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“Eles não morriam de qualquer maneira: a morte era regulamentada por um ritual
costumeiro descrito com benevolência. A morte comum, normal, não se apoderava
traiçoeiramente da pessoa, mesmo quando era acidental em consequência de ferimento,
mesmo quando era causada por uma emoção demasiada, como muitas vezes acontecia.
Sua característica essencial é que ela dava tempo para ser percebida. (...) Nem o
‘mire’ nem os companheiros, nem os sacerdotes (...) sabiam tão bem quanto ele. Só o
moribundo avaliava o tempo que lhe restava. ” P. 6
“Na verdade, esse maravilhoso legado das épocas em que era incerta a fronteira
entre o natural e o sobrenatural mascarou, aos observadores românticos, o caráter
positivo, muito enraizado na vida cotidiana, da premonição da morte. Mesmo quando
acompanhado de prodígios, considerava-se um fenômeno absolutamente natural que a
morte se fizesse anunciar.” P. 9
“O que mais se parece com os mortos é o que mais renitente morre.” La Fontaine.
P. 11
“Para que a morte assim se anunciasse, ela não podia ser súbita, repentina. Quando
não podia ser prevenida, deixava de aparecer como necessidade temível, mas era esperada
e aceita de boa ou má vontade. Ela [a morte súbita] rompia então a ordem do mundo, na
qual todos acreditavam, como um instrumento absurdo do acaso, por vezes disfarçado de
cólera de Deus. E por essa razão a mors repentina era considerada infamante e
vergonhosa.” P. 12
“(...) Nesse mundo tão familiarizado com a morte, a morte súbita era uma morte
feia e desonrosa, aterrorizava, parecia estranha e monstruosa, e dela não se ousava falar.”
P. 13
“(...) Não importava que ele fosse inocente: a morte súbita marcava-o com uma
maldição.” P. 13
“(...) Desde que o Cristo ressuscitado triunfou sobre a morte, a morte neste mundo
tornou-se a verdadeira morte; e a morte física, acesso à vida eterna.” P. 16
“Ou então a ‘morte vem curar tudo’ ou ainda ‘antes sofrer que morrer’; duas
afirmações na verdade mais complementares do que contraditórias, duas faces do mesmo
sentimento: uma não existe sem a outra. Deplorar a perda da vida retira da aceitação da
morte o que ela tem de forçada e de retórico nas teorias morais eruditas.” P. 20
“(...) O repouso é, ao mesmo tempo, a imagem mais antiga, mais popular e mais
constante do Além. Essa imagem ainda não desapareceu, apesar da concorrência de outros
tipos de representação.” P. 32
“No Credo, ou antigo cânone romano, o Inferno designa a morada tradicional dos
mortos, antes lugar de espera do que de suplício. Os justos ou os resgatados do Antigo
Testamento ali esperavam que Cristo viesse depois da morte para libertá-los ou despertá-
los. Foi mais tarde, quando a ideia do Julgamento prevaleceu, que os infernos se tornaram,
para toda uma cultura, o que tinham sido exclusivamente para casos isolados, o reino de
Satanás e a morada dos danados.” P. 32-33
“Desde que o filho de Deus não só santificou como crucificou a própria morte, e
também a de seus seguidores, tanto pela sua ressurreição como pela esperança que nos
dá, fazendo habitar nos nossos corpos mortais o seu espírito vivificador que é a fonte da
imortalidade, os túmulos dos que tinham morrido por ele foram considerados fontes de
vida e de santidade. Foram assim colocados nas igrejas ou se construíram basílicas para
guardá-los.” P. 55
“(...) Fica bem evidente que os enterramentos nas igrejas foram contemporâneos
dos textos que os interditavam: as proibições canônicas não lhes impediram uma
duradoura extensão em toda a cristandade ocidental.” P. 64
“(...) Nota-se que um dos mais antigos nomes que designavam o cemitério não
tem o sentido religioso de repouso, de sono, nem sentido realista de enterrar, muito
simplesmente, o pátio da igreja.” P. 70
“É preciso ver. Os carneiros eram lugares de exposição, feitos para serem vistos.
Sem dúvida, no início não passavam de um depósito ao acaso, onde se procurava
desvencilhar dos ossos exumados somente para desocupar espaço, e não havia
preocupação especial em mostra-los, mas, em seguida, a partir do século XIV, sob
influência de uma sensibilidade orientada para o macabro, quis-se, ao contrário, tirar
partido disso: dispuseram-se os ossos e os crânios de tal maneira a formarem em torno do
pátio da igreja uma decoração para a vida cotidiana desses tempos sensuais.” P. 82
“Essa dupla função [espaço público e espaço reservado aos mortos] se explica
pelo privilégio do direito de asilo, com os mesmos motivos que o enterramento ad
sanctos. O santo padroeiro concedia aos vivos que o honravam uma proteção temporal,
como aos mortos que lhe confiavam o corpo uma segurança espiritual. O exercício de
poderes laicos parava diante do muro da igreja e do seu atrium. No interior desses muros,
os vivos encontravam-se como os mortos, na paz de Deus: omnino sunt (cimeteria) in
pace Domini.” P. 84
“(...) Na Idade Média, os mortos eram assim associados pelos vivos à liturgia
pascal por serem ao mesmo tempo constantemente pisados por eles e expostos à sua
piedade. A frequentação dos mortos no cemitério, em geral, deixava os vivos mais
familiarizados com eles, tornando-os muitas vezes indiferentes, salvo nos momentos
culminantes de uma religião de salvação, que reanimava a lembrança dos mortos na
memória da comunidade e no próprio lugar das sepulturas.” P. 87-88
“A igreja é, pois, quase sempre escolhida por uma razão de família, para se ser
enterrado perto dos pais, ou, mais frequentemente, perto do esposo e dos filhos. O hábito
generalizou-se a partir do século XV e expressa bem os progressos de um sentimento de
sobrevivência à morte; talvez, aliás, tenha sido no momento da morte que ele começou a
se impor à consciência lúcida: se a família representava então um papel fraco no tempo
banal da vida cotidiana, nas horas de crise, quando um perigo excepcional ameaçava a
honra ou a vida, ela recuperava o seu império e impunha uma última solidariedade até
depois da morte. A família venceu assim as fraternidades guerreiras que uniam nos seus
cemitérios os cavaleiros da Távola Redonda, porque para eles a verdadeira família eram
os companheiros. Acomodou-se, ao contrário, às fraternidades de ofício, porque esposos
e filhos repousavam juntos na capela da confraria.” P. 101
“(...) A amizade não era apenas, como entre adultos do nosso tempo, um prazer
da vida de relações, ela era o que continua sendo para as crianças e os adolescentes, mas
já não para o adulto: um elo sólido comparável ao amor, tão forte que por vezes resiste
também à morte. (...)” P. 102
“Imaginamos a sociedade medieval dominada pela Igreja ou, o que vem a dar na
mesma, reagindo contra ela por heresias, ou por um naturalismo primitivo. É verdade que
o mundo vivia então à sombra da Igreja, mas isso não significava adesão total e convicta
a todos os dogmas cristãos. Significava antes o reconhecimento de uma linguagem
comum, de um mesmo sistema de comunicação e de compreensão. Os desejos e os
fantasmas saídos do fundo do ser, eram expressos num sistema de sinais, e esses sinais
eram fornecidos por léxicos cristãos. Mas, e eis o que é importante para nós, a época
escolhia espontaneamente certos sinais, em detrimento de outros mantidos sob reserva ou
em projeto, porque traduziam melhor as tendências profundas do comportamento
coletivo.” P. 126
“(...) A palavra registro aparece, aliás, em francês no século XIII. É o sinal de uma
mentalidade nova. As ações de cada homem não se perdem no espaço ilimitado da
transcendência, ou ainda, em outras palavras, no destino coletivo da espécie. Ei-los de
agora em diante individualizados. A vida já não se resume exclusivamente a um sopro
[anima, spirus], a uma energia [virtus]. É composta de uma soma de pensamentos,
palavras ações, ou (...) uma soma de fatos que se podem detalhar e resumir num livro.”
P. 135
“Coisa muito curiosa e significativa, o livro que de início fora dos eleitos vai se
tornar dos condenados.” P. 136
“A dança macabra é uma ronda sem fim, em que se alteram um morto e um vivo.
Os mortos conduzem o jogo e são os únicos a dançar. Cada par é formado por uma múmia
nua, putrefata, assexuada, muito animada e por um homem ou uma mulher, vestido
segundo a própria condição, estupefato. A morte estende a mão para o vivo que vai
arrastar, mas que ainda não se submeteu. A arte reside no contraste entre o ritmo dos
mortos e a paralisia dos vivos. O objetivo moral é ao mesmo tempo lembrar a incerteza
da hora da morte e da igualdade dos homens diante dela.” P. 151-152
“Os vivos não esperam por esse encontro [com a morte]. Esboçam com a mão ou
a cabeça um gesto de recuo, de negação, mas não vão além desse reflexo de surpresa e
não deixam aparecer angústia profunda nem revolta. Apenas um desgosto atenuado pela
resignação, mais desgosto entre os ricos, mais resignação entre os pobres: questão de
dosagem.” P. 153
“A morte já não alivia; mesmo ao doente que sofre, ela impõe a angústia.” P, 162
“No entanto, mesmo quando não vai até o suicídio, essa angústia pode provocar o
desespero e a revolta contra Deus. O desespero toma a forma de um pacto diabólico.” P.
163
“Em todos esses casos os traços cadavéricos não eram reproduzidos para
amedrontar, como um memento mori; recorria-se a eles como a uma fotografia
instantânea e exata do personagem. As caretas que, em nossa opinião de homens de hoje,
desfiguram o rosto do defunto e onde lemos a morte, não impressionavam os
contemporâneos, que nelas viam apenas a realidade viva. Assim, em pleno período
macabro, servia-se da morte exclusivamente para fortalecer a ilusão da vida, confundida
com a semelhança. Como se houvesse dois domínios bem separados: de um lado, o dos
efeitos macabros em que a morte apavorava e, do outro, o dos retratos onde a morte iludia.
Não só não existe relação, como há até mesmo oposição entre a inspiração
macabra e a visão direta e física da morte.” P. 168
“(...) Antes, o morto era exposto e transportado do seu leito à sepultura com o
rosto descoberto. Em seguida, o rosto fica escondido (...) e jamais será exposto, mesmo
se o espetáculo pudesse evocar as emoções que justamente a arte macabra queria suscitar.
Portanto, a partir do século XIII – e sem que tenha havido arrependimento, mesmo na
época macabra – recuava-se diante da visão do cadáver. Escondeu-se o morto à vista, não
só envolvendo-o da cabeça aos pés num sudário cosido, mas também não permitindo que
se adivinhassem as suas formas humanas, fechando-o numa caixa de madeira e
recobrindo-a com uma tapeçaria mortuária.” P. 168
“Os moribundos das artes moriendi não têm os traços alterados. Nem o pintor nem
o escultor quiseram evocar a doença e a morte transparecendo na vida, que, pelo contrário,
fascinavam o poeta. Aceitava-se evocar esses traços no simbolismo das palavras.
Recusava-se mostrá-los no realismo dos fatos.
O que a arte macabra mostrava era precisamente o que não se via, o que se passava
debaixo da terra, o trabalho escondido da decomposição, e não o resultado de uma
observação, mas o produto da imaginação.
Aqui estamos nós, portanto, levados por pinceladas sucessivas a constatar uma
descontinuidade entre a arte macabra e as misérias da vida, ou o medo da morte.” P. 169
“(...) Já não expressa apenas, como antes, o impulso para a vida ultraterrestre, mas
um apego cada vez mais exclusivo a uma vida somente humana.” P. 170
“(...) O amor pela vida manifestou-se por um apego apaixonado pelas coisas, que
resistia ao aniquilamento da morte e que mudou a visão do mundo e da natureza. Inclinou
o homem a dar um valor novo à representação dessas coisas e comunicou-lhe uma espécie
de vida.” P. 174
“(...) As coisas materiais invadiram o mundo abstrato dos símbolos. Cada uma
adquiriu um peso novo, garantia de autonomia. Serão representadas por elas mesmas, não
por intenção de realismo, mas por amor e contemplação. O realismo, as aparências
enganadoras e o ilusionismo serão talvez os efeitos da relação direta que se estabeleceu
entre o objeto e o espectador.” P. 177
“Podemos dizer que, na segunda metade do século XV, os objetos enchiam demais
as cenas de personagens; portanto, foi preciso que eles fossem separados e se
transformassem em temas de pintura por si mesmos. Assim nasceu a natureza morta
propriamente dita.” P. 179
“Na tradição pagã, traziam-se oferendas aos mortos para aplacá-los e impedi-los
de voltar à casa dos vivos. As intervenções dos vivos não se destinavam a melhorar a
estada no mundo atenuado dos infernos.” P. 194
“Os eleitos são inscritos numa lista de espera, e assim se asseguram de que não
serão confundidos no dia o Juízo Final: mas ainda será preciso esperar até esse dia.” P.
198
“(...) Sente-se que a confiança primordial está alterada: o povo de Deus está menos
seguro da misericórdia divina.
O antigo sentimento de confiança, na verdade, não excluía o temor ao diabo.” P.
200
“Mas a maior mudança foi o destino reservado aos nomes dos defuntos. Foram
separados dos nomes dos vivos. Já não aparecem como presos ao interior de uma mesma
genealogia. A morte Pôs as almas dos defuntos numa situação especial que lhes vale esse
lugar à parte.” P. 204-205
“O sentido novo dado ao Memento dos mortos pela liturgia romana fazia de todas
as missas, missas pelos mortos; o que não era o caso no tempo dos dípticos.” P. 206
“Na baixa Idade Média, já não parece tão legítimo nem tão usual perder o controle
de si mesmo para chorar os mortos.” P. 214
“(...) O preto tem dois sentidos: o caráter sombrio da morte, que se desenvolve
com a iconografia macabra, mas principalmente a ritualização mais antiga do luto; a roupa
preta expressa o luto e dispensa a gesticulação mais pessoal e mais dramática.” P. 217
“Desde o último suspiro, o morto não pertence nem aos seus pares, companheiros
ou à família, mas à Igreja”. P. 217
“Por volta do século XII, ao mesmo tempo que a vigília, o luto e o cortejo se
tornaram cerimônias da Igreja, organizadas e dirigidas por homens da Igreja, ocorreu uma
coisa que poderá parecer insignificante, mas que torna manifesta uma mudança profunda
do homem diante da morte: o corpo morto, antes objeto familiar e figura do sono, possui
daí por diante um tal poder que ser torna insuportável à vista. Foi, e por séculos, retirado
aos olhares, escondido numa caixa sob um monumento, onde não é mais visível.” P. 221-
222
“Mas, como vimos, desde o século XII, na cristandade latina (...) a visão do rosto
descoberto do morto se tornou insuportável. Pouco tempo depois da morte e no próprio
local, o corpo do defunto era completamente cosido na mortalha, da cabeça aos pés, de
tal modo que nada do que ele fora ficava à mostra, e em seguida era frequentemente
fechado numa caixa de madeira (...).” p. 223
“A ocultação do corpo aos olhares não foi uma decisão simples. Não traduz uma
vontade de anonimato. Realmente, nos funerais dos grandes senhores, temporais e
espirituais, o corpo escondido no caixão logo foi substituído por sua figura em madeira
ou cera, por vezes exposta sobre um leito de exibição (...), e sempre depositada em cima
do caixão (...). Essa estátua do morto é designada por uma palavra muito significativa:
representação. Para essa representação, os artesãos de imagens procuravam a semelhança
mais exata, e a obtinham (pelo menos no século XV) graças à máscara que tiravam do
defunto imediatamente após a morte. Os rostos das representações tornaram-se máscaras
mortuárias.” P. 224
“Desde o século XVI, pelo menos, a devoção dos peregrinos não se dirige
exclusivamente aos túmulos e relicários onde os restos dos santos estão escondidos ou
guardados dentro dos cofres, mas a uma imagem que os representa no leito de morte,
como se a vida tivesse acabado de deixá-los, dando a ilusão de incorruptibilidade.” P. 225
“Em seguida, o caixão nu tornou-se objeto da mesma recusa que o corpo nu, e foi
preciso, por sua vez, cobri-lo e dissimulá-lo. Durante o cortejo, como antigamente
acontecia com o corpo, o caixão era recoberto com um tecido, pallium ou poële [pano
mortuário].” P. 226
“(...) O adeus dos vivos em torno do túmulo é apagado, se não substituído, por
uma massa de missas e de orações no altar, uma clericalização da morte.” P. 243
“Não existem túmulos sem cadáveres; nem cadáveres sem túmulos.” P. 269
“(...) Enterrar sem ataúde tornou-se equivalente a uma privação de túmulo; (...).”
p. 275
“(...) Para eles [nobres do séculos XVI e XVIII], o túmulo não era o envoltório do
corpo.” P. 276
“Essa dificuldade de separar a sobrevivência sobrenatural do renome adquirido
durante a vida terrestre provém da ausência de barreira entre o mundo do aquém e do
Além. A morte não separava completamente nem abolia totalmente.” P. 286
“Essa lembrança [do morto] não é apenas uma vontade do defunto, é também
solicitada pelos sobreviventes.” P. 306
“A lâmina (lápide) designa a pedra que recobre a tumba e a cova onde o corpo foi
depositado. Portanto, esse tipo de túmulo evoca o enterramento do corpo sob a terra,
diferentemente do ‘ensarcophagement’. Sem dúvida, a lápide raramente coincide com o
lugar exato da cova onde o corpo foi realmente enterrado. Pouco importa. Ela é o sinal
dessa habitação invisível e esse símbolo é o suficiente. Faz parte do lajedo, confunde-se
com o chão, de que é um dos elementos. É então a fronteira dura que separa o mundo de
cima do de baixo.” P. 316
“(...) as tumbas rasas parecem ter relação direta com um emterra,emto sistemático
dos corpos, desde então privados da proteção do sarcófago de pedra, e manifestar também
maior consciência de retorno à terra.” P. 317
“(...) Reconhecerão nesses vivos ‘não vivos’, nesses mortos que veem , o objeto
da primeira e mais antiga liturgia dos funerais, que é uma liturgia dos adormecidos, dos
repousantes, como os sete adormecidos de Éfeso.” P. 320
“(...) São as temáticas de subdivisão do ser: o corpo que a vida abandonou, a alma
durante a sua migração, o bem-aventurado no Paraíso. Sente-se a necessidade, no espaço
inspirador da tumba, de representar simultaneamente esses diferentes momentos. A
pluralidade do ser e a simultaneidade de suas representações são as duas novas
características que dominam a iconografia durante um curto período de crise onde se
supõe haver uma hesitação entre o conceito tradicional do ser em repouse e o da
pluralidade do ser, que finalmente predominará.” P. 333
“Assim , e é isso que se precisa sublinhar com vigor, o orante, mesmo em vida,
não é um homem da terra. É uma figura da eternidade: diante da majestade do Padre
Eterno (...), diante da Virgem com o Menino (...) ou diante do agrupamento de alguns
grandes santos.” P. 338
“(...) Eternidade aqui [com o orante] e lá [com o jazente], mas aqui a ênfase é
posta sobre o dinamismo da salvação, e lá sobre a passividade do repouso.” P. 338
“Enfim, a cena religiosa desapareceu e o orante ficou só, como se tivesse sido
destacado do grupo do qual outrora fazia parte. Em todos os casos, tornou-se sujeito
principal do túmulo. Figura simbólica do morto, sua atitude está associada à própria
morte, quer ela já tendo passado ou quer a esperem e a prevejam.” P. 339
“(...) Os ossos eram destinados aos mais desejados locais de sepultura e aos
monumentos mais solenes, porque os ossos secos eram considerados a parte mais nobre
do corpo, sem dúvida por ser a mais durável.” P. 345
“(...) Reproduzir o rosto do morto foi de início o melhor meio de mantê-lo vivo.”
P. 346
“(...) Os caracteres fundamentais da personalidade estão cada vez mais
concentrados no rosto, a ponto das outras partes do corpo interessarem menos e serem
negligenciadas: já não é necessário representa-las. Assim, o orante ficou reduzido apenas
à cabeça.” P. 350
“O orante nos parece mais próximo da alma imortal. O jazente acaba por ser
identificável com o corpo currptível.” P. 351
“(...) Dizia-se do jazente: ele vive e não vive. Poder-se-ia dizer do orante: está no
céu sem lá estar.” P. 352
“ (...) Não por uma cruz no próprio túmulo ou no túmulo dos seus é, ainda hoje,
um desafio excepcional de militante. As sociedades aparentemente menos religiosas
ainda fazem questão da presença da cruz. Em primeiro lugar porque ela se tornou, por
uma associação de um a dois séculos, o sinal da morte; uma cruz diante de um nome
significa que a pessoa morreu. Em seguida, mesmo entre os menos crentes, a cruz mais
ou menos desligada do seu sentido histórico cristão é obscuramente reconhecida como
sinal de esperança, um símbolo tutelar. Faz-se questão dela, sem saber por que, mas ainda
assim se faz questão. Evoca não o outro mundo, mas alguma outra coisa, secreta,
profunda, indizível, aquém da consciência clara.” P. 364
“Alguns testadores faziam mais questão dos seus quadros do que dos túmulos: (...)
Acontece que a gravura sobre pedra ou metal com extratos do testamento assegurava-lhes
a publicidade das fundações, cujas rendas permitiam a manutenção dos serviços religiosos
para o repouso da alma.” P. 367
“[A alma] é justamente o elemento incorruptível e aéreo que a morte liberou das
pesadas incertezas da terra e que pôde, então, assumir em plena consciência um destino
anteriormente confuso.” P. 378
“Os mortos estão alinhados na sua posição entre os vivos, na fila dos orantes, o
que nada tem de espantoso, pois na antecâmara do mundo sobrenatural que é o lugar dos
orantes, as diferenças entre a vida e a morte já não contam. Contudo, um sinal os
distingue: uma pequena cruz vermelha, quase imperceptível a quem não prestar atenção,
que os mortos trazem na mão ou que está suspensa acima de suas cabeças.” P. 380
“O papel capital do aviso [da morte] se atenua e chega a desaparecer; já não mais
se é avisado.” P. 395
“O doente jaz no leito. Vai morrer muito em breve e, no entanto, nada acontece
de extraordinário, nada que se assemelhe aos grandes dramas que invadem o quarto das
artes moriendi do século XV.” P. 396
“(...) Se ele [Bellarmin] leva em consideração as aflições da agonia, não vê nelas
senão os lados negativos, a destruição da vontade e da consciência, sem mostrar a menor
ternura ou piedade natural pelos restos que a verdadeira vida já abandonou. As imagens
medievais preservavam por mais tempo a liberdade de ser e sua capacidade de dar e
receber nesse corpo que se torna cadáver. Bellarmin é tão duro para o moribundo como
para o ancião.” P. 396
“(...) A arte de morrer é substituída pela arte de viver. Nada acontece no quarto do
moribundo. Tudo, pelo contrário, é distribuído pelo tempo da vida e em cada dia dessa
vida.” P. 398
“(...) Nos tratados de espiritualidade dos séculos XVI e XVII, portanto, não se
cuida mais, ou pelo menos isso não é primordial, de preparar os moribundos para a morte,
mas de ensinar os vivos a meditar sobre ela.” P. 399
“(...) Devemos observar, aqui, que a morte tornou-se, nessa postura nova, o
pretexto para uma meditação metafísica sobre a fragilidade da vida, a fim de não ceder às
suas ilusões. A morte é apenas um meio de viver melhor.” P. 399
“(...) não é o momento da morte que dará à vida passada seu justo valor e que
decidirá seu destino no outro mundo.” P. 399
“(...) a cena da morte nada mais tem da intensidade que ainda persiste com bastante
força entre os autores católicos como Bellarmin. A cerimônia tradicional tornou-se um
rito de civilidade sem valor religioso nem moralidade. ‘Um arrependimento do nosso leito
de morte é como a toalete do cadáver, it is cleanly and civil [é higiênica e civilizada], mas
nada altera por debaixo da pele.’” P. 403
“É evidente que, na vida cotidiana, a morte permanece sendo um momento forte.
Mas admiti-lo é repugnante aos homens da doutrina dos séculos XVI ao XVIII que
tentam, pelo contrário, diminuir-lhe a intensidade.” P. 407
“Um mundo onde a moderação deve reinar toma assim, pouco a pouco, o lugar de
um mundo do excesso, onde se alternam o amor e a renúncia igualmente sem medida.
Nesse mundo novo, a morte já não tem o mesmo poder de pôr tudo em causa pela força
de sua sombra, quando ela começa a se estender. A morte também se submete à lei comum
da medida.” P. 411
“A morte foi então substituída pela mortalidade em geral, quer dizer, o sentimento
da morte, outrora concentrado na realidade histórica de sua hora, ficava, a partir desse
momento, diluído na massa inteira da vida e perdia assim sua intensidade.” P. 416
“(...) Essa vida, de que a morte se afastou a prudente distância, parece-nos menos
amorosa das coisas e dos seres, do que aquela cujo centro era a própria morte.” P. 417
“(...) Essa vontade [de simplificar as coisas da morte] expressa de início, porém
com mais convicção do que no passado, a crença tradicional na fragilidade da vida e na
corrupção dos corpos. Revela, em seguida, um sentimento tenso do nada, que a esperança
do além, todavia sempre afirmada, não consegue afrouxar. Chega afinal a uma espécie de
indiferença pela morte e pelos mortos que significa abandono à natureza benfazeja entre
as elites letras e a negligência esquecida nas massas urbanas. Ao longo dos séculos XVII
e XVIII, um declive leva a sociedade para os abismos do nada.” P. 427
“Isso não significa que não havia saudades, embora nesse século XVII em que se
desmaiava com facilidade, as notícias de morte fossem recebidas muito friamente.” P.
433
“(...) Depois do período de luto, o costume já não tolera manifestações pessoais:
aquele que está por demais aflito para voltar à vida normal, depois do breve prazo
concedido pelo uso, não tem outro recurso senão se retirar ao convento, ao campo, para
fora do mundo onde ele é conhecido. Ritualizado e socializado, o luto nem sempre
representa completamente – pelo menos nas classes superiores e na cidade – o papel de
desabafo que tinha tido. Impessoal e frio, em vez de permitir ao homem expressar o que
sente diante da morte, ele o impede e o paralisa. O luto representa o papel de uma tela
entre o homem e a morte.” P. 433
“(...) A partir do século XVII caberá à sombra cinza e negra, sem corpo, ou à alma
do outro mundo drapeada, e não ao esqueleto, inspirar medo.” P. 435
“Aliás, o esqueleto não precisa aparecer inteiro para representar seu papel. É
desarticulado, apresentado em pedaços, e cada um de seus ossos possui o mesmo valor
simbólico. (...) Suas dimensões e imobilidade fazem deles objetos, entre outros, que não
perturbam o pequeno mundo em equilíbrio do quarto e do estúdio, que poderia ser
destruído pela extravagância do esqueleto animado.” P. 435
“(...) Esse mundo tão amável e tão belo se tornou podre, abalado. A morte que se
esconde em suas pregas e em suas sombras é, pelo contrário, o porto feliz, fora das águas
agitadas e das terras em tremor. A vida e o mundo tomaram o lugar do polo de repulsão,
que os últimos medievais e os primeiros Renascentistas, em conjunto, tinham confiado à
morte. A morte e a vida trocaram seus papéis.” P. 440
“É curioso, e parecerá talvez paradoxal, que a vida tenha deixado de ser tão
desejável, ao mesmo tempo que a morte deixou de parecer tão pontual e tão
impressionante.” P. 441
“Por mais que a alma-retrato continue a subi ao céu em muitos outros túmulos
mais tradicionais, a nova imaginação criadora já não é solicitada para o alto, mas para
baixo. A morte desce.” P. 461
“No século XIX, a medicina abandonará essa crença e esposará a tese, segundo a
qual a morte não existe em si: ela é a separação da alma e do corpo, deformação da vida.
A morte se torna exclusivamente negatividade. Não terá mais sentido fora da doença
caracterizada, designada e catalogada, da qual é a última etapa.” P. 478
“A dissecação se tornara uma arte da moda; um homem rico, curioso das coisas
da natureza, podia ter em sua casa um gabinete privado de anatomia, bem como um
laboratório de química.” P. 487
“Em Nicolas Manuel, a morte não se contenta em designar uma mulher, sua
vítima, aproximando-se dela e levando-a por sua exclusiva vontade; viola-a e mergulha a
mão em seu sexo. A morte já não é o instrumento da necessidade; está animada por um
desejo de fruição, sendo, ao mesmo tempo, morte e volúpia.” P. 491
“Esses pedaços de cadáveres são, contudo, das mesma natureza que as relíquias
santas, perpetuando uma lembrança carnal mais do que provocando e aumentando o
desejo.” P. 500
“No século XIX (e desde o século XVIII), o coração foi substituído mais
comumente pelos cabelos, que dizer, por outro pedaço do corpo, seco e incorruptível
como um osso.” P. 517
“A sociedade dos homens teve grande cuidado em reforçar esses dois pontos
fracos. Fez tudo o que podia para atenuar a violência do amor e a agressividade da morte.”
P. 524
“Sobre esse fundo cerimonial, ocorreu uma primeira mudança no Ocidente cristão,
ou pelo menos em suas elites, em meados da Idade Média. Apareceu um modelo novo: o
da morte de si mesmo. A continuidade da tradição foi rompida. A tradição tinha embotado
a morte para que não houvesse ruptura. Mas, na Idade Média, a morte foi concebida como
fim e resumo de uma vida individual. A antiga continuidade foi substituída por uma soma
de descontinuidades. A dualidade do corpo e da alma começou a se impor no lugar do
homo totus. A sobrevivência da alma, ativa desde o momento da morte, suprimiu a etapa
intermediária do sono, à qual a opinião comum estivera por muito tempo presa. Privado
da alma, o corpo não passava de poeira restituída à natureza.” P. 524 – 525
“No final do século XIX, a morte aparente perdeu seu poder obsessivo, sua
fascinação. Já não se acredita nessa forma de morto-vivo.” P. 537
“Puseram [os médicos do fim do século XIX], nessa rejeição [da morte aparente],
uma paixão que nos surpreende; isso se deu pois o debate sobre a morte aparente punha
em questão a existência de um tempo da morte como um verdadeiro estado misto; eles
não admitiam que pudesse haver uma tal mistura de vida e de morte. Era tudo uma coisa
ou tudo outra. A morte não tinha mais duração do que o ponto geométrico tem densidade
e de espessura. Não passava de uma palavra equívoca da linguagem natural que era
preciso abolir da linguagem unívoca da ciência, para designar a parada da máquina,
simples negatividade. O conceito morte-estado os revoltava.” P. 538
“Para os médicos das outras duas gerações, as dos séculos XVI e XVII e a do
século XVIII, o tempo da morte era, muito pelo contrário, um estado que participava, ao
mesmo tempo, da vida e da morte. A morte não era real e absoluta senão mais tarde, no
momento da decomposição. Eis por que, retardando a decomposição, retardava-se a morte
absoluta. O embalsamento e a conservação permitiam prolongar o tempo da morte-estado,
em que subsistia algo da vida.” P. 538
“O homem de outrora fazia caso da morte; ela era coisa séria, que não se devia
tratar levianamente: um momento forte da vida, grave e temível, mas não temível a ponto
de afastá-la, de fugir dela, de fazer como se não existisse ou de falsificar suas aparências.”
P. 540
“É curioso que esse medo tenha nascido na época em que alguma coisa parece ter
mudado na antiga familiaridade do homem com a morte. A gravidade do sentimento da
morte, que tinha coexistido com a familiaridade, é por sua vez afetada: passa-se a fazer
jogos perversos com a morte, até dormir com ela. Estabeleceu-se uma relação entre a
morte e o sexo; eis por que ela fascina, torna-se obsessiva como o sexo: sinais de uma
angústia fundamental que não encontra nome. Por essa razão, ela fica comprimida no
mundo mais ou menos proibido dos sonhos, dos fantasmas, e não consegue abalar o
mundo antigo e sólido dos ritos e costumes reais. Quando o medo da morte entrou, ficou
de início confinado no lugar em que o amor se manteve tanto tempo ao abrigo e afastado,
e de onde só os poetas, romancistas e artistas ousavam fazê-lo sair: no mundo
imaginário.” P. 542
“Encontra-se, pois, nessa breve descrição mortuária, como um resumo dos dois
aspectos fundamentais da morte romântica: a felicidade e a reunião familiar. Uma é a
evasão, a liberação, a fuga para a imensidade do Além. A outra é a ruptura intolerável que
é preciso compensar por uma reconstituição, no Além, do que foi então dilacerado.” P.
583
“A morte era tão simples e seu triunfo tão discreto nos meios populares de
emigrantes, quanto era pomposa e retórica, mas também sinceramente sentida, nos meios
burgueses.” P. 605
“No final desse processo, já não é o tema da morte (caixão, túmulo) que se quer
ilustrar, nem o da morte de um ser querido; a própria morte foi de certo modo abrandada
e persiste apenas um substituto do corpo, um fragmento incorruptível.” P. 618
“(...) Essa afeição, cultivada e mesmo exaltada, tornava mais dolorosa a separação
da morte e convidava a compensá-la pela lembrança ou por qualquer forma mais ou
menos exata de sobrevida.” P. 631
“O fim do Inferno não quer dizer a morte de Deus. Os românticos foram, em geral,
crentes fervorosos. Mas, como a morte se escondia sob a beleza, o Deus da Bíblia muitas
vezes tomou entre eles a aparência da Natureza. De fato, a morte não é apenas a separação
do outro. É também, de maneira menos comum, abordagem maravilhosa do insondável,
comunhão mística com as fontes do ser, com o infinito cósmico: as imagens da extensão
terrestre ou marinha expressam essa atração.” P. 635
“De modo geral, [o demônio] tem delegação de poderes sobre os mortos: uma
espécie de parentesco se estabelece entre o demônio e os mortos.” P. 640
“Mas, nem a sociedade, nem a arte devem ser separadas da natureza e de sua
beleza imortal. Por essa razão, o cemitério é um parque, um jardim inglês plantado de
árvores. Em compensação, a piedade familiar, as relações entre o defunto e a família e
seus amigos são negligenciadas: o cemitério é apenas a imagem da sociedade pública.”
P. 675
“(...) A natureza, mas não uma natureza qualquer, o campo paterno é feito de
matéria dos mortos, parentes e amigos – ela os reproduz indefinidamente.” 687
“A finalidade de toda essa extravagância é subtrair ao ‘horror do túmulo’ e à
corrupção os restos dos entes queridos e fazer coincidir, num mesmo objeto, a imagem
dos seus traços e a matéria de seus corpos.” P. 693
“(...) Quando Deus morre, o culto dos mortos pode se tornar a única religião
autêntica.” P. 733
“ ‘Para a região Nordeste do Brasil, é a morte que conta e não a vida, já que
praticamente a vida não lhes pertence.’ A posse da morte é ‘o seu direito de escapar um
dia ao constrangimento da miséria e das injustiças da vida.’ A morte lhes restitui a
dignidade.” P. 752
“(...) Ele [o doente] já sabe [que vai morrer]. Mas o reconhecimento público
destruiria a ilusão que ele deseja prolongar ainda por algum tempo, sem o que passaria a
ser tratado como moribundo, e obrigado a se comportar como tal. Essa a razão por que se
cala.” P. 758
“(...) A extrema-unção deixou de ser o sacramento dos moribundos, para ser o dos
mortos!” p. 759
“Ele [Ivan Ilitch], contudo, não se entrega e guarda em segredo seu sofrimento,
com medo, ao mesmo tempo, de inquietar seus familiares e conferir, à coisa que ele sente
crescer dentro dele, mais consistência ao dar-lhe um nome. Do mesmo modo como o
diagnóstico reduz a angústia, a confidência pode aumenta-la.” P. 763
“Assim, dessa vez o aviso viera por acaso, mas sempre haverá um aviso desse
tipo, o isolamento do doente nunca é tão hermético que ele não possa perceber algum
sinal.” P. 764
“(...) O hospital se torna, daí em diante, o único local onde a morte pode
certamente escapar a uma publicidade – ou o que dela resta -, considerada, portanto, uma
inconveniência mórbida. Eis porque o hospital se torna o local da morte solitária: (...)” P.
770
“Foi então que publicou, em 1955, no Encounter, seu famoso artigo: ‘Pornography
of Death’, onde mostrou que a morte se tornara vergonhosa e interdita como o sexo na
era vitoriana, ao qual sucedia. Uma interdição era substituída por outra.” P. 776
“Em primeiro lugar constata que a morte se afastou; não só já não se está presente
à cabeceira do leito de morte, como o enterro cessou de ser um espetáculo familiar: (...)”
P. 776
“Assim, mantêm-se as crianças afastadas; não são informadas ou então lhes dizem
que o pai partiu em viagem, ou ainda que Jesus o levou, Jesus tornou-se uma espécie de
Papai Noel, de que se servem para falar às crianças da morte, sem acreditarem nele.” P.
777
“Mas, em geral, a iniciativa da recusa não cabe à família do morto. Essa, retraindo-
se, afirma a autoridade da sua dor, que não sofre qualquer comparação com a solicitude
das boas relações, e adota o comportamento discreto que a sociedade exige dela.” P. 780
“O luto é uma doença. Aquele que o demonstra prova fraqueza de caráter.” P. 782
“Ora, a apreciação que eles [psicólogos] fazem do luto e do seu papel é exatamente
o oposto daquela da sociedade. Esta considera o luto mórbido, enquanto que, para os
psicólogos, é a repressão do luto que é mórbida e causa morbidez.” P. 783
“Em geral, quando se era infeliz, não se perdia a cabeça por isso. Por um lado,
toda a afeição disponível em cada indivíduo não estava concentrada num pequeno número
de cabeças (o casal e os filhos), distribuía-se antes por um grupo mais extenso de parentes
e amigos. A morte de um, mesmo entre os mais próximos, não destruía toda a avida
afetiva; eram possíveis substituições. Enfim, a morte nunca era a surpresa brutal em que
se transformou no século XIX, antes dos progressos espetaculares da longevidade. Fazia
parte dos riscos diários. Desde a infância esperava-se mais ou menos por ela.” P. 784 –
785
“O hospital já não é, pois, apenas um lugar onde se cura e onde se morre por causa
de um fracasso terapêutico; é o lugar da morte normal, prevista e aceita pelo pessoal
médico.” P. 788
“O tempo da morte pode ser prolongado conforme a vontade do médico: este não
pode suprimir a morte, mas pode regular-lhe a duração, de algumas horas como
antigamente, a alguns dias, semanas, meses ou mesmo anos. Tornou-se realmente
possível retardar o momento fatal; as medidas tomadas para acalmar a dor têm como
efeito secundário prolongar a vida.” P. 789
“(...) Sem dúvida é desejável morrer sem se perceber, mas também convém morrer
sem que os outros o percebam.” P. 791
“(...) a morte má, a morte feia, sem elegância nem delicadeza, a morte
perturbadora. Ela é sempre a morte de um doente que sabe.” P. 792
“Deseja-se melhorar a morte no hospital e fala-se dela de bom grado, mas com a
condição de que ela não saia de lá. Existe, no entanto, uma brecha na fortaleza da
medicalização, por onde a vida e a morte, tão cuidadosamente separadas, poderiam muito
bem se reunir num fluxo de tempestade popular: é a questão da eutanásia e do poder de
interromper ou prolongar os cuidados médicos.” P. 800
“Difundiu-se, então, a ideia de que não havia limite ao poder da técnica, nem no
homem nem na natureza. A técnica corrói o domínio da morte até à ilusão de suprimi-la.
A zona da morte invertida é também a da crença mais forte na eficácia da técnica e de seu
poder de transformar o homem e a natureza.” P. 803
“É muito importante, com efeito, dar a ilusão de vida. Permite ao visitante vencer
sua intolerância, comportar-se em relação a si mesmo e à sua consciência profunda, como
se o morto não estivesse morto e não houvesse qualquer razão para não se aproximar dele.
Ele pôde assim enganar a interdição.” P. 808
“(...) a crença do Mal era necessária para domar a morte. A supressão da primeira
levou a segunda ao estado selvagem.” P. 826
“A morte deve apenas se tornar a saída discreta, mas digna, de um vivo sereno, de
uma sociedade solícita que não esfacela nem perturba demais a ideia de uma passagem
biológica, sem significação, sem esforço nem sofrimento e, finalmente, sem angústia.” P.
827