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Atenção à Saúde
DE EDUCAÇÃO Mental na Atenção
PERMANENTE Primária à Saúde
EM SAÚDE
DA FAMÍLIA
UNIDADE
Da superação do
1
aparato manicomial
à efetivação de
novas práticas em
Saúde Mental
Caro aluno,
Nesta aula, retomaremos um pouco da história para podermos compreender a luta anti-
manicomial. Você deve se recordar que há algum tempo existiam muitos hospícios e que os
tratamentos utilizados, muitas vezes, eram agressivos.
O contexto que vivemos hoje na Saúde Mental nem sempre foi assim. Hoje, como podemos
perceber, ainda temos muitos problemas relacionados à integralidade da atenção em Saúde
Mental. Mas tivemos muitos avanços.
Na nossa situação problema, a nova coordenadora de Saúde Mental já sabe que enfrentará
“um grande desafio pela frente: organizar melhor os serviços para conseguir efetivar a rede
de cuidados em Saúde Mental.”
Contudo, que movimentos foram feitos para contestar e superar o paradigma asilar ao lon-
go dos anos? Discutiremos esse e outros tópicos a partir de agora.
Erasmo de Rotterdam, em seu livro “O Elogio da Loucura”, escrito no século XVI, já trazia
a questão da definição do normal e do patológico, compreendida não mais como a normati-
vidade pessoal, mas a partir de um referencial articulado com as necessidades da economia
posta a serviço da produção e reprodução da vida social (RESENDE, 1987).
Nesse cenário, a chamada burguesia resolveu o problema político que representava a lou-
cura abrindo espaço para a Psiquiatria, que deslocou o problema de cunho essencialmente
político para a alçada técnica. Ao tornar a loucura administrável, ela pode ser medicalizada
e colocada sob um novo status jurídico, social e civil. Assim, o louco se corporifica como alie-
nado, doente e enquadrado em um código que a lei francesa de 1838 fixou como estado de
minoridade social, equiparando-o à criança (ROSA, 2003).
Já pensou como seria se, ainda hoje, tudo que foge ao padrão social fosse considerado
loucura? Em outras palavras, por muito tempo, o louco foi para a ciência aquele outro
da razão e que em função disso estratégias e táticas foram criadas para lidar com esse
outro que não se conformava ao ideário racional burguês. “Alguém que rompe com isso
precisa ser punido, tendo ou não consciência do ‘crime’, sendo ou não considerada crime,
a infração ao pacto da razão tem de ser punida; o infrator encarcerado e o erro da razão
corrigido” (COSTA, 1987, p. 47).
De acordo com Albuquerque (1976), o que importava era que alguém se encarregasse dos
“degenerados” e das pessoas que não eram bem vistas junto ao meio social. Para isso,
era indispensável um princípio de classificação, que permitiria separar essa “marginália”
dos bons homens, um princípio de legitimação que tornasse inteligível a exclusão de que
são objeto e se tornasse incontestável a autoridade institucional que o acolhe em seu seio.
Essa foi, em sua essência e seu princípio, a função social da doença mental.
Em meados do século XVII, o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. Criam-se
em toda Europa estabelecimentos para internação que não são simplesmente destinados
a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos, como inválidos pobres, os mendigos,
PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE DA FAMÍLIA
UNIDADE 1 3
os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família
ou o poder real queria evitar um castigo público e que em razão da ordem e da moral e da
sociedade davam mostras de alteração (FOUCAULT, 1988).
O internamento na Idade Clássica foi baseado numa prática de “proteção” e guarda, dife-
rentemente do século XVIII, quando foi ganhando o internamento características médicas
e terapêuticas. Segundo Amarante (1995), durante a segunda metade desse século, a “des-
razão” vai paulatinamente perdendo espaço, e a alienação ocupa então, o lugar como crité-
rio de distinção do louco frente à ordem social, instituindo a doença mental o objeto funda-
dor do saber e da “prática psiquiátrica” (AMARANTE, 1995).
Todavia, é preciso reconhecer que a loucura foi compreendida de diferentes modos ao lon-
go do tempo. Diversas correntes e mecanismos foram colocados em curso no decorrer da
história, e você poderá conhecer algumas particularidades dos principais movimentos que
conceberam e transformaram as práticas psiquiátricas a seguir.
Tratamento moral
Pinel, médico francês nascido em 1745, é considerado o responsável pela primeira grande
transformação na Psiquiatria quando, na função de diretor do Hospital La Bicêtre em Paris,
consegue humanizar o tratamento dos internos, removendo as correntes, retirando-os das
masmorras e dando-lhes acomodações iluminadas e decentes. Outros revolucionários, como
Jean Esquirol, Willian Tuke e Benjamin Rush, estimularam o tratamento mais humano do doen-
te mental, dando continuidade ao processo desencadeado por Philippe Pinel (RIBEIRO, 1996).
No tratamento moral preconizado por Pinel, havia a concepção de que a loucura era o
distúrbio da razão, sendo chamada de alienação mental. Suas origens poderiam ser encon-
tradas nos vícios, na vida desregrada e na ociosidade. Para tanto, sustentava-se em três pre-
missas básicas: o isolamento do mundo externo; a organização do espaço asilar e a manu-
tenção da disciplina; e a submissão à autoridade (ALVES; GULJOR, 2004).
Dessa forma, Capistrano-Filho (2000) afirma que no hospício ocorreu a conjugação de uma
política médica e pedagógica, pois a reclusão ficou a serviço da disciplina; e a obediência
e a docilidade eram úteis na reinserção do doente na sociedade, depois do controle de sua
loucura e da normalização por meio do tratamento moral.
Fonte: <http://crai.ub.edu/sites/default/files/exposicions/crai.medicina/neurologia/posters/4_pinelsalpetriere_
tonyrobertfleury.jpg.>.
O alienismo
No contexto da Revolução Francesa, com o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”,
o alienismo veio surgir como uma possível solução para a condição civil e política dos alie-
nados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania, mas que também,
para não contradizer aqueles mesmos lemas, não poderiam ser simplesmente excluídos.
O asilo tornou-se então o espaço da cura, da razão e da liberdade, da condição do aliena-
do tornar-se sujeito de direito (AMARANTE, 1995). O conhecimento psiquiátrico da época
advindo do alienismo instaurou uma nova relação da sociedade com o louco, relação esta
de tutela pela dominação e subordinação regulamentada, na condição do tutelado como
ser incapaz de realizar intercâmbios racionais isento de responsabilidades e digno de assis-
tência (CAPISTRANO-FILHO, 2000).
Nesse contexto, surge o projeto das colônias de alienados, que na prática serviria para
“ampliar a importância social e política da Psiquiatria e neutralizar parte das críticas feitas ao
hospício tradicional. No decorrer dos anos, as colônias, em que pese seu princípio de liber-
dade e de reforma da instituição asilar clássica, não se diferenciaram dos asilos pinelianos”
(AMARANTE, 1995, p. 28).
O preventivismo
O preventivismo, surge no contexto da crise do organicismo mecanicista, além de incorpo-
rar noções dos conhecimentos médicos, da sociologia e da psicologia behaviorista da épo-
ca, constitui-se na perspectiva de que a doença mental poderia ser prevenida por meio
da identificação precoce de indivíduos suspeitos. Em seus fundamentos teóricos embasados
nos conceitos de Gerald Caplan, trazia a noção de hierarquização da assistência em níveis
de complexidade, além dos conceitos de prevenção, populações de risco e na defesa de que
a atenção deveria perpassar as instituições de convívio, como escolas e centros, prevenindo
o desencadeamento do distúrbio mental (AMARANTE 1995; ALVES; GULJOR, 2004).
A Psiquiatria de Setor
A Psiquiatria de Setor se destacou na França do pós-guerra enquanto movimento de con-
testação da psiquiatria asilar, priorizando a direção do tratamento, a possibilidade de assis-
tência ao paciente em sua própria comunidade, que se torna um fator terapêutico, antes
ou depois de uma internação psiquiátrica. No entanto, a prática dessa experiência não
alcança os resultados esperados, seja pela resistência imposta por grupos de intelectuais,
seja pela resistência demonstrada por grupos de conservadores à possível invasão das ruas
pelos loucos ou, ainda, seja pelo custo alto para a implantação dos serviços de prevenção
e pós-cura (AMARANTE, 1995).
A Psiquiatria Social
A partir do conhecimento sobre as relações das doenças mentais com os fatores ambientais
e sociais, descobriu-se a necessidade de não apenas lidar com as raízes biológicas dos pro-
blemas mentais mas também com os fatores sociais. Surge a Psiquiatria Social, que passa
a descrever as estruturas sociais como fatores geradores de doenças, estando nesse ponto
os alicerces do movimento de Saúde Mental e da Antipsiquiatria (VIETTA et al., 2001).
Em outras palavras, os psiquiatras inovadores italianos (em Gorizia, nos anos 1960, e depois
em Trieste, nos anos de 1970 e atualmente) trabalham com a hipótese de que o mal obscu-
ro da Psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a “doença”, da existência global
complexa e concreta dos indivíduos e do corpo social, onde se constrói um conjunto de apa-
ratos científicos, legislativos, administrativos, todos referidos à doença (ROTELLI et al., 2001).
Como podemos constatar, a loucura e/ou Saúde Mental foi tratada de formas diversificadas
ao longo do tempo e nos diferentes países.
A história do manicômio mostra como se criou o processo de se lidar com o sujeito alienado,
alheio, estrangeiro a si próprio, que não é sujeito. Coloca-se em funcionamento a regra e o
tratamento moral para a reeducação do alienado, por meio do que se torna possível a cons-
trução do conceito de uma subjetividade alienada, desregrada. Ao mesmo tempo, a institui-
ção torna-se o lugar de tratamento e a institucionalização, uma necessidade (GUIMARÃES;
TORRES; AMARANTE, 2001).
Mas como foi aqui no Brasil? Esse assunto será tratado na próxima aula!
Agora que você já conheceu um pouco sobre a apreensão da loucura e os primeiros movi-
mentos de reforma e contestação ao paradigma asilar, vamos estudar como ocorreu a
Reforma Psiquiátrica aqui no Brasil.
Como você imagina seus usuários da Estratégia de Saúde da Família, com a Saúde Mental
afetada, décadas atrás?
No Brasil, o doente mental fez sua aparição nas cenas das cidades e, com ele, igualmente
um contexto de desordem e ameaça à paz social mesmo antes da industrialização e da urba-
nização maciça e de suas consequências, a circulação de doentes pelas cidades já chamava
a atenção por providências das autoridades, dando origem à função saneadora dos primei-
ros hospícios da assistência psiquiátrica brasileira (AMARANTE, 1994).
A loucura só vem a ser objeto de intervenção específica por parte do Estado a partir da che-
gada da família Real ao Brasil, no início do século XIX. As mudanças sociais e econômicas, no
período que se segue, exigiram medidas eficientes de controle social, sem as quais se torna-
va impossível ordenar o crescimento das cidades e das populações. Convocada a participar
dessa empresa de reordenamento urbano, Amarante (1994) ressalta que a medicina termi-
na por desenhar o projeto no qual emerge a psiquiatria brasileira.
Vamos compreender um pouco, com base na história, analisando a linha do tempo a seguir,
que mostra os principais marcos do final do século XIX até a década de 1960.
Linha do tempo
Com a crise fiscal do Estado no Primeiro Mundo, a reorientação das políticas públicas pelo
ideário neoliberal e a diminuição do Welfare State, a família ganha outra visibilidade, inclusi-
ve no Brasil. Muitas funções no campo social, antes assumidas pelo Estado, são devolvidas
e, ao mesmo tempo, outras lhe são exigidas em razão da reestruturação produtiva e do
desemprego estrutural instalado: a família, assim, encontra-se sobrecarregada pela crise
econômica que gera desemprego de seus integrantes ou com a impossibilidade de fazer
parte do mundo do trabalho, pois surgem novas necessidades em razão do enxugamen-
to dos gastos sociais por parte do Estado. Dessa maneira, há um deslocamento das análi-
ses que passam a se preocupar com a repercussão das crises no interior do grupo familiar
e com os processos de Reforma Psiquiátrica (VASCONCELOS, 2000).
No Brasil, mesmo com a ambulatorização ocorrida a partir da década de 1970 como solu-
ção para a assistência psiquiátrica, continuou a existir a lógica massificadora da assistência
hospitalocêntrica e sua consequente ampliação da demanda com o aumento dos leitos con-
tratados, promovendo a cronificação de sua clientela e a indução à farmacodependência
(ALVES; GULJOR, 2004).
A crise é deflagrada a partir da denúncia que trouxe a público a trágica situação existente
naquele hospital, como as condições precárias de trabalho, além das frequentes denúncias
de agressão, estupro, trabalho escravo e mortes não esclarecidas (AMARANTE, 1995).
O Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, destacava que
a constituinte seria o momento decisivo para se avançar na conquista da cidadania do doen-
te mental. O Estado não deverá ter um papel tutelador sobre o doente mental, devendo
limitar-se a assumir a total responsabilidade quanto aos recursos necessários para a recu-
peração de sua saúde e o controle das eventuais condições sociais – ligadas às condições
de vida e de trabalho que eventualmente estejam ligadas com a produção de sua doença
(MOURA NETO, 1987).
Embora o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) do país tenha sido criado em
1987, em Bauru, é em 1989 que a trajetória da desinstitucionalização assume caráter nacio-
nal e importância definitiva, mediante a intervenção da Secretaria de Saúde do Município
de Santos na Casa de Saúde Anchieta, hospital psiquiátrico privado, onde se constatavam
inúmeras atrocidades no tratamento dos internos. Essa intervenção culmina no fechamento
do único manicômio do município, criando assim as condições para a implantação de um
sistema psiquiátrico completamente substitutivo do manicômio, que se dará com a rede-
finição do espaço do hospício como local de acolhimento e com a criação do NAPS, o que
dá origem a mais importante experiência da psiquiatria pública nacional e representa um
marco no período mais recente da Reforma Psiquiátrica Brasileira (AMARANTE, 1994).
Referências
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. G. Metáforas da desordem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 15-24.
ALVES, D. S.; GULJOR, A. P. O Cuidado em Saúde Mental. In: PINHEIRO, R.; MATTOS. R.A (Org.).
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AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho (Org.). Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. 20.
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AMARANTE, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de
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FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro
Ltda., 1988.
MOURA NETO, M. F. D Bases para uma reforma psiquiátrica. In: MARSIGLIA, R. et al. Saúde
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RESENDE, H. Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, S. A.; COSTA,
N. R. (Org.). Cidadania e loucura: políticas de Saúde Mental no Brasil. Petrópolis: Vozes/
ABRASCO, 1987.
TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira da década de 1980 aos dias atuais: história e
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