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Define-se Luto como uma reacção característica a uma perda
significativa.
Nesta definição importa reportarmo-nos aos seus dois componentes
principais:
1) A perda:
• Real – perda de uma pessoa, animal ou objecto querido ou
• Simbólica – perda de um ideal, de uma expectativa, de uma
potencialidade.
2) A reacção característica:
• Processa-se habitualmente por fases características.
!
A perda é uma mudança que inclui um estado de privação de alguém, de
alguma coisa tangível (casa, carro, emprego, …) ou de qualquer coisa intangível
(representações mentais: projecto de vida, esperança de entrar num curso, …),
que põe em marcha reacções afectivas, cognitivas, comportamentais e, em
termos gerais, o processo de luto.
Ao aproximar-se a morte, vários tipos de perda podem ocorrer
constituindo-se em enormes desafios para os doentes moribundos e para as suas
famílias e que, por isso, devem ser diagnosticadas e monitorizadas pelos
profissionais de saúde cometidos na ajuda a essas situações.
Importa avaliar objectivamente as dimensões mais importantes de perda.
Sem uma cuidada avaliação prévia é difícil iniciar um projecto de ajuda
pertinente, ou seja, uma intervenção que vá de encontro às verdadeiras
necessidades do doente e da família, naquele momento.
Não esquecer que o sentimento de luto está relacionado com a natureza
da ligação específica que cada um tem com o objecto perdido.
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Emocional e Psicológica
• Auto- regulação emocional Intelectual
• Auto-imagem • Memória de curto-
prazo
• Esperança, perspectivas de futuro, projectos,
sonhos • Funcionamento
cognitivo (atenção,
• Privacidade e liberdade (vida íntima...) concentração...)
• Papéis quotidianos: cônjuge, progenitor, filho, • Sentimento de
papéis domésticos específicos controlo sobre
dimensões
corporais e
Física pessoais de
PERDAS
• Partes do corpo, corpo funcionamento
ASSOCIADAS
inteiro COM DOENÇA
• Funções corporais TERMINAL
(locomoção,
sexualidade...)
• Sensação de bem-estar
físico, boa saúde
Espiritual
• Sentimento de integridade, coerência e
Social completude
• Vida de família • Sentimento de ambição, de valor pessoal, de
• Vida convivial (amigos...) propósito
• Vida de trabalho • Sentimento de esperança e significado
• Vida civil, política • Sentimento de “estar no mundo” (grounding)
• Comunidade religiosa e/ou controlo/poder (agency)
• Sentimento de confiança numa entidade
divina ou transcendente
Dever-se-á também ter em atenção que uma perda convoca muitas vezes
outras perdas que há que sistematicamente contextualizar (por ex., uma perda
transitória em período de desemprego ou reforma, a ocorrência de uma doença
terminal própria ou de um familiar), pois têm um efeito de acentuar o risco.
A perda de uma pessoa pode também estender-se a outras dimensões da
vida para além da pessoa (perda de intimidade, companhia, segurança, contacto,
estilo de vida, papéis sociais, significado perante o futuro) conduzindo também
ao incremento dos sentimentos de insegurança, medo e ansiedade. Deveremos,
por isso, avaliar sistematicamente as perdas principais ou primárias e todo o tipo
de perdas secundárias.
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Tipos de perda
Interpessoais
Relacionais Materiais
Transacionais
Luto terciário
Luto secundário
Luto
primário
490
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491
provocar uma tensão moderada e transitória seguida de uma aceitação rápida e
bem integrada da inevitabilidade do processo de doença e da morte, em
contraste com reacções a acontecimentos traumáticos como a revelação súbita
de um diagnóstico terminal ou a morte inesperada de uma criança que podem
causar reacções particularmente perturbadoras, exigindo um enorme esforço de
adaptação.
No entanto, ambas as reacções podem passar, com grau de intensidade e
temporalidade diferentes, por fases com características semelhantes.
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492
inúmeros factores de vida do enlutado. Não é um processo linear, com limites
concretos, mas um compósito de fases erráticas, fluidas, sobrepostas, que
variam de pessoa para pessoa e ao longo do tempo.
Este período de transição, sobrecarregado pela perda, em que se vai criar
uma nova relação com o que se perdeu e reintegrá-lo no seu ser e se vai
aprender como viver num mundo sob um conjunto novo de condições, não se
poderá reduzir a uma mera listagem de reacções. A formulação em termos de
fases, que a seguir desenvolveremos, tem, por isso, um mero objectivo
heurístico. As fases significam aqui orientações genéricas que, repetimos, não
pretendem prescrever onde obrigatoriamente o enlutado “deve” passar durante
um processo de luto.
I. Choque/Negação – Evitamento
• Estado de choque/Embotamento afectivo/Entorpecimento
• Incredulidade/Negação/Dissociação
• Procura
II. Desorganização/Desespero – Consciencialização
• Problemas afectivos • Problemas existenciais/espirituais
− Dor emocional − Desespero (transitório)
• Choro − Perda de finalidade, de propósito
• Tristeza, desgosto − Ausência de desejo de continuar a
• Depressão viver
• Anedónia • Problemas comportamentais
• Ansiedade, inquietação − Conduta alterada
• Disforia − Desejo intenso de retorno do
• Tensão, agitação falecido
− Culpa, Remorso − Ruptura de actividade
− Irritabilidade, protesto, ressentimento, − Isolamento, intensa solidão
cólera (falecido, família, amigos, • Problemas somáticos
prestadores de cuidados) − Cefaleias
• Problemas cognitivos − Problemas digestivos
− Preocupações e recordações recorrentes − Dispneia, suspiros
− Medo de enlouquecer, de não se adaptar, − Aperto no peito
de entrar em colapso − Palpitações
− Reexperiências de memória − Visão desfocada
− Sentimento de “presença” do falecido − Dores musculares
− Dificuldade de concentração − Nó na garganta, boca seca
− Défice cognitivo e de memória a curto − Doenças infecciosas
prazo − Fadiga, lassidão, falta de energia
493
Na primeira fase, o choque, entorpecimento e negação iniciais podem
alternar com intensa dor mental e lamentações.
A segunda fase, também designada por luto agudo, inclui estados
afectivos intensos sobrevindo sobre a forma de ondas periódicas de desconforto
emocional ou físico, mas é, muitas vezes, também acompanhado de isolamento
social e de preocupações recorrentes sobre vários aspectos do falecido e até de
identificação com ele.
Os sentimentos de remorso e culpa às vezes aparecem isoladamente,
outras na sequência de reacções de irritabilidade exagerada ou projectada. Estes
sentimentos podem ter também variadas determinações:
- Culpa do sobrevivente, sobretudo quando há um desígnio de
responsabilidade (condutor do carro acidentado).
- Culpa por alívio (na sequência de um esforço sobre-humano e
preocupações dispendidas) mas que pode aparecer sob a forma da
pessoa ter contribuído (de uma maneira ou outra) para a morte ou
sofrimento do falecido
- Culpa por “transgressões”, manifestando-se por auto-acusações
(irracionais ou aparentemente exageradas) sobre uma série de actos ou
omissões (apoio não adequado ou não persistente, falha em prevenir
certos acontecimentos, insuficiente pressão sobre profissionais de
saúde para diagnóstico ou tratamento atempado da doença, …)
494
- Protecção de si próprio “retirando-se” afectivamente do doente e
reconhecendo ao mesmo tempo que precisa de maior proximidade e
vinculação;
- Exaustão não só pela expectativa da morte mas por ter de tomar decisões
e de completar tarefas pesadas relacionadas com todo o processo;
- Sentir-se inundado de sentimentos e, às vezes, expressão de raiva para
com o doente (doente responsável pela sua doença, directamente ou por
negligência, doente agressivo para com a família, velhos conflitos ou
aspectos não resolvidos agora reactualizados), cuidadores e outros
membros da família;
- Desacordo sobre o tratamento ou cuidado ao doente (determinando ou
atraso ou evitamento de decisões importantes pela incapacidade de
concordância aceitável).
No âmbito dos cuidados paliativos, mas não só, podem-se designar diferentes
tipos de luto normais:
− Luto preparatório – O que o doente terminal faz para se preparar para a
separação com este mundo (Kübler-Ross, 1969): ruminação sobre o
passado, “retirada” afectiva de familiares/amigos e períodos de tristeza,
dor e ansiedade (variação).
495
− Luto antecipatório – O processo pelo qual os sobreviventes (familiares,
amigos) assumem o papel de enlutados e começam a elaborar as
mudanças emocionais associadas com a morte previsível de outrem.
Este trabalho poderá mitigar a intensidade da reacção ao luto depois da
morte, deixando o sobrevivente menos vulnerável a reacções não
adaptativas.
− Luto prematuro – Processo pelo qual os sobreviventes (familiares e
amigos) iniciam mudanças emocionais e sociais num momento precoce
em relação à possibilidade de morte (Síndrome de Lázaro). Este trabalho
antecipatório pode determinar sentimentos de culpa (por ex., por
abandono), habitualmente de curta duração no contexto da
”ressuscitação”.
− Luto latente – Reacções que surgem muito tempo depois da perda (pelo
que é designado também de tardio) e que parte da consideração de que
um processo de luto nunca acaba verdadeiramente, deixando sempre uma
marca indelével na pessoa e que se pode reactivar em qualquer altura ou
no contexto de perdas significativas.
"
Normal Complicado
(Psico)Patológico
496
Na vida e na prática clínica nem sempre podemos delimitar uma
separação bem definida entre estas várias formas de luto, pelo que no seguinte
esquema os vários tipos de luto se entrecruzam.
Luto complicado
Tipo Relação Auto-imagem Intervenção
Traumático Não esperada Traumatizada Integridade
Inibido Ambivalente Paralisada Aceitação
Crónico Dependente Desamparada Autonomia
Exagerado Insegura Inquietude Contenção
Indizível Inaceitável Desvalorizada Confidência
497
ou negando os segundos. Por ex., no caso clínico descrito de relação
ambivalente da mulher com o marido alcoólico, agressor violento, verificou-se
que, por morte brusca do marido, a viúva só exprimia sentimentos positivos
enaltecendo sistematicamente todas as suas qualidades e não deixando
expressar, reprimindo mesmo severamente, a menção a aspectos negativos
(alcoolismo, desrespeito, agressão) do marido face a ela e aos filhos.
O processo de luto fica, portanto, inibido, não pode avançar. Só depois de
serem admitidos esses aspectos negativos e devidamente relativizados com os
aspectos positivos será possível fazer uma integração harmónica do objecto
perdido, deixando, assim, espaço mental disponível para novos investimentos.
4) Luto exagerado
498
Importa, por isso, identificar precocemente alguns aspectos que indiquem
que um processo de luto está a tornar-se complicado.
Para além dos quadros anteriormente descritos apresentam-se alguns
critérios genéricos para identificar situações de luto complicado.
Existencial/Espiritual
Afectivo Comportamental
Luto
complicado
Cognitivo
Físico/Vincular
Social
Critérios afectivos
Critérios cognitivos
499
Critérios físicos/vinculares
Critérios comportamentais
Critérios sociais
13. Postura “demasiado independente”: evita relacionamentos ou sabota os já
existentes (mantém distância física, isolamento emocional, comentários
críticos e cruéis);
14. Incapacidade persistente de confiar nos outros, dolorosamente
consciente de que não conseguirá ultrapassar a situação;
15. Sentimento de solidão e vazio, dificuldade de imaginar uma vida plena
sem o falecido;
Critérios existenciais/espirituais
16. Sentimento de vida vazia, sem significado e sem rumo para o futuro;
17. Sentimentos penosos de futilidade, perda franca de interesse nas
actividades pessoais (sente que parte de si próprio morreu);
18. Visão atormentada do mundo (falta de sentimento de confiança/segurança/
controlo).
500
* + , -.
Luto (psico)patológico
501
Partindo do modelo de Horowitz (1993) evidenciam-se no seguinte
quadro alguns aspectos do processo de luto cuja não transformação pode
conduzir a cristalizações sob a forma de quadros clínicos psiquiátricos.
, %
A maioria das reacções à perda evolui sob a forma de luto normal mas
algumas situações podem ter um desenvolvimento sindromático depressivo que
502
importa detectar precocemente porque pode exigir intervenção específica
precoce.
503
Em situações de fim de vida é muitas vezes difícil distinguir entre
processos normais e patológicos já que podem exibir sintomas comuns. Neste
contexto será importante diagnosticar diferencialmente um luto preparatório e
um processo normal de morrer de processos já patológicos de depressão ou de
resposta a um deficiente controlo de sintomas físicos.
Ausente Presente
Sofrimento resolvido
• Humor muda (aumenta e diminui) com o
tempo Avaliação de: anedónia, disforia
• Auto-estima normal persistente, auto-imagem perturbada,
• Pensamentos ocasionais de suicídio desesperança, avaliação negativa de si próprio,
• Preocupações sobre separação de pensamentos ruminativos sobre morte e suicídio,
pessoas queridas desejo de apressar a morte
Luto preparatório
Depressão
Aconselhamento psicossocial *Doentes em elevado risco de
Terapia de luto em casos graves depressão:
• Depressão ou história familiar de
O doente responde Sem resposta depressão
• Outras doenças psiquiátricas ou
Continuação da terapia
Reconsiderar depressão* tentativas de suicídio
necessária • AVC hemisfério esquerdo, cancro
Despiste periódico de pancreático
depressão • Corticoesteróides ou benzodiazepinas
504
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2 )
2 .
O risco de vir a desenvolver um luto complicado/prolongado depende do
grau de susceptibilidade que tem o enlutado para superar todo o tipo de
problemas relacionados com as perdas primárias e secundárias. Para além do
505
diagnóstico precoce de situações de luto complicado ou (psico)patológico com
vista ao desenvolvimento de estratégias de ajuda específicas, será muito
importante prevenir a sua ocorrência pelo que devemos ter presente indicadores
de factores de vulnerabilidade/risco no processo de luto a serem
sistematicamente avaliados pelas equipas de saúde.
Modo de Morte
Morte súbita ou inesperada
Mortes múltiplas (particularmente catastróficas)
Mortes violentas (acidentes, suicídio, homicídio, …)
Morte incerta (não aparecimento do corpo, …)
Morte estigmatizante (SIDA, suicídio,...)
Mortes em que a pessoa se sente responsável
Mortes em que os outros são vistos como responsáveis
Morte privada de direito (que não pode ser conhecida ou expressada)
Pessoais
• Antecedentes Relacionais
psicopatológicos • Relação ambivalente
• Tentativas de suicídio • Relação de dependência
prévias • Vinculação insegura ou
• Perda precoce dos pais dependente dos pais da
• Lutos anteriores não infância
resolvidos • Relação exclusiva
• Juventude do falecido
ou do enlutado (fases de PREDITORES DE
transição) RISCO DE
• Reacções muito COMPLICAÇÕES Recordação dolorosa do
intensas/excessivas de NO PROCESSO processo de cuidados de
amargura e raiva DE RESOLUÇÃO saúde:
• Expressão reduzida de DO LUTO • Falta de controlo dos
sentimentos (ADULTOS) sintomas
• Sentimentos de culpa • Dificuldades diagnósticas
(acontecimentos do Relações disfuncionais com
passado ou abandono os profissionais de saúde
de cuidados) • Percepção de que a morte
• Baixa tolerância ao podia ter sido evitada
stress ou incapacidade • Morte associada a
para enfrentar o stress encarniçamento terapêutico
• Baixa auto-estima
Sociais
• Nível socioeconómico baixo
• Presença de crianças (<14 anos) em casa
• Projectos truncados
• Assuntos pendentes
• Falta de apoio socio-familiar (família ausente ou vista como não
fornecedora de apoio e/ou incapaz de conter e de ajudar, crises
familiares não resolvidas, …)
• Isolamento social
• Incapacidade de realizar rituais religiosos adequados
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Poderemos, numa outra forma esquematizar, a avaliação dos factores de
risco de luto complicado na área dos cuidados paliativos em seis dimensões
fundamentais:
Luto complicado
Em síntese:
Factores de risco de luto complicado (adultos)
Circunstâncias da perda
• Abruptamente dentro do ciclo de vida/”prematuro” (ex. morte de criança)
• Súbita e inesperada “não antecipada”(ex. morte por neutropenia séptica durante
quimioterapia)
• Traumática (ex. caquexia, debilidade, desfiguramento e choque)
• Estigmatizada (ex. SIDA, suicídio, homicídio)
• Prolongada com grande sofrimento (ultrapassando as capacidades de adaptação dos
familiares)
507
Vulnerabilidade pessoal
• História pessoal e/ou familiar de perturbação psiquiátrica (ex. depressão clínica,
alcoolismo, toxicodependência)
• Personalidade/estilo de coping/Locus Controle (ex. baixa auto-estima, pessimismo, LC
externo)
• Estilo de vinculação (ex. inseguro, evitante)
• Experiência acumulada de perdas “não resolvidas” (ex. infidelidade, divórcio, aborto)
• Má adaptação inicial à perda (ex. sofrimento emocional insuportável, culpa acentuada)
Natureza da relação com o falecido
• Excessivamente dependente (ex. relação de segurança)
• Ambivalente (ex. irritado e inseguro com problemas de alcoolismo, infidelidade, jogo)
• Exclusivista
Apoio familiar e social
• Disfunção familiar (ex. má comunicação e coesão, elevado conflito)
• Isolamento (ex. novos migrantes, recente mudança de residência)
• Alienação (ex. percepção de fraco apoio social, dificuldade de encontro com familiares
e amigos, ausência de pessoas de confiança, pessoas sentidas como antagónicas ou
pouco amistosas)
• Projectos truncados (ex. assuntos pendentes, não possibilidade de realização de rituais
religiosos ou outros)
Insatisfação com os cuidados de saúde
• Falta de controlo dos sintomas/sofrimento intenso antes da morte
• Dificuldades diagnósticas
• Percepção de que a morte poderia ter sido evitada
• Morte associada a encarniçamento terapêutico
• Relações disfuncionais com os profissionais de saúde
508
b. Para diferenciar luto normal e complicado
− Inventory of Complicated Grief – ICG (Prigerson, 1995);
− Inventory of Complicated Grief Revised – ICGR (Prigerson, 2001);
− Questionário sobre o luto (Prigerson, 2004). Validação portuguesa
2010.
c. Para identificar risco de luto complicado
− Bereavement Risk Index – BRI (Parkes and Weiss, 1983) .
2" ) 0 '
Numa perspectiva de apoio à família, um dos pilares da filosofia dos
cuidados paliativos, é muito importante que se ajude a família a compreender a
doença, o seu tratamento, o que irá influenciar decisivamente o seu ajustamento
futuro.
A forma como uma família vive a perda e como cada um dos seus
membros continuam a relacionar-se uns com os outros é um factor crucial para
um a adaptação saudável à perda.
Num luto antecipatório de uma família em relação a um dos seus
membros em período terminal de vida, desenvolve-se habitualmente um
ambiente de conforto mútuo e de estreitamento de intimidade à medida que a
doença avança, em que a família é cada vez mais chamada a participar nos
cuidados pela equipa de saúde. Apesar das pressões do quotidiano e das muitas
dificuldades encontradas a resiliência familiar permite quase sempre reencontrar
momentos de contentamento e felicidade. O envolvimento mútuo nos cuidados
potencia a coesão da família na medida em que os vários membros vão
partilhando, através de uma comunicação fluida e aberta, medos, esperanças,
alegrias, mas também momentos de mal-estar e ansiedade perante o confronto
com as necessidades sempre renovadas do familiar doente.
509
Como vimos, a maior parte das famílias tem uma suficiente resiliência,
não necessita de apoios substantivos para chegar a uma adaptação razoável à
perda, mas outras famílias podem apresentar características preditivas de um
alto risco de morbilidade depois da perda e deverão ser, por isso, alvo
preferencial de intervenções preventivas. Efectivamente, em períodos precoces
de luto, estas famílias descompensam pela deterioração do seu funcionamento
em três dimensões fundamentais: coesão, falha na comunicação e aumento do
conflito.
Resumiremos as principais características destas várias dimensões
consoante uma tipologia de famílias adaptada de Kissane (1996).
510
511
3 4 .
3 &5 ! 5 $%
Perante estas situações de luto complicado ou (psico)patológico, não se
deve simplificar ou adiar a necessidade de intervenção especializada. Na
realidade ao se normalizarem e validarem incorrectamente (por.ex., o tempo
cura tudo...) reacções à perda (como se deve fazer no luto normal), pode-se
estar a adiar o processo de luto com consequências físicas e psicológicas
negativas.
Deve-se, por isso, resistir a oferecer, nesses casos, soluções simplistas
para problemas complexos. Por exemplo, prescrever unicamente psicotropos
para aliviar sintomas desgastantes (tristeza, insónia, ansiedade) sem investigar
de uma forma global os vários factores (psicológicos, físicos, sociais e
espirituais) associados aquele específico processo de luto. A medicação pode
encobrir ou aliviar temporariamente os sintomas de um luto não resolvido, mas
não consegue aliviar a dor individual da perda. Pode, no entanto, ser utilizada
transitoriamente quando a ansiedade e a depressão (ou outros sintomas) estão a
interferir significativamente com as actividades quotidianas ou com a
capacidade para negociar o processo de luto.
Os resultados de várias revisões sistemáticas (Forte, 2004) indicam que a
maior parte das pessoas em luto não precisam de um acompanhamento
psicológico profissional, que até, segundo nalguns estudos, se veio a revelar
prejudicial. As intervenções em adultos em risco deverão ser dirigidas aos lutos
complicados e são descritas como eficazes pelo menos a curto prazo, quer com
terapêuticas de orientação psicodinâmica quer cognitivo-comportamental. Os
resultados foram melhores quando o próprio enlutado pediu ajuda e a
intervenção terapêutica começou poucos meses após a perda.
3" 6 ! '(
Perante uma perda significativa, o processo de luto é necessário e cumpre
uma função de adaptação, permitindo que o indivíduo restabeleça o equilíbrio
desfeito depois da perda e faz-se por movimentos oscilatórios entre três pólos (3
A’s).
512
Aquisição de significado
Tarefas
do
Luto
(3 A’s)
3* 7# 5 ! '(
O Modelo de Tripla Integração do processo de luto por nós proposto
passa pelo cumprimento três objectivos fundamentais (3 I’s).
513
Identidade
Redescoberta de sentido
Modelo
de
tripla Integração
(3 I’s)
Interiorização Investimento
Reposicionamento do objecto Redefinição de tarefas
514
- Ressocialização/novos papéis sociais/actividades/disponibilidade para
novas relações;
- Reajustamento ao novo mundo sem esperar pelo antigo;
- Reabilitação do “self exterior”/Eu conectado.
32 ! 8 0 ! '(
Com vista às necessidades de trabalho do luto em direcção às três tarefas
e objectivos antes definidos será necessário desenvolver várias abordagens (3
R’s).
Reconectar
Abordagem
3 R’s
Revisitar Reintegrar
515
Através do reconectar verificam-se possibilidades de encontrar objectivos
de vida viáveis e o reajustar-se a funcionamentos adaptativos no novo mundo
sem esquecer o antigo, adoptando novas formas de estar no mundo.
O reintegrar implica um processo paulatino de acomodação, integração
de novos significados integradores e desenvolvimento criativo de uma nova
identidade.
Revisitar
- Não esperar reacções idênticas de luto em pessoas diferentes.
- Explicar variações na expressão do luto nos diferentes familiares.
- Não comparar tragédias.
- Reconhecer o comportamento "normal" de uma pessoa em luto.
- Facilitar a identificação de sentimentos de irritação, raiva e culpa.
- Validar, "normalizar" as emoções intensas.
- Explicar que se sentirá pior antes de melhorar.
- Identificar a forma como lidou com outras perdas.
- Ajudar a actualizar a perda permitindo a repetição da "história" tantas vezes quanto
necessário.
- Evitar frases triviais como:
- "Todos temos de morrer um dia“;
- "As coisas vão melhorar ";
- “És muito jovem podes refazer a tua vida";
- “São jovens podem ter outro filho“.
- Não temer revelar adequadamente os seus próprios sentimentos.
Reconectar
- Facilitar o funcionamento são.
- Lembrar tarefas de autocuidado.
- Facilitar o estabelecimento de novas relações com outras pessoas.
- Ajudar a explorar o lado positivo de criar novos laços sem se sentir culpado.
Reintegrar
- Ajudar a restaurar a confiança em si: tomando decisões, aprendendo coisas novas,
manejando problemas diários...
- Identificar as modificações no meio e aprender a sobreviver num mundo diferente:
novas rotinas, novos papéis e capacidades.
- Ajudar a lidar e resolver relações alteradas.
516
33 ( 8 ! ( 9 #&6# :
Perante a questão “Quando acaba o luto?” podemos responder de uma
forma muito genérica, quando:
- Passaram as 3 fases
- Se cumpriram as 3 tarefas do luto
- Se realizaram os 3 objectivos
e, portanto, quando através das várias abordagens o EU se capacitou, conectou
ficou congruente.
( 8 !
517
Neste luto “pacífico”, apesar da integração, não se esquece a pessoa nem
se deixa de sentir a sua falta com tristeza. A perda torna-se integrada na
memória auto-biográfica e os pensamentos e as memórias sobre o falecido não
são preocupantes ou perturbadoras de outras actividades que passam agora a
ocupar progressivamente mais tempo do que as relacionadas com o falecido. A
memória do falecido está acessível e é cada vez mais positiva, a intensidade das
respostas emocionais vai diminuindo assim como a recorrência de pensamentos
com o falecido, apesar de sobrevirem picos de recordações, sobretudo em
períodos sensíveis (aniversários, outras ocasiões especiais).
“Faz dois anos que nos deixaste mas continuas sempre na nossa família. Falamos de
ti quando vamos para lugares de que gostamos. Pensamos em ti quando temos
sucessos. Lembrámo-nos de ti quando tivémos uma multa. Eras e serás sempre uma
pessoa muito especial para todos nós. Fazes-nos falta. É verdade! Sentimo-nos
tristes por não partilharmos contigo muitos assuntos mas temos o gosto de ter feito
coisas importantes. Mesmo sentindo a tua falta continuamos a fazer as coisas com
prazer. Também discutimos e às vezes zangamo-nos mas fazemos as pazes como tu
fazias. A tua presença continua muito próxima …”
518
; 4 )
; ! 5 $%
A intervenção profissional em pessoas enlutadas deverá basear-se em três
níveis:
Aconselhamento
Tipos
de intervenção
Apoio Terapêutica
Prevenção Psicológica - Luto complicado
Psiquiátrica – Luto patológico
519
;" #& ! '( 0 #( ! ! ' 5
;" 0 !
520
;"" # ( !
Tanto nas unidades como nas equipas de suporte devem ser, também,
definidas políticas, normas e procedimentos diferenciados para o
acompanhamento posterior de famílias ou indivíduos em risco de desenvolver
luto complicado e que podem assumir a forma de avaliações subjectivas ou
objectivas de situações de luto (escalas) e definição do tipo de seguimentos:
- Sistemático (todos os enlutados ao fim de 1, 3, 6, 12 meses);
- Pontual através de referenciação médica, de enfermagem ou social e;
- Formas especializadas de encaminhamento individual ou familiar.
521
;* $% 0 # '
Suportar o impacto
Contenção Evitar “actuação”
emocional
Antes de actuar
522
;*" ' $% ! 7(!
Centrada
no doente
Aceitação incondicional
Relação de
ajuda
Mutualidade de ressonâncias
Criação
cooperativa
523
- Respeito caloroso (afectividade compassiva, envolvimento humano,
carinho, sorriso e toque caloroso).
- Autenticidade (espontaneidade, sinceridade e respeito).
- Mutualidade de ressonâncias (transacção de experiências,
pensamentos – ressaltar a afinidade entre duas pessoas).
;2 ! 8 >( #
Perante uma situação de perda desencadeia-se um processo de luto que
representa um conjunto de mudanças psicológicas e psicossociais, (conjunto de
emoções, representações mentais e comportamentos), através das quais se
elabora internamente a perda.
A alternância de ansiedades, afectos, sentimentos, pensamentos e
comportamentos, às vezes contraditórios, relacionados com o objecto perdido
(marcados por ambivalência, culpa, dependência, …) ao serem contidos iniciam
uma série de processos psicológicos.
;2 ' $% ! '(
524
' $% ! '(
525
;2" ! 8 # >( # #&6#
Modelo da terapia
Autores Indicações
de luto
• Suportiva • Terapia de grupo de apoio • Evitamento de
expressiva expressivo (Spiegel, 1991) expressão emocional
(individual ou • Terapia de grupo psicossocial • Isolamento,
grupal) (Fawzy, 1990) necessidade de apoio
• Trabalho de • Perturbação psiquiátrica
intervenção de (depressão, …)
crise
526
? ) @
527
• O trabalho profissional no luto não impede de cumprir os seus compromissos
afectivos e familiares (“adictos do trabalho”).
• Necessidades afectivas básicas preenchidas pelas relações com próximos,
familiares ou com a rede social.
• Possuir conhecimento dos processos de luto e das respostas e ritos sociais perante
luto.
• Ter feito uma elaboração suficiente dos seus próprios lutos.
• Suficiente experiência de vida para poder relativizar as suas próprias experiências
e crenças e as do enlutado.
• Fazer, se possível, supervisões ou tutorizações, individuais ou em grupo (de
reflexão – Balint –, de supervisão), para elaborar as dúvidas, conflitos e
ambivalências decorrentes do acompanhamento em que está envolvido.
?" 5 $% ! B ( % 6 ! A!
Uma nota final vai para a sensibilização dos profissionais de saúde das
unidades e equipas de suporte em cuidados paliativos para os seus próprios
processos de luto perante a perda de doentes e o apoio ao processo de luto das
respectivas famílias.
Este tipo de cuidados, se não forem atendidas algumas condições de
prevenção de burnout, podem conduzir a formas de saturação profissional com
implicações físicas e/ou psicossociais graves, sobretudo porque os profissionais
de saúde:
- Dedicam habitualmente pouco tempo para elaborar as perdas e muitos
lutos não resolvidos podem resultar em burnout;
- Têm tendência a desdramatizar a morte;
- Não utilizam sistematicamente formas individualizadas de se
despedirem dos doentes e das famílias, introduzindo a nível individual
ou da equipa/ unidade rituais de despedida,
- Não estabelecem organizada e atempadamente formas de partilhar
responsabilidades na equipa;
- Não avaliam como influem as perdas pessoais no trabalho e vice-
versa;
- Não se consciencializam dos seus limites;
- Não questionam reflexivamente o seu papel de cuidadores e a suas
contra-atitudes partilhando-as com a equipa.
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Soluções: 1.a); 2.c); 3.b)
. )
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