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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ANDRESSA MARZANI

LITERATURA E POLÍTICA: SÃO BERNARDO E AS DISCUSSÕES DA


DÉCADA DE 1930 NO BRASIL

CURITIBA
2010
2

ANDRESSA MARZANI

LITERATURA E POLÍTICA: SÃO BERNARDO E AS DISCUSSÕES DA


DÉCADA DE 1930 NO BRASIL

Monografia apresentada à disciplina de Estágio


Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito
parcial para a conclusão do Curso de História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. José Roberto Braga Portella.

CURITIBA
2010
3

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao apoio, compreensão e carinho recebido de minha família, em


especial minha mãe, que de diversos modos me auxiliou ao longo deste e de outros caminhos.
Agradeço também aos amigos que de uma forma ou de outra o curso me permitiu conhecer, pelas
ajudas, desabafos ou simples conversas jogadas fora; e ao Carl pelo apoio, carinho e paciência em
esperar “mais um dia”, enquanto eu escrevia o trabalho. Agradeço ainda à paciente orientação do
Prof. Dr. José Roberto, ao Departamento de História (e também ao Serginho e a Fernanda) e
demais professores que de algum modo contribuíram para meu aprendizado.
4

RESUMO
A utilização de obras da literatura brasileira em estudos historiográficos sobre o país parte do
pressuposto de que a literatura auxilia na compreensão de alguns aspectos de determinado
período, não apenas os relacionados ao campo cultural, mas também a outros campos de ação,
como o social e o político. Nesse sentido, o presente trabalho buscou analisar as representações
da realidade brasileira presentes no romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. A obra,
publicada em um período de transformações advindas com a ascensão de Getúlio Vargas ao
poder e posterior implantação do Estado Novo, permite repensar os debates do período,
principalmente aquelas ligadas ao universo político, marcado por uma efervescência de projetos e
opções para o país; bem como a relação diferenciada entre intelectuais e discussões políticas.
Para tanto, este estudo partiu das discussões metodológicas sobre a relação entre História e
Literatura, propostas por diversos autores, como Dominick Lacapra, utilizando-se também da
conceituação proposta por Roger Chartier sobre as representações do real e os debates sobre os
discursos introduzidos por Michel Foucault.

Palavras-chave: Literatura brasileira; Revolução de 30; projetos políticos.

ABSTRACT
The use of works of Brazilian literature in studies of history about the country assumes that
literature helps to understanding some aspects of a determined period, not just those related to the
cultural field but also to other fields of action, as the social and political. In that way, this paper
investigates the representations of the Brazilian reality present in the novel São Bernardo (1934),
of Graciliano Ramos. The work, published in a period of changes caused by the rise of Getulio
Vargas to power and posterior implantation of the Estado Novo, allows rethink the debates of the
period, especially those related to the political world, marked by an effervescence of projects and
options for the country; as well as the different relationship between intellectuals and political
discussions. Therefore, this study left from methodological discussions on the relationship
between history and literature, proposed by several authors, alike Dominick Lacapra, also using
5

the conceptualization proposed by Roger Chartier on the representations of the real and the
debates about speeches introduced by Michel Foucault.

Keywords: Brazilian literature; Revolution of 1930; political projects.


6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................................7

CAPÍTULO I – CONTEXTUALIZAÇÃO
1.1 CRISE NOS ANOS 1920................................................................................................10
1.2 O MOVIMENTO DE OUTUBRO DE 1930..................................................................13
1.3 GETÚLIO VARGAS ASCENDE AO PODER
1.3.1 O Governo Provisório..................................................................................................15
1.3.2 A Revolução Constitucionalista de 1932.....................................................................16
1.3.3 O período democrático (1934-1937)............................................................................17
1.4 O ESTADO NOVO........................................................................................................18
1.4.1 O levante integralista...................................................................................................21
1.4.2 Iniciativas nos campos econômico, político e social...................................................21
1.5 POLÍTICA E PRODUÇÃO CULTURAL.....................................................................24
1.5.1 O Modernismo e o romance de 1930..........................................................................25
1.5.2 As relações entre intelectualidade e política...............................................................28

CAPÍTULO II – A LITERATURA ENQUANTO FONTE HISTÓRICA


2.1 AS RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA..................30
2.1.1 Especificidades dos campos e formas narrativas.........................................................30
2.2 UTILIZAÇÃO DE FONTES LITERÁRIAS EM HISTÓRIA.......................................35
2.2.1 Especificidade do romance..........................................................................................36
2.2.2 Imaginário e representações........................................................................................37
2.2.3 O autor.........................................................................................................................40

CAPÍTULO III – ANÁLISE DE SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS


3.1 O AUTOR EM SEU TEMPO HISTÓRICO E LITERÁRIO........................................42
3.2 A OBRA
3.2.1 A história de Paulo Honório........................................................................................43
3.2.2 O livro dentro de um livro...........................................................................................49
3.2.3 A representação das realidades regional e nacional.....................................................50
3.2.4 Reflexões políticas na obra..........................................................................................53
3.2.5 A crise do indivíduo.....................................................................................................58

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................60

FONTES................................................................................................................................62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................63
7

INTRODUÇÃO

O Movimento Modernista, iniciado no Brasil com a Semana da Arte Moderna de 1922,


trouxe para o campo das letras e das artes uma renovação em termos estéticos e temáticos, em um
sentido de modernização, em consonância com o que já ocorria em outras partes do mundo. Esse
movimento foi marcado desde seus primórdios pelas discussões acerca da nacionalidade
brasileira. Segundo Daniel Pécaut1, o problema da identidade nacional figurava como um dos
principais pontos de preocupação dos debates intelectuais da época. A intelectualidade, de um
modo geral, se debatia em questões referentes ao conhecimento do que viria a ser a realidade
brasileira, em seus aspectos socioeconômicos e culturais; à busca do ser brasileiro, das
verdadeiras expressões culturais nacionais. A Segunda Geração Modernista, que abarca as
produções do período entre 1930 e 1945, elevou ao ápice esse mote. Seus principais nomes e
obras apresentavam como característica o desejo de pesquisa e conhecimento da realidade
brasileira em seus diversos aspectos, visíveis principalmente na escolha das temáticas, voltadas
principalmente para a denúncia dos problemas sociais e filosóficos de seu tempo. O campo da
literatura, e em especial do romance, ganhou destaque nesse período, com publicações de grande
alcance.
Nesse ínterim, a temática regionalista nordestina se destacou. Apesar das outras temáticas
existentes no período, as histórias que retratavam os problemas da região Nordeste, como a seca,
o declínio das grandes propriedades rurais locais e a religiosidade popular, predominaram. Um
dos autores de maior destaque desse período foi o alagoano Graciliano Ramos. Escritor de
diversas obras cujas temáticas estavam relacionadas, de uma forma ou de outra, aos problemas de
sua região e aos problemas nacionais, Graciliano tornou-se, segundo Érico Veríssimo, um dos
“mais sólidos e profundos”2 escritores de seu tempo. Além da preocupação temática, suas obras
são marcadas pela utilização de uma linguagem moderna e econômica, que concilia o rigor

1
PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação;
trad. Maria Júlia Goldwaser. São Paulo: Ática, 1990. pp. 19-96.
2
VERÍSSIMO, Erico. Breve história da literatura brasileira; trad. e ensaio crítico de Maria da Glória Bordini. São
Paulo: Globo, 1995. p. 145.
8

erudito da escrita a uma fala próxima do popular, em um exercício de escrita que influenciou
gerações seguintes.
A ideia de trabalhar com uma obra literária se deu por meu interesse particular por
literatura, em especial a literatura brasileira do século XX, somada ao interesse no estudo
acadêmico do período histórico que corresponde ao advento da chamada República Nova no
Brasil. Destarte, a escolha do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, ocorreu pelo fato da
obra, publicada pela primeira vez em 1937, ser uma das mais representativas do período,
apresentando a decadência da velha configuração oligárquica e as mudanças trazidas pelas novas
configurações de poder através da narração das ideias e ações de seus personagens.
Partindo desse início, o presente estudo buscou compreender as construções literárias das
discussões e mudanças políticas e sociais do período, com enfoque especial dado à questão da
decadência das oligarquias rurais frente às transformações advindas com a Revolução de 1930,
presentes na obra São Bernardo. Para tanto, o trabalho monográfico desenvolveu-se em três
capítulos. O primeiro capítulo apresenta algumas discussões historiográficas sobre o contexto
histórico de transformações políticas, sociais e culturais da década de 1930 no Brasil, abarcando
desde os indicativos e antecedentes de mudanças na década anterior, perpassando a influência no
país do contexto mundial de Crise econômica, queda do liberalismo e ascensão das ideias
autoritárias, as transformações oriundas da ascensão de Getúlio Vargas ao poder e posterior
implantação do Estado Novo, até o encerramento com a discussão sobre a produção cultural do
período compreendido entre as décadas de 1920 e 45, especialmente a produção literária.
No segundo capítulo, os debates introduzidos por diferentes autores sobre a relação entre
a História e a Literatura foram utilizados no embasamento teórico-metodológico. Em um
primeiro momento, foram apresentadas as perspectivas históricas mais atuais sobre os estudos da
Literatura no campo historiográfico, seguida de uma discussão sobre as especificidades e
aproximações das formas narrativas de cada campo, bem como o exercício de repensar a própria
função da História conquanto narrativa construída. Por conseguinte, o capítulo aborda as
discussões sobre a crise e transformações por que passaram as abordagens históricas tradicionais
frente a este repensar, direcionando o trabalho para as proposições feitas por Roger Chartier
acerca dos novos sentidos de construção da realidade e a conceituação metodológica por este
autor trabalhada para o estudo das representações culturais. E, ao fim do capítulo, discute-se a
9

figura do produtor do texto literário enquanto agente histórico portador de discursos específicos,
sob os pressupostos trazidos pela obra de Michel Foucault.
E por fim, o terceiro capítulo apresenta algumas considerações sobre o momento literário
em que autor e obra se inserem, seguidas pelas principais características do romance. O
derradeiro capítulo abriga também as análises da obra à luz das discussões historiográficas
introduzidas ao longo do trabalho, objetivando o entendimento dos discursos construídos por
Graciliano Ramos ao longo da narrativa. Ao último capítulo seguem-se as considerações finais,
em que tentei expor os principais pontos levantados no trabalho, repensando a obra não apenas
enquanto produção estética ou mero reflexo de seu tempo, mas como uma produção dotada de
representações específicas, que podem ser analisadas relacionadas ao contexto de sua produção e
de seu produtor.
10

1. CONTEXTUALIZAÇÃO

Desde a Proclamação da República, em 1889, o processo político brasileiro foi marcado


por uma prática denominada “liberalismo oligárquico”. Tal expressão indica os elementos
contraditórios nela existentes: a constituição da República, teoricamente um governo destinado a
servir aos interesses coletivos, no caso brasileiro foi resultado do exercício do poder de uma
minoria – as oligarquias rurais exportadoras de produtos agrícolas, predominantemente a
oligarquia cafeeira paulista. Essa República oligárquica advinha do crescimento vertiginoso da
economia de exportação do café e da “política dos governadores” 3 instituída a partir de 1898, no
governo Campos Sales.
Era caracterizada por uma rede complexa de relações interdependentes entre governo
federal, governos estaduais e lideranças locais – os coroneis –, com a garantia dos interesses
econômicos das oligarquias e a manutenção da estabilidade dos poderes políticos. Desta maneira,
as oligarquias sobrepujavam os demais grupos, com predominância de alguns estados sobre os
demais. São fenômenos típicos da época a manipulação e falsificação do voto das massas
eleitorais rurais, o mandonismo e o filhotismo. Esse modelo continuou até o ano de 1930, período
de muitas transformações no país. Estas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a
verificação de sua gênese na década anterior.

1.1 CRISE NOS ANOS 1920

Segundo Ferreira & Pinto, o ano de 1922 é caracterizado por mostras de esgotamento do
modelo político vigente. Para a sucessão presidencial de Epitácio Pessoa, o eixo dominante São
Paulo-Minas Gerais apontou os nomes de Artur Bernardes e Urbano Santos. Entretanto, a
3
FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo
excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp.
387- 415.
11

candidatura desta chapa gerou protestos por parte das oligarquias do Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul, Bahia e Pernambuco – estados secundários no processo político oligárquico –, que,
insatisfeitos com os nomes lançados, se reuniram em um movimento chamado de Reação
Republicana, apresentando como alternativa para a eleição os nomes de Nilo Peçanha e J.J.
Seabra.
As autoras demonstram que o movimento não significava uma ruptura com o domínio
oligárquico, mas uma tentativa de ampliação de participação no poder das oligarquias dos estados
não relacionados à economia cafeeira. Estes estados também estariam interessados em uma
diversificação da economia, na conversibilidade da moeda, em um equilíbrio de contas.
Buscaram, então, o apoio dos militares, que mantinham já há algum tempo uma relação
conflituosa com governo federal. Tentaram, além disso, mobilizar as massas urbanas, em uma
espécie de resposta à ocorrência de diversas agitações operárias em fins da década de 1910.
Apesar disso, o movimento não conseguiu transpor o poder da máquina estatal, e a vitória foi
dada a Bernardes. Mesmo com rumores de rebelião, nada foi feito, e as forças de oposição foram
por ora marginalizadas.
A Reação Republicana mostrou, no entanto, um descontentamento com as oligarquias
dominantes cada vez maior. Esse descontentamento não vinha apenas das oligarquias
secundárias, mas também de setores do Exército e das populações urbanas de modo geral.
Destarte, em 05/07 do mesmo ano, antes da posse do presidente eleito, membros da dissidência
militar eclodiram em uma rebelião conhecida como Os 18 do Forte de Copacabana, que, sem
apoio suficiente dos altos extratos militares nem das oligarquias dissidentes, foi logo sufocada.
Porém, o levante marcou o começo de um movimento conhecido como tenentismo, nome
derivado da origem de seus principais articuladores, que provinham das camadas intermediárias
das Forças Armadas, a dos tenentes e capitães. Já os extratos militares superiores optaram pela
acomodação junto ao poder vigente, indicando uma cisão no interior do grupo.
Caracterizado pelo descontentamento com os rumos políticos do país, o movimento
tenentista alcançou grandes proporções. Boris Fausto declara:

Nos anos vinte, [o tenentismo] tornou-se, para todas as camadas intermediárias e


populares da sociedade, o grande depositário das esperanças de uma alteração na ordem
vigente. [...] Por outro lado, para as classes dominantes regionais em oposição ao
núcleo agrário-exportador, os tenentes apontavam um caminho novo que, mesmo a
12

custo, acabou sendo trilhado: a utilização da violência, associada a um programa de


limitado alcance.4

As ações dos oligarcas dissidentes no período posterior à posse de Artur Bernardes,


inclusive, ocorreram em dois diferentes sentidos: o de tentativa de rearticulação com o poder
estabelecido, e o de relacionamento com o movimento tenentista. Apesar de não ter um projeto
antiliberal, o tenentismo defendia, entre outros pontos, a limitação da autonomia regional, a
reforma constitucional, a moralização dos costumes políticos, o equilíbrio orçamentário.
Apresentava, contudo, contradições internas. Dentro do movimento, duas tendências se
verificavam: aquela de apelo vagamente popular-nacionalista, e aquela de tendência mais
conservadora. Porém, tais divisões não se explicitavam de maneira objetiva, e o movimento
apresentava posições ideológicas nem sempre claras, que mesclavam nacionalismo, alguns traços
autoritários e uma tendência a poucas reformas de cunho social5.
Mais bem preparados, os tenentistas organizaram outro levante em 1924, cujo objetivo era
a derrubada de Bernardes do poder. Iniciaram a rebelião com a tomada de alguns quartéis na
capital paulista, deslocando-se, devido à repressão, primeiramente para o interior do estado e
depois para o Paraná. Em cada local de sua passagem eclodiam revoltas. No sul, se uniram com
dissidentes gaúchos, originando a Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes, em 1925. Sem um
plano específico, a Coluna percorreu 13 estados brasileiros, incitando a população sobre a
revolução contra partido em exílios no exterior. Passados os momentos de rebelião tenentista,
uma nova época de estabilidade se iniciaria com a eleição do paulista Washington Luís para a
presidência da República, em 1926. No entanto, o tenentismo forçara o processo de corrosão do
sistema político vigente; assim, essa estabilidade só duraria até o fim da década, quando novas
crises adviriam.
A primeira das crises citadas estava relacionada ao contexto internacional: a crise
financeira de 1929. De acordo com Eric Hobsbawm6, a quebra da Bolsa de Valores de Nova
York, ocorrida em 29/10/1929, trouxe a queda da produção industrial americana de um modo
geral, com preços em baixa vertiginosa. Diferente de outras crises, porém, esta afetou o mercado
mundial de maneira nunca antes vista. A interdependência existente no cenário mundial
4
FAUSTO, Boris. A crise dos anos vinte e a Revolução de 1930. In: FAUSTO, Boris (Org.). O Brasil Republicano,
tomo III, vol. 2: sociedade e instituições (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. pp. 409-410.
5
Idem, Ibidem, p. 411-412.
6
HOBSBAWM, Eric J. Rumo ao abismo econômico. In: A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991); trad.
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 90-112.
13

transformou uma crise localizada em Grande Depressão, afetando desde países latinoamericanos
até o Oriente e se fazendo sentir em diversas camadas sociais.
Nesse ínterim, o Brasil foi muito prejudicado. Uma superprodução de café no mercado
internacional, já anunciada alguns anos antes, trouxera oscilações nos preços, culminando com a
queda livre durante a crise. Além disso, as relações entre as financiadoras externas e o setor
cafeeiro tornaram o sistema especialmente vulnerável. Segundo o historiador inglês, “o Brasil
tornou-se um símbolo do desperdício do capitalismo e da seriedade da Depressão, pois seus
cafeicultores tentaram em desespero impedir o colapso dos preços queimando café em vez de
carvão em suas locomotivas a vapor”7.
A política do governo federal foi de não intervenção, em princípio, em nome de uma
estabilidade cambial, e esperando uma expansão das exportações que não ocorreu, dada a
gravidade da crise. Houve uma piora na situação, trazendo grandes prejuízos para os produtores,
e subsequentes altos índices de desemprego e greves operárias. Do ponto de vista político,
significou o descontentamento dos setores cafeeiros, em uma ruptura nas relações entre estes e o
governo federal. Do mesmo modo, significou para as forças oposicionistas um momento de
fraqueza da oligarquia cafeeira, uma oportunidade para agir.

1.2 O MOVIMENTO DE OUTUBRO DE 1930

Apesar de relativa tranqüilidade no cenário político, as divergências retornaram quando


da sucessão presidencial em 1929. Washington Luís indicou o paulista Júlio Prestes como seu
sucessor, em desacordo ao pacto com Minas Gerais. Emergiram, então, outras pretensões, antes
sufocadas. A candidatura do Governador do Rio Grande do Sul Getúlio Vargas é lançada em
oposição, tendo por vice o paraibano João Pessoa, com o apoio mineiro. Esta chapa dissidente
iniciou a formação da Aliança Liberal, uma coalizão a favor de Vargas. A esse grupo se uniriam
oposições ao governo federal de vários estados. Entre elas, o Partido Democrático (PD) de São
Paulo, fundado em 1926 em contrapartida ao monopólio do Partido Republicano Paulista (PRP)
no estado. Além do PD, a Aliança Liberal obteve o apoio de setores civis e militares

7
Idem, Ibidem, p. 97.
14

descontentes, em uma composição heterogênea e precária. A AL não era, segundo Fausto, “um
agrupamento revolucionário e sim um instrumento de pressão”8.
As principais propostas da chapa dissidente relacionavam-se a uma regeneração política,
o que incluía a reforma eleitoral, o voto secreto, a unificação da justiça. Além disso, a Aliança
Liberal propunha a diversificação da economia, em um sentido agrário e industrial – apesar de
concordarem com a política financeira de proteção ao café dos governos anteriores –, e a anistia
aos perseguidos políticos da década anterior. Também apresentavam propostas de proteção ao
trabalho, como a lei de férias e a regulamentação dos trabalhos feminino e infantil.
Em plena recessão econômica mundial, se deu a eleição. Como já visto, a crise atingira
gravemente o setor cafeeiro; além disso, as várias fábricas falidas e a enorme massa de
desempregados urbanos geravam mais descontentamentos. Sob acirrada disputa e vasta utilização
da máquina eleitoreira por ambos os lados, Júlio Prestes ganhou. Sua vitória, porém, não foi
aceita. Membros da chapa oposicionista buscaram então o apoio do movimento tenentista, ainda
ativo. Essa aproximação se deu de forma lenta e sem uma das principais figuras do movimento,
Luís Carlos Prestes, que em seu exílio na Bolívia havia entrado em contato com o comunismo,
sendo por ele influenciado. Havia no interior da Aliança Liberal dúvidas quanto ao caminho da
revolução, tanto de extratos civis quanto de militares, dividindo opiniões. Esses temores da luta
armada se davam principalmente em setores mais tradicionais do Exército, em contraposição com
as gerações mais jovens.
Entretanto, o assassinato de João Pessoa, em julho de 1930, motivou a revolta, conhecida
desde então como Revolução de 1930, nome dominante até hoje na historiografia de um modo
geral9. A morte do paraibano, mesmo sem aparentes razões políticas, comoveu parcela
considerável da sociedade, e foi transformada em ponto de luta, acirrando o processo
revolucionário em todo o país, com importantes adesões no Exército. A luta armada se tornava
clara opção. Deste modo, em 03/10/1930 explodiam revoltas em Minas Gerais e no Rio Grande
do Sul, se multiplicando a seguir em diferentes estados nordestinos. Apesar das resistências, os
combates resultaram em vitória para os revolucionários. Em 24 do mesmo mês Washington Luís
é deposto. Em novembro, Getúlio Vargas é empossado como chefe do Governo Provisório.

8
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. São Paulo:
Difel, 1982, 13ª. ed. p. 235.
9
BORGES, Vavy Pacheco. Anos trinta e política: História e historiografia. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. pp. 159-182.
15

O movimento que gerou a chamada Revolução de 1930 foi muitas vezes traduzido como
ruptura na política brasileira, mesmo nas considerações de boa parte da historiografia sobre o
assunto, adquirindo, assim, um sentido de renovação, de regeneração política e social, um
contraposto entre um velho e um novo momento histórico brasileiro. Novos estudos mostram,
porém, a necessidade de se repensar estas proposições, levando em consideração as
discordâncias, a efervescência de ideias e diversidade de projetos – mesmo no interior dos grupos
dominantes –, bem como a instabilidade política, as continuidades e descontinuidades no
processo10. Assim sendo, o rumo político tomado constitui-se em uma das diversas possibilidades
existentes.

1.3 GETÚLIO VARGAS ASCENDE AO PODER

1.3.1 O Governo Provisório

Através do Decreto nº 19398, de 11/11/1930, o chefe do Governo Provisório concentrou


em suas mãos os poderes Executivo e Legislativo, ficando então dissolvidos o Congresso
Nacional, as Câmaras e qualquer outro órgão deliberativo. Isto deveria ocorrer em caráter
excepcional, até que fosse eleita uma Assembleia Nacional Constituinte, para a revisão da
legislação de 1891. O processo deveria ser encaminhado pelo governo federal, enfatizado então
em seu caráter provisório. Deste modo, uma das primeiras medidas tomadas por este foi o
lançamento de um decreto em 10/02/1931 sobre a formação de uma comissão para o estudo e
revisão da legislação eleitoral existente. Entretanto, os processos de reforma eleitoral demoraram,
sendo concluídos apenas em 24/02/1932 com a instituição de um novo Código Eleitoral no país.
Entre as novidades, o Código instituía o sufrágio universal direto e secreto; o direito de
voto às mulheres; o estabelecimento da representação proporcional a todos os órgãos coletivos do
país, possibilitando a representação classista; e a criação da Justiça Eleitoral, composta de órgãos
de fiscalização específica do processo eleitoral. Tais conquistas significavam, em última
instância, uma moralização dos costumes políticos no país e a possibilidade de efetivação da
democracia, ao mesmo tempo em que lançava as bases de uma maior legitimidade do Estado,
perante o atendimento de algumas reivindicações de parte da sociedade.

10
Idem, Ibidem, p. 179.
16

Outras das medidas tomadas pelo governo provisório se referem ao universo do trabalho:
a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 26/11/1930, e a delimitação de
horários para o trabalho na indústria e no comércio, entre março e maio de 1932. Além disso,
começa-se a definir a regulamentação dos sindicatos em 1931. Tais medidas visavam, sobretudo,
“institucionalizar a pressão da classe operária, [...] cuja súbita intervenção política autônoma
podia tornar-se perigosa, em um setor controlável, no jogo das forças sociais”11. Apesar disso,
encontravam apoio no Partido Comunista, que via no governo getulista uma possibilidade de
reformas políticas e sociais.
No âmbito econômico, respostas à crise mundial indicaram o caminho. Entre elas, o
direcionamento de parcela dos capitais para outros setores agrícolas que não o do café, e para a
indústria, que se viu beneficiada com a desvalorização do câmbio. Mesmo assim, o governo
tomou medidas a fim de proteger o setor cafeeiro, com a política de queima de produção, já
citada, a fim de evitar quedas bruscas de preço. Apesar de deslocada do poder, a oligarquia
cafeeira continuou exercendo importante papel na economia brasileira, agora em conjunto com
outros setores12.

1.3.2 A Revolução Constitucionalista de 1932

A reforma eleitoral desagradou setores tenentistas participantes do poder, que


consideravam o retorno à ordem legal prejudicial aos rumos renovadores então em curso na
política13. Porém, outros setores sociais, inclusive os ligados às oligarquias estaduais dissidentes,
mobilizavam-se em favor da constitucionalização. Assim sendo, um novo decreto estipulava para
03/05/1933 a realização de eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, gerando muitas
discussões sobre o assunto. Getúlio Vargas se encontra, então, em uma situação difícil, em as
alianças com os setores oligárquicos dissidentes e os membros tenentistas se tornavam frágeis.
De um lado, havia a pressão para a constitucionalização, por setores cada vez mais amplos da
sociedade, e de outro, as pressões das lideranças tenentistas, que buscavam a continuidade da

11
FAUSTO, Boris. Op. cit., p. 252-253.
12
Idem, Ibidem, p. 247.
13
GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In:
FAUSTO, B. (Org.). O Brasil republicano, tomo III, vol. 3: sociedade e política (1930-1964). São Paulo: Difel,
1986. p. 15.
17

ditadura. Essas lideranças tenentistas, porém, perdiam gradativamente a solidez, em um processo


de declínio do movimento14.
Nesse cenário de instabilidade, eclode em São Paulo a Revolução Constitucionalista, em
julho de 1932. Todas as atenções e os esforços se voltam para a ela, com diversos embates,
principalmente na capital paulista. É derrotada; porém, acaba forçando a convocação da
Constituinte, já inevitável. Os trabalhos são então retomados. A concessão feita pelo governo
resguardou seu domínio na condução da constitucionalização do país, representando valioso
recurso nesse período de desarticulação das bases políticas governistas. A vitória sobre a
Revolução de 1932 garantiu a Vargas grande influência na preparação da Assembleia
Constituinte. Uma época de abertura política, com o surgimento de diversos partidos políticos
regionais, se seguiu às discussões do projeto constitucional. Entre os principais debates do
período, estavam o da centralização política e o da instituição ou não da representação de classes.
Nesse clima de transformações, as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte ocorreram
na data prevista, sem maiores incidentes, com vitória das tendências situacionistas.

1.3.3 O período democrático (1934-1937)

A influência de Vargas entre diversas figuras políticas do país, e seu crescente apoio
popular, fizeram com que, em julho de 1934, fosse eleito Presidente, logo após a promulgação da
nova Constituição, demonstrando sua força política. Apesar disso, o gaúcho teve que enfrentar
tanto oposições na Assembleia quanto outros candidatos à corrida presidencial, quer dos meios
legais, quer de facções militares envolvidas em articulações golpistas. Mesmo a Constituição de
1934 impunha limites às atribuições políticas do Estado, apesar do aumento de sua influência nas
esferas econômica e social. Na verdade, esta legislação não diferia muito da Constituição de
1891, apresentando como novidades uma pequena redução da autonomia dos estados e a criação
do Tribunal do Trabalho e de uma legislação trabalhista.
Segundo Eli Diniz15, o governo Vargas não trouxe uma mudança substancial da estrutura
de dominação existente, mantendo certas prerrogativas básicas dos grupos dominantes. No
entanto, o movimento de 1930 significou uma aliança, mesmo que temporária, das elites

14
Idem, Ibidem, p. 19.
15
DINIZ, Eli. O Estado Novo: estruturas de poder, relações de classe. In: FAUSTO, B. (Org.). O Brasil republicano,
tomo III, vol. 3: sociedade e política (1930-1964). São Paulo: Difel, 1986. p. 83-89.
18

tradicionais com grupos emergentes. Nesse sentido, grupos de orientação econômica urbano-
industrial passaram a fazer parte dos processos políticos, na medida em que pontos favoráveis à
industrialização e ao crescimento econômico foram implantados. Do mesmo modo, algumas
medidas foram tomadas no sentido de cooptar as classes médias e o operariado urbano, a maioria
relacionada a reformas básicas na legislação trabalhista. Mesmo que significando uma
continuidade, em termos gerais, da estrutura oligárquica, as classes dominantes tradicionais
tiveram que dividir o poder com outros grupos, e viram a ascensão lenta da industrialização do
Brasil.

1.4 O ESTADO NOVO

O período entre 1934-37 foi caracterizado, sobretudo, por uma crise na política, ao mesmo
tempo de hegemonia e ideológica16. Esta se caracterizava pela heterogeneidade de expectativas e
projetos oriundos dos grupos que fizeram a Revolução de 1930, marcados por divergências cada
vez maiores. O enfraquecimento do tenentismo enquanto movimento organizado e as crises por
que passava a oligarquia cafeeira tiveram sua contribuição nesse processo. Getúlio Vargas se
aproveitou então dessa incapacidade, construindo alianças e controlando dissidências, em um
fortalecimento de seu poder.
Apesar disso, havia ainda oposições fortes a seu governo. Com o colapso do tenentismo,
suas últimas lideranças migraram para outros grupos surgidos no país, de tendências mais
radicais. Essa radicalização provinha de um cenário mundial de queda dos ideais e instituições
liberais clássicas do século XIX17, após as desilusões com os horrores da Primeira Guerra
Mundial e a grave crise financeira internacional. No âmbito da direita, adotavam um
nacionalismo conservador anticomunista, com propostas de um Estado forte, centralizado, de
maior controle econômico e social, com influência dos fascismos europeus. Já o esquerdismo
radical advinha do modelo stalinista que encaminhou a Revolução Russa para um totalitarismo.
Essas propostas influenciaram movimentos no Brasil, propiciando o surgimento tanto de grupos
de extrema direita, com a Ação Integralista Brasileira (surgida em 1932) quanto de radicais de
esquerda, com a Aliança Nacional Libertadora, liderada por Luís Carlos Prestes (1935). Esses

16
Idem, Ibidem, p. 83.
17
HOBSBAWM, Eric J. A queda do liberalismo. In: A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991); trad.
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 113-143.
19

dois grupos foram difundidos através de propaganda maciça, cooptando membros militares e
civis e realizando diversas atividades políticas.
O grupo esquerdista, que vinha crescendo consideravelmente, foi declarado ilegal por
Vargas em julho de 1935. Quatro meses depois ocorreu uma tentativa de golpe em diversos
estados, denominada Intentona Comunista, derrotada após vários combates. A sucede uma
violenta repressão, com a anuência das elites, que desencadeou em torturas, mortes e prisões em
massa, levando à cadeia até mesmo simpatizantes esquerdistas que não tinham ligações diretas
com o Partido Comunista ou a ANL, como é o caso do romancista Graciliano Ramos, escritor
cuja obra é objeto deste estudo.
Um dos principais pontos levantados por Vargas foi o combate ao chamado perigo
comunista. Para tanto, segundo Lourdes Sola18, o comunismo foi transformado em presença
constante devido à intensa propaganda. Como exemplo, a autora cita a falsificação de um plano
supostamente esquerdista, o Plano Cohen, forjado por integralistas. Por outro lado, essa presença
forçada não estava tão distante da realidade, visto suas recentes aparições. Getúlio Vargas
aproveitou-se da situação, então, para decretar estado de emergência e posteriormente estado de
guerra, que durariam até 1937. Tal situação foi aceita pelas temerosas elites, que viam no
fortalecimento do Executivo uma saída para a estabilidade e para sua própria sobrevivência no
poder. O golpe também encontrou repercussão favorável entre setores liberais, em nome de uma
luta contra o comunismo.
Em 10/11 deste ano, por fim, articulações entre Vargas e elementos da cúpula das Forças
Armadas, da intelectualidade, além de oficiais saídos do tenentismo e membros do movimento
integralista, causaram o golpe que originou o Estado Novo brasileiro, ou Estado Nacional, tendo
como justificativas o restauro da ordem e a defesa da soberania nacional. Assim sendo, o
Congresso foi dissolvido e o Poder Judiciário subordinado ao Executivo, sem oposição
generalizada, a não ser de parlamentares, visto que o presidente detinha o controle dos executivos
estaduais. Ainda de acordo com Sola, as principais características do golpe se davam por não ser
a vitória de um único partido organizado, não ter o apoio das massas, e por apresentar uma
carência de unidade e de estrutura ideológicas.

18
SOLA, Lourdes. O golpe de 37 e o Estado Novo. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. São
Paulo: Difel, 1982. pp. 256-282.
20

Segundo Ângela Gomes19, o Estado Nacional constituído em 1937 se caracterizava por


um projeto ideológico heterogêneo, contendo variações relevantes como o integralismo, o
corporativismo jurídico, as vertentes católicas, etc. Dentro desse ecletismo, porém, percebe-se um
conjunto de ideias centrais que norteavam o governo. Além do anticomunismo, já citado, o
Estado Novo era marcado pelo apelo nacionalista. Tal nacionalismo trazia consigo a decepção
com o velho regime oligárquico, e a necessidade de reconstrução nacional. Estabelece-se, então,
uma relação de continuidade com a Revolução de 1930, em uma utilização diferenciada das
relações passado-presente-futuro. Deste modo, o Estado Novo aparecia como continuação da
verdadeira reconstituição da nação, iniciada em 1930 e interrompida em 1932. A utilização da
História se fazia, então, como importante ponto de legitimação estatal, em que a busca pelos fatos
passados constituía-se na própria busca pelo verdadeiro sentido do ser brasileiro20.
O Estado Nacional também foi marcado pelo antiliberalismo. Este último provinha de
um clima mundial do já citado declínio das ideias liberais no período de entre guerras, em uma
tendência de centralização estatal, ocorrida em vários países. Contudo, também era reflexo do
fracasso das experiências liberais da Primeira República, consideradas então fatores de
decomposição e desorganização nacional. Essas tendências aproximavam as práticas
estadonovistas dos fascismos europeus, com a presença de um Estado centralizado, autoritário, e
a condenação ao parlamentarismo, aos partidos políticos e ao sufrágio universal.
A aproximação com o fascismo italiano, inclusive, não se dava apenas no campo das
ideias: a divulgação dos preceitos fascistas, através de diversos meios midiáticos, ocorria com o
consentimento das autoridades centrais. Objeto de estudo de João Bertonha, a propaganda
fascista no Brasil entre 1922-43 foi realizada – apesar das dificuldades impostas pela precária
máquina de propaganda italiana e pela falta de recursos – com a anuência e mesmo auxílio de
órgãos governamentais (como o DIP, citado abaixo). A distribuição de informações positivas
sobre o fascismo, além das relações de intercâmbio cultural estabelecidas entre membros da
intelectualidade brasileira e italiana e políticos do governo italiano e estadonovistas, através de
institutos como o Instituto Ítalo Brasiliano di Alta Cultura e a Società Dante Alighieri, marcaram
o período, só diminuindo no período da Segunda Guerra Mundial, demonstrando a influência do

19
GOMES, Ângela Maria de Castro. O redescobrimento do Brasil. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi de; VELLOSO,
Mônica; GOMES, Ângela Maria de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1982. pp.
109-150.
20
Idem, Ibidem, p. 111.
21

fascismo no ideário do Estado Nacional21. Vale ressaltar, contudo, que o governo getulista se
mostrava reticente quanto à transformação totalitária do Estado, com organizações mobilizadoras
das massas. Isso se devia ao objetivo de conciliar as diversas tendências que formavam o regime,
mesmo aquelas cujos membros eram mais reticentes ao autoritarismo e ao corporativismo total.

1.4.1 O levante integralista

Uma das únicas ameaças sérias à ditadura getulista foi iniciada por um de seus próprios
aliados iniciais: os integralistas. Getúlio Vargas instituiu, em 1938, a proibição a todas as
agremiações e partidos políticos, ficando vetado o direito à exibição pública de signos, bandeiras
e outros símbolos de identificação, em um sentido de desvinculação de seu poder de qualquer
ideologia particular. Desagradou, deste modo, os integralistas, que no mesmo ano romperam com
Vargas e se insurgiram em um levante fracassado de cerco ao Palácio da Guanabara. Inúmeros
rebeldes foram mortos no episódio, e seus principais membros exilados do país, aniquilando-se
assim as últimas dissidências ao governo.

1.4.2 Iniciativas nos campos econômico, político e social

Eliminadas as oposições, o governo getulista deu início a uma reforma administrativa que
introduziu vários órgãos governamentais. Entre eles, o Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), destinado ao controle dos meios de comunicação de massa e à exaltação da figura oficial
do presidente; o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), que tinha por
objetivo coordenar as ações administrativas do funcionalismo, centralizando ainda mais o poder;
além de institutos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O DIP
configura-se, nesse período, em um importante meio de divulgação do que podemos chamar de
ideologia estadonovista, em uma intervenção do governo nos processos sociais, através da
propaganda governamental em diferentes meios midiáticos, do controle de informações, do
financiamento de projetos22. É através desse órgão que se produzia a “Hora do Brasil”, chamada
radiofônica obrigatória, existente até hoje.

21
BERTONHA, João Fábio. Divulgando o Duce e o fascismo em terra brasileira: a propaganda italiana no Brasil,
1922-1943. Revista de História Regional, v. 5, pp. 82-112, 2000.
22
GOMES, Ângela Maria de Castro. Op. cit., p. 110.
22

No âmbito econômico, houve uma continuidade de algumas diretrizes iniciadas no início


da década, com uma interferência estatal maior que resultou em inúmeros órgãos criados para
auxiliar serviços específicos e estabelecer direções, tais como o Instituto do Açúcar e do Álcool,
o Instituto do Chá e do Mate, além do já existente Instituto do Café. Os investimentos no setor
cafeeiro continuaram, com tentativas de amenizar os efeitos da crise. Contudo, a crise forçara
uma reestruturação econômica em que o café não mais ocupava posição central na economia
brasileira. Além disso, investiu-se em empresas estatais que seriam um complemento ao setor
privado. É desse período a criação de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a
Companhia Siderúrgica Nacional (1940).
Outro setor que alavancou no período foi o industrial. A desvalorização da moeda trazida
pela Crise de 1929, encarecendo os produtos importados, estimulou a produção interna,
principalmente de bens manufaturados, incentivada também pelo aumento da demanda surgida
com o crescimento urbano. As classes industriais não detinham, porém, ampla participação no
jogo político. Por outro lado, os setores militares, interessados na industrialização – seja por seu
significado desenvolvimentista, seja pela possibilidade de reequipamento da aparelhagem militar
–, defenderam esta em muito perante o governo. Além disso, a industrialização havia se tornado
questão de alcance popular, sentida como uma necessidade. Deste modo, o incentivo à indústria
advinha tanto de fatores externos como de pressões no interior do próprio grupo governista.
Outrossim, podemos considerar a caracterização feita por Diniz sobre o governo Vargas como
uma “modernização conservadora”, em que as ações em prol da industrialização não eram apenas
reflexo da crise internacional, mas faziam parte de um caráter autônomo do Estado23.
Do mesmo modo, Vargas tomou providências no sentido de trazer algumas reformas de
cunho social, cooptando assim possíveis dissidências operárias. Surgia então a Consolidação das
Leis Trabalhistas, que ao longo do governo getulista trouxeram benefícios como o salário
mínimo, as férias remuneradas e a fixação das horas trabalhadas. O governo soube se aproveitar
da introdução destes benefícios para impor um sindicalismo corporativista, caracterizado pelo
controle do Estado nas atividades operárias. Segundo Sola, “o caráter semiautoritário,
semiconcessivo, [...] viciava de paternalismo as relações entre trabalhadores e governo,
identificados por eles a Getúlio Vargas”24. A figura do chefe de Estado se mesclava, na memória
popular, às mudanças oriundas da política estatal, em um modo de governar personalista. Seu
23
DINIZ, Eli. Op. cit, p. 89.
24
SOLA, Lourdes. Op. cit., p. 272.
23

governo foi caracterizado por contradições, que ora o colocavam em posição de “pai da nação”,
ora em posição de extrema autoridade.
Para Ângela Gomes, em texto já citado, essas contradições pode ser mais bem entendidas
se considerarmos o governo getulista dentro de suas concepções ideológicas como portador de
uma acepção diferenciada de democracia, denominada pela autora de “democracia social” ou
“democracia autoritária”. Buscando as especificidades da experiência histórica e das necessidades
sociais brasileiras, o Estado Novo estaria delimitando um novo e único modo do fazer político.
Deste modo, segundo a autora, na concepção estadonovista, tanto as instituições liberais quanto
as totalitárias (de esquerda e de direita) estariam apartados das reais necessidades humanas, e
principalmente dos particularismos brasileiros.

O Estado liberal pecava por sua omissão, espectador que era dos conflitos sociais e das
carências materiais e espirituais da população de um país. Racionalista e universalista, o
Estado liberal tratava o homem como uma verdadeira abstração conceitual,
transformando o seu mito do “cidadão soberano” na realidade terrível de um indivíduo
que morre de fome. 25

Já os regimes totalitários, “[...] hipertrofiando o Estado, absorviam os indivíduos,


subordinando-os completamente. O Estado tornava-se [então] um fim em si mesmo e não um
meio de auto-realização dos homens e de promoção do bem-estar nacional” 26. Desta forma,
ambos os modelos mostravam-se insuficientes em uma “real” aplicação da democracia, em seu
sentido de realização plena, material e espiritual, dos atores sociais. Deste modo, a condenação da
democracia liberal coexistia com um esforço de recuperação de um tipo de democracia de
oposição ao liberalismo. Entretanto, vale lembrar que as realizações no campo social também
advinham de uma necessidade de legitimação do poder político e minimização de forças
operárias discordantes, como bem o lembrou Fausto27. Assim sendo, essa proposta diferenciada
de democracia deve ser entendida tanto em seus termos ideológicos quanto no âmbito das
realizações práticas de legitimação e fortalecimento do poder.
Entre os anos de 1939 e 1945, o mundo se viu assolado pelo mais terrível conflito do
século XX: a Segunda Grande Guerra, que opunha Países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão)

25
GOMES, Ângela Maria de Castro. Op. cit., p. 124.
26
Idem, Ibidem, p. 125.
27
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930... Loc. cit.
24

contra Aliados (E.U.A, Inglaterra, U.R.S.S., França). A princípio pretensamente neutro, o Estado
Novo varguista oscilava entre as duas posições. Apesar das tendências fascistas do governo de
Vargas, o Brasil entra oficialmente na guerra a favor dos Aliados, em 1942, fato influenciado em
muito pelo auxílio financeiro americano dado à construção da Usina de Volta Redonda e pelo
afundamento de navios brasileiros por supostos submarinos alemães. Assim sendo, uma
conjunção dos esforços da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e da Força Aérea Brasileira
(FAB) enviou à guerra um contingente de cerca de 25000 homens, que ficaram sob a disposição
do 5º exército norte-americano e combateram na Itália, entre 1944 e 1945.
A participação do país na guerra ao lado dos Aliados fomentou a discussão sobre a
redemocratização. Além disso, o regime já vinha dando sinais de desgaste. Deste modo, em
28/02/1945, Vargas decretava uma emenda constitucional regulamentando a criação de partidos
políticos e marcando eleições gerais para o final do ano, pressionado por forças diversas e
imbuído de um projeto continuísta. Surgem diversos partidos, como o oposicionista UDN e dois
partidos organizados pelo próprio Vargas, além do retorno à legalidade do PCB. Getúlio Vargas
também organizara o Movimento Queremista, em um sentido de intenção de continuidade no
poder. Esse movimento obteve apoio setores sociais consideráveis, inclusive do Partido
Comunista de Prestes. No entanto, um golpe de membros do Exército, que temiam uma guinada
de Vargas à esquerda, o retira do poder e garante a realização de eleições sem a sua participação,
em outubro de 1945, encerrando-se assim o Estado Novo.

1.5 POLÍTICA E PRODUÇÃO CULTURAL

Desde a década de 1920, os debates intelectuais se mostravam muito preocupados com o


problema da identidade nacional. Esta, em certa perspectiva, já existiria, relacionada aos modos
de ser, à cultura popular e ao folclore. Não estava, contudo, organizada, inculcando a necessidade
de seu redescobrimento. O descontentamento com a política oligárquica acirrava tal discussão.
Apesar das discordâncias e multiplicidade de projetos, os caminhos, de maneira geral, pareciam
indicar a necessidade de deixar de lado a representatividade democrática frente ao fortalecimento
do Estado, e frente a um maior conhecimento da realidade nacional28.

28
PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920-40. In: Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação;
trad. Maria Júlia Goldwaser. São Paulo: Ática, 1990. pp. 19-96.
25

Essas discussões indicavam uma busca do ser brasileiro, que se faria através do
recolhimento das expressões culturais consideradas genuinamente nacionais – transformadas
então em cultura nacional –, e também através do estudo de sua História e de seus processos
sociais. Esta tarefa aparecia como dever da intelectualidade, entendida aqui principalmente como
um grupo que se reconhecia e era reconhecido enquanto tal; grupo este heterogêneo quanto à sua
formação e suas ideias. Implicava em ação, seja por uma preocupação de “construção nacional”
com reflexo em suas obras, seja por uma maior participação política.
Tal engajamento intelectual pode ser entendido nos termos de um descontentamento com
o regime vigente e com a questão social. Porém, reflete também a discussão da função dos
próprios intelectuais dentro da sociedade, remetendo a uma reivindicação destes por uma posição
melhor, um reconhecimento de sua especificidade. Deste modo, ocorre, então, uma aproximação
entre intelectualidade e política. A intelectualidade, de maneira geral, se colocava sobremaneira
em um papel de “mediadora necessária”, graças ao hiato existente entre o social e o político, em
um sentido de vocação para elite dirigente29. Esta vocação compreendia, sobretudo, um “civilizar
por cima”, uma construção nacional que viria das elites para o povo em um movimento
descendente, ideia difundida tanto nos meios intelectuais autoritários quanto nos liberais. Essa
relação entre intelectuais e política será aprofundada depois; por ora, retomaremos os
movimentos artísticos oriundos desta mudança de pensamento.

1.5.1 O Modernismo e o romance de 1930

O ano de 1922 é exemplar desse período de debates e mudanças, com a primeira revolta
tenentista, a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o ressurgimento do
catolicismo nos debates intelectuais, e, principalmente, com a realização da Semana da Arte
Moderna em São Paulo. Evento produzido por escritores e artistas como Mário de Andrade,
Menotti Del Picchia, Graça Aranha, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo e outros, foi marco
indelével do início do Modernismo, que se pretendia vanguarda das letras e das artes em geral, e
que abrigou em seu interior o embrião dos principais debates em torno da nacionalidade.
O movimento modernista foi iniciado por mudanças nas sensibilidades e desejo de
modernização estética, em um sentido de renovação das letras e das artes em geral, influenciado

29
Idem, Ibidem, p. 22-33.
26

pelas vanguardas artísticas europeias, como o Futurismo e o Surrealismo. Tinha como uma das
características principais a busca pela brasilidade, acima citada, apresentando um nacionalismo
de base indigenista – a figura do negro só depois de 1930 tomaria importância real na construção
literária nacional. Com mudanças iniciadas na poesia antes da prosa, o movimento polemizou,
proclamando a necessidade de reformas de cunho estético e um maior engajamento de escritores
e artistas quanto à realidade nacional.
Iniciado com a Semana, aos poucos foi sendo divulgado através da publicação de
manifestos e revistas (tais como a Klaxon e a Revista de Antropofagia), se popularizando entre as
camadas artísticas e também entre um público não especializado. Apesar de sua difusão em
diversos estados, com algumas manifestações regionais como as do Rio Grande do Sul e de
Pernambuco, seu núcleo mais expressivo se manteve em São Paulo. Do movimento original,
surgiram divisões, com grupos de manifestos e tendências diversas. Dos principais, temos o
Manifesto Antropofágico, que propunha a “deglutição” da cultura e das influências exteriores em
uma reelaboração destas a partir do material nacional; e o grupo Verde-Amarelo, de tendências a
um nacionalismo ufanista, com críticas aos “modismos estrangeiros”. Deste último grupo sairia
posteriormente alguns dos principais nomes do Integralismo.
Dos nomes da chamada Primeira Geração Modernista (compreendida entre 1922 a 1930),
se destacam: nas artes plásticas Anita Malfatti, Victor Brecheret, Tarsila do Amaral e Di
Cavalcanti; na música Villa-Lobos; na poesia Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de
Andrade, Menotti Del Picchia, Raul Bopp e Guilherme de Alcântara. Já da prosa poucos nomes
ficaram: Ribeiro Couto, um Plínio Salgado anterior ao Integralismo, e Mário de Andrade.
Já a Segunda Geração Modernista (1930-1945) foi marcada pelo desejo intensificado de
pesquisa das realidades sociais, espirituais e culturais brasileiras. Menos “destruidora” quanto às
propostas estilísticas, tinha, em compensação, grande preocupação quanto à temática e a denúncia
dos problemas sociais, em um sentido de maior engajamento político. Vale ressaltar, no entanto,
que o que se convencionou chamar de Segunda Geração Modernista constitui-se em um grupo
heterogêneo de escritores e demais artistas que apresentavam propostas diferentes entre si. O fato
de não fundarem grupos ou lançarem manifestos estéticos, ao contrário da geração de 1922,
indica muito bem a composição diversificada. Como o discute Luís Bueno30, há controvérsias
com relação à adesão de alguns escritores da década de 30 ao movimento – inclusive da parte do
30
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas:
Editora da UNICAMP, 2006. Ver principalmente as páginas 43-48.
27

autor aqui estudado –, debate de que vamos nos abster, visto não ser o objetivo principal deste
trabalho.
Essa geração viu a diversificação da poesia, tanto em suas formas quanto na temática.
Nomes então consagrados como Manuel Bandeira e Raul Bopp conviveram com os novos Cecília
Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, entre outros. Entre os
nomes das artes plásticas, os principais são os de Di Cavalcanti e o de Cândido Portinari – que
desponta como um dos mais importantes pintores do país, e cuja temática das obras expressava o
engajamento dos artistas da época. No florescente campo da arquitetura, nomes como Oscar
Niemeyer começavam a despontar. No campo musical, a consagração de Villa-Lobos coexistia
com nomes que tentavam cada vez mais trazer uma linguagem nacional à música erudita, como
Guerra Peixe e Radamés Gnatalli. Outras linguagens, como o teatro e o cinema, iniciavam seus
passos modernistas.
Diferente da primeira fase do Modernismo, em que a poesia ocupou espaço central, nessa
segunda fase vê-se a ascensão da prosa, com o surgimento de um grande número de ficcionistas.
A busca da realidade brasileira fez renascer a tendência regionalista inaugurada no período
romântico. O pioneirismo e as conquistas nos campos estético e linguístico da primeira fase
beneficiaram a segunda, possibilitando a utilização de uma fala mais comum, mais próxima ao
popular brasileiro, em seus textos. Embora ocorresse de nem todos os escritores da década se
identificarem com o movimento modernista, o fato é que as (des)construções estéticas e
linguísticas trazidas pelo movimento modernista beneficiaram os escritos posteriores. Segundo
Guilhermino César, a ficção desenvolvida a partir de 30 “soube, realmente, apropriar-se da
linguagem do homem comum, levando-a a bons níveis de expressividade sem afetação”31.
A temática social encontrou farto material na região Nordeste, onde os contrastes sociais
eram mais marcantes. Destarte, grande parte dos romances da época discorriam sobre a seca, o
cangaço, o declínio da grande propriedade açucareira, a religiosidade local. Outras regiões, como
o Sul e a Amazônia, também inspiraram produções literárias, além das inspirações em outras
temáticas não regionalistas, como a prosa urbana e a prosa intimista; contudo, maior enfoque foi
dado à região. Vale lembrar aqui a caracterização feita por Alfredo Bosi sobre a literatura do
período, de um “realismo bruto”32, preocupado em demonstrar as mazelas sociais. Desta fase
31
CÉSAR, Guilhermino. Poesia e prosa de ficção. In: FAUSTO, B. (Org.). O Brasil republicano, tomo III, vol. 4:
economia e cultura (1930-1964). São Paulo: Difel, 1984. p. 437.
32
BOSI, Alfredo. Tendências contemporâneas. In: História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
1990, 3ª. ed., p. 433.
28

temos como principais nomes os romancistas José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge
Amado, Graciliano Ramos, além de autores da chamada prosa intimista, como Lúcio Cardoso e
Cornélio Pena.

1.5.2 As relações entre intelectualidade e política

As mudanças ocorridas ao longo da década de 30 mais fizeram para fomentar as


discussões e engajamentos. Se até a véspera da Revolução de 1930 havia cautela por parte dos
intelectuais em participar da política, posteriormente o cenário mudou. Segundo Cândido, embora
o movimento de outubro não se constituiu por si só em um começo, por outro lado foi “um eixo e
um catalisador: um eixo em torno do qual girou de certo modo a cultura brasileira, catalisando
elementos dispersos para dispô-los numa configuração nova”33. A efervescência de projetos e
possibilidades fez com que a intelectualidade participasse mais ativamente do fazer político, seja
apoiando o regime, seja em um alinhamento com as fileiras contrárias deste, ou simplesmente em
uma atuação no plano cultural, com a busca do “Brasil autêntico”34. No Estado Novo, essas
tendências iriam se acentuar. Dentre as várias atuações, podemos citar os participantes do
Manifesto Verde-Amarelo, que se dividiram quanto aos rumos políticos: enquanto Plínio Salgado
participaria do Integralismo, de extrema direita, Menotti Del Picchia auxiliaria na Revolução
Constitucionalista de 1932. E também as atuações de escritores como Carlos Drummond de
Andrade, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, que tenderam para a esquerda, tanto como
simpatizantes como quanto filiados a partidos.
Por sua vez, o governo revolucionário e, principalmente, o estadonovista, fez várias
tentativas no sentido de cooptar os intelectuais, em parte como necessidade advinda do próprio
processo de racionalização burocrática do Estado. Houve um reconhecimento do papel do
intelectual, com profissões regulamentadas por estatutos, direitos específicos, criação de
instituições. Esse reconhecimento estava pautado em um movimento maior do Estado, de
institucionalização das práticas culturais, como exemplificam as reformas na educação pública, o
incentivo à educação moral e cívica, o desenvolvimento de meios de difusão cultural como o
livro e o rádio. Por outro lado, essa institucionalização implicava em certo controle. Um dos

33
MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. A revolução de 1930 e a cultura. In: A educação pela noite & outros
ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 181.
34
PÉCAUT, Daniel. Op. cit., p. 74.
29

exemplos mais claros é a já citada criação do DIP, que supervisionava as produções do rádio,
cinema, teatro, entre outros.
A revista Cultura Política, publicação oficial subordinada ao DIP, exemplifica bem essas
tentativas, revelando o pensamento vigente de relacionar cultura e política, produção nacional e
organização estatal. Tendo como principais escritores nomes do governo como Francisco
Campos, Lourival Fontes e Azevedo Amaral, a revista se tornou veículo oficial de divulgação do
pensamento ideológico getulista. Contudo, muitos colaboradores ocasionais detinham orientação
ideológica bem diversa da oficial, como é o caso de Graciliano Ramos, Vieira Pinto e Gilberto
Freyre, que apresentaram textos sobre os modos de vida do Nordeste; ou Nelson Werneck Sodré,
futuro teórico do PC, com textos sobre consolidação nacional.
Muitos intelectuais, inclusive, eram funcionários públicos, casos de Carlos Drummond de
Andrade, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Apesar disso, nem todos os intelectuais se alinharam de
todo ao regime, exemplo do próprio Drummond, de tendências esquerdistas visíveis em suas
obras, mesmo trabalhando em órgão oficial. Segundo Pécaut, mesmo a tentativa de cooptação
não fez com que os intelectuais perdessem toda a sua independência intelectual 35. Por outro lado,
o projeto de regime se apresentava muitas vezes mais cultural do que mobilizador, de uma cultura
nacionalista, o que permitia uma maior liberdade de ação e pensamento, mesmo que limitada.
Essa ideia de Pécaut encontra eco no texto já apresentado de Ângela Gomes, que discorre sobre a
construção de uma cultura política de redescobrimento do nacional.
Graciliano Ramos, um dos escritores que manteve posições antagônicas, e mesmo
contraditórias com o regime varguista, foi o autor do romance São Bernardo, de 1934, obra que
esse estudo pretende analisar como fonte histórica. Para tanto, porém, se faz necessário verificar
as relações entre a História e a Literatura, com a observação de uma metodologia específica, a
fim de ressaltar de que modo uma obra literária pode contribuir nos estudos históricos.

35
Idem, Ibidem, p. 72.
30

2. A LITERATURA ENQUANTO FONTE HISTÓRICA

2.1 AS RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA

O diálogo entre a produção do conhecimento histórico e a produção literária – contos,


romances, poemas e demais gêneros – no âmbito acadêmico vem de algum tempo. Tal diálogo já
ultrapassou antigas posturas que observavam, no caso dos estudos literários, a estrita
contextualização histórica do período de em que a obra e seu autor estavam inseridos, e no caso
da historiografia, a narrativa literária apenas enquanto “ilustração complementar” dos fatos
históricos apurados. Outros enfoques enriqueceram a relação História-Literatura, em que a
complexidade das novas formas de percepção da realidade se faz presente, ampliando as
discussões sobre as proximidades e distâncias entre os dois campos36.
No âmbito específico da História, de nosso interesse, os debates surgidos por volta da
década de 1960 e décadas subsequentes trouxeram a problematização de novos objetos e
possibilitaram a utilização da literatura como fonte histórica, inserindo-a em reflexões em que as
sensibilidades, as paixões dos sujeitos, as emoções passaram a fazer parte das investigações sobre
o passado, para além de uma racionalidade dos discursos, como demonstra Cristiane da Silveira
em seu estudo sobre a obra de Lima Barreto37. Deste modo, cabe aqui um olhar mais acurado
sobre essas relações entre os dois saberes.

2.1.1 Especificidade dos campos e formas narrativas

Em sua especificidade, a literatura compõe-se de forma expressiva ficcional alçada à


condição de obra de arte por seu valor estético e narrativo, e cujo produtor figura como artista,
em um processo de individualização. Trata-se de criação que se utiliza, em maior ou menor grau,
de resíduos da realidade, ficcionalizando-os, relacionando sentimentos, imagens e percepções
com a preocupação com questões estéticas. Segundo Alfred Döblin 38 uma narrativa, mesmo que
não contenha fatos que realmente aconteceram, por mais impossível que possa parecer, se não for
36
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nuevos,
Debates, 2006. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/1560>. Acesso em 02 set. 2010.
37
SILVEIRA, Cristiane da. Entre a História e a Literatura: identidade nacional em Lima Barreto. História: Questões
& Debates, Curitiba, Paraná, n. 44, p. 115-145, jan./jun. 2006. p. 117.
38
DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós (tradução, texto introdutório e notas de Marion Brephol de
Magalhães). História: Questões & Debates, Curitiba, Paraná, n. 44, p. 13-36, jan./jun. 2006.
31

verossímil, logo é rejeitada pelo leitor. Há entre este e o autor o estabelecimento de um acordo,
um jogo: “Nós participamos do texto porque tudo é possível, e nada precisa ter acontecido de
fato. Aceitamos as regras do jogo. Não precisa ter acontecido, mas nós consentimos no jogo
somente com uma condição: tem de ser algo ao menos possível” 39. Deste modo, embora ficção
assumida, a literatura contém elementos do real, diluídos em fronteiras flexíveis entre a invenção
e as reinterpretações.
A produção literária também está relacionada com determinadas funções intelectuais e
sociais, para além do entretenimento ou senso estético, sobre as quais discorre o semiólogo e
escritor Umberto Eco40. Uma das mais prementes é a manutenção e perpetuação de certas
características da língua enquanto patrimônio cultural, bem como a gerência das modificações
sofridas pela mesma ao longo do tempo, no processo contínuo – mesmo que aparentemente lento
– de renovação e transformação da linguagem. Portanto, ao mesmo tempo em que mantém vivas
as formas tradicionais da língua, a literatura cria, transforma, traz novos significados às palavras.
E, por este seu papel, a narrativa literária carrega – mas também contribui para – a formação de
um senso de identidade coletiva, seja ele a nível local, regional ou nacional; senso este carregado
de símbolos, valores, anseios e práticas de determinado (s) grupo (s). E, por fim, ela integra parte
importante no exercício da linguagem individual.
Podemos deduzir, a partir dos apontamentos feitos, uma aproximação da produção
literária com a histórica, na medida em que a literatura trabalha com elementos da realidade,
sejam eles elementos esparsos que ajudam na construção narrativa da obra, seja a utilização de
fatos históricos concretos na totalidade do escrito – caso do romance histórico e do poema épico,
por exemplo –, em um processo artístico e experiência estética de ficcionalização e
ressignificação. Do mesmo modo traz consigo sentidos identitários que perpassam o texto, de
forma mais ou menos visível; imagens, visões, significados e práticas de indivíduos e,
principalmente, coletividades. Assim sendo, fruto das habilidades criativas de seu autor, a
literatura também é, contudo, produto cultural e histórico, na medida em que a sua produção é
permeada pelos valores, opiniões e visões de mundo próprios do período temporal em que se
insere, bem como das premissas sociais, culturais, os valores, expectativas e motivações de seu

39
Ibid., p. 16.
40
ECO, Umberto. Sobre algumas funções da literatura. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 09-21.
32

autor41. Essa aproximação, entretanto, será aprofundada mais tarde. Importa, antes, observar as
peculiaridades narrativas da História.
Os discursos históricos, por sua vez, também se constituem de criações narrativas, com
diferenças, porém, que serão discutidas ao longo do texto. Outrora considerada em termos de
verdade absoluta e narrativa objetiva dos fatos, a escrita da História passou por transformações e
debates que a retiraram do paradigma da ambição de verdade para colocá-la em outro âmbito de
discussão. Destarte, a História passou a ser considerada como narrativa que, embora baseada em
determinada documentação que a confirme e guiada por pressupostos e métodos científicos
específicos, não deixa de ser uma criação, pois o material com que trabalha é fruto das ações
humanas no tempo, que percorrem caminhos nem sempre perceptíveis a um primeiro exame. Faz-
se por escolhas de abordagem, por silenciamentos, pelo preenchimento das lacunas deixadas pela
documentação (e a falta de), estando relacionada também às subjetividades do “narrador”
/historiador, suas escolhas teóricas, implicações ideológicas, sua visão de mundo.
Desta maneira, os estudos históricos passaram a refletir sobre o próprio método pelo qual
se fez a naturalização dos eventos – na medida em que estes não podem ser apreendidos em sua
totalidade, e em que a História não se trata de um campo de conhecimento coeso, homogêneo e
portador da verdade, da realidade última. Como nos mostra o historiador Erivan Karvat,

O passado – de maneira geral, ou especificamente literário ou historiográfico – não


apresenta condições de se autoexplicar. Assim, toda relação que qualquer presente
supostamente estabelece com um passado possível passa, de forma inevitável, por uma
relação de apropriação. Relação esta que, por exemplo, se expressa na necessidade da
instauração de demarcações e vínculos ou de censuras. Dessa forma, tal passado –
resultante de um efeito de leitura de um presente – impõe inequivocamente a

necessidade de atenção sobre os instrumentos e mecanismos que o tornam inteligível.42

Essas implicações, também já as pensava Döblin, de maneira pouco diversa, ao discorrer


sobre a produção do conhecimento histórico. Em seu texto, cita a diferença de interpretações e
utilizações da documentação disponível entre um historiador e outro; a influência dos
julgamentos pessoais, de classe e relativos ao tempo histórico dos historiadores em suas obras,
41
FACINA, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004.
42
KARVAT, Erivan Cassiano. História & Literatura: reflexões sobre a História da História a partir de notas de
História da Literatura. In: GRUNER, Clóvis; DENIPOTI, Cláudio. Nas tramas da ficção: história, literatura e
leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 28-29. Grifos do autor.
33

entre outros pontos. Assim sendo, esses aspectos não permitem à História ser apenas uma “nítida,
nua e crua transmissão sobre o que efetivamente aconteceu”43.
Assim sendo, a renovação das abordagens historiográficas acima mencionada, ocorrida
por volta da década de 1960, trouxe questionamentos aos modelos de pesquisa utilizados tanto
nas abordagens mais positivistas quanto nas orientadas pelo pensamento da Escola dos Annales –
esta última considerada em um certo sentido como “herdeira” da produção do século XIX44. Tais
questionamentos trouxeram a possibilidade da problematização de novos objetos, a ampliação da
utilização de outras fontes documentais e de novos enfoques, a partir de questões e de
documentação ainda pouco exploradas. Dentre as quais, o da observação da narrativa literária
enquanto fonte de estudo para a produção historiográfica, em um período em que esta voltava
mais o seu olhar para a percepção dos sistemas simbólicos, representações e práticas sociais, em
crescente diálogo com outras áreas de conhecimento, como a antropologia e os estudos sobre arte
e estética. De modo semelhante, houve um subsequente ressurgimento dos debates acerca das
formas de escrita da História e sua recepção. Todas essas preocupações continuam presentes no
debate historiográfico atual, segundo Sandra Pesavento45.
Essa transformação das abordagens e perspectivas na produção histórica se inserem em
um contexto de crise e questionamentos maiores, o das ciências sociais em geral, como bem o
discute Roger Chartier46. Estão relacionados a uma nova percepção da realidade. As ciências
sociais passaram a atentar para a impossibilidade de lidar cientificamente com o material humano
da mesma maneira que se trabalha com os acontecimentos do mundo físico e natural. Do mesmo
modo, novos sentidos de realidade, que passaram a compreendê-la em seus aspectos subjetivos,
influíram nos estudos sociais no que concerne à dificuldade de observação de suas diferentes
camadas, e no relacionamento complexo e flexível entre a realidade e a ficção. Nesse sentido,
surgiram novos postulados, que levaram ao questionamento das abordagens tradicionais, ao
surgimento de novos modelos interpretativos, à utilização de outros tipos de fontes documentais.
Essa crise inseriu a História em uma discussão, conforme acima comentada, que implicou em
novos olhares sobre a mesma, sem os pressupostos de um passado fixo e determinável e de uma
objetividade intrínseca, criando a necessidade de novas formas de reconstrução histórica.
43
DÖBLIN, Alfred. . Op. cit., p. 23.
44
LACAPRA, Dominick. História e o romance. RH – Revista de História; trad. de Nelson Schapochinik., Campinas,
IFCH, Unicamp. Inverno de 1991. pp. 107-124.
45
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit. p. 2.
46
CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13,
p. 97-113. 1994, e CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, v. 11, n. 5, p. 173-191. 1991.
34

Chegamos em um outro ponto da questão, aquele relacionado com as formas de narração


da História. A (re)descoberta de sua significância enquanto discurso narrativo, para o qual as
reflexões de autores como Michel de Certeau e Paul Ricoeur foram peças-chave, segundo
Chartier47, implicou em repensar a produção historiográfica, mesmo aquela mais estrutural e
menos preocupada com a forma, enquanto permeada pelas bases e fórmulas da produção de
narrativas. Ao lidar com a palavra escrita e com a descrição de ações direcionadas por um enredo,
a produção do conhecimento histórico trava contato com elementos próprios da elaboração de
narrativas. Utiliza-se desses elementos, assim como a literatura, para reconstruir e reinterpretar
fatos, tendo por objetivo perpetuá-los através da escrita e dar expressividade a experiências,
sentimentos, tensões e pensamentos tanto individuais como sociais. A reflexão, portanto, de seu
estatuto narrativo trouxe para a História discussões sobre as formas de narrar, a recepção da
escrita histórica e a relação forma-conteúdo. A partir desses embates surgiu o que se
convencionou chamar de “volta à narrativa” no campo da História, entendida aqui não como um
abandono da mesma após um período em que era mais valorizada (o período clássico) e uma
posterior volta, visto ser toda a produção histórica uma narração, sem exceções. E sim uma
preocupação com novas formas narrativas, mais atraentes, com uma maior aceitação dos escritos,
com novas formas de erudição.
Preocupação atual da História, a questão da narrativa nos traz outra das aproximações
possíveis entre a primeira e a Literatura. Como discursos narrativos, ambos dividem fórmulas e
materiais de construção de textos. Formas de linguagem, é certo; mas também formas de criação,
de codificação do real, de produções de sentido. Nesse contexto, surge a pergunta: qual a
diferença, então, entre as produções literárias e historiográficas? Refletindo sobre o assunto,
Márcia Naxara48 demonstra que as similaridades entre as duas áreas dinamizam a relação,
possibilitando o diálogo e interações. Porém, por mais que se utilize do real na construção de suas
ficções, a literatura posiciona-se como ficção assumida. Uma livre criação de fronteiras mais
flexíveis para seu produtor, sem a necessidade de comprovações documentais ou teorização das
ideias baseado em correntes de pensamento, neste ou naquele autor, apenas confirmando-se a
observação do quesito verossimilhança, já comentado anteriormente no texto.

47
CHARTIER, Roger. A história hoje...Op. cit., p. 99.
48
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Historiadores e textos literários: alguns apontamentos. História: Questões &
Debates, Curitiba, Paraná, n. 44, p. 37-48, jan./jun. 2006.
35

A produção historiográfica, por sua vez, insere-se em contexto diverso, no sentido de que,
embora construção discursiva, pela qual perpassam determinados níveis de subjetividade e
abstração criativa de seu produtor, se distancia da “livre criação” ou “invenção” pura e simples
das ocorrências e personagens. Em um âmbito mais estrito, sua “criação” ou “invenção” encontra
limites mais rígidos, em que a tentativa de apreensão de um máximo de verdade possível (agora
sem a ambição da obtenção de uma “verdade total”), a investigação científica amparada em
documentação de época, bem como a discussão a partir de determinados pressupostos teórico-
metodológicos, com debates e contribuições de uma produção intelectual em constante
atualização, norteiam e conferem o caráter científico da produção. Para tanto, vale a observação
de Chartier, quando menciona

[...] A organização em “camadas” ou “folheada” (como escrevia Michel Certeau) de um


discurso que compreende em si mesmo, sob a forma de citações que constituem efeitos
da realidade, os materiais que o fundamentam e cuja compreensão ele pretende
produzir. Elas estão ligadas, igualmente, aos procedimentos de acreditação específicos
graças aos quais a história mostra e proclama seu estatuto de conhecimento
verdadeiro.49

Desta maneira, percebem-se as diferenças principais entre as narrativas da História e as


narrativas literárias, em que os métodos de pesquisa e uma preocupação mais apurada com a
apreensão da realidade caracterizam a produção historiográfica de maneira mais marcante.

2.2 UTILIZAÇÃO DE FONTES LITERÁRIAS EM HISTÓRIA

Abordadas as possíveis relações entre a História e a Literatura, passemos à discussão da


problemática da utilização da obra literária enquanto fonte histórica, preocupação principal dessa
pesquisa. Por suas especificidades, o discurso literário apresenta indícios de realidade, mesclados
na criação artística aos estilos e preocupações com a linguagem, que possibilitam sua apreensão,
ao menos em parte. O cruzamento entre história e literatura possibilita, portanto, uma maior
flexibilidade para se pensar a história e os vários elementos constituintes de sua (re)construção,
nas suas diferentes perspectivas.

49
CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 100.
36

2.2.1 Especificidade do romance

Partindo da premissa das relações entre as narrativas históricas e literárias, acima citadas,
chegamos em outro ponto da discussão: o caráter da realidade apresentada na obra. De acordo
com Ian Watt50, o romance apresenta características peculiares que o diferem das demais
produções literárias. Desde o seu surgimento, apontado pelo autor com os escritos de Daniel
Defoe, Samuel Richardson e, em menor escala, Henry Fielding, o romance teria apresentado
particularidades narrativas que não permitiam a classificação de acordo com os velhos gêneros
como a tragédia ou a epopeia. Ao contrário, diferiam destas por uma narrativa que não se baseava
na História, na mitologia clássica, na fábula ou em concepções derivadas de modelos tradicionais.
A principal novidade dessas histórias era de que tratavam da experiência individual e
comum em suas composições. Influenciadas pelo modelo cartesiano de busca da verdade, tinham
por concepção a realidade enquanto vivência do indivíduo – e, portanto, única e sempre nova,
não podendo ser baseada em modelos pré-estabelecidos. Os autores acima citados foram os
primeiros, segundo o autor, a recusar os enredos tradicionais, apresentando histórias inovadoras,
que valorizavam a experiência individual dos personagens e a novidade dessa experiência.
Desta maneira, a intrínseca relação com a realidade se constituiu na característica que
mais diferia o romance de seus congêneres literários. Diversa da ode, por exemplo, não precisava
se pautar em um modelo já consagrado. Deste modo, outros parâmetros foram buscados para a
composição narrativa, principalmente aqueles relacionados a experiências de determinados
grupos ou indivíduos, atentando muito mais para a realidade que os cercava.
Visto ser a vivência única um de seus motores, a originalidade do texto se fazia premente
– outra das diferenças do gênero frente a seus antecessores. Nesse sentido, o que seria repudiado
em outros tipos de obras, por parecer estranho ao tradicional, no romance constituía peça-chave.
Assim sendo, de acordo com Watt,

Ao avaliarmos uma obra de outro gênero, em geral é importante e às vezes essencial


identificar seus modelos literários; nossa avaliação depende muito da análise da
habilidade do autor em manejar as convenções formais adequadas. Por outro lado,
certamente prejudica o romance o fato de ser em algum sentido uma imitação de outra
obra literária e parece que a razão é a seguinte: já que o romancista tem por função
50
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding; trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
37

primordial dar a impressão de fidelidade à experiência humana, a obediência a


convenções formais preestabelecidas só pode colocar em risco seu sucesso.51

Assim sendo, a experiência individual e a ligação particular com a realidade são


diferenças fundamentais, que fazem do romance obra privilegiada quando se pretende analisar
dados de uma certa realidade a partir deste gênero. Tendo em vista essas peculiaridades, se faz
necessário verificar os elementos presentes na obra literária que podem contribuir para as análises
nos estudos históricos.

2.2.2 Imaginário e representações

Necessário se faz dizer, que essa realidade não se apresenta nos discursos tal qual ela é;
seria impossível compreender o real em sua totalidade através de uma obra literária, muito menos
se esse real pertence a outras temporalidades que não a nossa. Deste modo, o repensar em
História através da literatura deve ser feito dialogando com o material próprio da construção
literária – os estudos sobre o imaginário. O imaginário, segundo a perspectiva de Pesavento, é

Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta,


definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário
representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. É elemento organizador
do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É sistema de identificação,
classificação e valorização do real, pautando condutas e inspirando ações. É, podemos
dizer, um real mais real que o real concreto...52

Nele ficção e realidade interagem, a partir de uma delicada construção que visa dar novos
sentidos e interpretações, em um exercício de reordenação do mundo. É através do imaginário
que os sujeitos (re)constroem, reordenam e emprestam identidades, valores e classificações à
realidade, dando a ela outra dimensão. Nesse sentido, é repensando o imaginário e suas
configurações que podemos observar as fronteiras entre realidade e ficção, deduzindo um espaço
lúdico de interpretações que ultrapassam a própria ficção53.
51
Idem, Ibidem, p. 15.
52
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 3.
53
MUELLER, Helena Isabel. Devaneios amazônicos de Mário de Andrade. In: GRUNER, Clóvis; DENIPOTI,
Cláudio. Nas tramas da ficção: história, literatura e leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. P. 129-147.
38

Partindo deste conceito de imaginário, nos deparamos com outro, o de representação, no


qual o primeiro encontra seu entendimento. Conceito este desenvolvido por Roger Chartier em
seu artigo mais famoso54, em que este historiador retoma os termos utilizados por Paul Ricoeur de
“mundo do leitor” e “mundo do texto” para suas pesquisas sobre as práticas de leitura e uma
história do livro dentro de um recorte histórico que compreende o os séculos XVI e XVIII do
Antigo Regime francês. Chartier está inserido dentro da corrente historiográfica que se costumou
chamar de “Nova História Cultura”, linha de pensamento que deixou de lado o viés marxista de
entendimento da cultura como parte da superestrutura ou mera expressão das elites. Também
superou o entendimento dual da cultura, em que a cultura dita erudita se opunha à cultura
popular. Assim sendo, trouxe para a historiografia uma nova acepção das produções culturais,
considerando-as não apenas em termos estéticos ou enquanto participante de diversas correntes e
escolas, típico de uma “história do pensamento”, mas enquanto conjunto de significações e
modos de interpretação do mundo55. Esta corrente ainda trouxe uma maior aproximação entre a
História e outros campos do conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia,
entre outros. Não se trata, portanto, de negar uma “História das mentalidades” ou conceitos
anteriormente desenvolvidos como o de longa duração, ou mesmo a influência das estruturas
econômicas; mas antes, de repensá-los em conjunto com outros fatores importantes na apreensão
dos fatos históricos, como os signos, símbolos, representações, enfim, os elementos culturais que
permeiam a vida em sociedade.
Deste modo, os objetos e análises antes deixados em segundo plano passaram a fazer parte
importante da construção historiográfica com a Nova História Cultural. Entre eles as diversas
manifestações culturais, incluindo, portanto, a literatura. Indo fundo em sua investigação,
Chartier não considerou a obra literária apenas como objeto estático e portador de um único
significado, ou em como “sorriso da sociedade”, produção apenas para o “deleite do espírito”;
mas em suas múltiplas significações, na relação entre obra, autor e leitores, nas práticas de
leitura. Deste modo, demonstrou a necessidade de considerar o texto não apenas em seus aspectos
semânticos ou estéticos, mas enquanto formas que produzem sentido. Destarte, auferiu também a
necessidade de considerar a particularidade dos modos de ler de cada temporalidade, de cada
recorte geográfico e cultural, a observação das relações dos leitores com o escrito, a fim de

54
CHARTIER, Roger. O mundo como representação... Op. cit.
55
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
39

compreender os diferentes sentidos dados à obra, suas significações e possíveis utilizações por
parte de quem lê.
Esta observação dos textos, do livro e dos leitores traz consigo pressupostos relativos às
práticas culturais e sociais de indivíduos e grupos. Negando o debate que insere as estruturas nos
estudos históricos e sociológicos em termos objetivos, e os modos de representação e construções
de sentido como subjetivos, Chartier discute os próprios sistemas de classificação como
representações coletivas da sociedade, matrizes de práticas construtoras de sentido no mundo
social, que acabam se impondo por um discurso mesmo de “objetividade”.
Desta maneira, o historiador retoma o conceito de “representação coletiva” da sociologia
de fins do século XIX e início do XX, a fim de discutir as simbologias, significados e construções
presentes em vários âmbitos sociais, principalmente no que concerne às produções culturais, e o
livro sobremaneira, preocupação última de suas pesquisas. Este conceito está pautado por três
pontos de relação com o mundo social. O primeiro está relacionado às classificações e recortes do
trabalho intelectual que constroem e refletem sentidos nas múltiplas camadas da sociedade. O
segundo está relacionado às práticas sociais e culturais que traduzem identidades, simbologias e
posições. E, por fim, o terceiro se refere à institucionalização e representatividades oficiais que
amplificam práticas e símbolos e marcam a existência de coletividades em suas diversas formas.
É necessário, porém, uma melhor definição do conceito de “representação”. Em suas
várias acepções, a palavra pode significar: 1) representação coletiva associada à mentalidade e
classificação social; 2) representação política; 3) representação no âmbito teatral; 4)
representação social relacionada a classes ou grupos identitários. No desenvolvimento e
utilização que faz da palavra, o autor relaciona-a com as formas de significação e transformação
do real em símbolos e imagens decifráveis e acessíveis. Nesse sentido, a representação contém
uma ausência que pode ser traduzida por outra presença. É o modo de transformar, através de
signos e imagens, algo ausente em presente, visto que a imagem ou signo que representa o objeto
lhe é homóloga e, portanto, se traduz como equivalente. Esses signos e imagens são diferentes
construções do real, diferentes sentidos dados ao mesmo, feitos por diferentes coletividades.
Assim sendo, a representação parte da relação entre um signo visível e seu significado, embora
estes nem sempre possam ser compreendidos em suas verdadeiras acepções. Parte deste último
ponto o que autor denomina como “fraqueza da imaginação”, ato de considerar os signos visíveis
como a realidade que na verdade não é.
40

Retoma-se, portanto, as considerações da literatura enquanto representação do real,


seguindo os debates de Chartier. É a partir deste conceito que podemos entender a produção
literária não enquanto relato fiel da realidade, nem como pura ficcionalização. Mas sim em seus
termos representativos de uma construção de sentido dada por determinados indivíduos e grupos.
A literatura, assim como outras produções culturais, contém representações do real que revelam
as identidades sociais, os símbolos presentes do local de onde parte. Partindo dessa premissa,
poderemos apreender o(s) sentido(s) de real para determinados grupos, os significados e
sentimentos representados na literatura.

2.2.3 O autor

A obra literária, em sua narrativa, contém construções de sentido para o real, que podem
ser verificados através do estudo das representações. Porém, vale lembrar que a obra foi escrita
por (geralmente) um indivíduo, que também é fruto de seu tempo. Dito como artista – produtor
de uma obra artística, consideradas as construções lingüísticas e estilísticas nela presentes – o
autor era comumente visto a partir de seu gênio criativo, suas habilidades com a palavra,
concepção esta que perdurou muito tempo. Nesse sentido, a própria obra era pensada apenas nos
termos de sua qualidade estética, ou, quando muito, fruto de seu tempo histórico sem, contudo,
inserir-se seu autor nesse meio, como se ele só pudesse ser considerado por seu talento, acima de
qualquer influência do meio. A expressão mais comum era, portanto “homem à frente de seu
tempo”. Para Adriana Facina, nenhum homem está à frente de seu tempo, pois está inserido em
determinado contexto histórico e, portanto, seus pensamentos, seus valores e concepções se
encontram dentro de uma linha geral de temporalidade e socialização56.
Deste modo, para o estudo da literatura enquanto fonte histórica faz-se necessário também
repensar o seu produtor, o autor, inserido em seu meio, as influências em sua obra de seus
valores, visões de mundo, de suas origens, classe, gênero, enfim, contextualizá-lo em seu período
histórico. Pois o autor não está isento de julgamentos, e, portanto, não deve ser considerado
superior ou acima de influências históricas57. Aqui lembramos de outro texto de Foucault,

56
FACINA, Adriana. Op. cit.
57
FOUCAULT, Michel apud HAIDUKE, Paulo Rodrigo Andrade. A modernidade entre o desencanto e a
idealização: um diálogo entre História e Literatura a partir do romance À la recherche du temps perdu de Marcel
Proust. 2010. 174 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná, Paraná.
41

denominado “A ordem do discurso”58, em que o filósofo demonstra a relação existente entre a


produção de um discurso – seja ele filosófico, histórico, literário – com o local aonde foi
produzido (autores, instituições, grupos). Apesar da suposta denominação de verdade com que os
discursos são apresentados, Foucault denota a intrínseca relação entre o discurso e o poder,
relação esta que compreende os processos de produção e seus correlatos de regulação, seleção e
distribuição dos discursos. Qualquer discurso apresentado por “verdade” passa por estes
processos, deles sofre influências. E esta relação é circular, porque os mesmos discursos,
influenciados pelos processos acima citados, repercutem e ampliam suas relações com o poder;
que por sua vez retorna estes discursos, e assim sucessivamente.
Desta maneira, vale retomar a literatura, e principalmente seu autor, enquanto produções
discursivas que estão permeadas por estas relações de poder, sofrendo delas influências. Para
tanto, estudar dados biográficos de seu autor, relacionando-os com o contexto em que estava
inserido, seus anseios, valores, ideologias, se torna importante na medida em que revela outras
perspectivas de produção e de sentido da obra.

58
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no College de France, pronunciada em 02 de
dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
42

3. ANÁLISE DE SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS

3.1 O AUTOR EM SEU TEMPO HISTÓRICO E LITERÁRIO

Erico Veríssimo, em sua Breve história da literatura brasileira, declara que a geração de
fins dos anos 1920 e início dos anos 1930 já não era mais acadêmica e convencional como as
anteriores ao Modernismo. Os velhos padrões já haviam sido quebrados. Contudo, também não
apresentava mais os extremismos da primeira leva de modernistas, ávidos por chocar e mudar
regras. As conquistas nos campos linguístico e estético consolidaram-se. Mais moderada, essa
geração tentava construir algo sólido em termos de literatura nacional. De acordo com o autor, “a
década de 30 trouxe à literatura brasileira sua maioridade. Os traços de adolescência – um pendor
ao mero jogo de palavras e cores, a falta de espírito de análise – desapareciam”59.
Foi nesse período que os escritores, bem como os demais intelectuais, passaram a
demonstrar mais interesse pelos problemas sociais e filosóficos de seu tempo. Como já visto, a
retomada do regionalismo, bem como o papel principal dado à temática nordestina, foram as
principais características desta fase. A prosa de ficção ganhava espaço, traduzindo-se numa
marca do período, principalmente a que ficou conhecida como “romance social” ou “romance
nordestino de 30”. Iniciadas com o romance A bagaceira, de José Américo de Almeida (1928),
abordagens como a do problema das secas, das grandes propriedades rurais ou das peculiaridades
culturais do Nordeste encontraram ampla difusão na literatura da época. De acordo com Bosi, a
influência das conquistas estéticas e linguísticas do Modernismo, bem como as condições
históricas de mudanças em 30 condicionaram o surgimento de estilos ficcionais marcados pela
rudeza, pela tentativa de captação direta dos fatos, que em alguns autores – como é o caso do
autor aqui estudado – se caracterizaram pela “grandeza severa de um testemunho e de um
julgamento”60.
É esse o contexto em que o escritor Graciliano Ramos ficou conhecido. Alagoano de
Quebrangulo, nasceu em 1892, oriundo de uma família de elite rural, já em decadência. Quando
criança morou em diferentes cidades do interior alagoano, inclusive na mesma cidade que serve
de pano de fundo ao romance São Bernardo. Desde cedo demonstrou interesse pelas letras,
dirigindo, aos oito anos, um jornal infantil. Estudou línguas como o latim, o francês, o inglês. Em
59
VERÍSSIMO, Erico. Op. cit., p. 119.
60
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 438.
43

1914 mudou-se para o Rio de Janeiro, a fim de prosseguir seus estudos, retornando, porém, logo
em seguida. Fixando-se em Palmeira dos Índios, acabou casando duas vezes, e tornou-se prefeito
da cidade. Em um relatório administrativo enviado ao governador do estado, chamou a atenção
de alguns literatos pela linguagem inusitada. Desta maneira, recebeu incentivos, inclusive do
poeta Augusto Frederico Schmidt, para publicar sua primeira obra, Caetés (1933). Por essa época
já colaborava com artigos e revisões em jornais locais. Em 1934 publicou São Bernardo61, obra
que apresentava, segundo especialistas62, um salto qualitativo, e que possibilitou a ampliação do
público leitor.
Exerceu diversos cargos públicos. Na função de Diretor da Instrução Pública de Alagoas,
foi acusado de comunista, sendo em 1936 demitido e preso por nove meses sob a perseguição
pós-Intentona empreendida no governo getulista. Apesar das tendências esquerdistas, sua filiação
ao partido se daria somente em 1945. Na maior parte do tempo em que esteve encarcerado, ficou
no Rio de Janeiro, no temido presídio de Ilha Grande. Neste período, escreveu Angústia e
esboçou textos sobre a experiência na prisão, que seriam publicados postumamente sob o título
de Memórias do cárcere (1953). Libertado em 1937, passou o restante de sua vida com a família
no Rio, em situações de dificuldade. Publicou ainda Vidas secas (1938) – sua obra mais
conhecida –, A terra dos meninos pelados (1939), Histórias de Alexandre (1944), Infância (1945)
e Insônia (1947). Em 1951 foi eleito Presidente da Associação Brasileira de Escritores. No ano
seguinte, fez uma viagem à União Soviética, registrada em livro. Faleceu em 1953.

3.2 A OBRA

3.2.1 A história de Paulo Honório

O romance, narrado em 1ª pessoa, inicia-se com a fala do personagem principal, Paulo


Honório, dono da propriedade rural São Bernardo. Paulo pretende publicar um livro contendo
suas memórias de vida. Porém, das diferentes atividades que desenvolveu em vida, nenhuma lhe
serve para esta tarefa; portanto, recorre a conhecidos, a fim de dividir o trabalho da escrita de
acordo com as capacidades de cada um. O protagonista, por sua vez, apenas organizaria o plano e

61
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Posfácio de João Luiz Lafetá. Rio de Janeiro: Record, 1989. 50ª ed.
62
Cf. BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 454.
44

ficaria encarregado das despesas, com quase nenhuma participação, ficando, porém, com todo o
mérito para si.
Desde o primeiro parágrafo, percebem-se as características que delineiam o narrador-
personagem frente aos demais: a ambição e sua atitude autoritária. Paulo Honório aparece ao
leitor como uma figura enérgica e empreendedora, que deseja coisas e rápido busca conquistá-las;
autoritária, que comanda e ordena seu mundo próximo de maneira a satisfazer suas vontades.
Entretanto, diversos empecilhos se colocam na feitura da obra. Nogueira pretende escrever o livro
com composições consideradas antiquadas por Paulo Honório. O Padre Silvestre, que ficaria
encarregado das citações em latim, trata-lhe com frieza – havia recebido com tal entusiasmo a
Revolução de 1930 que condenava quem a ela se opunha. Por fim, Paulo Honório desentende-se
com Gondim, reclamando das “baboseiras” que este havia escrito. O protagonista desiste, então,
de sua empreitada.
Ao fim de dois capítulos, ocorre no romance uma quebra de ordem cronológica e
narrativa. Após se decidir pela retomada da fatura do livro, agora sozinho, vemos então Paulo
Honório se apresentar e discorrer sobre sua vida, no que parece ser o começo da história contada
no livro do narrador-personagem. Parece mesmo que a história que Paulo narra é a mesma que o
leitor tem em mãos – fato que, entretanto, fica apenas sugerido.
Em suas rememorações, descobrimos que o protagonista não foi sempre proprietário:
órfão, de origem humilde, teve uma infância árdua. Desde sempre mandão e dado a encrencas,
ficou encarcerado um tempo, ainda em juventude. Foi também, desde cedo, interessado em
enriquecer, trabalhando como negociante, viajando muito, realizando complicadas transações
financeiras; desde cedo acompanhado por seu empregado Casimiro Lopes, em quem depositava
grande confiança.
Por fim, resolve se estabelecer na região alagoana de Viçosa, aonde entra em contato pela
primeira vez com a fazenda São Bernardo, como trabalhador. Fica encantado com ela, logo
pensando em planos para obtê-la. O descaso e a vida desregrada de Luís Padilha, herdeiro do
local, faz com que Paulo se torne seu financiador, emprestando-lhe grandes quantias a juros altos,
em uma ação calculada. Após algumas renegociações, o narrador-personagem resolve cobrar o
que é seu. Como o devedor se mostre sem condições de efetuar o pagamento, a solução
encontrada é vender a propriedade a Paulo, e a um preço bem abaixo do originalmente oferecido.
Durante essas negociações, é marcante a presença da personalidade forte do narrador-
45

personagem, que com sua ambição e força de vontade consegue subjugar a todos em favor de
seus desígnios.
Desconfiado, Paulo Honório está sempre pronto a detectar possíveis armadilhas. Como
Mendonça, seu vizinho, ameaçasse diminuir o espaço ocupado por São Bernardo em favor da
propriedade vizinha, o protagonista discute com o primeiro, chegando a ponto de ameaçá-lo
indiretamente. Ânimos esfriados, os proprietários acabam se entendendo temporariamente;
porém, o clima de tensão velada permanece. Alguns dias depois, Mendonça é assassinado em um
crime misterioso. Paulo se mostra totalmente sem escrúpulos quando da investigação do caso,
dissimulando suas intenções, enquanto muda discretamente as fronteiras vizinhas, aumentando
sua fazenda.
Ao longo da narrativa, o protagonista está sempre ampliando suas posses, construindo,
fazendo negociatas, iniciando novas técnicas, tentando aumentar a produção de sua propriedade.
Todas as suas ações são pensadas racionalmente, em termos de economia e otimização. Para ele
tudo é passível de ser transformado em lucro ou outras vantagens: os alicerces de uma igreja, a
possível construção de uma escola na propriedade. Passado cinco anos, já tem muita coisa
conquistada, inclusive a custo da invasão de partes de terras vizinhas. Encontra várias críticas à
sua ganância, além de perigosos conflitos armados. Nada disso lhe faz parar; com investimentos
na comunidade local e subornos, amortece tais impactos. Fica conhecido e aumenta em muito sua
influência política na região, recebendo até a visita do governador do estado.
Mesmo quando parece estar fazendo um ato altruísta, porta-se como se estivesse fazendo
negócios. É o caso de quando encontra uma antiga benfeitora sua, a velha Margarida. Solicita que
a mulher venha morar em sua propriedade. Como a mesma morava longe, Paulo “encomenda”
sua vinda, utilizando termos como “remessa” e “extravio”, como se ela fosse um objeto. Oferece-
lhe uma moradia com benefícios básicos, no que considera ser uma compensação pela ajuda
recebida na infância – compensação esta que é pensada através da lógica de mercado, em termos
de valores correspondentes.
Encontra, a certa altura, um homem idoso chamado Seu Ribeiro. Outrora famoso em um
distante povoado, era agora alguém pobre e solitário. Proprietário rural de antigamente, com
muitas riquezas, exercera influência na região em que morava, típica de uma sociedade patriarcal.
Não havia no local juiz, polícia ou chefe político; Seu Ribeiro cuidava de tudo. Era conhecido
como “major”. Porém, o povoado crescera, transformando-se posteriormente em cidade, com
46

todas as suas implicações modernas: chefe político, juiz, máquinas, estradas, médicos. E o poder
de Seu Ribeiro ruiu. Desenganado, viu sua família e as tradições as quais estava acostumado
esmorecerem. Vai por fim morar na cidade, vivendo por algum tempo na miséria, e tornando-se
posteriormente guarda-livros. Paulo Honório, de certo modo comovido com a história do homem,
e vendo nele alguma utilidade, resolve contratá-lo, dizendo: “- Tenho a impressão que o senhor
deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o
diabo”63. Neste trecho percebemos bem o posicionamento do protagonista, que em sua atitude
empreendedora acha que todos devem “correr” como ele, e, principalmente, se adaptar as
situações como ele, de maneira rápida e enérgica, porque o tempo não espera ninguém.
Certo dia, o protagonista põe-se a pensar em casamento. Não por causa de alguém em
especial, e sim para obter um herdeiro para suas terras. Idealiza e descarta várias mulheres, até
que conhece casualmente uma jovem professora denominada Madalena. Gosta dela. Tenta
convencê-la, através de intermediários, para vir morar e lecionar na fazenda. A moça recusa; no
entanto, cresce a intimidade entre ambos. Fala-lhe em casamento. É curioso notar que mesmo ao
referir-se sobre este o protagonista usa os termos de uma troca comercial, como “bom negócio”.
Madalena aceita. Por fim, casam-se depressa, e a jovem segue para São Bernardo, junto com a tia
D. Glória.
Madalena nos é apresentada por Graciliano Ramos como uma pessoa bondosa e atenciosa,
uma espécie de antítese de seu marido. Logo passa a se envolver mais com os assuntos da
propriedade, a demonstrar interesse nos trabalhos, a preocupar-se mais com os trabalhadores.
Inclusive, tenta interferir, clamando junto ao marido sobre questões de moradia, de salários e de
melhores condições, o que faz este se aborrecer, na maioria das vezes, e ceder em poucas.
Madalena doa vestidos de seda a empregadas; assiste com remédios, médicos e demais despesas
um velho empregado doente. Paulo Honório se enfurece. Discutem muitas vezes. Em suas
rememorações, reflete:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se
revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a
culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. [...] Emoções indefiníveis
me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar,
tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora.

63
RAMOS, Graciliano. Op. cit. p. 38.
47

Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.64

Nesse momento da narrativa, fica subentendido ao leitor que algum fato causou a
separação do casal, pois o narrador relembra da esposa como parte de um passado, com
sofrimento e amargura. Suas memórias, a certa altura, se confundem com fatos corriqueiros do
presente, e o narrador pensa ter ouvido vozes de pessoas que já não estão mais na fazenda.
Pessoas que, segundo ele, o deixaram, como D. Glória e Seu Ribeiro.
Sobre Madalena, o protagonista revela ter descoberto nela manifestações de ternura que o
sensibilizaram. Entretanto, não se entendem, pois são opostos: ele, bruto, irritadiço, pouco dado a
afetos, ambicioso; ela, inteligente, nobre, paciente, caridosa, destituída de ganância. Paulo
Honório desentende-se também com a tia da esposa, que sempre reclama da vida no campo e da
situação da sobrinha. Desconfia dela.
Como sua mulher estivesse grávida, o narrador-personagem tenta relevar as discussões;
porém, seu casamento vai de mal a pior. Madalena enfrenta-o quando de seus mal-tratos a
subordinados; o protagonista não gosta. Acha que a mulher gastava dinheiro à toa. Passa, por fim,
a ter ciúmes. Fica desconfiado de Luís Padilha, o antigo herdeiro da fazenda, que fora contratado
para trabalhar na escola local. Afora suas chateações com as ideias do primeiro, começa a achar
que Padilha e Madalena andavam muito íntimos. Desconfia também de outros conhecidos. A
certa altura, considera que só Casimiro Lopes, seu fiel empregado, o entende. Nesse ínterim,
nasce o filho do casal, um menino.
Cada vez mais ciumento, desconfia de todos com quem sua mulher trava relação: dos
debates políticos com Padilha, das conversas com Nogueira, das colaborações ao jornal de
Gondim. A dúvida o perturba. “Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher
intelectual. E a minha cara devia ser terrível, porque Madalena empalidecia e dava para tremer” 65.
A situação piorava: “o meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca”.“Os
fatos mais insignificantes avultaram em demasia. Um gesto, uma palavra à-toa, logo me
despertavam suspeitas”66. Por outro lado, Madalena, cada vez mais desgostosa de seu casamento,
descobre fatos passados da vida de Paulo Honório que a perturbam, como a morte de Mendonça.
Discutem; ela o chama de assassino.

64
Idem, Ibidem, p. 101.
65
Ibidem, p. 135.
66
Ibid, p. 137.
48

Por fim, Paulo encontra-a escrevendo a parte de uma carta, supostamente destinada um
homem. Fica enfurecido. Em uma marcante conversa na sacristia da igreja, marcada pelo piar de
corujas, Paulo exige ver a carta. Madalena informa que ele logo saberá do destinatário; porém,
não lhe falará nada por ora, para não brigarem mais. Discutem. A mulher reclama das atitudes do
marido, fala coisas sem sentido. Despedem-se. No dia seguinte, Paulo Honório depara-se com
Madalena morta: havia ingerido veneno. Já não havia mais nada a fazer. A parte da carta que
Paulo encontrara era integrante de uma despedida ao marido. Dizia que seu ciúme havia
arruinado tudo. Sem mulher, logo Paulo Honório se vê abandonado por outras pessoas de seu
convívio: D. Glória, que vai embora, e Seu Ribeiro, que demite-se.
Pouco lhe fica. A figura do filho pequeno, tão parecido com Madalena, o fazia entristecer.
Nem a amizade deste tinha. Os acontecimentos políticos locais e nacionais o desgostavam.
Praticamente abandona os afazeres da fazenda. Passados dois anos da morte de Madalena, já com
cinquenta anos, Paulo repensa sua vida.

O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos,
cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado
é que endureci, calejei.[...] Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações,
violências, perigos e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa.67

Reconsidera seus atos e sua personalidade. Pensa, arrependido, em sua esposa. “Madalena
entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos
esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo”68. Resolve, por fim, escrever o livro.
Graciliano Ramos retoma no fim do romance o tempo narrativo de seu início, em que Paulo
Honório faz algumas tentativas de construção de suas memórias. Ao fim do texto, não se tem a
certeza de que o projeto foi finalizado, nem se o texto de São Bernardo é realmente o texto que o
narrador-personagem escreveu. Apenas percebe-se a amargura e a solidão do protagonista. Desta
maneira é finalizada a obra.

67
Ibid., p. 181.
68
Ibid., p. 187.
49

3.2.2 O livro dentro de um livro

No início do livro, quando o protagonista faz suas primeiras tentativas de escrita do seu
livro, vemos um interessante debate entre Paulo e outra personagem, Gondim, sobre a linguagem
a ser utilizada na fatura das memórias:

- Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está
idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!
Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua
pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.
- Não pode? Perguntei com assombro. E por quê?
Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.
- Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, Seu Paulo. A gente discute,
briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se
eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.69

Esta discussão, em última instância, implica em um próprio repensar do autor sobre a


utilização da linguagem na literatura, em um exercício de aproximação com a fala popular, com
uma linguagem brasileira autêntica. A própria obra pode ser pensada nesse sentido: a ficção de
metalinguagem, com o fenômeno do livro dentro do livro, está permeada pelas preocupações,
problemas e peculiaridades do fazer literário. Segundo Marcelo Bulhões 70, a maioria das obras de
Graciliano Ramos é caracterizada pela metalinguagem, apresentada sob diversos aspectos nos
romances. Na maioria dos casos, a construção metalinguística se dá pela narrativa da história de
um indivíduo comum que tenciona escrever um livro, caso das personagens João Valério
(Caetés), Luís da Silva (Angústia), e da própria figura do autor em Infância.
No caso específico de São Bernardo, em que o protagonista pretende expor suas
memórias de vida através da escrita, a produção de um livro ocorre pelo desejo de enfrentamento
de um problema – uma experiência amarga do passado, que só pode ser rememorada e
“resolvida” através da escrita. Segundo Luís Soares, “os personagens de Graciliano Ramos são
solitários. Para o autor, a escrita é que os impulsiona ao outro. Todos seus personagens, e ele

69
Ibid., p. 09.
70
BULHÕES, Marcelo Magalhães. O jogo metalinguístico. In: Literatura em campo minado: a metalinguagem em
Graciliano Ramos e a tradição literária brasileira. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 1999. pp. 23-72.
50

mesmo, buscam, através da escrita, o contato consigo mesmo e com o outro [...]”71. Desta forma,
tal busca possibilitaria, em última instância, a diminuição da angústia de viver do personagem.
Tal busca também está intimamente relacionada à construção da ficção metalinguística.
Seguindo a lógica apresentada por Bulhões, as mudanças de perspectiva frente aos tempos
modernos implicaram em mudanças no fazer literário. Deste modo,

a literatura e o romance em particular passam a absorver a crise do indivíduo em


relação ao conceito de uma verdade absoluta, e a instaurar-se sob o signo da
insegurança, da probabilidade, da assunção de uma perspectiva extremamente precária
do ponto de vista. A visão turva, o romance moderno torna-se veículo expressivo dessa
crise [...]72.

Por ser receptáculo dos novos anseios, a construção literária enfrentou, inevitavelmente,
questionamentos internos. Tem-se, portanto, uma crise também nas representações tradicionais de
realidade utilizadas pela ficção. Novos modos representativos, como a quebra de uma ordem
cronológica e a fragmentação narrativa, ganham força. Assim sendo, a metalinguagem se torna
uma das formas encontradas de expressão dessa crise, em uma reflexão da literatura sobre seu
próprio sistema. Relacionam-se, portanto, os questionamentos internos do narrador-personagem
com o questionamento da construção literária em si. Nesse sentido, a escolha do autor pela ficção
metalinguística demonstra a problemática dos questionamentos internos dos protagonistas que,
segundo Luís Soares, são característicos do romance gracilianista. A esses questionamentos
retornaremos mais tarde; por ora, vamos nos concentrar em outros aspectos de representação da
obra.

3.2.3 A representação das realidades regional e nacional

A mudança de orientação na historiografia recente de um modo geral, e nos estudos sobre


a cultura particularmente, que possibilitou o questionamento de recortes e temática, bem como da
própria construção histórica em si, implicou nas atuais formulações do conceito de representação
dadas pela chamada Nova História Cultural. Sem nos aprofundar em considerações
71
SOARES, Luís Eustáquio. Graciliano Ramos: um diálogo antimoderno com a modernidade. Espéculo. Revista de
estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, n. 36, ano XII. Jul-Out/2007. Disponível em: <
http://www.ucm.es/info/especulo/numero36/gramos.html >. Acesso em: 02. nov. 2010.
72
BULHÕES, Marcelo Magalhães. Op. cit., p. 28.
51

historiográficas e metodológicas, já presentes no capítulo anterior deste estudo, retomamos o


conceito utilizado por Roger Chartier de representação ou representações do real. Aqui
retomado, esse conceito traz a reflexão sobre a literatura enquanto construção representativa do
real. O conteúdo literário, embora apresente, em maior ou menor escala, acontecimentos e fatos
calcados na realidade, não trata do real concreto. Este, em última instância, não pode ser
apreendido em sua totalidade. A especificidade da literatura enquanto obra artística, preocupada
com formas e estilos, nem mesmo traz a busca pela realidade última como um de seus principais
objetivos. Há, no entanto, uma preocupação com a verossimilhança, com a semelhança com o
real, através da qual os leitores se identificarão com a obra. As especificidades do romance
enquanto expressão literária peculiar, também já apresentadas no capítulo anterior, permitem uma
maior ligação entre narrativa e realidade. No caso do romance nordestino de 30, marcado pelo
engajamento de seus autores frente aos problemas sociais da época, essa relação aparece ainda
mais reforçada. Assim sendo, a utilização do conceito de representação vem auxiliar na
compreensão de como o romance aqui estudado expressou e trouxe significados à realidade de
seu tempo.
A efervescência das discussões políticas do período demonstravam, de maneira geral, a
insatisfação com o regime de liberalismo oligárquico da chamada República Velha no Brasil. A
crise de 1929 veio agravar essa situação, quando os gastos do governo com o café, principal
produto de exportação, e a piora nas condições de vida de um modo geral trouxeram mais
desgastes ao regime. Nesse sentido, a obra – que embora publicada em 1934, tem sua história
ambientada nos períodos anterior e durante a Revolução de 30 – possibilita uma maior
compreensão das mudanças ocorridas. Através de diferentes personagens, o autor apresenta a
representação das tendências políticas mais visíveis de seu tempo.
Paulo Honório, proprietário rural, demonstra a força e a posterior decadência das
oligarquias rurais que transformaram certo período da história brasileira. Adquirindo posses,
crescendo, implantando novas técnicas, Paulo vai modificando a região em que vive. Percebemos
seu dinamismo e sua ação empreendedora como as mesmas qualidades das oligarquias que
trouxeram mudanças ao país ao longo do século XIX e fizeram a Proclamação da República.
Principalmente quando comparado a outro personagem, Seu Ribeiro. Este expressa, no romance,
as velhas configurações sociais do período imperial, de características patriarcais, escravagistas,
tradicionalistas, que não preconizavam por progressos técnicos. Fruto de outro tempo, que não
52

acompanha mudanças, Seu Ribeiro lembra com saudades de sua pequena vila, de sua antiga
propriedade, de seu status de “major”, de um tempo sem modernidades nem juízes. Paulo
Honório, por sua vez, embora oriundo também dessa configuração rural da sociedade, apresenta-
se como a nova força oligárquica que impõe mudanças, que moderniza, em detrimento da antiga.
Entretanto, essa força também tem sua queda. Ao final do livro, quando a Crise de 1929 já
havia trazido muito prejuízo à economia local (e também nacional), e o Movimento de Outubro já
se anunciava vitorioso, percebemos a péssima situação de Paulo Honório:

Entrei nesse ano com o pé esquerdo. Vários fregueses que sempre tinham procedido
bem quebraram de repente. Houve fugas, suicídios, o Diário Oficial se emprenhou com
falências e concordatas. Tive de aceitar liquidações péssimas.
O resultado foi desaparecerem a avicultura, a horticultura e a pomicultura. [...] Uma
infelicidade não vem só. As fábricas de tecidos, que adiantavam dinheiro para a compra
de algodão, abandonaram de chofre esse bom costume e até deram para comprar fiado.
Vendi uma safra no fuso, e enganaram-me na classificação. Era necessário adquirir
novas máquinas para o descaroçador e para a serraria, mas na hora dos cálculos vi que
ia gastar uma fortuna: o dólar estava pelas nuvens. [...] Ainda por cima os bancos me
fecharam as portas. Não sei por quê, mas fecharam. E olhem que nunca atrasei
pagamentos. Enfim uma penca de caiporismos. Cheguei a dizer inconveniências a um
gerente:
- Pois se os senhores não querem transigir, acabem com isso. Ou os papéis valem ou
não valem. Se valem, é passar o arame. Pílulas! Eu encomendei revolução?73

Desta maneira, dois momentos do declínio das configurações rurais da sociedade são
perceptíveis no livro: a queda de um mundo patriarcal, aludido na figura de Seu Ribeiro, como
um tempo de outrora há muito perdido; e a queda das oligarquias rurais que haviam, em certo
ponto, modernizado o país, forçando mudanças com seu dinamismo, representadas pela
personalidade de Paulo Honório.
As mudanças ocorridas na década de 30 trazem novos atores à cena. Os efeitos da crise
econômica mundial e o descontentamento com a política liberal oligárquica no Brasil resultam
em desejo de transformação, em novas possibilidades. Diferente de Paulo, outras personagens
apresentam novas concepções políticas. Caso de Padre Silvestre, que embora confuso e
contraditório em suas ideias, pende cada vez mais para os lados revolucionários. Ao fim, adere de
73
RAMOS, Graciliano. Op. cit., p. 178.
53

tal modo ao governo que tomou o poder em 1930 que olha com desconfiança para o protagonista,
quando do início do livro. Na figura do padre, vemos representados os diferentes setores sociais,
que viam a necessidade de mudança frente às crises políticas e econômicas, e que, aos poucos,
aderem ao governo vitorioso.
Nem todos, porém, se posicionam a favor das mudanças a que o padre defende. Afora os
setores oligárquicos conservadores, vemos a ascensão de novas ideias que, se por um lado
confirmam a tendência aliancista à mudança pela via revolucionária, por outro radicalizam suas
posições. Representadas por Luís Padilha e por Madalena, as ideias socialistas – que neste
período começavam a ganhar corpo como uma alternativa viável, com o crescimento dos partidos
de esquerda – são demonstradas no texto através das discussões sobre as melhorias de vida dos
trabalhadores e da possibilidade de levante armado.
Padilha, que entra em contato com ideias de esquerda, passa a debatê-las com seus
convivas, na maioria das vezes discordantes. Parece estar principalmente imbuído da ideia de
conscientizar a “classe trabalhadora”: não raras vezes, é flagrado conversando com os
empregados da fazenda sobre suas condições de trabalho e de vida. Madalena, por outro lado, dá
sutis demonstrações, em conversas, de que concorda com as vias socialistas e revolucionárias, ou
pelo menos é a favor de mudanças sociais, para a fúria de seu marido. Suas ideias são mais
perceptíveis através de suas ações: diversas vezes discute com Paulo sobre melhorias nas
condições dos empregados locais, e por vezes toma atitudes nesse sentido, como no capítulo em
que passa a doar alimentos e remédios a um trabalhador adoecido e com grande família. A essas
posições de Padilha e Madalena encontramos sempre a resistência e o desprezo de Paulo
Honório, verdadeiro antagonista desse modo de pensar e de agir. Devemos atentar melhor para
tais representações da obra, que serão discutidas logo abaixo.

3.2.4 Reflexões políticas na obra

Ao longo do texto, percebemos posicionamentos e discussões políticas, relacionadas a seu


tempo histórico, que vão aflorando, por vezes de maneira discreta e secundária, mas muitas vezes
influenciando de maneira decisiva as ações das personagens. A começar pelo protagonista. Paulo
Honório, dono de uma grande propriedade rural, que se relaciona política e socialmente de
54

maneira comum aos fenômenos conhecidos do liberalismo oligárquico da Primeira República 74:
envolve-se com o partido governista local, consegue-lhe votos em uma troca de favores. Obtém
certo poder e influência na região. Por suas características pessoais, contudo, Paulo não extrapola
certos limites de atuação, pois demonstra não estar muito interessado no jogo político. Como já
visto, esse comportamento garantia a prevalência dos interesses econômicos oligárquicos e trazia
estabilidade aos poderes políticos vigentes.
Zuleide Duarte, citando Carlos Nelson Coutinho, demonstra que todas as ações de Paulo
são movidas por seu interesse egoísta, em uma construção própria de um burguês (no caso, de
uma burguesia oligárquica): não acabado, e visto especialmente em seus termos psicológicos,
mas com características propriamente burguesas75. Essa afirmação vai encontrar eco no artigo de
Cristiano Pitt. Segundo este

A característica primordial da identidade do primeiro Paulo Honório, ou seja, até o


ponto de ruptura de seu equilíbrio pessoal, parece ser o apego à propriedade, que seria
representativa de sua ascensão social, privilégio do capitalismo em contraposição ao
sistema econômico que à época a ele se opunha. Desta forma, Paulo Honório representa
o ideal da lógica capitalista, o self-made man, o empreendedor nato, manipulador de
recursos financeiros e humanos.76

A essa caracterização, que necessita ser mais bem explicitada, voltaremos em breve.
Outras orientações políticas são delimitadas na obra, como as já comentadas posições das
personagens Padre Silvestre, Gondim, Padilha e Madalena. Padre Silvestre, que a princípio
aparece como aliado da máquina governista, vai aos poucos mudando suas posições, conforme
entra em contato com críticas ao governo vigente. Parece, contudo, não saber sustentar uma
posição política definida. Quando questionado sobre seu discurso, o padre se torna reticente,
demonstrando uma incongruência de opiniões que, segundo Paulo Honório, se dava pelo fato de
ele apenas colher suas ideias dos jornais, e de diferentes publicações, o que as tornava
contraditórias. Já Luís Padilha entra em contato com ideias esquerdistas e passa, na convivência

74
Vide o primeiro capítulo deste estudo, principalmente as discussões do texto de Marieta Ferreira e Surama Pinto.
75
DUARTE, Zuleide. A interferência de Madalena no universo de Paulo Honório: transformação e mobilidade.
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, n. 15, ano VI. Out/2000. Disponível
em: < http://www.ucm.es/info/especulo/numero15/g_ramos.html>. Acesso em: 03. nov. 2010.
76
PITT, Cristiano Paulo. A construção identitária em São Bernardo. Darandina Revisteletrônica. Programa de Pós-
Graduação em Letras/ UFJF, v. 02, n. 02, s/d. Disponível em:
< http://www.ufjf.br/darandina/anteriores/v2n2/files/2010/02/artigo01a.pdf >. Acesso em: 05. nov. 2010.
55

da fazenda, a espalhar seus pensamentos e leituras, principalmente para os empregados. Além


disso, apresenta-se como ateu convicto. Seus posicionamentos desagradam profundamente o
proprietário. Contrários a tais ideias também se colocam Seu Ribeiro, que afirma que todas as
mudanças são ruins, e João Nogueira.
Esse debate político, que aparece muitas vezes no texto como uma conversa informal,
demonstra a efervescência de ideias e projetos no período, já comentada pelo texto de Vavy
Borges no capítulo anterior. Embora publicada em 1934, a obra foi provavelmente pensada
alguns anos antes, e recebeu influência das mudanças e diversidade de possibilidades do cenário
político recente. O autor, em sua representação da realidade, pontuou em diferentes personagens
os vários projetos políticos e sociais que permeavam o cenário nacional.
A figura de Madalena, esposa de Paulo Honório, merece considerações especiais. Ao
longo do romance, percebe-se a sua já citada inclinação para a ideologia socialista. Embora não
se declare abertamente partidária de tal ou qual causa, a professora demonstra interesse nos
debates introduzidos por Padilha, travando diversas conversas com este, o que leva, inclusive, a
aumentar o ciúme de seu marido. Em suas rememorações, Paulo Honório repensa as posições de
Madalena sobre determinados assuntos: sua suposta ausência de religiosidade, talvez substituída
por uma crença de materialismo histórico; sua tendência a comiserações sobre os empregados e
sua situação. É curioso notar que a personagem sempre aparece em contraposição a seu consorte.
Nesse sentido, voltamos à discussão sobre a construção de Paulo Honório como um
burguês. O protagonista narrador demonstra a todo instante características que podem ser
consideradas próprias de um mundo capitalista: a busca pelo lucro, a ambição, o senso de
propriedade sobre os objetos e pessoas que o cercam, a preferência pela otimização de recursos, a
pressa para conseguir seus objetivos. Se Paulo Honório deseja algo, logo faz todas as tentativas,
mesmo as mais discutíveis, para tornar esse algo sua propriedade. A fazenda São Bernardo, a
vitória sobre a disputa de terras com Medeiros, e mesmo Madalena. Tudo pode ser transformado
em capital e benefícios: a construção de uma igreja ou uma escola, o casamento.
Todos devem estar sob seu comando enérgico, como empregados subordinados a seu
patrão. Trata a todos em termos de objetos ou negócios, em uma atitude de coisificação das
pessoas que o cercam. Alguns exemplos podem ser verificados em sua preocupação com a
“remessa” de Margarida para a fazenda, ou em sua alusão ao casamento com Madalena como um
“bom negócio”. Alguns de seus próximos são equiparados a bichos, enquanto portadores de
56

qualidades úteis para o trabalho ou de defeitos que os tornam desprezíveis: Casimiro Lopes, fiel e
esperto como um cão; Padilha, fraco como um inseto. “Bichos. As criaturas que me serviram
durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como
Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos”.77 Sua narração
compara, em diferentes instantes, sua força e dinamismo com a fraqueza, os vícios ou a velhice
de outros. Mesmo a morte humana é vista apenas em termos econômicos, como o falecimento de
empregados relacionado ao prejuízo e a despesas. Essa visão da morte só aparece mudada ao fim
do livro, com o suicídio de sua esposa, o que o faz repensar suas atitudes.
Madalena, por seu turno, nos é apresentada como uma figura antagônica. Bondosa,
atenciosa, destituída das ambições do marido, se preocupa com a qualidade de vida das pessoas à
sua volta. Faz doações, cuida da saúde e dos filhos dos empregados, discute com Paulo quando
este comete maus-tratos e injustiças a seus subalternos. Fala na necessidade de melhoras, na
possibilidade de revolução política. Parece mesmo portadora de uma intenção de socialização e
divisão que a aproximaria do que seriam os ideários de esquerda.
Essa construção antagônica, se pensada em suas implicações de representatividade
política, podem ser relacionadas à própria vida do autor. De acordo com o filósofo Michel
Foucault, é necessário relacionar a produção do discurso ao seu local de produção (instituições,
indivíduos). Todo discurso, embora seja perpassado pela noção de verdade, está permeado pelas
ideias e visões que regulam as relações de poder presentes na construção discursiva. Nesse
sentido, a literatura, enquanto produzida por um autor específico, inserido em um determinado
contexto histórico e social, do qual sofre influência, apresenta, de modo nem sempre claro e
diluído, as visões de mundo, crenças, ideologias, julgamentos e demais atributos de seu produtor,
relação melhor discutida no capítulo anterior.
Deste modo, vale repensar as posições políticas e visão de mundo conhecidas de
Graciliano Ramos, que certamente influenciaram a obra. Graciliano, preso em 1936 acusado de
comunismo, embora não estivesse naquele momento afiliado a algum partido político, já
apresentava tendências esquerdistas desde antes. Posteriormente irá unir-se ao Partido
Comunista, em 1954. Destarte, não é exagero fazer a relação entre suas proposições políticas e a
construção de seus personagens. Assim sendo, Madalena representa, por suas ações e maneiras, a
via esquerdista, a possibilidade política socialista. Paulo Honório, por sua vez, representa não

77
RAMOS, Graciliano. Op. cit., p. 182.
57

somente a opção oligárquica, como se afirma também, por suas características, com uma atitude
burguesa.
O casal não se entende: os projetos são completamente antagônicos. Um não pode
coexistir pacificamente com o outro. Desta forma, Madalena, que não consegue mais conviver
com os desmandos e com o ciúme de seu marido, resolve tirar a própria vida, em um ato
desesperado. O suicídio aparece então no texto como o único caminho possível para resolver o
problema. Mas, longe de resolução de problemas, o que acontece o protagonista é a piora de sua
situação, vinda com o desespero, o arrependimento e a solidão decorrentes da tragédia.
Destarte, percebemos ao longo do texto que o “caminho burguês”, digamos assim,
representado por Paulo nos é apresentado como um projeto duvidoso, de resultados maléficos, e
fadado por fim ao fracasso material e moral. Nesse sentido, nem mesmo a modernização, ou as
possibilidades de mudança advindas com o movimento revolucionário seriam eficazes. Para além
da avaliação pouco otimista que faz do movimento de outubro78, percebe-se claramente a
mensagem de Graciliano: frente ao fracasso do projeto capitalista, que só visa ao lucro, há uma
possibilidade de melhorias sociais, inculcada na figura bondosa e justa de Madalena – um outro
caminho. Segundo Pitt, a figura de Paulo Honório seria então uma “sarcástica caricatura
representativa da corrupção humana que escorre atrás do discurso de igualdade de oportunidades,
mobilidade social e auto-regulação das relações de mercado, entre outras máximas
capitalistas.”79. Deste modo, sua construção literária não condiz com o real em última instância,
mas com uma representação do real que está perpassada por sua visão de mundo.
Tal posição ideológica aparente no texto é discutida também por João Luiz Lafetá, em seu
posfácio a uma das edições da obra. Segundo Lafetá, as peculiaridades do protagonista permitem
relacioná-lo ao estabelecimento da burguesia como classe transformadora. Paulo adquire posses,
impetra mudanças, submete todos. Até que encontra Madalena, força antagônica que não se
sujeita a seus desmandos. Comparando a ação do protagonista a um dínamo, Lafetá afirma:

Mas o dínamo não pode existir indefinidamente. Mais do que uma esperança, sua
destruição é uma possibilidade concreta e próxima. Seu mecanismo sujeita-se ao
desgaste e ao esgotamento, suas possibilidades de gerar transformação têm um limite.
As peças que o compõem não são totalmente harmônicas, no seu corpo acham-se

78
BUENO, Luís. Op. cit., p. 36.
79
PITT, Cristiano Paulo. Op. cit.
58

instaladas contradições que podem a qualquer instante emperrá-lo e tirar-lhe o governo


do mundo.80

Desta maneira, essa ação transformadora e destruidora não há de funcionar eternamente;


em seu interior comporta falhas que poderão causar sua destruição. Paulo não poderá continuar
seus desmandos por muito tempo sem punição. A figura de Madalena é prova: força que se lhe
opõe, consegue, apesar de sua aparente derrota com o suicídio, destruir as bases sobre as quais se
assentava o poderio de seu marido. De modo semelhante, entendemos que a caracterização dos
personagens feita por Graciliano Ramos foi influenciada por essa mensagem que se configurava a
época como uma nova possibilidade de mundo advinda com as ideias de esquerda.

3.2.5 A crise do indivíduo

Vale aqui ressaltar, contudo, que a proposição sobre a influência das visões pessoais do
autor sobre a obra não deve ser considerada como único fator para que a narrativa fosse
construída tal como foi. De acordo com as discussões introduzidas por Bosi, São Bernardo, dada
as suas peculiaridades, se configura em um romance social e psicológico ao mesmo tempo.
Considerando a divisão feita por Bosi, a obra seria um romance de “tensão crítica”, em que o
protagonista “opõe-se e resiste agônicamente às pressões da natureza e do meio social, formule
ou não em ideologias explícitas, o seu mal-estar permanente”81. Nesse sentido, os acontecimentos
da narrativa serviriam para demonstrar as lesões que a vida em sociedade, principalmente a
moderna, produz no indivíduo, em uma transcendência dos problemas sociais. Embora não se
utilize do grau de construção psicológica presente nos romances considerados intimistas,
problematiza a figura de um indivíduo que não consegue se adaptar ao meio, ou quando
consegue, sente-se mesmo assim deslocado, infeliz.
Ainda de acordo com Bosi, “o realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É
crítico. O ‘herói’ é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo”82.
Deste modo, seus personagens de um modo geral são marcados por essa angústia de viver, essa
irresolução de problemas. Aproximamo-nos aqui novamente da discussão levantada por Bulhões,

80
LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. Posfácio apresentado na 50ª edição do romance São Bernardo. Rio de
Janeiro: Record, 1989. p. 202-203.
81
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 442.
82
Idem, Ibidem, p. 454.
59

que demonstra ser a própria construção metalinguística do romance um indicativo de novas


formas de expressão da crise do indivíduo. Isso explicaria talvez a opção do autor pelo fator
metalinguístico na maioria de suas obras, e em especial na obra aqui estudada. Em última
instância, essa figura problemática se aproximaria da análise da figura do “fracassado” nos
romances de 30, feita por Luís Bueno83. Segundo este autor, as personagens cujo fracasso, seja
ele econômico, social, ou até mesmo amoroso, são importantes para o desenvolvimento da trama
se constituem na tônica da maioria dos romances da época, e seriam indicativos de uma avaliação
negativa do presente, abordada sob diversos ângulos.
A própria personalidade do autor, considerada uma figura amargurada e sombria por
Erico Veríssimo84, pode ser ressaltada como influente em sua narração. Deste modo, considerar a
construção do casal protagonista apenas como demonstração de um antagonismo de classes e de
projetos políticos seria o mesmo que considerar a própria narrativa em si como puro relato da
realidade, sem pensá-la em seus termos estéticos e linguísticos de construção ficcional. Do
mesmo modo, considerar o trágico desfecho dado à história, com o suicídio de Madalena, apenas
nos termos da impossibilidade de convivência das duas vertentes de representação política, seria
desconsiderar o próprio fator imaginativo no romance. Se seguirmos a lógica apresentada por
Veríssimo, a visão pessimista de Graciliano Ramos frente aos problemas da vida figurou de
forma importante em suas obras. Geralmente seus personagens são figuras que não se enquadram
em puros modelos estereotipados, como concepções de classes. Por mais que pertençam e
apresentem determinadas características de um grupo social, refletem também opções pessoais e
questionamentos internos que os tornam únicos, como o caso de Luís da Silva, de Angústia.
Paulo Honório, nesse sentido, configuraria como um expoente de um modelo político e
econômico em declínio material e moral; mas, ao mesmo tempo, se constituiria de um modelo de
indivíduo conturbado, próprio da modernidade, com sua crise de individualidade, seus problemas
e questionamentos.

83
BUENO, Luís. Op. cit., p. 76.
84
VERÍSSIMO, Érico. Op. cit., p. 145.
60

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, consideramos que a obra São Bernardo possibilita compreender


melhor o período de mudanças e de efervescência política e cultural da década de 30 no Brasil,
através de suas representações. A construção de seus personagens e o desenrolar da narrativa
permitem um panorama de representações tanto dos modelos políticos vigentes – e já decadentes
– como das discussões sobre as diferentes opções, de que foi característica a época.
Por outro lado, as particularidades de sua narrativa, quando relacionadas às
particularidades de vida de seu autor, permitem auferir que o mesmo foi influenciado por sua
visão de mundo e posicionamento político-ideológico, de maneira a construir o protagonista
Paulo Honório e sua consorte, Madalena, como representativos de modelos econômicos e
políticos antagônicos, com a indicação de superação – ou pelo menos da impossibilidade de
convivência pacífica – da possibilidade socialista, inculcada na figura de Madalena, frente à
falência material e moral do esquema capitalista, representado pelo protagonista.
Esse engajamento político presente em obras literárias é característico do período, aonde,
de acordo com os debates introduzidos por Daniel Pécaut85, houve uma maior preocupação da
intelectualidade frente aos problemas brasileiros – estivessem eles relacionados ao campo
específico da cultura ou a outros campos, como o social – e uma redefinição da própria função do
intelectual dentro da sociedade. Deste modo, a participação política dos intelectuais se fez
presente, sob diferentes opções, marcando as produções culturais de maneira indelével.
“Socialismo, freudismo, catolicismo existêncial: eis as chaves que serviram para a decifração do
homem em sociedade e sustentariam ideologicamente o romance empenhado desses anos
fecundos para a prosa narrativa”86. Corroborando tal ideia, Candido afirma:

Houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre a literatura e as ideologias
políticas e religiosas. Isto, que antes era excepcional no Brasil, se generalizou naquela
altura, a ponto de haver polarização dos intelectuais nos casos mais definidos e
explícitos, a saber, os que optavam pelo comunismo ou o fascismo.87

85
PÉCAUT, Daniel. Op. cit.
86
BOSI, Afredo. Op. cit., p. 439.
87
MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. Op. cit., p. 187.
61

De maneira semelhante, a obra foi considerada em seus aspectos narrativos que não estão
implicados os modelos propriamente políticos ou sociais. A figura amargurada do autor, que
tendia a construir suas personagens principais geralmente como “heróis” problemáticos, que não
conseguiam se adaptar ao mundo, influenciou igualmente a história de São Bernardo. Esse fato,
relacionado à escolha do autor pela ficção metalinguística, que apresenta o fator do livro dentro
de um livro – e que, segundo Bulhões88, se caracteriza como um dos meios inovadores
encontrados para a expressão da crise do indivíduo moderno – indica a problemática dos
questionamentos interiores, próprio de um romance intimista. Por isso a afirmação de Alfredo
Bosi, de que a obra se caracterizaria por ser “um paradigma do romance psicológico e social de
nossa literatura”89.

88
BULHÕES, Marcelo Magalhães. Op. cit., p. 23-25.
89
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 455.
62

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