Ao
incluirmos o debate sobre os direitos humanos, é possível observar, a partir de
uma perspectiva de gênero, a ampliação dos direitos humanos das mulheres
durante todo o século XX. Ao inserir a pesquisa dentro da área de estudos
da história das mulheres e dos estudos de gênero, é importante pensar que
esta é possível a partir da possibilidade de estudar os sujeitos invisibilizados e
marginalizados pela história.
Ao utilizar as epistemologias feministas e de gênero, poderei dar
visibilidade a essas narrativas, pois somente com “o investimento emocional
e os laços comunitários produzidos pelo trabalho feminista que possibilitam

436 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que as narrativas marginais sejam contadas e sobrevivam” (HEMMINGS,
2009, p.221). A perspectiva feminista possibilita contar estas narrativas
invisibilizadas e, portanto, trazer a tona as temáticas das violências e as
dificuldades que enfrentam essas mulheres no mercado de trabalho.
Mesmo que sabemos da importância de que as refugiadas como sujeitas
da história, falem por si mesmas, a partir de uma crítica propostas pelos estudos
subalternos e pós coloniais (SPIVAK, 2010) e pelas feministas negras (COLLINS,
2017; RIBEIRO, 2017; FIGUEIREDO, 2017), pretendo contar uma história
das refugiadas, sem, contudo, retirar o protagonismo destas mulheres.
Estou falando principalmente de mulheres que migram em situação
extrema, como deslocamentos forçados, cercados de medo, sofrimento e
muita tristeza, separações e perdas, e muitas vezes por diferentes formas de
discriminação.Ao pesquisar sobre a temática das imigrações e refúgios percebi
que ainda há muito o que se contar sobre as pessoas refugiadas, já que é uma
questão emergente e por esse motivo “ainda não geraram registros de outra
natureza” (MAGALHÃES, 2017, p.9). Outra questão que se coloca como
de relevância para a utilização da História Oral nos estudos das migrações é
que “a própria história do migrante pode ser registrada ou mal documentada,
e que a evidência oral proporciona um registro essencial da história oculta
da migração”. (THOMSON, 2002, p.343) Além da pouca documentação
formal, por se tratar de uma temática do tempo presente as migrações sobre as
quais me debruço, que acontecem nos dias atuais, ainda não se tornou objeto
de importância para História, como já é para áreas como antropologia, direito,
relações internacionais e psicologia, entre outras. Desta forma, a pouca ou
escassa documentação faz com que as fontes orais sejam imprescindíveis para
aprofundar o debate sobre a temática.
Além destes apontamentos que demonstram a importância das fontes
orais, minha proposta é pensar as especificidades das mulheres e suas questões
subjetivas, como os sofrimentos vivenciados nestes percursos. Desta forma,
como a história é uma ciência atenta as questões humanas e principalmente
no que se relaciona as subjetividades, as emoções e os sofrimentos, é possível
dialogar com outros estudos que pensam os sentimentos de pessoas em situações
extremas, como as guerras por exemplo. Nesta seara, os estudos sobre a história
das emoções têm sido útil para pensar os sofrimentos das mulheres nessas
trajetórias de vida, marcadas por violências. (SEIXAS, 2004; WOLFF, 2015)
A ideia é dar visibilidade as emoções e sentimentos de dor e sofrimento
porque que passam as mulheres, pessoas que trazem em seus corpos as marcas

Ebook IV SIGESEX 437


de sua nacionalidade estrangeira, raça e gênero. Por estarem em uma posição
de ainda maior vulnerabilidade pela busca por direitos e reconhecimento em
outro país, como é possível questionar o acesso a direitos e a proteção estatal
nestas condições?
Estou privilegiando as experiências de mulheres e que nesse processo
sofreram alguma forma de violência, desde a saída forçada (ou não) do país de
origem, durante os trânsitos e/ou na chegada no país. Ao realizar as entrevistas
a proposta é narrar os sentimentos das pessoas que viveram essas experiências,
trazendo-as para o saber/fazer historiográfico.
Por esse motivo neste artigo irei apontar sobre a importância e as
dificuldades no uso da história oral em situações extremas, como as vividas pelas
imigrantes e refugiadas. Entendo que para termos impressões mais precisas
sobre as mulheres migrantes a realização de entrevistas será extremamente
útil. Segundo Valéria Barbosa de Magalhães “a entrevista é um dos principais
recursos metodológicos usados nas pesquisas de imigração” (2017, p.7)
É partir deste recurso que poderei desvendar as experiências vividas e
ao produzir a entrevista conduzir para perguntar que levem ao conhecimento
sobre as situações de violências. A história oral se transforma em uma poderosa
ferramenta, para acessar experiências e sentimentos vividos pelo deslocamento
forçado. O acesso a essas histórias de vida são imprescindíveis para uma escuta e
uma narrativa mais sensível, eis que são pessoas marcadas pela migração, refúgio,
gênero, e ainda a múltiplas intersecções como raça, classe, religião, entre outras.
A produção da fonte pela própria pesquisadora através das ferramentas
da história oral pode considerar “a subjetividade de fontes orais passou a ser
vista muito mais como um sinal de força, um indício vital para a modificação
da consciência histórica, do que como uma fraqueza intrínseca” (SALVATICI,
2005, p.32). Assim não só a subjetividade da pesquisadora é considerada “mas
o sujeito do conhecimento é um indivíduo histórico, cujo corpo, interesses,
emoções e razão constituídos pelo seu contexto histórico concreto são
especialmente relevantes para a epistemologia”. (GONZÁLES GARCÍA E
SEDEÑO, 2002, p. 16-17). Então me convenço que é extremamente necessário
dar voz e escutar a narrativa destas mulheres que não seriam ouvidas em outros
espaços. Por este motivo busco analisar o acesso das mulheres ao mercado
de trabalho para adentrar a temática mais sensível das violências, sendo que
dificilmente terei como acessar diretamente a discussão sobre violências.
Uma questão que emerge a partir do uso da história oral é que as
entrevistas podem ser realizadas em português, para pessoa que já estão há

438 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mais tempo no Brasil, mas muitas destas mulheres não dominam o português
ou tem dificuldades de descrever assuntos sensíveis em outra língua. Sabemos
que a fala é um instrumento decisivo para as mulheres migrantes pobres dos
assentamentos que vivem a radicalidade cotidiana da luta pela permanência
na terra, como nos ensina o professor Losandro Tedeschi em suas pesquisas.
(LANGARO; TEDESCHI, 2015. p. 112)
Minha inquietação é no sentido de pensar a escuta de narrativas
sensíveis para quem fala, e comoventes para quem escuta, e o relato em língua
estrangeira pode impedir ou atrapalhar uma relação dialógica, não somente na
esfera na pesquisa, mas também nas formas de sociabilidades destas mulheres.
Desta forma, os grupos de acolhimento ao proporcionarem um espaço de
escuta para estas mulheres possibilitam que, após um período de adaptação
e familiaridade, permite que histórias do cotidiano sejam contadas, criando
uma relação de confiança. Ao registrar minhas impressões sobre a pesquisa,
pretendo estar atenta para os sentimentos e emoções das mulheres que buscam
no Brasil, direitos como o trabalho, a sobrevivência, enfim uma vida digna.

2- Violências contra as mulheres migrantes/refugiadas

Para tratar da temática das violências e da busca ou não por direito ou


acesso a políticas públicas para mulheres é importante lembrar que há uma
ampliação dos direitos humanos das mulheres durante todo o século XX ao
incorporar a perspectiva de gênero permite a inclusão de sujeitas atravessadas
por inúmeros marcadores das diferenças (CRENSHAW, 2002). Seja no global
ou no local, as agendas feministas sofreram modificações principalmente no
que tange as identidades, se mostrando mais plurais, procurando abarcar uma
multiplicidade de sujeitos, como as refugiadas. Portanto, as intersecionalidades
de gênero, raça, etnia, classe, orientação sexual, geração, deficiências, entre
outras nos permite pensar o conjunto das políticas, pois somente equidade ou
igualdade não daria conta das injustiças sofridas pelas mulheres. Assim, a ideia
de uma justiça de gênero nos permite revelar uma posição política, e pensar as
desigualdades no acesso à justiça e as políticas públicas.
Desta forma, quando essas mulheres são recebidas no Brasil deve ser
permitido o acesso a políticas públicas locais, ao mesmo tempo em que devem
ser consideradas as suas especificidades. Através de uma ideia de Justiça de
Gênero (GOETZ, 2008; SILVA, 2018) e de uma posição política inclusiva é
possível discutir a situação de subordinação e opressão, percebendo as múltiplas

Ebook IV SIGESEX 439


vulnerabilidades, nesse caso em um contexto de mobilidade e migração.
Segundo Nadine Gasman, da ACNUR, as mulheres ao se deslocarem
diante dos conflitos em sua terra natal, acabando sendo vítimas de violências
extremas como “assassinatos e o desaparecimento de seus familiares, a violência
sexual e de gênero e o acesso restrito a alimentos, água e eletricidade. Assim,
essas mulheres devem ter o acesso à Justiça garantido, aos mecanismos estatais
de segurança e especialmente a proteção prevista na lei Maria da Penha. Por
outro lado, questiono como ficam as diferenças culturais em relação aos
questionamentos a situações de violências? Neste caso se os diferentes países
não possuem legislações específicas que visa o enfrentamento da violência
doméstica e familiar, como pensar a recepção destas leis?
Segundo o estudo do Banco Mundial que trata dos direitos das mulheres
em relação as legislações protetivas contra as violências, este destaca que “na
América Latina e Caribe, Leste da Ásia e Pacifico e Sul da Ásia, somente
Haiti, Mianmar e Afeganistão não têm leis sobre violência doméstica” (2015,
p. 21). Se as relações de gênero em países como a Venezuela e Haiti são ou
não marcadas por desigualdade não é esse o objeto de análise da pesquisa,
entretanto a inexistência de um mecanismo de proteção pode sugerir que as
desigualdades não são percebidas como tal ou que se existem reivindicações
de mulheres por uma legislação específica, esta ainda não foi atendida. Outro
debate que pode ser aqui levantado é que nossos conceitos de violência
de gênero e mesmo o uso do gênero como categoria de análise mesmo que
tenha a marca da atuação dos movimentos sociais brasileiros, feministas e de
mulheres, recebeu e recebe muita influência de reivindicações transnacionais
por políticas de gênero. O questionamento também se esta é uma necessidade,
também pode ser discutido a luz do que dizem as feministas africanas sobre a

[...] a arquitetura e mobiliário de pesquisa de gênero têm sido em grande


parte destilada desde a Europa e experiências americanas. Hoje, estudio-
sas feministas são a mais importante circunscrição com foco em gênero
e a fonte de muito conhecimento sobre as mulheres e hierarquias de gê-
nero. Como resultado de seus esforços, o gênero tornou-se uma das cate-
gorias analíticas mais importantes na empreitada acadêmica de descrever
o mundo e tarefa política de prescrever soluções. Assim, embora a nossa
busca por entender não possa ignorar o papel das feministas ocidentais,
devemos questionar a identidade social, interesses e preocupações das
fornecedoras de tais conhecimentos. (Oyěwùmí, 2004, p.2)

440 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Desta forma penso que é preciso refletir como o mecanismo de proteção
da lei Maria da Penha será recebido por essas mulheres, em que questões
culturais, modelos de família e as relações de gênero e as não são similiares aos
brasileiros. Dessa forma, minha intenção é perceber como este instrumento
legal brasileiro será considerado por esta população imigrante pois quais são
as práticas sociais ou comportamentos considerados como violentos para
este grupo? Mesmo que tenhamos claro que estando em solo brasileiro deva
ser respeitada a legislação vigente no país, o fato de reconhecerem ou não
as práticas identificadas como violências pela Lei Maria da Penha importa
nas mulheres haitianas realizarem ou não denúncia das violências sofridas
ou buscaram um acompanhamento especializado. Por se tratar de relações
que ocorrem no âmbito do espaço privado, os diferentes arranjos e práticas
familiares são considerados para o reconhecimento dos sujeitos como autores
ou vítimas de violências. “As feministas, como um destes grupos, têm usado
seu poder recém-adquirido nas sociedades ocidentais para transformar o que
antes eram vistos como os problemas particulares das mulheres em questões
públicas” e neste caso como problemas de Justiça, logo ao serem as mulheres
haitianas interpeladas por um sistema de justiça que criminaliza violências
no âmbito das relações privadas, qual será o resultado? O silenciamento ou
a denúncia?
Também podemos refletir se a categoria das mulheres e de gênero
tornou-se central para discutir a desigualdade e violências no Brasil, com a
conceituação de violência de gênero através da LMP, é possível refletir a partir
da crítica “de estudiosas afro-americanas que insistem que nos Estados Unidos
de forma alguma o gênero pode ser considerado fora da raça e da classe”.
(Oyěwùmí, 2004, p.3) Também penso que no Brasil isso também não seria
possível, principalmente neste caso temos que relacionar as categorias de
nacionalidade, gênero, raça, classe, orientação sexual, deficiências e geração
para a análise.
Desta forma, abordar temas sensíveis se torna extremamente difícil, por
para a interação necessária há necessidade de um maior tempo de aproximação
com as interlocutoras em campo. Para escutar histórias de violências sofridas,
o fazer uso ou não da palavra, a existência ou não de relação conjugal desigual,
será útil as perspectivas dos estudos de gênero e feministas, a sensibilidade
e a subjetividade da pesquisadora as quais serão trazidas para o campo de
observação e análise.

Ebook IV SIGESEX 441


Concluindo

Esta é uma pesquisa em construção e, portanto, não se trata de um


artigo acabado. A cada passo dado na pesquisa, a realização das entrevistas e
as dificuldades enfrentadas no dia a dia, constroem essa caminhada percorrida
para contar uma história do tempo presente e me embrenhar numa temática
ainda sensível e pouco estudada.
Por se tratar de uma população invisibilizada que possuem trajetórias
marcadas por sentimentos de dor e sofrimento as dificuldades não são
poucas. As mulheres na condição de imigrantes e vítimas de violências,
mesmo que ainda subnotificadas, expressam números elevados a partir das
poucas informações que se tem. São mulheres que diante de configuração de
desemparo estatal (do país de origem e de acolhimento) estão desprotegidas e
vulneráveis. Em uma situação que ao serem desumanizadas por suas nações de
origem, as mulheres buscam a humanização e o respeito em outros horizontes,
o que está sendo feito para que estas mulheres vivam em condições de respeito
e dignidade? Essas perguntas serão respondidas por elas mesmos, aos serem
questionadas sobre suas trajetórias de vida no Brasil. Ao articular os principais
debates dos direitos humanos e da história a partir da história oral, as emoções
que circundam estes trânsitos serão contadas através das vozes comoventes
das próprias mulheres, marcadas por seus deslocamentos, as quais produzem
impactos na vida da pesquisadora e mudam nossa forma de ver, compreender
e narrar a história do tempo presente.

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Ebook IV SIGESEX 445


Levantamento de dados acerca da violência
de gênero
Data survey of gender violence
Kátia Rosana Hernandes1
Aguinaldo Rodrigues Gomes

RESUMO: A predominância do patriarcado nas sociedades ocidentais


levou os indivíduos do sexo masculino a se colocarem numa posição de
superioridade nas relações que se dão entre o masculino e o feminino,
legitimando assim as diversas formas de violência cometidas contra mulheres.
A presente pesquisa tem como objetivo analisar as diferentes formas de
violência cometidas contra as mulheres e as conseqüências trazidas para a
sociedade nas quais estão inseridas.
PALAVRAS-CHAVE: Violência, gênero, mulher

ABSTRACT: The predominance of patriarchy in Western societies has led male


individuals to place themselves in a position of superiority in the relations between male
and female,thus legitimizing the various forms of violence committed against women. This
survey aims to analyze the different forms of violence committed against women and the
consequences brought to the society in which they are inserted.
KEYWORDS: Violence, gender, woman

Introdução

Nesse artigo proponho apresentar alguns aspectos da pesquisa em


andamento relacionada ao estudo sobre a violência de gênero, especialmente
sobre a violência contra a mulher, campo teórico metodológico surgido a partir
das reivindicações dos movimentos feministas nacionais e internacionais. A
violência de gênero é um problema mundial e, ainda, uma ferida aberta a ser
tratada pela sociedade contemporânea.
1. Acadêmica do curso de História, Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, Orientada pelo Prof. Dr. Aguinaldo
Rodrigues Gomes - katiarosanahernandes@gmail.com - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS /
(067) 3241-0438 / Rua Oscar Trindade de Barros, 740 – Bairro Serraria- Unidade II - CEP 79200-000 – Aquidaua-
na-MS. www.cpaq.ufms.br

446 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No Brasil, após o período da ditadura militar que durou 21 anos,
especificamente na década de 80 , surgem as primeiras pesquisas voltadas para o estudo
da violência contra mulheres , acompanhando o processo de desenvolvimento da
sociedade no período da redemocratização, com o objetivo de dar maior visibilidade
aos atos de violência cometida contra mulheres, bem como promover o combate
deste fenômeno através de intervenções sociais, psicológicas e jurídicas.
Desconstruir a mentalidade patriarcal da sociedade ocidental não é uma
tarefa fácil, a hegemonia masculina construida durante séculos não se apaga em
poucas décadas, porém através de um trabalho árduo dos grupos feministas,
aos poucos vem se modificando essas mentalidades e a visão de mundo dos
individuos sobre as relações entre homens e mulheres.
O objetivo da pesquisa é levantar questões relativas, principalmente, a
violência contra a mulher e a evolução dos mecanismos de proteção, ou seja,
pensar o que mudou com a criação de leis específicas para punir os agressores.
A pesquisa é realizada a partir de uma análise quantitativa e qualitativa
dos dados fornecidos pela documentação sendo orientada pelo gênero como
categoria dessa análise. Além da bibliografia pertinente ao tema, recorro à
coleta de dados disponíveis na Casa da Mulher Brasileira, no município de
Campo Grande-MS·, com a finalidade de conhecer as estatísticas referentes
à violência praticada contra as mulheres no Estado do Mato Grosso do Sul.
Num segundo momento será realizada uma pesquisa exploratória nos Boletins
de Ocorrência (B.O) na Delegacia de Atendimento a Mulher - DAM do
município de Aquidauana. A revisão bibliográfica será utilizada como base
para o estudo crítico da documentação recolhida através do trabalho de campo.

1- O gênero como categoria de análise

Os estudos de gênero são um campo interdisciplinar que procura


compreender as relações e as particularidades da construção socio-cultural dos
gêneros masculino e feminino, numa dimensão relacional e não somente biológica.
Atualmente existe uma ampla bibliografia publicada,2 entretanto, enfocarei, aqui,
apenas algumas que se referem diretamente à violência contra a mulher.
2. AMORIM, Douglas Daniel de. Violência Doméstica contra a mulher: estudo sobre os agressores a partir de uma
delegacia especializada de atendimento à mulher; BLAY. Eva Alterman, Assassinato de Mulheres e Direitos Hu-
manos; CORREA, Marisa “Morte em família”; GROSSI, Miriam Pillar. “Identidade de Gênero e Sexualidade”;
SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado e violência; BORDIUE, Pierre. A dominação masculina; BLAY, Eva A.
Gênero e políticas públicas ou sociedade civil, gênero e relações de poder; DEBERT, Guita Grin. As delegacias da
mulher: judicialização das relações sociais ou politização da justiça? In: CORRÊA, Mariza (org.). Vida em família:
uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra”; SCOTT, Joan. Experiência; WEBER, Max. Conceitos Socio-
lógicos Fundamentais.

Ebook IV SIGESEX 447


Existem na literatura diferentes formas de se referir aos processos de
dominação orientados pela performatividade de gênero, sendo que a maioria
deles refere-se à dominância do masculino sobre o feminino, cada qual com
suas características próprias.
A dominação patriarcal, ou simplesmente o patriarcado, é uma das mais
antigas, se não a mais antiga forma de dominação, e consiste de acordo com
Weber (2010), na dominação do pai da família, do chefe soberano, onde o
domínio empresarial se confunde com o âmbito doméstico do senhor, a
família é uma célula tradicional, a agregação primeira de qualquer indivíduo,
de onde a tradição se dissimina.
Entender o conceito de patriarcado é essencial para se entender a
opressão sentida historicamente pelas mulheres. Embora ele tenha diversas
interpretações, a visão corrente é a de que o patriarcado é uma instituição social
caracterizada pela dominação dos homens sobre as mulheres em diversas esferas
da sociedade sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Apesar dos avanços
do feminismo, as diversas formas de dominação patriarcal e suas instituições
tenham se transformado ao longo do tempo, a dominação masculina continua
presente. (BIROLI;MIGUEL, 2014, P.19).
A dominação masculina foi um assunto amplamente tratado por
Pierre Bourdieu em um artigo publicado originalmente em 1990, intitulado
A dominação Masculina, que pouco mais tarde se transforma num livro
homônimo (1995). Para Bourdieu a dominação masculina seria uma forma
particular de violência simbólica, ele compreende o poder que impõe
significações, impondo-as como legítima, de forma a dissimular as relações
de força que sustentam a própria força, em outras palavras, a dominação
masculina é a manutençao de um poder que se mascara nas relações, que se
infiltra no pensamento e na concepção de mundo dos indivíduos.
Esse conceito é explorado por Saffioti (2001) que afirma ser a
dominação simbólica fruto da sociedade patriarcal, que legitima a dominação
do masculino sobre o feminino, a violência simbólica impreguina o corpo
e a alma das sociedades dominadas, o que revela uma hierarquia a muito
estabelecida, fica clara a idéia de que os homens estão autorizados a realizar
seu projeto de dominação e exploração mesmo que para isso tenham que se
utilizar da força física.
Saffioti (2004), trata a questão do papel da mulher na sociedade atual,
sob a perspectiva de uma sociedade capitalista, ela aborda o tema da opressão
às mulheres sob a ótica do ser humano sendo explorado pelo ser humano.

448 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Como consequência da violência praticada contras as mulheres
encontramos na literatura alguns títulos que se referem aos feminicidios,
esses crimes são fruto de uma sociedade patriarcal que legitima o poder do
masculino sobre o feminino, invertendo o papel das mulheres de vítimas
para cumplices.
Outra autora importante para pensar o tema é Mariza Corrêa que em
sua obra Morte em Família revelou como o sistema patriarcal impõe dor e
sofrimento as mulheres em função do uso da violência contra seus corpos e
mentes. Nesse sentido, Mariza Corrêa examina quarenta e oito processos de
julgamento de homicídios ou tentativas de homicidio ocorridos entre casais,
casados ou não, na cidade de Campinas-SP, por vinte anos, entre 1952 e
1972, em seu livro Morte em Família (1983). A identidicação dos elementos
que determinam o que é ser homem e o que é ser mulher naquele período
no Brasil, e as varias contradições nos processos penais, nos quais ficam
claras as desigualdades não só de gênero mas também das camadas sociais,
e as manobras utilizadas pela defesa dos réus para desqualificar as vítimas e
desmoraliza-las perante a opinião pública.
Eva Blay (2003) em seu artigo Violência de gênero: um problema
mundial e antigo, relata a forma como a legislação e a sociedade da época
tratavam as mulheres adulteras antes da Republica no Brasil. O Código
Criminal de 1830 considerava adultério as relação sexuais mantidas fora
do casamento, porém só as mulheres eram consideradas adulteras e prática
desse ato quase sempre a condenava a mulher a morte. De acordo com o
Código Criminal de 1830 a relação sexual da mulher fora do casamento
constituia-se em adultério, porém ao contrário, a relação sexual do homem
fora do casamento se constituía apenas em concubinato. Esse tipo de
legislação acabava por legitimar o assassinado dessas mulheres adulteras
pelos seus maridos, e os mesmos se defendiam utilizando o subterfugio da
legítima defesa da honra. O Código Civil de 1916 alterou estas disposições
considerando o adultério de ambos os conjuges razão para o desquite.
Entretanto , alterar a lei não modificou o costume de matar a esposa,
esse costume entre os homens só começa a ter alguma mudança, na segunda
metade do século XX, porém até os dias atuais podemos verificar que
homens sentem-se no direito de tirar a vida de mulheres por acharem que
elas são suas propriedades.
Em 2008, Eva Blay aborda o mesmo assunto e expõe num capítulo
de seu livro “Assassinato de Mulheres e Direitos Humanos”, casos de

Ebook IV SIGESEX 449


grande repercusão na mídia como o do assassinato de Angela Diniz por
seu companheiro Doca Street, e a forma como seu advogado transformou
a vítima em cúmplice da própria morte, posteriormente lançado até um
livro onde “ensinava” a conduzir a defesa de homens violentos, denegrindo
a imagem das vítimas.
Essas e outras autoras lançam luz sobre a problemática da violência contra
a mulher e se constituem num referencial teórico- metodológico fundamental
para os estudos de gênero, principalmente, para os relativos à violência.

2- As políticas de enfrentamento da Violência Contra a Mulher


no Brasil

No Brasil, a Constituição de 1988 representa um marco jurídico


importante quanto à defesa da igualdade de gêneros, em todos os campos
da vida social, bem como nas relações estabelecidas em relacionamentos
conjugais, quando estabelece no Art. 226, e define no §8 que o Estado deve
garantir assistência à família, na pessoa de cada um dos que integram com a
criação de mecanismos que coíbam a violência no âmbito de suas relações. O
Estado fica obrigado a intervir nas relações familiares no intuito de coibir a
violência intrafamiliar e também prestar assistência às pessoas envolvidas.
Na década de 90 a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento a
Mulher, antigas DEAM, hoje DAM foram uma conquista importante de toda a
sociedade que visa a proteção da mulher oferencendo um tratamento especializado,
a primeira delegacia especializada no atedimento da mulher foi criada na cidade
de São Paulo, atualmente existem DAM’s espalhads por todo o Brasil.
Em 2006 , a história da farmacêutica bioquimica Maria da Penha Maia
Fernandes deu nome a Lei 11.340/2006, ela foi vítima de violência doméstica
por 23 anos, o marido tentou assassiná-la por duas vezes , na primeira vez com
um tiro de arma de fogo que a deixou paraplégica e na segunda, ele tentou
matá-la por eletrocussão e afogamento, foi quando Maria da Penha tomou
coragem e o denunciou, porém o marido só foi punido 19 anos depois.
A Lei 11.340/06, estabelece que configura violência doméstica e
familiar contra a mulher, não só a violência física, mas também a violência
verbal e gestual que igualmente causa danos à mulher e é considerada violação
aos direitos humanos. Ela tipifica a violência contra a mulher como física,
psicológica, moral, patrimonial ou sexual e descreve a cada tipo conforme
podemos ver a seguir:

450 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Violência Psicológica, qualquer ação ou omissão que tenha a intenção
de degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de
outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta,
humilhação, isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à
saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal.
Violência Moral é a ação destinada a caluniar, difamar ou injuriar a
honra ou a reputação da mulher.
Violência Patrimonial, é quando o agressor toma ou destrói os objetos
da vítima, tais como: instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens
ou recursos econômicos, inclusive os destinados a satisfazer suas necessidades.
Violência Física é a ação ou omissão que coloque em risco ou cause dano
á integridade física de uma pessoa. Exs: tapas, beliscões, mordidas, chutes...
Violência Sexual, é qualquer conduta que force a vítima a presenciar
manter ou participar de relação sexual não desejada.
A Lei Maria da Penha é reconhecida pela Organização das Nações
Unidas (ONU) como uma das mais avançadas do mundo em se tratando de
punição à agressores de violência doméstica e familiar, essa lei trouxe diversas
conquistas entre elas a facilitação da tramitação de ocorrências e a criação de
juizados e varas especializadas.
Outra importante conquista das mulheres vítima de violência ocorreu
em 2015, com a alteração do Código Penal Brasileiro para que nele fosse
incluído o feminicídio como homicídio qualificado e alterando a lei 8072/90,
incluído esse tipo de crime no rol dos crimes hediondos, aumentando a pena e
facilitando a condenação desses agressores.

3- Dados nacionais da Violência Contra a Mulher

O levantamento documental foi realizado no banco de dados do Sistema


Penitenciário Brasileiro, INFOPEN. O sistema sintetiza informações sobre os
estabelecimentos penais e da população prisional no Brasil, embora os dados
publicados permitam um amplo diagnóstico da realidade prisonal, não esgota,
de forma alguma, todas as possibilidades de análise dessas populações. A seguir
podemos conhecer dados da população encarcerada por crimes ligados a violência
de gênero, esses dados foram publicados em junho de 2016, e neles consta que
haviam 4.826 homens e 22 mulheres encarcerados por violência doméstica
(Art.129 Código Penal -CP), 11.540 homens e 69 mulheres por estupro (Art.
123 CP), 5.977 homens e 95 mulheres por estupro de vulnerável (Art. 217-A CP).

Ebook IV SIGESEX 451


Um importante mecanismo de denúncia de violência contra a mulher
é o Ligue 180, serviço oferecido pela Secretaria de Políticas para Mulheres (
SPM/PR), de acordo com informações desse serviço em 2015 foram registrados
749.024 atendimentos, em comparação aos 485.105 de 2014. Os atendimentos
feitos pelo Ligue 180 constituem rica fonte de informações acerca da violência
sofrida pelas mulheres, pois é possivel coletar informações não só do tipo de
violência, como a frequência, a relação entre o agresor e a vítima, tempo de
ocorrência da violência, entre outras. Outro importante espaço para esta pesquisa
foi encontrado na Casa da Mulher Brasileira, sediada em Campo Grande.

4- A Casa da Mulher Brasileira – Campo Grande-MS

A Casa da Mulher Brasileira além de todo o apoio legal que oferece


as vítimas de violência tem representantes das três esferas governamentais,
Federal, Estadual e Municipal. Durante a visita pude perceber que a mulher,
ali chega, em estado fragilizado e recebe toda a assistência necessária para sua
recuperação e proteção. Apesar desse primeiro atendimento, nem sempre os
agressores são denunciados, já que as mulheres não são forçadas de forma
alguma a apresentar denúncia contra seu agressor, isso só ocorre se for da
vontade dela, o que nem sempre acontece, por motivos diversos, muitas
mulheres após um primeiro atendimento e depois de receber o atendimemto
do Serviço de Assistencia Social e dependendo do caso do Departamento de
Psicologia decidem voltar para casa, e essa decisão é sempre respeitada.
A pesquisa realizada na Casa da Mulher Brasileira (CMB) , na cidade
de Campo Grande-MS, possibilitou obter dados do fluxo de atendimento no
período de 03 de fevereiro de 2015 , quando a casa foi inaugurada, até 30 de
novembro de 2018, conforme veremos a seguir.
Foram atendidas e encaminhadas à setores integrados da casa nesse
período 282.466 mulheres. A Delegacia Especializada de Atendimento
à Mulher recebeu 27.181 Boletins de Ocorrência, desses 12.289 foram
encaminhados para a 3ª. Vara de Violência Doméstica e Familiar para concessão
de Medidas Protetivas, 31.574 mulheres foram encaminhadas ao Ministério
Público Estadual, sendo que dessas 12.469 se utilizaram da Defensoria Pública
, a Patrulha Maria da Penha atendeu nesse período a 22.821 ocorrências, os
atendimentos da CMB embora tenham a maior demanda na cidade de
Campo Grande, atende também em alguns casos mulheres vindas do interior
do estado e que necessitam de encaminhamentos.

452 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Considerações Finais

Por séculos a violência de gênero foi considerada um tema de foro


íntimo, e que deveria ser resolvido dentro do próprio ambiente que a gerava,
ou seja, o ambiente privado. Somente após a segunda metade do século XX
houve uma abertura da discussão em torno da violência gerada pelo gênero, no
caso desta pesquisa é a violência contra a mulher, e foi possível constatar que
a criação de mecanismos legais de proteção levou as mulheres a saírem do seu
silenciamento e denunciar seu agressor garantindo dessa forma uma punição
ao mesmo.
Mesmo com a implantação de políticas de enfretamento da violência, a
promulgação da Lei No. 11.340/2006, Lei Maria da Penha, e o endurecimento
da pena para o crime de feminicídio, pode-se perceber que não houve uma
diminuição significativa dos casos de violência e a violência doméstica continua
presente na realidade da mulher brasileira.
A violência deixa marcas profundas na história de vida dessas mulheres
e traz prejuízos irreparáveis à sociedade, representando ainda nos dias atuais
de forma incisiva a dominação patriarcal, sendo amplamente marcada pela
heteronormatividade, a misoginia e o machismo. A dominação estrutural e
cultural do masculino sobre o feminino é ainda nos dias atuais a principal
causa de violência praticada contra a mulher.
A luta dos movimentos feministas para a igualdade de gênero
constitui-se como uma estratégia para garantir mecanismos de defesa dos
direitos humanos às mulheres, a luta não se refere unicamente à introdução
de novos direitos, mas a manutenção dos direitos já adquiridos, bem como o
cumprimento das leis que punem com maior rigor os agressores.
Durante o período de pesquisa de campo até aqui realizado, pude
observar que a violência doméstica é a que dentre as violências praticadas
contra a mulher, a que atinge maiores índices. A reincidência das violências
praticadas, também, é um fato comum, e se dão pelo fato de muitas vezes essas
mulheres não terem para onde ir, não tem autonomia financeira para manter
a si própria e seus filhos, e isso resulta na volta para o ambiente hostil, onde
fatalmente serão agredidas novamente, com grandes chances de agravamento
do tipo de violência, chegando muitas vezes a condições extremas e ao
feminicídio.
A violência contra a mulher esta presente e todas as camadas da
sociedade, embora conforme os índices disponíveis nos sistemas policiais, na

Ebook IV SIGESEX 453


maioria dos casos, apenas as mulheres das classes sociais menos favorecidas
denunciem seus agressores.
Em face das questões aqui levantadas a dominação masculina e as
relações de gênero, ainda se constituem num problema acadêmico e social,
constituindo-se, portanto num campo de investigação frutífero para
pesquisadores que adotam uma postura interdisciplinar. Acredito que o
desenvolvimento de estudos nessas áreas poderá contribuir para a equidade
nas relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira.

Referências

BLAY, E.A., Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos Avançados,


Vol.17, No. 49, São Paulo: Sept/Dec 2003.

________. Homicídios de Mulheres: pesquisa e proposta de intervenção,


Assassinato de Mulheres e Direitos Humanos. São Paulo: Ed. 34, 2008, 248p.

BRASIL, Lei de 16 de dezembro de 1830, Código Criminal do Império do


Brazil

________. Lei No. 3071 de 01 de janeiro de 1916, Código Civil de 1916.

________. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

________. Lei No. 11.340/2006, de 07 de agosto de 2006., Brasília, 185ª. Da


Independência e 118º. da República Federativa do Brasil, 1988.

________. Código Penal. Decreto Lei 2848 de 07 de dezembro de 1940.

________. Lei No. 8072, de 25 de julho de 1990, Art. 1º

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência


de gênero. Caderno Pagu, 2001, No. 16, p.115-136

454 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero, Patriarcado, Violência. 1ª. Ed. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p.

CORRÊA, M. Morte em família, Editora Graal, 1983, 315p.

MIGUEL, L.F.; BIROLI F. Feminismo e Política. 1ª. Ed. São Paulo: Boitempo,
2014. V.1.

Relatórios de Fluxo de Atendimento nos Setores da Casa da Mulher Brasileira -


CMB referente ao último trimestre de 2018. Relatório de Fluxos de Atendimento
dos setores integrados da CMB, no período de 03/02/2015 (data da inauguração
da CMB) a 30/11/2018.

Ebook IV SIGESEX 455


O estupro corretivo de mulheres lésbicas:
a “correção” motivada pela lesbofobia na
contemporaneidade (2008-2018)
Corrective rape of lesbian women: the
“correction” motivated by lesbophobia in
contemporary times (2008 -2018)
Kleire Anny Pires de Souza1

RESUMO: O presente trabalho busca questionar o estupro “corretivo”


e como essa violência é fruto de uma cultura de sociedade que foi construída
com bases que são aberturas para “corrigir” mulheres que não pertencem a
“norma” heterossexual, evidenciando pelo recorte temporal de 2008-2018,
a primeira vez que o termo aparece, até a atualidade, colaborando também
para questionar a invisibilidade desse tema e porque a lei atual brasileira não
caracterizava como agravante da pena até setembro de 2018.
PALAVRA-CHAVE: Estupro Corretivo. Violência. Heteros-
sexualidade Compulsória.

ABSTRACT: The work search to question the roots that motivate corrective rape
and how this violence is the fruit of a society culture that was built with bases that are gap
to “correct” women who do not belong to heterosexual “norm”, evidenced by the temporal
cut of 2008 , the first time that the term appears, until the present time, also collaborating
to question the invisibility of this subject and because the current Brazilian law did not
characterize as aggravating the penalty until September 2018.
KEYWORDS: Corrective rape. Violence. Compulsory Heterosexuality.

Introdução

O estupro é considerado um dos crimes hediondos que existem


nas sociedades ocidentais contemporâneas, essa violência viola não só o
1. Graduanda em História - Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Dourados / MS - Kleire@icloud.com.

456 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


corpo, mas como também o direito a vida, a liberdade, e a integridade física
acarretando em traumas que marcam as vítimas para o resto de suas vidas,
porém, ele se torna ainda mais cruel quando usado como arma de um sistema
punitivista para corrigir a sexualidade considerada “anormal” por esse sistema
heterossexual. “Os sexólogos são acusados de ter criado tal instituição, tendo
inventado a palavra ‘heterossexualidade’ como o contraponto positivo da
‘homossexualidade’ e tendo imposto isso como a única sexualidade normal”.
(GÓMEZ, 2011)
O termo estupro corretivo foi cunhado pela primeira vez nos pelos
veículos de notícia, em 2008, um caso de extrema violência que ocorreu com
a atleta de futebol e ativista dos direitos LGBTQI+ em KwaThema, África do
Sul. A vítima foi Eudy Simelane, a qual, após ter sido estuprada, foi brutalmente
assassinada, justamente por conta da sua sexualidade (ALFREDSSON. 2008)
O estupro “corretivo” ele difere do crime de estupro, indo além pois ele
possui uma motivação diferente, ele carrega em si uma pretensão de corrigir
algo que para o abusador é considerado errado na sua vítima, indo além da
violação do corpo, ele viola a existência da mulher lésbica e do direito a sua
sexualidade, do direito de amar outra mulher.
O objetivo deste trabalho é questionar porque as mulheres lésbicas
estão expostas a violência especifica do caso do estupro denominado corretivo,
que é notoriamente motivado pela lesbofobia2 e pela correção da sexualidade,
considerada “anormal”. A escolha do tema foi motivada por relatos de vítimas
do convívio, e as questões legais do país que somente em setembro de 2018
passou a aplicar agravante de pena para o abusador, questionando dentro disso
o porquê esses estupros tem a intenção de corrigir sexualidade, e de onde vem
essa questão de considerar uma sexualidade anormal. Ressalta também a dupla
vulnerabilidade da mulher lésbica, e como a heterossexualidade compulsória
colabora para a lesbofobia.
Este trabalho busca ser relevante para a sociedade, pois, ele traz aspectos
muito relevantes para estudar a violência especifica contra mulheres lésbicas e
expõem a negligência do Estado perante as vítimas desse crime, que até o ano
de 2018 não reconhecia o crime de estupro “corretivo” mostrando que essas
mulheres lésbicas estão a mercê de violências especificas e que eram ignoradas
pela lei partido do pressuposto que antes do agravante de pena posto na lei nº
2. Termo designado para expor Fobia, caracterizada por rejeição, ou medo de algo, no caso da Lesbofobia, fobia a
relações afetivas entre duas mulheres.

Ebook IV SIGESEX 457


13.718, de 24 de setembro de 20183, esse crime nem mesmo era reconhecido
ou sequer agravava a pena.
Visa expor também a necessidade de discutir temas que serão abordados
no decorrer do trabalho, como e o porquê é motivado por uma suposta
correção por parte do violentador, porque o Estado não cria medidas legais
para a diminuição da incidência de crimes lesbofóbicos instruindo assim uma
mentalidade evitando o acontecimento deste crime. O presente trabalho vai
demonstrar a maneira que a sociedade se construiu até a contemporaneidade
possibilitando meios para que essa agressão ocorra, e também porque é um
tema tão a margem e muito pouco debatido visto que é exponencialmente
crescente os casos4 dessa violência. A relevância do tema abordado se mostra
na concepção da formação da sociedade e como o estupro “corretivo” aparece
graças às formações dos homens na nossa sociedade, e como a violência e
agravada graças a negligência do Estado diante das punições.

1- O papel do patriarcado

O estupro está diretamente ligado à construção das bases da sociedade


e a maneira que ela se consolidou. O crime de estupro se modificou com a
evolução do processo histórico. A história dá respaldo para evidenciar a
separação dos sexos biológicos com margem nas sociedades, que possuem por
base o sistema patriarcal como molde da construção do comportamento, um
sistema que se originou claramente em cima da dominância sendo a própria
palavra significação disso patri arcado vinda do grego patér “pai”, arkhé, “poder”,
logo este é seu elemento central a dominância masculina sobre a feminina.
A criminologia e estudiosa do estupro na lei romana Kelly Cristina
(2009) aponta que em Roma que o termo surgiu, “stuprum”, provavelmente
no séc. 18 a.c que na lei romana o crime aparecia, significava então o crime
de conjunção carnal ilícita com mulher virgem ou viúva honesta, mas sem o
emprego de violência, ou seja, o crime não se manifestava pela violação do
corpo da vítima e sim pelo ato de comprometer um “objeto” de outro homem.
Já na idade média o estupro ele até mesmo foi aprovado pelo estado, “A
legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou

3. para controlar o comportamento social ou sexual da vítima


4. Dados divulgados pelo site da câmara legislativa brasileira no ano de 2018, onde aponta o aumento da ocorrên-
cia de casos de estupro corretivo. Acesso em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-
-HUMANOS/559362-CRESCE-NUMERO-DE-DENUNCIAS-DE-ESTUPROS-CORRETIVOS-CON-
TRA-LESBICAS,-SEGUNDO-ESPECIALISTA.html

458 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe. Também insensibilizou a
população frente à violência contra as mulheres” (FEDERICI, Silvia. 2017.
P.104) tudo isso sendo um composto de políticas sexuais praticadas pela
Igreja Católica na alta idade média, onde sobre tudo buscava o controle sobre
a sexualidade feminina, onde a baixa densidade demográfica exigia da igreja
católica a criação de políticas sexuais para controle da população, sendo inserida
junto a esta lei até mesmo práticas que condenavam a homossexualidade, pois,
se enquadrava como sexo não reprodutivo. “a Igreja intensificou seus ataques
contra a “sodomia”, dirigindo-os, simultaneamente, contra os homossexuais
e contra o sexo não procriador (Boswell, 1981, p. 277) e pela primeira vez,
condenou a homossexualidade, “a incontinência que vai contra a natureza”
(Spencer, 1995a, p. 114).”
A historiadora Gerda Lerner (1987) em seu livro The Creation Of
Patriarchy contribuiu para dar significado ao que é o patriarcado, explicitando
que o patriarcado é a manifestação e a institucionalização do domínio dos
homens sobre as mulheres dentro das esferas de poder, como a família, o
Estado, e o prolongamento desse domínio masculino sobre as mulheres na
sociedade como um todo. Ela traz também que o sexo masculino ocupa todas
as instituições importantes dentro da sociedade fazendo com que as mulheres
não tenham acesso a poder algum ficando dessa forma a mercê da dominância
masculina.
Nesta senda, como as mulheres são excluídas do poder e forçadas a serem
submissas as tornando totalmente dependente dos homens, considerando
também que normas são impostas pelos homens para controlar as mulheres
evitando assim que elas possam reverter essa situação de submissão. O sistema
patriarcal cria diversas normas para todos os seres que estão dentro dessa
sociedade.
A norma heterossexual, é compulsória aos seres humanos e que,
portanto, é adotada como se fosse natural e ignora as preferenciais sexuais
individuais de cada pessoa, é uma imposição social que foi implantada no
imaginário coletivo como um fenômeno natural, uma lei divina cristã e
obrigatória onde há condenação do oposto disso, e qualquer que difira desta
orientação é considerado desviado e depravado.
Essa ideia de imposição heterossexual é reforçada pela sociedade patriarcal,
reforçado até mesmo pelas instituições como, na igreja onde o princípio da
criação bíblica cristã surge o casal Adão e Eva sendo eles biologicamente
opostos, e como na consolidação do capitalismo onde a homossexualidade foi

Ebook IV SIGESEX 459


condena por não reproduzir e gerar novos trabalhadores estimulando assim o
consumo da prostituição. “a institucionalização da prostituição, implementada a
partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda
a Europa. [...] O bordel municipal também era considerado um remédio contra
a homossexualidade (Otis, 1985)” (FEDERICI, Silvia. 2017. Pg. 88-89)
Pensando assim, mulheres lésbicas são totalmente desviantes da norma
social, pois, se a sociedade é construída sobre a dominância dos homens,
mulheres que se relacionam exclusivamente com mulheres são colocadas
como inimigas da sociedade patriarcal pois elas contestam com sua existência
as normas impostas por este sistema, logo, os agentes do patriarcado tentam
corrigir essas mulheres para a norma do sistema usando a violência como meio
para alcançar isso.
Considerando que mulheres lésbicas são inimigas do patriarcado o
pensamento da sociedade patriarcal que reproduz a heterossexualidade como
norma a construção de uma cultura do estupro que é utilizada como arma
para lutar contra mulheres, onde a palavra cultura marca um comportamento
comum a todo um grupo, uma reprodução de um imaginário comum a todos
pertencentes a determinado grupo, “em sentido amplo, cultura [...] é o campo
simbólico e material das atividades humanas” (CHAUÍ, Marilena. 1986. pg. 14).
No caso “maioria” dentro de uma sociedade que compactue com o
mesmo pensamento e comportamento, cultura de estupro é amparada por um
número de crenças complexas que estimulam a agressão sexual por parte dos
homens e colabora com a violência contra as mulheres, principalmente contra
mulheres lésbicas que apenas se envolvem sexualmente com outras mulheres
não fazendo parte da norma.
O comportamento sexual é moldado por uma sociedade na qual a
violência é percebida como algo sensual e a sexualidade violenta é vista como
algo comum, a pornografia é um grande exemplo deste fator, uma simples
busca dentro de sites que reproduzem este tipo de conteúdo facilmente
pode ser encontrado vídeos de violência sexual, e abusos, classificados por
sites pornográficos como “Hardcore”, e em outras simples buscas podemos
encontrar vídeos que mulheres lésbicas aparecem fazendo sexo com homens
como se elas só precisassem de insistência para ceder a relação sexual com ele.
A expressão que ficou popular na internet nos meios feministas “Todo
homem é um potencial estuprador. Toda mulher é potencial vítima de estupro”
por mais agressiva que a frase soe, levantando a generalização que todo homem
seja um potencial criminoso, crítica levantada pela expressão, fazendo jus a

460 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


cultura de estupro, pois o homem enquanto ser social, é historicamente munido
de privilégios e de poder. A partir do momento que as bases que formulam a
sociedade contemporânea é patriarcal, totalmente dominada por essas raízes
e que se constroem a partir da banalização e naturalização da violência contra
as mulheres, dizer que todo homem é um estuprador em potencial é dizer
que por seus privilégios ele não está à mercê das violências como as mulheres
estão, e que os homens são incentivados sexualmente enquanto mulheres são
reprimidas pelos tabus da mesma sociedade.
Além disso o medo que as mulheres possuem é explicitado pela vida
cotidiana onde possuem ao andar sozinha na rua, ter medo de sair à noite,
medo do estupro constante, no caso das lésbicas o medo é ainda maior quando
a ausência da feminilidade, pois assim seu agressor vê ainda mais motivos para
torna-la “normal”. A questão para que não deixem de ser potenciais e tornem-
se efetivos, os dois só dependem de uma coisa: que o homem não estupre. A
lógica disso pressupõe que para um potencial vítima de estupro não se torne
estatística, basta somente que não haja um estuprador.

2- A prática violenta como busca da “correção”

Os agressores sempre aparecem tentando justificar o abuso que


cometeram dizendo que estavam tentando “corrigir”, “curar” a sexualidade da
vítima. Vejamos o que a explicação para tal afirmativa:

De todas as formas de apagar a identidade lésbica, o ‘estupro corretivo’


se mostra mais odioso, porque consiste em uma prática criminosa na
qual o agressor acredita que poderá mudar a orientação sexual da lésbica
através da violência sexual. Isto porque, para eles, ao praticarem tal ato,
elas vão ‘aprender a gostar de homem. (FIGUEIRÊDO, 2013)

A correção violenta nessa perspectiva acometeria a mulheres “anormais”


para o padrão considerado normal pela sociedade, onde esse agressor buscaria
então tornar normal aquilo que é anormal.
A normatização da heterossexualidade aparece no fim do século XIX, na
ciência. Dessa forma se pretendia com a criação desta palavra criar o conceito
de normal e anormal, onde a heterossexualidade pretendia distinguir-se da
sexualidade anormal — lido como homossexualidade — daí por diante, se
passa a entender a heterossexualidade em todas as esferas de instituições como

Ebook IV SIGESEX 461


sendo a natural e de ordem divina, a influência da Igreja católica colaborou
de grande forma neste processo pois condenar a homossexualidade garantia
grande parte de seus interesses como a manutenção de nascimento e novos
fieis e trabalhadores a serviço dela.
Sendo assim, a heterossexualidade não diz respeito apenas atração
sexual pelo sexo oposto, é atração em si pelo que o outro sexo representa, diz
a respeito também da construção do que é ser heterossexual além da atração.
Devemos pensar que a heterossexualidade ela foi ensinada desde o princípio
da sociedade, onde a igreja católica falava e até hoje fala que ela é o correto,
em casa nas famílias, até mesmo na escola, a heterossexualidade sempre foi a
norma, passando por tantas transformações com o longo do processo histórico
sem ser afetado o pensamento, estudiosos do comportamento defendiam
que “a homossexualidade feminina representa um ‘comportamento perverso’
ocasionado por um complexo de Édipo ‘distorcido’ e ‘desvirtuado’ devido à
incapacidade das figuras parentais.” (MAYA, Acyr. 2007. Pg. 4)
A desnaturalização da homossexualidade não foi fruto só da condenação
religiosa, ela foi instigada até mesmo pela ciência, “No século XIX, o amor
entre iguais deixou de ser visto como um pecado e passou a ser encarado como
doença a ser tratada.” (DIETER, Cristina Ternes. 2012. Pg. 5) E apenas depois
dos anos 90, exatamente em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) excluiu a questão da homossexualidade da lista de “doenças” e
perde o seu sufixo “ismo”.
A politização e culpabilização das mulheres acerca de sua sexualidade
já era imposta como erro e vergonha desde a idade média, “ [...] centrados nos
homens, tentaram disciplinar e apropriar-se do corpo feminino, destacando
que os corpos das mulheres constituíram os principais objetivos — lugares
privilegiados — para a implementação das técnicas de poder e das relações de
poder.” (FEDERICI, 2017. p. 32)
Nesse sentido o clero reconheceu que as mulheres possuíam um poder
sexual a qual levava os homens ao pecado, e que era necessário realizar exorcismos
e evitar as mulheres e o sexo; transformando a sexualidade feminina em objeto
de vergonha e perseguição. “Assim, os Inquisidores tiveram a sabedoria de
ligar a transgressão sexual à transgressão da fé. E punir as mulheres por tudo
isso.” (MURARO, 2015, p.88.) Instaurando principalmente tribunais e
perseguições a qualquer culto com um número de mulheres. A casta patriarcal
alterou totalmente a história das mentalidades no sentido da sexualidade, uma
vez que a igreja munida de poder até a contemporaneidade visou perseguir as

462 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mulheres utilizando-as como bodes expiatórios para seus problemas. Vejamos
estudo sobre o tema:

A igreja intensificou seus ataques contra a “sodomia”, dirigindo-os, si-


multaneamente, aos homossexuais e ao sexo não procriador (Boswell,
1981, pp. 277-86 apud FEDERICI, S; pp. 82), e pela primeira vez con-
denou a homossexualidade, “a incontinência que vai contra a natureza.
(Spencer, 1995ª, p.114 apud FEDERICI, S; pp. 82)

A sexualidade feminina é considera um tabu, pois a séculos ela foi


punida e colocada como vergonha e até mesmo usada para diminuir mulheres,
ao se pensar que a homossexualidade nesse contexto de Idade Média também
aparece como crime severo, uma vez que, a relação entre mulheres era útil a
procriação em um contexto de baixa densidade demográfica e morte, sendo
que, conflitava com os interesses da igreja, pois precisava dar manutenção de
súditos e servos para o trabalho laboral.
Dentro dessa lógica a cultura de estupro sendo heterossexualmente
compulsória e criando meios que facilite o surgimento do estupro corretivo
como uma maneira de ‘ajustar’ socialmente esta mulher que é ‘errada’ segundo
essa lógica, e uma vez que, a sociedade sendo patriarcal e heterossexual, a mulher
lésbica é totalmente uma desviante, ou seja, ela é duplamente vulnerável, pois
está totalmente a margem da ‘norma’, e é invisibilizada uma vez que esta ‘norma’
seja o padrão social, e a violência seja especifica e ligada a mulher lésbica.
A considerações que a correção é colocada como “aprender” a gostar
de homem, como se a mulher Lésbica só tivesse uma sexualidade desatrelada
da padronizada porque não aprendeu, e a partir do momento que o homem
estupra-la ela irá “aprender” logo ela irá ser “certa” como pressuposto de que
por não gostar do sexo masculino ela estaria errada.
A correção é colocada como “aprender” a gostar de homem,
transparecendo que se a mulher lésbica só tivesse uma sexualidade desatrelada
da padronizada, porque não aprendeu, e a partir do momento que o homem a
estuprar ela irá “aprender”, logo ela irá ser “certa” como pressuposto de que por
não gostar ela estaria errada.
Não se deve apenas considerar que o agressor seja doente ou mero
produto de uma sociedade determinista que o moldou assim, o colocando
como doente seria isentar das responsabilidades para com a vítima, e que por
mais que a sociedade seja forjada em bases misóginas ele não é um mero produto

Ebook IV SIGESEX 463


dela, e sim o criador e possibilitador da existência dela. “Biologicamente, os
homens possuem apenas uma orientação inata – a sexual, que os dirige para
as mulheres – enquanto as mulheres possuem duas orientações inatas, a sexual
dirigida para os homens e a reprodutiva dirigida para sua prole” (Informação
verbal)5
Visto isso, o exercício da sexualidade pelas mulheres é sempre posta
como motivo de culpa e sujeita a punição por “cometer um erro”, coloca a
mulher como geradora da violência num sentido caracterizado como no
estupro corretivo, como se essas vítimas pedissem para serem “transformadas”
em mulheres de “verdade”, levando o estuprador a crer que ele no seu papel
enquanto homem estaria fazendo algo correto e bom, uma vez que estaria
corrigindo algo que está “errado”, no caso do estupro corretivo.
A sexualidade da mulher lésbica, é vista como destoante visto que não
se enquadra na heteronormatividade que é o padrão de sociedade na qual este
estuprador teve sua mentalidade moldada, mostrando abertamente o porquê
a cultura do estupro ela potencializa e gera algozes a serviço das suas crenças
misóginas6. Segundo o jornalista de um dos casos de estupro “corretivo”:

O pai teria descoberto a relação e, apostando numa espécie de “estupro


corretivo”, queria fazer com que a filha deixasse de ser lésbica e apren-
desse a gostar de homem. “Ela disse que a intenção do pai era fazê-la
virar mulher”, disse o professor. (BRAZ, S; 2017)

Nesta lógica que os homens são agressores e estupradores em potencial


e que são defendidos pelas instituições que os moldaram, considerando ainda
que tem a hegemonia da sociedade como reflexo de se pensar que a sociedade
num todo é dominada por homens, visto que este domínio oprimi as mulheres,
e esses violentadores não são punidos como deveria, pois as instituições de
controle e punição de aparato do Estado acabam por não desencorajar esses
homens, a explicação para tal afirmativa:

[...] Homens estão fazendo isso, por causa do tipo de poder que homens
têm sobre mulheres. Esse poder é real, concreto, exercido de um corpo
para outro corpo, exercido por alguém que sente que tem o direito de
5. Alice Rossi, “Children and Work in the Lives of Women”, comunicação apresentada na Universidade do Arizona,
Tucson, fevereiro de 1976.
6. Sentimento de repulsa e/ou aversão às mulheres. Repulsão excessiva do contato sexual com mulheres. (Dicionário
online)

464 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


exercer isso, exercido em público e em privado. É a soma e substância da
opressão das mulheres. (Informação verbal)7

Partindo da premissa que os homens não são desencorajados a praticar


o estupro corretivo, pois sabem que são munidos de poderes frutos do
patriarcado que se expressa em forma das leis do Estado, e que ainda tem em
sua maioria detentores do domínio da máquina do estado o sexo masculino.
Sendo eles os criadores, aplicadores, e os agentes a serviço das suas leis. Tal
afirmativa explica-se:

O estado é masculino na visão feminista: a lei enxerga e trata mulheres


da mesma forma que homens enxergam e tratam mulheres. O estado
liberal coercitivamente e autoritariamente constitui a ordem social
segundo o interesse dos homens enquanto gênero — por meio de suas
normas legitimizantes, formas, relações com a sociedade, e políticas
substantivas […] A lei, enquanto palavras no poder, escreve a sociedade
na forma de um estado e inscreve o estado na sociedade. (tradução livre)
(MACKINNON, 1989, p. 644-645)

Mostrando que o Estado é uma ferramenta opressiva a serviço dos


homens, uma vez que a própria concepção do Estado é totalmente masculina,
onde as leis são criada e grande parte aplicadas por homens “Os dados
desagregados por gênero informam uma média geral de 62,7% de homens e
37,3% de mulheres” (BERNARDES, C. R. O. 2017) a lei portanto, sendo
masculina normalmente atenua a punição do agressor ou até mesmo blinda
de punição, como no caso de estupro corretivo não existe pena especifica de
punição se enquadrando apenas como estupro, segundo o perito criminal
Hélio Buchmüller (2016) em seu artigo Crimes sexuais: a impunidade gerada
por um Estado omisso, no Brasil as punições em casos de estupro são muito
menores do que os volumes em que elas ocorrem, as taxas de condenação por
estupro no Brasil estão a margem de 1%.
O Estado acaba sendo um agente omisso que não toma medidas
cabíveis para segurança da mulher, visto que leis como a Lei de Segurança
Nacional, que traz no seu artigo 24 o seguinte enunciado “Art. 29 - Matar
qualquer das autoridades referidas no art. 26. Pena: reclusão, de 15 a 30 anos.”
7. Discurso de Andrea Dworkin feito na Midwest Regional Conference of the National Organization for Changing
Men em 1983 em St Paul, Minnesota

Ebook IV SIGESEX 465


(BRASIL.1983.) é elencado então, que a morte de uma autoridade a serviço
das instituições dominantes tem mais punitividade do que a morte de um
cidadão comum, e do que a integridade física de uma mulher.

Considerações finais

Neste diapasão, em pleno século XIX o estupro corretivo passou


a ser reconhecido como um agravante ou uma qualificação na pena apenas
em setembro de 2018 no Brasil na lei, onde apresenta em seu texto da lei nº
13.718, de 24 de setembro de 2018. “b) para controlar o comportamento
social ou sexual da vítima.” (BRASIL, 2018) evidenciando a invisibilidade da
lesbofobia por não apresentar que se trata da correção de mulheres lésbicas,
deixando aberta a margem de interpretação.
A demora do Estado mediante a punição de abusadores mostrando que
o patriarcado continua operante e criando vítimas, e ainda a omissão durante
tanto tempo gerando uma manutenção das suas antigas estruturas e criando
novamente uma geração de homens que ainda acreditam e decidem que
podem “corrigir” a sexualidade de uma mulher lésbica pelo estupro corretivo,
onde, de alguma maneira este individuo acredita estar fazendo algo correto
reposicionando essa mulher a norma, marcando assim séculos de um processo
histórico que evidencia que o homem mesmo depois de tanto tempo não
perdeu seu poder de dominância sobre o corpo feminino.

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abril de 2008. Disponivel em: http://www.causeofdeathwoman.com/eudy-
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466 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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468 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Transfobia - um estudo da violência através
do caso de Dandara dos Santos
Transphobia - a study of violence through the
Dandara dos Santos case
Larissa Gabrielle Rabelo Silva1

RESUMO: Aborda-se no presente artigo o tema da Transfobia com


enfoque no crime cometido contra a travesti cearense Dandara dos Santos.
Parte-se do princípio do Direito à Vida e à Dignidade da Pessoa Humana,
explora-se o preconceito e a violência historicamente enraizado e, analisando
dados oficiais e fornecidos por ONG’s, reflete a falta de políticas públicas e
legislação especifica.
PALAVRAS-CHAVE: Transfobia; Dandara; Preconceito

ABSTRACT: This article discusses the theme of transphobia with a focus on the
crime committed against the transvestite Cearense Dandara dos Santos. It starts with of the
principle of the right to life and dignity of the human person, it explores the historically
rooted prejudice and violence and, analyzing official data and provided by NGOs, reflects the
lack of public policies and specific legislation.
KEYWORDS: Transphobia; Dandara, Prejudice

Introdução

Não é novidade que cada vez mais se discute e se coloca em pauta as


diversas formas de preconceito dirigidas a determinados grupos. No presente
artigo busca-se tratar de um tipo específico, a Transfobia, pois quando o
assunto são as questões de gênero, deve-se buscar compreender a relevância
dos direitos da diversidade sexual e da não discriminação por orientação sexual
e identidade de gênero. Cabe ainda ressaltar que a Constituição Federal, o
pilar fundamental do Estado democrático de direito, em seu artigo 3°, defende
uma sociedade justa, solidária, pluralista e livre de preconceitos.
1. Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia-MG, larirabelo@ufu.com

Ebook IV SIGESEX 469


Em uma análise comparativa com outros países, o Brasil é o local
que apresenta as maiores taxas de assassinatos de travestis e transexuais. Foi
divulgado em um Relatório no ano de 2018 do Grupo Gay da Bahia o registro
de 420 mortes de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis no
Brasil, naquele ano. Isso significa que, a cada 20 horas, uma pessoa LGBTQI
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo) foi morta ou se
matou em 2018. Deve ser salientado que a necessidade de se analisar os dados
não oficiais advém de escassos estudos, estatísticas e levantamentos realizados
pelos órgãos governamentais.
O presente artigo, visa assim, fazer um estudo acerca da violência
direcionada as travestis, principalmente no tocante a discriminação e ao
preconceito, que acabam por afetar, na maioria das vezes drasticamente, suas
vidas. Busca-se dessa forma estabelecer a identidade de gênero em contraste ou
oposição às “normas sociais”, quando fundamentadas no binarismo de gênero2,
trazendo com especial enfoque o ataque à vida de Dandara dos Santos.
O conceito a ser utilizado no presente artigo é o da Teoria Queer3,
com especial destaque para o trabalho da filósofa americana Judith Butler
(2003) em estabelecer a concepção da identidade feminina e masculina como
derivadas das categorias macho e fêmea, além de destacar esta construção
como a responsável pela hierarquização do homem e da mulher no tocante aos
papéis e posições ocupados socialmente.
Butler (2003) nos leva a compreender a dualidade presente na
identidade dos sujeitos sociais, quando em consonância ou não com as normas
definidoras do espaço de normalidade, como derradeira causa de exclusão e
distanciamento dos sujeitos de identidades dissonantes dessas normas.
Diante do presente exposto, considero imprescindível o estudo de como as
minorias, em especial os LGBTQI, são afetados pelo preconceito tão visivelmente
inserido em nosso convívio social. Partindo do entendimento das violências
perpetradas contra travestis, como violações de direitos humanos, foi examinado
dados quali-quantitativos provenientes do Relatório de Violência LGBTfóbicas
no Brasil no ano de 2016 e Relatório do Grupo Gay da Bahia de 2018.
2. “O binarismo de gênero é uma ideologia constituída pela afirmação de que mulheres e homens são radicalmente
distintos e que esta distinção está fundada nos corpos biológicos e que, portanto, ela é imutável e inquestionável”
(CFSS, 2016).
3. “Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o
excêntrico que não deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira ao
centro e nem o quer como referencias; um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume
o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba,
provoca e fascina” (LOURO, 2004).

470 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Dandara, ao ser assassinada de forma tão violenta, demostrou de forma
latente como a maior parte da sociedade trata as diferenças, com forte repressão
e violência, motivando assim o estudo da presente pesquisa, ao escolher tal
tema para análise.

1- Conceituação e contextualização

“A transexualidade é uma experiência identitária caracterizada na


construção do gênero de forma contrastante com as normas definidoras de
uma ligação, obrigatória, entre corpo, identidade e sexualidade” (BENTO,
2008; 2006). Cabe-nos, portanto, compreender a concepção biológica de
homem e mulher como apenas um dos fatores que definem os contornos
do que é ser mulher ou ser homem, afinal, cabe a cada indivíduo vivenciar a
própria feminilidade e/ou masculinidade.
Neste sentido, se aponta o comportamento das travestis e transmulheres
que, no processo de vivenciar sua feminilidade e demonstrar através de
movimentos, trejeitos e vestimentas a sua identidade de gênero4, acabam por
questionar a fragilidade de se fixar o homem e a mulher como provenientes dos
machos e das fêmeas, respectivamente. Compreende-se, dessa forma, que estes,
como indivíduos, de forma particular, vivenciam uma construção identitária
reformuladora, no sentido de desfazer as preconcepções culturalmente
estabelecidas para os sexos, na medida em que constituem a sua identidade em
dissonância com seu sexo biológico.
A autora Judith Butler (2003), desconstrói as percepções de que as
identidades, de homens e mulheres, se fixam em formatos estanques baseados
em determinismos biológicos. A Teoria Queer nasce de uma busca por
ressignificar a expressão “Queer”, um termo coloquialmente utilizado para
ofender e insultar. Cabe citar o que Bento (2008) chama de heteroterrorismo e
consiste na sistemática proibição de determinados comportamentos em meios
como, escola, família, igreja, amigos, etc., contra aqueles que não performatizam
as ações condizentes com às expectativas das instituições sociais.
Sendo assim, deve se ter claro que a travesti não é uma imitação da
mulher, na verdade, ela demonstra a feminilização como um processo artificial,
enquanto destaca a importância dos processos desconstrutivos, buscados pela
4. “Por identidade de gênero, entende-se, a profunda e sentida experiência interna e individual do gênero de cada
pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode
envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e
outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos” (CLAM, 2007).

Ebook IV SIGESEX 471


Teoria Queer5 e pelo feminismo, a fim de se compreender que não existe um
único fator responsável pela noção de mulher ou de homem.

2- A transfobia – os números não mentem

Conforme dados publicados no último relatório elaborado pelo


Grupo Gay da Bahia 420 LGBT’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais),
morreram no Brasil em 2018, vítimas da homolesbotransfobia, um total de
320 homicídios (76%) e 100 suicídios (24%). O elevado número de mortes,
reflete claramente a falta de legislação específica, que puna crimes de ódio
contra pessoas LGBTQI.
Ganha destaque no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta
de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, onde o PPS (Partido
Popular Socialista) defende na Corte, diante da omissão do Congresso
Nacional, ao não regulamentar o crime de homofobia e transfobia, que a
minoria LGBTQI deve ser incluída no conceito de “raça social”, por analogia,
e os agressores, punidos na forma do crime de racismo, cuja conduta é
inafiançável e imprescritível.
Já a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República elaborou
o quinto relatório sobre violência LGBTfóbica no Brasil em 2016, apontando
para um panorama de violência LGBTfóbica sistemática no país, pois no ano
foram registradas um total de 2.964 violações de direitos humanos de caráter
LGBTfóbico. Tal relatório traz os locais de violação, tipos de discriminação,
dados hemerográficos e ainda perfis das vítimas, das violações e dos violadores.
Deve-se levar em conta, que tais dados são coletados com base nas denúncias
recebidas através do disque 100, portanto, não conseguem demostrar mais do que
uma pequena parcela dos homicídios cometidos contra travestis e transexuais.
Somando as estatísticas, o Brasil, é hoje, o país onde mais se assassinam
pessoas trans no mundo, segundo o GGB (2018):

A cada 20 horas um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida


vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mun-
dial de crimes contra as minorias sexuais. Segundo agências internacio-
nais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e
transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e África onde há
5. “A Teoria queer é o estudo “daqueles conhecimentos e daquelas práticas sociais que organizam a ‘sociedade’ como
um todo, sexualizando heterossexualizando ou homossexualizando – corpos, desejos atos, identidades, relações so-
ciais, conhecimentos, cultura e instituições sociais” (SEIDMAN, 1996).

472 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


pena de morte contra os LGBT. E o mais preocupante é que tais mortes
cresceram assustadoramente nas últimas duas décadas: de 130 homicí-
dios em 2000, saltou para 260 em 2010, 445 mortes em 2017 e 420 no
ano passado. Durante os governos de FHC mataram-se em média 127
LGBT por ano; na presidência de Lula 163 e no governo Dilma 296,
sendo que nos dois anos e 4 meses de Temer, foram documentadas em
média 407 mortes por ano. Enquanto nos Estados Unidos, com 330
milhões, mataram-se no ano passado 28 transexuais, no Brasil, com 208
milhões de habitantes registraram-se 164 mortes: o risco de uma trans
brasileira ser assassinada é 9 vezes maior do que as americanas.

Analisando os dados, em termos relativos, podemos constatar, que as


pessoas trans, são pertencentes a categoria sexológica mais vulnerável a mortes
violentas, sendo contabilizado a morte de 81 travestis, 72 mulheres transexuais,
6 homens trans, 2 drag queens, 2 pessoas não-binárias e 1 transformista. O
próprio relatório compreende o risco do assassinato de uma pessoa trans, em
comparação com um gay, sendo de 17 vezes mais provável. E mesmo quando
os criminosos são presos, esses logo são colocados em liberdade, é o que ocorre
no Brasil, devido a um círculo vicioso de exclusão, em todos os poderes.

3- Travesti – do preconceito à violência

Travestis e transexuais são pessoas que desafiam as convenções e fogem


aos padrões impostos pelo binarismo de gênero, processo esse desestabilizador
das normas de gênero. Compreende-se como resposta da sociedade
heteronormativista6, em defesa de tais normas, o uso da violência simbólica e
muitas vezes da violência física extrema.
Pode-se dessa forma, conceituar transfobia como forma de discriminação
e violência direcionada, contra pessoas travestis e transexuais (trans),
culminando em um tratamento desigual destinado às pessoas pertencentes a
este grupo, com base em preconceitos e exclusões. É possível inferir a transfobia
como originada no ódio e não limitada a uma forma única de violência.
A ausência de leis, em quaisquer esferas, que protejam a população
LGBTQI, como já comentado, é um dos principais obstáculos para o combate
à homofobia e à transfobia, bem como a violência institucional, tratada
6. “A heteronormatividade é a matriz heterossexual imposta aos indivíduos da sociedade, e não é natural, mas sim ‘ima-
ginária’ – já que nem sempre acontece como nos casos de homossexualidade e de transgêneros” (BUTLER, 2003).

Ebook IV SIGESEX 473


nos relatórios citados, decorrente da ausência de proteção social e jurídica
às pessoas trans, se traduz em falta de acesso a serviços públicos, porque o
Estado não reconhece sua identidade declarada, negando-lhes inúmeros
direitos e fazendo com que vivam completamente à margem da sociedade,
com acesso restrito a educação, saúde, trabalho, e os mais elementares direitos
fundamentais e sociais.
Podemos inclusive observar o estranho processo de descaracterização
de personalidade de todos aqueles que violam a norma binária heterossexual,
transformando estes, aos olhos da sociedade, em indivíduos perversos e
doentes, como no caso da propositura de uma “Cura Gay”. Considera-se a
hipótese de que essa exclusão, para uma zona de sistematização da violência
e afastamento dos direitos, trata-se do fator fundamental para gerar, em
determinados sujeitos, uma forma de ódio persistente e discriminatória do
qual decorre a violência observada nos dados estatísticos.
Jesus (2014) traz a transfobia, quando presente no cotidiano,
caracterizada por desatendimento de direitos fundamentais (diferentes
organizações não permitem utilizar nomes sociais e adequar registros civis
na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido à educação,
ao mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de
violências variadas, de ameaças a agressões e homicídios.
Destaca-se a observação de Carrara et al. (2006), que estabelece os atos de
violência perpetrados contra indivíduos de gênero, contrastante ao sexo biológico
como proporcionalmente maiores que os cometidos em razão da orientação sexual.
Garcia (2007) trata a violência contra travestis como sistêmica e de
conjuntura diversificada, estando presente em diversos momentos e de diferentes
formas, estabelecendo sob um manto de marginalização social, afetando todas
as vivências, do nascimento a vida adulta. Neste sentido se faz compreender o
contexto de violência e marginalidade, aos quais as travestis são forçadamente
relegadas, como fator que as levam a ser naturalmente desacreditadas e suspeitas,
pela sociedade, agravando um ciclo vicioso de violência e silêncio.

4- Dandara – quem matou? A transfobia

O crime contra Dandara aconteceu no dia 15 de fevereiro de 2017, em


Fortaleza (CE), e repercutiu nas redes sociais após o compartilhamento de um
vídeo que mostra a agressão sofrida pela mesma, por um grupo, no meio da rua.
O vídeo mostra uma pequena parte da violência, tendo duração de 1 minuto e

474 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


20 segundos, terminando com Dandara sendo colocada em um carrinho de mão
e retirada do local, após sofrer inúmeras agressões, como chutes, chineladas e
pedaços de madeira, compondo dessa forma um lastimável episódio de tortura.
O vídeo, foi analisado pela Perícia Forense do Ceará (Pefoce), e
demonstrou que Dandara teria sido submetida a pelo menos três sessões de
tortura. Quando um homem inicia uma das filmagens, com duração de 48
segundos, Dandara se encontra sozinha, já bastante machucada e sangrando.
Ela está sentada numa área cimentada do calçamento e com uma camisa
amarela na mão, usada para enxugar o sangue da testa, nariz, boca e rosto.
Porem há sangue no chão, ao seu lado direito, e em uma pedra de calçamento
atrás da mesma. No vídeo ainda é possível escutar gritos, que incentivam uma
nova sessão de espancamento, levando Dandara a pedir para não apanhar mais
e clamar pela presença da mãe. Pouco depois das torturas, ela é colocada em
um carrinho de mão, e morta a tiros. Destaco fala proferida no Congresso
Nacional por Francisca Ferreira de Vasconcelos, mãe de Dandara, ″Meu filho
morreu por transfobia e também por negligência da polícia. O pior marginal
não merece morrer do jeito que meu filho morreu”.
É clara a inexistência na legislação brasileira da tipificação (previsão)
do crime de homofobia e transfobia, razão pela qual apenas seis deles foram
condenados por homicídio qualificado por motivo torpe (razão pela qual a
crueldade do crime aconteceu), de forma cruel e sem chance de defesa da vítima e
após dois anos ocorridos os fatos, dois agressores ainda seguem foragidos. Do total
de acusados, quatro eram menores de idade e hoje estão em reclusão, cumprindo
medidas socioeducativas. Vale ainda ressaltar, a grande repercussão do caso como
fator preponderante para a punição dos culpados, pois diversos outros crimes
semelhantes a esse, são ignorados, não divulgados, e os assassinos seguem impunes.
Depois do caso Dandara, se deve refletir acerca de como a intolerância
extrema e fundada na percepção, de alguns, de que todos devem agir conforme
as normas heteronormativas, acaba por submeter diversas pessoas a uma zona
de violência, que termina, muitas vezes, em morte.

Considerações finais

A sociedade, em especial os aplicadores do Direito, devem garantir a


efetivação dos direitos fundamentais, com base nos direitos inerentes ao ser
humano e fundamentados nos princípios constitucionais, a fim de assegurar

Ebook IV SIGESEX 475


a todos, concretamente e sem exceção, o gozo dos direitos plenos advindo de
um Estado realmente plural e livre de preconceitos, razão pela qual, deve-se
primar pela influência dos direitos fundamentais na resolução das questões
envolvendo a violação de direitos das pessoas trans e travestis.
Conforme foi exposto, a identidade dos indivíduos não baseia-se e não
deve se basear, na imposição de fatores biologicamente determinados, mas
sim deve surgir através de construções individuais do feminino e masculino.
A transexualidade e a travestilidade devem ser concebidas como construções
identitárias que, ao serem colocadas frente as imposições biológicas,
demostram muito das questões que perfazem o gênero, nesse sentido as travestis
rompem com uma relação à muito estabelecida, sexo/gênero/sexualidade, em
decorrência desse comportamento, passam a ocupar o status do perverso, onde
ficam relegadas a uma situação de complexa e sistêmica violência.
Diante de todo o exposto, o presente estudo demonstrou, que no Estado
Democrático de Direito, é indispensável superar a visão preconceituosa,
adotada por muitos, de diversidade sexual e de gênero como um misto de
pecado, doença e crime, que transforma as pessoas trans nas mais atingidas
pelas complexas lógicas de intolerância, preconceito e discriminação. Romper
com essa lógica impediria a crescente onda de violência direcionada aos
LGBTQI, e como preconizado nos princípios da nossa Constituição de 1988,
tal grupo teria resguardado, seu direito à vida e à dignidade.

Referências

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476 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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SEIDMAN, Steven. Queer Theory/Sociology. Malden: Blackwell, 1996.

Ebook IV SIGESEX 477


Relações de poder entre os gêneros: raízes
da violência doméstica e familiar contra
mulheres
Power relationships between gender: roots of
domestic and family violence against women
Michelle Moraes Santos1
Luis Antonio Bitante Fernandes2

RESUMO: O trabalho aqui apresentado partiu da intencionalidade de


verificar a operacionalidade do poder nas relações conjugais entre homens e
mulheres em crimes de feminicídio, lesão corporal, ameaça e estupro ocorridos
no âmbito doméstico. Para alcançar este objetivo, mapeamos as denúncias
oferecidas pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso/Comarca de
Várzea Grande-MT no período de janeiro a dezembro de 2017.
PALAVRAS-CHAVE: Violência Doméstica, Gênero, Poder

ABSTRACT: The work presented here was based on the intentionality of verifying
the operability of power in the marital relations between men and women in crimes of
feminicide, corporal injury, threat and rape occurring in the domestic sphere. To reach this
goal, we mapped the denunciations offered by the Public Ministry of the State of Mato
Grosso/Comarca de Várzea Grande-MT from January to December 2017.
KEYWORDS: Domestic Violence, Gender, Power

1- Operacionalização do poder nas relações afetivas

O cronômetro da violência contra as mulheres no Brasil expõe números


alarmantes, só em Mato Grosso, de acordo com dados estatísticos fornecidos
pela Secretaria de Estado e Segurança Pública do Estado no primeiro semestre
de 2017 foram registradas mais de 22.000 ocorrências de crimes tipificados
1. Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Mato Grosso. Assistente Social no Ministério Público do
Estado de Mato Grosso desde 2016. Correio eletrônico: as.mms@hotmail.com. Telefone: 98107-4366.
2. Professor no Programa Pós-Graduação em Sociologia da UFMT. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação Uni-
versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Unesp/Araraquara. Correio eletrônico: bitante67@hotmail.
com. Telefone: (65) 3615-8122. www.ufmt.br/ufmt/unidade/ppgsufmt.

478 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


pelo Código Penal e pela Lei 11.340/06, envolvendo vítimas femininas,
perpetradas em sua maioria por homens que possui/possuíam algum grau de
parentesco ou proximidade, destacando-se as seguintes naturezas: ameaça,
lesão corporal, crimes contra a honra, vias de fato, feminicídio (tentado ou
consumado), estupro e assédio sexual. Ocupamos a posição 11ª do ranking
com taxa de 5,8 de homicídio de mulheres/por 100 mil, conforme o Mapa da
Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil.
As lutas feministas3 denunciando esse sistema de dominação-opressão-
exploração do corpo feminino, provocaram transformações na construção
teórica de gênero e sexo. Scavone (2008) descreve o movimento de ruptura de
dicotomias indivíduo/sociedade, particular/universal, natureza/cultura, mente/
corpo, realizado por autores das Ciências Sociais, como Norbert Elias, Pierre
Bourdieu, Anthony Giddens e Bruno Latour, os quais ultrapassaram paradigmas
e abriram espaço para abordagens não totalizantes. Momento fértil que
culminou em uma “eclosão” dos estudos de gênero, mais conhecidos nessa época
pelas pesquisas “sobre mulheres” e conceito de feminilidade, materialização das
sementes lançadas anteriormente através das produções de Madeleine Guilbert
(1946), Margareth Mead (1948) e Simone de Beauvoir (1949). Desde então
ferveram questionamentos acerca da compreensão das categorias gênero e sexo, se
estes são elementos naturais/reais do ser humano ou construído historicamente,
de que forma operam raça, gênero e classe social e de que maneira o nosso corpo
incorpora e confirmam tais verdades através do tempo.
Fundamentado no potencial de transformação dessas relações e
percebendo que o ser humano não é um objeto passivo, Giddens (2005) aponta
que alguns autores na contramão das teorias que compreendem sexo como
“biologicamente determinado” e gênero como “culturalmente aprendido”,
apostam na teoria construtivista, defendendo que sexo e gênero são ambos
“socialmente construídos”. Seguindo essa lógica, que Scott (1990), inspirada
no pensamento de Michel Foucault, esquematiza uma nova forma de pensar
3. Movimentos caracterizados popularmente por ondas: primeira onda, considerada a primeira ação de mulheres
contra as desigualdades vividas perante os homens, buscavam igualdade jurídica, política e social para as mulheres,
“direitos específicos” na expressão de Alvarez (1997), por exemplo, direito ao voto, acesso à instrução e profissão,
melhores condições de trabalho nas fábricas, direito de se opor a casamentos arranjados, direito ao divórcio, enfim,
poder individual de escolha; segunda onda, com mesclagem de feministas socialistas e radicais, criticaram o movi-
mento anterior por ele ter focado somente no campo de ações individuais, não em prol de uma categoria geral de
mulheres; e a terceira onda, já na fase pós-moderna, ou seja, início do século XXI até os dias atuais, presenciamos
um desconstrucionismo, apoiado em teorias dos sujeitos múltiplos, afinal há “muitas mulheres” e “muitos gêneros”
como aponta Scholz (2011). Entram em cena as mulheres negras, levando a emergência de um feminismo negro ao
denunciar a invisibilidade de suas demandas nas lutas feministas, as quais continuavam a desconsiderar as questões de
raça, colocando-as em posição de maior subalternidade na sociedade em reiterados momentos, vivenciavam a opres-
são pelo machismo, pelo capitalismo e pelo racismo (GIDDENS, 2005, p. 111)

Ebook IV SIGESEX 479


‘gênero: uma categoria analítica útil para a análise histórica’, chamando a
atenção para ir além da mera descrição da apreensão do real sem interpretação –
atitude comum entre a maioria dos historiadores – e formular teorias utilizáveis
que possibilite a explicação das desigualdades persistentes na relação de homens
e mulheres, questionar para transformar: “como é que gênero funciona nas
relações sociais humanas? Como é que gênero dá sentido à organização e à
percepção do conhecimento histórico?” (SCOTT, 1990, p. 7).
Em sua análise, a autora esclarece que o termo gênero passou a ser
utilizado para compreender as informações sobre mulheres e sobre homens,
rejeitando explicações biológicas, uma maneira de abordar as construções
sociais dos sexos, a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis
próprios aos homens e às mulheres. Todavia o termo não consegue esclarecer
os porquês dessa construção, seu funcionamento e como mudar paradigmas.
É nessa perspectiva, que Raewyn Connell teoriza gênero muito além
de performatividade proposta por Judith Butler, não que essa análise esteja
incorreta, mas que os países colonizados vivenciaram outras experiências que
geraram construções distintas, perpassando por questões de raça e classe social.
Portanto aceitar essa teoria e ‘aplicar’ no Brasil, sem levar em consideração
todo o arcabouço histórico, político e social não seria fidedigna a análise, desta
forma torna-se urgente descolonizar o método.
A abordagem que a autora se propõe, é olhar o processo social como
Ontoformativo, ou seja, as “estruturas sociais estão sempre em processo de
construção, contradição e transformação. […] seu poder determinador não
deriva de uma mágica operada por sistemas, mas precisamente, das dinâmicas
históricas nas quais estão envolvidas” (CONNELL, 2016, p. 49). Partindo
desse pressuposto, é inescusável problematizar a interferência da colonialidade
na construção de gênero no Brasil, para compreender as raízes da violência
doméstica e familiar, e as “continuidades históricas no poder global entre a era
colonial e o presente” (CONNELL, 2016, p. 42)
Nos livros de história o discurso de ‘descobrimento do Brasil’ é um
eufemismo, nossas terras foram invadidas para exploração dos recursos
naturais (pau-brasil, ouro e diamantes) e na oportunidade, também os corpos
daqueles que aqui habitavam: índios e negros escravizados advindos da África.
Nesse processo foi utilizado muita força bruta com o genocídio de populações
inteiras, mas inclusive “esforço cultural e organizacional dos colonizadores e
respostas ativas dos colonizados” (CONNELL, 2016, p. 32). O domínio do
corpo das mulheres está sedimentado na formação sociocultural brasileira, a

480 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


miscigenação não foi cordial, pelo contrário, meninas – índias e posteriormente
negras – foram forçadas a manter relações sexuais, foram estupradas. A
masculinidade hegemônica era marcada pelo menino branco que aprendia a
ser cruel com os animais, logo também com os “criados”; pelo patriarca que
oprimia a mulher enquanto objeto de reprodução, de satisfação sexual e mão de
obra barata, legado este que explica os diferentes tipos de violência doméstica e
familiar contra a mulher e o poder do macho.
Sem dúvida, se construiu no Brasil uma história de contínuas
internalizações e incorporações da supremacia masculina, em razão dos recursos
de poder se localizarem majoritariamente sob as mãos dos homens: produção
de relações no núcleo familiar (responsabilização de meninas/mulheres pelos
cuidados da família e do espaço doméstico mantendo uma divisão desigual entre
homens e mulheres); produção de relações no mercado de trabalho (exclusão de
mulheres do espaço público e posteriormente exclusão de mulheres de alguns
tipos de trabalho, remuneração inferior à dos homens na mesma função, assédio
moral/sexual); produção da sexualidade (legitimação de dois gêneros: masculino
e feminino e de uma orientação sexual: heterossexual; controle do corpo
feminino através da socialização de mulheres para manutenção da virgindade,
castidade, naturalização da maternidade, estereótipos corporais femininos);
produção da violência masculina (socialização de meninos para expressar sua
agressividade através de agressão e os corpos de mulheres são seus maiores alvos).
Através do suporte teórico-metodológico de Laurence Bardin (2016,
p. 37), utilizou-se a técnica análise de conteúdo, que “caracteriza no conjunto
de técnicas de análise das comunicações”. Desta forma realizou-se uma leitura
flutuante dos documentos disponíveis na 6ª Promotoria de Justiça Criminal
da Comarca de Várzea Grande-MT, sendo este o primeiro contato com as
diferentes amostras de informações a serem analisadas. Considerando o
objetivo de verificar a operacionalização do poder nas relações conjugais entre
homens e mulheres, escolheu-se como corpus (documentos a serem submetidos
aos procedimentos analíticos), as Denúncias de violência doméstica e familiar
contra mulheres oferecidas no período de janeiro a dezembro de 2017, as
quais totalizavam 395. Concluída a pré-análise, iniciou-se as operações de
categorização, agrupando dados considerando a parte comum existente entre
eles, neste caso, a natureza criminal, sendo escolhido 20% dos seguintes atos
de violência: feminicídio (5), lesão corporal (38), ameaça (25) e estupro
(2), totalizando 70 documentos. Estas manifestações de Denúncias serão
apresentadas, a seguir, através de extratos e serão denominadas de “cenas”.

Ebook IV SIGESEX 481


CENAS 1 (ameaça): “a vítima entrou em contato telefônico com
o indiciado, com objetivo de tratar assuntos pertinentes ao término do
relacionamento. Insatisfeito com tal postura, o indiciado ameaçou a vítima
afirmando que “iria encher a cara da vítima de bala”, acrescentando que “bater
em mulher não compensa, o que compensa é matar”.
CENA 2 (lesão corporal): “o casal havia rompido o relacionamento e
reatado há aproximadamente 03 meses antes dos fatos, contudo, a convivência
permaneceu conturbada, razão pela qual a vítima pediu que o indiciado fosse
embora da residência, o que não foi aceito por ele. Na data supramencionada,
a mulher foi se deitar, mas foi seguida pelo indiciado, que se deitou ao seu lado
e a abraçou, momento em que ela pediu que ele não a tocasse e X ficou furioso
passando a agredir fisicamente a ofendida com um soco no rosto, bem como a
empurrou da cama, sendo que assim que ela caiu, ele se levantou e começou a
chutar e pisar em Y”.
CENA 3 (estupro): “[…] que na data de 10/04/2016, por volta das
06:00horas, X acordou nervoso e por motivo de ciúme a agrediu com chutes,
tapas e enforcões; que também foi agredida sexualmente, sendo que X colocou
um rolo de amassar massas em seu ânus, colocando por diversas vezes a mão
toda, ocasionando muitas dores; que X a obrigou a manter relação sexual com
o mesmo a base de ameaça de matá-la e seus familiares”; que o acusado com
tom irônico dizia que a declarante gostava; que a declarante merecia; que a
declarante queria”.
CENA 4 (feminicídio tentado): “[…] que o acusado sempre falava em
matar a declarante, se a declarante separasse dele […] que na sexta feira tinha
falado que iria se separar do acusado […] no domingo por volta das 02:00horas,
ao chegarem em casa, e que a declarante diz que X estava bêbado; que ao
entrar na sua casa, passando pela cozinha e entrando na sala, X a agrediu pelas
costas com várias facadas; que alega a declarante que ao sentir os golpes saiu
correndo para fora, ao chegar na área do fundo, X a puxou pelo cabelo, vindo a
declarante a cair no chão; que caiu de “barriga para cima” e X sentou em cima
da mesma e continuou a desferir mais facadas”.
CENA 5 (feminicídio consumado): o indiciado passou a ter
relacionamento extraconjugal com a indiciada. Após descobrir tal fato, a
vítima rompeu o relacionamento com o indiciado X, o qual, então, passou a
conviver maritalmente com Y. Entretanto, após breve convivência, o indiciado
X terminou o relacionamento com Y, vindo a restabelecer a relação conjugal
com a vítima. Todavia, o indiciado X continuou a manter contato com a

482 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


indiciada Y, sendo que em data não precisa nos autos, mas anterior aos fatos,
ambos se encontraram e arquitetaram a morte da vítima.
Percebemos que em 55% das denúncias há presença de mais de um tipo
de violência, por exemplo: ameaça concomitante com violências psicológicas,
lesão corporal concomitante com ameaças e até lesões anteriores com ou sem
registro policial, estupro com ameaça e nos processos de feminicídio constam
ameaças e lesões corporais anteriores. Verifica-se que para chegar em violências
mais graves passamos por violências consideradas “leves”, portanto, o que se
constatou é que a agressão se inicia com violências psicológicas, seguidas por
ameaças que, posteriormente, se concretizam através de lesões, lesões estas que
podem levar à morte.
Há na violência doméstica e familiar contra mulheres uma evolução da
tensão, que, em alguns casos, conseguem ser rompidos através da denúncia
– neste caso, alguns homens se sentem intimidados com a possibilidade de
responder um processo penal ou de vir a ser recluso por conta do ato violento,
no entanto, em outras situações, mesmo com o registro, as mulheres acabam
sofrendo novas violências. Em 52% das denúncias de ameaça, o indiciado
possuía registro anterior ou posterior de violência com a mesma mulher ou
com outra mulher e, em 60% das denúncias de feminicídio, o indiciado possuía
registro anterior de violência com a mesma mulher.
Nos casos de ameaça, os dados mostram que 68% da violência ocorreu
devido a tomada de decisão das mulheres em romper o vínculo afetivo,
principalmente após perceber traços de agressividade e possessividade. Saffioti
(1987) discorre que existe um processo de construção social da supremacia
masculina aos custos de um processo de construção social da subordinação
feminina e quando mulheres deixam de exercer o papel que lhes são
condicionadas, o macho exerce o seu papel de dominação, de recolocá-las no
seu devido lugar, o lugar de objeto, de propriedade do masculino.
Percebemos que nos extratos de lesão corporal, estupro e feminicídio
acima descritos também há presença da ideia de posse, o que Neto correlaciona
à herança de uma colonização patriarcal, tendo em vista a base da nossa
sociedade ser as normas da Igreja Católica, na qual

[...] o homem era o soberano pelo pecado original cometido pela mu-
lher [...], por conseguinte, a sociedade deveria ser mantida e governada
tendo o homem como pilastra. Este por sua vez, deveria ditar as normas
a serem obedecidas por seus vassalos, figura a qual acabava por iden-

Ebook IV SIGESEX 483


tificar a mulher, mesmo que sua esposa, filha ou membro da família.
(2018, p. 89)

Há como Butler (2003) apontou, uma produção de parâmetros de


pessoas, uma construção social, cultural, política e histórica de masculinidades
e feminilidades que condicionam a manifestação da identidade de acordo
com as normas vigentes. Fabricam ou tentam insistentemente fabricar, um
determinado tipo de homem: heterossexual, autoritário, trabalhador, chefe de
família, forte, resistente físico, racional, agressivo; e um determinado tipo de
mulher: heterossexual, mãe, submissa, recatada, cuidadora do lar e da família,
afetuosa, emocional, frágil. Todo um aparato estrutural e ideológico é montado
nos bastidores, para que a peça seja perfeita, ou seja, para que cada um ocupe
o seu lugar e desenvolva o seu papel. Formulam ideias, definem moralidades,
afirmam a hegemonia, definem na mão de quem estará os recursos de poder, “as
pessoas que administram as corporações, os departamentos governamentais e
as universidades são homens” (CONNELL, 1987, p. 107.), são eles, mesmo
em minoria – comparado ao número muito maior de população de mulheres –
que organizam as regras do jogo, “tem o poder de produzir condutas e lugares
sociais” (BORDIEU, 2003 apud CANUNTO, 2018, p. 79). Todo esse poder
é carregado de privilégios e desigualdades que geram violência e opressão.
Quando a agressão acontece em razão da negativa da companheira em
manter relações sexuais, em detrimento da namorada não suportar uma relação
tóxica e decidir pelo rompimento, pela esposa se recusar a finalizar o vínculo
de amizade com outro homem, ou por não concordar com a restrição do seu
direito de ir e vir, estamos falando de 94% de casos de violência doméstica
motivadas pela reprodução de uma masculinidade dominante, ou seja,
predomina nos casos analisados a agressão - nas formas mais sutis (psicológica)
até as mais fatais (feminicídio) - enquanto instrumento do exercício do poder
masculino. É o poder do macho, enquanto masculinidade hegemônica, que
está em jogo, “os homens temem ser considerados menos machos se forem
flexíveis, pacíficos e generosos [...] os estereótipos têm, realmente, a força do
molde” (SAFFIOTI, 1987, p. 39).
Neste sentido, concordamos com as teorias de Connell (2016), quando a
autora esclarece que políticas públicas de igualdade de gênero são, por exemplo,
uma tentativa de equilibrar as relações de poder, visto que as agências estatais
possuem poder legal e financeiro em relação à sociedade. Ocorre que essas
organizações são generificadas, ou seja, possuem seu regime próprio de gênero,

484 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


e desta forma afetam as relações sociais, bem como são afetadas pelas mudanças
de costumes. Seguindo essa linha de raciocínio as ações do Estado, enquanto
detentor dos maiores recursos de poder, são baseadas nos costumes e repercussões
da mídia, que se transformam em leis e provocam mudanças na vida das pessoas.
Isso é possível observar, por exemplo, no Direito Penal. Montenegro (2015)
resgata em seu livro a questão da honra, que era restrita ao gênero masculino
e determinado pelo comportamento amoroso e sexual das mulheres, seja na
condição de esposa ou de filha, e pelo status social que possuía. A história nos
mostra que no Brasil, desde a Colônia até o Império, o Direito Penal categorizava
as mulheres que poderiam protagonizar o papel de vítima nos crimes contra os
costumes e que merecia proteção: a mulher honesta. Tanto que quando uma
mulher cometia adultério (desonesta), seu marido poderia licitamente ceifar
tanto sua vida, quanto a do adúltero, salvo se o adúltero for “Fidalgo, ou nosso
desembargador, ou pessoa de maior qualidade” (Montenegro 2015, p. 40).
O poder do Estado no Brasil fez toda a diferença nesse processo de
equilíbrio das relações de poder entre os sexos quando em 1827 houve a
legislação que permitiu meninas frequentar escolas para além da escola
primária; em 1879 um decreto de lei permitiu que mulheres pudessem cursar
o ensino superior, assim como já acontecia com os homens; em 1934 o voto
feminino passou a ser regulamentado no país, para todas as mulheres; em
1962 a Lei nº 4.212/1962 permitiu que mulheres casadas não precisassem da
autorização do marido para trabalhar e posteriormente direito à herança, à
guarda dos filhos em caso de separação; em 1977 a Lei nº 6.515 foi sancionada
e iniciou uma discussão sobre a separação; em 1988 aprova a Constituição
Federal garantindo igualdade jurídica entre homens e mulheres; em 2006 é
criada a Lei 11.340 para combater a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Por mais que nesses momentos históricos houvesse a predominância
de posicionamentos políticos de privilégios aos homens, em razão dos
interesses patriarcais, essas legislações representaram conquistas significativas
da oposição ao poder que dominavam, exploravam e oprimiam mulheres.

Considerações finais

As alterações recentes nos papéis de gênero tem causado em


determinados homens – os machistas, os conservadores em relação a estrutura
familiar e os que possuem uma visão estereotipada dos gêneros – receio de

Ebook IV SIGESEX 485


perder os recursos de poder que durante séculos experienciaram. São homens
que não levam desaforo pra casa, que desejam ter a última palavra nas relações
conjugais, que acreditam na função da mulher prioritariamente para a família,
que limitam ou cerceiam o poder de decisão das mulheres. Esses homens não
conseguem lidar com as próprias emoções pelo próprio sistema social não
lhes permitir a expressão saudável delas, geralmente são educados em famílias
também conservadoras, baseadas em uma ordem patriarcal e que resolvem os
conflitos através do exercício da violência.
Diminuir a incidência de violência contra mulheres no âmbito
doméstico requer estratégias criativas, considerando as particularidades de cada
localidade. Em Várzea Grande tomou-se o caminho da interinstitucionalidade,
compreendendo que instituições isoladas cumprindo suas atribuições não
conseguiriam dar respostas resolutivas para a sociedade, principalmente para
as mulheres que recorrem ao poder público para readquirir sua dignidade e
viver de forma pacífica.
Portanto amparados na estratégia lançada pela Secretaria Nacional de
Políticas para Mulheres os/as profissionais da rede de atendimento de Várzea
Grande-MT assinaram em março/2018 um Protocolo de Intenções para
efetivação da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra
mulheres e em março/2019 a assinatura de todas as instituições envolvidas
de um Termo de Cooperação definindo responsabilidades para enfrentar
o problema. E dentro de um ano já observamos resultados: implantação do
Serviço de Reflexão para Homens, implantação da Patrulha Maria da Penha,
implantação de ficha de avaliação de risco na Delegacia Especializada da
Mulher aplicada no momento do registro da violência, 134 atores da rede de
serviços da Comarca de Várzea Grande-MT qualificados profissionalmente
sobre as raízes da violência contra mulheres, e andamento da pesquisa
acadêmica “Violência contra a mulher: significados, interprofissionalidade e
ações em Rede de Enfrentamento”.

Referências

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In: Araújo A. (org) Trabalho, cultura e cidadania. São Paulo: Scrita, 1997, p.
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Ebook IV SIGESEX 487


Uma reflexão sobre mulheres em situação
de subalternidade a partir de “As tias” e
“Como te extraño, Clara”
A reflection on women in situation of
subalternity from “As tias” and “Como te
extraño, Clara”
Roberto Carlos Correia e Silva1
Luiz Felipe Rodrigues2

RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão sobre situações subalternas


que vivem muitas mulheres. Para tal, como corpus temos dois contos que
compõem a obra Amora de Natalia Polesso. De mães apaixonadas por outras
mulheres à senhoras que amam senhoras, a partir de recortes literários,
conheceremos diferentes mulheres-personagens. Todas elas possuem uma
realidade subalterna que vem à tona, as impulsionando, ou não, a uma reação.
A discussão será ancorada em autoras como Beverley, Butler e Spivak.
PALAVRAS-CHAVE: Mulheres; Subalternidade; Literatura.

ABSTRACT: This article proposes a reflection on the subaltern situation that many
women live. For that, as a corpus we have two stories that make up the Amora work by Natalia
Polesso. From mothers in love with another women to ladies who love ladies, from literary
cutouts, we will visit the universes of different women-characters. They all have a subaltern
reality that comes to the fore, propelling them, or not, to a reaction. The discussion will be
anchored in such authors as Beverley, Butler, and Spivak.
KEYWORDS: Women; Subalternity; Literature.

Introdução

Os contos aqui explorados: “As tias” e “Como te extraño, Clara” são


textos que compõem a obra Amora, livro publicado pela gaúcha Natalia Borges
1. Mestrando em Letras – Literatura e Práticas Culturais pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
E-mail: robertoccorreia@hotmail.com
2. Doutorando em Geografia – Espaço e Reprodução Social: práticas e representações pela Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD). E-mail: luiz.felipe.r@outlook.com

488 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Polesso em 2015 e, vencedor do prêmio Jabuti no ano de 2016. Antes de
adentrarmos ao mundo dessas mulheres singulares, se faz necessário pensarmos
brevemente em algumas questões que nos auxiliaram a compreender as
realidades aqui expostas, como por exemplo, o que é a subalternidade.
As duas narrativas retratam questões que permeiam as relações de
gênero. Em “As tias” temos o retrato da homossexualidade feminina na terceira
idade; em “Como te extraño, Clara” encontramos uma mulher mãe em um
relacionamento heterossexual e apaixonada por outra mulher. Independente
da leitura que se faça, somos impulsionados a pelo menos enxergar as diferentes
realidades e as (a)diversidades que nos cercam.

A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educa-


ção, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipa-
mento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou
os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações
da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vi-
vermos dialeticamente os problemas (CANDIDO, p. 113, 1995).

Como destaca Antonio Candido a literatura se apresenta como


importante ferramenta para impulsionar atravessamentos e escancarar
realidades que por vezes são invisibilizadas em nossas sociedades.

1- Estar subalterno

Subalterno deriva do latim “subalternu”, grosso modo diz respeito


à relação de dependência e subordinação de uma pessoa sobre outra, uma
condição em que o sujeito não tem espaço de fala. De acordo com Beverley
(2004, p.24), o subalterno é uma lacuna no saber, que subverte ou derrota a
suposição de conhecê-lo, sendo não uma categoria ontológica, mas que designa
uma particularidade subordinada, o subalterno possui um referente espacial,
uma forma de territorialidade.

O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como
um item respeitoso nas listas de prioridade global. A representação não
definhou. A mulher intelectual como intelectual tem uma tarefa circuns-
crita que ela não deve rejeitar com um floreio (SPIVAK, 2010, p.126).

Ebook IV SIGESEX 489


Com a fala categórica de Spivak em Pode o subalterno falar?
evidenciamos o intúito deste trabalho que é de agir como um veículo para que
estas subalternidades sejam abordadas. As falas aqui são de um lugar de escuta,
de modo que o “subalterno” não se configura, e nem deve se configurar como
um “objeto”.

2- Ser mulher

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Com esta significativa


colocação de Simone de Beauvoir em O segundo sexo, iniciamos uma
reflexão a respeito do que é “ser mulher”. Já na década de quarenta
Beauvoir nos atenta para a necessidade de se pensar nas “mulheridades”,
para a necessidade de se pensar na pluralidade das mulheres. Butler (2008,
p. 58) ao se apropriar da frase de Beauvoir, acrescenta que mulher é um
termo em processo, um devir, um construir que não se pode dizer com
acerto que tenha uma origem ou fim. Butler (2008, p. 20) também reflete
a categoria gênero, apontando para o fato que não cabe mais pensar na
mulher-feminino de forma estável, naturalizada, essencialista, aponta para
o fato que é preciso refletir sobre as noções de gênero, sexo e sexualidade
e categoricamente diz que se alguém é uma mulher isso certamente não é
tudo que esse alguém é. Ainda de acordo com Butler (2008, p.48), o gênero
é sempre um feito, não sendo nem um substantivo nem um conjunto de
atributos flutuantes.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultu-


ral e de significado num discurso previamente dado (uma concepção
jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção me-
diante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí e o gênero
não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o
meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo
natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à
cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura
(BUTLER, 2008, p. 25).

Discutir gênero vai muito além de debater a construção das identidades


femininas ou masculinas, ou a relação homem/mulher. Pensar relações de
gênero é pensar em relações de poder.

490 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A sexualidade é uma organização específica do poder, do discurso, dos
corpos e da afetividade. Como tal, Foucault compreende que a sexua-
lidade produz o “sexo” como um conceito artificial que efetivamente
amplia e mascara as relações de poder responsáveis por sua gênese (BU-
TLER, 2008, p. 137).

A teorização em torno das relações de gênero está em plena efervescência,


e, neste processo, surgem muitas contribuições, seja reafirmando ou
contrapondo uma teoria. Paul Beatriz Preciado (2012, p. 29) faz instigantes
considerações a respeito da ideia defendida por Butler, ao dizer que o gênero
não se dá se não na materialidade dos corpos, e que este não é simplesmente
performativo, é ao mesmo tempo construído, mas também afetado por pulsões
naturais.
Para se pensar em identidade e relações de gênero é preciso desconstruir,
problematizar, nenhuma identidade é fixada, sendo assim, identidade de
gênero se constrói por meio de (re)formulações.

3- Mulheres-personagens: “As tias”

Tendo brevemente explanado a cerca dos termos necessários para que nos
situemos, adentraremos ao universo dessas peculiares mulheres-personagens.
“As tias” retrata a história de Leci e Alvina, duas mulheres que, após saírem de
um convento, decidem viver juntas.
A história das duas senhoras é narrada por uma sobrinha que relata a
vida pacata das tias que há sessenta anos compartilham uma história, uma
vida repleta de viagens e também julgamentos da família. A tranquilidade do
casal é interrompida quando um acidente vascular cerebral atinge a tia Alvina,
fazendo com que ambas inevitavelmente relembrassem da realidade a qual
faziam parte.

É familiar: dizia a moça da recepção e todos assentiam: primas, irmãs,


sobrinhas. Nessas horas de hospital, sempre aparece alguém. Mas a Leci
não era parente e toda vez que chegava para ficar, a moça da recepção
lhe dizia que já havia um parente no quarto e que para o pernoite paren-
tes tinham preferência. A tia Leci voltava para a casa chorando. Mas o
que a senhora é dela dona Leci? Perguntava a moça da recepção. Amiga,
dizia ela com uma voz de comiseração (POLESSO, 2015, p.189).

Ebook IV SIGESEX 491


4- Diversidade e velhices

O conto “As tias” nos faz refletir a respeito desta realidade pouco
discutida, que é a homossexualidade na velhice:

Tu imagina que além da dor da perda, eu ainda teria que me preocupar


com outras questões, imagina que talvez eu teria de sair da minha casa
porque ela não seria minha? Tu imagina que, se eu morro, a Alvina fica
sem pensão, porque é da minha aposentadoria que a gente vive tam-
bém. Tu imagina tudo isso e pensa que somos duas velhas, e que o que
fazem com velho geralmente é jogar pra lá e pra cá como se fosse sacos
de entulho (POLESSO, 2015, p.192).

“A sociedade moderna não prevê um papel específico ou uma atividade


para os velhos, abandonando-os a uma experiência sem significado” (DEBERT,
1999, p. 71). Ser mulher em uma sociedade predominantemente patriarcal,
certamente não é tarefa fácil. Ser mulher e viver com o estigma de ser lésbica
e idosa, é tarefa triplamente dificultada. De modo que para muitas mulheres
lésbicas a chegada à terceira idade é uma volta compulsória ao armário. Uma
pesquisa realizada na Grã-Bretanha pela ONG Stonewall (2011, online)
constatou que pessoas lésbicas, gays ou bissexuais mais velhas se preocupam
muito com suas condições no futuro, vivem rodeadas pelo medo de viverem
com a discriminação e o abandono.
A sociedade hegemônica atual vê o momento da juventude como ponto
auge da vida, vive-se o hoje se espera o melhor para o agora. De forma que
pouco se pensa no amanhã, pouco se discute políticas para pessoas idosas, para
uma realidade que todas vivenciaram. Se uma sociedade cis, hétero e normativa
pouco pensa a realidade de pessoas idosas que se enquadram neste padrão. O
que se esperar para senhores e senhoras LGBTs3?. Infelizmente o que se vê é
uma realidade de exclusão radical, uma realidade de inexistências.
É preciso subverter ideias arcaicas de que o momento da velhice é um
momento de perdas, de decadência, ou de estagnação. A velhice é um momento
único, e é uma das únicas certezas da vida. A velhice tem suas singularidades,
como cada fase da vida, pode ser um momento de “novas conquistas, guiadas
pela busca do prazer e da satisfação social” (DEBERT, 1999, p. 14). Como
3. LGBT é a sigla utilizada pelos movimentos sociais desde o início da década de 90 para representar a comunidade
de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e transexuais.

492 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


destaca Goldenberg, a velhice para muitas mulheres também significa
libertação, um olhar para si:

No caso feminino, há uma ruptura que gosto de chamar de “clique”,


uma verdadeira revolução em suas vidas: elas deixam de se concentrar
no cuidado dos outros e passam a cuidar mais de si mesmas. O presente
se torna muito melhor do que o passado, pois elas se sentem livres pela
primeira vez na vida (GOLDENBERG, 2013, p. 43).

É tempo de se olhar por diferentes perspectivas, assim como velhice


passou a ser conhecida como terceira idade, devemos passar a pensar em
diversidade, em singularidade, pensar na idosa lésbica, na idosa trans, na idosa
enquanto mulher, em “velhices” no plural.

5- Mulheres-personagens: “Como te extraño, Clara”

Tão peculiar quanto o conto “As tias”, em “Como te extraño, Clara” nos
deparamos com a vida de Fernanda, uma mulher, casada, mãe e apaixonada por
uma mulher mais nova chamada Clara. Ambas vivem uma situação conflituosa
que exige uma tomada de atitude:

Clara disse que amava Fernanda, e Fernanda respondeu: -Eu também te


amo, Clara. -Então, larga o teu marido e fica comigo. Fernanda fechou
os olhos e deixou que o pulmão se enchesse. Enquanto o ar mexia nos
pensamentos que se dispunham no seu peito e na sua cabeça, ela tentava
organizar de alguma maneira que fizesse sentido, os últimos eventos da
sua vida. Porém nada parecia querer tomar um lugar próprio, um lugar
onde o peso não fosse o incômodo ou não arrastasse o andar dos demais
lances do destino. Sua vida tinha chegado a um ponto nevrálgico, a um
nó tão enrolado que só se resolveria cortado, desatar não era uma opção
(POLESSO, 2015, p.123).

Neste drama familiar e amoroso, Clara também se encontra em uma


difícil situação, um lugar de subordinação. Tem a ideia de que é a causadora de
todo o conflito que a cerca e pensa que é a responsável pelo desmoronar das
estruturas desta família. Fernanda também sente o peso da culpa, percebe que
é o centro do conflito e sabe que só ela mesma pode acabar com ele:

Ebook IV SIGESEX 493


Não precisa responder. Bobagem minha. Desculpa. Eu sei que não tenho
o direito de te cobrar nada. Fernanda não disse palavra. Apenas sorriu e,
enquanto Clara descia do carro, a beijou. Depois ligou o motor e saiu da
garagem. – Nem vou cobrar a senhora, dona Fernanda, ficou só uns minu-
tinhos aí. Pode sair. – Obrigada, Gentil. Ninguém parecia querer cobrar
qualquer coisa de Fernanda, mesmo assim ela se sentia em débito e se es-
merava em pensar em compensações. (...) Amava Clara. Tinha se apaixo-
nado. Eduardo era apenas a sombra de uma vida que ela teimava em man-
ter. Bem antes de clara houve Luciana e uma grande frustração. Luciana
teve mais medo do que Fernanda e nenhuma das duas nunca falou sobre o
acontecido. Uma vez uma tarde de inverno. Sem mais memórias, sem mais
explicações. Luciana se mudou para outro estado, Fernanda se lamentou
por anos e então apareceu Eduardo (POLESSO, 2015, p.124-125).

6- Cortando nós, desatando medos

A compreensão acerca da idiossincrasia do outro não é uma tarefa


simples, portanto, entender uma identidade que vai contra ao que a sociedade
compreende como “natural”, é ainda mais complexo. Como Fernanda, muitas
pessoas compreendem sua orientação sexual já na fase adulta, após sustentar
uma vida heterossexual, quando já possuem uma estrutura familiar, assim,
um conflito inicialmente interno acaba ficando ainda maior e insustentável
ao envolver terceiros. Neste caso, emancipar-se se torna ainda mais difícil e o
processo de revelar-se é ainda mais doloroso. “(…) e pensei em como é desagradável
ficar presa do lado de fora; e pensei em como talvez seja pior ficar presa do lado
de dentro” (WOOLF, 1985, p. 39). Essa fala é do texto de Virginia Woolf,
mas poderia sem dúvidas ser um pensamento de Fernanda, uma mulher
aparentemente bem sucedida e realizada profissionalmente, mas que ainda
não tem de fato um teto todo seu.
Perceber-se em uma situação subalterna, ter uma percepção concreta de
si e construir/desconstruir uma identidade é um processo muito particular.
A respeito da construção ou percepção de uma identidade, trazemos as
contribuições de Stuart Hall e Erik Ericsson:

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferen-


tes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continu-
amente deslocadas. [...] A identidade plenamente unificada, completa,

494 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, a medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identifi-
car – ao menos temporariamente. (HALL, 2005, p.13).

A formação da identidade emprega um processo de reflexão e obser-


vação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do fun-
cionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz
daquilo que percebe ser a maneira como outros o julgam, em compa-
ração com eles próprios e com a tipologia que é significativa para eles;
enquanto que ele julga a maneira pela qual eles o julgam, à luz do modo
como se percebe a si próprio em comparação com os demais e com os
tipos que se tornaram importantes para ele (ERIKSON, 1976, p. 21).

Ter plena consciência de quem se é e das condições em que se vive já é


uma tarefa dolorosa, assumir uma identidade, uma orientação, conseguir ter
forças para contestar uma realidade e emancipar-se do lugar subalterno é ainda
mais complicado como mostram as duas histórias aqui apresentadas.

7- Traçados finais: Transgredindo o subalterno

Diferentemente de tantas histórias sem um desfecho concreto, em “As


tias” Leci e Alvina conseguem ter consciência de suas condições e possibilidades
para começar a ser protagonistas de suas histórias.

A Leci continuou a me explicar. Tu sabes que tudo que temos é nosso, é


junto, mas nada pela lei funciona assim, se algo acontece com a Alvina,
deus que me perdoe, eu fico com uma mão na frente e outra atrás, além do
que, se a Alvina vai de novo pro hospital, eu não posso nem cuidar dela, não
tenho direito de entrar no quarto, por que tem sempre uma fila de parente
que aparece quando um velho se hospitaliza, deus me livre, parecem vare-
jeiras na merda, nossa pergunta, filha, é se tu pode ser nossa testemunha.
Não é bem casamento é uma união estável (POLESSO, 2015, p.191).

As tias coseguiram reagir, o que infelizmente muitas pessoas não


conseguem, porque de fato não é simples. Desvencilharam-se da realidade

Ebook IV SIGESEX 495


subalterna que as cercava e colocaram em sua história a possibilidade de um “final
feliz”. “Casaram. Continuaram felizes como sempre foram. E assim seria, até que
a morte ou alguma burocracia as separasse novamente. De qualquer forma, é o
melhor e bem mais sucedido casamento da família” (POLESSO, 2015, p.192).
A atitude reativa de Fernanda em “Como te extraño, Clara” é
impulsionada por um acontecimento inesperado. Após um acidente de carro,
seu marido descobre sua relação com Clara e ela é levada a tomar uma posição,
encarar a situação de subalternidade que s encontrava, e buscar forças e
condições para subverter sua realidade. Consequentemente, precisa enfrentar
vários estigmas, o de ser mulher, uma mãe separada do marido, uma mulher
mãe relacionando-se com outra mulher e ainda há o fato de ser mais velha.
Diante de tudo isso, é necessário uma emancipação para dar rumo a sua vida:

Agora é isso. Nós duas. Eu, parte quebrada, tu com essa cara de susto...
E o guri. Clara sente uma mistura de felicidade e medo tão fortes que
chora duas ou três lágrimas. Fernanda ainda perece em choque, pelo
acidente, pelos eventos (Polesso, 2015, p.129).

A literatura tem o poder de nos colocar frente ao indesejado, ao que não


gostaríamos de ver, de nos mostrar que nossa realidade não está tão longe da ficção.
Deste modo, por meio dos contos de Amora somos impulsionados a pensar nas
inúmeras Lecis, Alvinas e Fernandas que existem e resistem além do universo
literário. Precisamos sim da ação. Mas o agir não diz respeito apenas a atitude
física, cada ação reativa importa. O físico simbólico é necessário e, por meio da
literatura, da poesia do conto, grandes feitos, ainda que simbólicos, podem ser
feitos. Ninguém é subalterno, ninguém pertence à subalternidade. Pessoas vivem/
resistem em situações subalternas, mas estas não as definem, e não podem as limitar.

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Ebook IV SIGESEX 497


Repressão sexual e violência contra
homossexuais na ditadura brasileira
Sexual repression and violence against
homossexuals in the brazilian dictatorship
Thiago de Souza Bobeda1

RESUMO: O objetivo do trabalho é provocar uma reflexão sobre


práticas, ações repressivas e uma ideia de normalização dos corpos marcados
pela homossexualidade – os chamados subversivos – no período da ditadura
militar brasileira. Sendo o período marcado pela defesa da “moral e dos bons
costumes” e ainda da proteção de um modelo de família, considerada legítima,
este trabalho analisou como as ações violentas e repressivas foram usadas e
legitimadas pelo Estado e normalizadas pela própria sociedade. Através de
pesquisas a partir de bibliografia já existente sobre o tema e análise de fontes
do período, como o periódico Lampião da Esquina, o trabalho pretende
demonstrar como foi criado um aparato complexo pelo Estado em relação aos
corpos que incomodavam devido a sua orientação sexual.
PALAVRAS-CHAVE: homossexualidade – ditadura – moral e bons
costumes.

ABSTRACT: The objective of the study was to provoke a reflection about the practices,
repressive actions and an idea of normalization of the bodies marked by homosexuality, the
so-called “subversives”, in the period of the Brazilian military dictatorship. Since the period
was marked by the defense of “morals and good manners” and the protection of a family
model considered legitimate, this study analyzed how violent and repressive actions were used
and legitimized by the State and normalized by the society itself. Through research based on
an existing bibliography on the subject and analysis of sources of the military dictatorship
period, such as the periodical Lampião da Esquina, this study intended to demonstrate how
a complex apparatus was created by the State in relation to the bodies that bothered due to
their sexual orientation.
KEYWORDS: Homosexuality – dictatorship – morals and good manners.
1. Graduando em Licenciatura plena em História pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Bolsista
PIBID/CNPq/UFGD. E-mail: thiago.bobeda@outlook.com

498 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Introdução

As origens da repressão contra a população LGBT2 dão-se além do


período da ditadura civil-militar. Através de várias facetas, o ódio contra
LGBT esteve manifestado na cultura brasileira por meio dos discursos
criminológicos que tratavam os homossexuais como um perigo social; os
discursos médicos que consideravam a homossexualidade como uma doença;
o discurso religioso que condenou homossexuais por praticarem um pecado; e
diante dos valores morais e conservadores da sociedade, em que homossexuais
foram estigmatizados por não se comportarem de acordo com os padrões de
gênero dominante, tornando-se, a partir desta visão, anormais e degenerados,
sendo nocivos a família (GREEN, 2000, 2006). Porém, com a eliminação dos
direitos democráticos e das liberdades públicas durante os anos de 1964 a
1985, as violações dos direitos humanos da população LGBT se tornaram mais
permissiva. A representação dos homossexuais como um ser perigoso à família
e à segurança nacional neste período acentuou-se ainda mais, legitimando as
violências sofridas por esta parcela da sociedade.
Os golpistas que tomaram o poder em 1964, a fim de legitimar o golpe,
utilizaram um discurso democrático para demonstrar que suas intenções e
ações objetivavam a instalação da verdadeira democracia e da ordem no país.
No entanto, a arquitetura legislativa que sustentou a ditadura militar brasileira,
que vigorou de 1964 a 1985, garantiu o fim das liberdades democráticas, a
repressão aos dissidentes políticos, censura contra a imprensa e as diversões
públicas. Em resumo, foi um período de terror que instituiu como política de
Estado a repressão e a violência.
Atos institucionais, como o AI-053, decretos, leis e outras normas
jurídicas foram criados para dar legitimidade ao golpe e mantê-lo com
aparência respeitosa e legal. Porém, assim como o discurso democrático, tal
intenção não passou de uma fachada visto que foram inúmeras as violações de
direitos humanos praticadas pelo Estado que sistematicamente perseguia as
“vozes” que discordavam e resistiam às opressões estatais.
Contudo, apesar dos inúmeros elementos, o período entre 1964 e
1985 não se reduz apenas ao choque entre ditadura, oposição política e aos
2. Optei por utilizar tal sigla pelo fato de tais categorias identitárias expressarem maior visibilidade no presente.
3. O AI-5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, pelo presidente Artur Costa e Silva e produziu uma serie de
ações arbitrárias. Através dele, o presidente da república tinha o poder de fechar desde câmaras de vereadores até o
congresso nacional; nomear interventores para exercer funções administrativas; anular direitos políticos e suspender
o recurso ao habeas-corpus.

Ebook IV SIGESEX 499


aspectos traumáticos da repressão estatal. Houve um entrelace entre o regime
autoritário e a ânsia de regular as sexualidades, sobretudo aquelas que fugiam
da heteronormatividade. Questões relacionadas às sexualidades e ao gênero
foram uma das formas que o regime ditador utilizou para controlar os corpos
indesejáveis e anormais. Conforme Quinalha (2017):

Ainda que o Estado não seja o único responsável por normatizar os


discursos e práticas sexuais, sem dúvidas, durante a ditadura, ele se tor-
nou um locus privilegiado de irradiação de regras proibitivas e licenças
permissivas em relação às sexualidades, ajudando a definir as condutas
classificadas como inaceitáveis (QUINALHA, 2017, p. 24).

Ainda segundo o autor (QUINALHA, 2017), não houve um controle


brando nem tolerância em relação aos costumes sexuais da época, mas, não há
como negar a existência de inúmeras práticas normatizadoras e punitivas em
relação às sexualidades dissidentes e a presença de corpos subversivos. Dentre
tais sexualidades destacam-se as homossexualidades4.
A ditadura modificou o cotidiano de homens que desejavam outros
homens, de mulheres que amavam outras mulheres e de homens e mulheres que
fugiam dos padrões comportamentais impostos aos seus respectivos gêneros.
Ao fugir do padrão heteronormativo e da heterossexualidade compulsória5
os sujeitos gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros tiveram suas
sociabilidades e vidas afetadas, pois na visão do Estado, e também de boa
parte da sociedade, estes acarretariam riscos à família, “a moral e aos bons
costumes” e, ainda, ao próprio regime autoritário (GREEN; QUINALHA,
2014). Assim, de acordo com os valores morais e conservadores, foi montado
um complexo aparelho repressivo e perseguidor por parte do Estado, visando
à punição, a perseguição e a normalização destes subversivos.
Através de consultas em bibliografia já existente sobre o tema, bem como
também por meio de fontes, o presente trabalho pretende demonstrar como o
Estado e suas forças perseguiram homossexuais, com o objetivo de normalizar
os corpos “anormais” e sanear moralmente a sociedade. Assim, através de alguns
exemplos buscar-se-á compreender o alcance da repressão moral da ditadura e
4. Termo utilizado até o início dos anos 90 para se referir as orientações sexuais e identidades de gênero que divergiam
da norma vigente. Assim, as travestilidades e transgeneridades eram compreendidas como “homossexualidades”.
5. “Enquanto na heterossexualidade compulsória todos os sujeitos devem ser heterossexuais para serem considerados
normais, na heteronormatividade todos os sujeitos devem organizar suas vidas conforme o modelo heterossexual,
tenham eles práticas sexuais heterossexuais ou não (COLLING, A. M.; TEDESCHI, L. A. (Org.). Dicionário crítico
de gênero. 2. Ed. Dourados: Editora UFGD, 2019.)”.

500 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


como às questões comportamentais e sexuais foram centrais no projeto estatal
de regulação dos corpos dissidentes. Sendo o Rio de Janeiro e São Paulo os dois
maiores centros urbanos e com grande número de homossexuais e travestis nas
regiões centrais, o trabalho se atentará para este espaço territorial. No entanto,
mesmo que há maior dificuldade de encontrar material, é importante destacar
que outras regiões também disponibilizam alguns exemplos sobre o alcance
moral da repressão e que será brevemente explicito adiante.

1- Repressão policial e censura

O momento histórico da ditadura foi constituído por inúmeros


movimentos sociais, dentre eles o LGBT, que lutou por direitos, pelo o
reconhecimento dos sujeitos “gays” e, até mesmo, esteve presente na luta
pela democratização política, o que gerou sentimentos de “ansiedades
contrassubversivas” por parte das forças de segurança nacional em relação à
visibilidade dos “gays”. Mas, o que contribuiu para que os homossexuais fossem
identificados como ameaças ao estado e a sociedade? Cowan diz que ao habitar
os mesmos espaços que os “criptocomunistas” (2014, p. 28), os homossexuais
foram marcados pelo estigma de desviantes sexuais, culturais e morais. Como
resultado disso, nas décadas do regime, a homossexualidade foi monitorada e
policiada pelo Estado e suas forças de segurança por acharem que o sexo entre
iguais era parte de “uma série de ameaças degenerativas à segurança nacional
anticomunista” (2014, p. 28).
Demonstrando a aversão aos homossexuais por parte das forças de
segurança, Cowan descreve a investigação realizada pela Polícia Federal, o
Serviço Nacional de Informações – SNI, o Centro de Informações da Marinha –
CENIMAR e as agências estaduais de segurança em relação aos representantes
do Itamaraty no exterior em 1969. Através de denúncias e entrevistas
anônimas, foram demitidos nove diplomatas por homossexualidade, três por
embriaguez, três por insanidade mental e um por levar vida “escandalosa”,
irregular e apresentar instabilidade emocional. Todas estas demissões foram
resultadas por suspeitas de subversão por parte dos empregados – embriaguez,
insanidade mental, prostituição, inconformidade de gênero, homossexualidade
ou a combinação de algumas dessas ilicitudes, foram vinculadas como ameaça
à segurança nacional (COWAN, 2014).
A homossexualidade não foi o principal alvo das perseguições na
ditadura brasileira, mas constituiu um conjunto de medos e aflições nos

Ebook IV SIGESEX 501


órgãos de segurança nacional que a entenderam como “um complô mais
amplo inspirado pelo comunismo internacional e baseado da dissolução
moral – e calculado para destruir o Brasil” (COWAN, 2014, p.49). Assim,
ao assumir papeis efeminados, expor seus corpos e ir contra as regras de
moralidade e, sobretudo, das masculinidades, os sujeitos homossexuais
foram os protagonistas das forças de repressão que almejavam controlar
os corpos dissidentes, que visavam eliminá-los da cidade e garantir a
preservação da família.
Mesmo diante da forte repressão moral, é importante destacar o
surgimento de boates, casas noturnas, bares e saunas que abriram suas portas
para o público homossexual em São Paulo e no Rio de Janeiro no período
da ditadura militar. Tal fato modificou as sociabilidades LGBT no período:
Lésbicas passaram a frequentar espaços de socialização, os lugares frequentados
por homossexuais tornaram-se mais visíveis, através de tratamentos hormonais
alguns homens modificaram seus corpos e a presença de travestis se intensificava
“além do carnaval” (GREEN, 2000). É neste momento que surge o primeiro
periódico homossexual do país, o Lampião da Esquina (1978 – 1981).
O Lampião, como ficou conhecido, era editado no Rio de Janeiro por
artistas e intelectuais homossexuais e circulava nacionalmente. Além de lidar
com homossexualidade, os editores do jornal também forjaram alianças com
outras “minorias”, por exemplo, os negros, os índios e as feministas. O jornal
foi um importante meio de politização, pois, além dos medos e silêncios,
apresentava o lado positivo da sexualidade, mostrava as minorias o seu papel
social e cobrava dos homossexuais uma postura política e os convidavam a
“saírem do gueto” (MACRAE, 2018).
Mesmo ganhado mais visibilidade, tais liberdades conquistadas logo
se tornaram incômodas para a polícia, aos políticos e aos moradores, todos
estes mergulhados no conservadorismo. Mesmo não sendo um crime, a
homossexualidade foi perseguida por meio de instrumentos jurídicos, no qual
se destaca o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais: “Art. 59. Entregar-se
alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter
renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria
subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias
a três meses”.6
Segundo Ocanha (2018), a Lei de Vadiagem, como era conhecida,
supunha que todos os trabalhadores possuíssem recursos financeiros a
6. BRASIL, Decreto-Lei n° 3.688, de 03 de outubro de 1941.

502 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


fim de comprovar sua subsistência, no entanto, esta contravenção dava
poder a polícia escolher quem deveria ser preso, pois não especificava quais
documentos específicos seriam exigidos e nem como eles iriam ser verificados
para comprovação de subsistência. Neste período, a prostituição de travestis
toma várias avenidas de São Paulo. Diante de tal situação, em 1976, uma
equipe foi designada pela Polícia Civil da cidade para realizar estudos de
criminologia sobre as travestis.7 Foram indicadas para inquérito 460 travestis,
dentre as quais, 398 foram insistentemente interrogadas mesmo não sendo
“vadias” e obrigadas a comprovar suas rendas com mais rigor que o restante da
população. Quem não estivesse portando RG e carteira de trabalho com cópia,
seria remetido a averiguações. E se caso fossem consideradas “vadias” seriam
processadas por vadiagem (OCANHA, 2014, p. 157).
Em 22 de maio de 1980, operações de rondas e blitz inesperadas foram
realizadas por delegados e investigadores no centro de São Paulo, objetivando a
prisão de assaltantes e traficantes de drogas. Contudo, outros sujeitos também
foram presos: “homossexuais, prostitutas, travestis e um individuo com posse
ilegal de arma”8, como afirmou José Wilson Richetti – delegado recém-
empossado da Delegacia Seccional Centro, órgão responsável por todas as
delegacias do centro de São Paulo. Cinco dias depois da primeira operação foi
realizada a Operação Limpeza, que prendeu 700 pessoas. Prostitutas, travestis
e homossexuais foram os principais alvos, e Richetti não pararia enquanto não
limpasse a cidade de travestis e prostitutas, que para ele estavam envolvidas
com traficantes e marginais (OCANHA, 2018, p.83).
Richetti volta à caça em 15 de novembro de 1980, só que agora o alvo
eram elas: as lésbicas.
O delegado Richetti e os famigerados homens da sua “Operação Ron-
dão”, que andavam de quarentena em São Paulo, encontraram um meio
de comemorar a proclamação da República: (...) saíram às ruas da capi-
tal paulista em busca de homossexuais. Só que, dessa vez, não eram as
bichas os alvos procurados, mas sim, as mulheres: os policiais invadiram
os bares Cachação, Ferro´s e Bexiguinha, e as mulheres que lá estavam,
incluindo as que possuíam carteira profissional assinada, foram todas
detidas, debaixo do seguinte argumento: “É tudo sapatão”.9
7. Sobre a prostituição no período da ditadura em São Paulo, ver OCANHA, Rafael F. Amor, feijão, abaixo camburão:
imprensa, violência e trottoir em São Paulo (1979-1982). São Paulo: 2014. Dissertação (Mestrado em História Social)
– Pontifícia Universidade Católica.
8. OCANHA apud Folha de S. Paulo, 23 de maio de 1980, p.9.
9. “Richetti volta às ruas”. Lampião da Esquina, n. 31, 1980, p.16.

Ebook IV SIGESEX 503


Mais de 200 pessoas foram presas e levadas para o 4° distrito. Apenas no
dia seguinte foram liberadas ao pagarem propina, e “aquelas que não possuíam
[dinheiro], lá permaneciam” – conforme denúncias recebidas pelo Lampião
da Esquina (dezembro de 1980, p. 16) por algumas mulheres.
Outra ocorrência, agora no Rio de Janeiro, é sobre um refúgio onde o
público LGBT podiam encontrar “emoções diferentes”10 – a Galeria Alaska,
que com seus bares e boates atraia muitos jovens a procura de parceiros
mais velhos e com dinheiro para encontros, romantismos e sexo inesperado
(QUINALHA, 2017, p. 176), contudo a violência também estava presente.
Em frente ao local existia

Um distrito policial bem em frente à galeria, e sabe-se que a convivência


entre o pessoal do lado de la e os policiais nem sempre se da[va] em bom
nível. Outra vez um velho frequentador (que, naturalmente, não quis
se identificar) di[sse] que frequentemente pessoas da galeria [eram]
“convidadas” a atravessar a rua e, na delegacia, tudo po[dia] acontecer.
Desde a simples intimidação verbal até a agressão física. Muitas vezes,
pessoas que não [tinham] documentos passa[vam] a noite inteira numa
cela escura e fria.11

É possível perceber que os homossexuais, assim como em São Paulo,


eram submetidos a prisões arbitrárias e sujeitados ao medo e a violência por
parte da polícia. Mesmo não infringido uma lei, essas pessoas eram perseguidas
por procurarem “emoções diferentes”.
Fora das duas grandes cidades Rio de Janeiro e São Paulo, outras capitais
também viram o crescimento da violência policial contra os dissidentes
morais. Por exemplo, em Belo Horizonte, em 1965, foi instituído que as
travestis, o strip-tease e o nu artístico fossem exibidos apenas em teatros e sob
severa fiscalização, em nome da decência e do respeito à sociedade. O plano
de moralização da cidade foi apresentado pelo delegado Francisco de Assis
Gouveia, proibindo que “os invertidos saí[ssem] à rua usando batom, roupas
justas e de[ssem] escândalos” com a ameaça de irem para prisão. E se caso
persistissem, ou o caso fosse “mais grave”, seriam depois de presos processados
(MORANDO, 2014, p.54).
10. Referência a musica de Agnaldo Timóteo “Galeria do Amor”, na letra é possível encontrar referências ao que acon-
tecia no local: “Onde muitos tentavam encontrar o amor numa troca de olhar”; “muita gente a procura de gente”; “um
lugar de emoções diferentes onde gente que é gente se entende”; “onde pode se amar livremente”.
11. “Estrelas mil na Alaska”. Lampião da Esquina, n. 10, março de 1979, p. 5.

504 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Em Recife, um dos delegados mais respeitados de Pernambuco, João
Batista Aciolli Sobrinho, desencadeou uma serie de ações repressivas contra
um edifício em que viviam mais de 200 homossexuais depois da morte de
um homossexual por um amante. A justificativa de Aciolli era o de zelo pela
moral. Para ele, os responsáveis pelo edifício deveriam saber quem frequentava
o edifício, a fim de “controlar e evitar que atent[assem] contra a moral”.12
Tais exemplos mostram que os aparelhos estatais da ditadura perseguiram
constantemente quem praticava a homossexualidade, mesmo que a homossexualidade
não foi o principal motivo de repressão, violência e torturas. É importante destacar
que o medo em relação às sexualidades dissidentes e aos danos que estas trariam a
sociedade, foram alavancas de escape para a legitimação da repressão e da violência
contra a população LGBT. A ideia de que o homossexo era nocivo ao futuro do
regime autoritário, a preservação da família e dos “bons costumes” da sociedade
identifica o período como uma “ditadura hétero-militar” (QUINALHA, 2017, p.).
A censura também foi um instrumento usado para garantir um padrão de
qualidade da cultura consumida pela família brasileira e garantir a sua integridade
moral, assim, foi um dos meios utilizados para controlar a informação, a arte e as
diversões públicas. Por exemplo, durante o período em que vigorou o AI-5 “cerca de
500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas,
mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas” foram
censurados (QUINALHA apud VENTURA, p. 63). Abaixo, serão explícitos dois
fatos relacionados a este instrumento do Estado, também utilizado para controlar os
meios de divulgação de assuntos relacionados à sexualidade.
“Demonstrando não ter pulso e nem saber conduzir o tema enfocado,
a apresentadora Hebe Camargo permitiu que seu programa se transformasse
numa tribuna livre de aliciamento, indução e apologia do homossexualismo
feminino.” Estas, foram às palavras do chefe do Serviço Nacional de Censura
Federal de São Paulo, Dráusio Dornellas Coelho, à apresentadora Hebe
e a direção de seu programa que, em 1985, discutiu ao vivo um tema tabu:
o “lesbianismo” (FERNANDES, 2014, p. 143, 144). Foi convidada Rosely
Roth, lésbica e ativista do Grupo de Ação Lésbica Feminista - GALF, que no
decorrer do programa expôs o endereço do GALF, suas finalidades e atividades
e, ainda, rebateu as lesbifobias da mãe de uma lésbica. Foram cobradas
“enérgicas providências” para que fosse elevado a faixa etária e que o programa
fosse gravado com antecedia para ser analisado, sob pena de proibição da
exibição do mesmo (FERNANDES, 2014).
12. “Recife: mais uma bicha executada”. Lampião da Esquina, n. 28, setembro de 1980, p. 3.

Ebook IV SIGESEX 505


Outro caso emblemático foi o de Celso Curi, um jornalista que, em 05
de fevereiro de 1976, estreou, no jornal Última Hora, a “Coluna do Meio”.
Eram criados personagens para dialogar com o público, havia coluna social,
piadas e, por meio da seção “Correio Elegante”, cartas de homossexuais em
busca de amizades e até mesmo compromissos eram publicadas. Um exemplo
foi publicado pelo Lampião da Esquina:

Sou loiro, olhos azuis, 1m70 de altura, 65 quilos, 33 anos, inteligente,


desinibido, rico, adoro festas e outros babados. Desejaria corresponder-
-me com adolescentes morenos, bronzeados, olhos verdes, bonitos, in-
teligentes (não precisam ser cultos), para simples amizades ou futuro
compromisso.13

Mas, logo a justiça e os órgãos de repressão entraram em ação. Na capa da


primeira edição do Lampião da Esquina (Abril de 1978, p. 06) foi estampado:
“Celso Curi processado: mas qual é o crime deste rapaz?”.
Em outubro de 1976, Celso foi denunciado por ofender a moral pública.
Para o promotor do Ministério Público, “o homossexualismo [era] claramente
exaltado, defend[ia-se] abertamente as uniões anormais entre seres do mesmo
sexo, chegando inclusive a promovê-las através da seção Correio Elegante.”14
Após a denúncia ser aceita, em novembro de 1977 Celso foi demitido e o
argumento do jornal foi de corte de gastos.
Os dois exemplos mencionados demonstram um fator comum que os ligam
– a homossexualidade. Conforme Quinalha (2017), ao apresentarem ao público
a homossexualidade sem os estigmas da época, editores, apresentadores, diretores
e jornalistas se tornaram alvos do Estado, com o apoio jurídico, por fazerem
apologia ao homossexo e violarem os códigos morais e éticos da sociedade. Sendo
as questões comportamentais importantes na garantia do regime, os veículos de
comunicação e entretenimento foram alvos importantes na preservação da moral.

Considerações finais

A homossexualidade não foi à razão principal das tantas violações de


direitos humanos no período da ditadura no Brasil. Para as forças de repressão
a homossexualidade era uma ameaça à segurança nacional, mas também
13. “Demissão, processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Curi?”. Lampião da Esquina, n. 0, abril de 1978, p. 06.
14. “Demissão, processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Curi?”. Lampião da Esquina, n. 0, abril de 1978, p.06.

506 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


moral, pois, colocavam em risco os valores morais tão comuns na ideologia
conservadora do regime. Com a população LGBT tomando às ruas da cidade,
os espaços públicos e os meios de comunicação, as ansiedades das forças de
segurança contra a subversão aumentaram, pois haveria o risco da corrupção
da “moral e dos bons costumes”. Assim, sustentado pela ideologia moralista e
homofóbica, os governos caçaram homossexuais e travestis, a fim de regular os
espaços públicos e, principalmente, os corpos dissidentes.
Neste trabalho, pretendeu-se demonstrar como a ditadura dificultou a
vida de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Para
tal objetivo, foram consultados vários trabalhos que analisaram as relações
entre: a ditadura e as homossexualidades. No entanto, como salienta Green e
Quinalha (2014), este tema ainda é pouco explorado em trabalhos acadêmicos
e nas políticas públicas, sendo preciso ampliar a visão ao buscarmos a memória
sobre o período e compreender como a ditadura regulou as sexualidades
dissidentes.
O aparelho estatal da ditadura, ao rotular tal grupo como nocivos
à segurança nacional e classificá-los como corruptos da moral, marcou o
imaginário social sobre os LBGT. O trabalho teve como interesse despertar
a reflexão sobre como tais sujeitos tiveram suas vidas afetadas pelo regime
autoritário. Não obstante, sendo a LGBTfobia ainda uma questão atual, a
proposta é buscar meios para que as questões conservadoras do passado, como
o interesse pela “moral e os bons costumes”, não voltem a ter peso para que se
possa garantir os direitos da pessoa LGBT.

Referêcias

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Ed. Dourados: Editora UFGD, 2019.

FERNANDES, M., Lésbicas e a ditadura militar. In: GREEN, J.; QUINALHA,


R. (Org.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da
verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2014.

GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil


do século XX. São Paulo: UNESP, 2000.

Ebook IV SIGESEX 507


GREEN, James N.; POLITO, Ronald. Frescos Trópicos: fontes sobre a
homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006.

MACRAE, Edward. A construção da igualdade: política e identidade


homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EDUFBA, 2018.

MORANDO, Luis. Por baixo dos panos: repressão a gays e travestis em


Belo Horizonte. In: GREEN, James N.; QUINALHA, R. Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos:
EdUFSCar, 2014.

OCANHA, Rafael. As ronda policiais de combate à homossexualidade na


cidade de São Paulo. In: GREEN, James N.; QUINALHA, R. Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos:
EdUFSCar, 2014.

______________. Repressão policial aos LGBTs em São Paulo na ditadura civil-


militar. In: CAETANO, M.; FERNANDES, M.; GREEN, J.; QUINALHA,
R. (Org.). História do Movimento LGBT NO Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.

QUINALHA, Renan H. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual


da ditadura brasileira (1964-1988). São Paulo: 2017. Tese (Doutorado em
Ciências) – Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo.

508 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O estado proibicionista e a (re)existência
ativista
Prohibitionary state and the activist’s res(ex)
istence
Nathalia Eberhardt Ziolkowski1
Greciane Martins de Oliveira2

RESUMO: O Estado brasileiro é moldado pelo paradigma


proibicionista através de sua política de vigilância, coerção e criminalização
que, percebe-se pelo aumento das violências, não soluciona os problemas
sociais a que se propõe. Ao longo da história do Brasil vários grupos e
manifestações culturais foram criminalizados e se organizaram para re(existir)
frente à violência estatal da qual eram alvo. A ideia é reflexionar sobre essas
perspectivas e possibilidades na atualidade.
PALAVRAS-CHAVE: Estado; Proibicionismo; Resistências.

ABSTRACT: The Brazilian State is defined by the prohibitionist paradigm through


its policies of surveillance, coercion and criminalization, nevertheless, it has failed to address
its social problems given the widely perceived increase in violence across society. Throughout
Brazilian history several groups and cultural manifestations were criminalized, and therefore
organized to res(ex)ist despite being targeted by the state’s violence. The main goal here is to
reflect on today’s perspectives and possibilities.
KEYWORDS: State; Prohibitionism; Resistors.

Introdução

O Estado brasileiro é moldado pelo paradigma proibicionista que,


conforme o pesquisador Maurício Fiore “rege a atuação dos Estados em
1. ZIOLKOWSKI, Nathalia Eberhardt. Socióloga, Mestra em História das Mulheres; Integrante da Articulação de
Mulheres Brasileiras e da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Campo Grande/ Mato Grosso do Sul –
Brasil; nathalia.claretiano@gmail.com
2. OLIVEIRA, Greciane Martins de. Cientista Social, Mestra em Antropologia; Integrante da Articulação de Mulhe-
res Brasileiras e da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Campo Grande/ Mato Grosso do Sul – Brasil;
oliveira.greciane@gmail.

Ebook IV SIGESEX 509


relação a determinado conjunto de substâncias” (FIORE, 2012, p.9).
Contudo, podemos estender essa compreensão para além de regras para o uso,
comercialização e circulação de substâncias, mas também de comportamentos
e práticas sociais como, por exemplo, o aborto. A busca da legitimidade por
este princípio através de sua política de vigilância, coerção e criminalização
não interrompe uma série de problemas sociais, dos mais diversos. Ao
contrário, o que se verifica, em muitas situações, é justamente o efeito inverso,
como o aumento do índice de mortes na sociedade civil, o fortalecimento de
estereótipos racistas e sexistas e a criminalização social de grupos no país.
A relação entre Estado e sociedade civil, nesse contexto, é moldada pela
constante relação de (inter)dependência. A dinâmica social ocorre sob o prisma
de que a sociedade tem necessidades e o Estado, por sua vez, deveria garantir
o amparo à mesma, mas garante a seu modo e conforme as intencionalidades
de quem o compõe, em termos de classe e interesses de determinados grupos.
As leis, por exemplo, deveriam ser instrumento de garantia do Estado para
assistir e atender às necessidades das/os cidadãs/ãos, sobretudo a urgência por
segurança. Mas de quem são essas necessidades, e suas resoluções são garantidas
para que?
Esse questionamento é uma reflexão sobre como parte da população
legitima a ação do Estado, incluindo práticas de vigilância, coerção e repressão,
impostas a comportamentos que são entendidos como fora das regras de
segurança, admitidas pela cultura. Em nome da segurança, a sociedade
consente ao Estado o papel autoritário e justifica suas ações. Contudo, como
Michel Foucault analisa em suas obras, o poder não pode ser visto apenas
como repressivo ou negativo, mas ele também engendra ações ou (re)ações
positivas, as resistências.
As (re)existências das quais Foucault menciona nascem desse
contraponto no exercício do poder do e pelo Estado contra parcela da
população que, tratada com a desigualdade expressiva para manutenção do
sistema exploratório em que vivemos, é alvo da repressão, por isso, encontra-se
na outra ponta da questão. Julgada por suas dinâmicas que são efeito de fatos
sociais, históricos e políticos, encarada pela máquina estatal como incitadoras
de crimes morais e encarcerada em nome da ordem e progresso, em dados
momentos tendem a se organizar e exercer o poder contrário.
A “criminalização ideológica” é um ponto central neste artigo, não
estamos tratando de crimes que atentam contra os direitos do outro, onde a

510 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


liberdade de uma pessoa afeta os direitos da outra, mas de liberdades individuais3
(como chamada pelo Estado Moderno) que, ao longo da história, são revestidas
por dogmatismos e criminalizadas de maneira seletiva e intencionalmente
segregativa, frente as independências privadas e particularização do viver.
Este texto é um esboço da reflexão feita acima que traz apontamentos
da história do Brasil e suas práticas de proibição das culturas, manifestações
sociais e outros elementos imbricados, como o uso de psicoativo e a “colagem”4
com as mobilizações advindas dos movimentos feministas e de mulheres. A
partir dele, faremos um sobrevoo no debate sobre as resistências históricas e os
conflitos sociais intensificados pelas práticas do Estado proibicionista.

1- Uma história de proibições e resistências

Movimentos sociais em busca da mudança de leis que proíbem as


liberdades individuais são cada vez mais expressivos no Brasil e no mundo como,
por exemplo a Marcha da Maconha, mas as práticas proibicionistas por parte
do Estados e princípios sociais morais já datam de tempos mais longínquos.
O proibicionismo como política de criminalização é uma realidade de muitos
Estados Democráticos de Direitos, pautados por legislações vigentes, no limiar
sobre a realidade do que são os Estados e os Direitos, se questões distintas ou
dependentes.
Considerando que direitos são criações sociais e não de Estados e que
direitos são fatos sociais5 que assumem dinâmicas diferentes ao longo do tempo,
das culturas e da consciência social, a função do Estado Democrático é assegurar
as condições existenciais da sociedade, garantindo o direito das liberdades civis,
pautando-se pelos Direitos Humanos, indiscrimináveis e universais.
Porém, a Declaração dos Direitos Humanos (1948) é um documento
recente na história, consolidado após as atrocidades cometidas contra civis da
Segunda Guerra Mundial, e pensado a partir de um organismo internacional
cuja efetividade na garantia desses direitos já passou e, por vezes, passa, por
dilemas de processos políticos não aliançáveis e, por vezes, excludentes.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um marco
para a proteção universal de tais direitos, que inspirou a (re)formulação de
3. Também conhecida como Liberdades Civis, protege os indivíduos do abuso de poder por parte do Estado na
regulação da vida privada dos mesmos.
4. O termo aqui utilizado como “colagem” advém da gíria “colar” ouvida e utilizada pelos grupos de ativistas antiproi-
bicionistas em Campo Grande durante a Marcha da Maconha e pode significar: ir ou chegar em algum lugar.
5. Fatos Sociais “consistem na maneira de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um
poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. (DURKHEIM, 2007, p. 3).

Ebook IV SIGESEX 511


constituições recentes de muitos Estados Democráticos, como a própria
Constituição Brasileira de 1988. Cita-se como exemplo a esse fato o Lobby
do Batom, articulação política do movimento de mulheres brasileiras
reivindicando a participação na Assembleia Nacional Constituinte, em um
momento em que apenas 5,3% do parlamento era composto por mulheres.
Este fato histórico garantiu a articulação suprapartidária entre deputadas
e senadoras que culminou em uma Constituição mais democrática e equânime,
em relação ao que se via até então no Brasil. Na teoria, esse fenômeno político
nos garantiu direitos iguais entre mulheres e homens, ampliações nos direitos
sociais, civis e econômicas das mulheres, a definição do princípio da não-
discriminação por sexo, raça/etnia e do princípio da não-discriminação da
mulher no mercado de trabalho, além e avanços de direitos no campo dos
direitos reprodutivos.

Conseguimos conquistas em várias áreas. No capítulo da família, por


exemplo, conseguimos eliminar a figura do homem como chefe da re-
lação conjugal”. No âmbito da violência, afirmamos que era dever do
Estado coibir a violência intrafamiliar, o que forneceu a base para que se
formulasse a Lei Maria da Penha. Jaqueline Pitanguy, 2018.6

Porém, antes que esses fatos progressistas fossem incorporados à política


brasileira, as políticas públicas repressivas eram intensas e vinculadas às práticas
de controle social. Este controle é dado a partir de intencionalidades, apoiado
em preceitos morais e praticado através de procedimentos de interdição.
Questões que expõe ao debate velhas práticas sociais, engessadas
culturalmente e que propõe diálogos e mudanças de atitudes nas relações
sociais, se colocadas como contradição a valores estabelecidos e interesses
societários, tem como reação a recusa por grupos sociais, por políticos eleitos,
e vem acompanhada da estigmatização, endossada pela mídia de massa.
Tudo isso provoca o efeito de negação, criminalização e perseguição. Assim
ocorre desde o século XX, marginalizando grupos e práticas culturais. O que
Michel Foucault trata como racismo de Estado, onde as políticas gestadas pelo
Estado colocam em operação dispositivos (um exemplo são as leis) que exercem
coações sobre determinados grupos raciais, é uma das formas dos proibicionismos
(porque são muitos) encontrarem respaldo para se estabelecerem.
6. PITANGUY, Jaqueline em entrevista concedida a Carta Capital, matéria: Constituição de 1988 foi avanço nos
direitos das mulheres, 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/constituicao-de-1988-foi-
-avanco-nos-direitos-das-mulheres. Acesso em 11 de outubro de 2018.

512 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


No início do século XX no Brasil, por exemplo, sambista era sinônimo
de criminoso e relata-se, em documentos históricos e na oralidade dos próprios
sambistas, prisões arbitrárias, em contextos injustificáveis, como andar pelas
ruas com instrumentos na mão. Outro símbolo cultural, a capoeira, era vista
como ameaça que poderia levar a revolta dos negros que eram escravos, na
prática da dança, incorporada à luta e, por esse motivo, foi criminalizada desde
o período de escravidão, até 1937. Com o advento da República, passou-se a
constar no Código Penal Brasileiro de 1890:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e des-
treza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em
correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão
corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa
ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular
por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E’ considerado circumstancia
agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou
cabeças, se imporá a pena em dobro. (Código Penal, 1890)7

Perseguições e proibições fizeram parte da história do Brasil, mas há


elementos nessas práticas que convergem, a ligação direta com a cultura afro-
brasileira e, junto a isso, a presença do Estado criminalizando a cultura negra.
Para Michel Foucault, o discurso da “guerra de raças” fundamentaria
a “conquista e a subjugação de uma raça por outra” desde o séc. XVII
(FOUCAULT, 1997, p. 51; 2010a, p. 64). Ademais desse racismo dirigido
ao âmbito exterior, há também aquele dirigido ao corpo da própria sociedade
à qual pertence o sujeito do racismo. Esse segundo tipo se dá como condição
de sobrevivência. Segundo ele, o “discurso biológico social” ainda está
infiltrado no corpo social e favorece a criação e manutenção de instituições
que retroalimentam o “discurso da luta de raças como princípio de eliminação,
de segregação e, finalmente, de normalização da sociedade” (FOUCAULT,
1997, p. 53; 2010a, p. 65). (BARROS, 2018, p.2)
Quando fazemos o recorte de gênero, podemos ir mais atrás na história,
antes da Constituinte, para relembrar que as mulheres passaram a ter direito ao
voto mais de 3 décadas depois da instituição da República Democrática Brasileira.
Antes disso, exercer a cidadania nas urnas era proibido ao gênero feminino.
7. DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www2.
camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.
Acesso em: 11 de outubro de 2018.

Ebook IV SIGESEX 513


Assim como o direito ao divórcio, instituído em 1977 (Lei 6.515 de 26
de dezembro), partiu da reivindicação e luta das mulheres que socialmente
eram mais prejudicadas por essa prática proibitiva, tendo em vista que nossa
cultura constrói desigualmente os papéis sociais de gênero e a sexualidade
feminina passa por julgamentos morais distintos aos projetados para o
exercício da sexualidade masculina.
Foram os feminismos que passaram a desfazer preceitos e desconstruir
ideias de destinos preconcebidos às mulheres, o que movimentou a organização
social de mulheres e feministas nas lutas por mais direitos e, principalmente,
para a mudança de compressão e consciência social, coisas correlacionadas,
mas que, não necessariamente caminham juntas, já que a revisão do exercício
da cidadania e garantia aos direitos individuais precede o debate e mudanças
de mentalidades que podem não se verificar nas relações sociais cotidianas.
Eficazmente o imaginário social8 responde as velhas crenças, capaz de
frear a transformação de uma cultura que é verdadeira quando alicerçada no
pensamento e na prática, de modo a verificarmos que as mudanças ocorrem
gradativamente, baseadas nas práticas políticas de grupos que tencionam o
Estado e na afirmação de direitos, passam a incorporar elementos para novas
práticas sociais.
A crítica feminista,

[...] procura desfazer as concepções que associam as mulheres à natu-


reza e situam no corpo e na anatomia feminina as possibilidades de
existência das mulheres. A partir desta crítica, as feministas propõem
novas interpretações do mundo, que vão no sentido da constituição do
feminismo como sujeito político atuante na construção de uma socie-
dade justa e democrática. Para isso, o movimento feminista irá se valer
de uma pluralidade de métodos de ação, entre os quais eu destaco os
grupos de reflexão e autoexame, pelo seu caráter inovador, mas também
pelo fato de serem capazes de provocar mudanças imediatas na vida das
mulheres.” (PORTELLA, 2009, p. 09 e 10)

8. O entendimento sobre o imaginário social caminha junto com a idéia de representação, uma vez que também é
a expressão de um real que se constitui na história, na cultura e na interpretação de uma sociedade. Para Chartier
(2002) e Baczko (1985) o imaginário tende a falar através da linguagem e pode congregar as representações que dão
sentidos as práticas sociais. Assim sendo, para Baczko (1985) o imaginário é produzido por significações, permeadas
pelo poder, que constroem papéis sociais, impõe regras comportamentais e fabrica representações que fortalecem
esses papéis e regras, fazendo com que as pessoas se identificam com determinados espaços e práticas. Ziolkowski, N.
E. Fronteiras do corpo: um estudo sobre as práticas de abortamento de 1970 a 2000 em Mato Grosso do Sul Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.

514 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


É neste contexto de pluralidades que o antiproibicionismo se torna uma
corrente de pensamentos e práticas dentro dos feminismos.

1.1- Movimentos que impulsionam a luta antiproibicionista


A resistência engendrada pelo proibicionismo com relação ao uso da
cannabis, ao direito sobre o próprio corpo – e daí colando com o movimento
feminista antiproibicionista, em especial, a favor da descriminalização e
legalização do aborto – surge a Marcha da Maconha. Esta acontece anualmente
em vários locais do mundo, cujo objetivo, de acordo com organizadores, é para
que ocorra mudanças na lei que proíbe utilização da maconha em relação ao
uso recreativo ou adulto, como autodefinido pelo movimento pró legalização,
e medicinal.
Dessa “colagem” (agregação de lutas) feminista a favor do aborto e das/
os usuárias/os ou simpatizantes da descriminalização do uso da maconha,
as autoras dessa comunicação estiveram presentes em uma das Marchas da
Maconha que ocorreu em 2017 na cidade de Campo Grande, capital do
estado de Mato Grosso do Sul – onde o agro é pop e mais recentemente, com
muito agrotóxicos, pois estão mais presentes na produção das monoculturas
(cana-de açúcar, soja e milho). Desse encontro algumas críticas vieram à
tona, o que, a nosso olhar, arriscamos dizer que pode qualificar e fortalecer
o movimento como um todo. Muitas práticas machistas foram colocadas
em xeque pelas mulheres usuárias de cannabis autodeclaradas feministas ou
não. Mulheres que passaram a ocupar seu lugar de fala9 na construção desse
movimento antiproibicionista. E mais: agregando debates sobre o direito ao
próprio corpo, questão já em (des)construções no (re)fazer dos feminismos,
especialmente sobre a descriminalização e legalização do aborto, o direito de
decidir sobre o consumo ou não da cannabis foi tomando mais corpo e coro.
O movimento feminista antiproibicionista no Brasil, já articulado em
uma rede nacional, RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas,
desde 2016, vem debatendo temas como o encarceramento de mulheres,
direitos sexuais e direitos reprodutivos, racismo, maternidade e redução de
danos. Essa Rede em especial, ramificada por vários estados brasileiros, é
uma entidade atuante no debate envolvendo feminismos e proibicionismos.
Pela ótica dos direitos humanos das mulheres, no Brasil, é quem dá o tom da
9. Conceito utilizado pela filósofa feminista negra Djamila Ribeiro, que através das redes sociais na internet difundiu
esse conceito que, grosso modo, leva em consideração marcadores sociais de gênero, raça e classse, dentre outros para
visibilizar falas de pessoas que até então não eram consideradas como centrais. Em especial a produção intelectual de
mulheres negras.

Ebook IV SIGESEX 515


conversa e dos caminhos percorridos para resistir as práticas discriminatórias
nas ações repressivas do Estado. Essa é apenas uma das possíveis vertentes e
colagens que estão construindo (re)existências frente ao proibicionismo –
que pode ser considerado irmão gêmeo do conservadorismo no qual estamos
(sobre)vivendo. Haja vista a Nova Política Nacional sobre Drogas estabelecida
através do Decreto 9.761 de 11 de abril de 2019, cujo foco é a abstinência e
não mais a política de redução de danos. Estimula o modelo de comunidades
terapêuticas, além de dar brechas para que a diferenciação entre usuário e
traficante não seja baseado mais na quantidade de drogas portadas, mas na
circunstância do flagrante.
Retomando o nascimento da RENFA, o grupo surgiu a partir do I
Encontro Nacional de Coletivos e Ativistas Antiproibicionistas, ocorrido
em Recife em 2016. Na ocasião, os debates permitiram avançar para a
compreensão de que as medidas proibicionistas implicam em muito mais que
apenas restrições das liberdades individuais de cada pessoa.
O debate foi dando forma a compreensão feministas sobre as proibições
e seus impactos, tendo como pano de fundo a reflexão sobre Estado
Proibicionista:

Vale ressaltar que a proibição não concerne apenas às drogas, mas a ou-
tras temáticas que envolvem a proibição das liberdades individuais e do
corpo em decorrência de parâmetros morais. O aborto também exem-
plifica essa situação em que a proibição atua de forma seletiva, ou seja,
seus resultados serão sentidos de maneira distinta conforme o contexto
sociocultural, de gênero, de raça. Emília Bandeira, 2017.10

Nesse movimento de reflexão, vem a “colagem” de lutas com dimensões


maiores e presentes em cada um desses espaços, envolvendo vários sujeitos,
a exemplo, cita-se a compreensão do perfil sociocultural das mulheres
encarceradas, o encarceramento da população negra, a principal causa que
as leva ao encarceramento – tráfico de drogas, as principais vítimas da
guerra as drogas – populações de favelas e periferias, e assim sucessivamente,
demonstrando que as práticas proibicionista do Estado brasileiro estão
imbricadas, cheias de pontos comuns, facilmente associados se observamos
nossa história.
10. BANDEIRA, Emilia. RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, 2017. Disponível em: https://
www.mulherescannabicas.com.br/single-post/2017/10/30/RENFA---Rede-Nacional-de-Feministas-Antiproibi-
cionistas Acesso em: 07 de maio de 2019.

516 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Conclusões

A(s) (re)existência(s) ativista(s) que compõe o título desta comunicação


vai muito ao encontro do que as autoras observa(ra)m no campo – que é
da atuação política, pois falamos desde o lugar de mulheres oriundas do
movimento feminista e de mulheres (cisgênero e transgênero). Este texto foi/é
uma forma de colocarmos nossas reflexões “no papel” a partir de considerações
que nos inquietam nas nossas i(n)terações e pensar de forma mais conceitual e
com o desejo de, quiçá, contribuir para o debate acadêmico.
Em tempos de guerra – declaradas ou não – contra os corpos que não são
considerados viáveis ou que possam ser vivíveis (Butler, 2009), onde há um racismo
de Estado que retroalimenta a necropolítica contra alguns grupos, faz-se necessário
nos – e aqui incluímos nós mesmas – (re)inventarmos para poder pensar melhor
formas e ferramentas de (re)existir. Sem soltar a mão de ninguém, até por que
“ninguém pode soltar a mão de quem não a está segurando” (fala da Maria Gadu
no Sar(Ato). Essas colagens de movimentos sociais, militantes e ativistas pode ser o
que está no horizonte da (re)novação e (re)invenção que tanto estamos buscando.
Fazendo a auto-crítica dentro desses momentos de luta para que possamos cada vez
mais nos fortalecer. O Estado está num plano genocida, mas vai encontrar a (re)
existência feminista, indígena, negra, trans que estão compreendendo que somente
a agregação pode garantir a vida vivível e viável de todas as pessoas.

Referências

BANDEIRA, Emilia. RENFA - Rede Nacional de Feministas


Antiproibicionistas, 2017. Disponível em: https://www.mulherescannabicas.
com.br/single-post/2017/10/30/RENFA---Rede-Nacional-de-Feministas-
Antiproibicionistas Acesso em: 07 de maio de 2019.

BARROS II, João Roberto. O racismo de Estado em Michel Foucault. R. Inter.


Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, eISSN 1807-
1384.

BUTLER, Judith. Vida Precária: el poder del duelo y la violência. 1ª edição, 1ª


reimpressão.Buenos Aires: Paidós, 2009.

Ebook IV SIGESEX 517


BRASIL. DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890.
Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/
legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 11 de outubro de 2018.

BRASIL. DECRETO Nº 9.761, DE 11 DE ABRIL DE 2019. Aprova a Política


Nacional sobre Drogas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2019-2022/2019/decreto/D9761.htm. Acesso em: 14 de maio de 2019.

BRASIL. LEI Nº 6.515, DE 26 DE DEZEMBRO DE 1977. Regula os casos de


dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos,
e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L6515.htm. Acesso em: 13 de maio de 2019.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves; revisão


tradução Eduardo Brandão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007 – (Coleção
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FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma


proibicionista e as alternativas. São Paulo: Novos Estudos n. 92, 2012.

PITANGUY, Jaqueline em entrevista concedida a Carta Capital, matéria:


Constituição de 1988 foi avanço nos direitos das mulheres, 2018. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/constituicao-de-1988-foi-avanco-
nos-direitos-das-mulheres. Acesso em 11 de outubro de 2018.

PORTELLA, Ana Paula. Corpo, Sexualidade e Reprodução. Recife: SOS Corpo,


2009.

ZIOLKOWSKI, Nathalia Eberhardt. Fronteiras do corpo: um estudo sobre


as práticas de abortamento de 1970 a 2000 em Mato Grosso do Sul. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.

518 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Desejos não dicotômicos: (bi)sexualidade e
possibilidades para além da lógica binária1
Non-dichotomous desires: (bi)sexuality and
possibilities beyond the binary logic
Helena Motta Monaco2

RESUMO: Este trabalho discute as articulações entre gênero,


sexualidade, identidade e subjetividade tomando como objeto a bissexualidade,
que oferece uma perspectiva ímpar para pensar essas relações. Com base em
Judith Butler, a bissexualidade pode ser entendida como uma impossibilidade
lógica em uma matriz de inteligibilidade cultural em que o desejo decorre do
gênero e do sexo. A complementaridade binária e dicotômica do gênero é
desafiada ao pensarmos em sujeitos com práticas e desejos sexuais direcionadas
a mais de um gênero, abrindo espaço para formulações de desejo diversas.
PALAVRAS-CHAVE: Bisexualidade; gênero; sexualidade.

ABSTRACT: This work discusses the articulations between gender, sexuality, identity and
subjectivity, taking as its object bisexuality, which offers a unique perspective to think about these
relations. Based on Judith Butler, bisexuality can be understood as a logical impossibility in a matrix of
cultural intelligibility in which the desire derives from gender and sex. The binary and dichotomous
complementarity of gender is challenged when thinking of subjects whose sexual practices and desires
are directed to more than one gender, making room for other formulations of desire.
KEYWORDS: Bisexuality; gender; sexuality.

Ao longo dos anos, teóricas feministas produziram diversas reflexões


acerca do “problema da mulher”, do patriarcado, da dominação masculina e
das relações de gênero. As formulações feministas têm sofrido transformações
importantes, especialmente no que diz respeito ao questionamento da categoria
“mulher” como universal e da generalização de uma suposta experiência
1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: helenamonaco@gmail.com.

Ebook IV SIGESEX 519


feminina. O feminismo negro e o lesbofeminismo são fundamentais nessa
crítica, mostrando que o feminismo branco, heterossexual e de classe média
não atenta para as questões de raça, classe e sexualidade. Por outro lado, há
uma série de outras intersecções que também não são trabalhadas na maioria
dos estudos feministas. Um exemplo disso são as bissexualidades e as teorias
produzidas a respeito delas. As chamadas epistemologias bissexuais trazem
reflexões interessantes para pensar as categorias sexo, gênero e sexualidade
e suas interrelações. Neste trabalho exploro algumas das contribuições da
bissexualidade ao campo de estudos de gênero e sexualidade.

1- Bissexualidade e o sistema sexo/gênero

Um conceito importante para pensar as relações entre sexo, gênero,


sexualidade e desejo é o de “sistema sexo/gênero”, cunhado por Gayle Rubin
(2017). Rubin trata da construção social do gênero, em diálogo com Marx,
Freud e Lévi-Strauss. O sistema sexo/gênero é, assim, uma parte da vida social
onde se localiza a opressão das mulheres e das minorias sexuais. Ele se define
como os arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade
biológica em produtos da atividade humana. As necessidades sexuais
transformadas são, assim, satisfeitas nesses produtos. A autora argumenta que
todas as sociedades humanas possuem disposições pelas quais a matéria-prima
biológica do sexo e da procriação é moldada pela intervenção humana, ou seja,
todas as sociedades possuem um sistema de sexo/gênero.
Voltando-se para a psicanálise, Rubin (2017) lembra que na crise edípica
as crianças descobrem as diferenças entre os sexos e que devem tornar-se um
ou outro gênero. Além disso, descobrem o tabu do incesto. Para o menino,
isso significa que a mãe não está disponível pois ela “pertence” ao pai, e ele
desiste da mãe por medo de ser castrado pelo pai. Nesse ato de renúncia, o
menino confirma as relações que deram sua mãe a seu pai e que lhe darão uma
mulher no futuro. Em troca disso, o pai confirma a existência do falo em seu
filho, ou seja, não o castra. O menino, então, troca sua mãe pelo falo, mantém
sua orientação libidinal inicial e o sexo de seu objeto de amor. Com a menina
é diferente. Se para o menino o tabu do incesto é um tabu em relação a certas
mulheres, para a menina ele é um tabu em relação a todas as mulheres. A
menina está inicialmente em posição homossexual, mas todas as mulheres só
podem ser amadas por alguém que tenha um falo, o direito de ter uma mulher.
A menina não possui o objeto simbólico que pode ser trocado por uma

520 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mulher. Ela conclui que o “pênis” é indispensável para a posse da mãe porque
apenas aqueles que possuem o “falo” têm o direito a uma mulher e detêm o
objeto simbólico da troca. Não é por conta de uma superioridade natural do
pênis em si, nem como um instrumento para satisfação sexual, que ela chega
a essa conclusão. A disposição hierárquica dos órgãos genitais masculinos
e femininos vem de definições da situação – regra da heterossexualidade
obrigatória e a relegação das mulheres (aquelas que não têm o falo, castradas)
aos homens (aqueles que têm o falo). (RUBIN, 2017, p. 45).
O que ocorre na fase edípica, segundo Rubin, é uma contradição na
menina, porque impõe condições irreconciliáveis: o amor pela mãe é motivado
por seus cuidados, mas esse amor é negado à menina, que precisa deixá-lo
de lado devido ao papel sexual feminino: pertencer a um homem. Rubin
argumenta que, fosse a divisão sexual do trabalho no cuidado das crianças
igualitária, a escolha primeira do objeto sexual seria bissexual; e, não fosse a
heterossexualidade obrigatória, o primeiro amor não precisaria ser suprimido e
o pênis não seria superestimado. Ela defende, pois, que o feminismo se empenhe
em uma revolução no próprio sistema do parentesco. Ainda que mencionada
apenas superficialmente por Rubin, percebe-se que a bissexualidade, aqui,
parece ser entendida como consequência lógica da divisão igualitária no
cuidado das crianças, ao menos no que se refere à fase edípica e ao primeiro
objeto sexual. Como mostrarei mais adiante, tal formulação se assemelha a
algumas teorias que entendem a bissexualidade como mais compatível com
a igualdade entre homens e mulheres – e com o próprio rompimento de
dicotomias como homem/mulher, masculino/feminino.
Apoiando-se nos escritos de Rubin, José Ignacio Pichardo (2012)
afirma que é a partir do sistema sexo-gênero que as pessoas LGBT se tornam
estigmatizáveis. Para ele, há um sistema de desigualdade social prévio à
estigmatização de pessoas LGBT, que sustenta as situações de discriminação.
Nesse sentido, o sistema sexo-gênero determina a hierarquização de homens
e mulheres, em que aquilo que é considerado masculino é mais valorizado
em detrimento daquilo que é considerado feminino; determina também que
os homens devem “fazer coisas de homem” e devem manter relações sexuais
e sentir-se atraídos por mulheres e vice-versa. As pessoas que fogem a esta
norma, em qualquer um de seus níveis, são, assim, estigmatizadas, pois o
estigma aplica-se a todas as pessoas que não são “normais”.
No caso das pessoas LGBT, este estigma seria o estigma homofóbico,
que funciona para manter o sistema sexo-gênero. A orientação sexual aparece

Ebook IV SIGESEX 521


como o terceiro nível do sistema sexo-gênero, precedido pelo sexo (homem/
mulher) e pelo gênero (masculino/feminino). Com relação à orientação sexual,
Pichardo argumenta que aqueles que não se encaixam na norma (homens
devem gostar de mulheres e mulheres devem gostar de homens) sofrem
homofobia, e nesse contexto as pessoas bissexuais seriam as mais afetadas:

Si eres hombre y te gustan las mujeres, bien; si eres mujer y te gustan los
hombres, bien; pero si te gustan las personas de tu mismo sexo, fatal. Y si
te gustan al mismo tiempo las personas de tu propio sexo y del otro, peor
todavía. Porque, en el fondo, dentro de este sistema, a veces es mejor cruzar
la barrera de un lado al otro (de heterosexual a homosexual) que quedarse
en medio. De hecho, las personas bisexuales están más expuestas a sufrir
un tipo específico de homofobia, que se llama «bifobia», que los chicos gays
o las chicas lesbianas, porque al sistema sexo-género no le gusta nada esto
de que la gente esté en medio o esté cambiándose de un lado para outro
(PICHARDO, 2012, p. 115).

A bissexualidade, para Pichardo, situa-se a meio caminho entre a


heterossexualidade e a homossexualidade e a bifobia seria um tipo de homofobia
que pode ser considerado pior por essa posição no “meio”, sem romper, mas sem
seguir completamente o sistema. A bissexualidade, na concepção de Pichardo,
parece ser mais subversiva em relação ao sistema sexo-gênero, por não poder ser
localizada, a um só tempo, em conformidade com ele ou em total contradição.
Outras concepções de bifobia, entretanto, a caracterizam como algo diferente,
separado da homofobia, que pode ser observado inclusive no interior de
espaços LGBT. Ignacio Elpidio Dominguez Ruiz (2017) chama atenção para
as diferenças entre a homofobia e a bifobia. Enquanto a primeira se materializa
em violências mais visíveis como insultos e agressões físicas, a bifobia ocorre
em grande parte por meio de violências simbólicas e, por isso, torna-se menos
visível, apesar de constante e muito dolorosa para quem a sofre.

2- Questionando categorias de identidade

Tal como a discussão sobre o sujeito do feminismo e a essencialização


da categoria “mulher”, as reflexões acerca da bissexualidade levantam questões
importantes sobre concepções de “identidades” que se fazem muito presentes
nos movimentos sociais, como o LGBT (FACCHINI, 2002). De acordo

522 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


com Butler (2016), a “identidade” é um ideal normativo que segue normas de
inteligibilidade socialmente construídas. Assim, gêneros “inteligíveis” seriam
aqueles que mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero,
prática sexual e desejo – o que não ocorre no caso das bissexualidades. O
desejo é heterossexualizado a partir da instituição da produção de oposições
discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, entendidos como
atributos de “macho” e “fêmea”. A filósofa argumenta que a matriz cultural que
torna a identidade inteligível exige que alguns tipos de identidade não possam
existir: as identidades em que o gênero não decorre do sexo e/ou em que as
práticas do desejo não decorrem nem do sexo nem do gênero. É nesse sentido,
portanto, que as bissexualidades aparecem como impossibilidades lógicas:
se o desejo decorre do gênero e do sexo, entendidos em oposições binárias,
então como o desejo pode ter orientação dupla – ou múltipla? Como pensar
a complementaridade binária e dicotômica do gênero a partir de sujeitos com
práticas e desejos sexuais que envolvem pessoas de mais de um gênero? Nessa
matriz de inteligibilidade, o gênero denota uma unidade de experiência de
sexo, gênero e desejo, em que o desejo é heterossexual, diferenciado a partir de
uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja.
Ainda segundo a perspectiva de Butler (2016), a realidade do gênero é
constituída e reproduzida por meio da repetição estilizada de atos, sendo criada
por performances sociais contínuas. Nesse sentido, os atributos do gênero
são performativos e não correspondentes a uma identidade preexistente e
essencialista: são os atos que criam o gênero. A categoria sexo, por sua vez, não
é “natural” dos corpos, mas é uma norma regulatória produtora dos corpos que
controla, agindo de forma performativa na produção da materialidade do sexo
do corpo (BUTLER, 2001, p.80). A demarcação discursiva da materialidade
do sexo, para Butler (2016), produz um domínio de sexos excluídos e
deslegitimados, constituindo o sujeito pela força da exclusão e da abjeção, a
partir da produção de um exterior abjeto ao mesmo. A formação de um sujeito
requer, portanto, a identificação com um “sexo” que se dá a partir do repúdio e
que cria um domínio de abjeção.
Por sua vez, a opressão, para Butler, não funciona apenas pela proibição,
mas também pela constituição de sujeitos viáveis e pela construção de
um domínio de não-sujeitos inviáveis: abjetos, que não são nomeados
ou proibidos. Essa opressão se dá pela produção de um domínio de
impensabilidade e inominabilidade. Butler fala da lesbianidade como um
exemplo: não é explicitamente proibida, pois não é completamente pensável

Ebook IV SIGESEX 523


e imaginável enquanto possibilidade na grade de inteligibilidade cultural que
regula o nomeável. Ela se pergunta, pois, como “ser” lésbica em tal contexto
político, em que a lésbica não existe. Não sendo explicitamente proibida, não
se pode produzir um contra-discurso. Aqui, acrescento as bissexualidades que
se encontram também nessa posição de exclusão da ontologia. A partir das
reflexões de Butler, portanto, cabe perguntar: como os sujeitos bissexuais podem
se articular politicamente ocupando essa posição de impensável e não-proibido?

3- Outras possibilidades teóricas e práticas

No final da década de 1980 e durante os anos 1990 foi publicada uma


série de formulações teóricas acerca da bissexualidade, principalmente nos
Estados Unidos. De acordo com Clare Hemmings (2002) tais publicações
acompanharam um aumento significativo em campanhas para visibilidade
política bissexual nos Estados Unidos. Lewis (2012) argumenta que esses
trabalhos apresentam influências da Teoria Queer, sendo, em sua maioria,
publicados depois de Gender Trouble (BUTLER, 1990; 2016) e Epistemology
of the Closet (SEDGWICK, 1990), livros canônicos da Teoria Queer (LEWIS,
2012). Lewis anota que tanto a Teoria Queer quanto as epistemologias
bissexuais podem ser mobilizadas para desestabilizar o binário heterossexual/
homossexual, mas a principal diferença é que as epistemologias bissexuais
colocam a bissexualidade como ponto de partida para essa desconstrução,
enquanto a Teoria Queer não prescreve um ponto de partida específico. De
acordo com Lewis (2012), com as epistemologias bissexuais, diversas teóricas
e teóricos começaram a problematizar a bissexualidade e se concentrar
principalmente na questão da categorização e da definição da bissexualidade
– como uma combinação da heterossexualidade e da homossexualidade, como
uma identidade distinta ou como a manifestação da natureza da sexualidade
humana –, nas possibilidades de uma política bissexual, e num suposto poder
transformativo da bissexualidade como um conceito epistemológico; bem
como os conflitos entre tal poder e a constituição da bissexualidade como uma
identidade. Essas teóricas e teóricos defendiam que a bissexualidade poderia
desconstruir e desestabilizar o binário heterossexual/homossexual e o sistema
de definição da sexualidade por meio do sexo/gênero do parceiro sexual ou
objeto de desejo, já que a bissexualidade permitiria pensar na sexualidade
independentemente do gênero das pessoas envolvidas. Nesse sentido, ela
permitiria pensar sexualidade por outras chaves – por exemplo, práticas como

524 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


BDSM3 ou preferências por características físicas não atreladas a gênero.
Ainda de acordo com Lewis (2012), uma das autoras mais influentes
deste período é Marjorie Garber (1997), com seu livro “Vice-Versa:
Bissexualidade e o erotismo na vida cotidiana”, publicado originalmente em
1995. Garber argumenta que a bissexualidade não deveria ser entendida
em relação aos binários heterossexualidade/homossexualidade, homem/
mulher e masculinidade/feminilidade, e sim romper com essas oposições.
Para ela, a bissexualidade representa a própria natureza do erotismo. Ela seria
inerentemente transgressiva e “desconstrutiva”, e mostraria a impossibilidade
de categorizar a sexualidade humana.
É possível perceber íntimas relações entre a produção teórica feminista
e bissexual, apesar de o campo teórico feminista comumente não reconhecer
as teóricas da bissexualidade como sujeitas de diálogo e que podem contribuir
para as discussões sobre gênero, sexualidade e desejo. O aspecto desestabilizador
da bissexualidade, levantado por várias autoras, não é discutido ou mesmo
questionado pela maioria das teóricas feministas não-bissexuais – mesmo em
abordagens interseccionais.
Não obstante, conforme procurei demonstrar, a bissexualidade oferece
uma perspectiva ímpar para pensar as relações de gênero, sexualidade,
desejo e processos de subjetivação e formação de identidades, na medida em
que ocupa uma posição (ou um não-lugar) de impensabilidade na matriz
heterossexual, justamente por abrir espaço para formulações não-binárias
do desejo e da sexualidade, sem serem pautadas na complementaridade, na
dicotomia entre sexos/gêneros. Da mesma forma, as teorias feministas e queer
podem ser proveitosamente mobilizadas para entender as especificidades da
bissexualidade e os aspectos de gênero e sexualidade nelas imbricadas.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

________. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo”. In:


LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2001. p. 151-172.
3. Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo.

Ebook IV SIGESEX 525


________. Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge:
Nova Iorque e Londres, 1990.

FACCHINI, Regina. “Sopa de Letrinhas”? Movimento homossexual e produção


de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo.
2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Departamento de Antropologia
do IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, 2002.

GARBER, Marjorie. Vice-versa: bissexualidade e o erotismo na vida cotidiana.


Rio de Janeiro : Record, 1997.

HEMMINGS, Clare. Bisexual spaces: A geography of sexuality and gender.


New York: Routledge, 2002.

LEWIS, Elizabeth Sara. “Não é uma fase”: Construções identitárias em narrativas


de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. 2012. 267 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Letras, Departamento de Letras, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

PICHARDO, José Ignacio. “El estigma hacia personas lesbianas, gays, bisexuales
y transexuales”. In GARVIRIA, Elena; GARCÍA-AEL, Cristina; MOLERO,
Fernando (Coord.). Investigación-acción. Aportaciones de la investigación a la
redución del estigma. Madrid: Sanz y Torres, 2012, p. 111-125.

RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do


sexo. In: ______. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

RUIZ, Ignacio Elpidio Domínguez. Bifobia: Etnografía de la bisexualidad en el


activismo LGTB. Barcelona/Madrid: Editorial Egales [ebook], 2017.

SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet. Berkeley e Los Angeles:


University of California Press, 1990.

526 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“Quando a morte é alguém”: a
necropolítica e o poder dos corpos queer
“When death is someone”: necropolitics and the
power of queer bodies
João Victor Rossi1
Simone Becker2

RESUMO: Na conversa com autores da “filosofia da diferença” e


feministas nos dedicamos às noções de Racismo de Estado e Necropolítica. As
definições de morte não se limitam ao fim da vida ou simplesmente ao deixar
de existir. Os seus significados nos sugerem que é também esquecimento e
reprodução de um sistema que se retroalimenta no extermínio do outro. Na
análise de discursos sobre mortificações de corpos queer, parece-nos que o
massacre contra quem porta diferenças não se destina a quaisquer corpos. Em
cena as travestis e comunidade queer: corpos que arrepiam e irregularizam
o regular, pulsando e sobrevivendo mesmo sem “oxigênio” social. Como
coadjuvantes nesta cena surgem a prostituição e o casamento heteronormativo,
ocupando espaços decisivos nas vidas regidas por tantas leis e normas.
PALAVRAS-CHAVES: racismo de Estado; necropolítica; corpos queer.

ABSTRACT: In the conversation with authors of the “philosophy of difference” and


feminists we are dedicated to the notions of State Racism and Necropolitics. The definitions
of death are not limited to the end of life or simply to cease to exist. Their meanings suggest
to us that it is also a forgetting and reproduction of a system that feeds into the extermination
of the other. In the discourse analysis about mortifying queer bodies, it seems to us that the
massacre against those who carry differences is not intended for any bodies. On the scene the
transvestites and queer community: bodies that shiver and irregularize the regular, pulsing
and surviving even without social oxygen. As co-operatives in this scene arise prostitution
and heteronormative marriage, occupying decisive spaces in the lives governed by so many
laws and norms.
KEYWORDS: State racism; necropolitics; queer bodies
1. Bolsista CNPq graduando Ciências Sociais/FCH – e-mail: joao.victor.rf@hotmail.com.
2. Bolsista CNPq e docente PPGAnt/PPGS/UFGD – e-mail: simonebk@yahoo.com.br.

Ebook IV SIGESEX 527


1- “A Morte é quando eu morro por causa do corpo3”.

No dicionário online de português intitulado Dicio (2019), a palavra


morrer possui as seguintes definições: Cessar de viver, perder todo o
movimento vital, falecer; experimentar uma forte sensação (moral ou física)
intensamente desagradável, sofrer muito; aniquilar-se, deixar de ser ou de ter
existência. Note que em uma das significações há em parênteses duas palavras,
moral e física, e é a partir delas que iniciamos4 este ensaio sobre as políticas da
morte, corpos abjetos e racismo.
As significações do que é morte podem ser mais complexas do que se
imagina. Morte não é apenas deixar de existir ou não ocupar mais espaço social,
mas também é esquecimento e apagamento, queima de arquivo e reprodução
de um sistema que se retroalimenta na dor do outro. Não se define morte sem
pensar em dor.
A ausência de direitos e representação política podem significar morte,
uma vez que apenas quem vive vida viva utiliza tais acessórios. Vida não é
apenas coração batendo e sangue pulsando em veias, mas também é direitos, é
usufruir dos mecanismos sociais para que se tenha dignidade. A repetição das
palavras vida e morte são propositais e servem para a compreensão e reflexão
de que onde caminha uma, caminha a outra, em mesma via e sentido.
A dignidade de uma vida viva parte do reconhecimento do indivíduo
sob a leitura do Estado que se responsabiliza como instituição pelo
cumprimento de leis e bem estar social. Infelizmente o que se percebe, por
exemplo, nestes últimos anos e de maneira aguda após os primeiros meses
(ou cem dias) do governo do senhor Jair Bolsonaro, é a maior indução à
precarização da vida de pessoas que desimportam ao Estado e suas múltiplas
instituições (BUTLER, 2017).
Sob as intensas precarizações, incluído a de muitos corpos que se
abateram ou foram abatidos, em sua última obra corpos em aliança e a política
das ruas (2017), Judith Butler, traz a potência desse lugar, sacralizado, por
exemplo, em clássicos antropológicos como a instância (também) do público
e então do político: a rua. Guardemos este território tão plural de sentidos.
Dentre os eventos emergentes em terras brasilis, Butler nos inspira a
trazer sob os holofotes as mobilizações das mulheres mães, cujos filhos foram
3. Definição dada por uma criança – Juan EstebanRestrepo – de10 anos para morte. Está presente em “A Casa das
Estrelas” de Javier Naranjo (2018).
4. O uso do plural se dá pelas regras da língua portuguesa, mas, sobretudo pela tessitura coletiva que tanto nos poten-
cializa nas ciências humanas e para a vida.

528 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


abatidos pela polícia militar. Mulheres negras, cujos filhos eram jovens e
negros. Todos, sem condições financeiras para gestarem suas vidas de maneiras
outras. Os ditos, pobres. Pelo menos desde Bodies That Matter (2011),
Butler faz questão de marcar a importância da materialidade do corpo na (re)
produção das políticas públicas, cujas perfomatividades que tornam gênero
o sexo, dão conta de sinalizar as motivações dos ódios destilados contra a
passagem da filósofa pelo Brasil no final de 2016. Especialmente, por parte
dos mais fanáticos defensores da Escola Sem Partido, do Estatuto da Família,
dentre outros efeitos de conservadorismos. Performatividades que retiram as
discussões identitárias e de reconhecimentos sociais sob a chave da “natureza”,
do “indiscutível”, como se a “essência” não fosse per si, fruto da inventividade.
Da performatividade suas produções escorregam aparecência às vidas
precárias. Costuras que a filósofa estabelece entre a necropolítica de Achille
Mbembe (2016) e a biopolítica e racismo de Estado de Michel Foucault
(2010). Há também outras possibilidades antes de aprofundarmos essas duas.
Quando panos e privilégios não cobrem sua raça, sua classe e seu gênero
dificilmente ileso este corpo sai. Mas o que acontece com uma vida que não é
considerada viva, mas, nua? A partir do momento em que um corpo não mais
é vestido, a limitação de sua execução é tão presente quanto seus direitos. As
instituições não medem sua capacidade de manipulação e violência se aquele
indivíduo não se veste à caráter. A tanatopolítica (AGAMBEN, 2007) vem
para evidenciar as políticas da morte e os motivos pelos quais as instituições,
sobretudo o Estado, se retroalimentam do poder que ao identificar um
corpo como desmerecedor de proteção e direitos o joga nos estágios desta
invisibilização social incluindo o limite de mata-lo.
A seguinte manchete publicada no dia 09 de julho de 2018 no site sul-
mato-grossense Campo Grande News “Travesti morta a pedradas e facadas
sofreu mais de 80 perfurações” (CAMPO GRANDE NEWS, 2019), pode
explicitar como funciona o extermínio de uma vida nua, desimportante ao
Estado ao limite de sua mortificação/eliminação. Morte espetacular. Foram
contabilizadas as seguintes agressões no corpo da travesti: 47 das perfurações
na mão direita, 33 perfurações nas costas, além de ferimentos semelhantes
nos braços e na cabeça. Além das facadas também houveram pedradas, o que
acarretou traumatismo craniano encefálico.
É perceptível ser um crime de ódio pelos requintes de crueldade, mas
não só. O corpo receptor de tamanha violência não era um corpo qualquer,
era um não correspondente às exigências normativas (BUTLER, 1990;

Ebook IV SIGESEX 529


2017). Como um corpo “biologicamente” masculino, assim definido pelo
discurso biomédico, se atreve a portar próteses de silicone, comporta-se
como mulher e melhor, se achar mulher? Não somente por estar em um dos
Estados (DOURADOS AGORA, 2019) que mais agride mulheres no Brasil.
Seguindo os dados publicados em 2017 que pontuam o Mato Grosso do Sul
em primeiro lugar na taxa percentual de estupro e, o sexto colocado dentre os
estados com maior índice de feminicídio no país. Sem esquecer da também
liderança nos processos de violência doméstica, o que quiçá trouxe a primeira
casa da mulher em 2015 para o estado de Mato Grosso do Sul, que contabiliza
470 mil atendimentos em fevereiro de 2019, ou seja, um pouco mais de cem
mil casos por ano (CAMPO GRANDE NEWS, 2019c).
Acompanhemos os dados atualizados:

Fonte (DOURADOS AGORA, 2019)

As agressões que em notícia foram contabilizadas fisicamente não


abonam as violências simbólicas que são subjacentes às tantas violências
sofridas pelas feminiliz(ações) condicionadas pela misoginia que serve de base
para sociedades como as que vivemos (DAVIS, 2017).
A imposição do poder violento masculino hegemônico sobre os corpos
femininos e não hegemônicos é a (re)configuração da masculinidade, alimento
do status que fortifica a performatividade normativa e aceita (BUTLER,
2017b), dada como padrão comparativo à exclusão de outras distintas formas
de ser e estar no mundo e nas relações sociais.
Se o gênero vem a nós em um primeiro momento como uma norma de
outras pessoas, ele reside em nós como uma fantasia ao mesmo tempo formada
pelos outros e parte da nossa formação. (BUTLER, 2017, p.37).

Guardemos: se repetimos no cotidiano de maneira a expressar pelo


nosso corpo, falando ou silenciando opiniões a respeito de coisas mun-

530 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


danas que nos envolvem; isso equivale ao que se denomina “gênero”.
Tornar-se mulher e tornar-se homem são comportamentos que fazem
parte destas bases que nos estruturam enquanto sociedade, e em parti-
cular brasileira, sobretudo, porque são as mulheres (negras e indígenas
em regra), as subjugadas às baixas remunerações que retroalimentam as
engrenagens capitalísticas. Como bem compara Angela Davis, ao falar
da realidade brasileira e estadunidense, quando as mulheres negras se
movimentam, toda a estrutura se move, haja vista que elas estão nesta
sustentação da base (básica).

Considerando o que Daniel Welzer-Lang (2001) chama de “casa dos


homens”, entendido enquanto um local onde estes aprenderiam as regras
básicas da masculinidade, como a de só respeitarem seus iguais e em suas
homosociabilidades, acreditando na ideia do des-padronizado ser inimigo e
logo os tornando alvo. Aproximação importante para entendermos as relações
de troca que passam pelos homens, tomados aí na acepção da incorporação do
gênero/sexo.
Algo, aliás, exposto por Claude Lévi-Strauss, em seu clássico “As
Estruturas Elementares do Parentesco” (1982), cujas críticas são tecidas pelas
feministas, dentre elas, Judith Butler em Problemas de Gênero (2017b).

2- Dos flagelos sobre os corpos abjetos

Ponderar questões acerca de violências que recaem sobre estes corpos


desimportantes, se torna altamente necessário com a perpetuação vinda do
estado que se mantém desinteressado em mudanças acerca desta população.
Recentemente o pacote anticrime fora anunciado pelo ministro da Justiça,
Sergio Moro. Dentre seus conteúdos há um consenso como linha mestra:
a desburocratização nas mortalidades produzidas literalmente pelas mãos
armadas do Estado Polícia. Para além de outras atrocidades, bem esmiuçadas
em recente dossiê da revista Cult (2019).
Há quatro anos, Alisson, à época com 21 anos disparou vários tiros
contra Adriana (“identificada como Thiago da Silva Martins”) que acabou
acertada fatalmente por três deles. Segundo o representante do Ministério
Público, Alisson ao visitar a namorada Gabriela, em sua casa, deparou-se
também com Adriana, quem estava no uso de drogas com a amiga. Alisson e
Gabriela iniciaram uma discussão, face ao fato dessa estar no uso de“drogas”.

Ebook IV SIGESEX 531


No calor das emoções, Adriana, a travesti, sugeriu à Gabriela que chamasse à
polícia, e eis que ao entrar na discussão foi alvejada por tiros quando disse ser
mais homem do que Alisson. Ao ser chamado de “viado” foi atrás de sua arma.
(CAMPO GRANDE NEWS, 2019b)
Com relação às travestis, o artigo de Simone Becker e Hisadora Beatriz
G. Lemes (2014) traz a revisão quanto às publicações e pesquisas voltadas à
mortalidade das travestis e seu tratamento no Judiciário, como produz a análise
de como o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul as trata quando em cena
estão. Nos 23 (vinte e três) julgamentos pelas pesquisadoras analisados, em
35% as aparecências das travestis se dão paisagem ou como “decorações” do
“ambiente do crime”; em 4% ligadas à lesão corporal; em 17% à homicídio
tentado ou consumado contra elas; em 18% na ligação com o roubo e,
finalmente em 26% subjugadas aos repasses de drogas, muito provavelmente
vinculadas ao tráfico ao invés de sê-lo ao uso.
No tocante aos homicídios, cabe destacar que os crimes de transfobia/
transfeminicídio apresentam requintes de crueldades já trazidos à tona por
pesquisadorxs como Berenice Bento (2018). Em síntese, há que destacarmos
também a questão dos enquadres quando em cena estão as travestis.
Como antes já suscitado, Achile Mbembe em sua teoria chamada de
Necropolítica (2016; 2018) esmiúça os sentidos da morte que tem um alvo
específico, utilizando o exemplo do escravo ao explicar como funciona as
políticas da morte. “A condição de escravo resulta de uma tripla perda: Perda
de um “lar”, perda de direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa
perda tripla equivale à dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social
(expulsão da humanidade de modo geral).”(MBEMBE, 2016, p. 27). Costuras
que enfatizam o racismo, o suicídio e o homicídio como tripés de um Estado
que contribui para o fazer morrer, tal como disseca Michel Foucault junto à
noção de Racismo de Estado. Foucault, aliás, com quem Mbembe estabelecerá
diálogo, a partir da noção de biopolítica.
A submissão dos corpos “x5” se configura com a dominação das relações
de poder e seus operadores. O que acontece para Foucault é a soberania à base
da força e do interesse de quem sufoca com o racismo levando à morte para o
fortalecimento de dadas raças. Ambos os autores mostram a direção escolhida
propositalmente da bala que acerta determinado corpo. A noção de necropolítica
de Achille Mbembe que muito tem haver com as teorias de Foucault e Agamben,
5. A letra X foi escolhida para abarcar todas as diversidades que existem em corpos e ser(es), seja de raça-etnia, classe,
gênero e ou sexualidade. Dissidências aos padrões impostos cotidianamente pelas mais diversas relações sociais, com
presença ou não do Estado.

532 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


discute “mundos de morte, formas novas e únicas da existência social, nas quais
vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status
de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2018, p. 71). A concordância presente entre os
três autores é de que existem grupos predestinados pelo cálculo dos Estados-
Nações às políticas sangrentas, e as marcas que colocam o indivíduo neste grupo
partem de raça, classe, sexualidade e gênero.

3- “Humano que não se pode consertar6.”

A discussão da violenta disciplinarização e então normatização dos corpos


femininos como subalternos e passíveis à guerra social é também apresentada
por Silvia Federici (2017) que critica Michel Foucault diretamente, referindo-
se ao ocultamento histórico dos castigos femininos que iniciam a era do vigiar
e punir do autor. E então, o quão as relações econômicas atravessam a criação
destes corpos, tendo sido omitido por Foucault.

Para concluir, o que Foucault teria aprendido, caso tivesse estudado em


sua História da sexualidade (1978) a caça às bruxas, em vez de ter se con-
centrado na confissão pastoral, é que essa história não pode ser escrita do
ponto de vista de um sujeito universal, abstrato, assexuado. Além disso,
teria reconhecido que a tortura e a morte podem se colocar a serviço da
“vida”, ou melhor, a serviço da produção da força de trabalho, dado que o
objetivo da sociedade capitalista é transformar a vida em capacidade para
trabalhar e em “trabalho morto”. (FEDERICI, 2017, p. 36).

Parece-nos que os sentidos da crítica de Federici soam complementares


às contribuições foucaultianas, especialmente quando a preocupação do
filósofo francês voltava-se à compreensão dos regimes de verdades emanados
das ciências, Direito e Medicina. Ambas retroalimentando as produções de
saber e poder para melhor controlar e domesticar os corpos que resistem na
medida de suas opressões. Especialmente aqueles que destoam pelas práticas
de ser e estar no mundo, como as dissidências sexuais.
A definição de mulher não passa apenas por seu sistema reprodutivo,
vulgo vagina e útero. O que nos instiga a pensar as atitudes perversas que
sofrem as “bichas afeminadas”, as travestis e as butchés7; essas, as lésbicas que
6. Definição dada por uma criança – Oscar Alarcon – de 11 anos para mulher. Está presente em “A Casa das Estrelas”
de Javier Naranjo (2018).
7. Butché um termo inglês para lésbicas que performatizam masculinidades, em tradução livre: Sapatão, caminhoneira.

Ebook IV SIGESEX 533


sob o poder do macho são vítimas de seu sistema opressor sendo estupradas ao
som contrário do que as travestis e bichas. Ou sob os mesmos sons quando são
afeminadas. Um corpo invade outro para ensinar o que ele pretende ser. Ou o
que “deve ser”, considerando a existência de um padrão a nós imposto. Com que
direito isso acontece? Monique Prada (2018) referenciando Silvia Federici vai
nos explicar. A putafeminista Prada acrescenta ao pensamento de Federici, que
se refere ao trabalho escravo das mulheres em tripla jornada – doméstico, sexual
e reprodutivo –, detalhes importantes no tocante ao âmbito sexual(idade).
Para Prada a prostituição juntamente com o matrimônio são pilares do que
entendemos como casamento e patriarcado. É na ida aos prostíbulos e na ideia
de se pagar por sexo que se constitui a noção também do poder sobre este corpo,
na medida em que aquelas mulheres voltadas ao casamento darão sustentação
à exploração do serviço doméstico, reprodutivo e sexual ao bel prazer8. As
“mulheres belas, do lar e recatadas”. Para quando não mais o pater (pai/marido)
desejar aquele corpo inteiramente e gratuitamente à sua disposição, o da esposa,
haverá ao dispor de pouco ou muito dinheiro, outras para escolher9.
Ao nos referirmos à reprodução como uma das jornadas vistas por
Federici às mulheres, o útero acrescenta um grande significado ao corpo
feminino. “Seus úteros se transformaram em território político, controlados
pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da
acumulação capitalista.” (FEDERICI,2017, p. 178). Este órgão vira a principal
ferramenta de controle por parte do Estado e de nós que somos pelos seus
discursos atravessados. É com a gravidez que as mulheres seriam aprisionadas
e essencializadas10 em seus afazeres domésticos e também extradomésticos,
considerando que a engrenagem capitalística se fez e se faz às suas custas
(DAVIS, 2017; 2017b).
Os corpos femininos não são necessariamente os biocorpos que trazem
o útero, tal como o discurso médico determina, pois o termo engloba as
performatividades femininas e possibilidades outras do ser mulher. Butler7
8. O propósito aqui é o de destacar esta visão não consensual de Prada para em momento posterior aprofundar a
discussão com autoras como Maria Filomena Gregori e Adriana Piscitelli.
9. Em fundamentos contingentes Judith Butler(1998) mostrará o quanto o casamento é um estupro legalizado. Nada
que não façamos com exemplos da realidade (jurídica) recente brasileira. Por exemplo, ao nos reportarmos ao Código
Civil Brasileiro (CCB) vigente desde 2002, percebemos que é no artigo 1520 que até pouco tempo atrás o perdão ao
estuprador se consumava com o seu casamento com a vítima estuprada. Em outras palavras: o estuprador (condenado
judicialmente) poderia ao casar com a mulher estuprada, ser perdoado de punição criminal face ao casamento consu-
mado. A mudança no CCBde 2002 se deu em 12 de março de 2019. A redação até o dia 12 de março de 2019 era a
seguinte: “Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art.1517), para
evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez”.
10. Há que se destacar que extrapolam à própria gravidez, haja vista que há mulheres não mães que são atravessadas e
capturadas pelos dispositivos biopolíticos.

534 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


supera em sua teoria o biológico e coloca o social como maior definidor do ser
mulher ou ser homem. É Judith Butler quem mostrará o quanto sexo e gênero
são discursos inventados pela ciência médica e jurídica11. Sob tal perspectiva,
perceptível torna-se a diferença que tem o sócio-performativo de cada gênero,
afinal, as políticas de morte e o racismo vem em maior intensidade para as
pessoas que não condizem com o sexo rei, isto é com as definições estatais.
Repetimos (até ficar diferente, como diz o poeta Manoel de Barros): o
biológico dirá Butler é produto do social, à medida que as determinações
biológicas advêm das convenções produzidas pela medicina (BUTLER,
2017b; BECKER e OLIVEIRA, 2016). Eis o horror do Movimento Escola
Sem Partido, cujos números aviltantes de violências contra jovens e crianças
denotam a conveniência de silenciarmos tais sujeitos assujeitados na escola12.
Vivemos um regime do horror; o Estado e seus vigilantes se
retroalimentam das fobias, das guerras, do sangue e da recolonização. A pele das
travestis e transexuais sentem as pulsões do perigo, essas que não têm o direito
de ser, viver e se constituir, mas continuam exercendo poder, fazendo com que
o Estado force a sua invisibilização até a morte. É importante não esquecer que
mesmo sem “oxigênio” existem corpos que respiram, pois a lógica colonial de
vida não é geral, principalmente por excluir e forçar grupos discordantes ou de
outras dinâmicas a acharem suas formas de sobreviver: re-existindo. “Afirmar
que uma vida é precária exige não apenas que a vida seja apreendida como uma
vida, mas também que a precariedade seja um aspecto do que é apreendido no
que está vivo.” (BUTLER, 2015, p. 30). E então, que a precariedade de nossas
vidas não seja induzida da maneira como propositadamente é potencializada
pelo estado necropolítico.

Referências

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Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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UFMG, 2004.
11. Para ilustrações sugere-se a consulta, por exemplo, aos trabalhos de Simone Becker (2008) e Paula Sandrine Ma-
chado (2005).
12. Indicamos a leitura do último dossiê sobre violência (2018), bem como o potente artigo de Ester Jean Lang-
don(1995[2019]) na Revista de Estudos Feministas.Um horror a MESC porque as falas de violências intrafamiliares
tendem a ser silenciadas.

Ebook IV SIGESEX 535


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538 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O cu manifesto: por cus que não sirvam
somente à privada
The arse manifesto: for arses that don’t only
serve the toilet
P. A. T. Braga1
T. B. Struminski2

RESUMO: O cu é o órgão mais desafortunado da história. Abrir-se


para a saída de algo «sujo» não fez bem à sua reputação, então, sua produção
é escondida. Mas, ao se esconder o produto, esconde-se a própria máquina,
esquecendo-se de sua outra potência: o prazer. Se todo corpo possui um cu
penetrável e seu potencial de prazer é universal, corpos masculinos, considerados
corpos penetradores, são, também, penetráveis. Revelar o cu como máquina
de prazer pode abalar estruturas heterocentradas que constituem padrões de
ativo/passivo em nossa sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Contrassexual; rizoma; prazer.

ABSTRACT: The arse has been the most unfortunate organ throughout history. Opening
itself for something “dirty” hasn’t been good for its reputation, so its production is hidden. By
hiding the product, however, we end up hiding the machine itself, forgetting its other power:
pleasure. If every body has an arse and its potential for pleasure is universal masculine bodies,
considered to be penetrating may now be penetrated. Revealing the arse as a pleasure machine
can unsettle the hetetrocentered structures that establish the roles of active/passive in our society.
Key words: Countersexual; rhizome; pleasure.

Apresentação

Permita-nos, prezado(a) leitor(a), começarmos este texto com indiscretas


questões: já usou seu cu hoje? E, caso o tenha feito, com que objetivo? Ao
longo de sua trajetória como sujeito/corpo falante, qual(is) finalidade(s) têm
sido atribuída(s) por você a esta parte do seu corpo?
1. Acadêmico do Curso de Ciências Sociais FACH/UFMS. patrictrindadee@hotmail.com
2. Acadêmica do Curso de Ciências Sociais FACH/UFMS. tuibs_98@gmail.com

Ebook IV SIGESEX 539


Esperamos não ter chocado ninguém, ao menos não em demasia,
com estas perguntas. Caso tenha se permitido ir além das poucas profanas
linhas que iniciaram esta breve introdução, permita-nos explicar a razão de
tal profanidade: o que se encontra diante de seus olhos, neste momento, é o
trabalho final da disciplina Tópicos Especiais em Sociologia, do bacharelado
em Ciências Sociais da UFMS, ministrada pelo Prof. Dr. Tiago Duque.
Aqui, temos o objetivo de apontar no cu, este órgão tão ocultado, uma
incrível potencialidade de ser máquina de prazer, ao invés de limitar-se a
ser máquina excretora. Começaremos por contar, sem distinguir os donos
dos cus, as experiências que nos permitiram descobrir esta potencialidade
da qual estamos falando. A seguir, munidos da merda e gozo que nossas
máquinas cus produziram e de nossas leituras acerca do tema, discutiremos
epistemologicamente nossa postura a favor da exploração desta máquina de
prazer, defendendo sua libertação de servir somente à privada. Nesta última
palavra, inclusive, reside uma das grandes ironias do cu: ele é um órgão
exclusivo da privada!
Não somente privada, o local no qual cagamos, mas da parte privada
das nossas vidas! Oras, nós dois crescemos como sujeitos/corpos falantes lidos
como masculinos e sempre falamos e ouvimos abertamente sobre pênis. Mas
demorou-nos muito tempo e reflexão para que pudéssemos tirar também
nossos cus das privadas e trazê-los para o público. E são estas reflexões que
queremos tornar públicas, no presente artigo.
Compreendemos, logicamente, os limites de nossas leituras e vivências,
tanto de forma acadêmica quanto pela maneira como nos constituímos como
sujeitos/corpos falantes e temos consciência de que haverá limites para nossa
escrita. Entenda, portanto, leitor(a), que somente intencionamos mostrar uma
outra forma de se pensar o cu e as relações hierarquizantes que reproduzimos
não somente em nossa sexualidade como também na vida social como um
todo, apontando novas possibilidades. Temos toda a certeza de que há por
aí diversas outras riquíssimas experiências que podem acrescentar ainda mais
a este singelo trabalho, de modo que não o consideramos, de forma alguma,
uma obra completa, mas sim uma obra em construção, fruto, a princípio, das
vivências e leituras de dois sujeitos/corpos falantes jovens, de classe média,
brancos, lidos (ao longo de boa parte de nossas trajetórias) como masculinos
e que nunca foram tidos como abjetos, mas que pode ser complementada
por qualquer sujeito/corpo falante que disponha de um cu e condições para
concebê-lo como máquina de prazer.

540 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


1- Das experimentações que os cus nos proporcionaram

Narraremos aqui as experimentações que o cu nos proporcionou,


narrando parte de nossas trajetórias até que nos tornássemos trabalhadores
do cu, trabalhando nesta máquina excretora, ajustando-a aos nossos desejos
para além da bosta, transformando-a em máquina de prazer e sendo, neste
processo, transformados por esta mesma máquina.
Pode um leitor mais crítico apontar que não há nenhuma grande
revolução em simplesmente penetrar um cu, e, se o fizer, seremos obrigados a
concordar, discordando: concordamos porque não somos ingênuos a ponto
de imaginar que nossas experimentações anais efetivamente revolucionaram
qualquer coisa, além de nós mesmos. E é exatamente este o motivo pelo qual
também discordaremos! Não seria revolucionar a nós mesmos um belíssimo
começo? Em pleno advento da pós-modernidade, com sujeitos descentrados (cf.
HALL, 2006), com um novo espírito do capitalismo em voga, onde as grandes
narrativas totalizantes se tornaram obsoletas e a micropolítica e microfísica do
poder se tornam mais e mais relevantes, a microrrevolução que é ressignificar um
órgão como o cu, fazendo de nós, corpos lidos de antemão como masculinos,
ativos e viris, outrora considerados exclusivamente dildos penetradores de cu,
cus penetráveis por dildos não seria por si só bastante significativa?
O que está diante de si, leitor, não é nada além de um breve manifesto
pela ética das relações, que toma o cu como objeto de estudo e como bandeira
de ação. Reflita: não lhe parece potente a ideia de reterritorializar, ressignificar e
reescrever a história de uma parte de seu próprio corpo que tem uma função de
prazer que foi negada ao longo de toda a história moderna? Caso sua resposta
seja negativa, talvez este manifesto não seja para você. Caso seja afirmativa,
convidamo-lo a se deliciar por nossas experimentações e a refletir sobre as suas
próprias, sejam as que você já teve ou aquelas que deseja ter.

1.1- O cu e Cuba
Objetos usados: um perfume cujo recipiente e caixa emulam um charuto
cubano, ou seja, um dildo perfumado.
Sujeitos/Corpos falantes: um(a) adolescente curioso(a).
Não me lembro precisamente que idade tinha quando ganhei este
perfume. Sei que passei parte de minha incipiente adolescência usando-o
para emular um charuto, associando diretamente o nome Cuba aos famosos
charutos cubanos.

Ebook IV SIGESEX 541


Não me lembro o que exatamente me motivou a fazer isso, mas lembro
vividamente de quando resolvi ressignificar aquele charuto e penetrá-lo em
mim mesmo. A sensação era ótima e prazerosa, diferente de qualquer coisa
que eu tivesse tentado antes. Eu descobria ali que meu cu tinha funções não
somente excretoras.
Passado o prazer e o êxtase pela nova descoberta, veio a dúvida: o que
meus amigos, tão ativos e altivos diriam desta descoberta? Naquele momento,
eu descobria uma das características mais marcantes da vida capitalística: o
princípio de realidade se sobrepõe ao princípio de prazer. (cf. LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001)
Conclusão: o prazer era muito mais do que me haviam ensinado e é
improvável que não mo tenham ensinado por não saberem disto. O fato
parece ser, portanto, que existem prazeres que devem ser escondidos para a
manutenção da organização social vigente.

1-2- Um restaurante anal


Objetos usados: diversos tipos de alimentos.
Sujeitos/corpos falantes: um(a) entusiasta de culinária alternativa.
Os alimentos parecem ter uma ordem bastante clara no corpo humano.
Entram pela boca, saem pelo cu. Não é comum apontar-se outras vias pelas
quais eles possam nos adentrar. De fato, mesmo quando se concebe o cu como
máquina de prazer, é comum que, ao imaginar penetração, imagine-se-a sendo
feita com um pênis, dedos, ou qualquer outro objeto fálico que tenha fins
sexuais. Por que não haveríamos, entretanto, de inverter a lógica do alimento
e permitir a ele penetrar já pelo fim? Oras, numa sociedade que se refere tão
frequentemente ao prazer anal como “comer cu” nada mais apropriado, ainda
que paradoxal, que a comida o coma!
Objetos visivelmente fálicos como pepinos, abobrinhas e baguetes
podem ser um bom começo, mas não vemos motivos para parar por aí. Vagens,
limões, tomates, fios de espaguete são, dentre tantas outras, comidas que
podem, tranquilamente, comer um cu. E, depois de os usarmos para o prazer
anal, por que não usá-los para o prazer alimentício? Coloquemos mais dildos
em nossa alimentação!
Conclusões: Na maioria das relações sexuais que envolvem penetração,
uma espécie de dildo se sobressai sobre todas as outras como a mais falada
e usada: o dildo de carne, popularmente conhecido como pênis. É flagrante
a centralidade dada a este membro, concebido majoritariamente como

542 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


masculino, e associado frequentemente à potência, virilidade e poder. Nossa
sociedade é tão falocêntrica que até mesmo algumas linhas de pensamento,
partindo de pressupostos cientificistas e simplistas, chegaram a apontar
um suposto complexo de castração nas mulheres, ao descobrirem que não
possuíam esse órgão tão maravilhoso.
Além de lembrar que não são só homens que tem pênis e que tampouco
é todo homem que tem um pênis, cremos que podemos rebater esta ideia de
duas maneiras. A primeira delas, apontando a dissociação entre significado
e significante (falo e pênis), que pode levar pessoas sem pênis a exercer um
poder fálico, não é, apesar de muito interessante, a que nos interessa neste
momento. Interessa-nos aqui apontar uma relativa irrelevância do pênis para
a vida sexual.
Não tratamos aqui, de forma alguma, de negar o potencial do pênis
como máquina de prazer, mas de apontar que, como máquina que auxilia o
prazer alheio, ele pode ser tranquilamente ser substituído por outra variação
de dildo, que nem sequer precisa ser fálico. O prazer anal pode ser alcançado
de diversas formas e seria absurdo e irresponsável de nossa parte apontar a
potencialidade do cu como máquina de prazer simplesmente para associá-lo a
uma servidão peniana assim como a máquina excretora serve à privada.

1-3- Braço forte, mão amiga


Sujeitos/corpos falantes: no mínimo um, frequentemente dois.
Os dedos das mãos parecem ser uma popular e bem aceita variação aos
dildos, sendo usados com frequência com fins sexuais. Uma variação do uso
dos dedos, de uma maneira mais extrema, bastante frequente na pornografia
bizarra se trata do uso da mão inteira como dildo, ato conhecido como fisting,
que vêm do inglês fist, que se traduz como punho. O nome é praticamente
autoexplicativo: o ato consiste em penetrar algum orifício com toda a mão, até
que se chegue no punho.
Pode-se interpretar o fisting como um ato violento e desnecessário,
devido ao tamanho do que se introduz na penetração, mas também, e é isso o
que queremos apontar aqui, como uma excelente maneira de se usar os dildos
do próprio corpo (PRECIADO, 2014) como forma de prazer.
Conclusão: Parece-nos que o ato de introduzir em seu ânus uma
mão alheia, ou sua própria mão, tem um quê de poesia antropofágica, pois
o individuo se penetra e se preenche de si. Aqui, evidencia-se também, uma
problemática oriunda da dicotomia homem/mulher e ativo/dominante: a

Ebook IV SIGESEX 543


princípio concebia-se o homem como ativo e dominante por ele possuir o
pênis, membro viril e penetrador, enquanto que a mulher seria o corpo passivo
e dominável, por possuir um oríficio penetrável. É comum que se pense em
relacionamentos lésbicos com a presença de dildos que não de carne, e que
se os considere como objetos externos que somente imitariam o potencial do
pênis.
O fato é, entretanto, que o braço é um membro penetrador que também
é comum às mulheres, de modo que, mesmo se considerássemos os dildos que
não de carne como imitações do órgão humano penetrador (visão da qual
discordamos veementemente) poderíamos repensar o que é o órgão humano
penetrador, considerando também o braço, comum à maioria dos sujeitos/
corpos falantes, como este membro e, invalidando, os argumentos biologizantes
nos quais se baseiam as teorias de ativo/passivo, dominante/dominado. (Como
dito acima, isto não significa, de forma alguma desconsiderar o potencial
peniano como máquina de prazer, mas sim de relativizar sua influência como
membro que pode auxiliar outra máquina de prazer na busca pelo gozo).
A mesma lógica aplicada ao braço pode ser aplicada ao cu, e, por isso,
pensamos, ele é tão marginalizado: quando se concebe a diferença homem/
mulher com base na dicotomia ativo/passivo, faz-se-a pensando a vagina
como órgão penetrável e no pênis como órgão penetrador. O problema é que,
assim como as mulheres também possuem um membro penetrador, os homens
também possuem, como você já deve ter reparado, um órgão penetrável:
o cu (PRECIADO, 2006). A lógica do fisting, portanto, para além das
possibilidades físicas de cada corpo, deve ser aplicada de modo a se conceber
que esta divisão entre feminino penetrável/masculino penetrador é só uma
interpretação possível e é, absolutamente viável que, sem o uso de qualquer
agente externo, usando somente os dildos de carne e os orifícios penetráveis de
cada corpo, concebamos um masculino penetrável e um feminino penetrador.

1-4- 1, 2, 3, 4, 5...
Sujeitos/corpos falantes: ao menos três
As ideias de amor monogâmico e de associação do sexo ao amor acabam
por limitar o sexo a uma relação entre duas pessoas. É incrível notar, na nossa
linguagem, como uma relação com fins sexuais envolvendo uma pessoa
(masturbação), três pessoas (ménage à trois, threesome), quatro (ménage à
quatre, foursome) ou mais (orgia, suruba) sempre possuem nomes específicos,
mas o sexo a dois é simplesmente sexo (ou qualquer variante usada para se

544 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


referir ao ato sexual). Não existe um nome próprio que indique que duas
pessoas estão transando. Esta ausência nos parece bastante simbólica: não
estaríamos considerando como o sexo verdadeiro, correto, puro, o sexo feito
entre duas pessoas e tratando suas variações com mais ou menos pessoas como
desvios que merecem nomes específicos para designá-los, de modo que eles
não se confundam com o verdadeiro sexo, ou o sexo ideal?
Parece não haver propriamente dita uma rejeição total a estas outras
variações, mas elas parecem ser enxergadas como uma representação/simulação
de sexo para momentos solitários de extremo tesão (masturbação) ou como
práticas ocasionais de experimentação para pessoas com menos pudores
(ménage e orgia) mas que não são a versão ideal de uma relação sexual.
O enfoque genital que é comum ser dado às relações sexuais, valorizando
a vagina nas mulheres e o pênis nos homens, como se somente mulheres
possuíssem vaginas e somente homens tivessem pênis, pode corroborar
para isso: se a mulher possuir mais de um orifício penetrável, ou mesmo um
órgão penetrante, o que a impede de se limitar a uma relação com somente
um homem? Da mesma forma, por que o homem deveria se ater ao papel
penetrante?
Conclusões: o imperialismo do amor romântico e monogâmico acabam
por influenciar diretamente na maneira como concebemos as possibilidades
sexuais. Não se trata aqui de dizer que o sexo entre duas pessoas é errado e
devemos buscar constantemente as mais numerosas orgias, mas sim de apontar
que estas orgias não são menos aceitáveis e prazerosas do que a tradicional
relação a dois.
Ao apontar que todo corpo tem potencial de ser um dildo penetrante
ou um cu penetrável apontamos também a possibilidade de que qualquer
relação sexual envolva mais de dois sujeitos sem problema nenhum, desde que
haja consenso entre os sujeitos/corpos falantes envolvidos.

1-5- Máquina excretora de prazer


Sujeitos/corpos falantes: ao menos dois; um com intensa atividade
intestinal.
No processo de descobrir que o cu também poderia ser máquina de
prazer, acabei descobrindo uma singela e maravilhosa expressão: passar cheque,
que nada mais é do que, literalmente, cagar no pau.
Acabei descobrindo também que, quando se transa consigo mesmo
passar cheque não é um problema. Lidar só com a sua própria merda pode ser

Ebook IV SIGESEX 545


malcheiroso mas não é essencialmente constrangedor. Pode ser inconveniente
caso você não esteja disposto a transar com um cu cagado, mas, na pior das
hipóteses, é uma vergonha pessoal, que pode ser facilmente escondida, caso se
queira, e que não acaba com o prazer que era sentido até o momento em que
se “passa o cheque”.
A história é diferente, entretanto, quando se trata de passar um
cheque numa relação com outro sujeito/corpo falante. Oras, neste caso,
invariavelmente, a vergonha que pode ser gerada pelo ato, será compartilhada
com o outro. É aí que surge um dos grandes problemas: a produção excretada
pelo cu é tratada como repulsiva, e que deve ser rejeitada e expulsa do corpo
em segredo e de maneira privada (ops). É notório que certos sujeitos/corpos
falantes que possuem pênis tem o privilégio de urinar em pé e em público e
sejam comuns comentários acerca de mulheres que vão juntas ao banheiro,
não tendo necessidade de ocultar a urina. Aquilo que é mijado, portanto, é
escondido, mas nem tanto. Já aquilo que é cagado é o maior dos segredos e
deve ser ocultado a qualquer custo. O que fazer, então quando aquilo que
deve ser cagado de maneira escondida e higienizada é cagado no pênis alheio?
O potencial de constrangimento aqui, é infinitamente maior e não se pode
subestimar os traumas que podem ser causados por uma ingênua passada de
cheque.
Conclusão: queremos ressignificar e reterritorializar o cu. Apontá-
lo como potencial máquina de prazer. Mas não somos, de forma alguma,
ingênuos ao ponto de negligenciar que, enquanto o cu deve ser construído
como máquina de prazer, sobretudo nesta sociedade que lhe priva desta
potencialidade, ele é uma máquina de excreção por natureza. Cagam todos.
Como conciliar, portanto, prazer e merda? Talvez seja mais agradável,
por motivos pessoais, a um sujeito ou a outro que o cu opere ora como máquina
excretora, ora como máquina de prazer, separadamente, e não queremos negar
o direito de cada um a pensar assim. Mas também nos parece imperativo tirar
a merda da posição indigesta (ops) em que ela foi colocada. Se é natural que
o cu trabalhe como máquina excretora, não é natural o asco que temos a esta
produção maquínica. E se é natural que ele trabalhe como máquina excretora,
talvez, em algum momento, ele opere concomitantemente as funções de
máquina excretora e máquina do prazer. Qual o problema nisto? Não
apontam, por sua vez, certas linhas de estudo psicológico, o próprio cagar, na
dita fase anal, como uma das primeiras formas de prazer? (cf. LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001). É imperativa a libertação do cu para se explorar como

546 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


máquina de prazer mas também é fundamental a libertação do cu máquina
excretora das amarras da privada e da higienização.

2- O cu liberto

O que desejam estes dois jovens adoradores de cu, afinal? Simples:


almejamos a que nossos corpos se tornem corpos sem órgãos (CsO) (DELEUZE;
GUATTARI, 2011). O que queremos dizer com isso? Que buscamos a
desterritorialização do corpo, para sua melhor utilização. Analisando-se o
contexto capitalístico e compreendendo-o como uma verdadeira fábrica de
neuróticos e corpos dóceis (FOUCAULT, 1987) poderíamos inferir que o
corpo como um todo é subaproveitado e territorializado para melhor servir
ao sistema. Especificamente no âmbito sexual, analisando nossas trajetórias
pessoais, acabamos por concordar com Preciado (2011, p.11) que afirma que “o
sexo, (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de
masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes)
entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias
de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida.”
É este, cremos, um ponto chave: os discursos e tecnologias usados
para normalizar e mesmo naturalizar as identidades e práticas sexuais são,
ao contrário do que o senso comum poderia apontar, extremamente falhos
e problemáticos! Como apontado, a genitalização do sexo, focando naquilo
que, em teoria, diferenciaria homens e mulheres como a parte fundamental
do sexo, e, portanto, das diferentes posturas e ações que se deve esperar de
corpos femininos e masculinos é incrivelmente limitante e os próprios corpos
masculinos e femininos oferecem recursos para desnaturalizarmos a tradicional
associação feita entre masculinidade e virilidade vs. feminilidade e passividade.
Isto posto, poder-se-ia argumentar que este trabalho teria igual valor se
versasse sobre o uso do braço como um dildo de carne universal, não sendo
necessário, pois o enfoque dado ao cu. Não discordamos inteiramente, mas a
escolha deste órgão singular como objeto de estudo em detrimento do braço
se explica por três razões: primeiramente, cremos que a Preciado, em seu
monumental Manifesto Contrassexual (2014) explica bem a “filosofia a golpes
de dildo”, apesar de, parece-nos, ter dado pouca ênfase aos dildos que o próprio
corpo nos fornece. Em segundo lugar, porque cremos que, ao contrário do cu,
o braço não foi relegado a uma posição marginal ao longo da história, tendo
seu ocultamento considerado fundamental para a manutenção do status quo

Ebook IV SIGESEX 547


da heteronormatividade.3 Não desconsideramos, logicamente, a simbologia
que um braço mais musculoso numa mulher ou menos musculoso em um
homem, por exemplo, pode ter, sendo inclusive um demarcador de classe,
como apontado por McClintock (2003).
Falar do cu, portanto, parece-nos mais mister do que falar do braço
(mesmo assim, tentamos não negligenciar esta questão que nos parece
importantíssima). Ainda na linha de reflexão de Preciado (2014., p. 80) “já não
se trata de romper os tímpanos, mas de abrir os ânus” e é o que prentendemos
fazer. Apontamos o potencial de prazer que o cu oferece para mostrar que o seu
ocultamento é, claramente, parte de um plano dominador, que quer ocultar
que homens também podem ser penetráveis. Também é interessante notar a
concepção negativa que esta visão de mundo traz ao associar umbilicalmente
a passividade ao penetrável e a atividade ao penetrante, desconsiderando, por
exemplo, a possibilidade de ativos penetráveis ou passivos penetrantes.
Tentar ressignificar o cu, também exige uma tarefa deveras árdua: tentar
acabar com os discursos biologizantes ou naturalizantes existentes mesmo
entre aqueles que já conhecem a função de prazer do cu. Ao longo do período
em que escrevíamos, não foi raro ouvirmos pessoas empolgadas com a proposta
e, vendo dois sujeitos masculinos se posicionando sobre o tema dizendo que
era fundamental mesmo alertar para o potencial de prazer do cu, uma vez
que os homens teriam na próstata seu ponto G, e, por conseguinte, ser-lhes-ia
possível sentir um prazer infinito.
Não queremos entrar em questões médicas ou biológicas, mas não
nos furtamos de defender a tese de que o prazer é muito mais mental do
que propriamente genital, de modo que a simples presença da próstata não
justificaria o potencial de prazer no cu. Caso o fosse, seriamos obrigados a
seguir esta lógica e a concluir, como alguns interlocutores o fizeram, de que
existe um potencial maior de prazer no cu masculino do que no feminino.
Oras, isso, por si só já nos parece uma tentativa de territorializar os corpos e
de separá-los em categorias, masculino/feminino, ainda que usando padrões e
ideias diferentes dos usados pela heteronormatividade.
Assim como queremos libertar o cu das privadas, entretanto, e queremos
libertá-lo da servidão ao pênis como auxiliar no prazer, queremos libertar
3. Estamos cientes de que a maneira com que tratamos cu e braços como universais pode ser problematizada. É notório
que há pessoas que não possuem parte do braço ou mesmo o braço inteiro, assim como pessoas que têm problemas
(muitas vezes de ordem médica) que tornariam a utilização do ânus como máquina de prazer algo bastante complicado.
Também sabemos, entretanto, que o ser humano potencialmente possui um braço (e nossa farmacopornografia contem-
porânea há muito constrói dildos em forma de braço). Ao mesmo tempo, há diversos tratamentos para problemas anais,
o que faz com que cu e braços sejam, potencialmente, e a despeito de quaisquer problemas, universais.

548 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


nossos corpos, potenciais CsO, da biologização e da naturalização. Como dito
anteriormente, não queremos negar totalmente a biologia, rejeitando a função
excretora do cu, por exemplo, mas queremos apontar que a ela há limites e que,
se o cu máquina excretora é natural, o cu máquina de prazer é social.
Desta forma, devemos ressaltar que O cu manifesto, apesar de defender
a utilização e ressignificação do cu, moldando-o em máquina de prazer é um
texto que aponta possibilidades e novos horizontes e não um manual pós-
moderno de como sentir prazer, de modo que nos parece completamente
plausível e compreensível que haja pessoas que não sintam ou que sequer
tenham interesse neste prazer anal do qual tanto falamos.
Não temos a pretensão de apontar no cu a chave da emancipação
da consciência humana, nem tampouco que todo sujeito/corpo falante
trabalhador do cu é mais esclarecido ou mais consciente do que o restante
da sociedade. O que esperamos ter feito, portanto, é ter oferecido novas
possibilidades e perspetivas àqueles que não as conheciam, apontando a
posição secundária que se atribuiu ao cu, além de apontar problemas estruturais
do heterocentrismo, que acabam por limitar as potências, afastando-nos do
objetivo de CsO, e territorializando os corpos com base em uma epistemologia
rasa e problemática.

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550 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Interpretando a “Ideologia do Gênero”:
reflexões com e a partir de Ricoeur
Interpreting the “Gender Ideology”: reflections
with and from Ricoeur
Rafael Zanata Albertini1

RESUMO: Este ensaio visa recolher interpretações sobre a chamada


“ideologia de gênero” – sintagma utilizado por grupos conservadores para
se referir aos estudos de gênero. Os estudos sobre a ideologia e a utopia que
Paul Ricoeur desenvolve a partir de expertos no assunto servem de base
para tal ensaio, permitindo uma compreensão mais ampla e profunda desses
fenômenos relacionados aos estudos de gênero e aos seus opositores.
PALAVRAS-CHAVE: estudos de gênero; fenomenologia;
hermenêutica.

ABSTRACT: This essay aims to gather interpretations of the so-called “gender


ideology” – an expression used by conservative groups to refer to gender studies. The studies
on ideology and utopia that Paul Ricoeur develops from subject matter experts serve as the
basis for this essay, allowing a broader and deeper understanding of these phenomena related
to gender studies and their opponents.
KEYWORDS: gender studies; phenomenology; hermeneutics.

A expressão “ideologia de gênero” emerge, enquanto conceito, em


documentos oficiais da Igreja católica a partir da década de 1990, conforme
o mostram diversos estudos genealógicos (CARNAC, 2014; FAVIER, 2012;
GARBAGNOLI, 2014; JUNQUEIRA, 2017; MARAFON, 2018). No final
de 2002, o termo gênero (gender) é adjetivado como ideológico no Lexicon -
Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas, do Pontifício
Conselho para a Família. Posteriormente, a polêmica também repercutiu nos
movimentos capitaneados por partidos conservadores e de extrema-direita
1. Mestre pelo Programa de Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (Av. Tamandaré, 6000 - Jardim Se-
minário - Campo Grande/MS, Brasil - CEP 79117-900). http://lattes.cnpq.br/6416062206341287. http://orcid.
org/0000-0003-4086-3487. E-mail: rzanataalbertini@gmail.com.

Ebook IV SIGESEX 551


que se espalharam pela Europa, com o pretexto de defender a família e os
valores tradicionais cristãos (KOVÁTZ; POIM, 2015). Para muitos desses
movimentos, a “ideologia de gênero” seria fruto do marxismo, embora, de sua
parte, o neomarxista Diego Fusaro (2017) culpe o integralismo econômico da
ordem mundial capitalista pela sua criação e difusão no Ocidente.
As iniciativas antigênero disseminadas pelo mundo elegeram a
educação como uma das atividades preferenciais a serem protegidas dos
perigos que tal pretensa ideologia representaria, assim como fez o governo
da Hungria, que baniu investigações sobre gênero ao alegarem que são
desprovidas de caráter científico (PARKE, 2018). No Brasil, inspirados
no movimento “Escola sem Partido”, houve uma sucessão de projetos de
lei prescrevendo a proibição da simples nomeação do conceito de gênero
em atividades curriculares e extracurriculares (BORGES; BORGES, 2018;
GUILHERME; PICOLI, 2018). Da mesma forma, discursos e promessas
contra a “ideologia de gênero” tomaram conta dos palanques políticos
brasileiros nas eleições de 2018.
Em comum entre grupos de tendências políticas e religiosas tão
diversas a se erigir contra o gênero, está a alegação de que o termo seria uma
espécie de senha para a homossexualidade e para a negação da diferença
sexual, como reportou Judith Butler (2004), que contesta essa acusação.
Como ela, outros autores se propuseram a arguir que os sintagmas “teoria
de gênero”, “ideologia de gênero” ou “ideologia queer” e similares são
estranhos ao campo científico dos estudos de gênero, e seriam rótulos sem
referente (GARBAGNOLI, 2014), fruto de uma compreensão equivocada
e fantasiosa (SANTOS FILHO, 2016) ou até mesmo de um “sincretismo
caricatural ruim” (BERNINI, 2016, p. 378) de suas reflexões.
Dada a persistência e a amplitude das polêmicas sobre a “ideologia de
gênero”, não só no plano teórico, mas também prático, urge problematizarmos
esse sintagma. Para tanto, este ensaio lança mão de textos do filósofo francês
Paul Ricoeur (1913-2005), que reconhece o campo dos estudos de gênero,
embora ele próprio não o tenha adentrado – assim como fizera em relação
à psicanálise, ao marxismo e o estruturalismo, com os quais estabelecera
interlocução, sem se fixar num desses rótulos (SAVAGE, 2002). Nosso
objetivo é recorrer a Ricoeur para, num primeiro momento, buscar nele as
chaves de interpretação para o conceito mais genérico de ideologia; num
segundo momento, a partir de suas considerações, vamos refletir mais
propriamente a respeito do sintagma “ideologia de gênero”.

552 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


1- Pensar a ideologia com e como Ricoeur
Em mais de um momento de sua trajetória intelectual, sobretudo a
partir de um curso ministrado na Universidade de Chicago em 1975, Ricoeur
enfrentou a reflexão sobre o conceito de ideologia, que é revestido de intensas
polêmicas desde Napoleão – o qual chamava a seus inimigos de “intelectuais”
e “ideólogos”, de maneira deliberadamente pejorativa. Antes que se deixar
intimidar pelas polêmicas e ciente dos usos indevidos e abusos da ideologia, o
filósofo francês sentiu-se por ela instigado, e se dispôs a abordar tal fenômeno,
em sua dimensão linguística, desde uma fenomenologia “semântica” ou
“genética”2 (RICOEUR, 1978, 2015). Sua finalidade era recuperar os vários
sentidos de ideologia.
A referência mais emblemática no tema é Marx, que repercute a crítica
de Feuerbach à religião e toma o termo ideologia em sentido negativo para
frisar o aspecto da falsa consciência e da inversão da realidade – ideia essa
que passou a predominar no entendimento geral sobre o termo, tanto dentro
como fora do âmbito do materialismo dialético. Desde então, palavras como
dissimulação, distorção, engodo e fantasia – que representam o oposto do
significado de ciência – passaram a compor a teia semântica da ideologia.
Depois de Marx, Althusser, Manheim, Weber e Geertz também se debruçaram
sobre a temática, cada qual com contribuições distintas que, inclusive, frisaram
sentidos positivos do termo.
Em sua hermenêutica crítica de base fenomenológica, Ricoeur se
encarregou de recapitular as reflexões anteriores sobre a ideologia e de
desenvolvê-las, tornando produtivo o conflito de interpretações envolvido
nesse conceito complexo. Para ele, a ideologia se mostra um fenômeno
inexpugnável, dada a própria constituição simbólica do tecido social. Ela não
consiste num objeto ou tema de pensamento, mas sim numa condição ou
campo que nos precede, no qual e a partir do qual pensamos e habitamos,
já que seria impossível para indivíduos e pessoas submeterem tudo ao exame
da razão. Assim, a ideologia opera como uma “imaginação social e cultural”
(RICOEUR, 2015, p.11): um código de interpretação da realidade, de modo
análogo a outros produtos (como a utopia, a crítica, a religião, as artes, a
filosofia, a ciência e as tecnologias). A conjugação entre retórica e política faz
da ideologia a forma mais exímia de “reino dos -ismos” (RICOEUR, 1978, p.
47), como o humanismo e o socialismo, por exemplo.
2. “Uma fenomenologia genética se esforça para escavar a superfície da significação aparente até as significações mais
fundamentais” (RICOEUR, 2015, p. 363).

Ebook IV SIGESEX 553


No entender de Ricoeur, toda ideologia dispõe de três características
fundamentais: 1) a distorção ou deformação do real (pois a realidade é
complexa e dinâmica, enquanto a ideologia é simplificadora e mais estável);
2) a legitimação ou dominação, já que implica sistemas de poder e autoridade,
desde os quais se pensa, atua e avalia tudo à volta; e 3) a identificação ou
integração, porquanto possui uma função simbólica, como componente de
imaginação cultural e de mediação do vínculo social, operando na constituição
da identidade dos grupos (seja daquele ao qual se pertença, seja do grupo do
outro). Contudo, como toda a interpretação da realidade tem seus limites,
os códigos culturais de um grupo permanecem invisíveis e irrefletidos para
seus próprios membros. Essa “cegueira ideológica” (RICOEUR, 1990, p.
71) explica porque a ideologia nunca é reconhecida em primeira pessoa: ela é
sempre de outrem, do diferente.
Esse ponto cego leva Ricoeur a repensar a relação entre ideologia
e ciência (ou, noutras palavras, entre ideologia e verdade), e a apontar uma
“armadilha epistemológica” que está à espreita de todos aqueles que desejam
abordar cientificamente o fenômeno da ideologia, como o fazem as teorias
críticas: “Admite-se com muita facilidade que o homem da suspeita está isento
da tara que ele denuncia: a ideologia é o pensamento de meu adversário; é o
pensamento do outro. Ele não sabe, eu, porém, sei”. (RICOEUR, 1990, p. 65,
grifos do autor). O próprio princípio aristotélico da diferença de graus de rigor
nos assuntos práticos (éticos e políticos) em relação aos assuntos geométricos
solapa toda pretensão das Ciências Humanas e Sociais contemporâneas de
empreender uma reflexão total e de falar desde uma posição não ideológica
para empreender sua crítica às ideologias (RICOEUR, 1978), dada a
impossibilidade de ter consciência plena de seus condicionamentos e de
assumir um ponto de vista externo, isento e totalizante. A proposta ricoeuriana
é a de pensar a ciência e a ideologia não mais em clave antitética (típica do
positivismo), mas dialética, mantendo a tensão entre ambas, de modo evitar
tanto a confusão como a aniquilação. Desse modo, o valor dessas ciências
é preservado à medida que a crítica é voltada a elas próprias, para que seus
próprios saberes não se transformem em dogmas – como ocorrera com o
marxismo (RICOEUR, 1990).
Como Manheim, Ricoeur também se propõe a pensar a relação entre
ideologia e utopia, em que essa aparece ora como uma espécie daquela –
enquanto ambas compõem a estrutura simbólica da experiência humana
(RICOEUR, 2015) –, ora como sua contraparte. Pensadas em suas diferenças,

554 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


a ideologia opera como “imaginação reprodutiva” que dissimula a realidade
vigente e se vincula à classe dirigente; doutra parte, a utopia age como uma
“imaginação produtiva”, que enfrenta e contesta a realidade, e costuma estar mais
ligadas às classes que estão em ascensão (RICOEUR, 1990, 2002). Ademais, a
hipótese de Ricoeur é de que “as ideologias e as utopias, ambas, dizem respeito
ao poder. A ideologia é sempre uma tentativa para legitimar o poder, ao passo
que a utopia se esforça para substitui-lo por outra coisa” (RICOEUR, 2015, p.
336). Assim, a utopia teria um quê de epokhé husserliana, que põe em suspensão
as crenças sobre o mundo, a fim de projetar o olhar para um lugar outro (u-topia,
com efeito, significa não-lugar), numa espécie de “poesia social” (termo que
Engels utilizava com desdém) cujo fim é imaginar um “outro modo de ser”
(RICOEUR, 2002, p. 357) para a sociedade e a cultura. Ao pensar modos
alternativos em várias esferas – outra sociedade, família, sexualidade etc. –, a
utopia mostra seu valor; ela é “para a existência da sociedade o que a invenção é
para o conhecimento científico” (RICOEUR, 1976, p. 24).
Na interpretação de Ricoeur, o grande problema da ideologia e da
utopia é decorrente de sua própria ambiguidade: o risco de cada uma assumir
contornos patológicos, quando sua função de imaginação deixa de ser
construtiva e passa a ser destrutiva. O patológico da ideologia se dá quando
sua função conservadora se excede a ponto de se petrificar; o patológico da
utopia acontece quando sua função excêntrica e subversiva – de imaginar
uma realidade nova – se torna esquizofrênica, fantasmagórica e escapista
(RICOEUR, 1976, 2002, 2015). Diferente do que vemos no senso comum,
a aproximação ricoeuriana da ideologia e da utopia não deprecia ambas,
tampouco dá relevo a uma em detrimento da outra. Importa sua dialética, pois
o que cada uma possui de são pode ir socorro do que há de patológico na outra.

2- Pensar a “ideologia de gênero” a partir de Ricoeur

Na primeira seção, nossa proposta foi pensar a ideologia com e como


Ricoeur, no esforço de compreender alguns pontos-chave de sua reflexão, os
quais procuramos transmitir de forma breve e fiel. Agora, daremos um passo
além desse aporte teórico, aplicando-o ao trato do sintagma “ideologia de
gênero” – mantido entre parênteses de modo intencional até este momento
para, enfim, ser interpretado criticamente.
O genitivo “de gênero” dessa dita ideologia vai nos remeter ao campo já
bem estabelecido dos estudos de gênero, que são constituídos por disciplinas

Ebook IV SIGESEX 555


e referenciais teóricos diversos, cujos pontos em comum são sua origem nas
várias ondas do feminismo e seu caráter crítico, no objetivo de “entender,
analisar e desafiar os modos distintos em que o gênero serve como um marcador
significativo da identidade social” (ESSED; GOLDBERG; KOBAYASHI,
2005, p. 1). Desde quando atingira sua maioridade nas décadas de 1980 e
90 nos Estados Unidos da América, esse campo não se resumiu ao contexto
acadêmico, mas esteve essencialmente ligado às lutas das mulheres, de modo
que a dimensão sócio-política lhe é inseparável (HERMANN; CYROT-
LACKMANN; PEIFFER; ROUCH, 2012). A expansão do campo também
redundou nos estudos LGBT e queer, bem como nos estudos sobre os homens
e as masculinidades mais recentemente (HEMMINGS, 2006).
De pronto, o vínculo dos estudos de gênero com o feminismo aponta
mais que uma mera designação de origem: o sufixo “-ismo” mostra o próprio
campo como devedor de uma ideologia e mantenedor da memória de seus
acontecimentos fundadores. Junto a esse forte elemento de integração, estão
também os de legitimação (explícita em termos como o “empoderamento”,
por exemplo) e de distorção (representadas nas visões de mundo, que são
condicionadas às perspectivas específicas de cada grupo). Ora, decorre dessa
fenomenologia a impossibilidade de afirmar que os estudos de gênero – assim
como os demais campos das Ciências Humanas e Sociais – sejam isentos de
ideologia.
Vamos ainda além: o tipo de imaginação social a que os estudos de
gênero acenam aproxima-os mais da utopia do que da ideologia, pelo fato de
proporem rupturas com a estrutura simbólica vigente e de projetarem outros
mundos possíveis. De fato, embora possamos perceber certa reserva ao vínculo
entre utopia e estudos de gênero em Butler – pelo menos em Problemas
de gênero, obra na qual o sentido de utópico é próximo ao de irrealizável
(BUTLER, 1999) –, também percebemos abordagens mais favoráveis
em outras pesquisadoras (DAVIS; EVANS; LORBER, 2006; RISMAN;
LORBER; SHERWOOD, 2012), que elaboram suas próprias visões utópicas
sobre um mundo no qual o gênero é repensado e até abolido (especialmente
no meio burocrático). Assim, a utopia não fica reservada apenas à literatura
ficcional feminista – que explora as transformações das relações de gênero de
um modo como não acontece nas utopias masculinas (FEMENÍAS, 2013) –
mas também aparece como uma dimensão da literatura científica desenvolvida
pelos estudos de gênero. É nesse sentido que Delphy (2018) fala em “impulsos
utópicos” de tais estudos:

556 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O que seriam os valores, os traços de personalidade dos indivíduos, a
cultura de uma sociedade não hierárquica, nós não o sabemos e temos
dificuldade em imaginá-lo. Mas, para o imaginar, é preciso pensar antes
de mais que isso é possível. [...] Somente imaginando o que não existe,
se pode analisar o que existe; porque, para entender o que existe, é ne-
cessário perguntar-se como isso existe. (p. 212).

No entanto, se podemos afirmar que os estudos de gênero têm uma


dimensão ideológica e utópica, outra coisa é afirmar que eles sejam tão somente
ideológicos e utópicos, desprovidos de cientificidade. É aí que a enunciação
do sintagma “ideologia de gênero” aponta não apenas uma compreensão
insuficiente de um dado assunto, mas uma estratégia que repete, hoje, aquela
atitude napoleônica denunciada por Ricoeur (1978):

É bem possível que o mero uso pejorativo da ideologia exija algum


«Napoleão» – real ou potencial – para transformar um termo descri-
tivo em uma arma polêmica. Mesmo quando é dirigido contra os efei-
tos ocultos da dominação, o mero uso polêmico da palavra expressa a
reivindicação da vontade de poder do outro; para essa vontade de poder,
ideologia é o nome do pensamento do Outro, meu adversário. (p. 45,
grifos do autor)

Assim, a polêmica gerada pelos inventores e difusores da famigerada


“ideologia de gênero” revela o esforço dispensado na manutenção do poder
por parte desses agentes, assim como traz à tona o próprio aparato ideológico
que eles tentam dissimular, como o falocentrismo, o conservadorismo,
o machismo, o patriarcalismo e o heterossexismo (BUTLER, 1999;
PILCHER; WHELEHAN, 2004). Os estudos de gênero tornam-se
alvos preferenciais desses ataques porque descortinam e denunciam essas
ideologias, e mais – como propusemos aqui –, porque têm uma dimensão
utópica que propõe formas alternativas de relações sociais, de identidade e
de sexualidade, que poderiam remediar a “esclerose das instituições mortas”
(RICOEUR, 2002, p. 235).
Outrossim, o próprio conservadorismo pode ser encarado como uma
utopia ou contrautopia (RICOEUR, 2015), pois visa não apenas a conservar
as instituições em voga, como também propõe a restauração de um passado
modelar – o que é patente, por exemplo, em discursos que evocam a “família

Ebook IV SIGESEX 557


tradicional” para contraporem o progresso reivindicado pelas questões de
gênero e sexualidade. Quando comparamos o conservadorismo com o que há
de propositivo nos estudos de gênero, um aparece diante do outro como uma
contrautopia, cada qual com sua proposta peculiar de mundos possíveis.

Considerações finais

Ao propormos abordar reflexivamente o conflito de interpretações


sobre a “ideologia de gênero”, ousamos tirar esse sintagma dos parênteses para
deixar falar os diversos sentidos envolvidos nas questões de gênero. Assim, bem
ao estilo de Ricoeur, não nos furtamos à polêmica, mas a deixamos trabalhar,
no afã de com ela aprender.
Ao longo deste esforço de pensar com e como Ricoeur, e também além
dele, acabamos por encontrar um convite a expandir nosso entendimento.
Mais que respostas prontas, encontramos questionamentos e tarefas, que nos
emulam a repensar nossas próprias ideologias e a combater o que há de doentio
com o que há de sadio nelas e nas utopias, seja as que denominamos “nossas”,
seja as “dos outros”.
Aprendemos também que a atitude simplista de taxar o pensamento
alheio como ideológico não apenas mascara a ideologia dos acusadores, como
também compromete as possibilidades de diálogo. Para que o debate honesto
aconteça, é preciso que haja reconhecimento – palavra cara ao Ricoeur da
maturidade –, quando as partes se admitem mutuamente a fim de chegar a certos
consensos em prol do bem comum. Para tanto, dois princípios hermenêuticos
são necessários: a boa vontade de escutar o outro e o empenho num verdadeiro
trabalho de tradução – isto é, procurar compreender o que, a princípio, é
estranho, do mesmo modo como ocorre quando aprendemos um idioma
estrangeiro. Sem esse reconhecimento minimamente estabelecido, a pecha
de ideologia continuará a afastar muitos desavisados de um conhecimento
suficiente dos estudos de gênero, ao preferir temê-los e repeli-los com base tão
somente na opinião de seus opositores.
Parafraseando um dos primeiros motes ricoeurianos – “o símbolo dá a pensar”
– podemos dizer ao final deste ensaio: o gênero dá a pensar! Seja para endossar ou
criticar pontos dos estudos de gênero, que eles sejam levados honestamente em
consideração e submetidos ao escrutínio justo. Rechaçá-los in toto e a priori é já
deixar que a razão seja derrotada pela superstição e pelo preconceito.

558 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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562 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Erótica masculina
Erotic male
Adailson S. Moreira1

RESUMO: Homens e mulheres são diferentes em sua igualdade


ontológica, implicando que, embora tenham os mesmos imperativos físicos,
incluindo os sexuais, cada um os experimenta de modo singular, porque o corpo
é diferente. Este estudo tem por objetivo refletir sobre o erotismo masculino, a
dinâmica do homem com relação ao próprio corpo, da sociedade com relação
ao corpo masculino, abordando aspectos da intimidade masculina, ainda
pouco explorados.
PALAVRAS-CHAVE: Masculinidade; Erotismo; Sexualidade.

ABSTRACT: Men and women are different in their ontological equality, implying
that although they have the same physical imperatives, including the sexual imperatives, each
one experiences them in a singular way because the body is different. This study aims to reflect
on male eroticism, the dynamics of man with regard to the body itself, of society with regard
to the male body, addressing aspects of male intimacy, still little explored.
KEYWORDS: Masculinity; Eroticism; Sexuality.

Introdução

Homens e mulheres são acentuadamente diferentes em sua igualdade


ontológica. Pertencem à mesma espécie, porém, são diferentes, propiciando que
dentre o conjunto de respostas humanas, as sexuais sejam igualmente diferentes.
Isso quer dizer que, embora portadores da capacidade de experimentar sensações
físicas e psicológicas, incluindo as do âmbito afetivo e sexual, cada qual as
experimenta de seu modo singular, porque o corpo, a história, a educação que
recebem e as expectativas que despertam são diferentes, além do fato de que “...
as associações homem-masculino e mulher-feminino não são óbvias, devendo-
1. Doutor em Psicologia Clínica, pelo Núcleo Junguiano, da PUC-SP. Professor Adjunto da UFMS – Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas. Av. Ranulpho Marques Leal, 3484 – CP 210 – CEP 79620-
080 – Três Lagoas – MS, fone: 67-3509-3724, E-mail: adailsonsm@hotmail.com.

Ebook IV SIGESEX 563


se considerar as percepções sobre masculino e feminino como dependentes e
constitutivas às relações culturais...” (MATOS, 2001, p. 47).
Assim, podemos afirmar que:

[...] o sentimento típico de ser masculino ou feminino permanece cons-


tante, mas os traços e comportamentos que dão suporte à identidade
construída podem variar muito entre diferentes sociedades, diferentes
pessoas de uma mesma sociedade e em diferentes momentos da vida de
uma mesma pessoa. (WANG; JABLONSKI; MAGALHÃES, 2006,
p. 54)

A cultura moldou durante os milênios da história humana,


comportamentos e concepções a respeito das demandas corporais de cada
um dos sexos, que podem ser traduzidas pelos arquétipos correspondentes, e
prescrevendo normas e interditos, de modo a organizar a sociedade e as uniões
entre as pessoas e suas consequências em termos de descendência e sucessão
patrimonial e, mais recentemente, incluindo e validando afetos. Assim,
identificamos que a sexualidade, embora tenha uma base biológica, é muito
mais um constructo social e histórico (WEEKS, 2003, p. 40).
É da realidade do dia-a-dia, e das interações entre as pessoas, e suas
crenças, concepções e visões de mundo, que se moldam os usos que fazemos
do corpo. O ser humano se constrói e reconstrói continuamente, assim como
a sociedade.
Ao longo da história, as concepções em torno do sexo e das uniões
surgiram e sofreram transformações e adaptações ao sabor das ideias (filosóficas,
políticas, religiosas, médicas, etc.), determinando os papéis que cada um
deveria desempenhar para se encaixar e ser aceito na sociedade. Contudo,
desvios sempre existiram, porque a diversidade é o padrão da natureza humana,
e foram tratados, nessa trajetória, como doença, comportamento anormal,
possessão demoníaca, pecado, etc.
Em praticamente todos os tempos os homens dominaram as mulheres,
e outros homens mais fracos. A dominação sempre foi encarada como
característica essencialmente masculina e estimulada desde cedo, fomentando
outra das características do macho: a competitividade, já que é necessário
dominar para não ser dominado.
A natureza, nesse sentido, dotou o macho de grande parte das espécies de
força física superior, característica que foi útil para a conquista e manutenção do

564 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


poder entre os humanos, na forma, especialmente, da guerra, que foi, em reflexo
das características agressivas do macho humano, provavelmente, a atividade que
mais ocupou a humanidade, seja na ação ou na preparação, haja vista a quantidade
e a duração das guerras registradas pela história (AURÉLIO, 2005, p. 38).
A mesma agressividade masculina pode ser notada na área sexual.
A atividade sexual humana há muito que se desligou da procriação e
das limitações dos períodos férteis, desenvolvendo em paralelo a capacidade
de sentir prazer em suas dimensões física e psicológica: “... nos últimos
quatro milhões de anos, a espécie humana tem sido capaz de distinguir
conscientemente sexo de reprodução” (TAYLOR, 1997, p. 7).

Embora o sexo não seja de modo algum uma coisa nova ou pertinente
apenas aos seres humanos, o orgasmo – no sentido de uma sensação
prazerosa usufruída pelos dois sexos fora de um contexto reprodutivo e
buscado de um modo deliberado e experimentado – é as duas coisas. Na
escala evolucionária, o Homo sapiens é um recém chegado ao mundo, e
o orgasmo um complexo e sofisticado fenômeno quase exclusivo dessas
estranhas e novas criaturas bípedes. (MARGOLIS, 2006, p. 14)

Mais do que apenas ato físico, o sexo se reveste de símbolos e significados


que vão além, personificando maneiras de ver e entender o mundo. E, como
resultado, produz o erotismo e o prazer experimentado pelos humanos.
O homem, como dominador, sempre teve oportunidade de conhecer e
explorar as potencialidades corporais, suas e de outras pessoas, na forma dos
treinamentos e exercícios esportivos e militares, além das atividades sexuais.
O acesso ao próprio e a outros corpos, de homens e mulheres, propiciou
conhecimento maior das artes do sexo. O mais conhecido guia do amor e do
sexo, por exemplo, é o Kamasutra, escrito por Vatsyayana, por volta do século
III, na Índia, e tido como repositório de sabedoria erótica oriental direcionado
especialmente aos homens (McCONNACHIE, 2012).
Mesmo assim, esse tema continua a ser cercado por tabus em muitas
sociedades até os dias atuais, ordenando e reprimindo o sexo e a sexualidade a
partir de ideologias fundamentalistas (EISLER, 1996, p. 13).
O século XX trouxe inúmeros avanços a partir de movimentos
reivindicatórios de direitos e igualdade entre os sexos.
O movimento feminista que floresceu por todo o século XX,
timidamente no início, e mais forte na segunda metade do século, se preocupou

Ebook IV SIGESEX 565


em estudar e entender o sexo e a sexualidade, o corpo feminino e suas reações,
a partir do ponto de vista das próprias mulheres, revelando um erotismo
altamente complexo. A contrapartida masculina, por sua vez, não aconteceu.
Ou melhor, começa a acontecer somente agora, no início do século XXI.
Podemos afirmar que a emergência da masculinidade como tema importante
foi fruto das próprias alterações das pautas feministas e desdobramentos dos
estudos de gênero, que também apontaram novas e diferentes estratégias de
busca da equidade entre homens e mulheres (MATOS, 2001, p. 46).
Atualmente entendemos que a construção da masculinidade envolve
fatores psicológicos, sociais e culturais que nada têm a ver com a genética,
desempenhando papéis não menos determinantes, talvez mais até do que ela
(BADINTER, 1993).
O movimento feminista contribuiu para uma mudança de perspectiva
ao questionar o ideal de homem viril, abalando a identidade masculina como
dominante, e expressando a sua rejeição à repressão e controle das mulheres pela
sociedade patriarcal, influenciando na mudança do comportamento sexual,
na dinâmica dos relacionamentos, nos padrões familiares, etc. (SANTOS;
COSTA, 2009, p. 3).
Esse estudo tem por objetivo uma aproximação, por meio de revisão
bibliográfica, da temática do erotismo masculino a partir de autores que
se debruçaram sobre o tema, oriundos das diferentes áreas humanas, mas
em especial da antropologia, sociologia e psicologia, capazes de responder
questões importantes acerca da dinâmica do homem com relação ao próprio
corpo e da sociedade com relação ao corpo masculino, abordando aspectos da
intimidade masculina, ainda pouco explorados.

1- Do Corpo ao Prazer

Os primeiros anos de vida servem para descobrirmos nosso corpo


e aprendermos a utilizá-lo e a controlá-lo em suas demandas fisiológicas:
movimento, sensação, percepção, alimentação, excreção e interação, dentre
outras.
O controle dessas demandas é decorrência da série de fatores que
fundamentam o contexto histórico individual e coletivo que chamamos de
cultura: é de pequeno, e no seio da família, que cada um recebe a cultura de sua
gente. Podemos entender, assim, que a vida se desenrola num processo dialético,
tendo de um lado a permanência e a reprodução dessa cultura, em que as normas

566 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


são seguidas e a tradição é mantida, e de outro, situações de ruptura, em que esta
ordem é questionada e as revoluções, como transformações, podem eclodir.
Nesse sentido, uma grande revolução nos costumes fez com que o corpo,
o sexo e o erotismo masculinos passassem à pauta dos estudos, especialmente,
a partir do impulso de pesquisadoras feministas (BEAUVOIR, 1980;
BADINTER, 1993; PALEY, 2001), e mais recentemente pelos próprios
homens (DORAIS, 1994; FRIEDMAN, 2002; WEEKS, 2003; SILVA,
2006; BORIS, 2011; HICKMAN, 2013).
É assim que voltamos nosso olhar para o corpo masculino e sua capacidade
de pensar, produzir e sentir prazer, e em que se delineia uma erótica, entendida
como a arte de amar no sentido do pensamento grego (FOUCAULT, 1985),
porém adaptado ao nosso tempo, com o resgate da ênfase ao prazer, que se
divide em prazer compartilhado ou solitário; um não excluindo o outro.
Esta é uma grande diferença, característica da nossa época, no
mundo ocidental, porque em vários períodos da história houve restrições
à masturbação, especialmente naqueles de acentuada influência religiosa
(RODRIGUES Jr., 1991, p. 28).
Essas mudanças acontecem porque surge a compreensão de que o corpo
é o veículo através do qual sentimos o prazer, porém, a forma como esse prazer
acontece depende de condições sociais e históricas bem específicas: “... embora
o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo
que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo”
(WEEKS, 2003, p. 38).
Parodiando Beauvoir (1980), alguns autores afirmam que ninguém
nasce homem, mas torna-se (BADINTER, 1993, p. 3; RISÉ, 2001, p. 1;
BORIS, 2011, p. 18). Isso equivale a dizer que o masculino, assim como o
feminino, é uma construção histórica e coletiva, permeado por concepções
filosóficas, religiosas, políticas, etc. “Em outras palavras, a virilidade não é um
dom, é fabricada de acordo com um referencial idealizado de ser homem”
(SANTOS; COSTA, 2009, p. 3). É esse referencial que atualmente passa por
transformações.
Paim e Strey afirmam, nesse sentido, que a socialização modela os
corpos pelas normas, representações culturais e simbólicas próprias de cada
sociedade: o corpo é o laço da interação entre o indivíduo e o grupo, a natureza
e a cultura, a coerção e a liberdade (2004, p. 1).
Com isso, amplia-se nossa compreensão psicológica a respeito da
constituição do sujeito e podemos perceber que o corpo torna-se o meio de

Ebook IV SIGESEX 567


expressão das singularidades e alteridades (SANTOS, 2011, p. 95). Ou seja, é
por esse corpo que interage que nos constituímos individualmente, formando
o que conhecemos como subjetividade, a partir da influência dessas interações,
que funcionam como estímulos que provocam uma ação e reação subsequente.
O processo de construção das subjetividades convive com a imposição
coercitivamente atada às homogeneizações de determinados modelos culturais
hegemônicos: estratégias que são orientadas pelo controle dos desejos e das
vontades, objetivando moldar e regular comportamentos (MATOS, 2001, p.
49).
A construção do masculino é um processo doloroso, e, por vezes, cruel,
e dura a vida toda, já que, para o homem, a masculinidade precisa ser provada e
sustentada por todo o ciclo vital. “A todo momento, o homem tem que provar
a sua masculinidade, que se manifesta, principalmente, por atos de violência”
(SANTOS; COSTA, 2009, p. 2).
Santos & Costa lembram, ainda, que “certas formas de coragem são
testadas em situação de afirmação de sua virilidade, por medo de perder a
estima do grupo, de ser chamado de ‘fraco’, ‘delicado’, ‘mulherzinha’, ‘veado’.”
(2009, p. 3).
A sociedade está organizada segundo a dicotomia anatômica. O que
significa que existem padrões, comportamentos, roupas, vocabulário, etc.,
estabelecidos para cada um dos sexos.

A anatomia divide os seres humanos em dois tipos físicos distintos


quanto à sua genitalidade e ao seu corpo, estabelecendo no meio so-
ciocultural, inclusive, qual a imagem de homem e mulher que se deve
tomar como realidade única possível. A anatomia, portanto, o corpo,
vai ser tomado como parte da constituição da identidade sexual e de
gênero do sujeito... (SILVA, 2006, p. 123)

Nascer possuindo um pênis faz com que o menino precise aprender um


conjunto de regras para direcionar a sua vida e atuação no mundo: o homem
é moldado pelo próprio corpo, significando que sua personalidade se forma a
partir do núcleo que é o seu pênis. O menino vai aprender a ser homem por
uma série de interditos.

Ser homem se diz mais no imperativo do que no indicativo (...) ser ho-
mem implica um trabalho, um esforço que não parece ser exigido das

568 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


mulheres. É mais raro ouvir “seja mulher” como uma chamada à ordem,
enquanto a exortação feita ao menino, ao adolescente e mesmo ao adul-
to masculino é lugar comum na maioria das sociedades. (BADINTER,
1993, p. 3-4)

Se a aprendizagem é, por vezes, truculenta, a masculinidade, por outro


lado, propicia vantagens e privilégios consideráveis.

A masculinidade hegemônica é sustentada e mantida por grande par-


te do vasto segmento dos homens que se sentem gratificados, usufrui
seus benefícios e, dependendo da situação e da relação estabelecida,
pode acionar diferentes atribuições de masculinidade... (MATOS,
2001, p. 50)

Ser dono de um pênis significa acesso ao poder com facilidade. Apesar


das campanhas intensas do movimento feminino, os homens ainda estão
no comando, na maioria das vezes. O que não quer dizer que o movimento
esteja fragilizado ou que haja resistência de setores conservadores da
sociedade. Contudo, parte dessa condição de sub-representação feminina
no poder ainda se deve ao fato de que leva tempo para se forjar líderes
verdadeiros e para grande parte das mulheres, a luta pela sobrevivência
continua a ser a realidade.
Atualmente, sexualidade e poder parecem andar unidas, em uma série
de situações, implicando mudanças consideráveis em termos políticos. Nesse
sentido Weeks aponta a emergência de uma nova política acerca da sexualidade,
originada a partir dos movimentos feminista, gay, lésbico e transexual, que “...
tem questionado muitas das certezas de nossas tradições sexuais, oferecendo
novas compreensões sobre as intrincadas formas de poder e dominação que
modelam nossas vidas sexuais” (2003, p. 46).
O sexo e a intimidade passaram para a esfera das liberdades individuais;
não é mais um assunto do Estado, e a religião não tem mais o poder de exigir
daqueles que se negam às suas determinações. Passou a ser assunto popular, foi
trazido para a sala de estar pelos meios de comunicação e provocou a erosão
progressiva do pudor (SOHN, 2011, p. 109).
A partir desse questionamento do papel do masculino e da mudança
estrutural provocada no sistema patriarcal, o próprio homem pôde questionar
e redirecionar seu papel social e dogmas a que estava obrigado, e iniciar o

Ebook IV SIGESEX 569


longo caminho em direção a maior compreensão desse universo tão complexo,
como também é o feminino. Com isso, a própria experiência da sexualidade do
homem ganhou novo relevo.

2- A Experiência Masculina da Sexualidade

O homem é moldado pelo próprio corpo, significando que sua


personalidade se forma a partir do núcleo que é o pênis, ou seja, o falo é o
centro da vida masculina.
Nós somos o produto da história pessoal: tudo o que vivemos, ouvimos,
aprendemos, sentimos, etc., se conjuga para formar a percepção e moldar a
nossa resposta do/ao mundo.
Para entender como o homem vivencia o prazer, primeiro precisamos
buscar a visão e os aspectos físicos dessa sensação que determina a existência
do homem de modo tão singular.
Para a configuração da sexualidade masculina o pênis ocupa o lugar
central e as questões ligadas ao tamanho acabam adquirindo proporções
consideráveis no entendimento que o homem tem da própria masculinidade.
O tamanho e o formato dos pênis são hereditários e podem variar
bastante. Independente do tamanho, a maioria dos homens, se pudessem,
aumentariam o tamanho do próprio pênis (RICHARDS, 1980, p. 64;
HICKMAN, 2013, p. 26).
Contudo, até o momento, não existem técnicas eficazes para aumentar
o tamanho. Além disso, não é o tamanho que define o prazer. Porém, o
tamanho simboliza a própria masculinidade: quanto maior, mais próximo
do ideal.
A excitação segue vias diversas: basicamente não são apenas os atos
sexuais que proporcionam prazer, mas também suas significações. Podemos
constatar isso na imensa variedade de formas que se pode utilizar para
alcançá-lo.

[...] a extrema diversidade que constatamos na maneira de os homens


se proporcionarem prazer sexual e nos motivos invocados para fazê-
-lo mostra que não são tanto os próprios atos sexuais que oferecem o
prazer, mas as significações e as interpretações vinculadas a esses atos
– quando mais não seja, classificando-os como sexuais ou não-sexuais,
excitantes ou repugnantes. (DORAIS, 1994, p. 31)

570 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Apesar dessa diversidade de estímulos que podem excitar um homem,
a visão parece ser um veículo privilegiado. Hickman nos diz, a respeito de
homens heterossexuais:

[...] os homens (e seu adendo cúmplice) escrutinam sexualmente quase


todas as mulheres, independente de sua atratividade: pernas e bundas
na frente, seios, virilha e pernas vindo a seu encontro. É uma atividade
bastante subliminar; os homens são como os programas antivírus, mo-
nitorando, monitorando. (2013, p. 180)

Com os homens homossexuais não é diferente. Não é à toa que o homem,


hetero ou homossexual, é o maior consumidor de pornografia. Porém, mais do
que ver e consumir pornografia, o homem pensa bastante em sexo, em grande
parte do dia, e também durante o sono, na forma de sonhos (HICKMAN,
2013, p. 181).
O primeiro e mais evidente indício de excitação masculina é a ereção, que
é “... a preparação do pênis para a sua função sexual...” (RICHARDS, 1980, p. 9).

A ereção é involuntária: não está sob o comando do dono do pênis,


mas é uma resposta reflexiva para os múltiplos estímulos psicogênicos e
sensoriais. As melhores ereções, claro, passam por vias físicas e psicoló-
gicas. (HICKMAN, 2013, p. 175)

A ereção ocorre em resposta a estímulos que podem ser físicos (toque


pessoal ou de outra pessoa, filmes, fotos, revistas, etc.) ou inspirados por
fantasias, e estas podem ser memórias de fatos que são revividos ou apenas
imaginados.
Dorais diz que: “as fantasias sexuais são cenários elaborados pelo
indivíduo para responder interiormente às tensões geradas, por sua curiosidade
sexual, suas necessidades afetivas, suas angústias interiores e sua busca de
prazer” (1994, p. 73).
Os estímulos são captados e percorrem a coluna vertebral, fazendo
com que os nervos locais liberem comandos químicos para abrir as artérias
penianas; o sangue flui dessas artérias para milhares de finas vias, enchendo
o corpo esponjoso (parte central, onde corre a uretra) e o corpo cavernoso
(os gêmeos – câmaras esponjosas laterais). Com isso o pênis incha, cresce,
engrossa da base para a ponta e eleva-se (HICKMAN, 2013, p. 175).

Ebook IV SIGESEX 571


Paley aponta a importância cultural da ereção, como fonte da
concretização da masculinidade, ao observar e correlacionar o significado do
termo usado para aquele que é incapaz de ter e manter uma ereção: impotente.
O que significa sem força (2001, p. 18); ou seja, ter uma ereção implica em ter
força.
Richards afirma que “as descobertas da roda e do elétron mudaram os
rumos da humanidade, mas certamente nenhuma descoberta foi tão importante
para o homem quanto a de seu pênis e sua capacidade de proporcionar prazer e
satisfação” (1980, p. 5).
A maioria dos homens masturbam-se em todas as fases da vida e
consideram a prática complementar a suas relações sexuais com parceiras/os
(DORAIS, 1994, p. 79).
Durante o ato sexual o homem, sozinho ou acompanhado, foca o seu
prazer no pênis e sua estimulação.

De repente a excitação atinge um limite que é indicado emocionalmen-


te e você percebe a aproximação do clímax. Durante todo este processo,
sentimentos de desconforto, culpa, vergonha e outras associações per-
turbadoras são expulsos da mente. (RICHARDS, 1980, p. 10)

Na fase de aproximação do orgasmo, o homem vive um momento único


de desligamento do mundo ao redor e nada mais é real, exceto seu próprio
prazer.

Um reflexo incondicionado inteiramente incontrolável move os mús-


culos que envolvem a uretra, cujas contrações provocam violentos es-
pasmos. A pressão exercida faz com que o sêmen contido na uretra suba
para ser expelido da ponta da glande em forma de pingos ou de um
fino fio de esperma. As diversas sensações de prazer provocadas pelo
sêmen quente saindo pela uretra, as contrações dos músculos internos
e as sensações de uma excitação emocional íntima constituem, juntas, o
que chamamos de orgasmo ou gozo. (RICHARDS, 1980, p. 10)

Após o gozo o homem necessita de um período de recuperação que


varia grandemente. Não é prática muito comum o homem buscar múltiplos
orgasmos, embora nada impeça que aconteça após esse breve intervalo.
A experiência masculina do gozo parece tão intensa que o homem só

572 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


precisa de um, ao contrário da mulher que consegue vários orgasmos numa
mesma relação.
Sobre esse aspecto, não podemos nos esquecer de que ejaculação e
orgasmo costumam ser associados pelos homens, e mesmo que ele tenha
experimentado vários orgasmos, a ação sexual é considerada concluída com a
ejaculação.
Com isso, podemos afirmar que a experiência masculina da
sexualidade se apresenta como processo coletivo de experimentação, e nesta
a personalidade vai se formando e ganhando consistência por oposição aos
aspectos considerados femininos. Fazer-se homem quer dizer eliminar traços
considerados afeminados.
Mas o que dizer de homens que adotam conscientemente alguns
aspectos afetivos e comportamentais femininos: o prazer experimentado por
homens homos e heteros é diferente?
Acreditamos que a resposta seja não. O prazer em nada difere por causa
da parceria: com um homem ou uma mulher, o prazer será o mesmo.

À guisa de encerramento

A sexualidade ainda é um imenso continente selvagem, muito falado


atualmente, mas pouco compreendido. Dentro desse continente, o erotismo
masculino é uma das faces ainda menos estudada, fruto da arrogância
masculina que raramente se viu como objeto do próprio conhecimento,
preferindo sempre estudar o outro: mulheres, crianças, sociedades tribais, etc.
Não tivemos a pretensão de esgotar o assunto, mas tão somente tentar
uma aproximação e delimitação do território que se tem pela frente para ser
explorado.
Nesse sentido, podemos observar que “o modelo tradicional masculino
requer do homem frieza, insensibilidade, altivez, opressão, poder, força,
virilidade, enfim, o que representa superioridade física e intelectual”
(SANTOS; COSTA, 2009, p. 2), porém, negligencia os aspectos mais
humanos e relacionais.
Desde criança o homem é educado para exercer a agressividade, ser
competitivo, vencedor, líder. A contrapartida é que deve também evitar
demonstrações de fragilidade e sensibilidade para reforçar sua masculinidade.
Nesse afã acaba por perder-se nas teias da objetividade hierarquizante,

Ebook IV SIGESEX 573


perdendo inclusive, em alguns casos, a própria dimensão de interioridade. É
dessa visão que se origina uma verdadeira repulsa a ser ou se identificar com
qualquer elemento atribuído ao universo feminino. Com isso, o homem nega
a existência de sua parte feminina, relegando-a ao inconsciente, como se esse
movimento a fizesse desaparecer.
Nesse sentido

[...] ao se dizer homem ou mulher, o indivíduo não apenas se autoiden-


tifica, como também se identifica com um grupo de pessoas que com-
partilham a mesma categoria de pertencimento e, presumivelmente,
as mesmas características relevantes daquela categoria. (WANG; JA-
BLONSKI; MAGALHÃES, 2006, p. 55)

Com isso podemos concluir que, embora existam inúmeros trabalhos


que abordem este tema, o universo da intimidade masculina ainda é pouco
explorado, oferecendo grandes desafios tanto para os homens, que devem
encontrar um modo de ser pós-moderno, adequado aos desafios atuais, quanto
para os pesquisadores, que se deparam com um fenômeno ainda em mutação e
multifacetado, como qualquer outro aspecto humano.

Referências

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BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Trad. de Maria


Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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574 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Trad. Maria


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Ebook IV SIGESEX 575


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Autêntica, 2003. p. 35-82.

576 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


O discurso sobre os papeis sociais dos
gêneros masculino e feminino apresentados
no livro didático
The discourse about the social roles of masculine
and feminine gender presented in the textbook
Angelica da Silva Terra1

RESUMO: A análise de textos no livro didático de Língua Portuguesa


do 9º ano da rede pública permite uma investigação dos processos de formação
ideológica acerca do feminino e do masculino. As representações dos papéis
sociais dos gêneros apresentadas na escola contribuem para o reforço de
padrões sociais com base nos estereótipos de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Livro didático. Papéis sociais. Feminismo e
Machismo.

ABSTRACT: The analysis of writing proposals in the textbook of Portuguese


Language of the 9th year used in the public network allows an investigation of the processes
of ideological formation about the feminine and the masculine. Representations of the social
roles of the genres presented in the school contribute to the reinforcement of social patterns
based on gender stereotypes.
KEYWORDS: Textbook. Social roles. Feminism and Machismo.

Introdução

Foram analisados, no livro didático de Língua Portuguesa para o 9º ano


(CEREJA, MAGALHÃES, 2015) utilizado por escolas públicas, textos que
apoiam as propostas de redação para os estudantes. A análise das recorrências
linguístico-discursivas dos papéis sociais dos gêneros apresentadas para
fomentar a produção textual demonstra um evidente construção e manutenção
1. Graduada em Letras Literatura pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e professora efetiva da
rede municipal de ensino de Dourados desde 2018. O trabalho apresentado é um recorte da dissertação elaborada
como mestranda do PPG Letras, Área de Concentração Linguística e Transculturalidade, pela mesma instituição, no
período de 2017 a 2019. Email: angelica697@hotmail.com.

Ebook IV SIGESEX 577


dos discursos machistas. Promovendo reflexões que possam contribuir para o
entendimento sobre os processos de construção desses discursos da Análise do
Discurso, aqui tratada como AD, de linha francesa, que permite a subjetividade de
interpretações. A exploração dos enunciados partirá para uma etapa explicativa,
para “identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência
dos fenômenos. Esse é o tipo de pesquisa que mais aprofunda o conhecimento da
realidade, porque explica a razão, o porquê das coisas” (GIL, 2002, p.42).

1- Análise dos discursos presentes no livro didático

A AD foi escolhida como linha teórico metodológica para essa pesquisa


por ser uma área de estudos sobre a linguagem em uma perspectiva mais ampla
do que apenas uma análise de um texto, “nos coloca em estado de reflexão e,
sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos aos menos
sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem.” (ORLANDI,
2010, p.9), com uma análise linguística atravessada pelas Ciências Sociais e
pela Psicanálise. O sistema escolar é lugar de construção e reforço de ideologias
e valores, onde são estabelecidos conceitos acerca do certo ou errado, o que
entendemos como verdade ou não, funcionando como um dos aparelhos de
controle ideológico do estado (ALTHUSSER, 1998).

O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra;


senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que
falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso;
senão uma distribuição e apropriação do discurso com seus poderes e
seus saberes? (FOUCAULT, 2014, p.42).

As práticas discursivas observáveis nas escolhas literárias dos autores do


livro didático são mobilizadas pelos leitores para compor seu campo ideológico
acerca dos papéis sociais possíveis para os gêneros feminino e masculino,
revelando uma atitude ética e política.

O discurso, por princípio, não se fecha, é um processo em curso. Ele não


é um conjunto de textos, mas uma prática. É nesse sentido que conside-
ramos o discurso no conjunto das práticas que constituem a sociedade
na história, com a diferença de que a prática discursiva se especifica por
ser uma prática simbólica. (ORLANDI, 2010 p.41)

578 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Não se trata de uma leitura para identificar os papéis ali inscritos, caindo
na falácia da confusão entre o enunciado e o discurso. O sujeito, ao elaborar
um enunciado, mobiliza diversas memórias discursivas e é na materialidade
linguística que o discurso se manifesta. Trata-se então de

[...] não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos


significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como
práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certa-
mente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais do que
utilizar esses signos para designar as coisas. É esse mais que os tornam
irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse “mais” que é preciso fazer
aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2008, p.42).

Nesse sentido, buscou-se no texto uma análise partindo do escrito,


mas em uma perspectiva de interpretação do que foi construído em todo o
contexto social para que o discurso se manifestasse daquela maneira. Todos
os conflitos acerca das concepções das relações de gênero, toda a formação
discursiva sobre o comportamental e o cruzamento com o cotidiano vivido
pelo indivíduo, resultam em uma manifestação ideológica. O texto então,
“nada tem de tranquilo: supõe sempre “lutas, vitórias, ferimentos, dominações,
servidões”. (FISCHER, 2013, p.130)
Os exemplos explícitos de práticas sexistas - aquelas que atribuem
expectativas de características e comportamentos com base no sexo, como
se fosse algo determinado naturalmente – no material didático, encontram
fundamento nas práticas discursivas da sociedade atual. Essas construções são
atravessadas por diversos discursos, quer para afirmá-lo, quer para contestá-lo.
Todos os ajustes, mais do que negar ou proibir algo, existem como afirmação.
E, nesse sentido, constituem práticas que vão formando os objetos de que
falam – no caso, os conceitos dos papeis femininos e masculinos no âmbito
do escolar.

Ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de


um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por
fatos que reclamam sentidos, e também por sua memória discursiva,
por um saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentido por se
inscreverem em formações discursivas que representam no discurso as
injunções ideológicas (ORLANDI, 2010. p.53).

Ebook IV SIGESEX 579


Logo, as escolhas semânticas revelam uma carga ideológica por trás
delas. A regularidade dessas escolhas demonstra que,

[...] para que uma série de signos exista, é preciso - segundo o sistema
das causalidades - um “autor” ou uma instância produtora. Mas esse
“autor” não é idêntico ao sujeito do enunciado; e a relação de produção
que mantém com a formulação não pode ser superposta à relação que
une o sujeito enunciante e o que ele enuncia. Não tomemos, pois se-
ria demasiado simples, o caso de um conjunto de signos materialmente
moldados ou traçados: sua produção implica um autor; não há, entre-
tanto, nem enunciado nem sujeito do enunciado. Poderíamos lembrar
também, para mostrar a dissociação entre o emissor de signos e o sujeito
de um enunciado o caso de um texto lido por uma terceira pessoa, ou
do ator representando seu papel. Mas esses são casos extremos. (FOU-
CAULT, 2008, n.p.).

O livro didático analisado apresenta a sessão “Agora é a sua vez”, onde


são colocados textos base para as produções dos alunos. Exemplos do mesmo
gênero textual ou variadas informações sobre um mesmo tema vêm compor
o repertório para a produção textual que se pede em seguida. No caso da
produção do gênero conto, o material traz propostas de início. Recortes de
contos brasileiros iniciavam histórias que os alunos deveriam continuar, como
o seguinte:

Figura 1- proposta de redação

Fonte: Cereja & Magalhães, 2015.

Nesse contexto, nota-se que as práticas discursivas apresentam


representações que restringem a mulher a um papel colocado pelo patriarcado
nas relações de poder na sociedade, a notar-se pelo tratamento dado à

580 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


maternidade tanto na ficção quanto a respeito da gravidez na adolescência que
veremos adiante, reflete um saber que reforça certos estereótipos femininos.
Além disso, veremos como expressam significados construídos social e
culturalmente, almejando produzir certos tipos de identidades sociais por
meio de diferentes formas de representação.

Uma vez atingido o processo discursivo que é o responsável pelo modo


como o texto significa, o texto ou textos particulares analisados desa-
parecem como referências específicas para dar lugar à compreensão de
todo um processo discursivo do qual eles – e outros que nem conhece-
mos – são parte. Eles tampouco estão relacionados apenas aos processos
discursivos que eram objeto daquela análise em particular e permane-
cem abertos a novas análises. O que temos, como produto da análise, é
a compreensão dos processos de produção de sentidos e de constituição
dos sujeitos em suas posições (ORLANDI, 2010, p.72).

A materialidade linguística – o texto, atravessada pelas condições de


produção em sentido estrito e amplo, é “lugar de relação com a representação
da linguagem” (idem, 2010) e um espaço, definitivamente, de significação,
através da discursividade. A proposta de redação que traz no início um garoto
chamado Nilo, já manifesta algo interessante para a análise logo nas primeiras
linhas: “(...) gritou para a mãe que queria comer”. O cenário apresentado é
restrito: a pessoa responsável pela refeição do garoto não poderia ser nenhuma
outra que não a mãe. É também a mãe que, implicitamente, é responsável pela
organização da casa, pois a personagem demonstra a sua autoridade apontando
para que o garoto guarde suas coisas antes de lavar as mãos para comer.
Observa-se também a reafirmação do papel de “cozinheira” da mãe pela
resposta que a mesma dá: “Como se eu não soubesse” e pelo fato da mesma já
se encontrar na cozinha, o ambiente próprio para o preparo e consumo das
refeições, atendendo prontamente às expectativas do filho. Tal caracterização
já traz as formações imaginárias (ORLANDI, 2010) correntes sobre as
atribuições da mãe: esperar o filho voltar da escola, cozinhar, organizar a casa,
etc. O conteúdo do livro didático, impresso em 2017, se encaixa na denúncia
de Alves e Pitanguy de mais de três décadas atrás:

O movimento feminista procura, portanto, através de uma nova ação


pedagógica, demonstrar como os livros didáticos reproduzem a imagem

Ebook IV SIGESEX 581


tradicional da mulher e confirmam a diferenciação de papeis tanto no
lar quanto na esfera profissional: a mulher costura ou cozinha ou varre,
o homem lê o jornal; a mulher é enfermeira ou secretária, o homem,
médico ou executivo (ALVES, PITANGUY, 1985, p. 63).

Nas estruturas narrativas ocorrem as articulações dos elementos, em


que os sujeitos se relacionam com uma infinita variedade de objetos e os
valores atribuídos a eles, intencionalmente ou não. Na sessão dedicada ao
gênero “debate regrado”, o tema apresentado para discussão – gravidez na
adolescência - foi abordado por cinco textos de diferentes fontes. Apesar do
aparente grande volume de informações para o padrão costumeiro da seção em
questão, uma breve análise sobre os dados levantados evidencia nitidamente
um trato desigual para os meninos e as meninas.
O primeiro texto, um infográfico com informações estatísticas
variadas, julga relevante informar a quantidade de parceiros sexuais das jovens
grávidas ao longo da vida até a gravidez, se elas usavam ou não algum método
anticoncepcional, se estudavam, trabalhavam, qual a renda média, com que
idade perderam a virgindade, quanto tempo duraram seus relacionamentos, se
eram fiéis, entre outras coisas. Entretanto, os dados estatísticos a respeito dos
garotos que engravidaram essas adolescentes se resumem apenas a sua idade
média. A página seguinte traz dois textos, uma reportagem com mais dados
estatísticos a respeito e um relato pessoal retirado de um fórum online sobre
gravidez e maternidade. Sobre os dados, todos se referem aos jovens de maneira
geral ou exclusivamente às meninas, incluindo evidências de um juízo de valor,
como no trecho “Ao engravidar, (...) essas adolescentes têm seus projetos de vida
alterados” que considera que apenas a vida da mulher se altera com a gestação
de um filho, eximindo o homem de qualquer responsabilidade a respeito.
Como estratégia para a prevenção desse fenômeno, o texto traz que “(...) é
preciso: Investir em políticas, programas e ações que promovam os direitos, a
autonomia e o empoderamento de adolescentes e jovens, em especial meninas
(...)”. Mais uma vez, reduzindo o papel de responsabilidade masculina sobre
sua capacidade reprodutiva, inclusive perante ao poder público, sugerindo que
não é necessário sequer ações preventivas destinadas aos homens.
O segundo texto é o depoimento de uma mãe adolescente se posicionando
positivamente perante a sua condição de jovem grávida, dizendo que é feliz ao
lado do marido, embora reconheça o peso das dificuldades e do julgamento das
pessoas ao redor. Novamente, a voz sobre a gravidez parte apenas da perspectiva

582 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


feminina, não apresentando aos estudantes nenhum ponto de vista que não o
masculino, como se não fosse algo que permeasse o universo masculino, algo
totalmente pautado pelo patriarcado, que atribui a responsabilidade e o cuidado
com os filhos como “tarefa” feminina. Na página seguinte, seguem mais dois
textos sobre a temática, um abordando a responsabilidade sobre o sexo – sem
adicionar nada no tocante ao papel masculino, e outro sobre um reality show
americano que exibe a rotina de meninas de 16 anos grávidas.
A proposta da seção, de fornecer informações suficientes para que os
jovens possam debater e sustentar argumentos sobre alguma polêmica, em
realidade não parece mostrar vários espectros da mesma situação. A gravidez
na adolescência é tratada unilateralmente, desconsiderando a perspectiva
obvia de que não é, até o momento presente de evolução na genética humana,
possível engravidar sem a participação, ao menos biológica, do sexo oposto.
O tema não aborda a tangente de que toda maternidade presume também
uma paternidade, toda garota grávida inclui, necessariamente um ser humano
do sexo masculino que a engravidou. Não se atribui responsabilidade sobre a
prevenção, tão pouco reflexão sobre as consequências.
A Formação Discursiva a qual estão expostos os estudantes proporciona
restrições ideológicas a medida que apresenta apenas uma possibilidade de
argumentação para aquela produção. Evidentemente, o sujeito tem em si o poder
de ruptura com os discursos correntes que o atravessam, é menos provável a
negação de um papel quando essa opção não lhes é oferecida. A partir daí, convém
mencionar o conceito de subjetividade de Foucault. Para ele, “afirmar que o
sujeito é um efeito das relações de poder e das relações de saber não significa que
ele está submetido a uma força incontornável que predispõe os acontecimentos”
(FOUCAULT apud MAGALHÃES, 2008, p.13). Embora um sujeito seja
resultado de todos os discursos que o atravessaram, ele em si tem a liberdade para
uma vastidão infinita de condutas perante determinado discurso mesmo que
suas práticas discursivas tragam consigo um contexto no qual foram passíveis de
surgir. Entende-se então, nessa mescla, o processo de subjetivação que

[...] referem-se ao modo como o próprio homem se compreende como


sujeito legítimo de determinado tipo de conhecimento, ou melhor,
como o sujeito percebe a si mesmo na relação sujeito-objeto. [...] Po-
der-se-ia pensar que falar em sujeitos livres seria uma contradição em
termos, já que sujeito é aquele que está sendo sujeitado, contudo, para
Foucault, mesmo sendo sujeitados os indivíduos possuem um campo de

Ebook IV SIGESEX 583


possibilidade para várias condutas e diversos comportamentos. Desse
modo, o sujeito é livre, pois “se há relações de poder em todo o campo so-
cial, é porque há liberdade em todo lugar (MAGALHÃES, 2008, p.13).

Devemos então compreender a relação entre o poder do discurso e a


liberdade de aceitá-lo ou não, não em termos de exclusão mútua: como se fosse
possível apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo. O processo de subjetivação aceita que a
constituição do sujeito se dá mediante a tensão entre essas duas posições. De
fato, tampouco há neutralidade qualquer em um sujeito. Ao mesmo passo em
que há liberdade para ação, ao falar, o sujeito ocupa um lugar ideologicamente
marcado no qual estão inscritas relações de poder. No discurso de um sujeito,
estão marcadas vozes sociais, representações simbólicas que estabelecem
tanto individualidades quanto identidades coletivas. Para a AD, é importante
reconhecer que todos os elementos constituintes de um discurso derivam de
uma organização social, possibilitando o estabelecimento de interações sociais
com diferentes sujeitos. Sempre haverá a construção de um cenário possível
para um discurso, partindo de outros pré-existentes.

Figura 2 – infográfico para debate regrado

584 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Figura 3 – Reportagem e relato para debate regrado

Ebook IV SIGESEX 585


Figura 4 – Textos para debate regrado

586 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Considerações em construção

Esta breve análise permite constatar nesse processo discursivo que


mesmo depois de décadas dos primeiros movimentos feministas e, mesmo com
tantos estudos que, por si só ou em cruzamento com outros, desconstroem a
ideia de um padrão comportamental para cada gênero, ainda são dominantes
os conceitos tradicionais acerca dos papéis sociais do homem e da mulher. Os
livros didáticos, que podem ser a base para toda a construção de ideias em sala
de aula, reproduzem um discurso dominante na sociedade, o qual produz um
saber que concebe as mulheres apenas com os papéis há tanto estabelecidos
pelos valores patriarcais. Apesar de todas as mudanças ocorridas entre o final
do século XIX e o início do século XX, essa visão sobre o feminino demonstra-
se permanecer.
Cada sujeito experimenta a significação de maneira única, individual,
de forma que um mesmo discurso será entendido de formas diferente. Simone
Beauvoir desenvolve em seus escritos a ideia de que “em nossa cultura é o homem
que se afirma através de sua identificação com seu sexo, e esta autoafirmação,
que o transforma em sujeito, é feita sobre a sua oposição com o sexo feminino,
transformado em objeto, e visto através do sujeito.” (ALVES, PITANGUY,
1985, p.52).
Diante dos textos analisados, podemos perceber um funcionamento
ideológico sobre os sentidos possibilitados nos corpus que revelam o momento
vivido nessa comunidade, pouco transformada no que tange à igualdade de
gênero, permeada pelos jogos de poder.

Analisando a verdade das proposições e as relações que as unem, pode-


mos definir um campo de não-contradição lógica: descobriremos, então,
uma sistematicidade; remontaremos do corpo visível das frases à pura
arquitetura ideal que as ambiguidades da gramática, a sobrecarga signi-
ficante das palavras, mascararam, sem dúvida, tanto quanto traduziram.
Mas podemos inversamente, seguindo o fio das analogias e dos símbolos,
reencontrar uma temática mais imaginária que discursiva, mais afetiva
que racional e menos próxima do conceito que do desejo; sua força anima
as figuras mais opostas, para, entretanto, fundi-las logo em uma unidade
lentamente transformável; o que se descobre, então, é uma continuidade
plástica, é o percurso de um sentido que toma forma em representações,
imagens e metáforas diversas (FOUCAULT, 2008 p.194)

Ebook IV SIGESEX 587


Do período inicial do movimento feminista aos dias atuais, uma série
de inserções foram importantes para o reconhecimento e a visibilidade da
posição da mulher e o consequente amadurecimento das discussões, inclusive
com avanços nos estudos acadêmicos sobre a questão do gênero. Entretanto,
aparentemente esses fatores e até mesmo a própria popularidade do movimento
feminista na atualidade, em muito pouco alcançam a formação do jovem
estudante, que ainda tem a divisão entre masculino e feminino, tal qual está
cristalizada e incorporada nas relações sociais. Os padrões de comportamento
e as expectativas psicológicas, políticas e sociais para cada gênero têm
funcionado como um esquema cognitivo, um sistema de aprendizagem,
fortalecido pela experiência e pelas ações repetidas cotidianamente que
naturalizam os conceitos e não se deixam atravessar com facilidade por
qualquer questionamento a respeito.
O diálogo entre a militância por igualdade e os estudos de gênero é,
sem dúvida, uma chave importante para os processos de evolução social e
emancipação do pensamento individual.

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588 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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Ebook IV SIGESEX 589


Os discursos masculinistas e a sexualidade
do homem na revista Playboy
The masculine discourses and the sexuality of the
man in the Playboy magazinE
Douglas Josiel Voks1

RESUMO: Este trabalho busca analisar como os discursos masculinistas


presentes na revista Playboy inferiram em uma normativa para a sexualidade
dos homens na década de 1980. Como metodologia de pesquisa, optou-se pela
análise do discurso, por entender que esse periódico não apenas apresentou a
sociedade da sua época, mas também, através de seus editoriais, projetou um
padrão de sexualidade.
PALAVRAS-CHAVE: Sexualidade, Revista Playboy, Gênero.

ABSTRACT: This work seeks to analyze how the masculinist discourses present in
the Playboy magazine inferred in a sexual norms for the sexuality of the men in the 1980s.
As a research methodology, the discourse analysis was chosen because it understood that this
journal not only introduced society of his time, but also, through his editorials, designed a
pattern of sexuality.
KEYWORDS: Sexuality, Playboy Magazine, Gender.

Introdução

Olhar para o passado e construir uma narrativa histórica é trazer à tona


uma interpretação do que se elaborou, em termos de práticas e discursos,
a respeito de um determinado período e/ou de um determinado processo
histórico. Isso porque esse passado não está dado e, segundo Ricoeur (2007,
p.147), o historiador é quem o faz, a partir da sua operação historiográfica,
buscando “representar as coisas passadas”. Nesse sentido, para Jorn Rusen (2001,
1. Doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Professor do curso de História da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Esse artigo é resultado da pesquisa “Reconfigurações de uma
masculinidade hegemônica nas páginas da revista Playboy: Brasil décadas de 1980 e 1990”, financiado pela CAPES
e vinculado ao Laboratório de Relações de Gênero e Família – LABGEF/UDESC. E-mail: douglas_voks@hotmail.
com

590 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


p. 154), “o passado é interpretado e se constitui em uma história que passa a ter
uma função na cultura contemporânea”, que é a de investigar as pressões sociais
exercidas sobre os homens para mantê-los inseridos naquilo que é considerado
“normal” pelos discursos vigentes nas sociedades do presente.
Assim, o olhar sobre o passado é fundamental, principalmente com base
nas teorias de Michel Foucault (2006), para quem os sujeitos são construídos
historicamente e, portanto, são frutos de uma constituição permanente, engendrada
em relações de saber-poder que envolvem questões políticas, econômicas e sociais.
Nesse sentido, esse trabalho busca olhar para o passado e compreender como
os discursos masculinistas presentes na revista Playboy ajudaram esse periódico
a desenhar um modelo de sexualidade para uma normativa que se enquadrasse
dentro da manutenção de privilégios através de complexas relações de poder.
Nessas relações de poder está imbricada a disputa das várias masculinidades,
pois os estudos do masculino têm evidenciado que ser homem não é sempre igual,
assim como ser homem é diferente a masculinidade também encampa várias formas
e significações. Nesse contexto, ser homem pobre, rico, branco, negro, homossexual
ou heterossexual, por exemplo, implica vivências e trajetórias distintas, marcadas
por discursos e práticas específicas para cada um desses recortes. Essas ideias
permitem uma ampliação do entendimento da masculinidade e da sexualidade
com diferentes concepções, interseccionalidade e mutabilidade, em que o gênero
é mais do que papéis ou funções de homens ou mulheres, pois é um organizador
social e cultural, estando, portanto, além dos sujeitos (ECCEL, 2009, p. 27).
Para este estudo foi realizada uma detalhada investigação nas fontes
documentais. Pesquisou-se as edições publicadas da revista Playboy na década de
1980, ou seja, entre a edição de número 054 e 173, selecionando-se 44 documentos
entre anúncios publicitários e matérias jornalísticas. Em termos metodológicos, as
propagandas e matérias jornalísticas foram analisadas a partir da ótica da análise
do discurso. O método de análise proposto por Michel Foucault, denominado de
“arqueologia”, visa apreender como são construídos determinados sujeitos sociais
a partir dos movimentos realizados no âmbito da ordem do discurso.

1- O masculinismo e a ideia de homem na Playboy

[...] ‘ser homem’ não era apenas ter um corpo de homem, mas mostra-se
‘masculino’ e ‘macho’ em todos os momentos. (...) Um dos preços da
masculinidade, portanto, era uma eterna vigilância das emoções, dos
gestos e do próprio corpo. (DAMATTA, 1997, p. 37).

Ebook IV SIGESEX 591


A construção do masculino e sua afirmação se estabeleceram por
muito tempo, por isso que foi descrito pelo antropólogo Sérgio DaMatta
(1997). Ser homem, por décadas, significava ser forte, viril, dominador e não
transparecer as suas emoções, reafirmando o dito popular “homem não chora”.
Discursivamente para ser homem se deveria introjetar essas prescrições para
compor um ideal masculino socialmente aceito e facilmente reconhecido.
No entanto, ser homem é algo muito mais complexo do que apenas
traços inscritos no corpo, é portar “um conjunto de atributos morais de
comportamento, socialmente sancionados e constantemente reavaliados,
negociados e relembrados” (RIBEIRO, 2013, p. 467). Existem, portanto,
vários modelos de ser homem e masculino dentro de uma mesma sociedade
em um mesmo período histórico. Porém, cada sociedade em determinados
momentos constrói um modelo de masculinidade que se constitui como um
padrão cultural ideal pelo qual todos os homens se medem (KIMMEL, 1998).
Esse modelo é formulado a partir de narrativas e representações presentes na
cultura que apontam como os homens devem ser, como se comportar, do que
devem gostar e do que se aproximar ou se afastar.
Esse modelo seguiu como norma por muito tempo, mas passou a ser
questionado e reavaliado com as constantes transformações culturais e sociais
sobre tudo a partir dos anos de 1970 com os questionamentos contra sociedades
rígidas e padronizadas. A partir desse momento, ligado principalmente com o
consumo, surgem diversas expressões do masculino e diversas possibilidades de
ser homem. Nessa década e na década posterior em 1980 as representações do
que era ser homem se multiplicaram assim como as possibilidades identitárias.
Diante desse cenário plural, começou a surgir nos meios de comunicação
a ideia de crise do homem ou crise da masculinidade, justamente por conta
dessa multiplicidade de identidades, no qual diante de tantas possibilidades os
homens se sentiriam perdidos sem um modelo normativo. Crise no dicionário,
entre as várias definições, indica uma situação conflituosa e tensa, assim
podemos compreendê-la como um problema ou um mal estar. Dessa forma,
é difícil pensar em crise da masculinidade quando historicamente sabemos
que os homens sempre foram detentores de inúmeros privilégios. Através de
relações de poder vários mecanismos sociais são acionados e por vezes tornam
invisíveis esses privilégios, mas eles estão sempre presentes no cotidiano
masculino. Segundo Pedro Paulo de Oliveira (2004, p.143) “os homens de
classe média, quando se olham no espelho, se veem como seres humanos
universais generalizáveis. Eles não estão capacitados a enxergar como o gênero,

592 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


a raça e a classe afetam suas experiências”. Por consequência, os homens
assumem esses privilégios de forma consciente, mas também naturalizada
como algo intrínseco a condição masculina e que não se deseja perder.
Apesar de esses privilégios serem dados quase como algo naturalizado,
eles não são, pois são construídos historicamente. Nos anos de 1960 os
movimentos feministas buscando uma sociedade mais igualitária, passaram
a confrontar diretamente esses privilégios. Nos meios acadêmicos vários
questionamentos são discutidos e uma serie de discursos sobre as mulheres
começaram a ser produzidos, abalando uma sociedade marcada até então pela
dominação masculina.
Os estudos feministas foram fundamentais para que se questionasse
a dominação masculina, pois buscavam desmitificar a noção de “natural” na
vida de homens e mulheres, assim a primeira investida foi sobre a questão
da sexualidade em uma revisão crítica das principais teorias de caráter
essencialista e biológico que associavam o gênero a sexualidade e entendiam
como natural a subordinação das mulheres ao homem. Constatou-se que esses
modelos essencialistas não consideravam o contexto histórico e cultural para
compreender a questão do gênero (SIQUEIRA, 2006, p. 67).
Ao ser confrontada a masculinidade não mais se configura em
um conjunto imutável, pois os homens são levados constantemente a se
questionarem a respeito da sua masculinidade. Essa situação levou também
a um movimento de pluralização das possibilidades de ser masculino, e por
outro lado consequentemente para uma crise, pois os questionamentos
feministas abalaram as certezas dos homens (MONTEIRO, 2000, p. 87).
Como resultado dessa crise, se teve a consequente criação dos Men’s Studies ou
estudos masculinistas2. Esses estudos estavam preocupados com o despertar de
uma consciência dos homens em relação as prescrições sociais restritivas para o
comportamento masculino, a qual segundo eles, causariam diversos malefícios
físicos e psíquicos (OLIVEIRA, 2004,p. 172).
Eram estudos que utilizavam o gênero em suas análises e passaram a
considerar que assim como as feminilidades são construídas historicamente as
masculinidades também são, e por isso são históricos e mutáveis. No entanto,
esses estudos apesar de estarem ancorados no gênero, produziam discursos
2. A escolha do termo “masculinismo” mostra a vontade de fazer dele um equivalente ao feminismo. O argumento se
deve ao espelho invertido: os homens se diziam vítimas de violências conjugais, agredidos, na busca de um orgulho
identitário. O recurso psicológico é um dos seus vetores: atitudes paternais devem ser desenvolvidos, porém o recurso
físico não é abandonado: o masculinismo é também um musculinismo, que devota um culto aos super heróis, super-
genitores e superpotentes (BARD, 2004, p. 138). Com esses discursos o masculinismo chamou atenção das mídias,
principalmente em revistas voltadas para os homens.

Ebook IV SIGESEX 593


equivocados e colocavam os homens como vítimas de sua própria condição,
a categoria gênero foi distorcida e mal empregada nessas pesquisas. Por sua
vez, essas argumentações ajudaram a estabelecer uma percepção de crise,
apostando veementemente na vitimação do gênero masculino, afirmando que
as constantes reafirmações de sua identidade gerariam angústias e fragilidades.
Em agosto de 1989 em uma matéria especial intitulada “A Revolução
Masculina”, a revista Playboy discutia novas posturas e atitudes para o
surgimento de um “novo homem”. O título da matéria poderia ser substituído
por “revolução masculinista”, pois se percebe os discursos de vitimismo e
de perca de identidade presentes nessa matéria, principalmente ao afirmar:
“Chegou a nossa hora. Depois de assistir as conquistas feministas nos últimos
anos, começamos a virar o jogo e partir para a nossa transformação. Exigimos os
nossos direitos ao assumir sem constrangimento nosso lado emocional” (Playboy,
Agosto de 1989, n.8, p.62).
Esse discurso masculinista pautado no vitimismo ajudou a formular
uma outra concepção de “homem” para a revista. Através da discussão de
assuntos tidos como masculinos do âmbito privado, a revista prescrevia o
que era ser homem. Apresentando em suas páginas questões da atualidade,
principalmente os ligados ao sexo e ao masculino. Das mudanças em torno
desse homem evidenciou-se o seu lado frágil.
Para a Playboy, o homem poderia ser sensível, ter uma boa aparência,
gostar de romances, ser galante e educado e, ainda, deveria compreender o
corpo feminino e seus desejos, pois a força e a agressividade passaram a ser
vistos como algo não civilizado e ultrapassado. Na referida reportagem sobre
a revolução masculina, encontra-se uma síntese dos seus discursos ao longo
desses anos para compor esse ideal de homem, como ele deveria ser e agir.

O novo homem começa a tirar a carga de super-herói dos ombros e


respira aliviado. Pode, enfim, se mostrar menos intocável e, assumir
que também é frágil e sensível. A grande novidade é que descobrimos
a emoção. Educadas durante gerações e gerações para permanecerem
a sombra dos homens, as mulheres viraram a mesa. Nos anos 60 e
70, saíram as ruas, protestaram, exigiram seus direitos e, as mais ra-
dicais, até queimaram sutiãs em praça pública. Reclamaram e con-
quistaram. Enquanto isso, os homens, que cresceram com a missão
de se transformarem em adultos fortes e seguros, assistiam perplexos.
Muitos ficaram surpresos, muitos irritados e alguns solidários. Só que

594 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


a maioria perdeu o rumo e lentamente passou a questionar os va-
lores que tinham como correto (Grifos nossos) (Revista Playboy,
Agosto de 1989, n.8, p. 64).

A revista começa afirmando assim como os discursos masculinistas, que


na passagem da década de 1970 com os movimentos feministas reivindicando
seus direitos e garantindo mudanças para as mulheres, os homens teriam se
sentidos perdidos. Esses movimentos haviam mudado estruturas seculares
de dominação. Então para a revista, caberia aos homens se adaptarem a esses
novos tempos, buscando algo vantajoso sobre isso: a sensibilidade e a emoção,
homens poderiam ser sensíveis.
A prática discursiva ao afirmar “reclamaram e conquistaram”, diminui o
ato político dos movimentos feministas, pois não foi uma reclamação, foi uma
luta. A mudança masculina por outro lado, é apresentada como uma revolução,
assim se desenha as diferenças entre gênero, constituindo importância a uma
e diminuindo outra.
Se os discursos masculinistas se encontram presentes no desenho dessa
ideia de ser homem para a revista Playboy, possibilitando o surgimento de
outros comportamentos e uma adequação ao seu tempo, destaca-se que a
revista encampa uma mudança na estética do “ser homem”, ou seja, elabora-se
uma nova roupagem. Já as estruturas de dominação permanecem inalteradas,
ao contrário os discursos masculinistas serviam para reafirmar a dominação
masculina. Além disso, esses discursos serviram também de base para
estabelecer uma nova pedagogia sobre os corpos masculinos, apresentando
novas práticas e novos saberes sobre a sexualidade do homem.

2- A sexualidade do homem: novas perspectivas

A construção de uma imagem de homem para a revista Playboy


perpassou principalmente pela sexualidade, pois essa era uma revista que
falava diretamente sobre sexo. Quase todos os assuntos abordados por ela,
de forma direta ou indireta, giravam em torno da sexualidade dos homens e,
por vezes, das mulheres também. Esse periódico teve um importante papel ao
abordar e discutir o sexo, apresentando modelos variados de comportamento,
de relacionamentos e formas de se relacionar com o corpo e com os prazeres.
O tema sexo e sexualidade não eram novos nos meios de comunicação.
Revistas femininas, de generalidades ou até concorrentes da Playboy abordavam

Ebook IV SIGESEX 595


o assunto, mas geralmente estavam ancoradas nos saberes científicos. A Playboy
tornou essa questão comum em suas páginas e, mais do que um saber médico
e científico, instaurou um saber “popular” ao apresentar dicas e conselhos de
experiências corriqueiras dos seus articulistas.
Nesse sentido, o que predominava é o que entende-se por conselhos
sexuais, com um linguajar mais próximo ao leitor pois, na maioria das vezes,
as colunas apresentam relatos dos seus escritores com um tom mais informal,
como se o colunista estivesse dialogando de forma descontraída com o leitor.
Isso mostra que, para a revista, o sexo era um assunto corriqueiro, podendo
ser discutido sem qualquer constrangimento. Em algumas chamadas de capas
pode-se ilustrar como esse tema era abordado na revista: “Massagens eróticas:
um guia completo (com fotos sensacionais) para você excitar as garotas com o
toque das mãos” (Playboy, março de 1980). “O segredo do orgasmo de trinta
minutos (confie na gente)” (Playboy, agosto de 1982). “Dez musas contam o
que fazem quando eles falham na hora H” (Playboy, agosto de 1989).
Essas chamadas, por estarem posicionadas na capa, mostram o interesse em
expor para o leitor o conteúdo que seria abordado na edição, o que evidenciava
também que a revista era consumida justamente pelo interesse dos seus leitores
em conhecer mais sobre essa temática. Essa prática discursiva sobre o sexo,
segundo Foucault (1976), estabelece procedimentos que incitam o sujeito a
falar sobre a sexualidade, discursos que podem ter efeitos sobre o próprio sujeito.
No entanto, a revista não se preocupava apenas em falar sobre o sexo, tinha
também a preocupação em mostrar para os seus leitores como esses poderiam
chegar ao sexo conquistando as mulheres. Em muitas capas encontramos
chamadas que buscavam ensinar ou ajudar os homens a conquistar as mulheres
e, por consequência, ter como finalidade o ato sexual. “Nos bares da (boa)
vida. Vinte lugares onde encontrar as melhores garotas dez do Rio e dez de
São Paulo” (Playboy, agosto de 1984). “As cantadas infalíveis: os truques da
sedução revelados por elas” (Playboy, agosto de 1988).
Nesses discursos, compreende-se que os homens estavam em busca
de prazer através do sexo e de mulheres, principalmente mulheres liberadas
e independentes que também estavam procurando por homens. E, como
indica a chamada de 1984, o que se buscava não era qualquer mulher, mas
sim “as melhores”, entendendo-se por isso mulheres jovens, bonitas e liberadas
sexualmente.
Além dessas matérias, a revista apresenta uma série de manuais de
conquista e sedução, apresentando o que os homens deveriam ou não fazer em

596 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


seus encontros ou aventuras amorosas e sexuais. Para a Playboy a capacidade
sexual dos homens era fundamental, mas não era uma capacidade marcada por
quantidade e sim por qualidade, e essa qualidade era “ensinada” pela revista.
Nesse sentido, os seus discursos passaram a inferir no corpo dos homens através
desses manuais que de forma quase que pedagógica ensina como os leitores
deveriam abordar as mulheres para conquistá-las. Em uma coluna intitulada
“A doce vida de Playboy”, encontra-se uma matéria apontando o “in” e o “out”
da sedução, a qual buscava mostrar para os leitores o que deveriam ou não fazer
ao sair com uma mulher.

IN
Olhar sério para a moça com um ar de elegante deslumbramento;
Levar o café da manhã para a namorada;
Dançar a dois (mostrando que alguns homens ainda gostam);
Flores (porque não engordam);
Telegrama fonado de amor, citando um poema de Drummond;
Pagar à vista (sempre).
OUT
Piscar o olho, e mandar torpedos através do garçom;
Boliná-la debaixo da mesa sem aviso prévio;
Cartão de crédito;
Discoteca;
Esperar que ela lhe traga o café da manhã.
(Revista Playboy, ed. 147, outubro de 1987, p. 25).

Esta coluna mostra que o homem para a revista era, sobretudo,


romântico e tentava ser sensível, porém, as pessoas que assumiam para sua vida
essa postura não deixavam de “ser homem”. A Playboy mostrou aos seus leitores
que novos comportamentos poderiam ser adotados sem abalar a sexualidade
heteronormativa. No entanto, não era apenas a ideia de homem e normativa
sexual que estavam sendo construídas nessas passagens. Por trás desses
discursos encontramos também normativas corporais, quando se afirma dar
“flores” porque “não engordam”, não apenas se desqualifica as mulheres não
magras, como reafirma também o ideal de beleza apresentado e personificado
pelas imagens que a revista trazia da nudez feminina. As imagens e os discursos
mostravam que ser bonita era ser magra e jovem.
As investidas discursivas sobre a sexualidade eram normativas e

Ebook IV SIGESEX 597


heterossexuais, mas dentro dessa sexualidade o sexo era abordado com ampla
liberdade, buscando quebrar tabus sexuais e falar abertamente sobre o tema.
Em uma edição especial de 1989, a revista faz um balanço dos anos de 1980,
apontando as mudanças comportamentais daquela década. O jornalista Ruy
Castro escrevia:

[...] a amizade colorida foi a contribuição original dos primeiros anos de


80, a uma organização mais democrática da vida sexual e talvez a última
possível nesse século. Consistia na possibilidade de se manter um leque
simultâneo de namoros excitantes e estáveis com várias mulheres [...]
A amizade colorida ficou prematuramente fora de moda em meados
dos anos de 80. Pintou o fantasma da AIDS, mas nem por isso mudou
o curso da história. Um dia a amizade colorida volta. (Revista Playboy,
Janeiro de 1989, n. 1, p. 91).

Essa liberdade sexual pode ser compreendida como um curto espaço de


tempo inserido entre o surgimento da pílula anticoncepcional e a AIDS. Não
foi um período em que a sexualidade se libertou completamente de um agente
opressor, pois as condutas morais ainda a reprimiam. Mas, foi um período
em que o sexo foi discutido publicamente pelos meios de comunicação e
vários tabus foram sendo deixados de lado. No entanto, após a epidemia do
HIV na década de 1980, vários comportamentos sexuais começam a mudar.
Os principais casos passaram a ser mais evidenciados no final dessa década e
início dos anos de 1990, quando os casos de infecção disparam. O aumento
da epidemia e a sentença de morte começaram assustar as pessoas. Em uma
matéria de maio de 1988 e sem a assinatura de um articulista, a revista pergunta
para algumas mulheres se a AIDS mudou o seu comportamento sexual. Eis
algumas respostas:

“Acho que todo mundo mudou o seu comportamento sexual, e o sexo


já não é uma coisa livre como era antes. Como a camisinha é um mal
necessário, já que transar sem camisinha é muito mais gostoso, o que eu
faço é sofisticar. Encomendo camisinhas da Suíça e de outros países”.
“A preocupação com a AIDS mudou a minha vida sexual. Agora penso
duas vezes antes de começar a namorar com alguém, e acredito que isso
não acontece apenas comigo”.
“Quando todos perceberam o perigo da AIDS, eu já estava casada, mi-

598 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


nha vida sexual, portanto, permaneceu inalterada. Com relação às mi-
nhas amigas, sinto que elas não conseguem se adaptar à camisinha. Já
que é assim, acho que todas deveriam se fixar num só parceiro. Noitadas
e orgias já eram”. (Revista Playboy, Maio de 1988, n. 5, p. 35).

Essas falas evidenciam o quanto esses comportamentos sexuais estavam


em vias de mudança, e cada vez mais se passou a buscar um parceiro fixo, e a
liberdade sexual estava abalada. Múltiplos parceiros, swing e orgias apresentados
como novas formas de prazer pela revista, passavam a ser comportamentos
reprovados pela sociedade e vistos com um olhar moralizante, pois a doença
passou a ser associada com promiscuidade. Essa mudança se refletiu nas
páginas da revista, no ano de 1989 percebe-se uma diminuição significativa
sobre o tema sexo ou comportamentos sexuais.

Considerações

Nessa pesquisa percebeu-se que a revista Playboy desenhou sobre os


corpos padrões que segundo Foucault tem como foco o poder disciplinador.
Todas as investidas sobre comportamentos e atitudes que definiriam o que era ser
homem e as condutas sexuais podem ser compreendidos como mecanismos de
construção de auto identidade. Para essa construção os discursos masculinistas
se fizeram presentes em vários momentos na revista, isso por que, eles ajudaram
a compor um ideal de “ser homem” e de norma sexual amparados em uma
ideia vitimista. Além disso, esses estudos masculinistas ajudaram a cria uma
nova “roupagem” para esse homem desenhado pela Playboy, no entanto as
estruturas de dominação masculinas não mudam, ao contrário são reafirmadas
pelo masculinismo. Além disso, essa liberdade não era acessível a todos, apenas
aos homens heterossexuais.
Percebe-se que a grande contribuição da revista foi falar abertamente
sobre sexo com o seu público leitor, quebrando tabus e apresentando o sexo
como um prazer a ser compartilhado. No entanto os discursos e a liberdade
sexual perdem espaço e força com o vírus do HIV, e liberdade sexual passou
a ser associado com promiscuidade, o que obrigou a revista começar a mudar
seus discursos e até diminuir em suas páginas o assunto sexo. Mas o fato
é que nessa década a revista prescreveu normativas de gênero e de sexo que
reafirmaram a dominação masculina.

Ebook IV SIGESEX 599


Referências

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Jaques (org) A história da Virilidade: a virilidade em crise. Petrópolis: Vozes, 2013.

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RIBEIRO, Cláudia Regina; SIQUEIRA, Vera H. Ferraz. O novo homem


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SILVA, Sérgio Gomes. A crise da Masculinidade: Uma Crítica à Identidade de


Gênero e à Literatura Masculinista. Psicologia ciência e profissão, 2006, 26 (1).

600 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Sob o medo e a rejeição: uma breve
reflexão acerca da identidade(s)
homossexual
With fear and rejection: a short reflection about
the gay identities
Helena Vicentini Julião1
Nayara Hakime Dutra de Oliveira2

O outro já não é feito para ser exterminado, odiado,


rejeitado, seduzido; ele é feito para ser compreendido,
liberado, reconhecido. (BAUDRILLARD, 1990)

RESUMO: Atualmente a luta pelos direitos e pelo reconhecimento da


diversidade sexual se faz presente. Compreender a identidade homossexual
e problematizar os imperativos sociais que dificultam a sua formação é, sem
dúvidas, pertinente. Desta forma, por meio de uma análise socio-jurídica,
pretende-se delinear acerca do processo de formação da identidade, destacando
os obstáculos, o preconceito e a exclusão social de sujeitos homossexuais.
PALAVRAS-CHAVE: HOMOAFETIVIDADE - IDENTIDADE -
IDENTIDADE HOMOSSEXUAL.

ABSTRACT: Currently the struggle for the rights and the recognition of the sexual
diversity is present. Understanding the homosexual identity and problematizing the social
imperatives that hinder their formation is undoubtedly relevant. In this way, with a social and
legal analysis, we intend to delineate about the process of identity formation, highlighting the
obstacles, prejudice and social exclusion of homosexual subjects.
KEY WORDS: HOMOAFETIVITY - IDENTITY - HOMOSEXUAL IDENTITY
1. Advogada. Mestranda em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Bacharela em Direito
pela Faculdade de Direito de Franca (FDF). Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Membro do Grupo de
Pesquisa - Prapes (Unesp/SP). Presidente da Comissão de Diversidade Sexual da 51 subseção da OAB/SP. Vice-Pre-
sidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões da 51 subseção da OAB/SP. hvicentinij@gmail.com. Unesp
Franca SP: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 - Jd. Dr. Antonio Petráglia. CEP 14409-160. Telefone 16 3706-8700
2. Professora Assistente Doutora do Departamento de Serviço Social da Unesp Franca SP. Vice líder do GEPEFA - Gru-
po de Estudos e Pesquisas sobre Famílias. Coordenadora do Projeto de extensão FAFAMI - Falar de família é familiar.
Pós doutoranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UERJ. nayarahakime@gmail.com. Unesp Franca
SP: Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 - Jd. Dr. Antonio Petráglia. CEP 14409-160. Telefone 16 3706-8700

Ebook IV SIGESEX 601


Antes de dar início a esta reflexão é mister enfatizar que a autora esta
ciente do terreno escorregadio que cerca a identidade homossexual, assim,
também reconhece que a tentativa de explicar todas as dimensões, ou, restringir
a vida de um sujeito à sua sexualidade pode ser empobrecedor para qualquer
estudo. Não obstante, destaca a necessidade de breves referencias à alguns dos
conceitos que permeiam o tema da identidade homossexual.
Há, também, que ressaltar que a finalidade do presente artigo não
será abordar ou, tampouco, elucidar acerca da Identidade de Gênero3. Desta
forma se faz primordial reconhecer e entender a diferença entre os conceitos
- Identidade Homossexual e Identidade de Gênero - pois, mesmo que
semelhantes, e até, complementares, não são sinônimos. A autora, seguirá,
portanto, ao redor da identidade do sujeito de modo genérico, com um breve
recorte para o sujeito homossexual.
Sobre a identidade, no geral, são inúmeras as discussões sobre a sua
conceituação, não sendo uma tarefa simples, tampouco sólida. Trata-se, portanto,
de um conceito dinâmico, não estático, em constante mutação, em outras palavras:
ocupa-se de uma metamorfose permanente. Por via de regra a identidade é um
fator diferenciado no qual indivíduos determinados podem possuir de posições
culturais, politicas e sociais especificas; sempre pontual, provisória e estabelecida
como resultado de circunstancias pessoais, sociais e históricas.
É neste prisma que Antônio da Costa Ciampra, em uma de suas obras,
elucida a respeito da identidade e de como se dá o processo de reconhecimento
do “ser” - do ser humano e da maneira de se identificar, a maneira de ser de cada
individuo.

Ser é ser metamorfoseada! A metamorfose é a expressão da vida. Como


tal é um processo inexorável, tenhamos consciência ou não consciência
dele. O que Severina nos revela é quem ela é: Alguém se transformando
permanentemente. Adquire consciência disso e se reconhece como ser
humano. (CIAMPRA, 1987)

Ao interpretar essa passagem, trazendo-a para a realidade hodierna,


3. Segundo a Cartilha fornecida pelo Ministério Público, O Ministério Público e os Direitos de LGBT: Conceitos e
Legislação, Identidade de Gênero é, assim, a compreensão que uma pessoa tem de si, percebendo-se como sendo do
gênero masculino, feminino ou ainda da combinação de ambos. Essa compreensão é incorporada à forma como ela
se apresenta socialmente (nome, vestimentas, comportamento), independentemente do sexo biológico que ostente.
Ou seja, refere-se ao gênero que você se auto-identifica. Disponível em <hhttp://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/
pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/o-ministerio-publico-e-a-igualdade-de-direitos-para-lgbti-2017/view>. Acesso
em janeiro 2019.

602 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


resta claro como a identidade não é algo sólido, trata-se de um processo de
transformação do individuo. A metamorfose, todavia, desemboca no ser
revelar-se como ele realmente é e tem como matéria prima os acontecimentos
ao decorrer de sua história. A identidade de um sujeito hoje pode não ser a
mesma de amanhã, em decorrência de inúmeros fatores e acontecimentos que
o cercam são capazes de transformá-lo.
Descobrir-se alguém é parte de um processo no qual o sujeito busca,
descobre, estranha e se identifica; ninguém é capaz de mudar apenas
interiormente, tampouco sozinho, desta forma, um conjunto de fatores
influencia e permite ao ser desenhar seu próprio Eu, sua identidade. Por vezes a
inconstância da identidade ocasiona ao sujeito uma confusão, a identidade de
ontem não será a mesma de hoje - transformando-se. Sua identidade passada
converte o que o sujeito era em um mero terceiro, apenas como parte de sua
própria historia.
Em geral, é possível afirmar que todas as identidades são construídas
como resultado de um processo. O verdadeiro impasse, contudo, se dá em
saber como, a partir de que e porque. A criação de uma identidade, seja de um
sujeito ou coletiva, empresta-se de materiais históricos, biológicos, da memória,
traumas pessoais, crenças religiosas e culturais. Desta forma, os indivíduos e
os grupos sociais transformam - no contexto das inúmeras determinações da
sociedade - todos esses materiais para, então, redefinirem o seu sentido.
Quando se trata de diferença, é importante localiza-la na base de
inúmeros fenômenos sociais e humanos, pois, assim como as diferenças
unem elas desunem, são fontes de conflitos e o ponto inicial de diversos
preconceitos. A tomada de consciência das diferenças, além de destacar-se
como um estranhamento sobre o próprio individuo, termina em um processo
de formação de identidades por meio do contraste com outras identidades pré-
atribuídas pela sociedade. Entretanto, o conhecimento do outro, o confronto
e a percepção da existência de diferenças é necessário, faz parte do processo
de identidade: é o ser desenhando seu próprio Eu. O indivíduo estranha-se e
então toma consciência, o que torna possível, por meio de uma metamorfose
ser e revelar-se como é.
A alteridade se faz primordial, observar o outro, tê-lo como espelho
proporciona ao individuo materiais para a criação da sua própria identidade.
Quando há a neutralização de sujeitos a tomada de consciência sobre si próprio
coloca-se em xeque, pois, não existe confronto, negação, ou, o outro como referencia
- negativa ou positiva. É, também, no contexto de homogenização da sociedade

Ebook IV SIGESEX 603


que as diferenças se tornam ameaçadoras. É primordial, para a construção da
identidade de um sujeito o estranhamento com o outro, contudo no contexto de
uma sociedade neutralizada e padronizada a diferença torna-se preconceito.
No que tange a identidade homossexual, o mais correto é falar-se em
homossexualidades, isto é, em várias identidades homossexuais, pois, ao
referir-se somente à uma identidade estaríamos generalizando os sujeitos
que se identificam como homossexuais, enquadrando-os em uma padrão,
naturalizando-os. Desta forma, automaticamente, estaríamos excluindo
aqueles que se identificam de forma diferente da identidade que foi pré-
determinada, ou seja, generalizada.
Há uma infinidade de sujeitos homossexuais, cada qual com uma
historia, com características - físicas e psíquicas -, desejos e modo de agir
extremamente particulares. De maneira rasa, entre os sujeitos que se orientam
como homossexuais podemos destacar pessoas CIS4, TRANS5, homens,
mulheres, negros e brancos, pensar em uma única identidade seria além de
impossível, excludente.
A homossexualidade é uma noção de identidade com extrema
importância nos dias atuais, - seja para a luta pelos direitos LGBTI+, seja para a
compreensão dos sujeitos e da sociedade. Há, nas sociedades contemporâneas,
uma nítida hegemonia das identidades, predominantemente heterossexuais,
que coloca-se como imperativo social e acaba por excluir os outros modos de
entender gênero, sexualidade e identidade.
Como aludido anteriormente a identidade de sujeitos que possuem uma
orientação homossexual não deve ser entendida como uma única identidade,
com características idênticas, tampouco semelhantes. Cada sujeito passa por
um processo único de metamorfose, sendo impossível enquadrá-los em um
único padrão. Além disto, acreditar que a orientação sexual é a característica
determinante dentro da identidade de um ser, não é algo coerente. Porém,
segundo alguns teóricos sobre o tema, as pessoas são categorizadas de acordo
com a forma que elas se diferem dos valores predominantes, um breve olhar
4. Por pessoas Cisgêneras, ou simplesmente CIS, entendemos que aquelas que possuem uma identidade de gênero
correspondente ao sexo biológico. Um homem é cisgênero se seu sexo biológico e sua identidade de gênero forem
masculinas, independentemente da orientação sexual que tenha, homossexual ou heterossexual. Ou seja, há homens
e mulheres cisgêneras homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Disponível em <hhttp://www.mpf.mp.br/atuacao-
-tematica/pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/o-ministerio-publico-e-a-igualdade-de-direitos-para-lgbti-2017/
view>. Acesso em janeiro 2019.
5. Por pessoas Transgêneras, ou simplesmente TRANS, entendemos que são aquelas que possuem uma identidade de
gênero diferente daquela correspondente ao sexo biológico. Há transgêneros heterossexuais, bissexuais e homossexuais.
Neste último caso, a orientação sexual da pessoa transgênera é dirigida para alguém com a mesma identidade de gênero,
mas de sexo biológico diferente. Disponível em <hhttp://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/pfdc/midiateca/nossas-
-publicacoes/o-ministerio-publico-e-a-igualdade-de-direitos-para-lgbti-2017/view>. Acesso em janeiro 2019.

604 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sobre a sociedade brasileira nos permite identificar o que seria este ideal
predominante: homem, branco, heterossexual, de classe média.
Homossexuais, bissexuais, transsexuais, mulheres, negros tendem a ter
sua identidade categorizada pelas suas características que o fazem destoar do
padrão proposto pela sociedade. Ao que parece, portanto, em determinadas
situações, os sujeitos tornam-se sensíveis aos fatores que os diferenciam às
pessoas ao seu redor, ou seja, aqueles que pertencem a grupos minoritários
- e estigmatizados - tenderá a se orientar pelo aspecto de sua identidade que
o torna uma minoria. Na incapacidade de se identificarem com o grupo
tradicional heterossexual, aquelas pessoas que se identificam e se orientam
como homossexuais lutam e buscam por uma identidade própria, fundada
principalmente no componente da sexualidade.
Nesta esteira, é possível afirmar que a identidade das minorias - em
especial dos sujeitos homossexuais - tem, ao menos, duas dimensões: como o
individuo é visto pela sociedade - pelos grupos majoritários que se contrapõem
a ele - e, como se reconhece, se identifica e se determina com seus semelhantes.
Situação que, em inúmeros casos, causa questionamentos e confusão ao
individuo sobre o seu próprio Eu. Goffman destaca:

As pessoas que têm um estigma particular tendem a ter experiências se-


melhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças
semelhantes na concepção do eu. (GOFFAMAN, 1891, p.40)

Em outras palavras, o autor propõe que esses sujeitos, estigmatizados


pela sociedade, vivenciam uma sequencia de acontecimentos semelhantes
que afetam diretamente na sua concepção sobre o mundo a sua volta, e
principalmente da sua própria identidade. Mesmo que as condições de
dominação social propiciem o foco à característica da identidade que esta
atrelada a forma que o sujeito destoa do padrão, neste caso a sexualidade, é
preciso considerar as tantas identidades que existem dentro de um único
ser; a vida do sujeito não deve ser restrita a sua sexualidade, existem outras
características determinantes em sua essência e em sua historia que possibilitam
a formação do sujeito como ele é. Restringir a vida à sua sexualidade, ao seu
gênero ou orientação sexual de qualquer pessoa pode ser empobrecedor.
O lugar social e a forma que a sociedade posiciona os homossexuais
influi em larga escala na construção de sua identidade: ao desempenhar um
papel de um ser estigmatizado, o sujeito entra em contato com determinados

Ebook IV SIGESEX 605


aspectos da realidade que influenciará diretamente sua perspectiva sobre
si próprio. A identidade é performativamente constituída pelas próprias
“expressões” que são ditas como resultado (BUTLER, 2012, p.57).
Certamente, para que este processo possa ser subvertido é preciso que
estes sujeitos saiam do campo de marginalização que a sociedade os coloca,
desconstruindo a necessidade de representações estáveis e excludentes que
legitimam o discurso da heteronormatividade.
Afirmar-se homossexual, diante à uma sociedade regida pela
heteronormatizaçao afeta em grande escala a inserção social e a vivencia
destas pessoas, resultando em uma influencia direta à sua identidade pessoal.
Ou seja, pertencer a um grupo minoritário, alvo de extremo preconceito
social reflete - e dificulta - no processo de reconhecimento da identidade
homossexual de cada ser. O medo e a rejeição se fazem onipresente. A
homoafetividade se torna uma tarefa difícil, repleta de insegurança e
preconceito.
O medo advém da possibilidade de ser rejeitado em todas as esferas da
vida, seja na esfera pessoal, profissional ou social. O sujeito teme a reação de
todos ao seu redor, pois, não é incomum que homossexuais sejam, além de
rejeitados e hostilizados, agredidos - física e emocionalmente. Este contexto
leva o individuo, em inúmeros casos, a levar uma vida dupla ou até a negar
seus sentimentos. O processo de reconhecimento, de identificação se faz
doloroso: O estigma e o esforço para escondê-lo ou consertá-lo fixam-se
como parte da identidade pessoal (GOFFAMAN, 1891, p.76).
Para uma grande parcela da sociedade brasileira a homoafetividade
é tida como uma afronta aos seus valores e preceitos que são imbuídos pela
cultura e tradição religiosa que dominam os indivíduos, definindo, portanto,
o comportamento homossexual como uma afronta. Inegavelmente, as pessoas
que se apresentam em uniões homossexuais ainda conseguem provocar
sensação de afronta à sociedade, apesar de serem uma realidade social
advinda da historia e cada vez mais presente nos tempos hodiernos. O que
se pensaria como argumento para tentar justificar essa dificuldade para com
o caráter normal que os homossexuais procuram conferir às suas relações e
o preconceito latente sofrido por esses pares é que, afinal, o comportamento
considerado como sendo normal ideal - padrão - e aceito não apenas pela
sociedade brasileira, mas em todas as demais sociedades contemporâneas, são
as relações homem-mulher.
A exclusão social é um processo despertado pela ausência de representação

606 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


de formas do ser e de ser que destoam do discurso majoritário. Por essa razão
o imperativo que advém das determinações e do discurso dominante da
sociedade somente nos permite pensar em sujeitos pré-estabelecidos e de
determinadas formas, isto é: todos aqueles sujeitos que não se enquadram no
padrão se tornam sujeitos impensáveis, invisíveis.
Desta forma, estes sujeitos impensáveis cujas as identidades estão em
desacordo com as normativas sociais não se encontram como parte de um
contexto, sua descrição não faz parte do mundo e, a consequência disto é
que este sujeito acaba por se colocar em um lugar à parte do todo. Estar em
desacordo com o padrão significa estar além do limite de verdade e de existência
imposto pela sociedade dominante e o constrangimento e a repressão nascem
deste imperativo social imposto.
O cenário de exclusão social, de discriminação e preconceito desemboca
em implicações e feridas intimas no sujeito excluso. Ele não sabe quem é,
não se encontra nas formas identitárias propostas pelo sistema social, e
assim não consegue se descrever e se identificar diante do todo homogêneo
e pré-determinado pela maioria. Neste sentido, inúmeras vezes, ele cresce
percebendo-se e sendo percebido como um desvio, dificultando o processo
de reconhecimento e aceitação da sua própria identidade. Ser um individuo
que não se reconhece impede o desenvolvimento de relações interpessoais,
profissionais e sociais.
Desta forma é possível entender o motivo pelo qual se faz imprescindível
a presente discussão. Não se trata de uma tarefa simples, entender, questionar e
argumentar acerca das identidades, em especial sobre a identidade de um grupo
estigmatizado pela sociedade, é, sem dúvidas, um estudo delicado, porém com
grande valor para a luta LGBTI+.
A priori, basta a compreensão que qualquer identidade deve ser
um conceito dinâmico em mutação permanente, que, por via de regra é
determinada pelas circunstancias que cercam cada indivíduo que permitem o
sujeito desenhar o seu próprio Eu. Um marco de extrema importância para a
identidade é o processo de estranhamento do ser com a sociedade que o cerca, a
tomada de consciência das diferenças e das alteridades existentes. Atualmente
a sociedade brasileira - assim como tantas outras ao redor do mundo - se depara
com um contexto de homogeneização social, no qual os indivíduos tentam se
enquadrar em um padrão pré-determinado, e, aqueles que não se enquadram
são percebidos - pela sociedade e por si próprio - como um desvio.
Entende-se que os homossexuais, como sujeitos estigmatizados,

Ebook IV SIGESEX 607


vivenciam uma sequencia de fatos e sentimentos semelhantes que afetam em
larga escala sua concepção sobre a sua identidade e sobre a sociedade, motivo
pelo qual inúmeras vezes esses sujeitos são categorizados pelo imperativo da
sua orientação sexual. O lugar social e a forma que a sociedade posiciona esses
sujeitos acabam por influir na construção e no entendimento que cada um tem
de si próprio. O medo, a rejeição, a exclusão são sentimentos onipresentes na
vida dos sujeitos homossexuais.
A semelhança do processo de construção da identidade de sujeitos
homossexuais, sem dúvidas, existe. É clara a forma que um individuo espelha-se e
se vê em outro semelhante, o que, também, facilita o processo e ameniza cicatrizes
deixadas pela exclusão social da massa homogênea que a sociedade se tornou.
Entretanto é um equivoco generalizar e enquadrar todos os homossexuais em
um único padrão, o correto seria tratarmos de homossexualidades - ou seja,
várias identidades dentro de uma mesma característica comum. A sexualidade,
a orientação sexual ou o gênero é somente uma das inúmeras faces existentes
dentro de um ser. Ser homossexual é identificar-se como homossexual
independente de qualquer padrão imposto.

Referências

BAUDRILLARD, J. A Transparência do Mal: Ensaios sobre os fenômenos


extremos. Tradução Estrela dos Santos Abreu. Campinas, SP. Papirus. 1990.

BUTLER, J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CIAMPRA, A. C. A estória do Severino e a história de Severina. Editora


Brasiliense. 1987.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de


Janeiro:Edições Graal, 2000.

GOFFMAN, E. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.


Tradução Mathias Lambert. 1891. 4 edição.

GOHN, M. G. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e


contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.

608 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


MACHADO, F. V. PRADO, M. A. Preconceito contra homossexualidades: a
hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.

MUNANGA, K. Diversidade, etnicidade, identidade e cidadania. http://www.


acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Palestra-Kabengele-
DIVERSIDADEEtnicidade-Identidade-e-Cidadania.pdf. Acesso em janeiro
2019.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. Brasília: Editora


Brasiliense. 1986.

REIS, T. Org. Manual de Comunicação LGBTI / GayLatino, 2018.

VECCHIATTI, P. R. I.. Manual da homoafetividade. 2. ed. Rio de Janeiro:


Método, 2012.

Ebook IV SIGESEX 609


Políticas do corpo: transição de gênero e
biotecnologias1
Body policies: gender transition and
biotechnologies

Júlia Arruda da Fonseca Palmiere2


Anita Guazzelli Bernardes3
Camilla Fernandes Marques4
Giovanna Liz Mantovani5

RESUMO: Este trabalho é parte de uma investigação cartográfica


sobre a forma como transições de gênero são performadas no Youtube. Parte-
se de uma perspectiva pós-estruturalista da Psicologia Social e da Saúde para
percorrer o território existencial em que sujeitos compartilham sua relação
com alterações em seus corpos. Focaliza-se nos elementos biotecnológicos
utilizados para modulação do gênero: hormonização, produtos estéticos,
protéticos, intervenções cirúrgicas e a laser. Através deste percurso foi possível
refletir sobre políticas do corpo e modalidades de subjetivação no que se refere
à relação do corpo e gênero com as biotecnologias.
PALAVRAS-CHAVE: transição de gênero; corpo; mídias sociais.

ABSTRACT: This work is part of a cartographic investigation about how


transitions of gender are performed on Youtube. The research is based on a post
structuralist perspective of Social and Health Psychology to go through the existential
territory in which subjects share their relationship with changes in their bodies. It focuses
on the biotechnological elements used for modulation of the gender: hormone, esthetic
and prosthetics products, surgical and laser interventions. Through this, was possible to
1. A pesquisa realizada contou com financiamento do CNPq e da CAPES. Endereço institucional de todas as auto-
ras: Universidade Católica Dom Bosco, Mestrado em Psicologia. Av. Tamandaré, 6000. Jardim Seminário. 79117900
- Campo Grande, MS – Brasil Telefone: (67) 33123300.
2. Mestranda em Psicologia da Saúde na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) - juliapalmiere@hotmail.com
3. Pesquisadora, docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde na UCDB - anita-
bernardes09@gmail.com
4. Doutoranda em Psicologia da Saúde e mestre em Psicologia da Saúde na UCDB - camillafmt@hotmail.com
5. Doutoranda em Psicologia da Saúde na UCDB e mestre pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –
gi_matovani7@hotmail.com

610 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


reflect about policies of body that produce modalities of subjectivation regarding the
relation of the body and gender to biotechnologies.
KEY-WORDS: gender transition; body; social media.

Introdução

Este texto faz parte de uma pesquisa sobre os processos de transição de


gênero e sua relação com as biotecnologias, considerando as narrativas acerca
desta experiência que circulam na mídia social YouTube Br através da prática
de vlogging. Desta forma, parte-se de experiências de modulação no corpo
para pensar sobre processos de subjetivação e relações estabelecidas com a
corporeidade no presente. Para as análises e discussões empreendidas, apoia-se
em uma perspectiva pós-estruturalista da Psicologia Social e da Saúde.
O trabalho apresenta dois eixos de investigação, que se entrecruzam,
objetivando produzir uma análise da forma como sujeitos se pensam e se
relacionam com o corpo a partir das transições de gênero no mundo ocidental
contemporâneo, portanto, em um território situado. O primeiro eixo se
refere às políticas públicas, protocolos e normativas voltadas aos processos de
transição de gênero no Brasil, o que permite considerar formas de governo
da vida e gestão do corpo. Neste texto, estas políticas aparecem pela análise
de alguns autores nacionais (BORBA, 2014; BENTO, 2012), que permitem
refletir sobre a forma como estas materialidades funcionam como elementos
discursivos e práticas que condicionam a operacionalização de técnicas
voltadas à população trans e produzem efeitos em termos de subjetivação.
O segundo se refere à análise de narrativas compartilhadas no dispositivo
virtual YouTube Br a respeito de vivências de transição de gênero. A prática
de vlogging diz respeito ao compartilhamento de vídeos na internet. É parte
de uma forma de relação no ciberespaço, que funciona como um conjunto
de relações mediadas por fluxos tecnológicos (BRAIDOTTI, 2006). Estes
materiais foram percorridos e analisados entre junho de 2017 e maio de 2019,
considerando os elementos que compõem as formas de interação no território
existencial do YouTube, como comentários, likes, números de seguidores,
vídeos relacionados.6
6. É válido destacar que as informações encontradas no site do YouTube e demais mídias sociais, bem como a identidade
das pessoas que aparecem nestas mídias, são de acesso público conforme a Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011.
Entende-se informações de acesso público como dados em qualquer formato, meio ou suporte, que não se encontram
sujeitos a formas de controle do acesso ou segurança. É o caso de materiais virtuais disponíveis em mídias sociais.

Ebook IV SIGESEX 611


Ressalta-se que o território existencial investigado é tomado em sua
dimensão de produção de subjetividades, ou seja, não como uma delimitação
geográfica, mas como um espaço-tempo em que modalidades de existência
se tornam possíveis. Assim, mediante a incursão por vídeos no YouTube
utilizando o descritor “transição de gênero”, começou-se a percorrer este
território existencial a partir da ideia de cartografia proposta por Deleuze e
Guattari (1995). Os autores pensam a cartografia a partir do quinto princípio
do Rizoma, que funciona como uma espécie de mapa aberto, o que permite
percorrer fluxos, intensidades e subjetividades que se interligam a partir de
conexões heterogêneas.
A partir desta investigação, entrou-se em contato com formas binárias
de transição de gênero, o que possibilitou discutir sobre formas de governo da
vida na relação com intervenções biotecnológicas no corpo. Posteriormente, a
partir do contato com modos não-binários de transição de gênero foi possível
discutir sobre novas modalidades de fabricação do biológico, capazes de colocar
em questão a generificação do corpo. Portanto, este trabalho permite refletir
sobre o corpo nos processos de transição de gênero a partir da emergência das
biotecnologias enquanto modo de subjetivação contemporâneo.

1- Corpos trans e biotecnologias

As experiências de transição de gênero se tornaram possíveis nas últimas


décadas a partir da emergência de intervenções biotecnológicas no corpo.
Estas intervenções, que oferecem visibilidade e possibilidade para pensar as
formas de transicionar o gênero no presente, começam a aparecer na década de
50, com o desenvolvimento de tecnologias protéticas e estéticas voltadas aos
corpos mutilados da Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, de acordo
com Beatriz Preciado (2008), que discute sobre novas formas de fabricação do
biológico e sua relação com a produção de identidades sexuais. Nessa esteira, na
década de 70, tem-se a emergência da denominada “era da biotecnologia”, com
o desenvolvimento da engenharia genética e biologia molecular, que trazem
técnicas de recombinação do código genético (LIMA, 2004), possibilitando
novas formas de pensar e construir o corpo no mundo ocidental. Alguns
autores, como Paul Rabinow (1991) e Donna Hararay (2000), discutem as
novas formas de conceber o corpo humano que se desdobram a partir das
formas de autoprodução, construção de um “eu” biológico na relação com
ferramentas tecnológicas de modulação dos corpos.

612 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A biopolítica passa a agir na biologia molecular, alterando condições
genéticas, assim, o humano é performado para além de seu limite existencial,
mas em sua possibilidade de transcender a própria condição humana,
ascendendo biologicamente. Nessa esteira, Rosi Braidotti (1994) entende que
um conjunto de elementos como próteses eletrônicas, implantes e cirurgias,
instauram novos modos de constituição do corpo, em que elementos não-
humanos e humanos se aproximam, tornando-se indiscerníveis ao ponto
de não ser possível diferenciar o corpo orgânico de suas extensões mediadas
tecnicamente. Para a autora, o olhar biotecnológico penetrou no íntimo da
estrutura da matéria viva, trazendo consigo transformações, como a alteração
da forma humana tal qual conhecemos hoje.
Assim, a bio-lógica, enquanto racionalidade mediante a qual o sujeito
pode se pensar no Ocidente, (OYEWÚMÍ, 2018) adquire novas reinserções
e novos modos de subjetivação são agenciados. Os elementos biotecnológicos
criam condição para que os sujeitos estabeleçam uma relação com produtos
protéticos, estéticos, cirurgias plásticas e medicalizações. Novas formas de
produção de subjetividade se tornam possíveis e, tem sido evidenciada nos
corpos trans. As experiências de transição se referem às alterações nas identidades
sexuais e de gênero. Tais categorias são enrijecidas no mundo ocidental e,
portanto, sua transformação repercute no campo social, promovendo debates,
críticas e posicionamentos. Como procedimento metodológico para entrar
em contato com o território existencial em que os sujeitos compartilham suas
narrativas sobre vivências com a transição de gênero se digitou o descritor
“transição de gênero” na caixa de busca do YouTube Br. Na primeira página
de resultados surge títulos como “quando a transição está completa?”, “minha
transição para ficar feminina”, “transeducação: minha transição de gênero”,
“dicas para o começo da transição”.
A partir da incursão por estes materiais e com a atenção voltada à relação
com as biotecnologias e aos modos de produção de subjetividade, foi possível
perceber que de início há uma intensidade de vídeos com estratégias e dicas
a respeito de modulações no corpo através das biotecnologias. Alguns canais
são voltados exclusivamente para compartilhar etapas de terapia hormonal ou
intervenções cirúrgicas. De modo geral, os vídeos contêm dicas e estratégias
pessoais utilizadas para transicionar, como em relação à necessidade de
mulheres trans investirem em um tratamento a laser ou eletrólise para retirar a
barba e excesso de pelos no rosto (HOLTZ, 2017), sobre alterações no corpo
de homens trans após terapia hormonal com Testosterona, como proeminência

Ebook IV SIGESEX 613


laríngea (pomo de adão), interrupção da menstruação, perda de cabelo, maior
oleosidade e aspereza da pele, aumento de pelo no corpo (FILHO; NERY,
2015; NAJAR, 2017; NICOLAS, 2017), também se abordam detalhes do
tempo, dose e local de aplicação da terapia hormonal (VISH MARIA, 2018).
Estas transições, que aparecem em maior intensidade conforme se entra
em contato com os materiais audiovisuais sobre transição de gênero, referem-
se às transições binárias e estratégias de utilização das biotecnologias para
construção de corpos-homem e corpos-mulher. Uma modalidade de vlog que
aparecia nos vídeos relacionados com frequência se refere ao antes e depois
de um processo de transição que contou com procedimentos biotecnológicos,
sobretudo com a hormonização, mas também cirurgias à laser, retirada das
mamas, prótese de silicone, etc., como se visualiza nos seguintes títulos: ”1
ano de T - transição homem trans” (ALMEIDA, 2014), “A maior mudança
que você vai ver hoje (2 anos de transição Antes X Depois)” (FAMA, 2018);
“Antes e depois – Male to Female MTF” (FIGUEIREDO, 2016).
Maria Daros (2018) em vídeo intitulado “minha terapia hormonal”
narra os efeitos de sua hormonização e cirurgia de feminilização facial.
“Minha maçã do rosto cresceu um pouquinho, ganhei quadril (...) sinto que a
minha musculatura não é a mesma (...) não está mais tão definida” (DAROS,
2018). Para ela, tornar-se mulher é “um processo longo e contínuo” (2018),
um conjunto de procedimentos e medicamentos, entre bloqueadores de
testosterona e intervenções estéticas recorrentes, passa a fazer parte de seu
cotidiano e relação com o corpo. A forma de se pensar em relação ao biológico
ganha outra densidade. A relação com este biológico se desconecta de uma
essência e fixidez para se situar na dimensão de fabricação constante. A
biologização e individualização do corpo também aparece nos vlogs, como em
vídeo que Thiessita (2018) aborda os efeitos da hormonização em seu “sistema
corporal” singular e individualizado, devido à um “problema na hipófise” que
afeta sua a sua produção de hormônios. O sujeito se pensa a partir de uma
forma biológica na relação com a biotecnologização do corpo.
Nas políticas voltadas aos processos de transição de gênero, existe uma
forma de gestão da utilização das biotecnologias. Um conjunto de políticas
instituem práticas a serem operacionalizadas pela Medicina, Psicologia e
Psiquiatria, que se dão na esteira de discursos naturalizantes das identidades
de gênero, com efeito de reafirmar modalidades normais e anormais de existir
(ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014; BRASIL,
2008; CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2002). Alguns autores

614 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


nacionais (BORBA, 2014; BENTO, 2006) têm discutido a forma como
processos de transição de gênero pautados em parâmetros binários\biológicos
permitem integrar os corpos à norma binária homem\mulher, enquadrando-
os na matriz de inteligibilidade de gênero (BUTLER, 2003).
Assim, ao mesmo tempo em que a utilização de elementos biotecnológicos
permite reconfigurar formas de experimentação do corpo e escapar ao
determinismo biológico associado ao dimorfismo anatomofisiológico,
também surgem estratégias de gestão destas modificações. No interior da lógica
de fluidez e hibridação que os mecanismos governamentais das sociedades de
controle operam são incorporados modos mais flexíveis de constituição de si,
mas que ao mesmo tempo reatualizam os mecanismos de controle identitário
(DELEUZE, 2013). Hoje, as biotecnologias são um elemento de constituição
dos corpos que se articulam com linhas duras que traçam normas para sua
utilização, pois a partir destes protocolos (BRASIL, 2008; CFM, 2001), tem-
se um itinerário específico de como utilizar as biotecnologias para modulação
do gênero. Seu uso tem estado associado à uma terapêutica de readequação
do corpo aos parâmetros de normalidade pautados no binarismo de gênero,
sobretudo tendo em vista que as intervenções no corpo biológico oferecem
passabilidade aos corpos trans, ou seja, criam condições para que não seja
perceptível que o sujeito passou por um processo de modulação do corpo
anteriormente.
Entretanto, através da análise do território existencial do YouTube
também foi possível encontrar sujeitos que experimentam outras formas de
relação com as modulações no corpo. É o caso de pessoas trans não-binárias,
que narram fazer uso de produtos estéticos, protéticos e biotecnológicos fora
de um regime binário de construção de si. Conforme explicam youtubers não-
binários (NASCK, 2019; QUEIROZ, 2016), as experiências que escapam ao
binarismo de gênero permitem uma relação de autonomia na construção do
corpo, um movimento de “trazer a sua existência em suas próprias mãos e você
construir ela da forma que te faz bem” (NASCK, 2019).
Com isto, a partir da prática de vlogging de pessoas trans não-binárias
se tem produzido outros modos possíveis de relação com as transições de
gênero. Em seu canal, Téhh Queiroz (2016) explica como utilizar o hormônio
testosterona de forma não binária, ou seja, para que seu corpo se module a partir
de características consideradas masculinas e femininas, para além do parâmetro
estético associado à masculinidade. O medicamento Minodixil, comumente
utilizado por homens trans para adquirir pelos e barba no corpo (FILHO;

Ebook IV SIGESEX 615


NERY, 2003) e procedimentos à laser são utilizados de forma específica para
alcançar uma estética biológica desejada, quase como personalizada, de forma
a funcionar como o que o sujeito “realmente quer em seu corpo” (QUEIROZ,
2016). Assim, visualize- que corpos não-binários também se utilizam de
biotecnologias para fabricar o corpo e negociam com as normas de produção
de feminilidade e masculinidade, fabricando uma relação com o corpo a partir
de incursões biotecnológicas. Isto não significa afirmar que todas as pessoas
não-binárias fazem uso de biotecnologias para construir sua estética corporal,
mas que essa relação tem sido evidenciada através de vlogs no YouTube Br.

Considerações finais

A utilização de biotecnologias para fabricação de si coloca em evidência


a possibilidade de transformar o corpo biológico. Quando se trata de um
processo de transição de gênero, a alteração no biológico saí de um plano
de opacidade e toma forma no campo social, ao passo em que o gênero
baseado no sexo biológico é organizador das categorias sociais no Ocidente
(OYEWÙMÍ, 2018). A partir das modificações biotecnológicas, o biológico
deixa de ser aquilo que define o sujeito, deixa de funcionar como essência e
cristalização do corpo humano, para se tornar aquilo sobre o que o sujeito
pode se ocupar e modificar em um processo contínuo. Há, portanto, outra
relação com o biológico no mundo Ocidental, na medida em que ele se torna
elemento a ser modificado e transformado pelo sujeito, ainda que disciplinas
como a Medicina e Psicologia também se ocupem das formas de gestão desses
processos de transformação corporal. Os limites do biológico se alargam com
a tecnologia desenvolvida pela ciência biotecnológica a partir da engenharia
genética e biologia molecular.
No mundo ocidental, as categorias e hierarquias sociais se apoiam no
biológico, conforme explica a pesquisadora nigeriana Oyeronké Oyeùmí
(2018). Para ela, este corpo biologizado tem caráter essencialista na medida
em que diferenças percebidas nesta forma anatômica é elemento definidor
de hierarquias sociais. Nessa esteira, a generificação do corpo, pautada no
dimorfismo sexual percebido pela ciência médica moderna, é condição de
inteligibilidade social (BUTLER, 2000; 2003). Conforme os materiais
audiovisuais analisados, torna-se contínua e permanente a relação dos corpos
trans com elementos biotecnológicos para se fabricar. Este movimento aparece

616 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


com maior intensidade nos corpos que objetivam uma transição binária,
mas também aparecem em formas não-binárias transicionar. Entretanto, as
experiências não binárias, travestis e drags tensionam a biologização do corpo
enquanto forma de categorização social essencializada e rígida, ao passo em que
propõem outras modalidades de existência. A desnaturalização das identidades
binárias e problematização das normas de produção de identidades sexuais
permitem colocar em análise o próprio biológico e a forma de organização
social que se apoia em sua racionalidade.
As biotecnologias, de certa forma, tornaram visíveis e ofereceram
condição de possibilidade para outras formas de construir o biológico.
Assim, negociar com a gramática normativa do sexo biológico adquire outra
densidade com a biotecnologização das formas de se produzir, sobretudo na
medida em que torna material e visível modificações no biológico. A partir
das modificações biotecnológicas, o próprio determinismo biológico deixa de
funcionar como referente para designar sujeitos e classificações sociais. Desta
forma, a generificação do corpo parece não ser suficiente para responder à
multiplicação de formas de se fabricar no presente.

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620 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Demarcando corpos e identidades de gênero:
o uniforme escolar para além das suas funções
primárias de segurança e igualdade
Framing bodies and gender identities: the school uniform
beyond its primary functions of security and equality
Mariani Viegas da Rocha1

RESUMO: A escola sendo uma instância pedagógica de poder reitera


normas, saberes, identidades e, também, ocupa-se do discurso acerca do corpo.
Tendo esta o importante papel de educar, escolarizar, controlar e fiscalizar,
através dos seus mecanismos de controle, os corpos que nela transitam. Este
presente trabalho tem como objeto de análise os uniformes escolares e como
estes são constituídos como demarcador de corpos e identidades de gênero
para além dos pressupostos de segurança e igualdade.
PALAVRAS-CHAVE: Uniforme escolar. Corpos. Identidades de gênero.

ABSTRACT: The school is a pedagogical instance of power that reiterates norms,


knowledge, identities and, also, deals with the discourse about the body. The school has an
important role of educating, controlling and supervising, through its control mechanisms,
the bodies that pass through it. This study aims to analyze the school uniforms and how these
are constituted as a framing of bodies and gender identities in addition to the assumptions of
security and equality.
KEYWORDS: School uniform. Bodies. Gender Identities.

Introdução

Histórico e culturalmente os uniformes escolares foram constituídos


a partir dos pressupostos de segurança e igualdade. Dentro e fora do espaço
escolar esse é o imaginário que permeia a mentalidade de professoras/es,
1. Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFPR (Universidade Federal do Para-
ná), na linha de pesquisa Diversidade, Diferença e Desigualdade social. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior). Integrante do LABIN/UFPR (Laboratório de Investigação em Corpo, Gênero
e Subjetividades na Educação). E-mail: mviegasr@gmail.com Campus Teixeira Soares, rua Rockefeller, número 57,
Rebouças. CEP 80230-130. Tel. (41) 3535-6255.

Ebook IV SIGESEX 621


alunas/os e pais. Proponho uma breve análise dos uniformes escolares para
além desses pressupostos, abordando-o como um dispositivo disciplinar
demarcador de corpos e identidades de gênero.
Para essa análise ancoro-me na perspectiva pós-estruturalista e mais
especificamente nos estudos de Michel Foucault e nos Estudos de Gênero.
Esta forma de abordagem critica fortemente as perspectivas totalizantes,
homogêneas e universalizantes. As abordagens pós-estruturalistas se
sustentam na indissociabilidade entre cultura, verdade, linguagem e poder
(MEYER, 2012). Essa perspectiva está mais voltada para a problematização,
desnaturalização e estranhamento de saberes e significações instituídos pelas
redes de poder.
A partir desta perspectiva teórica é que tomo a escola como uma
instância pedagógica de poder que reitera normas, saberes, identidades e,
também, ocupa-se do discurso acerca do corpo. Tendo esta o importante papel
de educar, escolarizar, controlar e fiscalizar, através dos seus mecanismos de
controle, os corpos que nela transitam.

1- Breve histórico da uniformização escolar no Brasil

Os uniformes escolares ainda se apresentam timidamente como


objeto de análise nos trabalhos da área da educação. Na última década,
aproximadamente, houve um esforço da história da educação em trazer os
uniformes escolares para as discussões e produções acadêmicas. O tema, até
então, centrava-se mais na perspectiva da infância, da moda, da customização
e da cultura fitness.
Os estudos que abordam os uniformes escolares debruçam-se sobre
o referencial de Fúrio Lonza. Este foi autor do livro intitulado História
do Uniforme Escolar no Brasil, lançado no ano de 2005, pelo Ministério da
Cultura. A bibliografia de Fúrio Lonza trata-se de uma narrativa linear que
descreve o processo de criação e uso dos uniformes escolares em algumas
escolas brasileiras.
Os uniformes escolares passaram a ser utilizados a partir do advento
da Escola Normal, entre os anos de 1800 e 1900, na cidade de Niterói/RJ
(MARCON, 2010 apud COSTA, 2014). Mais especificamente, conforme
Lonza (2005), a instituição deste traje foi datada em 1850, no Rio de
Janeiro, capital do Império, no Colégio Pedro II. Esta indumentária pode
ser definida como:

622 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


[...] aquilo que só tem uma forma. Uniforme é também dito de farda ou
fardamento, como vestuário padronizado de uso regular de uma corpo-
ração, classe ou instituição, criado para tornar seus integrantes iguais,
idênticos, semelhantes (CORAZZA, 2004, p. 55).

Dentro desta lógica de fardamento é que apareceram os primeiros


uniformes escolares no Brasil com o pressuposto de segurança, disciplina
e padronização. Inspirados nas fardas militares, sendo o exército uma das
primeiras organizações a utilizar um tipo de vestimenta padrão e igual para todos
os militares que designavam da mesma patente, os uniformes masculinos eram
compostos, geralmente, por um terno de calças curtas. Eram peças de caráter
militar e muito elegantes, com brasões, botões dourados, túnicas, bonés, luvas
brancas e as cores variavam entre vermelho, azul marinho e cáqui. O motivo pelo
qual os ternos eram compostos por calças curtas, indiferente do clima, era que
historicamente os joelhos nus indicavam virilidade e cobri-los seria um sinal de
fraqueza. Assim, esta mentalidade de lógica militarizada e de guerra se aplicou as
vestimentas escolares dos meninos. Onde a pátria estava inscrita nos corpos dos
alunos, através das cores e dos brasões. Segundo Dinah Beck

[...] as escolas que iniciaram o processo de uniformização dos alunos por


meio da utilização dos trajes/fardamentos militares, ao final do século
XIX receberam a conotação de terem adentrado o século XX vestindo
a pátria nos corpos dos meninos. A intenção em garantir identificação
e segurança, mantendo vivos os ideários republicanos de ordem e pro-
gresso, possibilitou que modelos e réplicas de uniformes inspirados nos
fardamentos militares do Exército Nacional (adiante inspirados nos da
Marinha do Brasil), fossem amplamente utilizados. Juntamente atrela-
do a esse fator percebe-se que por meio do uso dos uniformes a escola
buscava constituir (e garantir) uma identidade estritamente vinculada
a atributos social e culturalmente preconizados como masculinos: for-
ça, altivez, virilidade, patriotismo, nacionalismo (BECK, 2012, p. 202,
grifo da autora).

Os uniformes femininos percorreram uma longa trajetória, desde as


saias longas com camisas de mangas compridas, até chegar os dias atuais
com trajes mais descontraídos. Esta indumentária feminina no século XIX
apresentava aspectos de vestimenta vocacionada (BECK, 2012). Os trajes das

Ebook IV SIGESEX 623


alunas se assemelhavam com hábitos de freiras e contavam com a marcante
presença do crucifixo. A vestimenta escolar tinha por intuito reiterar uma
imagem “[...] dócil, servil, obediente, religiosa e maternal àquelas que
desejavam seguir sua ‘vocação profissional’ como professoras e cuidadoras
de crianças, estendendo para a escola atribuições femininas desenvolvidas no
lar [...]” (BECK, 2012, p. 203).
As escolas femininas ensinavam a serem boas donas de casa e,
respectivamente, boas esposas. O que é o caso do colégio Fundação Evangélica
de Novo Hamburgo, fundada ainda do século XIX, sendo umas das
instituições mais antigas do Rio Grande do Sul em educação para moças. A
Fundação Evangélica foi objeto de pesquisa de Claudia Schemes e Ida Thön
(2010). Segundo as autoras, até o ano de 1915, as alunas confeccionavam
suas roupas e uniformes nas aulas de costura, sendo esta, uma das disciplinas
fundamentais para ser uma boa dona de casa e esposa. As estudantes, em sua
maioria alemãs ou filhas de famílias alemãs em residência no Rio Grande do
sul, tinham uma forte influência européia em suas criações, principalmente
oriundas do estilista Paul Poiret e, posteriormente, de Coco Chanel.
A uniformização escolar foi atravessada pelos contextos políticos e
pelas mudanças ocorridas na educação. Com o Movimento Escola Nova2, as
classes sociais menos privilegiadas puderam frequentar as escolas. Ainda neste
mesmo período foi publicado a brochura: “Uniformes Escolares – Districto
Federal”. Este documento descrevia como deveriam ser os uniformes das
escolas públicas, mas ainda não os tornava obrigatórios.
No primeiro momento da Era Vargas, de 1930 a 1935, com Anísio
Teixeira, houve o processo de democratização do ensino que implicava,
também, na homogeneização do vestuário escolar, onde o governo forneceria
uniformes para os mais pobres e menos privilegiados. Ou seja, “[...] não
era mais possível distinguir com facilidade a qual grupo social cada aluno
pertencia.” (SCHEMES; THÖN, 2010, p 04), já que os uniformes escolares
também eram indicativos de status social e econômico, sendo sinônimos
de pertencimento cultural, social e intelectual. No segundo momento,
conhecido como Estado Novo, de 1937 a 1945, o governo Vargas assume
seu caráter ditatorial. As ligações com fascismo europeu da época ficaram
evidenciadas nos uniformes escolares, nas cores, cortes e posturas exigidas
aos alunos e alunas.
2. Inspirado no filósofo e pedagogo norte americano John Dewey, Movimento Escola Nova ou Manifesto dos Pionei-
ros da Educação, defendia a universalização da escola pública, gratuita e laica como mudança pedagógica.

624 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Nos anos seguintes, percorrendo pelo período de regime militar com
início em 1964, a uniformização não teve mudanças muito significativas. A
ditadura militar foi um período de forte repressão e censura que teve seus
reflexos nas vestimentas dos alunos e alunas, sendo que a confecção destas
indumentárias foi controlada e fiscalizada pelo Estado. Durante este momento
da história do Brasil, segundo Fúrio Lonza (2005), não era permitido que
os uniformes escolares acompanhassem as tendências da moda no mundo,
como o jeans e a minissaia, por exemplo. Havendo um distanciamento entre
moda e uniforme, que até o início do século ainda era muito presente na sua
confecção. Entretanto, não significa que não houve tentativas de subversão.
Nas palavras de Louro (1999, p. 19), se tem um exemplo claro de como as
alunas subvertiam o uso da saia: “A saia mantida como ‘decente’ no interior
da escola, era suspendida ao sair dali, enrolada na cintura de forma a conseguir
um estilo mini”.
A partir dos anos 1980, as escolas começaram a variar as suas vestimentas,
incorporando cores e acessórios aos trajes que ganharam caráter unissex e eram
mais confortáveis para a prática da Educação Física, como moletons, abrigos,
cotton-lycra, suplex, helanca, baby look’s, calças skinny’s. Essa variedade de cores,
texturas e tecidos é reafirmada na década 1990 e os anos seguintes mostraram
que o uniforme já não era mais algo tão distante daquilo que as/os jovens
usavam nas horas vagas.

2- O uniforme escolar para além das suas funções primárias de


segurança e igualdade

A partir da República, como já abordado, é que foi dada a instituição


do uniforme escolar no Brasil e dentro dos ideais republicamos – ordem e
progresso - se tinha clara a intenção de garantir a identificação e a segurança
dos alunos/as através da vestimenta. A história do uniforme no Brasil já se
inicia com os pressupostos de segurança e identificação. Posteriormente, na
primeira metade do século XX, no processo de democratização do ensino é
que soma-se o pressuposto de igualdade. Vestiam-se todos os corpos de forma
igual para que a diferenças sócio-econômicas não ficassem aparentes.
Permeia a mentalidade social que o uniforme é um mecanismo de
segurança e igualdade. Ou seja, por meio dele é possível identificar quais as/
os alunas/os pertencem a determinada escola, caso alguém esteja perdido,
por exemplo. Através do seu uso, também, é possível que as/os estudantes

Ebook IV SIGESEX 625


não sofram preconceitos, já que todas/os estariam vestindo a mesmo roupa,
impossibilitando apontar qual a sua condição econômica. Entretanto, essa
igualdade é mais estética do que efetiva.
Para além desses pressupostos penso que o uniforme escolar constitui-se
como um dispositivo disciplinar, ou seja

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,


instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosófi-
cas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos
do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses
elementos (FOUCAULT, 2017, p. 364).

É nesse sentido que o dispositivo disciplinar opera, combinando


discursos e estratégias de regulação e controle dos corpos dentro do espaço
escolar. O uniforme é uma dessas estratégias criadas para que a escola torne-se
um “[...] aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada momento, se
estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo
geral de ensino” (FOUCAULT, 2014, p. 162).
Para Inês Dussel (2000), em seu trabalho sobre os guarda-pós nas
escolas argentinas, a uniformização marca os sujeitos e os seus corpos como
uma incisão cirúrgica, sendo um meio poderoso de regulação dos corpos
estudantis. Para a autora o corpo é um objeto dessas práticas disciplinares.
O uniforme escolar, dentro dessa lógica disciplinar, demarca corpos
e identidades de gênero. Primeiramente faço necessário conceituar ambos.
Aqui trago o conceito de gênero ressignificado e complexificado através
desta perspectiva pós-estruturalista. Sendo ele uma categoria analítica, um
constructo histórico e cultural permeado de relações de poder. Gênero é uma
categoria de análise histórica, sendo “[...] um meio de codificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre varias formas de interação humana”
(SCOTT, 1995, p. 89).
Gênero não deve ser entendido apenas como um fator biológico.
Conquanto, a biologia não é negada, mas é preciso enfatizar a construção
social e histórica sobre as características biológicas (LOURO, 1997). O gênero
não é algo dado de antemão, não é algo que se é, mas é o que se faz. Identidade
de gênero é, então, tomada como uma sequência de atos. Todo sujeito é um
sujeito em processo, construído no discurso pelos atos que executa. Eles, assim

626 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


como as suas identidades, não são estáveis e fixos, são “fabricados” por práticas
e instituições (BUTLER, 1999; LOURO, 1997).
No que diz respeito ao debate sobre corpo, por muito tempo esse
discurso foi institucionalizado pela Igreja e, posteriormente, pela medicina.
Este que foi dado como natural e biológico por essas instituições. O corpo é
produzido historicamente, sendo necessária a sua desnaturalização para tomá-
lo, também, como cultural e social. Este não é um dado da natureza, mas uma
produção discursiva que está inscrita sócio e culturalmente e significada através
de práticas e atos (BUTLER, 1999; FOUCAULT, 2014). Ele não é universal,
é mutável e suscetível as intervenções do seu meio, da cultura, códigos e leis.
O corpo também é produzido pela linguagem. Esta que tem o poder de
nomeá-lo e classificá-lo, de instituir o que está dentro dos parâmetros do saudável
e do belo, o que é normal e anormal (GOELLNER, 2003). Este carrega uma
série de marcas, significados e símbolos. O corpo não é somente definido pelas
características biológicas que ele apresenta, mas pelas marcas culturais, históricas
e sociais que a ele foram incumbidas. Assim como nas discussões sobre gênero,
também, é preciso tomar cuidado para que não se caia no reduto determinista
sobre o corpo. O corpo não é determinado pelo biológico, mas não é, também,
um simples meio passivo onde a cultura se inscreve (BUTLER, 2017).
Professores e professoras, por vezes, acreditam que estão lidando com
seres descorporificados. No dualismo corpo-mente, o primeiro é negado,
anulado e passa despercebido no mundo público da aprendizagem (HOOKS,
1999). Na sala de aula o corpo aprende, ele faz parte do processo de
aprendizagem e também toma conhecimento dos fatos (ANDRADE, 2003).
O uniforme é uma dessas práticas que educa o corpo, escolariza, controla, vigia
e disciplina. Institui o que é normal e anormal, posturas, gestões e tudo isso
carrega marcas de gênero.
A educação dos corpos de meninos e meninas se deu - e ainda se dá - de
forma distinta. Às meninas se ensinava a ser doce, sensível, educada, gentil,
recatada, dona de casa, a ter posturas “adequadas”, gestos, modos de se portar,
sentar, falar. Aos meninos ensinava-se a ser forte, viril, destemido. O uniforme
escolar, por vezes, reforça estes estereótipos e a escola reitera isso como norma.
Apesar da “[...] reconfiguração nos uniformes, tais como o vemos hoje,
imprimiu um ritmo diferenciado à produção das identidades de gênero na
escola” (BECK, 2014, p. 144), ainda é possível observar que mesmo com a
adoção de uniformes unissex a distinção entre meninos e meninas ainda se faz
presente no terreno da moral, do pudor e da estética.

Ebook IV SIGESEX 627


Considerações transitivas

A intenção deste trabalho não é trazer soluções, hipóteses ou um


produto final. Seria até incoerente diante da perspectiva teórica que adoto. O
intuito é a problematização de mecanismo da cultura escolar que, por vezes,
passam despercebidos aos nossos olhos. O uniforme escolar é muito mais do
que a sua materialidade. É preciso olhar para além do que está dado, do que
está posto.
É possível perceber que ainda a mentalidade social permanece no terreno
das supostas noções primárias a respeito do uso do uniforme escolar, inscrita
sobre o pressuposto de segurança e igualdade. É necessário problematizá-lo
para que se enxergue para além dos pressupostos de segurança e igualdade.
Para que se veja as desigualdades, de gênero e classe, ocultadas e mascaradas
por traz dessa vestimenta escolar.
Infere-se que os uniformes, além dos pressuposto de segurança
e igualdade, não estão somente a serviço do controle, eles também se
configuram em um forte mecanismo de anulação destes corpos, sujeitos e
identidades de gênero e/ou de classe. Sobretudo é preciso levar estas questões
a problematização, ao estranhamento, a desnaturalização. A escola é um
ambiente plural e tem um importante compromisso com a diversidade e com
a luta contra as desigualdades. É através dela que se deve buscar meios de
enfrentamentos.

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630 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Representações sociais de docentes sobre as
relações de gênero, sexualidade e a cura gay
Social representations of teachers on gender
relations, sexuality and gay cure
Mary Lucia Sargi do Nascimento
Zaira de Andrade Lopez
Natália Freitas Alves Ribeiro
Lucas de Lima Gonçalves
Ludmily Diaz Soares da Cruz

RESUMO: O trabalho fundamentado no estudo de gênero, visa


compreender as representações sociais de docentes sobre diversidade de gênero,
sexualidade e constituição cultural do corpo baseado na resolução 001/99 do
CFP, que preconiza a impossibilidade de tratamento das homossexualidades.
Os dados revelam representações marcadas pela vivência na sociedade
patriarcal e pelo binarismo de gênero e sexualidade.
PALAVRAS-CHAVE: psicologia, representações sociais de gênero,
cura gay.

ABSTRACT: The work based on gender studies, aims to understand the social
representation of teachers on gender diversity, sexuality and the cultural constitution of
the body, based on the resolution 001/99 of the CFP, which advocates an impossibility of
treatment of homosexuality. The data reveal representations marked by the experience in the
patriarchal society and by the binarism of gender and sexuality.
KEYWORDS: psychology, social representations of gender, gay cure.

Introdução

A Teoria das Representações Sociais (TRS) de Moscovici é uma


forma de conhecimento sobre objetos ou fenômenos sociais, desenvolvida
coletivamente por um ou mais grupos, que vão influenciar o modo ser, falar
e agir das pessoas. Neste trabalho buscou-se apresentar elementos centrais e

Ebook IV SIGESEX 631


a constituição dessa teoria, relacionando-a com os conceitos de diversidade
de gênero, sexualidade, exclusão, constituição cultural do corpo e identidade.
O estudo teve como objetivo identificar e analisar as representações
sociais (RS) de professores acerca da resolução 001/99 do Conselho Federal
de Psicologia (CFP), que estabelece normas de atuação para os psicólogos em
relação à Orientação Sexual e aborda o entendimento de que para a ciência
psicológica a sexualidade faz parte da identidade de cada sujeito e, por isso,
práticas homossexuais não constituem doença, distúrbio ou perversão.
Considerando a inviabilidade de, no período de tempo e recursos
disponibilizados, realizar o estudo das RS de diversos grupos presentes na
nossa sociedade, assim como realizado por Moscovici em 1961, definiu-
se grupo específico para a coleta e análise de dados: docentes que atuam na
educação básica ministrando aulas no ensino fundamental e/ou ensino médio,
em instituições escolares da rede pública ou privada.
A escolha desse grupo é justificada pela proximidade destes profissionais
com crianças e adolescentes, seu papel ativo e fundamental para a formação dos
mesmos. Partindo do princípio de que a aprendizagem não é neutra, “à prática
educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes
maior do que pensamos, da ideologia” (FREIRE, 2002, p. 47), o conteúdo
ministrado pelos docentes certamente carrega suas representações. Ainda que
o objeto em discussão aparente afetar apenas a realidade de psicólogos, deveras
perpassa temáticas complexas e amplamente debatidas nos dias atuais: gênero,
sexualidade, homofobia, estando incluído também o aspecto religioso.
A análise feita no decorrer do presente artigo evidencia a presença de
contradições discursivas nas falas dos professores, bem como o desconhecimento
sobre a resolução da psicologia e as outras questões que circundam a temática.

1- Teoria das Representações Sociais: seu desenvolvimento e


conceituações

A TRS foi desenvolvida pelo psicólogo social Serge Moscovici com a


publicação do seu livro, no Brasil traduzido com o título A representação social
da psicanálise (1961). Moscovici iniciou seus estudos a partir da sociologia do
conhecimento, analisando o estudo do sociólogo Émile Durkheim (1924) e
suas investigações acerca do denominado “representações coletivas”, afirmando
que o pensamento se dá no interior da sociedade e se explica a partir dela, isto
é, não pode ser explicado pela consciência individual. Contudo o sociólogo

632 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


citado considerava a sociedade estática, tradicional e já estabelecida, além de se
afastar do chamado senso comum. Moscovici contrapõe-se a essas ideias.
Dessa forma, a TRS investiga explicações simples formadas pelo senso
comum e não suas formas complexas como mitos, religião, linguagem e
ciência, estes que eram objetos de estudo de Durkheim, em suas representações
coletivas. (RESÊS, 2003)
De acordo com Ivana Marková (2017, p. 358-375) o modelo usado
por Moscovici, é o interacionista, o qual interliga os três principais conceitos:
sujeito (ego), o sujeito social (alter) e o objeto. De maneira sucinta: o indivíduo
é tanto produto quanto produtor da sociedade, pois possui herança e a partir
dela pode tomar decisões (ANADÓN, MACHADO, 2003), essa percepção
dá à psicologia um caráter dinâmico e mutável.
De acordo com Moscovici (2003) as representações devem ser
vistas como uma “atmosfera”, em relação ao indivíduo e/ou ao grupo, e elas
são, sob alguns aspectos, específicas de nossa sociedade. A finalidade de
qualquer representação é tornar familiar algo que não é, ou sua própria
não-familiaridade. As representações são conhecimentos do senso comum
construídas coletivamente para interpretar o real, e se estruturam tanto pelos
objetivos da ação do sujeito, quanto por aqueles que se opõem a ele.
Outros autores, posteriores a Moscovici, dedicaram-se a estudar e
elaborar mais a teoria. Denise Jodelet (1989) apud Anádon e Machado (2003,
p.23), define as RS como uma forma de conhecimento que encontra-se no senso
comum, marcado por e internamente nas interações sociais, através de valores,
crenças e estereótipos, que são compartilhados por um grupo social diferente do
analisado, o que permite uma visão externa e comum das coisas. É uma forma de
conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, tendo uma visão prática
da vida social. Isso se deve ao longo intercâmbio social, que é um elemento
fundamental para a vida coletiva e possui autonomia nos variados espaços sociais.
Considerando o exposto, é possível perceber que as RS do senso comum
estão em constante mudança, principalmente pelo fato de seus paradigmas
serem inertes, sempre abrindo espaço, sendo férteis e renovadores para novas
possibilidades, diferentemente de outras teorias.

2 - Constituição cultural do sujeito

Jodelet (2009) ao refletir sobre as alterações na conceituação de sujeito


dentro das ciências sociais e da psicologia, ressalta que a maneira de conceituar

Ebook IV SIGESEX 633


o indivíduo na sua relação com a sociedade mudou. A relação indivíduo/
sociedade partia da noção de oposição entre ator ou agente, sistema social ou
estrutura, contudo esta percepção evoluiu, aproximando, na sua acepção das
noções de ator e de agente, a noção de sujeito.
Posteriormente entende-se que, propor o indivíduo como agente é
reconhecer, neste último, a possibilidade de escolha, superando, de certa
forma, a passividade diante das pressões ou constrangimentos sociais e intervir,
de maneira autônoma, no sistema das relações sociais, como detentor de suas
decisões e senhor de suas ações. ( Jodelet, 2009)
Segundo Jodelet (2015) algumas correntes da psicologia social
afastaram-se da noção de sujeito, pois fazê-lo corresponde à vontade de afastar
uma visão dessocializada do indivíduo.

2.1 - Diversidade, gênero, sexualidade e exclusão


A categoria gênero surge como uma categoria importante para debate
que busca contrapor o determinismo biológico na constituição dos masculinos
e femininos. Assim, o termo gênero, segundo Joan Scott (1995, p. 7), “é
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres”, propondo uma liberdade e equidade
de direitos, sendo contra as imposições de um sistema patriarcal, no qual os
masculinos prevalecem sobre os femininos.
Ademais, o desenvolvimento tecnológico ofereceu importantes
contribuições à categoria de gênero, como, segundo Sarti (2003) a difusão da
pílula anticoncepcional “que separou a sexualidade da reprodução e interferiu
decisivamente na sexualidade feminina” e ofereceu condições para a ruptura
do ideal de que a vida e a sexualidade feminina são destinadas à maternidade,
oferecendo uma “escolha” para a mulher. Além disso, “a partir dos anos 80, as
novas tecnologias reprodutivas - seja inseminações artificiais, seja fertilizações
in vitro - dissociaram a gravidez da relação sexual entre homem e mulher”
(SARTI, 2003, p. 22).
Para Scott (2012, p.333) o binômio “sexo/gênero e a distinção natureza/
cultura foram um suporte crítico no esforço de conter a discriminação contra
as mulheres, sua exclusão dos mundos dos homens”. É possível afirmar que essa
distinção se fez efetiva como um movimento político e acadêmico, mas que
não cessou com a misoginia, visto que ainda há movimentos contra os diversos
grupos feministas, a degradação deste e do que ele representa. Também é
consumada essa diferenciação ao analisar as diversas formas de violência

634 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


que a sociedade pratica contra as mulheres, em distintos contextos e esferas,
tratando-a como submissa devido a organização patriarcal da sociedade.
De forma análoga, devido a uma questão histórica, a homossexualidade
foi e ainda é oprimida, violência esta embasada em definições naturais sobre o
gênero devido a uma sociedade que compreende sexo biológico, suxualidade
e gênero como condições absolutamente atreladas. Contudo, a concepção
de um sujeito não somente biológico como também sócio-histórico-cultural
torna possível afirmar que há diversidade de gênero e sexualidade.
Dessa forma, gênero oferece espaço para o movimento LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), ao abordar sensações,
emoções, desejos, erotismo, condutas, proibições, fantasias, modelos,
significados e ideias como configurações sociais e históricas, possibilitando que
supere-se o determinismo biológico sobre a identidade de gênero e orientação
sexual.

2.2 -A resolução Nº 1/1999


A Resolução nº 01/1999, do CFP, veta a profissionais da Psicologia o
exercício de atividades que reforcem a patologização de comportamentos ou
práticas homoeróticas, e está em vigor há 20 anos. A norma impede a coerção
de homossexuais para tratamentos não solicitados, portanto, a prática de
terapias popularizadas como “cura gay”.
Esta resolução, considerada, particularmente na época que entrou
em vigor, um avanço revolucionário no campo dos direitos da população
homossexual, historicamente enfrenta desafios, entre estes, destacam-se: em
2013, a lei anti-homofobia – Lei n° 2.615/2000, do Distrito Federal, que prevê
punições para quem praticar atos de preconceito em razão da orientação sexual,
que no dia seguinte de sua regulamentação foi vetada por pressão da bancada
evangélica, mas que quatro anos depois, foi novamente regulamentada.
Mais recente, em 2017, ocorreu grande comoção a respeito desta
resolução, quando a liminar do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 539/16,
do deputado Pastor Eurico (PHS-PE), que previa a suspensão dos artigos 3º e
4º, foi aprovada, considerando a alegação:

Alegam, em síntese, que a citada resolução, como verdadeiro ato de


censura, impede os psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e
pesquisas científicas acerca dos comportamentos ou práticas homoeró-
ticas, constituindo, assim, em um ato lesivo para o patrimônio cultural

Ebook IV SIGESEX 635


e científico do país, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa
científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu
art. 5º. IX. (Ata de Audiência. https://site.cfp.org.br/wp-content/
uploads/2017/09/Decis%C3%A3o-Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf )

Na decisão liminar do juiz Waldemar Claúdio de Carvalho, foi mantida


a integralidade do texto da resolução, apesar do PDC 539/16, contudo,
alterando a interpretação para que o CFP seja permissivo ao atendimento de
reorientação sexual.
O CFP posicionou-se de maneira contrária a ação liminar, alertando o
fato de que a homossexualidade não é uma patologia, que terapias de reversão
sexual não tem eficácia e causam sofrimento psíquico, além dos impactos
da resolução no enfrentamento da violência à população LGBT no Brasil,
concluindo com a determinação de recorrer a decisão da liminar.
A resolução 001/99 do CFP mostra-se coerente com os conceitos de
identidade de gênero e orientação sexual, compreende que o corpo biológico
não sobrepõe e delimita, desde o nascimento, a identidade do indivíduo e/
ou sua orientação sexual. Tendo em vista toda as informações apresentadas,
nota-se que a resolução nº 01/1999 do CFP se faz necessária como aparato
legal para o reconhecimento do conceito de sexualidade e para assegurar a não
realização de práticas homofóbicas ou transfóbicas.

3 - Método

Trata-se de uma pesquisa de exploratória de análise qualitativa. Foi utilizado


um roteiro de entrevistas semiestruturado com dois núcleos de informações. O
primeiro contendo os dados de identificação do(a) entrevistado(a) e o segundo
compreendendo quatro eixos: a) compreensão sobre gênero e sexualidade;
b) conhecimentos sobre o debate sobre a cura gay; c) conhecimento sobre a
resolução 001/99; e d) relevância dada para um documento que regule a atuação
do psicólogo quanto patologização ou não da homossexualidade.
Os entrevistados, que foram caracterizados por sua atuação profissional
enquanto professores, ativos e aposentados, lecionam turmas desde o Ensino
Fundamental ao Ensino Médio, 7 participantes identificaram-se enquanto
mulheres e 3 como homens, com idades variantes entre 21 e 62 anos. Os
entrevistado são de nacionalidade brasileira e possuem Ensino Superior
Completo; três possuem pós-graduação e mestrado.

636 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Foram realizadas 10 entrevistas, todas no primeiro semestre de 2018,
somando um total de dez entrevistas realizadas, sem limite de tempo para as
respostas, apenas, quando necessário o entrevistador(a) intervia de modo mais
direto, para obtenção de dados relevantes para a pesquisa e a questão realizada.
As entrevistas foram gravadas e transcritas na integra.
A posteriori as entrevistas foram analisadas com base no artigo de
SPINK (1994), “Desvendo as Teorias Implícitas: Uma metodologia de Análise
das Representações Sociais” que é composta por 1. transcrição da entrevista;
2. leitura flutuante; 3. retornar aos objetivos da pesquisa e definir claramente
os objetos da representação; 4. construção de mapas que transcrevem toda a
entrevista, respeitando a ordem do discurso e 5. transportar estas associações
para um gráfico (p.108).

4- Discussão

Após análise das transcrições das entrevistas realizadas, foi realizada


a construção de um mapa composto por cinco enunciados: a) Tratando os
temas Gênero e Sexualidade nas escolas b) Gênero e Sexualidade como tema
em desenvolvimento c) Para que a resolução 01/99 d) mas respeito e) A
compreensão de gênero e sexualidade.
Considerando a complexidade do discurso, alguns dos temas
emergentes que foram mapeados não são explicitamente voltados ao tema
da pesquisa, como cita SPINK (1994, p. 106) “Os discursos são complexos,
mesmo quando pensamos estar entrevistando sobre um tema único, e muitas
vezes estão presentes teorias sobre múltiplos aspectos relacionados.”, porém
são proposições que circundam a representação social do grupo de professores
quanto a Resolução 001/1999 do CFP .
No eixo temático a) Tratando os temas Gênero e Sexualidade nas
escolas, foram observadas falas tais “[...] o psicólogo tem que saber até onde
ele pode ir, “pra” tratar esse assunto, se ele ta dentro de uma escola, por conta
de todas as leis que existem hoje [...]” (Sujeito B); “Porque desde que a gente
nasce a gente tem a sexualidade né? Pelo menos é o que eu sempre trabalhei
com as crianças” (Sujeito E); “[...], professor não pode falar sobre isso na sala de
aula[...]” (Sujeito G) e “Um tema extremamente importante a ser trabalhado
em sala de aula.” (Sujeito I)
Já no segundo enunciado b) Gênero e sexualidade como temas em
desenvolvimento, as expressões são “eu acho que nós estamos em uma fase de

Ebook IV SIGESEX 637


transição de entendimento sobre esse assunto” (Sujeito A) e “[...]e uma coisa que
eu vejo agora, uma maior debate sobre essa questão, a sociedade ta debatendo,
tem gente que vai falar “ah, mas tem, mas porque que toda novela tem que ter?”
tem que ter, se tem um casal hétero, porque não ter um casal gay? [...] (Sujeito C)
Em relação às frases que compõe o enunciado c) Para que a resolução
01/99 tem-se: “[...]a gente tem que ter a lei “pra” proteção de vocês como
psicólogos, “pra” saber até onde vocês podem ir em relação a qualquer assunto
direcionado ao aluno.” (Sujeito B), e “[...]eu acho que tem ter essa discussão
sim, de sobre a doença, de como tratar , e se deve tratar, se é uma doença, mas
é bom ter essa discussão” (Sujeito G)
O tema d)...mas respeito configura-se por falas tais como “Eu mesma,
por exemplo, eu não entendo exatamente o que é essa questão de gênero e
sexualidade, mas respeito [...]” (Sujeito A) e “Deus criou macho e fêmea, mas
eu na minha opinião, eu não posso também discriminar, nem fazer distinção,
eu não posso [...]” (Sujeito F)
Por fim o eixo e) A compreensão de gênero e sexualidade, tem em seu
cerne enunciações como “Gênero é essa questão de ser hétero, homossexual, ou
lésbica, bissexual, é isso né? Eu não sei muito bem. Dai, sexualidade eu não sei
se é exatamente a mesma coisa [...]” (Sujeito A), nos dados para identificação
“Orientação sexual?” “É normal[...] É mulher mesmo” (Sujeito B), e “[...]
eu acho que gênero é com o que eu me identifico e sexualidade é como... ou
atração.. ou como eu quero me relacionar com outro gênero.” (Sujeito J)
Considerando a organização dos conteúdos evidenciados nas falas do
grupo entrevistado foi possível perceber que a compreensão dos conceitos de
gênero e sexualidade entre a maioria dos sujeitos é precária, embasada na vivência
da sociedade patriarcal e heteronormativa. Ainda se considerarmos aqueles com
maior nível de entendimento da temática, mantém-se presente a existência do
binarismo: feminino, masculino e heterossexualidade, homossexualidade.
Frente a isto, partindo a outro enunciado, o tratamento da temática
gênero e sexualidade no ambiente escolar exibe a falta de conhecimento e
discussão dos temas, que ainda são encarados como tabu, e no melhor cenário
como questão em desenvolvimento, por muitas vezes são avaliados como
temas não importantes para o ambiente escolar.
Outra questão que recebe destaque é o não reconhecimento do
preconceito no próprio discurso. Os conhecimentos tomados como verdadeiros
não são questionados, e são, por vezes, equivocados e embasados em um discurso
popular de heteronormatividade, marcado por vezes pela utilização da expressão

638 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


“...mas respeito”, que intitula o tópico, ou por discurso religioso, apresentado de
maneira explícita ou implícita, como o guia moral que rege a compreensão da
“[...]mas, eu por ser evangélico, a gente tem uma, um pensamento...” (Sujeito F).
Todas os pontos exibidos até então são aqueles que gravitam e compõem
a formação da representação dos professores entrevistados sobre a resolução do
CFP, esta a qual oito dentre os dez professores e professoras entrevistados não
tinham qualquer conhecimento sobre.
As representações divergem e caminham por vezes até mesmo a lados
opostos, porém, na totalidade é compreendido que a função desta é incitar
a discussão dos temas gênero e sexualidade, que ainda são encarados como
temática em desenvolvimento.

Considerações finais

Conforme o exposto no artigo, é possível perceber e expor a relação entre


os conceitos de gênero, sexualidade e a TRS, na constituição da representação
social dos professores sobre a resolução 001/99 do CFP.
Ainda que a resolução não fosse popular a este público, após análise da
entrevista, pode-se notar que, mesmo que os professores apresentem discursos
que se opunham a existência da resolução, é de comum acordo que esta é
relevante como princípio para discussão da temática.
O observado é de certa forma intrigante, pois a resolução resolve alguns
dos dilemas populares sobre gênero e sexualidade, e sobre a patologização
das homossexualidades, contudo é vista como um ponto de partida para essa
conversa e não como sua conclusão.

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Ebook IV SIGESEX 641


Constituir-se psicóloga/o: as relações
de gênero e sexualidade no processo de
formação
Constitute a psychologist: gender relations
and sexuality in the process of professional
qualification
Rebeca de Lima Pompilio1
Zaira de Andrade Lopes2

RESUMO: Considerando que a compreensão dos processos identitários


perpassa o conhecimento das noções de gênero e sexualidade é fundamental que
tais temas façam parte da formação da/o psicóloga/o. Sob a ótica dos estudos
de gênero e da Teoria das Representações Sociais, esta investigação analisou os
documentos pedagógicos e norteadores da matriz curricular de um curso de
psicologia. Os resultados revelam a invisibilidade dos temas nos dados analisados.
PALAVRAS-CHAVE: Formação profissional; psicologia; gênero e
sexualidade;

ABSTRACT: Considering that the comprehension of identity processes goes through


gender and sexuality notions, it is fundamental that these themes be part of psychologist
education. From the perspective of gender studies and Social Representations Theory, this
research analyzed the pedagogical and course curriculum guiding documents of a psychology
course. The results reveal the invisibility of the themes in the analyzed data.
KEYWORDS: Professional qualification; psychology; gender and sexuality;

Introdução

A constituição da identidade é um processo que envolve vários fatores


e que se desenvolve ao longo da vida. Para Ciampa (1987), identidade é
“identidade de pensar e ser. (...) busca de significado, é invenção de sentido.
1. Psicóloga pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: repompilio21@gmail.com
2. Doutora em Psicologia, Professora adjunta na UFMS, vinculada a graduação e a pós-graduação em Psicologia. E-
-mail: zairaal@gmail.com

642 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


É autoprodução do homem. É vida.” (CIAMPA, 1987, p. 241-242). Silva
(2009) afirma que para este autor a identidade é posta e reposta, uma vez
que nesse processo de constituição o sujeito assume diferentes papeis os
quais dialogam e constroem-se de acordo com as condições em que está
submetido.
O processo identitário perpassa gênero e sexualidade na medida em que
são conceitos constituintes dos seres humanos. Estes conceitos são importantes
para refletir sobre as vulnerabilidades e violências. A violência contra as
minorias sexuais, isto é, a população LGBTT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais) é um exemplo de violência resultante das relações de
gênero e da norma instituída socialmente pautada na correspondência entre
sexo-gênero-desejo.
De acordo com o relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia /
GGB no ano de 2018 foram registradas 420 mortes em decorrência da
homolesbobitransfobia, destes 320 por homicídios e 100 casos de suicídios
(GGB, 2018), estatísticas que situam o Brasil como campeão mundial de
crimes de ódio contra essa população (GGB, 2018, TGEU, 2017).
Considerando gênero e sexualidade como elementos constitutivos dos
processos identitários, os dados alarmantes apresentados, o dever da Psicologia
- sob princípios do Código de Ética Profissional -, é fundamental que a
temática da relação de gênero e diversidade sexual esteja presente na formação
profissional da/o psicóloga/o.
A psicologia tem se preocupado em formar profissionais sensíveis
e qualificados à questão identitária a partir das relações de gênero? Um/a
psicólogo/a poderá lidar também com sujeitos e questões relacionadas ou serem
requisitados a realizar, por exemplo, acompanhamento psicológico obrigatório
a pessoas trans que desejem passar pelos processos de hormonioterapia e/ou
redesignação sexual. Estaria apto?
Assim, ao considerar tais indagações, neste trabalho busca-se averiguar
como o processo de formação em psicologia contempla a temática de gênero
e sexualidade, especialmente no que diz respeito às minorias sexuais. Trata-
se de um resultado de uma pesquisa de análise documental tendo por foco
os documentos norteadores dos cursos de psicologia, como as Diretrizes
Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia (DCN),
o Projeto Político Pedagógico (PPP) e os planos de ensino de um curso em
Psicologia. A análise dá-se pelos estudos de gênero, da Teoria das Representações
Sociais articulada com a abordagem Histórico-Cultural.

Ebook IV SIGESEX 643


1- O que entender sobre Gênero e Sexualidade?

Para entender as implicações dos estudos de gênero e suas inferências na


constituição identitária, faz-se necessário buscar as noções que envolvem esse
termo. O conceito de gênero aparece com intuito de diferenciar-se de “sexo”
da biologia em 1968 com Robert Stoller, psiquiatra e psicanalista, no livro
“Sex and Gender” (SPIZZIRRI; PEREIRA; ABDO, 2014), ainda como um
conceito de diferença sexual entre homens e mulheres.
A partir dos estudos feministas o conceito de gênero passa a ser
considerado como um constructo social, com caráter cultural, histórico e plural
(PELÚCIO, 2014), uma categoria analítica e política (LOURO, 1997). É um
conceito relacional na medida em que abarca suas relações de poder (SCOTT,
1995) e se constroi na esfera das relações sociais (LOURO, 1997).
Outros conceitos de fazem necessários para compreensão e requerem
ser distinguidos: sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Sexo refere-
se à parte biológica, como aos cromossomos, características e funcionamento
dos aparelhos reprodutores masculinos e femininos, e caracteres secundários
decorrentes dos hormônios (CEZÁRIO, KOTLINSKI, NAVARRO, 2007).
A identidade de gênero depende de como a pessoa se identifica, seja enquanto
mulher, homem, ambos ou nenhum. Já a orientação sexual refere à atração
afetivo e/ou sexual por alguém.
Kotlinski (2007) em “Diversidade Sexual, uma breve introdução”
afirma que esses três conceitos são âmbitos distintos de expressão ou vivência
social de alguém, e que reconhecer essas diversas possibilidades de ser e vir a ser
é respeitar contribuindo para uma sociedade justa, diversa, igualitária e livre.

2- Breves considerações sobre a Teoria das Representações


Sociais (TRS)

O fenômeno das Representações Sociais (RS) foi teorizado por Serge


Moscovici no campo da psicologia social a partir de um estudo em que buscava
compreender como a psicanálise era apropriada por diferentes grupos sociais
da França (ANADÓN; MACHADO, 2003).
As RS são os conhecimentos advindos do senso comum e são socialmente
elaboradas e partilhadas, tendo a função principal de tornar o não familiar
em familiar (MOSCOVICI, 2003), mas também, segundo Abric (1998),
as RS permitem compreender e explicar a realidade, definem a identidade,

644 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


guiam os comportamentos e ações e permitem justificar tomadas de posição e
comportamentos.
A TRS elucida como os sujeitos e grupos constroem seu conhecimento,
considerando, assim como a abordagem Histórico-Cultural, sua inscrição
sócio-histórico-cultural.

3- Percurso metodológico do estudo

Os documentos base da pesquisa para a produção dos dados e análise


compreendem o Projeto Político Pedagógico de um Curso de Psicologia,
os planos de ensino de duas turmas desse curso, uma com ingresso em 2012
(2017) e outra com ingresso em 2013 (2018); as Diretrizes Curriculares
Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, o Código de Ética
Profissional da/o Psicóloga/o, resoluções do Conselho Federal de Psicologia
(CFP), dentre outros.
No referido Projeto Político Pedagógico constam 51 disciplinas a serem
ofertadas às turmas ao longo da graduação. Para análise dos planos de ensino
fora desconsiderado a disciplina de Atividades Complementares, Trabalho de
Conclusão de Curso I e II e disciplinas Optativas. Considerou-se 4 ofertas
de turmas para os 4 semestres de estágio disponíveis nas duas ênfases. Assim,
considerando as duas turmas totalizariam 160 planos de ensino. Contudo, no
sistema foram localizados apenas cinquenta porcento dos mesmos, ou seja,
oitenta documentos para serem analisados.

4- Marcos éticos e legais para a atuação da psicologia

A Psicologia é regulamentada pelo Código de Ética da/o Profissional


Psicóloga/o, em vigor pela Resolução do Conselho Federal de Psicologia no
010/05. Dos “Princípios Fundamentais” apresentados no documento destaca-
se que atuação terá no bojo o respeito e a promoção da integridade, igualdade,
dignidade e liberdade do ser humano, objetivando promover a saúde e a qualidade de
vida, contribuindo para eliminar toda forma de negligência, violência, exploração,
crueldade, discriminação e opressão, devendo atuar com responsabilidade por
meio do contínuo aprimoramento profissional (CFP, 2005).
Em 1985 o CFP deixa de considerar homossexualidade como um desvio
sexual e em 1999 publica a Resolução do CFP no 001, de 22 de março de
1999 que estabelece Normas de atuação para as/os psicólogas/os em relação à

Ebook IV SIGESEX 645


questão da Orientação Sexual. No documento considera-se que a forma como
cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve
ser compreendida na sua totalidade e que a homossexualidade não constitui
doença, distúrbio ou perversão; também afirma que as/os profissionais
psicólogas/os não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização da
homossexualidade, nem colaborarão com serviços que proponham tratamento
e cura das homossexualidades (CFP, 1999).
No ano de 2013 o CFP publica uma Nota Técnica sobre o processo
transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans, no qual
considera que a transexualidade e a travestilidade não constituem condição
psicopatológica, e orienta, que o trabalho profissional não se restringe ao
procedimento cirúrgico, mas na integralidade do atendimento psicológico e
na humanização da atenção (CFP, 2013).
Mais tarde, publica-se a Resolução No 001/2018 que estabelece Normas
de atuação para as/os psicólogas/os em relação às pessoas transexuais e travestis.
Nele consideram-se as expressões e identidades de gênero como possibilidades
da existência humana, afirma que a autodeterminação constitui processo
no qual se garante a autonomia do sujeito para determinar sua identidade
de gênero e resolve que a prática profissional contribua para eliminação da
transfobia (CFP, 2018).
As Diretrizes Nacionais Curriculares para os cursos de graduação
(DNC) visam uma identidade profissional consistente e homogênea para além
do currículo mínimo. Baseiam-se em competências e habilidades profissionais,
as quais são nacionais e devem ser observadas pelas Instituições de Ensino
Superior do País.
A primeira versão das DNC para graduação em Psicologia foi em 2001 e
atualmente vigora-se a Resolução CNE/CES no5, de 15 de março de 2011 que
Institui as Diretrizes Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia,
estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a
Formação de Professores de Psicologia. Destacam-se dois objetivos do projeto
pedagógico complementar para a formação de professores: o compromisso
com as transformações político-sociais, conciliando a prática de ensino com
educação inclusiva e também com os valores de solidariedade e cidadania,
sendo capazes de pensar e construir novos contextos de pensamento e ação
(BRASIL, 2011).
Concernente aos eixos estruturantes para a proposta mencionada
complementar tem-se Psicologia, Políticas Públicas e Educacionais as quais

646 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


enfatizam a educação inclusiva, Psicologia e Instituições Educacionais,
Filosofia, Psicologia e Educação, e Disciplinaridade e Interdisciplinaridade.
Devem-se oferecer conteúdos que dentre outros promovam uma ampla visão
do papel social do educador, reflexão acerca da prática e a necessidade de
contínuo aperfeiçoamento (BRASIL, 2011).
Ressaltam-se também alguns incisos do Art. 3º, o qual prevê uma
formação em Psicologia baseada em determinados princípios e compromissos
dentre eles a compreensão crítica dos fenômenos sociais, econômicos, culturais
e políticos do país, atuação considerando os direitos humanos e respeito à ética
desde a relação com cliente até na produção e divulgação de informações da
área da Psicologia (BRASIL, 2011).
No que tange ao Projeto Político Pedagógico (PPP), apresenta-se uma
proposta educacional contemplando todas as regulamentações necessárias ao
funcionamento do curso. O referido curso teve início em 2002, e o seu PPP
fora aprovado em 2012, substituído na sequência por uma resolução no ano
de 2014.
Outro documento analisado foi o plano de ensino. Esse documento
é elaborado pelo/a docente responsável pela disciplina, o qual deve conter,
dentre outros, o programa, procedimentos de ensino, formas de avalição e a
bibliografia a ser utilizada. Ainda que a/o docente tenha certa liberdade para
construir seu plano de ensino, deve-se ter em vista a ementa disposta no PPP.

5 - Resultados e discussão

A análise das Diretrizes Nacionais Curriculares para os cursos de


psicologia demonstrou ausência das categorias gênero e sexualidade em sua
redação, havendo espaço para interpretação e inclusão desses temas, porém
não consta explicitamente essa discussão.
A leitura dos dois PPP (2012 e 2014) foi realizada focalizando as
ementas, observando espaço para abordar e discutir gênero e sexualidade ao
longo da formação profissional. Das 73 ementas descritas a categoria gênero
aparece uma única vez na disciplina de Antropologia Cultural.
Ressaltam-se três disciplinas em que esse debate far-se-ia imprescindível:
Psicologia e Ética, Psicologia e Diversidade Humana I e II. Na descrição da
primeira ementa não aparece explicitado termos como Gênero, Diversidade
sexual, Sexualidade e/ou correlatos, mas também abre a possibilidade de serem
contemplados. Na segunda disciplina encontra-se o descritivo “preconceito”,

Ebook IV SIGESEX 647


mas restringe-se a “origens étnicas, credo e classe social”. Ao observar a
bibliografia básica e complementar das duas últimas disciplinas todas fazem
referência à educação especial/deficiência/ “necessidades especiais”, ainda que
o nome da disciplina por si só deveria contemplar seres plurais.
Na análise dos documentos percebeu-se o número de disciplinas com
base biologicista e/ou predominância do viés médico, fato que pode contrapor a
compreensão de que a formação do humano se constitui cultural e socialmente.
São seis disciplinas: Bases biológicas do comportamento, Genética Humana
e Evolução, Psicofarmacologia, Psicopatologia, Psicopatologia Geral I e II,
sendo nesta última contemplada na ementa a manuais diagnósticos.
Para análise dos planos de ensino da turma com ingresso em 2012
considerou-se 48 planos, desses 19 continham ementas incompatíveis parcial
ou totalmente com aquelas aprovadas no PPP. Em apenas 2 dos 48 planos de
ensino, uma turma do Estágio Obrigatório em Psicossocial I e do II, observou-
se a categoria gênero. Em ambos constava “Estudos de Gênero e Violência
de Gênero.”, porém se observa gênero enquanto relativo à violência contra a
mulher.
Na turma com ingresso em 2013, analisou-se 28 dos 80 planos de ensino
esperados. Desses, 11 apresentavam ementas diferentes das que constam no
PPP. Em apenas 1 plano de ensino, da disciplina Diversidade Humana I,
aparece as categorias de análise procuradas, apresentando na última linha de 16
itens descritos: “Questões de gênero e sexualidade. Questões relacionadas aos
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros - LGBTTT.”.
A ementa que consta no plano de ensino referente à disciplina citada
acima diverge do PPP, não contemplando nenhuma das bibliografias básicas
nem complementar do documento norteador. Na bibliografia lançada no
plano de ensino não há título que explicite referência a gênero, sexualidade e
população LGBT.
A ausência nos documentos normatizadores do curso de Psicologia
no que tange as relações de gênero e diversidade comunicam a escassez e a
invisibilidade da temática. Uma vez que as RS são socialmente elaboradas e
constroem uma realidade comum a uma categoria social aponta-se esse curso
enquanto essa categoria ou grupo social que partilha da desconsideração da
temática no processo de formação profissional e age para que isso se mantenha.
Outro ponto da análise dos documentos é a representação social da
Psicologia enquanto um curso normatizador. Invisibilizar o debate de gênero e
sexualidade e trazer o caráter biologicista e médico para discussão na formação

648 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


é usar do dispositivo da educação para manter e perpetuar a correspondência
heteronormativa sexo/gênero/desejo.

Considerações Finais

Pode-se observar que a temática não consta nas DCN para os cursos
de Psicologia, aparece uma única vez “relações de gênero” no PPP, porém no
âmbito da antropologia sem referências que contemplem esta discussão, e a
temática esteve presente em 3 planos de ensino, um único desses referentes a
disciplina obrigatória pertencente ao núcleo comum.
Podemos inferir que a formação acadêmica deste referido curso de
Psicologia é insuficiente e não dá conta de desconstruir conceitos tão arraigados
uma vez que a temática é inexpressiva ao longo dos 5 anos. Diante disso infere-
se que as/os alunas/os se formam sem qualificação mínima necessária para
falar, ouvir e agir de maneira ética, adequada e responsável no que tange às
questões de gênero e sexualidade.
Estar atento às condutas, próprias e alheias, de fala, ação, de documentos,
conforme analisados neste artigo, tem intuito de trazer à tona a questão e
refletir uma vez que problematizar é permitir que dadas representações sociais,
como as que culminam na violência de gênero se alterem, abrindo portas para
novas possibilidades de construções, portanto, novas representações.

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Ebook IV SIGESEX 649


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Ebook IV SIGESEX 651


Novo homem, velha estatística: desafios
para a redução do feminicídio no Brasil
New man, old statistics: challenges for the
reduction of feminicide in Brazil
Renato Martins de Lima1
Zaira de Andrade Lopes2

RESUMO: Este trabalho analisa o aumento de homicídios de mulheres no


Brasil a partir da série histórica (2006-2016) do Atlas da Violência sob a perspectiva
dos estudos de gênero e violência considerando a Teoria das Representações
Sociais, os estudos de Masculinidade Hegemônica, de Connell e o conceito de
Novo Homem, de Nolasco, sob a perspectiva da constituição cultural do homem.
Discute-se que o crescimento da violência de gênero dirigida à mulher muito tem a
ver com as relações de poder e dominação estabelecidos pela cultura do patriarcado.
PALAVRAS-CHAVE: violência de gênero, masculinidade, feminicídio

ABSTRACT: This study analyzes the increase of homicides of women in Brazil from
the historical series (2006-2016) of the Atlas of Violence from the perspective of gender and
violence studies, considering the Theory of Social Representations, Connell and Hegemonic
Masculinity studies and the concept of New Man, of Nolasco, from the perspective of the cultural
constitution of man. It is discuss that the growth of gender violence directed at women has a lot
to do with the relations of power and domination established by the culture of patriarchy.
KEYWORDS: gender violence, masculinity, feminicide

Introdução

Diversos estudos sobre a identidade masculina ou masculinidades


como preferem alguns autores que serão apresentados neste trabalho
pavimentam a trajetória de constituição histórica e social de alguns conceitos
1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela UFMS. Bolsista Capes – renato.mart@gmail.com
2. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, docente adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul - UFMS zairaal@gmail.com - Av. Costa e Silva , s/n, Caixa Postal 549 CEP 79070-900. Campo Grande/
MS. Telefone (67) 3345.3587. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

652 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


da masculinidade, sobre tudo a Masculinidade Hegemônica como postulou
Connell (1997), até o conceito de Novo Homem, que no Brasil tem sido
fortemente trabalhado por Nolasco (1993), fundador do Núcleo de Pesquisa
sobre o Comportamento Masculino.
Essa discussão também emerge fora do âmbito acadêmico,
principalmente na mídia, como bem destacou Souza (2009) nos freqüentes os
debates nas emissoras de rádio e televisão, além da propagação pela Internet,
jornais e revistas de grande circulação nacional.

Os veículos de massa estão mais vinculados a um discurso midiático


que apregoa diferenciados estilos de vida voltados para o consumo, fa-
zendo mais apologia de estilos de vida do que propriamente um debate
político acerca da construção identitária dos homens e da reflexão sobre
as interações de gênero. Alguns rótulos surgiram para identificar este
“novo homem”, como os já conhecidos metrossexual e übersexual, além
do retrossexual (SOUZA, 2009, p. 135).

Alguns desses veículos tem aproximado o tema do grande público


ressaltando a importância de colocar esse novo homem em pauta. A Revista
Veja, por exemplo, em sua edição de 1º de outubro de 2003, trouxe uma matéria
de capa intitulada “O Novo Homem” na qual anuncia: “ele desenvolveu a
sensibilidade, interessa-se mais pelos filhos, assume e exibe emoções, preocupa-
se com a aparência, aprecia culinária e apurou o seu senso estético. É firme,
mas tem estilo. Está nascendo o novo macho do século 21”. Já a revista Isto
É, na edição de 20 de setembro de 2006, destaca em reportagem dois perfis
masculinos: os que colocam poder e sucesso profissional acima de tudo e
aqueles que elegem a família como prioridade absoluta, em nenhum deles
emerge a figura do homem violento e antissocial.
Assim, é possível considerar algumas representações desse novo homem,
a partir do que Moscovici (1961) e Jodelet (2004) vão postular como a
construção de realidades a partir do saber popular e do conhecimento prático
de grupos, que sustenta a Teoria das Representações Sociais.
Segundo Nolasco (1993), “o projeto que se apresenta para um novo
homem busca, em nível individual, integrar o que ele pensa com o que sente
e faz, e que a partir de suas vivências, possa encontrar formas mais suaves de
individualizar-se” (p.174). O desafio para este homem é o desejo premente de
ser ativo sem ser dominador, que expresse socialmente suas emoções sem ter o

Ebook IV SIGESEX 653


receio de ser visto como homossexual e mantenha suas características viris sem
traços machistas, acrescenta Nolasco.
Não se trata de mostrar que o homem hoje descobriu o prazer nas
atividades domésticas e nas relações afetivas intrafamiliar, é preciso colocar em
questão a noção de masculinidade hegemônica como propôs Connell (1997)
e como iremos ver mais detalhadamente ao longo deste trabalho.
Esse questionamento tem uma trilha longa e sinuosa que remete à
década de 1960, nos Estados Unidos, fruto dos movimentos feministas, gay
e lésbico que decidiram inverter o ônus da prova levando a fragmentação
ou pluralização da masculinidade. Antes de se chegar ao conceito de Novo
Homem, Kimmel (1997) sugeriu a partir da historiografia a constituição de
tipos de masculinidade, entre eles o: I) Patriarca gentil: homem refinado,
cordial, elegante, que passa muito tempo com a família, cuidados com o
domínio da terra; II) Artesão heróico: membro da aristocracia rural européia,
dedicação ao trabalho, força física, pai devoto; e o III) Self-made man: homem
de negócios, cuja masculinidade é aprovada pelo mercado (aquisição de bens
como fórmula de sucesso). Corrobora neste percurso Elisabeth Badinter
(2007) ao cunhar a expressão “soft male” para designar o homem que saiba
combinar solidez e sensibilidade, um homem reconciliado. Este mesmo tipo
recebe também em outros países como “homem feminino”, “homem rosa”
(NOLASCO, 1993, p.179)
Todas essas contribuições se iniciam a partir da crise da teoria dos papeis
sexuais de 1950, conforme resgata Cechetto (2004):

O conjunto de valores e atitudes socialmente determinados, correspon-


dentes às representações e expectativas do ser homem e do ser mulher
em todas as sociedades. Masculino e feminino são pontos de referência
imutáveis e opostos entre si. Referência que associa, por exemplo, mu-
lher ao domínio doméstico e homem para o domínio público, alimen-
tando campo de forças e tensões orientado pelo prestígio (CECHET-
TO, 2004, p. 58)

O fardo da virilidade começa a pesar e o tipo “macho man” entra em


cheque, repercutindo ao que já foi trazido no início deste trabalho. Nolasco
(1993), Kimmel e Kaufman (1995) e Connell (1997) são unânimes de que
esse novo homem não se apresenta como salvador do próprio gênero, é mais um
entre os tipos de masculinidades. Mesmo assim, dada as características opostas

654 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


ao tipo da masculinidade hegemônica seria razoável considerar afrouxamento
da desigualdade e, principalmente, da violência de gênero. No entanto, não é
o que se desenha.
A violência do macho contra a mulher é constitutiva da organização
social de gênero no Brasil e revela a dinâmica do agressor conforme já tinha
alertando Saffioti (1994). A autora destaca a cultura do patriarcado como
agente que autoriza a relação de poder e dominação do homem sobre a mulher.
“Só é considerado ato violento quando praticado por estranhos ao contrato
matrimonial, sendo aceito como normal quando ocorre no seio do casamento,
ou seja, uma vez casada deve se comportar como qualquer outra mulher-
objeto” (p.443).
Muitos anos se passaram, importantes avanços foram consolidados no
campo dos direitos feministas e o que na percepção de Scott (2012) “parecia
ser uma questão resolvida”, eclode com resquício de retrocessos, exigindo a
retomada da discussão sobre gênero.

Eu tinha também começado a concluir que como uma questão resol-


vida não poderia mais exercer a função de desestabilizador radical das
pressuposições sobre a relação entre sexo biológico e papéis construídos
culturalmente para mulheres e homens, trabalho que havia sido feito
nos anos de 1970 quando feministas norte-americanas e inglesas apro-
priaram-se do termo dos sexologistas e psiquiatras como Jonh Money
e Robert Stoller. Quando o American Historical Review propôs um
fórum no vigésimo aniversário da publicação do meu ensaio de 1986,
“Gênero: uma categoria útil de análise”, eu estava tanto lisonjeada quan-
to entediada – lisonjeada, pois percebe-se que o ensaio ainda é útil para
os historiadores e entediada pois eu senti que tinha exaurido tudo que
eu havia para dizer sobre o assunto. (SCOTT, 2012, p. 328)

Assim como o interesse de Scott foi “despertado pela deflagração de


uma controvérsia na França” (p. 328) para resgatar a discussão crítica, analítica
e, por que não, didática sobre o tema. No Brasil, a série histórica de homicídio
de mulheres também exige das ciências humanas esse mesmo esforço.

Em dez anos, entre 2006 e 2016, o assassinato de mulheres cresceu 15,3%


(IPEA, 2018). Não por coincidência, o levantamento inicia no ano de
regulamentação da Lei N. 11.340 de 7 de agosto 2006, conhecida po-

Ebook IV SIGESEX 655


pularmente como Lei Maria da Penha, cujo teor explicita a criação de
“mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar con-
tra a mulher” (BRASIL, 2006). A legislação é uma das mais completas
quanto ao aparelhamento para garantir seu propósito e é reconhecida in-
ternacionalmente pelas relevantes contribuições no âmbito dos Direitos
Humanos, bem como na coibição da violência e na proteção da mulher.
Assim, a pesquisa reúne os números de mulheres assassinadas a cada ano,
na primeira década desde que a Lei foi sancionada.

Este artigo busca analisar a questão do aumento de violência contra a


mulher, a partir dos dados do Atlas da Violência de 2018. Essa análise exclui
o viés da aplicabilidade da legislação vigente, pois a Psicologia não tem a
pretensão de verificar a eficácia jurídica e instrumental do dispositivo. Mas
este trabalho volta-se à dinâmica da violência de gênero dirigida à mulher,
muito anterior à Lei, e que se perpetua na sociedade brasileira protagonizando
estatísticas e, neste aspecto, cabe a Psicologia Social oferecer contribuições que
permitam ler os números de maneira mais humanizada, localizando os dados
em um contexto histórico e cultural. Evidentemente, não se pode dissociar as
práticas do discurso, como deixa claro o próprio Atlas da Violência.

Se as leis e políticas públicas ainda não são suficientes para impedir que
vidas de mulheres sejam tiradas de formas tão brutais, o enfrentamento
a essas e outras formas de violência de gênero é um caminho sem volta.
(IPEA, 2018, p. 44).

A base de dados é do Sistema de Informações sobre Mortalidade -


SIM, que considera óbitos causados por agressão mais intervenção legal
(CIDs 10: X85-Y09 e Y35-Y36). De acordo com o relatório, em 2016, 4.645
mulheres foram assassinadas no Brasil. Dez anos atrás, em 2006, o número
de homicídio de mulheres era de 4.030. Esse aumento de 15,3% da década
no Brasil é construído pela realidade de cada unidade da federação, haja vista
que dos 26 Estados e o Distrito Federal, apenas sete apresentaram redução
da porcentagem de homicídios de mulheres (Alagoas -4,7%, Espírito Santo
-43,2%, Minas Gerais -4,3%, Paraná -4,4%, Pernambuco -9%, Rio de Janeiro
-15,1% e São Paulo -35,7%), os outros 20 tiveram crescimento, chegando a até
138% no Rio Grande do Norte, 137% no Maranhão e 118% no Amazonas,
como os três Estados com maior aumento da violência contra a mulher.

656 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Sobre este cenário é preciso considerar que a base de dados do Sistema
de Informações sobre Mortalidade não fornece registros sobre feminicídio,
portanto não é possível identificar a parcela que corresponde a vítimas desse
tipo específico de crime.

No entanto, a mulher que se torna uma vítima fatal muitas vezes já foi
vítima de uma série de outras violências de gênero, por exemplo: vio-
lência psicológica, patrimonial, física ou sexual. Ou seja, muitas mortes
poderiam ser evitadas, impedindo o desfecho fatal, caso as mulheres
tivessem tido opções concretas e apoio para conseguir sair de um ciclo
de violência (ROMIO, 2017, p. 165)

Essa interpretação não é incompatível com o que vem sendo


compreendido em termos de definição de feminicídio a partir do
enquadramento como qualificação de homicídio hediondo na Lei N. 13.104,
de 9 de março de 2015, que altera o Artigo 121 “considera-se feminicídio que
há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência
doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher”
(BRASIL, 2015).
Dessa forma, considerando que ao se tratar de homicídio de mulher a
autoria (mesmo que não na totalidade) seja de homem, implica-se a questão
de gênero suscitando, necessariamente, um modus operandi já conhecido. A
violência, é a flagrante manifestação do poder cuja essência é o domínio, já
postulava Arendt (1973) sobre o poder como “jamais sendo propriedade de
um indivíduo, mas pertencente a um grupo e existe apenas enquanto o grupo
se mantiver unido” (p. 24).
Sobre este grupo em questão paira a construção da masculinidade.
Categoria que precisamos analisar com maior profundidade. Na tentativa
de definir masculinidade, Connell (1997) parte do ponto de que todas as
sociedades contam com registros culturais de gênero, porém, nem todas
contém o conceito de masculinidade (p. 31). Assim, no uso moderno, uma
pessoa não masculina se comportaria de maneira diferente da masculina, seria
pacífica em vez de violenta, conciliadora em vez de dominante, quase incapaz
de dar um pontapé a uma bola de futebol, indiferente na conquista sexual e
assim, sucessivamente. Percebe-se o caráter relacional entre masculinidade e
feminilidade em uma postura polarizada e antagônica baseada em antônimos
cujo sentido explícito é associar faltas e excessos, a própria escolha do

Ebook IV SIGESEX 657


vocabulário e adjetivos por parte do autor para definir a masculinidade por
si só já evidencia traços da cultura do patriarcado na qual o homem detém o
poder e a completude e precisa defender esse status com violência e dominação.
Connell resgata a investigação histórica ocidental que sugere que até o século
XVIII a diferença entre mulheres e homens era justamente pautada pela
posição das mulheres de incompletas e inferiores, mais especificamente as
mulheres tinham menos faculdades racionais. Já no século XIX, mulheres e
homens não eram vistos como portadores de características qualitativamente
diferentes, embora ainda em esferas separadas, conceito que formaria parte da
ideologia burguesa (CONNELL, 1997, p.32)
Os estudos de Kaufman (1995), Kimmel (1997), Connell (1997),
Cechetto (2004) entre outros elencam quatro enfoques principais: A)
as definições essencialistas baseadas em traços de um núcleo masculino
pertencentes a todos os homens. Este enfoque foi adotado por Freud ao
igualar a atividade ao masculino e a passividade ao feminino. A crítica
a esta visão se dá justamente na arbitrariedade de uma base universal de
masculinidade. B) a essência social positivista entrega uma definição
simples de masculinidade: o que os homens realmente são. Esta definição,
inclusive, foi adotada pela psicologia como base lógica e estatística das
escalas de masculinidade/feminilidade. A idéia de uma categoria que lista
o que fazem os homens e o que fazem as mulheres demarca atribuições
sociais de gênero sob viés positivista atribuído ao senso comum. C) definir a
masculinidade como “o que os homens empiricamente são” é ter em mente
o uso o qual chamamos algumas mulheres de masculinas e alguns homens
de femininos, ou algumas atitudes masculinas ou femininas, sem considerar
quem as realizam (o sujeito e a constituição de sua personalidade, por
exemplo). Este uso ligado a atribuição de papeis é fundamental para a analise
de gênero uma vez que as definições de masculino e feminino apontam
para além das diferenças de sexo sobre como os homens se diferenciam
entre eles e como as mulheres se diferenciam entre elas. D) já os enfoques
semióticos abandonam o nível da personalidade e definem a masculinidade
mediante um sistema de diferenciação simbólica em que se contrastam os
lugares do masculino e do feminino. Masculinidade é definida como não-
feminilidade. Esta proposição baseia-se na análise cultural feminista e pós-
estruturalista de gênero e nos estudos de simbolismo psicanalíticos. Assim,
o falo é a propriedade significativa e a feminilidade é simbolicamente
definida pela carência (ou ausência).

658 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A masculinidade, assim como a feminilidade, sempre está associada a
contradições internas e rupturas históricas conforme destaca Connell (1997)
“nenhuma masculinidade surge a não ser em um sistema de relações de gênero”
(p. 34). Sobre essas relações destaca o autor três eixos, o de poder que seria o eixo
principal do sistema de gênero contemporâneo estruturado na subordinação
geral das mulheres e a dominação dos homens, denominado patriarcado.
Embora em alguns contextos já exista uma dinâmica mais flexível, haverá, mesmo
que implicitamente, uma crise de legitimindade. O segundo eixo evidencia
as relações de produção, divisão de trabalho papeis atribuídos a homens e a
mulheres, marcando a desigualdade do capitalismo de gênero em relação à força
de trabalho e, especialmente à discriminação salarial da mulher. O terceiro eixo
volta-se à energia libidinal para estabelecer hierarquias entre homens e mulheres
e até mesmo entre grupos de homens, no caso o homem branco é superior ao
negro e o homem heterossexual em relação ao homossexual. O que Connell
busca fazer aqui é categorizar os argumentos que justificariam a violência
intrínseca na masculinidade a partir de bases essencialistas e socioconstruídas.
Este seria o conceito amplo de masculindiade hegemônica.
Kimmel (1997), adiciona a categoria de virilidade como sendo um
conjunto de significados sempre mutantes que são construídos a partir das
relações intrapessoal, interpessoais e com o mundo, ao citar o dramaturgo David
Mamet: “o que os homens necessitam é a aprovação dos próprios homens, o
autor trás o conceito de masculinidade como uma aprovação homossocial,
“nos provamos, executamos atos heróicos, assumimos riscos enormes, tudo
porque queremos que outros homens admitam nossa virilidade” (p.55).
No Brasil, Cechetto (2004) pesquisou as expressões das masculinidades
no Rio de Janeiro, entre os homens do Funk e do Jiu-jitsu. Embora em contextos
diferentes ambos os homens usam o corpo como expressão da identidade, da
sociabilidade, da violência, relações sexuais. Apoiada no conceito de Gilmore
(1990) de que nenhum menino nasce homem, torna-se homem, Cechetto postula
as práticas de mistificação da masculinidade baseada na virilidade falocêntrica, no
poder atribuído ao uso da força (física e outras formas de dominação) e na capacidade
de feminilizar os subordinados, sejam mulheres ou mesmo outros homens.

O corpo como arma resulta na violência do homem contra o seu pró-


prio corpo. O esporte e lazer são áreas onde é possível construir e exibir
essas marras para estabelecer uma hierarquização nas masculinidades,
por meio do culto à força física (CECHETTO, 2004, p. 79)

Ebook IV SIGESEX 659


Conclusão

Para Lopes (2009) a maneira como a violência contra a mulher é


perpetuada, não se enquadra em um acontecimento eventual, mas sim pela
forma como é estabelecido à organização social de gênero dando relevância
ao masculino. Todas as críticas acerca das masculinidades parecem ainda
não ser suficientes para descredenciar a “tese da masculinidade natural
que requer uma forte determinação biológica das diferenças entre os
grupos em contextos sociais complexos. Nessa percepção determinista, os
homens são normalmente agressivos em todas as culturas” (CONNELL,
1995, p.46-47).
Esperar que o surgimento e o reconhecimento deste novo homem
impacte positivamente na redução da violência contra a mulher entre outros
aspectos da desigualdade de gênero é não só uma limitação estatística, mas
também um desafio histórico, cultural e social da própria masculinidade.
Nolasco (1993) esclarece que “o novo homem é produto de mais uma
possibilidade concedida pelo individualismo, e o que vem acontecendo não é
ainda um movimento social” (p. 184).
Também é preciso considerar que estes novos homens vivem sob
diferentes formas de conflito a partir da comparação que se estabelece entre
o modelo adotado por seus pais e os valores do modelo patriarcal, ainda
vigente socialmente. Dessa forma, conclui Nolasco ser precário afirmar que o
que pode acontecer no Brasil seja uma “revolução masculina”, os homens não
estariam suficientemente sensibilizados a um projeto de transformação para
suas identidades (p. 177).
Por outro lado, Nolasco (1993) aponta que “as próprias mulheres tem
dificuldade de entrar em contato com este homem fragilizado e em crise,
como se crise e fragilização não fossem duas dimensões humanas inerentes
a ambos os sexos” (p. 173). Tal afirmativa reproduz a cultura patriarcal e
machista internalizadas nas próximas mulheres. A este respeito destacam-se
a importância dos movimentos feministas na produção de conhecimento e
de resistência no que tange ao empoderamento feminino e ruptura de sua
constituição singular à constituição do homem. Este mesmo empoderamento
parece ser necessário ao novo homem, trazendo o mesmo requinte de ruptura
com a sombra da masculinidade hegemônica.
Embora seja um termo multifacetado que se apresenta como
um processo dinâmico, envolvendo aspectos cognitivos, afetivos e de

660 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


postura, o empoderamento que se sugere aqui constitui um elemento
relevante à compreensão das possibilidades e dos limites na promoção da
participação social e política. Tomamos o conceito de empoderamento
de Herriger (2006), no qual por meio desse processo, “pessoas renunciam
ao estado de tutela, de dependência, de impotência, e transformam-
se em sujeitos ativos, que lutam para si, com e para os outros por mais
autonomia e autodeterminação, tomando a direção da vida nas próprias
mãos” (p.16).
Dessa forma, entende-se que o empoderamento não pode ser fornecido
nem tampouco realizado para pessoas ou grupos, mas se realiza em processos
em que esses se empoderam a si mesmos conforme propõe Kleba (2009).
Considerando que os estudos de gênero e violência já sinalizaram a
urgência de rediscutir as relações de poder, de desigualdade, os padrões de
dominação e a constituição do masculino e do feminino como formas de
reconstruir relações de igualdade de gênero, empoderar a mulher e empoderar
esse novo homem talvez seja uma possibilidade para que menos mulheres
sejam vítimas de feminicídios.

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662 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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Ebook IV SIGESEX 663


Gênero e sexualidade: a constituição
cultural do corpo e identidade1
Gendeer and sexuality: the cultural constituion
of body and identity
Zaira de Andrade Lopes2
Regi Morais Pereira3
Renato Martins de Lima4

RESUMO: O artigo propõe identificar elementos que compõem


os processos identitários e a constituição social do corpo, assim analisa a
interseccionalidade que permeia as noções de gênero, corpo, sexualidade,
cultura e o social. Ao falar de gênero se evidencia a questão do corpo e sua
articulação com a sexualidade, sendo necessário descolar a concepção
essencialista que naturaliza da constituição da identidade e do corpo, e
assinalar os marcadores sociais, culturais, históricos e experiências objetivas e
subjetivas do sujeito.
PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Identidade. Gênero. Sexualidade.

ABSTRACT: This paper proposes to identify elements that make up the identity
processes and the social constitution of the body, thus analyzing the intersectionality that
permeates the notions of gender, body, sexuality, culture and social. When talking about
gender, the question of the body and its articulation with sexuality is evidenced. It is necessary
to take the essentialist conception that naturalizes the constitution of the identity and the
body, and to point out the social, cultural, historical, objective and subjective experiences of
the subject.
KEYWORDS: Body. Identity. Gender. Sexuality.

1. Artigo resultante das discussões e produções da disciplina Identidade e constituição do Sujeito, do programa de
Pós-Graduação em Psicologia – Curso Mestrado, da Linha Psicologia e Processos educativos. PPGPSICO/UFMS
2. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, docente adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul – UFMS. Contato: zairaal@gmail.com.
3. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Univer-
sidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Bolsista CAPES/CNPq. Contato: regimorais27@gmail.com.
4. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Bolsista CAPES/CNPq. Contato: renato.mart@gmail.com.

664 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Introdução

A constituição do corpo para a ciência psicológica é tão complexa e


vital quanto para as ciências biológicas. Há no corpo uma gênese histórico-
cultural dotada de processos identitários e de subjetivação que deságuam em
performances de gênero e sexualidade constituindo um sujeito em sociedade.
Pensar gênero e sexualidade a partir da constituição cultural do corpo
e suas intersecções com identidade é o que se propõe este ensaio teórico. A
partir dos estudos de gênero e sexualidade de Scott (1995), Louro (2000,
2007) e Butler (2003), de identidade por Ciampa (1987, 1998), Coutinho
(1999) e Hall (2000, 2003), na perspectiva das Representações Sociais, com
os estudos de Deschamps e Moliner (2009), e Lopes (2000), buscou-se elevar
o corpo como categoria de análise.
Discutir a questão dos processos identitários se torna algo desafiador,
devido à intensa diversidade conceitual dedicada a essa temática, com inúmeras
variações, cada uma com seu campo de conhecimento. Coutinho (1999)
aponta que no campo da Psicologia Social os estudos sobre identidade, estão
associados ao processo de socialização dos seres humanos, como meio de se
apropriar das características do outro e do ambiente, o que se justifica, segundo
essa autora, pelo fato de que “cada pessoa, com suas características singulares,
se constrói através desse processo, constituindo sua identidade pessoal através
das relações sociais” (COUTINHO, 1999, p. 31-32).
Dessa forma, na perspectiva da Psicologia Social, a identidade pode ser
definida como um conjunto de características próprias de um indivíduo, que
o tornam diferente de outros e que vão sendo construídas nas e pelas relações
sociais, bem como através dos aspectos de um contexto cultural e histórico e
das diferentes atribuições sociais que esse indivíduo desempenha ao longo de
sua trajetória existencial.
Os estudos Deschamps e Moliner (2009) abrangem questões do início
das reflexões das ciências humanas sobre a identidade, realizada com base na
distinção entre identidade social e identidade pessoal, adotando aspectos mais
pessoais para uns e mais coletivos para outros. Nesse sentido, a articulação,
organização e a síntese dos aspectos socioculturais e individuais da identidade
são conceituadas a partir da ideia de que “todo indivíduo seria caracterizado,
de um lado, por traços de ordem social que assinalam sua pertença a grupos ou
categorias; e, do outro, por traços de ordem pessoal, atributos mais específicos
do indivíduo, mais idiossincráticos” (DESCHAMPS; MOLINER, 2009. p.23).

Ebook IV SIGESEX 665


Assim, os autores sintetizam o conceito de que identidades são constituídas a
partir das semelhanças e diferenças, para consigo mesmo, para com os outros.
Outro estudo a ser registrado é o de Ciampa (1998), para quem identidade é
definida como um fenômeno social e não natural, que está em constante transformação,
sendo assim, as identidades são vistas em metamorfoses, como processos provisórios
da relação entre a história da pessoa, o contexto social e o cultural.

Falo como psicólogo social que define identidade humana como meta-
morfose, ou seja, o processo permanente de formação e transformação
do sujeito humano, que se dá dentro de condições materiais e históricas
dadas.[...] processo que articula a subjetividade e a objetividade, ela é
metamorfose constitutiva do sujeito, localizando-o no mundo, dando-
-se sempre como relação, tanto sincrônica como diacrônica. Evidente-
mente, não se trata aqui de metamorfose como processo natural (como
a borboleta), mas de processo histórico e social, que se dá fundamental-
mente como produção de sentido (CIAMPA, 1998, p.88-93).

As identidades quando compreendidas de forma acabada podem ser


criticadas, pelo simples motivo de que não se leva em conta a multiplicidade que
nos constitui. O entendimento de identidades como inacabadas é apontado
por Santos (1993) por “identificações em curso”, sendo assim:

Sabemos que as identidades culturais não são rígidas nem, muito me-
nos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos
de identificações. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas,
como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou
país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia,
choques de temporalidades em constante processo de transformação,
responsáveis em última instância pela sucessão de configurações her-
menêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades.
Identidades são, pois, identificações em curso (SANTOS, 1993, p.11).

1- A identidade de gênero mediado pelo corpo

Os estudos gênero, tem suas origens ligadas aos debates do


movimento feminista americano e os estudos acadêmicos sobre a
mulher nos anos de mil novecentos e oitenta. Debates que tinham como

666 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


preocupação desvincular a ideia biológica de sexo como constituinte da
identidade de gênero. Agindo assim, as feministas, pretendiam “reforçar
a ideia de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos
de homens e mulheres não eram dependentes do ‘sexo’ como questão
biológica, mas sim eram definidos pelo ‘gênero’ e, portanto, ligadas à
cultura” (PEDRO, 2005, p.2).
Para Lopes (2008) o termo gênero surge como forma de superar o
determinismo biológico que se impunha na compreensão das relações entre
homens e mulheres, bem como nas teorias essencialistas que buscavam
explicar as diferenças entre masculino e feminino. “Gênero é entendido em
uma dimensão ampla, no plano das relações sociais. As relações de gênero são
constituídas socialmente” (LOPES, 2008, p. 146)”.
Muitos historiadores utilizaram formulações antigas que propõem
explicações causais universais sobre gênero. Estas teorias tiveram, no melhor
dos casos, um caráter limitado, pois tendem a incluir generalizações redutoras
ou simples demais. Dessa forma, quando se trata de gênero, categorias distintas
são evidenciadas segundo Scott (1995):

A primeira é essencialmente descritiva, ela se refere à existência de fe-


nômenos ou realidades sem interpretar, explicar ou atribuir uma cau-
salidade. O segundo uso é de ordem casual, ele elabora teorias sobre a
natureza dos fenômenos e das realidades, buscando entender como e
porque aqueles tomam a forma que eles têm (SCOTT, 1995, p.6).

O gênero construído socialmente, coloca em evidência a perspectiva


da desnaturalização dos atributos impostos as diferenças sexuais e revela a
independência da cultura diante do caráter biológico. Sendo assim, gênero
é uma categoria classificatória para compreender as mais diferentes maneiras
o que a sociedade estabeleceu sobre as relações sociais entre os sexos. Este
conceito traz a compreensão do que se entende sobre masculinos e femininos
em suas múltiplas dimensões nas diversas sociedades e culturas. A compreensão
de gênero fica mais nítida ao aproximá-la de sexo. Tomando como ponto de
partida a revelação de Simone de Beauvoir (1980) “não se nasce mulher, torna-
se”. Judith Butler (2003) questionará até que ponto o corpo é determinado
pela genitália biológica. A autora argumenta que, no entanto, a noção do
gênero como construção pode também levar a um tipo de determinismo, não
biológico, mas cultural.

Ebook IV SIGESEX 667


[...] a ideia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo
de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente dife-
renciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes pas-
sivos de uma lei cultural inexorável. Quando a ‘cultura’ relevante que
‘constrói’ o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto
de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo
quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a
biologia, mas a cultura se torna o destino. (BUTLER, 2003, p.26).

Neste sentido, discorrer sobre o conceito de gênero, passa a exigir que


se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre
mulheres e homens são diversos, ou seja, deve-se considerar que o indivíduo se
constrói de acordo com os valores sociais vigentes em uma determinada época.
O gênero, como elemento constitutivo das relações sociais entre homens
e mulheres, é uma construção social e histórica que define a masculinidade e
a feminilidade e os padrões de comportamento, aceitáveis ou não, tanto para
homens quanto para mulheres (SCOTT, 1995). Gênero serve, dessa forma,
para determinar tudo que é social, cultural e historicamente definido. É
mutável, pois está em constante processo de ressignificação devido às interações
concretas entre indivíduos do sexo feminino e masculino.
Partindo da concepção de que o conceito de gênero possui um forte
apelo relacional, já que é no âmbito das relações sociais que se constroem os
gêneros, Guacira Lopes Louro (2000), pesquisadora sobre relações de gênero,
Teoria Queer e sexualidade apresenta uma proposta teórica para entender o
gênero como constituinte da identidade dos sujeitos. A autora evidência que
o conceito de gênero deve ser compreendido como um processo, pelo qual os
sujeitos podem manifestar sua sexualidade de diferentes formas, e são essas
vivencias da sexualidade que constituirão suas identidades.
O modo como as relações entre os sexos biológico feminino e masculino
se apresentam na sociedade são resultados de uma construção social, sendo o
corpo um modo de trazer aspectos ideológicos do que é determinado para o
macho e a fêmea. Nesse sentido as identidades masculinas e femininas, devem
ser consideradas como uma produção social, e que suas condutas, podem ser
compreendidas como base da construção da identidade.
De acordo com Louro (2000) os debates a acerca das identidades de
gênero devem estar no campo social, pois é através das relações entre os sujeitos
que elas se constroem. A perspectiva das identidades de gênero pautadas nas

668 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


diferenças biológicas são servem de justificada para tais estudos, pois é nos
arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade,
nas formas de representação que as identidades masculinas e femininas se
constituem. Nesse sentido, a autora afirma que:

As características sexuais dos corpos são transportadas a para a prática so-


cial e tornadas assim como parte de um processo histórico. Assim os cor-
pos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros — feminino ou
masculino — nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determina-
da cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da
sexualidade — das formas de expressar os desejos e prazeres — também
são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gê-
nero são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são
moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2000, p.11).

Se o gênero se configura como a construção social das identidades de


homens e mulheres, a identidade de gênero pode ser entendida através desta,
desde que se admita o seu caráter histórico e cultural, não vinculado única e
exclusivamente ao sexo biológico, anatómico.
Para Louro (2007), ao refletirmos sobre identidades de gênero, importa
ressaltar, as questões de sexualidade, isto é, de identidade sexual. Já há algum
tempo, estudiosas feministas vêm chamando a atenção, tanto para a distinção
entre a noção de gênero e de sexualidade, quanto para a articulação entre os
dois conceitos. E a aproximação entre gênero e sexualidade, conforme Louro
(2007, p.3), se dá na medida em que assumimos que ambos são construídos
culturalmente e, portanto, “carregam a historicidade e o caráter provisório
das culturas”. Diferentes sociedades e épocas, de acordo com a autora,
determinam significados diferentes sobre gênero, remetendo a masculinidade
e à feminilidade, bem como às diferentes expressões da sexualidade.
O que importa aqui considerar é que, tanto na dinâmica do gênero como
na dinâmica da sexualidade, as identidades são sempre construídas, elas não
são dadas ou acabadas num determinado momento. Não é possível fixar um
momento que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou
a identidade de gênero seja estável ou estabelecida. As identidades estão sempre
se constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação.
Considerando estudos e pesquisadores(as) mencionados nesse artigo a
formação da identidade de gênero e a constituição dos sujeitos se apresentam

Ebook IV SIGESEX 669


em estreita relação com as configurações do social. Entende-se, para tanto,
que a construção da identidade de gênero não é um processo resultante de um
aspecto biológico, bem como, não se concentra na distinção dos sexos pela sua
anatomia, mas sim que correspondem a identificação dos aspectos culturais da
sociedade daquilo que se expressa no ser feminino e masculino por meio das
representações sociais. Fenômenos a serem discorridos a seguir.

2- Representações sociais de gênero e sexualidade.

A partir do que se foi dito anteriormente, podemos afirmar que a


sociedade é composta por homens e mulheres que se comportam de acordo com
normas e padrões culturais estabelecidos para cada um dos sexos: masculino
e feminino. Esses padrões e normas são estabelecidos em conformidade ao
tempo histórico e social. Assim, e o que é aceito em dado momento, pode ser
diferente num outro contexto, e mesmo não aceito.
Os estudos de Lopes (2000) evidenciam como a constituição do que é
esperado para cada gênero deste a infância constroem representações sociais
de uma realidade explicativa e que dá sentido aos fenômenos sociais. Assim,
às mulheres são atribuídas representações sociais de mães e donas-de-casa,
responsáveis pelo privado e pelo afeto, aos homens ficam as obrigações do
sustento e de chefiar a família, da razão e do público.
De acordo com Araújo (2008) esse novo conceito, engendrado
universalmente sobre os masculinos e femininos, associam a categoria do
masculino ao poder e a dominação e ao feminino a obediência e a submissão.
Mas tendo em vista que o conceito de gênero é relacional, não se pode admitir
que entre as relações de gênero, um poder masculino absoluto. As mulheres
também detêm parcelas de poder, embora desiguais e nem sempre suficientes
para conter a dominação ou a violência que sofrem.
Louro (2007) enfatiza, que as relações de poder marcadas no gênero e na
sexualidade formam hierarquias e distinções entre homens e mulheres. Dessa
maneira, o contexto formado se fundamenta em preceitos biologizantes que
determinam um padrão binário de relações em que as meninas são entendidas
como frágeis, meigas, dóceis e submissas e os meninos como fortes, agressivos,
durões e dominadores. É como se outras formas de feminino e masculino fossem
constituídas, e que não aquelas legitimadas pelo discurso ou práticas sociais vigentes.
Segundo Scott (1995) os conceitos de gênero estruturam parcela da
vida social e estabelecem as distribuições de poder. Possibilitam o controle ou o

670 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


acesso, de maneira diferenciada aos masculinos e femininos, e também às fontes
materiais e simbólicas. O gênero, assim, toma parte na concepção e construção
do próprio poder. Embasadas nos estudos de Joan Scott sobre as relações de
gênero como relações de poder, a socióloga brasileira Heleieth Saffioti, possui
contribuições para o assunto, trazendo novas concepções para o mesmo. Quando
se fala em gênero, fala-se, pois, de poder, na medida em que as relações existentes
entre homem e mulher são assimétricas, há sempre uma relação explícita ou
velada de subjugação patriarcal. Para Saffioti (2004) patriarcado é um conjunto
de relações sociais que tem uma base nas relações hierárquicas dos gêneros, que
os possibilita os homens controlar as mulheres. Ou seja, o patriarcado nada mais
é que o sistema masculino de opressão das mulheres. Os homens têm o poder de
dominar as mulheres, pois é dito que eles são a base da hierarquia social.
De acordo com Saffioti (2004), o patriarcado é uma relação de dominação
subjetiva, na qual os homens estão em uma posição superior, detentores do
poder, ocorrendo a dominação das mulheres. É uma fundamentação biológica
construída socialmente que cria essa ordem. Há uma relação discriminadora
que se reflete no âmbito familiar, econômico, político, do trabalho e onde
quem possui o controle é o homem. Dessa forma, o patriarcado tem uma base
material e social, é uma hierarquização de um sexo com relação ao outro.
Diante desses pressupostos, é possível afirmar que se as representações
sociais que predominam, analisando como são estabelecidas as relações entre
homens e mulheres, são as de desigualdades construídas historicamente em
uma relação de exploração-dominação e sobreposição da detenção do poder
por homens para com as mulheres.
Significa dizer que os valores e ideias que fazem parte do imaginário
social dão suporte a hierarquias de poder entre os sexos e fazem com que a
relação dominação/submissão entre homem e mulher esteja presente nos mais
diversos os espaços sociais. Uma vez que, a Teoria das Representações Sociais
procura entender o conhecimento popular, criado pelos indivíduos ou pela
coletividade e que interfere no estilo de vida das pessoas que fazem parte de
determinado contexto social. É importante destacar, no entanto, que essas
representações não se reduzem a todo e qualquer tipo de saberes, mas sim a
“[...] uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com
um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade”
( JODELET, 2001, p. 22).
O que importa aqui considerar é que, tanto na dinâmica do gênero como
na dinâmica da sexualidade, as identidades são sempre construídas, elas não

Ebook IV SIGESEX 671


são dadas ou acabadas num determinado momento. Não é possível fixar um
momento que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou
a identidade de gênero seja estável ou estabelecida. As identidades estão sempre
se constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação.

Conclusão

Os autores e as autoras apresentados, que trazem em seus estudos


profundidade sobre os conceitos de identidade, gênero e sexualidade,
oferecem em comum a perspectiva de movimento, processo, construção e de
constituição. A identidade de gênero como foi defendido, não é um processo
resultante de um aspecto biológico, nem se concentra na distinção dos sexos
pela sua anatomia, mas correspondem a identificação dos aspectos culturais da
sociedade do que vem a ser o feminino e masculino por meio das representações
sociais. A identidade de gênero permite pensar o lugar do indivíduo no
interior de uma cultura. É importante mencionar que a construção social
das identidades de gêneros é um processo complexo e revela sobre como está
estruturada a sociedade.
É a partir desta perspectiva que a Psicologia Social pode compreender
o corpo. Uma expressão dos aspectos subjetivos e identitários do sujeito para
o mundo e, também, uma representação do mundo para o sujeito. É no corpo
que também são demarcadas e visibilizadas as experiências psíquicas e culturais
da história do sujeito. Sobre este aspecto é preciso considerar que se trata de
uma história não acabada e que garante autonomia autoral para conduzir sua
própria biografia com direito a escrever, apagar e reescrever, quantas vezes e
como quiser.

Referências

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e dominação. Psicol. Am Lat., México, n. 14, 2008.

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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, 1995.

674 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Censura à arte: uma leitura museográfica
da exposição cadafalso da artista visual
Alessandra Cunha, a Ropre
Censorship to art: a museographic reading of the
exhibition scaffold of the visual artist Alessandra
Cunha, the Ropre
Caciano Silva Lima1

RESUMO: Levando em consideração as funções dos museus e sua


imprescindível pertinência, proponho, neste trabalho, apresentar uma análise
à luz da leitura museográfica a partir da exposição Cadafalso, exibida no
Museu de Arte Contemporânea de MS em 2017, da artista Alessandra Cunha,
a Ropre, e que sofreu inúmeras críticas, tendo um quadro apreendido sob a
justificativa que fomentava a pedofilia.
PALAVRAS-CHAVE: Exposição; Cadafalso; Museu

ABSTRACT: Taking into account the functions of museums and their essential
relevance, I propose, in this work, to present an analysis, in the light of the museographic
reading from the exhibition Cadafalso, exhibited in the Museum of Contemporary Art of MS
in 2017, by the artist Alessandra Cunha, to Ropre and that it underwent numerous critics,
having a picture seized under the justification that fomented pedophilia.
KEYWORDS: Exposure; Scaffold; Museum

Introdução

Com origens remotas na história humana, os museus são instituições que


atravessam os séculos assumindo contornos tão diferentes quanto às tipologias
de suas coleções (MARTINS, 2006). Assim, temos os museus históricos, os
museus de ciências, os museus de arte, os e-com museus, as cidades museus
1. Mestrando do Programa da Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB). Graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus Campo
Grande. Gestor de Artes e Cultura da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. E-mail: cacianolima@gmail.
com, telefone: 3316 - 9323.

Ebook IV SIGESEX 675


e, como o museu não deixa de acompanhar a mudança dos tempos, temos,
também, os museus virtuais. Para o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM),

[..] museu é o lugar em que sensações, ideias e imagens de pronto ir-


radiadas por objetos e referenciais ali reunidos iluminam valores es-
senciais para o ser humano. Espaço fascinante onde se descobre e se
aprende, nele se amplia o conhecimento e se aprofunda a consciência
da identidade, da solidariedade e da partilha.

Para a lei que institui o Estatuto de Museus, Lei n° 11.904, de 14 de


janeiro de 2009, em seu art. 1ª, museus são:

[...] as instituições sem fins lucrativos que conservam,


investigam,comunicam, interpretam e expõem, para fins de preserva-
ção, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e
coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer
outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de
seu desenvolvimento.

Os museus são espaços de construção de histórias e memórias, não apenas


de lembranças e narrativas contadas pragmaticamente. Além disso, nos últimos
tempos, tem-se verificado uma crescente expansão de lugares considerados não
formais para a prática do ensino e da aprendizagem, sendo tido como um dos
lugares onde a Cultura e Educação podem adquirir diversas relações. Como
espaços democráticos, as diversas manifestações culturais deveriam ganhar
um lugar seguro e próprio para se concretizarem livremente como exposições,
mostras e afins, trazendo a público obras e artistas consagrados e marginais,
famosos e desconhecidos. Desse modo, a “museografia deveria ser flexível e
induzir a que as perguntas: ‘isso faz parte da globalização?’ ou ‘isso merece
fazer parte desse museu?’ tenham muitas respostas legítimas” (CANCLINI,
2014, p.44).

1- Museu de Arte Contemporânea (MARCO)

Fundada em 1983, a Fundação de Cultura de MS (FCMS) é responsável


pela concretização de políticas públicas voltadas para o fomento da cultura
sul-mato-grossense em forma de arte, tradição, costumes e patrimônios

676 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


históricos. Tendo como missão desenvolver, promover, incentivar e realizar
atividades com o intuito de democratizar a cultura do estado em suas diversas
manifestações. O MARCO foi criado em 1991, com 5 salas, sendo que uma
contém mostra permanente composta de doações de artistas, colecionadores,
instituições culturais e de prêmios adquiridos pela Pinacoteca Estadual desde
1979, e as outras 4 recebem exposições temporárias. O museu possui ainda
um auditório com capacidade para 105 pessoas e uma biblioteca específica
em artes plásticas, com material para pesquisa e formação de estudantes, arte
educadores, artistas e público em geral.
Todo ano, a Fundação abre inscrições, por meio de edital, para o
Programa de Exposições Temporárias do MARCO, tendo como objetivo
incentivar a pesquisa contemporânea em artes visuais, valorizar e promover
a arte, com a intenção de torná-la acessível ao público e apresentar novas
trajetórias artísticas em artes visuais. A seleção ocorre sob responsabilidade
da Comissão Curatorial composta pela coordenação do Museu de Arte
Contemporânea de MS, um representante da FCMS e por dois membros
profissionais de competência na área de Artes Visuais (curadores, críticos,
professores, pesquisadores) que se pautam na documentação enviada pelos
proponentes, currículo, impacto da proposta, possuindo ineditismo, clareza
e coerência. A exposição Cadafalso foi aprovada por meio deste processo,
em 2017.
O MARCO possui um setor educativo atuante, o qual é responsável
pela operacionalização da política de educação museal da instituição. O
art. 29 do Regimento do Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso
do Sul estabelece as atribuições do setor educacional, a Coordenadoria de
Serviços Educativos, tais como, elaborar e executar projetos de extensão
cultural para o Museu, buscando a integração museu-comunidade por meio
do desenvolvimento de atividades educativas, realizando estudos e pesquisas
relativas ao aproveitamento do acervo do Museu em programas educativos e
realizar conferências, cursos, oficinas, seminários e outras atividades em sua área
de competência também fazem parte do regimento, a fim de que contribuam
para o aperfeiçoamento técnico e científico do Museu e do público em geral.
Este setor é responsável pelo diálogo com as escolas, grupos organizados
e demais que estejam interessados em visitas mediadas e pelo diálogo com os
Arte Educadores que propõem atividades dentro do espaço museológico,
buscando uma diretriz que não atua de forma vertical, mas inserindo toda a
comunidade externa como ativa em suas tomadas de decisões, afinal:

Ebook IV SIGESEX 677


Compreendemos um museu a partir deste mundo com o qual ele se
relaciona e faz trocas. (...) A interação entre história, memória e tem-
po será fundamental, uma vez que a tentativa de remontagem do que
não é mais, do que já foi, por meio de marcas e signos que são os ob-
jetos guardados pelos museus, confere a estes uma linguagem peculiar
(SANTOS, 2008, p. 56).

A dinâmica presente no museu é de diálogo e tomada de decisão em


conjunto, em que o protagonismo das exposições e atividades educativas agem
de acordo com os anseios de todas as partes envolvidas, em uma ação que
envolve a museologia social.
O acervo de um museu representa sua essência e, em muitos casos, é
o principal responsável pelo vínculo com a comunidade, já que é nela que o
museu se encontra e onde se processa a cultura, pois assim como o objeto é a
linguagem do museu, o homem é o objeto do museu (MOLIN e SANTOS
apud SANTOS, 2000, p. 90).
O museu cumpre fundamental papel educativo por meio de suas
atividades, democratizando o acesso à arte e aos bens culturais, posicionando-
se como importante centro de formação e fomento cultural.

2- Exposição Cadafalso

Alessandra Cunha nasceu em Uberlândia/MG em 1978. Começou a


desenhar e pintar aos 9 anos de idade, tento participado de diversos cursos
e oficinas de artes desde muito jovem. Formada em Artes Plásticas pela
Universidade Federal de Uberlândia em 2010, atua constantemente em
exposições, galerias e museus, tanto no exterior quanto no país, trabalhando
com pesquisa de imagens impressas e pinturas híbridas contemporâneas.
Recebeu oito prêmios em salões e editais de artes por suas pinturas.Já
participou, até o momento, de aproximadamente 280 exposições coletivas e
44 exposições individuais e uma residência artística.
Cadafalso, nome de sua exposição a qual se desenvolveu a polêmica,
refere-se à triste submissão das mulheres aos mandos dos homens ao longoda
história da humanidade. Não se trata de uma bandeira puramente feminista,
trata-se desimples relatos poéticos/visuais de como as pessoas do sexo masculino
se portam diante dasdemandas de dominação religiosa, política e econômica.
As mulheres, crianças, homens pobres,negros, homossexuais, transgêneros e

678 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


simpatizantes são tratados como seres inferiores edesvalorizados de todas as
formas.Cadafalso é um tablado instalado em lugar público parase realizar a
execução de condenados (enforcamentos, queima de bruxas, crucificação e
outros).
Os elementos usados por Ropre para compor o ambientecontemporâneo
e expressar sentimentos sobre a visão atual das minorias usadas pelas
perversidades do capitalismo são uma série deimagens alegres e coloridas que
se voltam para as “heranças socioeconômicas absorvidas” epraticadas ainda
hoje. E, para tratar do oprimido, a artista utiliza imagens e elementos que
nos revelam oopressor. Ou seja, não são usadas imagens de corpos ou objetos
femininos, mas há uma ênfaseno corpo masculino e em símbolos que são
memorizados em prol de sua elevação ao poder.Nesta série de 32 pinturas,há
cenas de nudez (não de sexo explícito) e imagens deórgão sexuais masculinos.

3- Censura à Arte Contemporânea

No dia 14 de setembro, faltando três dias para o encerramento da


mostra Cadafalso, a mesma foi alvo da acusação de “apologia à pedofilia”,
conformeconsta em um boletim de ocorrência registrado contra a artista por
parte de três deputados estaduais de Mato Grosso do Sul (PMDB, PSC e SD),
ignorando a diferença que a arte estabelece entre representação e apologia
(SANZ, 2017).
Interessante ressaltar que a polêmica não foi voltada totalmente para o
teor estético; ao contrário, foi o seu oposto esvaziado de seu significado em
conjunto com a exposição o terreno fértil para a ocorrência da censura.

(...) a censura seria um mecanismo dentre as nossas regras de decência,


uma postura de vigilância de si mesmo diante certos enunciados que às
vezes não poderiam ser ditos em determinados lugares. Com outra en-
tonação o autor nos diz que a censura faz parte de um discurso legitima-
dor, que inibiu as redistribuições sociais ilícitas desde a época clássica
(ALBUQUERQUE apud FOUCALT, 2016, p.47).

Se a obra estava manifestada em propriedade pública compartilhando


um ponto de vista estético dos fatos atuais, a obra é, portanto, um ato político,
assim como sua censura também o foi. Com a exposição Cadafalso de Ropre,
este espaço democrático chamado Museu foi colocado em cheque dentro da

Ebook IV SIGESEX 679


tendência contemporânea de produção de uma arte política, “que aborda
questões importantes para uma minoria em busca de visibilidade, não só na
arte” (ALBUQUERQUE, 2016, p. 46).
Afinal, “como ser livre tentando calar o outro” (ABCA, 2017) surge
estampado na contradição dos fatos. A obra Pedofilia, apreendida pela polícia,
expunha de maneira fantasmagórica o machismo, a doença, a opressão, o
perigo, deixando as vísceras da realidade descobertas, convocando, quase
cobrando o público a se manifestar de alguma maneira. Como descrito no
Manifesto pela Arte dos professores do curso de Artes Visuais da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, “a obra em si, longe de representar incitação
à pedofilia ou outra forma de violência sexual, expressam o sofrimento e a
crueldade dessas práticas tão comuns na sociedade brasileira”.

Obra Pedofilia, de Ropre

O resultado: a histeria, uma reação exagerada manifestada de forma


burocrática e institucionalizada em nome do bem comum, da ordem social,
da moralidade pública, formas de controle típicas de uma república liberalista
onde a expressão individual e subjetiva por vezes manifesta o desejo do Estado
(COSTA, 2014). Apesar de que, em Campo Grande, o Estado se manifestou
na forma de seus deputados.

680 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Considerações Finais

O combate a situações controversas e extremas, como essa, pode


ser feito por meio da educação. No que tange à educação e às artes, um
caminho possível para a transformação dos nossos saberes é começar pelo
contato com manifestações de culturas distintas sem estabelecer hierarquias
ou conceitos de certo e errado, seguidas de experimentações e criações,
vivenciadas em um contexto cultural, proporcionadas pelas instituições
de ensino, desde os anos iniciais até os finais, sempre com a mediação do
professor e trazendo instrumentos para que haja uma alfabetização cultural
dentro do ensino da arte.
Nesse processo de ensino cultural, pode-se contribuir com a
construção identitária individual de cada estudante, seja ele adulto ou
criança, já que, como disse Ana Mae Barbosa, “as artes visuais desenvolvem
a capacidade de percepção visual, importante desde a alfabetização até a
solução de grandes conflitos da adolescência” (MORRONE; OSHIMA,
2016). Os jovens podem ficar cientes de que a cultura é passada de geração
para geração, em que os costumes inseridos em nosso cotidiano foram
passados por nossos ancestrais e que esses modos de ser e saber não são
estáticos.
As imagens são carregadas de significados, assim vemos o quanto é
importante educar o olhar para que seja possível extrair a essência, dialogar
com a imagem, entender a mensagem, o conteúdo, para não sermos dominados
por elas. A importância da leitura de imagem tem sido amplamente discutida
por diversos teóricos que apresentam estratégias metodológicas para esse
fim. Desfrutar de experiências visuais é um fato, mas apenas desfrutar de
experiência visual não é garantia de estarem compreendendo o que estão
lendo ou que já tenham uma habilidade crítico-reflexiva bem desenvolvida.
De acordo com Marília Xavier Cury, “a museografia abrange toda a práxis
da instituição museu, compreendendo administração, avaliação e parte do
processo curatorial (aquisição, salvaguarda ecomunicação)” (MATOS apud
CURY, 2012).
Ao propor-se o ensinar e educar indivíduos com o pensamento mais
diversificado e crítico, sujeitos com concepção e visão de mundo real, devemos
trabalhar todas as manifestações culturais existentes no meio em que estamos
inseridos, tendo a arte um papel muito importante nesse percurso que promove
o desenvolvimento do indivíduo como um todo.

Ebook IV SIGESEX 681


Referências

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Contemporânea. Palíndromo, Santa Catarina, v8, nº 15, p.42-57, jan/jun 2016.

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bdcamara/14599». Acesso em: 11 /9 /2017.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da


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682 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


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www.spdo.ms.gov.br/diariodoe/Index/Download/DO7371_31_12_2008/>.
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Ebook IV SIGESEX 683


O texto dramático como luta de gênero:
poder e repressão em a dança final, de
Plínio Marcos
The dramatic text as a gender struggle: power
and repression in a dança final, by Plínio Marcos
Ivanildo José da Siva1

RESUMO: A linguagem de Plínio Marcos, mais especificamente


na peça teatral A dança final (1993), contribui de forma significativa para a
discussão acerca da literatura dramática brasileira como campo privilegiado
para debater o teatro mediante luta de gênero. Partindo desse pressuposto, o
objetivo desse artigo é realizar uma análise da peça a partir do discurso das
personagens, a fim de demonstrar como a narrativa evidencia a luta ideológica
e relações de poder entre as personagens femininas e masculinas.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Relações de poder. Literatura
dramática.

ABSTRACT: The language of Plínio Marcos, more specifically in the play A dança
final (1993), contributes significantly to the discussion about Brazilian dramatic literature
as a privileged field to debate theater through gender struggle. Based on this assumption,
the objective of this article is to perform an analysis of the play from the discourse of the
characters, in order to demonstrate how the narrative highlights the ideological struggle and
power relations between the female and male characters.
KEYWORDS: Gender. Power relations. Dramatic literature.

Bandidos, bêbados, cafetinas, catadores de lixo, drogados, encarcerados,


gigolôs, homossexuais, prostitutas, traficantes são alguns nominativos
presentes na produção teatral de Plínio que, por viverem no limbo e nos
estreitos, não tiveram respaldo na literatura e, pela condição de marginalizados,
1. Doutorando em Letras pela Universidade Estadual Paulista - Campus São José do Rio Preto. E-mail: ivanildo.
silva@ufms.br; Endereço: Rua: Cristóvão Colombo, 2265 – Jardim Nazareth – São José do Rio Preto/SP – CEP
15054-000; Telefone: (17) 3221 2220.

684 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


não apareciam até então como protagonistas e falando na primeira pessoa na
dramaturgia. É nesse sentido que o posicionamento do dramaturgo sempre foi
o de falar sem culpa e de dar voz aos excluídos. Por isso, sua obra é revestida
de um sentimento profundo sobre o povo que vive na contramão da sociedade
e é evidenciado em peças denunciatórias como Dois perdidos numa noite suja
(1966), Navalha na carne (1967), Abajur lilás (1969), A mancha roxa (1988),
dentre outras – peças muito encenadas, que trazem personagens alocadas em
ambientes de penúria e, por serem subalternas, dão à dramaturgia um caráter
político de denúncia social.
Essas personagens representam apenas um recorte dos que vivem no
submundo e que foram visibilizadas pelo “maldito e marginal”. Nas palavras
de Sábato Magaldi, “A matéria peculiar de Plínio distingue-se da de seus
antecessores, na medida em que fixa os marginalizados, os párias da sociedade,
expulsos do convívio dos grupos estáveis pela ordem injusta” (MAGALDI,
2004, p. 307). Certamente, para a década de 1960, Plínio “foi a mais poderosa
revelação de autor” por subverter a ordem e dar o protagonismo às minorias,
deixando falar aqueles que sempre foram “oprimidos em face do poder”. “A
postura do autor, que se intitula maldito, é a da revolta explosiva, sem colorido
partidário. A indignação que o sustenta, transmite a seu teatro um vigor de
sinceridade inaudita” ( p. 307).
Outra faceta distinta dos pobres margeados são as peças Signo de
discoteque (1979), O assassinato do anão do caralho grande (1995), O bote da
loba (1997), que por terem outra envergadura no conteúdo e presença de outros
tipos de personagens, registram a verbalização de dramas que expressam a
mediocridade da classe burguesa do Brasil. São peças que mostram “as sujeiras”
da sociedade ao abordar problemas como a degradação da instituição familiar,
sexualidade, esfacelamento do matrimônio, etc, ao retratar e “mexer na ferida”
da elite que, até então, era bem representada socialmente e se mostrava feliz
e perfeita. Assentada na temática citadina pequeno-burguês, A dança final
(1993) também faz parte desse arcabouço da classe mais abastada. A peça
instaura um embate ideológico no casamento das duas únicas personagens
(Lisa e Menezes, quase cinquenta e sessenta anos, respectivamente) ao colocar
o sexo como exercício discursivo frente à manutenção do poder. Vê-se, então,
a fragilidade de um matrimônio levado à exaustão por conta da impotência
sexual do marido em contraste com a representatividade social de um lar
perfeito na festiva Bodas de Prata que a esposa almeja realizar para parentes e
amigos.

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Plínio Marcos em A dança final escreveu e enfatizou sobre a vida
resguardada da classe burguesa por desnudar o olhar acerca da sexualidade dos
casais da terceira idade que vivenciam o desgaste dos corpos enquanto potência
para o sexo (a impotência sexual), como bem se vê na representatividade das
duas únicas personagens (Lisa e Menezes) que ensaiam forçadamente a árdua
valsa da vida para as Bodas de prata.
Irrefutavelmente, é uma temática transformadora que vocifera não só a
impotência sexual de Menezes, mas também a sexualidade reprimida de Lisa,
a vida fantasiosa e representacional da classe média, dentre outras impotências
(sociais, políticas e culturais) que a dramaturgia pliniana permite abordar. A
personagem masculina, sob o prisma metafórico, é construída com um desejo
encravado de um homem aparentemente viril, mas impotente. A libido de
Menezes é regulada somente pelo sexo, ademais olvida que a relação a dois deve
transpor esse limite, principalmente na “melhor idade” onde as manifestações
de carinho como o toque, o abraço, o olhar também são configurados
como cumplicidade amorosa e afetiva. Lisa, em seu turno de fala, surge
retoricamente como funcionamento de uma resistência da mulher perante o
casamento versus a vigilância da sociedade mediante subserviência como uma
característica normativa que perdura de um longo processo histórico. De certa
forma, Lisa é a superação da mulher por intermédio do embate à liberdade
sexual por entender que muitas mulheres vivem presas ao casamento, servindo
moralmente e sexualmente a um parceiro com um discurso enfadonho
fundamentado religiosamente no “felizes para sempre”.
Plínio mais uma vez desbrava, ao escrever de maneira polêmica – como
não poderia deixar de ser – ao falar de um assunto que causasse tanta especulação
por parte do leitor de teatro e também do expectador crítico, ao se deparar com
a discussão sobre a impotência sexual, e colocando na ribalta pessoas do início
da terceira idade como protagonistas. Situações estas que muitos passam, mas
que alta sociedade quer esconder e colocar “panos quentes” para não ficar
socialmente em evidência. Mário Guidarini em A desova da serpente (1996),
ao falar sobre o conflito da peça, diz que as duas personagens estão perdidas
em si mesmas: de um lado, o machão-esposo e, de outro, a esposa reprimida
sexualmente. Nesse duelo, ambos estão interiormente numa revisão dos seus
atos acerca do passado:

Dois seres em final de linha. Calados no fundo de si mesmos. No entan-


to, importam as aparências de felicidade conjugal. O egoísmo de auto-

686 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


-satisfação erótica do machão-esposo asfixia a felicidade que poderia
ter sido comungada pelos dois. A dança final encarna a ruína de algo
não-havido. O presente, reavaliado pelo passado. O outro que podia ter
sido feliz e não foi, explode como bomba de efeito moral frente a outros
casais na plateia, com experiências igualmente aniquiladoras (p. 70)

Um casal que apresenta o desgaste de uma vida em comum, mas


representam uma felicidade para as demais pessoas do convívio. Nesse
sentido, percebe-se ainda que, Menezes é quem aniquila a felicidade de Lisa e,
consequentemente, a sua por querer ser o “companheiro” que nada partilha no
relacionamento. A peça configura um exemplo de empatia que muitos leitores
e espectadores percebem ao se verem nas mesmas condições, de modo que
também enfrentam a dura realidade de uma vida de aparências nos próprios
lares.
Na primeira versão publicada em 1993, a personagem Menezes fala da
impotência sexual como algo pernicioso, que de maneira desastrosa não há
possibilidade de tratamento e reversão à libido. O medicamento (Viagra),
utilizado para disfunções eréteis, só foi comercializado pela indústria
farmacêutica a partir de 1998, ou seja, cinco anos após a escrita da peça. Plínio
sentiu a necessidade de atualizá-la e a reescreveu: “O autor, então, fez algumas
alterações, incorporando o advento do remédio” (MARCOS, 2017, p. 194).
Acrescentou à peça (versão definitiva em 1998) a milagrosa e popularmente
conhecida “pílula azul”, revolucionária para os anos 90, como esperança de
revolver os problemas sexuais.
Não obstante, no caso de Menezes, há um agravamento, pois a pretensa
salvação (ilusória) é barrada, porque além da não-virilidade, a situação torna-
se aguda por ele apresentar problemas cardíacos, ser diabético e hipertenso,
sendo compelido a não fazer uso das pílulas. “Foi só aparecer essa onda de
Viagra, de pílula azul, que meu pau encruou, ficou arreado” (MARCOS,
2017, p. 196). Ao descobrir que a medicação é contraindicada para esses casos
podendo, inclusive, levar ao óbito – como ocorre a milhares de homens – o
uso do Viagra passa a ser um problema. Ao perder a virilidade, Menezes perde
o tesão pela vida.
A linguagem utilizada pelo autor não se diferencia das demais peças,
pois vem carregada de palavrões. Há um grande nível de tensão do início
ao término, de modo que não existe higienização e censura no vocabulário.
Por isso mesmo, Plínio não se policia com as palavras que coloca na boca das

Ebook IV SIGESEX 687


personagens, pois materializa da mesma maneira como o é na vida real.
A peça explicita o pensamento de Sábato Magaldi quando diz que
nos textos de Plínio despontam personagens cujos comportamentos e falas
projetam uma realidade social, deslocando “os valores sobre os quais repousam
nossas experiências realistas [...]”, fazendo um levantamento autêntico, quase
documental, “das situações sociais e dos caracteres em jogo”, e investigando
“sem lentes embelezadoras a realidade, mostrando-a ao público na crueza de
matéria bruta [...] - a fatia de vida cortada ainda quente do cenário original
[...]” (MAGALDI, 1998, p. 207).
O desastroso jogo de verdades acerca das aparências ocorre no quarto do
casal quando revelam-se as lacunas humanas. No ambiente que aparentemente
deveria ser guardado o silêncio conjugal é exatamente o cômodo que Plínio
escolhe para falar sobre a sexualidade de ambos ou, pelo menos, mais
abertamente sobre a impotência sexual de Menezes e a regulação silenciosa
de Lisa sobre o (não) falar sobre sexo. O quarto torna-se a arena discursiva do
jogo de poder entre ambos – o sexo está em jogo. É nesse sentido que a política
do silêncio absoluto, do proibido e da recusa do dizer são substancialmente
interrompidos na “[...] política da língua e da palavra [...]” (FOUCAULT,
1988, p. 22) em Plínio Marcos.
A peça representa um acontecimento singular na vida de duas pessoas
comuns, mas que ganha caráter e interesse coletivo quando levada a público
porque é representativo de situações análogas ao que enfrentam milhares de
pessoas na relação conjugal. É nesse ambiente que os corpos nus descortinam
verdades e expõem as feridas de uma vida juntos. Para compreender essa
relação discursiva e de poder entre os dois, nos termos de Foucault, “o que não
é regulado é silenciado por meio da repressão”2, como bem arquiteta Menezes
ao reprimir todos os desejos de Lisa. Por esse prisma, é como se Plínio pusesse
o leitor/espectador para espiar a sexualidade do casal pela fresta da porta do
quarto e pedisse para se reposicionar com relação a essa resistência acerca da
política do sexo, a fim de olhar de maneira crítica e mais perspicaz para perceber
que o sexo e o prazer, essencialmente para a mulher, ainda é um grande tabu no
cenário conservador do país.
Pensando assim, o discurso de Lisa, principalmente nos dois primeiros
atos, configura essa repressão: mesmo não tendo culpa pela impotência sexual
do marido é compelida e não tem um discurso legitimamente aceito - durante
2. [...] a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio,
afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, na há nada para dizer, nem para ver,
nem para saber (FOUCAULT, 1988, p.10).

688 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


o matrimônio foi silenciada para não expressar e realizar as suas vontades
sexuais. O marido a reprime exigindo-lhe uma postura de obediência. Ao seu
modo, ela tenta falar, visando preservar o santuário do lar, mas o machismo
de Menezes faz o corpo silenciado servir tão somente de objeto sexual para
se debruçar e saciar seus prazeres carnais. Situação semelhante ocorre na peça
Signo da discoteque, a postura contra a moral se dá numa discussão entre as
três personagens: o operário, o estudante e uma jovem e, desse diálogo há um
latente jogo de poder e de preconceito com relação à mulher que, segundo
Magaldi, “O machismo brasileiro é alvo de crítica implícita na peça, na
utilização da mulher como objeto, sem se cogitar de sua participação como
parceira” (MAGALDI, 2003, p. 99).
Outro exemplo de Plínio sobre a questão da sexualidade e a não
realização da mulher no casamento, ao pensar nas artimanhas advindas pela
força dos desejos e a regulação do corpo e do sexo, é a peça O bote da loba,
em que a personagem Veriska vai até uma cartomante para a solução de um
problema que tanto a aflige e, em leituras de cartas de tarô, a fim de descobrir-
se interiormente, o jogo de cartas revela que o motivo de sua não libertação
enquanto mulher advém “das experiências sexuais e ao gozo que não chegara
a conhecer com o marido” (MARCOS, p. 42). Da consulta, percebe que o
aprisionamento que vivia – assim como Lisa – o diagnóstico é senão a falta de
sexo e os carinhos que nunca recebera do marido para atingir o orgasmo.
Na sociedade latina, o caso de Lisa em A dança final é representativo do
patamar de normalidade, quando o marido fracassa sexualmente é sobre ela que
recai o discurso do silêncio e onde a clausura pesa mais. Além disso, é julgada
por não despertar desejo e proporcionar prazer a seu macho alfa, intimidador
e imponente, que adentra a terceira idade e que, grosseiramente, atribui a
ela a culpa pelo não desempenho sexual. É ancorado nesse tipo de discurso
autoritário que ele a reprime e mascara uma verdade sobre si. A questão da
idade do casal, e morando juntos há anos, passa a configurar uma monotonia
no casamento. A convivência fez desgastar a relação e definhar os desejos – o
matrimônio entrou em decadência, sobretudo pela ótica de Menezes que está
em declínio na atividade sexual.
Para Foucault, o poder se exerce e é construído historicamente como uma
prática social. Nesse sentido, o poder que ecoa de Menezes ganha legitimidade
pela capacidade que tem de domínio sobre Lisa e faz que ela o obedeça. Esse
poder repressivo se sustenta para manter uma determinada ordem, na qual está
imbricada a subalternização da mulher. Na peça, percebe-se que o poder está

Ebook IV SIGESEX 689


entranhado de forma opressiva ao nível doméstico (Lisa vive em um espaço
diegético – um ambiente privado, dentro do apartamento) e, mediante esse
enclausuramento, o poder também adentra a relação íntima. A denúncia
desse sujeito (Lisa), que aparece de forma invisível e neutra vem para mostrar
que começa a tomar consciência do seu lugar e positivamente a utilizar-se do
poder, pois por meio do seu discurso, denuncia que existe enquanto mulher e
também tem classe, gênero, raça etc. É nesse sentido que a teoria foucaultiana
é importante para inspirar e compreender essa crítica apontada por Plínio
Marcos.
Não obstante, a estranha prática de Menezes é subjugar as mulheres
e, falocentricamente3, conversar na sauna com outros amigos do condomínio
sobre pornografias, taras e sexo. Por outro lado, nota-se que a postura
machista sobre a sua impotência revela que a relação sexual traz implicações e
desdobramentos na relação social. As falas de Menezes sempre vêm carregadas
de uma autoafirmação, a única preocupação é com o falo. Ele não procura saber
como a esposa está, além de que sempre atribui a ela os erros da relação, de modo
a preocupar somente consigo que, sob o prisma gramatical, pronominalmente
utiliza demasiadamente o “eu”, “meu” e “mim”.
Somente no último ato é que Lisa transgride, mas (e sempre tem o
conectivo adversativo “mas”) ainda revela a sua condição enquanto mulher do
lar e esposa que desempenhou as funções da casa e as veleidades do marido. E,
mais adiante, toma a “liberdade” de falar sobre suas vontades sexuais mesmo
tendo sofrido com a regulação social e o machismo do marido que não lhe
permitia contestar.
Enquanto patriarca colocou os desejos e a vontade da esposa em segundo
plano (ou em plano algum), ficando surpreso quando ela diz que nunca gozou
com ele. A pulsão erótica de Lisa é retirada e é redimensionada para um não-
lugar, de modo a não existir. O que importa é o pênis, e se ele não desempenha
sua função maior (a sexual, nesse caso), então a masculinidade de Menezes
está seriamente comprometida. Assim fica evidente que há um problema de
relações de gênero, em que o marido sempre subjugou e regulou o corpo de
sua esposa em detrimento de um poder atribuído a si por ser macho e, dessa
forma, deter uma posição de privilégio sobre o corpo feminino. Ao mesmo
tempo que a performance da masculinidade dele a oprimiu, ele se coloca
num entrave sobre sua “condição sexual” por não desempenhar as atividades
3. Falocentrismo: Termo tomado por algumas escritoras e críticas francesas para desafiar a lógica predominante no
pensamento ocidental, bem como a predominância da ordem masculina (BONNICI, 2009, p.218).

690 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sexuais como gostaria (e deveria, aos olhos sociais sobre seu corpo masculino
cisgênero). Menezes fica boquiaberto com o “não” que a esposa lhe dissera ao
pontualmente revelar que nunca tinha conseguido chegar ao orgasmo com ele
– triste história tão comum com milhares de casais.
Nos últimos diálogos, como um gesto de resistência, Lisa procura ter
um discurso permanente, com o permitir contar tudo para a família e amigos
caso ele não queira realizar a festa, dizer tudo sobre o sexo e a impotência.
Lisa, mesmo desordenada ao pré-estabelecido, ao se permitir dizer enquanto
parte locutória – ainda não fala de forma imperativa, mas já se percebe um
balbucio nos lábios onde projeta uma pseudo-vontade de falar de si. Há um
amadurecimento sobre a forma de pensar e de agir, de modo que essa reação
deu a ela a possibilidade de escolha e autonomia.
Como de costume e, pela forma de arquitetar as peças, essa é mais uma
que Plínio não traz um fechamento e resolução da história. Não se sabe qual é
o fim dessa narrativa, mas isso tampouco interessa. O mais importante é que
nesse formato sem um encerramento, o não-dito deixa implícito e permite
problematizar além da impotência em questão – que é a impotência masculina,
mas verificar outras impotências humanas enfrentadas no dia a dia. Além do
mais, de perceber a condição da mulher, quando levada ao centro da discussão
como um corpo político, ainda é um território que culturalmente é controlado
e gravado por impressões sociais muito conservadora, machista e sexista.

Referências

BONNICI, Zolin, Lúcia Osana (orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e


tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2009.

FOUCAULT, Michael. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.

GUIDARINI, Mário. A desova da serpente: teatro contemporâneo brasileiro.


Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996.

MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Ed.


Perspectiva, 1998.

Ebook IV SIGESEX 691


________. Panorama do teatro brasileiro. 6. ed. São Paulo: Global, 2004.

MARCOS, Plínio. Navalha na carne. São Paulo: Círculo do livro, 1978.

________. Dois perdidos numa noite suja. 2. ed. São Paulo: Global Editora,
1979.

________. O abajur lilás e Oração para um pé-de-chinelo. São Paulo: Parma,


1980.

________. A mancha roxa. São Paulo: Edição do autor, 1988.

________. A dança final. São Paulo: Maltese, 1994.

________. Plínio Marcos: obras teatrais: no reino da banalidade. Alcir Pécora


(org.). Rio de Janeiro: Funart, 2017.

692 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Transforma-se na “super princesa
pantaneira”!
Transform in the “super pantaneira princess”!
Leonardo Arruda Calixto1
Lucilene Soares da Costa2

RESUMO: A sexualidade e gênero na infância ainda é pouco discutida.


Há um bombardeio pelo herói masculino, o estereótipo da princesa branca,
com cabelos compridos, que usa cor-de-rosa e aguarda um homem para
salvá-la. “As aventuras da Princesa Pantaneira”, quebra os paradigmas e situa
claramente o posicionamento de uma menina que “desobedece” e subverte
as convenções impostas, naturalizando sua identidade. O teatro pode ser um
recurso valioso na educação ao tratar as diferenças. Nasce à consciência critica
que amplia as experiências.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Infantil e Juvenil. Teatro.
Sexualidade e Gênero.

ABSTRACT: Sexuality and gender in childhood is still little discussed. There is a


bombing by the male hero, the stereotype of the white princess, with long hair, who wears
pink and waits for a man to save her. “The Adventures of the Princess Pantaneira”, breaks the
paradigms and clearly places the positioning of a girl who “disobeys” and subverts the imposed
conventions, naturalizing their identity. Theater can be a valuable resource in education in
dealing with differences. It is born to the critical conscience that expands the experiences.
KEYWORDS: Children’s and Youth Literature. Theater. Sexuality and Gender.

1. Autor mestrando em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), licenciado em Artes
Cênicas: Teatro e Dança pela UEMS/UUCG. Especialista em Arte Educação e Cultura Regional do MS. Gradua-
do em Direito pela UNAES. Docente pela Prefeitura Municipal de Campo Grande – componente curricular arte:
Educação Infantil, fundamental I e II. End.: Av Dom Antônio Barbosa (MS-080), 4.155, em frente ao Conjunto José
Abrão. CEP 79115-898 Campo Grande – MS. Mestrado Profissional em Educação (67) 3901-4608. (leoarrudaca-
lixto@gmail.com).
2. Coautora licenciada em Letras (Português/inglês) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
mestre e doutora em Letras pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São
Paulo (USP). Desde 2006 atua como docente do quadro efetivo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul,
onde ministra disciplinas na área de Literaturas de Língua Portuguesa, Teoria Literária, Literatura infanto-juvenil e
Literatura e outras artes, na Graduação em Letras, e Literatura infantil e Itinerários culturais no Mestrado Profissional
em Educação (Profeduc). End.: Av Dom Antônio Barbosa (MS-080), 4.155, em frente ao Conjunto José Abrão. CEP
79115-898 Campo Grande – MS. Coordenação Letras Bacharelado (67) 3901-4622. (lucilenecosta@uems.br).

Ebook IV SIGESEX 693


Abordar o termo sexualidade e gênero na infância ainda é tabu na
contemporaneidade. Xavier Filha (2012, p. 21) completa dizendo: “O
que temos vistos nos últimos anos é que há um temor em se discutir sobre
sexualidade com crianças nas escolas e instituições de Educação Infantil”.
Assim a Literatura Infantil e Juvenil pode contribuir para discutir a
sexualidade e gênero na escola. A Literatura Infantil e Juvenil possui funções
tais como: acesso ao imaginário coletivo, aprendizagem da linguagem e das
formas literárias, e a socialização cultural (COLOMER, 2017).
A autora Machado (2009) propõe conhecer os clássicos infantis, que
despertam a curiosidade, pois nesta fase, da infância, a mente está aberta para
o aprendizado e a imaginação.
Propomos “olhar” para as sexualidades e gênero na infância. Para tanto,
faremos um recorte na obra de Constantina Xavier Filha3, para abordar a
sexualidade e gênero na infância e ou adolescência.
O título faz referência ao livro de Constantina Xavier Filha. Expõe a
liberdade e identidade que a personagem Camuela possui, ao mesmo tempo,
aguça a curiosidade em mergulhar na literatura infantil e juvenil através do lúdico.
Tentaremos estabelecer um diálogo para demonstrar a real importância
da literatura infantil e juvenil dentro do contexto escolar, trazendo para a
conversa as questões relacionadas à sexualidade e gênero na infância.
O (a) docente deve proporcionar e criar estratégias para aproximar os
estudantes da leitura. No primeiro momento deve demonstrar paixão pela
leitura, aliás, como fomentar a leitura se o próprio professor/professora não
tem o hábito e gosto pela leitura? As estratégias, ou possíveis estratégias, serão
desenvolvidas fazendo relação direta com a prática docente do autor em Artes
Cênicas. Não pretendemos responder a todas as indagações aqui expostas, mas
as mesmas podem ser motivadas pelos disparos na consciência de cada um,
levando a reflexão.
Infelizmente, em determinadas situações, o (a) docente “estimula”
os alunos e alunas a leitura, em virtude de avaliação para notas. Com toda a
certeza, esta obrigação causa certa aversão à leitura, logo, não terá prazer e por
consequência, poderá não ser um leitor/leitora. Será que a culpa está na má
formação do docente?
3. Professora Dra. com Pós Doutorado, associada da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS, campus
de Campo Grande, atuando na Faculdade de Educação - FAED/Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-gradua-
ção em Educação (CPAN/UFMS). Atua na formação inicial e continuada de educadoras e educadores e em pesquisas
nas seguintes áreas: educação sexual, educação para a sexualidade, estudos de gênero, sexualidades, gênero e educação,
violências de gênero, violências contra crianças e adolescentes e relações pedagógicas. Líder/coordenadora do GEP-
SEX - Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, Educação e Gênero - CNPq/UFMS.

694 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Neste mesmo caminho surge a pergunta: O que é que a Literatura tem?
Este é um capítulo do livro de Zilberman (2014, p. 09), que diz: “um bom
livro é aquele que agrada”. Conhecer os clássicos infantis na própria infância
seria como abrir as portas para o novo e desconhecido, que proporciona
aprendizado e imaginação. Antes os clássicos despertavam curiosidade, hoje
causa preguiça (MACHADO, 2009).
Segundo Machado (2009) as soluções, poderiam ser: a primeira leitura
dos clássicos não deve ser a original, pois falta maturidade, logo, apresentar
uma adaptação; segundo, explorar novas metodologias para apresentar a
literatura infantil, que podem ser através do teatro, da dança, das artes visuais,
da música, da contação de história.
Na infância as lembranças ficam nítidas e duráveis, pois são impregnadas
de emoção (MACHADO, 2009). E o impacto disso na vida de uma criança, ao
crescer? Seria um adulto mais sensível? Talvez, embora o adulto possa distanciar-se
da sensibilidade, por mecanizar sua vida e não perceber, sentir pequenas situações
ao seu redor. O acesso ao imaginário contribui para a experiência humana.
Uma das funções da literatura infantil e juvenil seria o acesso ao
imaginário coletivo (COLOMER, 2017). O imaginário entende-se como
criativo e lúdico que passa pelo conhecimento humano. Colomer (2017)
ressalta a linguagem, jogo e literatura, como formas de aprendizagem,
ajudando a criança a descobrir um mundo de palavras. Coloca em destaque o
jogo, que trabalha com o lúdico e o imaginário, que se expressa em ação, prática
e experimentação, que desperta mente e corpo, inteligência e criatividade.
Olga Reverbel (2018) teórica, autora e professora, foi pioneira
nos estudos e práticas entre o teatro e a educação. É considerada uma das
precursoras do teatro e educação. Olga se aprofunda no tema teatro para
crianças. Fazendo um paralelo entre a prática de Reverbel e o jogo que
Colomer destaca, utilizando o teatro como recurso metodológico para propor
uma solução frente à literatura, mostra-se que o jogo teatral ou cênico pode ser
uma linguagem de aprendizagem para as crianças e adolescentes.
O jogo pode liberar o imaginário, criando e expressando-se através
da linguagem teatral. Reverbel (2018) em uma entrevista narra: “sonho em
escrever um outro livro. Já escrevi 18 e tenho um romance pronto, esperando
para ser editado. Eu sonho também em ter bisnetos... a gente sempre sonha...”.
Quando Colomer cita abrir a porta do imaginário humano, Reverbel abre esta
porta, pois o Ser nunca está acabado, e a literatura infantil pode proporcionar
esse mundo do imaginário, contribuindo para o desenvolvimento infantil.

Ebook IV SIGESEX 695


Machado (2009, p. 23) afirma que os clássicos infantis são livros que
exercem influência particular: “um clássico é um livro que nunca terminou
de dizer aquilo que tinha para dizer”. Corroborando com a autora, o Brasil
tem autores que abordam os clássicos por outra leitura. Monteiro Lobato é
um dos expoentes da literatura infantil/juvenil brasileira. “[...] Monteiro
Lobato instituiu uma via de mão dupla entre o Sítio do Picapau Amarelo e a
Grécia Antiga, criando assim uma excelente forma de iniciação infantil [...]”
(MACHADO, 2009, p. 26).
Segundo Machado (2009) a mesma reconhece a importância dos
contos de fadas que fazem parte do imaginário popular, assim como as obras
contemporâneas, de Chico Buarque, “Chapeuzinho Amarelo”, Ruth Rocha
com “O Reizinho Mandão”, que mostram o brincar, aprofundado em uma
visão crítica do mundo.
Se os livros ajudam que as imagens e as palavras representam o mundo
real, “As aventuras da princesa pantaneira”, narram à história de uma princesa
chamada Camuela, e traz à tona questões contemporâneas como sexualidade e
gênero, em uma obra infantil/juvenil.

Camuela é uma princesa que ganhou dos bichos do seu reino o apelido
de ‘Princesa Pantaneira’. É alegre, valente e muito esperta. Adora inven-
tar histórias e viver aventuras. Um dia, ao tentar salvar uma princesa,
meteu-se em apuros... Como conseguirá se salvar do reino cor-de-rosa?
(XAVIER FILHA, 2012, p. 38).

Xavier Filha (2012) dá voz a uma menina que foge dos estereótipos
impostos pela sociedade brasileira. Camuela é uma princesa, mas não é branca,
loira, olhos azuis, que vive em um castelo, que será salva por um príncipe, que
usa um vestido cor-de-rosa, é simplesmente uma menina que vive no Pantanal,
não tem medo dos animais da sua região, que joga bola, solta pipa, sobe em
árvore, doma cavalo, salva príncipe preso na torre. Camuela rompe com os
conceitos e preconceitos, “grita” em voz alta quem é ela, mostrando sua
identidade sem que haja vergonha.
Entretanto Camuela um dia conhece uma princesa de contos de
fadas, completamente diferente dela. A princesa do conto de fadas, Rosinha,
apresenta para Camuela o livro chamado: Menina Perfeita, cheio de regras,
logo, a princesa Camuela não se encaixa em nenhuma destas regras. O que
fazer?

696 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Infelizmente em uma sociedade machista ainda temos alguns conceitos
e preconceitos relacionados à sexualidade e gênero. Na infância há “coisas” de
meninos e de meninas (embora também haja na adolescência e na fase adulta),
brinquedos de meninos e de meninas, cor de menino e de menina, atitudes
de meninos e meninas. Há sempre uma postura “romantizada”, submissa, de
dominação feminina em relação ao menino. Quando Xavier Filha desconstrói
determinados conceitos, subverte a realidade, empodera o gênero feminino
de forma lúdica, criativa, dialogando com os clássicos. Xavier Filha direciona
o olhar para o outro. Aliás, faz repensar porque os clássicos não tem uma
mulher no papel principal? E mais, mulher escrevendo, fazendo literatura
evidenciando o gênero feminino.
A identidade é marcada pela diferença e em algum momento caí na
exclusão, “[...] se o neném é classificado como ‘menino’, não pode ser ‘menina’,
demonstrando como as identidades são relacionadas, de forma que só é
possível atender a afirmação ‘é menino’ porque ele se relaciona com a negação
‘não é menina’. ” (FERRARI, 2009, p. 101).
Os gêneros e as identidades vão sendo construídos pelos símbolos, mas
não basta o anúncio e o conhecimento há a necessidade de se construir essa
identidade no dia-a-dia, através dos símbolos (FERRARI, 2009).
Assim a princesa Camuela precisou construir a sua identidade,
desconstruindo conceitos e quebrando preconceitos, rompendo fronteiras.
Um convite a novos olhares e percepções. O (a) docente em sala de aula precisa
proporcionar este convite a novos olhares e percepções.
Conforme Colomer (2017), a Literatura Infantil/Juvenil também
cumpre com esta ampliação da experiência, ora mostra o realismo e a fantasia,
ora mundo tal como é com seus conflitos. Os livros infantis incorporam novos
temas que se referem aos problemas próprios de determinadas idades.
Fazemos uma relação direta com o teatro, para tratar da literatura
infantil/juvenil. No jogo teatral há uma relação com estímulos perceptíveis,
sejam sonoros e motores, voz, ritmo, melodia, entonação e movimento, são
atrelados à expressão gestual, corporal, de improviso, de descontração, de
observação, de espontaneidade, possivelmente trabalhados a determinado
tema, como a sexualidade e gênero na literatura infantil/juvenil.
Deste modo, “As aventuras da Princesa Pantaneira”, além da leitura
da obra e contextualização, podem ser experienciadas através do teatro, dos
seus jogos, de forma lúdica e interagindo diretamente com os alunos e alunas,
mostrando as nossas diferenças.

Ebook IV SIGESEX 697


“Para qualquer idade, os livros terão alguma coisa a dizer. [...] Terão o
efeito de um relâmpago, subitamente iluminando tudo. Farão o leitor terminar
a última página transformado” (MACHADO, 2009, p. 135).
Xavier Filha (2012) sugere algumas ações e orientações pedagógicas
para o trabalho com o tema gênero e sexualidade na educação da infância.

Proporcionar a meninos e meninas uma variedade de brincadeiras para


que as fronteiras entre os gêneros possam ser transgredidos e novas pos-
sibilidades identitárias serem construídas entre eles/elas deve ser um
objetivo a ser empreendido pelas instituições educativas. [...] Dever-se-
-iam permitir todas as fantasias, roupas, brinquedos a ambos os gêne-
ros. [...] Livros infantis com o tema gênero são bem-vindos (XAVIER
FILHA, 2012, p. 281-282).

O trabalho voltado para o Teatro se traduz nestas transgressões,


possibilitando novas oportunidades, que possivelmente o aluno e aluna sairão
transformados, ou no mínimo mexidos.
O jogo no teatro é uma maneira lúdica de aprender, apropriando-se de
conceitos e conteúdos, é um tanto chamativo, sai do dia-a-dia e induz a reflexão,
através da brincadeira e da participação individual e coletiva. Os jogos ainda
podem ser dramáticos, com improvisos, que estão situados na expressão pessoal
e grupal. Há muitos aspectos a levar em conta, quando tratado dos jogos, sendo
eles: os culturais, sociais, políticos, cognitivos, motores entre outros.
Na narrativa do livro “As aventuras da Princesa Pantaneira” (2012), logo
após Camuela mostrar sua identidade, dizer quem é, ela conhece Rosinha, a
princesa cor-de-rosa:

[...] Rosinha vivia no reino do mundo cor-de-rosa. Não saía da torre


para não se despentear, pra não se sujar, pra não se amarrotar... Não
podia sair, nem queria! Somente saía uma vez por ano com o Rei e a
Rainha e, quando isso acontecia, tinha medo de tudo. A Princesa via a
vida passar do alto da torre, onde comia bolinhos cor-de-rosa. Camuela
achou tudo aquilo muito esquisito. Como salvava todo mundo, pensou
em salvar aquela princesa também. Chegou próximo da torre. E... Tudo
ficou escuro. Quando acordou, estava presa. Seu vestido era cor-de-ro-
sa; o sapato de saltinho era rosa; tinha uma enorme fita rosa no seu ca-
belo. [...] Tentou sair correndo e... [...] (XAVIER FILHA, 2012, p. 16).

698 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Rosinha é a típica princesa dos contos de fadas, e por uma adversidade,
Camuela se vê neste lugar, nunca sonhado. Foge a tudo que Camuela viveu
e vive, descontrói sua identidade, e mais, desaparece com a verdadeira
Camuela.
O teatro consegue abordar todas estas questões. Exemplificando
Reverbel (1989) apresentamos um jogo teatral chamado “Modelador”, que
trabalha a expressão gestual, o relacionamento grupal, a imaginação. Duplas
de alunos/alunas são definidas, um de frente para o outro, que pode ser várias
duplas participando ao mesmo tempo, ou apenas por duplas. Já sabendo do
conteúdo da história é proposto trabalhar determinadas características que
detonam como é o estado da Camuela, nesta situação comentada acima.
Um aluno será modelado e o outro o modelador. Após determinado sinal,
uma criança da dupla modela a outra conforme sua vontade, mas não se
esquecendo do estado, a característica da Camuela, como se fosse um escultor.
Neste exercício várias possibilidades poderão surgir. Poderá haver um foco
para o debate: O aluno/aluna modelado conservou características do estado
da Camuela? Também será observado se o aluno/aluna modelado se propôs
apenas se deixar modelar, sem que contribua com ideias.
Este jogo comentado acima, trabalha as características daquele
momento, em que Camuela se encontra, trabalhando o contato físico. Pode
ser proposto a partir dos 7 anos de idade. A observação torna-se importante,
pois todos os alunos e alunas poderão observar e identificar se Camuela estava
contente, espantada, confortável e etc.
A experienciação, sugerida pelo teatro, amplia a imaginação e a
percepção, assim como a literatura propõe.
Portanto Colomer (2017) discorre sobre a socialização cultural, sendo
uma função da literatura infantil/juvenil, que são os modelos masculinos e
femininos nos livros atuais. Destacado pela personagem Camuela na literatura,
que transita em ambos os gêneros. A autora diz que existiam livros para meninos
e meninas, será que cabe na contemporaneidade tal divisão explícita? Sendo
livros para meninos mais importantes do que para meninas? Ou livros infantis
são para meninas? Ao longo de uma história foram construídas reivindicações
acerca da discriminação de gênero e isso teve grande impacto nas produções
literárias que tem o gênero feminino sendo protagonista.
O professor e a professora têm um papel fundamental na construção da
identidade do aluno e aluna e no convite à reflexão, eles são mediadores entre
os livros e as crianças.

Ebook IV SIGESEX 699


Fica claro que a literatura infantil e juvenil tem uma grande importância
na educação, é um dever apresentar as crianças e adolescentes obras literárias.
As clássicas devem ser fonte de leitura, mas as adaptações podem ser um bom
começo para explorar o universo da leitura. Soluções metodológicas podem
contribuir para o “gostar” da leitura, assim, o teatro proporciona possibilidades
novas de experienciação, através dos jogos e brincadeiras. Discutir assuntos do
cotidiano deve ser apresentado aos alunos e alunas, assim como a sexualidade
e gênero, que também aparecem na literatura infantil e juvenil. A literatura
Brasileira é riquíssima, e tem grandes nomes, regionalizar através do livro: “As
aventuras da Princesa Pantaneira”, tem como tema a sexualidade e gênero, e
uma autora que escreve empoderando o gênero feminino, desconstruindo
conceitos e quebrando preconceitos.
A Princesa Camuela não se rendeu a Princesa Rosinha, convenceu-a que
sua vida e o seu modo de ser, era muito mais interessante que a vida da princesa
cor-de-rosa. Juntas lutaram contra um dragão e inventaram outra utilidade
para o vestido cor-de-rosa: um paraquedas; fugiram no cavalo branco do
príncipe; brincaram de ser menino, de ser menina, de muitos jeitos, foram
livres. Foram felizes, até que novas aventuras e desventuras acontecessem
(XAVIER FILHA, 2012).
A literatura é um convite ao novo, à descoberta, assim como a sexualidade
e gênero, ao mundo imaginário, às experiências novas; as transformações são
possíveis, não há como não te tocar. O mundo da literatura pode e deve ser
tratado na educação e o professor/professora tem certa responsabilidade para
fomentar o gosto pela leitura.
Machado (2009, p. 135) contribui dizendo: “Para sempre diferente
do que era quando começou a primeira. Difícil medir como e quanto. É uma
navegação imprecisa. Mas uma experiência inigualável. Boa viagem”.

Referências

COLOMER, Teresa. Introdução à Literatura Infantil e Juvenil atual. 1. ed. São


Paulo: Global, 2017.

FERRARI, Anderson. Diversidade Sexual na Escola. In: XAVIER FILHA,


Constantina. Educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a
diversidade sexual. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009, p. 99-110.

700 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

REVERBEL, Olga Garcia. Um caminho do Teatro na Escola. São Paulo: Editora


Scipione, 1989.

REVERBEL, Olga. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.


São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.
itaucultural.org.br/pessoa513967/olga-reverbel>. Acesso em: 29 maio. 2019.

XAVIER FILHA, Constantina. As aventuras da Princesa Pantaneira. Campo


Grande, MS, Life Editora, 2012.

_________. Sexualidades, Gênero e Diferenças na Educação das Infâncias. Org.


Constantina Xavier Filha. Campo Grande, MS, ed. UFMS, 2012, p. 17-34, p.
277-293.
__________. Educação para a sexualidade, para a equidade de gênero e para a
diversidade sexual. Org. Constantina Xavier Filha. Campo Grande, MS, ed.
UFMS, 2009, p. 19-43.

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2014.

Ebook IV SIGESEX 701


Mulheres, deusas e mitologia: análise sobre
os contos e a construção do papel social da
mulher
Women, goddesses and mythology: analysis on
tales and the construction of the social role of
women
Mirella Lacerda Teixeira de Souza1

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de discutir elementos dos


mitos grego, iorubá e judaico-cristão que influenciaram a imposição do
papel social da mulher, além de demonstrar como as relações desiguais entre
mulheres e homens são construídas e passam naturalmente entre gerações
a partir das concepções culturais de cada sociedade. A mitologia possibilita
compreender a influência que contos/lendas tiveram sobre as relações de
gênero construídas, utilizando-se dos dispositivos de poder e submissão.
PALAVRAS-CHAVE: Mitos; Mulheres; Construção social

ABSTRACT: This paper aims to discuss elements of the Greek, Yoruba and Judeo-
Christian myths that influenced the imposition of the social role of women, as well as to
demonstrate how unequal relations between women and men are constructed and passed
naturally between generations on the basis of cultural conceptions of each society. Mythology
makes it possible to understand the influence that tales / legends had on the constructed
gender relations, using the devices of power and submission.
KEYWORDS: Myths; Women; Social Construction

Introdução

É impossível negar a relevância que os mitos tiveram na explicação


de acontecimentos importantes para a história da humanidade, seja
para esclarecer a origem da vida, para explicar a raiz de todas as mazelas
1. Estudante do Mestrado em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Email: mirella-
lacerda@gmail.com

702 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


sociais ou até mesmo para ilustrar a criação do Universo e tudo que o
compõe. Foi, durante muito tempo, o conhecimento que existia para
compreender todas as coisas que cercavam a humanidade antes da
existência do conhecimento científico. Sendo assim, não é interessante
negar a importância que tiveram quando eram os únicos meios para
explicações de verdades.
No sistema social em que vivemos, não é possível negar a existência
de diferenças que separam a sociedade, sobretudo entre homens e
mulheres que foram construídas simultaneamente ao desenvolvimento
das sociedades. As diferenças estão presentes nas questões econômicas,
políticas, educacionais, sociais, culturais e comportamentais,
submetendo a mulher a um papel secundário e submisso na construção
histórica e destacando que a sua função social se restringe ao papel de
mãe e zeladora do lar.
O mito da supremacia masculina perdura até os dias atuais, fazendo
a sociedade acreditar que a superioridade do homem já nasce com ele,
como se não fosse uma construção histórica e cultural. O mito infere
que a natureza foi perfeita ao possibilitar que o homem, naturalmente,
nascesse mais poderoso e mais inteligente, tornando-o o agente superior
nas relações de poder. A mulher já nasce inferior porque a natureza deu
a ela a possibilidade de gerar crianças e isto a faz estar abaixo do homem
desde o nascimento. No entanto, para convencê-la do seu espaço social,
foi necessário construir a sacralização da procriação, a fim de tornar a
mulher, cidadã secundária, a ilustração da santidade e que possui poderes
de sentir e intuir sobre todas as coisas. Diferentemente do homem, sujeito
desprovido dessa capacidade sensitiva que já nasce com a mulher. .
Algumas construções acerca do papel social desempenhando pela
mulher devem-se também ao fato das explicações dadas pela mitologia
ao longo da história e a importância que a mesma teve no caminhar das
sociedades na busca pela verdade. Desta forma, este trabalho traz alguns
enredos mitológicos de deusas e mulheres que tiveram passagens marcantes
na história da humanidade e como as interpretações dos seus mitos deram
sentido a alguns aspectos sociais que acompanham as mulheres até os dias
atuais. Para tanto, são utilizadas as histórias das mulheres gregas, iorubás
e judaico-cristãs, cujos papéis assemelham-se aos desempenhados pelas
mulheres nos dias atuais, na tentativa de levantar o debate e contribuir
para a desconstrução de simbologias dadas às mulheres.

Ebook IV SIGESEX 703


1- Mitos gregos

Não é incomum que as palavras mito e mitologia estejam associadas


aos gregos. Ao ouvirmos estas palavras, automaticamente já somos enviados
a pensar às narrativas gregas e as/os deusas/os do olimpo. Possivelmente,
porque as histórias semeadas nesta civilização foram as que mais se destacaram
no mundo, haja vista que algumas áreas do conhecimento são invenções dos
gregos e até mesmo algumas palavras possuem a sua raiz na língua grega.
A mitologia grega é um vasto agrupamento de histórias que marcam a
cultura dos povos que habitavam as áreas de língua grega e que procuravam
explicar a origem das coisas. Os povos, independente dos locais que habitavam,
estavam sempre em busca de conseguir explicações para dar sentido à vida,
e, as narrativas gregas, com suas lendas que misturam elementos humanos e
divinos, povoaram o imaginário dos gregos e de outras sociedades.
Na Grécia, os mitos foram muito difundidos e serviram para explicar
desde fenômenos da natureza a títulos de nobreza. Considerada berço
cultural e influenciadora das sociedades ocidentais, a mitologia grega
atravessa milênios, gerações e faz parte da cultura do povo. Embora nos
primórdios a mitologia grega estivesse centrada no conhecimento religioso,
algumas mudanças a colocou no centro das artes. O poema Teogonia do
poeta Hesíodo e os poemas Ilíada e Odisséia de Homero retratam as
histórias de pessoas e divindades gregas. Por isso, atraíram o interesse dos
povos pelo conhecimento da cultura grega. A arte foi fundamental para
tornar conhecida a mitologia grega.
Héstia é conhecida como a senhora do lar, a deusa que representa a
mulher que possui a função natural de dona do lar, dos afazeres domésticos,
a zeladora dos filhos e do esposo. Ela representa o arquétipo em que a função
da mulher é administrar o lar e cuidar do espaço. (NOGUERA, 2017, p.22).
O mito de Héstia é importante para pensarmos a constante luta
travada pelas mulheres, sobretudo as feministas com o objetivo de diminuir
as desigualdades construídas entre homens e mulheres nas sociedades. Entre
alguns povos, ainda é comum ter a imagem da mulher relacionada à gestão do
lar e dos afazeres domésticos. No entanto, este modelo excludente vem sendo
desconstruído, principalmente em sociedades ocidentais, haja visto que a
cultura é dinâmica , isto quer dizer que sofre mudanças com o passar do tempo
e historicamente construída como afirma Hall (2014, p. 12) “[a cultura] é
definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades

704 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
redor de um ‘eu’ coerente”.
A história deusa Hera nos mostra a disputa entre as mulheres. Nas
versões de sua história sempre aparece como uma mulher enciumada e
que briga com as amantes do seu companheiro para se manter no topo do
relacionamento. A posição e atitudes de Hera servem para pensarmos o
patriarcado e a sociedade sexista. Hera é uma mulher fiel a seu esposo e em
nenhum momento relama das suas traições, mas ela sempre se coloca contra
as mulheres que se relacionam com seu esposo. Zeus é livre para se relacionar
com outras mulheres. (NOGUERA, 2017, p.28-30).
O mito de Hera diz respeito a cultura machista disseminada ao longo
do tempo nas sociedades. Não é difícil encontrar mulheres que aceitam
o comportamento abusivo e machista dos homens quanto à infidelidade
nos relacionamentos afetivos. Acreditar que o homem é livre para manter
quantos relacionamentos deseje é um sinal de que a mulher foi ensinada para
suportar as consequências desde que mantenha as aparências. Manter um
relacionamento abusivo para prestar contas à sociedade quanto a seu estado
civil ou mesmo porque foi ensinada a “manter-se casada até que a morte os
separe” é uma construção arcaica, machista e secular, imposta não somente
pelos homens, mas em determinado momento, foi também pelo Estado, já que
as separações não eram permitidas ou demoravam muito para acontecerem.
Hera se submete a um relacionamento abusivo porque para ela estar casada é
mais importante do que o sofrimento da traição. Quantas mulheres na nossa
sociedade contemporânea mantêm seus relacionamentos porque estar casada
é importante para o seu status social? Para além da infidelidade masculina, o
mito de Hera retrata as divergências entre as mulheres, tendo em vista que ela
prefere brigar com as amantes do marido e manter seu relacionamento.
O mito de Atena, Afrodite e Hera da rivalidade entre ambas que busca
saber a quem pertencia a maçã de ouro que estava escrito: pertence a mais
bela. Essa discórdia foi causada por Éris por não ter sido convidada para o
casamento de Peleu e Tétis, por isso como vingança, resolveu lançar a maçã aos
pés das três deusas com a finalidade de que houvesse confusão. Essa história
serve para lembrar que muitas vezes as mulheres estabelecem uma disputa na
vida entre ambas. (NOGUERA, 2017, p.36-37).
A sororidade seria um sentimento de irmandade existente entre
as mulheres. A união entre ambas deve levá-las à luta contra as injustiças
relacionadas às questões de gênero, já que pensar pelo viés da sororidade é

Ebook IV SIGESEX 705


pensar que as diferenças entre as mulheres não existem e ambas lutam por
outros ideais. As diferenças que existem como a étnica, econômica e ideológica
deixam de ter notoriedade, estando a aliança entre elas no centro da pauta. É
muito difícil encontrá-las em extrema harmonia sem que haja disputa entre
quem tem o corpo melhor, quem viaja mais, quem é mais bonita. Esse mito
serve para alertar as mulheres de que a união é o melhor para vencermos o
patriarcado e que a ausência de união só faz uma se afastar da outra, tornando
tardia a vitória.
Embora existam versões diversas sobre o mito da Medusa, a que
utilizo neste trabalho diz respeito a bela guardiã da deusa Atena, cuja beleza
encantava muitos homens. No entanto, a sua obrigação enquanto sacerdotisa
era manter-se pura, virgem. A beleza da sacerdotisa encantava um número
grande de homens que sempre investiam para conquistá-la, mas ela sempre se
negava a cair nos encantos deles. Um destes homens era Poseidon que investia
insistentemente e sempre era sempre desprezado. Até que um dia não aceita
a negativa da deusa e a violenta. A sacerdotisa sente-se muito triste, chora a
dor do estupro e depois de um dia de extremo sofrimento, pede socorro à
deusa Atena que em vez de ajudar e tentar compreender a situação, a trata com
desprezo e tamanha é a sua ira transforma a beleza da deusa em uma figura
desprezível. (NOGUERA, 2017, p.40-41).
Os objetivos diários de vida das pessoas e consequentemente das
mulheres as coloca num viés de individualidade que não permite ser trabalhada
a empatia, que nada mais é que a possibilidade de se colocar no lugar da
outra. Em determinadas situações da vida, ainda que as pessoas tenham suas
lutas individuais a serem travadas é importante que, antes de proferirmos
julgamentos sem conhecer a realidade do outro, as pessoas possam se imaginar
passando pela mesma situação. Essa lição nos faz identificar que faltou empatia
em Atena para saber lidar com o sofrimento que Medusa estava atravessando.
Assim também são as mulheres. Muitas preferem defender o lugar de privilégio
dos homens e o machismo construído na sua vida, a olhar pelas mulheres que
estão em situação de diferença e insegurança.

2- Mitos iorubás

Os mitos iorubás possuem relação direta com as religiões de matriz


africana e, assim como a mitologia grega, por muito tempo antes do
conhecimento científico, teve muita importância na explicação de eventos da

706 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


natureza e da criação do mundo durante os eventos que envolviam os cultos
ancestrais e os momentos de narrativas para ser mantida a sua história.
De acordo com Verger (1987 apud SANTOS, 2016, p. 278) a cultura
iorubá disseminada no Brasil tem relação com a chegada de africanos saídos
da costa ocidental da África para o Brasil, no período em que as relações
escravagistas eram disseminadas pelo mundo.
Diz a cultura iorubá que no início do mundo, os habitantes faziam
quatro tipos de ofertas diferentes para os orixás. Cada oferenda tinha um
objetivo a ser atingido e eram distribuídas em quatro dias. No quarto dia, os
orixás masculinos eram os responsáveis a recolher as ofertas e os presentes
deixados pelos humanos. Cabia às orixás mulheres cozinhar, seguindo a
ordem dos orixás masculinos de que era proibido a elas degustar do alimento
antes da sua ordem. A deusa Oxum, depois de um tempo passou a reprovar a
divisão de tarefas e o não reconhecimento por parte dos orixás, mas de nada
adiantou a sua revolta. Tudo continuou a ser da mesma maneira. Usando
seus atributos divinos, Oxum tornou todos os seres vivos inférteis. Ao
observar que a reprodução não acontecia mais como antes, os orixás ficaram
apreensivos e foram consultar o sábio dos conhecimentos divinos para ter
ciência sobre o que estava acontecendo. Assim, todos ficaram sabendo que a
falta de acolhimento dos homens com as mulheres provocou essa situação.
(NOGUERA, 2017, p.71-73).
O mito de Oxum nos permite perceber os papeis impostos e
naturalizados aos homens e às mulheres. Parece natural que todas as
atividades que envolvem o cuidado com o lar ou com as pessoas, ou que
todos os afazeres domésticos estejam ligados às mulheres, no entanto, nada
disto é natural, mas é construído e imposto a partir dos acordos sociais. É
muito comum que as mulheres sejam presenteadas com objetos relacionados
à casa ou que os brinquedos infantis de meninas sejam da cor rosa e todos
sejam representativos dos objetos do lar como panelas, fogão, talheres e ferro
de passar roupa. É a construção do papel social que impuseram à mulher.
Oxum vai contra todas essas imposições sociais e reivindica a participação
das mulheres em atividades que estão fora do lar.
A rivalidade sempre esteve presente nas relações entre as mulheres, não
sendo diferente entre as divindades iorubás Obá, Iansã e Oxum. Elas eram
orixás que adentravam a floresta em busca de conhecimento e sempre estavam
unidas. Os orixás percebendo que as mulheres estavam se fortalecendo e se
unindo cada vez mais, resolveram desenvolver um plano. Investem em Xangô,

Ebook IV SIGESEX 707


um atraente orixá para dar fim ao relacionamento entre as mulheres. Xangô
é incentivado a casar com Obá, mas só aceita porque recebe a proposta de
que poderia casar-se também com Iansã. Assim, além de casar com as duas,
exige o casamento com Oxum, o que faz Orunmilá desfazer seu casamento
com a deusa para que ela fique livre para Xangô. As três esposas como passam
a disputar a atenção do seu marido já não desenvolvem a harmonia que existia
antes entre elas anteriormente. (NOGUERA, 2017, p.87-90).
Esse mito nos faz refletir sobre o arquétipo de manutenção de poder
dos homens. Os homens farão de tudo para manter o seu poder e para isso,
faz-se necessário desfazer todo pacto de união que há entre as mulheres. Uma
das melhores formas de manter a união entre as mulheres é instruí-las acerca
da sororidade. Reconhecer que a luta é para desconstruir a desigualdade que
historicamente foi levantada entre homens e mulheres, e que tudo isto só poderá
se concretizar, se houver uma ligação forte entre as mulheres, neutralizando as
diferenças entre ambas.
Podemos encontrar essa pauta na luta feminista. Os homens colocam
as mulheres contra as outras. Em ambientes de poder como reunião entre
políticos, entre departamentos de educação ou em gerência de empresas, enfim,
muitos homens sempre fazem questão de interromper a mulher que fala para
desprestigiar o seu discurso e legitimar o poder que tem nestes espaços. As
disputas entre as mulheres as fazem desviarem da harmonia de convivência e
de sororidade.

3- Mitos judaico-cristãos

A Bíblia é um dos livros escritos que traçam as relações de poder entre


os homens e as mulheres e ainda continua sendo interpretada com o objetivo
de sempre colocá-las em situação desfavorecida em relação aos homens.
É dividida em duas partes e composta por histórias que, de acordo com os
cristãos, servem para instruir e corrigir.
Nos contos judaico-cristãos escritos na Bíblia, o livro de Gênesis relata
a criação do mundo e de tudo que nele há. O capítulo 1:27 há a afirmação que
Deus criou homem e mulher e em seguida deu-lhes a ordem de multiplicar
a espécie. No entanto, no capítulo seguinte, Deus informa que vai criar uma
mulher para ser auxiliar do homem. Ao que tudo indica, de acordo com
algumas edições da Bíblia, outra mulher foi criada no mesmo momento da
criação do homem e com o mesmo material.

708 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


Estudos históricos mostram que 3000 anos a. C., há registros sobre a
existência de Lilith e como a existência dela foi anterior ao registro bíblico, a
sua história foi apagada. Por quê? De acordo com os escritos no Alfabeto de
Bem Sirá, registrado durante a Idade Média em aramaico e hebraico, consta
que a mulher, durante o ato sexual, não aceita ficar apenas embaixo do homem,
reivindicando momentos em que pudesse guiar o sexo e também desprezando a
situação por torná-la submissa e inferior ao homem. Percebendo que o homem
não aceitaria tê-la por cima, abandona o Jardim do Éden. (NOGUERA, 2017,
p.122-126).
As atitudes de Lilith não seriam positivas para manter a tranquilidade
em sociedades patriarcais, por este motivo seu nome foi extinto da Bíblia. Se
a criação dos dois primeiros seres humanos foi realizada da mesma forma,
no mesmo dia e usando o mesmo material, como a mulher aceitaria ser
subjugada pelo homem? A mulher lutou pelo mesmo direito do seu esposo
como afirma Schmitt (2016, p.459) “Lilith entendia-se como possuidora
dos mesmos direitos de Adão, já que haviam sido criados da terra. Ela
reivindicava os mesmos direitos que o seu marido, estava pronta para seguir
autônoma e independente”. No entanto, por sua insubmissão, foi excluída
do “livro da vida”.
No caso de Eva, como foi criada do corpo de Adão, não goza dos
mesmos direitos que ele, já que para a sua criação foi necessária uma parte do
seu corpo já existente. Já que ele foi criado por material específico e antes dela,
pode gozar de plenos privilégios.
A história de Eva nos diz muito sobre a submissão feminina. Quando
a mulher aceita se colocar em situação que desempenha um papel menos
importante, sempre sendo colocada em segundo plano, está reafirmando o
mito de Eva. A desobediência causada por experimentar o fruto proibido a
leva a ser expulsa do Jardim do Éden. O fato de oferecer ao seu companheiro
o fruto proibido fez a mulher, a partir de Eva, ter a imagem de manipuladora,
quando na verdade o homem também quis experimentar do mesmo fruto. Por
ser considerada a responsável pela entrada do pecado, ela é a principal afetada
pelos castigos impostos: passividade sexual e dor do parto. Ao ser questionado
pelo Criador, Adão coloca toda a culpa da transgressão na sua companheira.
O machismo impera nos contos judaico-cristãos. Em muitas partes da
Bíblia há a menção de mulher como zeladora do lar, cuidadora dos filhos e do
companheiro, deixando claro que a mulher já nasce pronta para ser esposa e
exercer o papel social que lhe é imposto.

Ebook IV SIGESEX 709


Considerações finais

É sempre importante revisitar os mitos por serem histórias pertinentes


que retratam como as sociedades estruturam e organizam a sua cultura a partir
de contos diversos. Exatamente por ter caráter explicativo é possível relacioná-
los a condição histórica pelo qual o papel da mulher foi moldado.
As mulheres sempre estiveram presentes nos contos que explicaram a
origem de tudo e consequentemente pesa no contexto atual, já que o sagrado e
o profano se relacionavam e postulavam um estereótipo social para as mulheres.
Exatamente por este motivo, os modelos femininos trazidos nos mitos são
utilizados até os dias atuais como referência para a condição de ser mulher. O
entendimento passado de geração em geração se constituiu enquanto verdade.
Embora os mitos sejam poderosos, as mulheres não podem permitir que
suas histórias sejam reduzidas a contos e que seus interesses sejam invalidados
na sociedade contemporânea. O grande desafio é garantir a união e unidade
entre as mulheres para que os seus desejos e ideais de vida individuais sejam
garantidos através da luta coletiva.

Referências

BÍBLIA. Português. A Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida.


Brasília, DF: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz


Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

NOGUERA, Renato. Mulheres e deusas: como as divindades e os mitos


femininos formaram a mulher atual. 1 ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.

SCHMITT, Gustavo. O mito de Lilith: entre deuses e demônios. São Leopoldo:


Anais do Congresso Latino-Americano de gênero e religião, 2016. Disponível
em: <http:// anais.est.edu.br/index.php/genero/article/download/635/372>.
Acesso em: 10 mai. 2019.

SANTOS, Rafael José dos. Caminhos da literatura ioruba no Brasil: oralidade,


escrita e narrativas virtuais. Disponível em: <http:// www.ucs.br/etc/revistas/
index.php/antares/article/download/4754/2734>. Acesso em: 10 mai. 2019.

710 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


A metamorfose do corpo homossexual ao
“sair do armário”
The metamorphosis of the homosexual body
when “come out of the closet”
Vinícius Gonçalves dos Santos1;
Edgar Cézar Nolasco2.

RESUMO: Este trabalho articula-se na leitura da obra A metamorfose


como metáfora para o momento de transição do homossexual ao “sair do
armário”. O livro narra a história de Gregor Samsa, este certo dia percebe
que acordou metamorfoseado em um inseto monstruoso, após esta transição,
sua família o bani para dentro de seu quarto. A partir daí, tecermos o corpo
homossexual como o corpo metamorfoseado, este corpo estranho faz oposição
ao corpo hegemônico linear (homem - masculino - heterossexual).
PALAVRAS-CHAVE: Franz Kafka; corpo; homossexualidades; Literatura.

ABSTRACT: This article is articulated in the reading of The metamorphosis as a


metaphor for the moment when the homosexual “Come out of the closet”. The book tells
the story of Gregor Samsa, in a certain day, he realizes that wakes up metamorphosed into
a monstrous insect, after this transition, his family banished him into his room. From there
on, we weave the homosexual body as the metamorphosed body, this queer body opposes the
linear hegemonic body (man - masculine - heterosexual).
KEYWORDS: Franz Kafka; body; homosexualities; literature.

Introdução

Fomos criados para viver no paraíso, o paraíso estava destinado a nos servir.
Nosso destino foi modificado; que isso tivesse acontecido também com a de-
terminação do paraíso, não é dito em parte alguma. (KAFKA, 2011, p. 202)
1. Graduando em Letras Português / Inglês pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Projeto “A metamorfo-
se metafórica de Franz Kafka”, NECC - Núcleo de Estudos Culturais Comparados. Email: viniciusgs16@gmail.com
2. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Projeto “Paisagens transculturais na
fronteira sem lei”, NECC - Núcleo de Estudos Culturais Comparados. E-mail: ecnolasco@uol.com.br

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O pensamento contemporâneo nos permitiu olhar para os corpos
monstruosos. Estes corpos queer, aqui chamados de metamorfoseados, são
corpos que passaram por uma metamorfose, desta forma, deixam de ser
humano para que se tornem monstros. Em A metamorfose, a personagem
principal metamorfoseia-se de humano para inseto, assim, o corpo que antes
era visto hegemônico/humano pela família e sociedade, passa externar uma
figura metamorfoseada/monstruosa. Gregor Samsa, personagem da obra, a
partir deste novo corpo, precisa compreender-se, ao mesmo tempo em que sua
família está do lado de fora da porta tentando abri-la para entender o que está
acontecendo lá dentro.
A porta é o divisor entre o que está dentro e o que está fora. Gregor
Samsa está dentro de seu quarto, este, para esta leitura, passa a ser o “armário”.
O “armário” é conhecido como o local em que se guardam as sexualidades/
afetividades, assim, o homossexual que está no “armário” é aquele sujeito que
não explicita publicamente sua sexualidade, apesar disso, sua sexualidade pode,
ou não, estar marcada em seu corpo. Assim, Gregor Samsa inicia a narrativa
dentro do “armário”.
A relação familiar é desestabilizada ao notar o corpo metamorfoseado,
a família força a saída da personagem principal do armário-quarto para que,
posteriormente, tente a todo custo mantê-lo lá dentro. E toda saída deste local
tem um custo alto para a personagem. A convivência da família com o corpo
metamorfoseado é a de incômodo e fascinação.
A sexualidade da personagem não é trabalhada na superfície da obra, a
relação entre a obra e as questões queer estão no campo metafórico. Presume-se
que a personagem principal seja heterossexual, afinal, o canônico tem um perfil
específico de sujeitos. Entretanto, ler a personagem como sujeito LGBTQ+ é
subverter a hegemonia. (Re)ler desta forma é uma desobediência epistêmica,
seguindo as proposições de Mignolo (2008), tal qual Gregor Samsa faz ao
despertar como não-humano, ainda que isso não tenha sido uma opção da
personagem.

1- O corpo metamorfoseado

A obra começa com a protagonista despertando metamorfoseado


em um inseto monstruoso. Este novo corpo traz em si duas principais
características. A primeira é o substantivo “inseto”, ser considerado menor e
facilmente descartável, relativo ao nojo e ao sujo. A segunda é a palavra que

712 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


adjetiva o substantivo, “monstruoso”, ser não-natural, aquele que possui alguma
deformidade, o sujeito inumano. A partir daí a personagem perde seu caráter
humano e corpo que já fora hegemônico passa a ser o corpo metamorfoseado.
Louro (2004) diz que o corpo queer, corpo metamorfoseado, é um
“corpo estranho, raro esquisito”, notamos então, que o corpo metamorfoseado
ocupa um papel de minoria na sociedade em que ocupa, tendo em vista a
“raridade” atribuída à ele. Este corpo metamorfoseado não “aspira o centro
e nem o quer como referência”, ou seja, ele está fora da hegemonia, ainda que
surja de dentro dela, esta cria o corpo diferente tomando de si como parâmetro.
Este corpo não busca se igualar à hegemonia, ele desafia a mesma, pois está em
desconformidade com ela.
Louro (2004) trata sobre as viagens que corpo realiza. O corpo
metamorfoseado não expressa um parar, não diz respeito à uma linearidade ou
binaridade, o sujeito viaja de V para K, ao mesmo tempo que pode viajar de K
para G. A autora diz que isso é inerente ao percurso.

A viagem transforma o corpo, o “caráter”, a identidade, o modo de ser e


de estar... Suas transformações vão além das alterações na superfície da
pele, do envelhecimento, da aquisição de novas formas de ver o mundo,
as pessoas e as coisas. As mudanças da viagem podem afetar corpos e
identidades em dimensões aparentemente definidas e decididas desde o
nascimento (ou até mesmo antes dele). (LOURO, 2004, p. 15)

As mudanças de Gregor não estão somente no exterior, mas é pelo


exterior/performático, que ele é repreendido e marginalizado. A viagem de
Gregor, a princípio, afeta exclusivamente a sua performatividade. Passamani
conceitua que os “homossexuais com trejeitos socialmente entendidos como
pertencentes ao sexo oposto. São esses que as pessoas identificam rapidamente
como diferentes” (2009, p. 70), desta forma, Gregor ao abrir a porta do
armário-quarto é rapidamente identificado como corpo metamorfoseado,
sua viagem está marcada em sua pele, sendo assim, sofre das consequências de
imediato. As mudanças de identidade, no aspecto interior, vão acontecendo
com o caminhar da narrativa. O que habita na superfície de Gregor é o que
incomoda a família e a sociedade, representada na figura do gerente.
A primeira parte de A metamorfose é o momento de descobrimento
do corpo metamorfoseado, tanto de Gregor Samsa, para consigo, quanto
de sua família, para com ele, e inclusive do leitor para com a personagem. O

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primeiro capítulo é dedicado somente a este plot. O primeiro pensamento da
personagem é uma indagação “O que aconteceu comigo? ” (KAFKA, 1997,
p. 7), daí em diante, Samsa inicia sua jornada de (re)conhecimento do próprio
corpo. Ele imagina estar enganado sobre sua realidade e decide voltar a dormir
para esquecer essas “tolices” (KAFKA, 1997, p. 8). O narrador nos esclarece
que “Não era um sonho” (KAFKA, 1997, p. 7), desta maneira, o leitor tem o
privilégio de estar ciente da situação da personagem antes mesmo do próprio
sujeito metamorfoseado. Gregor não entende a pele em que habita. O processo
de compreensão de seu “novo” corpo de sempre, não acontece sem relutância
do mesmo. Afinal, Gregor Samsa entendia-se e via-se, e também era visto,
como humano até a noite anterior. “É verdade que a metáfora da viagem parece
supor um sujeito que detém o privilégio de perambular livremente, de ir e de
vir. No entanto, não podemos esquecer que há aqueles que são empurrados
para as viagens” (LOURO, 2004, p. 18)”. O que o autor nos pontua é sobre os
sujeitos que simplesmente o são.
Gregor realiza sua viagem de maneira abrupta, ele simplesmente o é e
se descobre ser. Ao metamorfosear-se o corpo gera curiosidade. O que habita
dentro do armário é desconhecido até que a porta seja aberta. Porém a porta
não pode ser simplesmente aberta, esta carrega uma situação paradoxal, pois,
ao mesmo tempo em que quem está do lado de fora do armário deseja olhar
para dentro, este mesmo sujeito não deseja ver o que há lá dentro, afinal,
retomando o imaginário infantil, sempre podem ter monstros no armário.
O quarto estava fechado e a porta trancada. A família da personagem nota
um desvio em suas atitudes/comportamento, ao notar o desvio, os familiares
vão até a porta descobrir o que está acontecendo dentro do armário-quarto.
A mãe é a primeira pessoa a buscar ver o que há dentro deste local, seguida da
irmã, ambas não possuem tanto poder sobre Gregor, assim, suas investidas em
descobrir o que há dentro do armário-quarto são falhas. Após estas, o pai e,
posteriormente, o gerente vão até a porta, ambos possuem um poder retórico/
hierárquico sobre Gregor, ambas as personagens são figuras masculinas. Todas
estas personagens possuem um objetivo em comum: descobrir o que há do
outro lado da porta.
A família e o gerente pressionam Gregor para que a porta seja aberta,
após muito esforço a personagem consegue abri-la. “[...] só se podia ver metade
do seu corpo[...]” (KAFKA, 1997, p. 24), ver somente metade do corpo
metamorfoseado foi o suficiente para demarcar a diferença entre ele e os que
estavam do outro lado da porta. Louro diz que “Suas escolhas, suas formas e

714 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


seus destinos passam a marcar a fronteira e o limite, indicam o espaço que não
deve ser atravessado” (2004, p. 18), assim, a família e o gerente ao ver Gregor
performar um corpo metamorfoseado, estabelecem ali a fronteira que não
deve ser atravessada, a fronteira do (in)humano.
O corpo metamorfoseado é também o não-compreendido. Gregor não é
escutado de dentro da porta, após um grande discurso realizado sobre quem é e
o que pensa, as personagens de fora da porta se indagam, mais especificamente o
gerente, “Entenderam uma única palavra? ” (KAFKA, 1997, p. 21). O gerente
representa, para esta análise, a sociedade (representada por uma personagem
masculina), este está a todo momento questionando Gregor, inclusive se o
mesmo não está lhes “[...] fazendo de bobos [...]” (KAFKA, 1997, p. 21). O
gerente continua sua análise sobre o que está dentro da porta, comparando a
voz que saiu de lá, com a voz de um animal, assim o corpo metamorfoseado é
considerado um corpo animalesco.
Enquanto o corpo estava oculto dentro do armário-quarto, a família e
a sociedade pressionavam a abertura da porta, a partir do momento em que a
porta é aberta, há o choque das personagens que estavam do outro lado da porta.

[...] ouviu o gerente soltar um “oh” alto - soava como o vento que zune
- e então Gregor o viu também: era o mais próximo da porta e compri-
mira a mão sobre a boca, enquanto recuava devagar, como se o impelis-
se uma força invisível que continuasse agindo de modo constante. [...]
(KAFKA, 1997, p. 24)

O gerente não compreende o corpo que sai para fora do armário-quarto,


o corpo metamorfoseado gera nele angústia e medo. Não há diálogo dele com
o corpo, somente a fuga e a repulsa. Gregor tenta dialogar, mas “ [...] o gerente,
já as primeiras palavras de Gregor, tinha virado as costas e só lhe dirigia o olhar
por cima dos ombros trêmulos, com os lábios revirados. E durante a fala de
Gregor não ficou parado um instante, recuando sem perder Gregor de vista
[...] (KAFKA, 1997, p. 29). Este trecho explicita a relação que fazemos do
gerente com a sociedade (masculina e patriarcal), em um mesmo momento,
as costas são dadas ao corpo metamorfoseado, entretanto, os olhos continuam
em Gregor, este corpo ao ser notado como diferente, passa a ser vigiado.
A família lida com Gregor de maneira semelhante à da sociedade
(gerente). Mas nesta relação as reações são mais passionais e, ao mesmo tempo,
mais controladoras. Voltando ao momento de abertura da porta

Ebook IV SIGESEX 715


A mãe [...] a princípio fitou o pai com as mãos entrelaçadas, depois deu
dois passos em direção a Gregor e caiu no meio das saias que se espalha-
vam ao seu redor, o rosto totalmente afundado no peito. O pai cerrou o
punho com expressão hostil, como se quisesse fazer Gregor recuar para
dentro do quarto, depois olhou em volta de si, inseguro, na sala de estar,
em seguida cobriu os olhos com as mãos e chorou a ponto de sacudir o
peito poderoso (KAFKA, 1997, p. 24)

Os pais de Gregor recuam o olhar. A mãe esconde os olhos no peito, esta


desvia o olhar para que evite a figura metamorfoseada do filho. O pai também
esconde o olhar, porém o faz para que esconda a “fragilidade”, representada
pelo ato de chorar. Ele é o ideal da masculinidade, seu corpo performa o ideal
hegemônico, o humano. O próprio termo “humano”, em português, termina
com um morfema de gênero masculino, assim, o que é “humano” sempre estará
ligado ao masculino.
Louro (2004) diz que

Ainda que sejam tomadas todas as precauções, não há como impedir


que alguns se atrevam a subverter as normas. Esses se tornarão, então, os
alvos preferenciais das pedagogias corretivas e das ações de recuperação
ou de punição. Para eles e para elas a sociedade reservará penalidades,
sanções, reformas e exclusões. (LOURO, 2004, p. 16)

A figura de repressão, na obra, é atribuída ao pai, ele quem aplica as


“pedagogias corretivas” no corpo metamorfoseado. Tudo o que se refere
a figura paterna faz referência a força e a masculinidade hegemônica,
em nenhum momento pode-se ser questionada a masculinidade do pai.
Nessa esfera, quando o pai bate na porta de Gregor, momentos antes desta
ser aberta, o narrador diz “[...] e já o pai batia, fraco mas com o punho
[...]” (KAFKA, 1997, p. 11). A conjunção “mas” faz oposição ao que foi
dito anteriormente, ou seja, o nem mesmo um ato “fraco” é posto sem o
mínimo de força.
A figura paterna é quem confina Gregor ao armário-quarto. Após a
primeira saída do local, o mesmo percebe a fúria do pai ao vê-lo do lado de
fora, então, busca voltar o mais rápido possível para dentro do armário-quarto,
custe o que custar “Ao pai, naturalmente, na sua condição atual, não ocorreu
nem mesmo remotamente abrir a outra folha da porta, para oferecer a Gregor

716 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


passagem suficiente. Sua ideia fixa era simplesmente que Gregor voltasse o
mais rápido possível para o quarto.” (KAFKA, 1997, p. 30).
Gregor retorna ao quarto, mas não sem antes machucar-se na porta. O
pai ao ver o corpo metamorfoseado de seu filho é tomado de tamanha fúria
que sua voz “[...] já não soava como a de um pai apenas; [...]” (KAFKA, 1997,
p. 30). A pressa prende a personagem a porta e a figura paterna/repressora
desfere um golpe nas costas de Gregor, novamente a violência volta a ser o
fator resolucional do conflito do humano com o não-humano. O corpo
metamorfoseado voa “sangrando violentamente bem para dentro de seu
quarto.” (KAFKA, 1997, p. 31)
O segundo conflito entre o corpo metamorfoseado e o corpo
hegemônico acontece ao final da segunda parte. A mãe e a irmã de Gregor
estavam retirando as coisas dele de seu quarto, porém quando vão retirar um
quadro feito pelo mesmo, a personagem se posiciona sobre o quadro. Gregor
luta por um último elemento de sua personalidade, após a retirada dos móveis,
aquele quadro era um resquício de quem Gregor fora, ele mesmo havia feito
o quadro, ele luta por sua história/memória. A mãe se assusta e desmaia, o pai
chega neste instante e ao notar Gregor fora do quarto, juntamente com a mãe
desmaiada, toma seu veredito e decide aplicar a medida corretiva.
Após uma breve perseguição, a figura paterna atira lhe maçãs, “Uma maçã
atirada sem força raspou as costas de Gregor mas escorregou sem causar danos.
Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele”
(KAFKA, 1997, p. 58). A maçã é frequentemente usada como simbologia para
o pecaminoso, afinal, ela é o elemento que bane Adão e Eva do paraíso. Assim, a
maçã nessa narrativa, e em nossa leitura, representa o pecado, atirado pelo corpo
hegemônico e que fica incrustado nas costas do corpo metamorfoseado de
Gregor. Desta forma, o corpo metamorfoseado carrega em si o pecado incrustado
em suas costas, pecado esse que lhe é atribuído pelo corpo hegemônico.
A narrativa traz um final trágico para o corpo metamorfoseado. Já
debilitado pelo ferimento causado pela maçã/pecado, a personagem passa os
últimos dias vivendo no armário-quarto em meio a poeira e a móveis velhos.
Sua última saída do armário-quarto resulta em seu findar, o sair deste local ele
é repreendido pela última vez. Ao retornar ao armário-quarto, este é tomado
de susto ao ter a porta de seu quarto batida pela irmã, em meio ao susto ele
quebra suas pernas, e juntamente com o ferimento da maçã, vem a falecer
dentro do armário-quarto.

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2- Chegará então a vez da grande ruptura

O armário-quarto é o grande cenário da narrativa, tanto para A metamorfose


quanto para a narrativa do LGBTQ+. Gregor Samsa, em sua metamorfose,
permite à leitura homolatina, leitura de sujeitos que quando se metamorfoseiam,
ou são metamorfoseados, são postos à margem. A personagem do gerente, que
utilizo como representante da sociedade, é masculina e dominadora, assim como
o pai de Gregor, ambos possuem um denominador comum que é o masculino.
Não coloco os dois em pé de igualdade, pois pensando nas hierarquias, a
sociedade (gerente) está acima da família (pai).
Deslo(u)camos3 A metamorfose para a leitura queer por uma
desobediência epistêmica, afinal vemos em Kafka o deslo(u)camento
como uma função crítica à normalidade e uma visibilidade aos corpos
metamorfoseados. Louro (2004, p. 20) diz aqueles que subvertem e desafiam
a fronteira, recorrem, às vezes, ao exagero e a ironia para que fiquem visíveis a
arbitrariedade das divisões, dos limites e das separações. Kafka ao fazer desta
metamorfose algo físico e “concreto” é irônico e exagerado. Essa caricatura
evidencia a separação entre o hegemônico (humano) para o metamorfoseado
(não-humano), e também do colonizador para o colonizado. Gregor se torna
outro não pela metamorfose em si, mas por como sua metamorfose é lida pelas
outras personagens hegemônicas.

Referências

ANDERS. Günther. Kafka: Pró e Contra. Trad. Modesto Carone. - São Paulo:
Editora Perspectiva S.A, 1969.

KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução e posfácio por Modesto Carone. –


São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

_________. Essencial Franz Kafka. Trad. Modesto Carone. - São Paulo:


PenguinClassics Companhia das Letras, 2011.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria


queer.-2. ed.; 3. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

3. Utilizamos o termo cunhado por Günther Anders em Kafka: Pró e Contra.

718 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)


MIGNOLO. Walter D. Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o
significado de identidade em política.Trad. Ângela Lopes Norte. In. Cadernos de
Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 287-324, 2008
PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O arco-íris (des)coberto. – Santa Maria:
Ed. da UFSM, 2009.

SOUZA. Eneida Maria. Crítica Cult. Belo Horizonte: Ed. UMFG, 2002.

________. Janelas indiscretas: Ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: Ed.


UMFG, 2011.

Ebook IV SIGESEX 719


720 Aparecido Francisco dos Reis, Vivian da Veiga Silva (organizadores)
Esta obra foi composta em Garamond Premier
Pro, criada por Claude Garamond em 1530
impressa em papel Offset em fevereiro de 2014.

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