Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Carlos Lira
Maíne Prates
PARTILHA DO MUNDO
O NACIONAL-COLONIALISMO
- Para que a lógica da raça se torne um hábito, ela deve estar agregada à lógica do
lucro, à política da força e ao instinto de corrupção - esta é, em rigor, o que define a prática
colonial.
- A França foi exemplo de como, no final dos anos 70 do século XIX, irá
conscientemente transformar o corpo político da nação numa estrutura política do império
cujo o investimento político e psíquico fez da raça sua moeda de troca e o valor de uso.
- O processo teve uma dupla dimensão: assimilar as colônias no corpo nacional,
tratando os povos conquistados simultaneamente como <<indivíduos>> e,
eventualmente, como <<irmãos>>; instalar gradualmente uma série de dispositivos para
que o francês comum fosse levado, por vezes sem se perceber, a tornar-se um indivíduo
racista tanto no olhar, gestos e comportamentos como no discurso. Com o auxílio da
psicoantropologia a classificação é sustentada pelas teorias da desigualdade entre raças e,
numa medida menor, pela validação de práticas eugenistas. Também, a <<educação
colonial dos Franceses>> auxiliou a formação da consciência racista, pois a colonização
serviu como uma exaltação da força e virilidade para os franceses que, em 1870, estavam
sob um sentimento de humilhação pela derrota da França perante a Prússia.
- O movimento nacional-colonialista francês reúne o conjunto de famílias políticas
da época das mais diversas profissões e ocupações e de sociedades secretas para dar,
política e culturalmente, uma forte e expressiva voz à ideia colonial. O tema da diferença
racial normaliza-se na cultura de massas através do estabelecimento de instituições como
museus e jardins zoológicos humanos, publicidade, literatura, artes, constituição de
arquivos, disseminação de narrativas fantásticas reportadas pela imprensa popular e
realização de exposições internacionais. Várias gerações de franceses foram expostas a
esta pedagogia que os acostumou ao racismo baseado na premissa de que a relação com
os Negros é uma relação sem reciprocidade. E tal não-reciprocidade justifica-se pela
diferença de qualidade entre as raças. Retoma-se a antiga temática do sangue utilizado
para assegurar privilégios da nobreza. Dentro do projeto colonial as pessoas são
persuadidas de que a civilização do futuro será criada com sangue branco. Todos os povos
que aceitaram a miscigenação de raças tornaram-se abjetos.
- Outro poder utilizado para a multiplicar ideias racistas foi o poder escolar. Os
estudantes são educados para se tornarem cidadãos-soldados, pois o sistema educativo e
militar são comunicantes. Na literatura infantil, em todas as obras, o Africano é
representado não apenas como uma criança, mas como uma criança idiota. Essa idiotice
seria consequência de um vício congênito da raça negra e a colonização seria uma forma
de assistencialismo, de educação e de tratamento moral desse idiota. É também um
antídoto para o espírito de crueldade e para o funcionamento anárquico das <<tribos
indígenas>>. Os colonos não são senhores cruéis e ávidos, mas guias e protetores. As
tropas francesas são heróicas que libertam os escravos e salvam os pobres. Na França são
todos felizes e, para os que são subjugados pela França encontram um país bom e
generoso.
- A colonização é a força e o poder de expandir seu território, persuadir sua gente
e submeter o universo, ou pelo menos boa parte dele, aos seus costumes, às suas ideias e
às suas leis. A ordem colonial baseia-se na ideia de uma Humanidade dividida em
espécies e subespécies, que podemos diferenciar, separar e classificar hierarquicamente.
Tanto no ponto de vista da lei como em termos de configurações espaciais, tais espécies
e subespécies devem ser mantidas à distância umas das outras.
FRIVOLIDADE E EXOTISMO
O imaginário ocidental pensou durante muito tempo que a África fazia parte das
terras desconhecidas. Mas isso nunca impediu filósofos, naturalistas, geógrafos,
missionários, escritores, quem quer que fosse, de se pronunciarem sobre um ou outro
aspecto da sua geografia ou ainda da vida, dos hábitos e dos costumes dos seus habitantes.
Obras de geografia, tratados de história natural, de moral ou de estética, romances, peças
de teatro e, até, recolhas de poesia. Muitas destas lendas, devaneios etnográficos e alguns
relatos de viagens têm a África como tema. O continente tornou-se, de verdade, desde o
início do tráfico atlântico, um inesgotável poço de fantasias, cheio de imaginações e
fabulações. Fabulação para melhor excluir, para melhor fechar em si mesmo e assim
disfarçar aquela espécie de desprezo. As inúmeras descrições sobre África revelam duas
faces: uma África estranha, maravilhosa, deslumbrante e fecunda como uma zona
escaldante, inóspita e estéril. O conhecimento do continente é cheio de lacunas e, mesmo
com tanto conhecimento atualmente, ainda é baseado em rumores, crenças errôneas e sem
fundamento, fantasias e suposições. Assim como África, <<o Negro>> é um “objeto
imaginário” e também um homem imaginário. Será inicialmente chamado de <<Negro>>
(espécie de homem material que é mercadoria quantificável), depois de <<homem
negro>> e, posteriormente, irão detectar o que chamou-se de <<alma negra>>. Ao
<<negro>> refere-se ao africano que não foi escravizado ao contrário do <<preto>>. Na
época do tráfico de escravos o <<negro>> caracterizava um vazio de humanidade e
<<homem negro>> é atribuído a uma espécie de homem que “não merece ser chamado
de homem”. Também é designado ao polígamo cujo temperamento e miséria tende para
o vício e <<a mais atroz criatura da raça humana>>, ora como uma massa nebulosa e
matéria indiferenciada de carne e osso, ou ainda como um homem simplesmente
<<natural>>. Enfim, o dispositivo do termo <<homem negro>> no século XIX é
predeterminado biológica, intelectual e culturalmente pela sua irredutível diferença.
Evoca disparidades da espécie humana e remete a um ser inferior.
LIMITES DA AMIZADE
Outro aspecto do vocabulário da época do qual também existe uma velha tradição
francesa caracterizada por sua ambiguidade: a amizade para os africanos. Tem como
objetivo pôr a amizade face à hostilidade racial característica da consciência esclavagista
e da consciência do império. A amizade apresenta duas faces: a primeira move-se
principalmente numa lógica de universalização, na qual intervém diretamente questões
éticas e de direito e, se não de pura igualdade, pelo menos de equidade e de justiça. Não
tem origem a nenhum parentesco ou familiaridade ou de proximidade com os Negros.
Tratasse de uma amizade de citação do escravo do qual a sociedade francesa nada queria
saber, e apóstrofe, protesto, que então ganhava uma dimensão política. A nova política
exigia que a conduta dos Negros fosse justa reconhecendo mutualidade entre Negros e
europeus.
A segunda face era sobretudo de compaixão, de empatia e de simpatia perante o
sofrimento de que os Negros foram vítimas. A partir do século XVIII, com a colaboração
de muitos autores, o público francês vai tendo conhecimento do caráter cruel e desumano
do tráfico negreiro. Entretanto, a maioria destes escritos apenas militava pela aplicação
esclarecida das políticas coloniais e do Código Negro instituído por Luís XIV em 1685,
ainda que alguns defendessem a causa igualitária das raças. A ideia dominante na época
é que, devido à sua inferioridade, os Negros se adequem à escravatura, e a sua felicidade
só pode ser atingida ao serviço de um bom senhor. Muitas obras da literatura francesa
serão escritos com tendência negrófila, porém, em consequência da insurreição de
escravos em São Domingos e dos massacres de colonos em Guadalupe a simpatia pelas
obras começa a decair. Também, sob o governo de Napoleão e sua política profundamente
negrófoba, alguns abolicionistas vão silenciar.
Na política da bondade não se colocava seriamente em questão a disparidade entre
europeus e africanos por acreditarem que tal diferença era natural. Suas reivindicações
eram sobre as condições deploráveis a qual viviam. O anticolonialismo francês nunca foi
coeso. A crítica anticolonial é feita a partir de uma posição que privilegia a classe
operária. É levada avante em nome da capacidade do colonialismo de universalizar os
conflitos de classe. As lutas operárias começam a impor uma certa limitação às formas
de hiperexploração nos países do capitalismo central. Um assalariado mais ou menos
integrado nos circuitos da acumulação alargada aparece. Para conseguir manter este frágil
equilíbrio, os métodos mais brutais de sobre-exploração são transferidos para as colônias.
Para dar resposta às crises de acumulação, o capital não poderá de maneira nenhuma
dispensar os subsídios raciais.