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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

35
2019
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº35 (Maio 2019). São Paulo: o Programa, 2019 - semestral

1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal.

I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coorde-
nadoras: Lucia Maria Machado Bógus e Vera Lucia Michalany Chaia); indexada
no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes, no
LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson


Passetti (coordenador), Eliane K. Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Simões,
Gustavo Vieira, Leandro Siqueira, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Maria Cecília
Oliveira, Ricardo Abussafy, Rogério Zeferino Nascimento, Salete Oliveira,
Sofia Osório, Thiago Rodrigues, Vitor Osório.

Conselho Editorial

Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca


Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato
(UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo
Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago
(Unicamp), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa),
Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur l’Anarchisme),
Rogério Zeferino Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo

Dorothea V. Passetti (PUC-SP), João da Mata (SOMA), José Carlos Morel


(Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), Maria
Lúcia Karam, Nelson Méndez (Universidade de Caracas), Silvio Gallo
(Unicamp), Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
verve

revista de atitudes. transita por limiares e ins-


tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, ges-
tos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela
agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
intervalos,
roberto bolaño,
poesia reunida
espanha, alfaguara, 2018
bolaño por sí mismo: entrevistas escogidas,
chile, udp, 2011.
sumário
O movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera
14 The uruguayan anarchist movement in the time of cholera
Daniel Barret

Ponto para o advogado


47 Point for the Lawyer
Christian Ferrer

A abundância exuberante de uma abolicionista penal


59 The Exuberant Abundance of an Abolitionist
Salete Oliveira

Um caso menor
A minor case
64 [página única 1]
Nu-Sol

Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira


75 “Interview with José Maria Carvalho Ferreira
José Maria Carvalho Ferreira & Nu-Sol

O ronco do surdo é a batalha


The sound of drum is the fight
99 [página única 2]
Nu-Sol

Emma Goldman, saúde!


110 Emma Goldman, salut!
Eliane Carvalho

Minha vida valeu a pena?


113 Was My Life Worth Living?
Emma Goldman

Dossiê Sakae Ôsugi


129 Sakae Ôsugi Dossier
Sakae Ôsugi
resenhas
2013 que urge e ruge
161 Democracy and its totalitarian gaps
Flávia Lucchesi

Um ladrão de livros anarquistas e as histórias que seguirão


170 A thief of anarchist books and the stories that will follow
Gustavo Simões
os soldadinhos de chumbo se imaginam guerreiros.
acabam dissolvidos no caldeirão e compõem a matéria do
portão que fecha a cidadela e também funciona como ponte
sobre o fosso que a protege. os superiores comandam,
os bajuladores trabalham para garantir a segurança e os
súditos, esperançosos ou amedrontados, ambicionam não
ser esquecidos do lado de fora.
verve 35 permanece traçando resistências, não como
insistência conveniente dos que desejam iluminações,
aspiram liderar, pretendem-se condutores ou força
hegemônica, mas como prática antipolítica. não seja
ingênuo(a) ou tola(o) de considerá-la apartidária ou piso
para o fascismo.
daniel barret, situa as forças políticas institucionais,
incluindo as de formação marxista, na luta que produziu
tanto a ditadura uruguaia como a volta à normalidade
com plebiscito e “abertura”. traça os redimensionamentos
das forças anarquistas antes, durante e depois e a aparição
do surpreendente que ultrapassa a intenção organizativa.
christian ferrer, expõe com humor e clareza a defesa de
um anarquista atirador por um advogado inteligente capaz
de estancar, como abolicionista penal, o discurso jurídico e
punitivo do tribunal.
salete oliveira, escreve sobre heleusa câmara, nossa amiga
abolicionista penal libertária, também professora na uesb,
que nos deixou de repente no final de dezembro de 2018.
a página única 1 reproduz hypomnemata de 11/2018,
escancarando os limites e as contradições da racionalidade
neoliberal sobre o encarceramento de jovens diante das
forças políticas à direita, ao centro e à esquerda.
o anarquista josé maria carvalho ferreira é o entrevistado
desta edição, tecendo considerações sobre sua vida, a
utopia, a anarquia, a autogestão, e avesso a modelos e
dicotomias.
em página única 2 um pouco de carnaval e um tanto de
resistências em uma história de preconceitos, repressões,
prazer, arte, comidas e contundências anarquistas.
eliane carvalho, comenta os 150 anos do nascimento de
emma goldman e apresenta seu artigo de 1934, “minha
vida valeu a pena?”, no qual a mulher mais perigosa da
américa realiza uma reflexão sutil sobre um momento
crucial da propriedade e do estado nos eua.
luiza uehara preparou um breve dossiê com artigos
inéditos do anarquista japonês sakai ôsugi, passando por
max stirner, os efeitos das conquistas e a elaboração da
noção de expansão da vida. se cada ciclo da humanidade
é uma repetição que passou por uma revolução, a vida livre
em expansão se afirma pela revolta.
a aula-teatro semestral do nu-sol em 6 e 7 de maio foi
a tragédia hécuba, de eurípedes, publicada em português.
sendo desnecessário transcrevê-la em verve, anexamos
o folder que acompanhou as apresentações gratuitas no
tucarena-sp.
as resenhas desta edição abordam o anarquismo atual no
livro de camila jourdan, 2013: memórias e resistências, por
flávia lucchesi, e a anarquizante literatura de roberto
bolaño no imprescindível e urgente a literatura nazista na
américa, por gustavo simões. versos de bolaño atiçam
os movimentos livres em verve 35.

verve completa 18 anos. combate não só a maioridade


penal, civil ou política como enfrenta o eterno retorno da
cultura do castigo herdada da cultura grega. enquanto
os soldadinhos de chumbo, os policiais e os cidadãos-
polícia lubrificavam e poliam os portões da fortaleza,
os anarquistas produziam e produzem túneis para
fugas e incursões.
feito uma velha balada anarquista
Aos verdadeiros poetas pouco importa
que alguém os observe enquanto escrevem
Quando fazem falar os pássaros dos trópicos
em seus diários ou em suas epístolas
recostados à sombra de um salgueiro
esperando que passe
alguma camioneta pela estrada
Cartas aparentemente doces
que os meninos leem - lentamente
num restaurante enquanto anoitece
e o restaurante é um aerólito detido
no centro do crepúsculo
Os verdadeiros poetas parecem
extras de filmes velhos
Os meninos fanáticos
dos povoados perdidos entre montanhas e selvas
os reconhecem
(reconhecem quando os veem
bebendo cerveja nos terraços)
e dizem tu és
aquele que cruzou uma rua
onde Robinson falava com um policial
- diamantes de meio segundo
de duração
mas Infinitos como os amantes adolescentes
e o hidrogênio
Os verdadeiros poetas terníssimos
metendo-se sempre nos cataclismos mais atrozes
mais maravilhosos
pouco importando
que se queime sua inspiração,
mas doando-a
mas dando-a
como quem joga pedras e plumas
Ei poeta, dizem,
acenda o amanhecer
Ei poeta, desconecte os relâmpagos
Qualquer coisa que testifique a ausência do vazio
E a chuva cai durante dias
e os dias nublados permanecem
semanas em torno da estrada
Ouves este riso?
Amada minha, escutas estes pequenos risos?
dizem os poetas
quando compreendem que depois dos Carros Blindados
as pessoas começam
a planejar novos motins
A Fronda
A Resistência
A Clandestinidade
As longas filas de emigração
E os poetas apoiados contra uma bétula
enquanto a neve cai lentamente
e os meninos cobrindo-se
com peles de coiote
(cobrindo-se com jornais
apoiando-se uns nos outros)
emigram
Emigram. Emigram
E as montanhas intermináveis da América
são como um poema anônimo
um totem indecifrável que roda
(as montanhas e as ilusões intermináveis
da América sob a noite)
são como estas palavras
estes gestos na escuridão
feito um resto de metal esvaziado
de toda esperança e de todo medo
No entanto
o amor dedica à aventura
estes rostos
e a aventura dedica ao amor
estas estradas aparentemente solitárias

Tradução Rodrigo Lobo Damasceno


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2019

o movimento anarquista uruguaio


nos tempos de cólera1

daniel barret

Em memória de Carlos Alfredo Garcia Moreira, Elbia Leite,


Ildefonso Santamarta (el Gallego Alfonso), Luis Alberto Prim
(Negro Pocho), Boris Rodríguez, Daymán Miralles, Luis
Giménez (el Ferrujo), Freddy Moyano, Eduardo Díaz (el
Cabeza), Fernando Cousillas, Inés Pato e tantos outros que ao
longo dos anos que serão discutidos aqui animaram diferentes
propostas e práticas anarquistas que hoje parecem ter sido
devoradas pelo esquecimento

O ano de 2008 parece ser especialmente propício


para as comemorações desses aniversários “redondos”,
que se expressam em décadas ou em quinquênios. Este
será o calendário no qual encontraremos interessados
em celebrar as coisas mais diversas e haverá para todos
os gostos: dos excessivos e desgastados 160 anos do
Manifesto Comunista aos exíguos e modestos 35 da greve
geral contra o golpe de Estado no Uruguai, passando
pelos 90 do movimento estudantil de Córdoba, os 80 do

Daniel Barret (1952-2009) foi sociólogo, jornalista e professor universitário


anarquista. Entre suas obras está Los Sediciosos Despertares de la Anarquia.

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

assalto ao Câmbio de Messina2 e os 40 do “maio francês”.


No campo das anticomemorações e dos episódios mais
turvos, os 70 anos da “noite dos cristais quebrados” —
aquele inqualificável abuso genocida praticado pelos
nazistas numa noite, em novembro de 1938 — e os
apagados 75 da ditadura de Gabriel Terra3, que sequer seu
deteriorado Partido Colorado ousa rememorar. Da nossa
parte, só incumbe sermos momentaneamente cautelosos e
nos concentrarmos no que é mais próximo e diretamente
nos concerne: a greve geral contra o golpe de Estado no
Uruguai e seu desenlace frustrado. Não se trata de engrossar
o amplo e exagerado volume de mitografias circulantes,
nem pronunciar o enésimo canto épico a respeito, senão
entender, fundamentalmente, o porquê; o que houve
antes e o que aconteceu depois; as mobilizações sociais e
políticas que precederam a greve geral e a ditadura que a
seguiu. Trata-se de decifrar algumas chaves do processo
vivido naqueles anos e fazê-lo a partir da perspectiva do
pensamento e das práticas anarquistas. E ainda, visto que
a história não pode ser reduzida a um objeto de veneração e
culto, mas que deve ser concebida como fonte de lições a serem
coletadas e valorizadas4, tentaremos fazê-lo a partir de uma
perspectiva crítica, cujas remotas contas pendentes foram
extintas e já não poderão ser cobradas aos seus antigos
devedores. Em suma, a dívida interessa pouco ou nada,
pois o olhar crítico se revigora em direção ao futuro e não
ao passado; e as revoluções que mais importam não são
aquelas que poderiam ter sido fecundadas ontem, mas
aquelas que deverão gestar-se a partir de hoje.

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1. O contexto latino-americano: 1968-1973


Os anos 1960 no Uruguai foram palco de um triplo
movimento ascendente5: em primeiro lugar, a formação
de uma arquitetura organizativa complexa e diversificada
que permitiu dar lugar a vastos setores sociais antes
desconectados de certas expressões reivindicatórias;
em segundo, uma persistente agitação que renovava,
periodicamente e sem solução de continuidade, seus eixos
mobilizadores; e, por último, uma aceleração dos ritmos
políticos do campo popular que se encarregou de atualizar,
acentuar e ampliar o clima de confronto imediato e vislumbrou
uma resolução favorável do mesmo. Tudo isso teve uma
relevância evidente no agitado período entre 1968 e
1973. O contexto internacional, por sua vez, forneceu
exemplos que, em seu devido momento, fomentaram
as matrizes predominantes de elaboração política e
suas correspondentes convicções. Na América Latina, o
evento central nesse sentido foi, sem dúvida, a triunfante
revolução cubana de 1959, entendida naquela época —
equivocadamente, em nossa visão — como a antecipação
e epítome de todo um período histórico marcado pelos
processos de “libertação nacional”; uma etapa cujos
começos ou motivações iniciais seriam “antioligárquicos”
e “anti-imperialistas”, mas que se configurariam
rapidamente como uma transição para o “socialismo” a
partir da hegemonia de seus setores mais avançados ou da
classe trabalhadora como tal. Pouco importava que fosse
uma transposição mecânica e pouco criativa de processos
intransferíveis, como o argelino ou o vietnamita, para esta
parte do mundo: afinal, tais convicções já haviam sido
postuladas pela direção cubana e, antes disso, também pelo
XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética,

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

realizado em 1956, o qual permitiu alinhar por trás


delas as várias formações guerrilheiras que proliferaram
no continente durante os anos 60 e as organizações que
responderam com diferentes graus de lealdade à pátria de
Lenin e Stalin.
Durante os 60 e 70, a confiança em um futuro
revolucionário mais ou menos próximo era transbordante.
Ninguém pensava, é claro, que a evolução fosse repentina
e indolor, mas não havia muitas dúvidas nas fileiras de
esquerda de que — segundo a infeliz expressão da época
— as “condições objetivas” estavam dadas. A incógnita
a ser resolvida e, portanto, o eixo dos principais debates
não foi outra coisa que a estratégia de formação das
“condições subjetivas” da revolução. Tanto os focos
guerrilheiros segundo o rastro castro-guevarista, quanto
as frentes eleitorais do signo reformista ou até mesmo
as intempestivas aparições populistas de trajes militares,
foram interpretados como capítulos de progresso coerentes
com o inexorável final do livro da história.
De acordo com os cânones marxista-leninistas
amplamente prevalecentes na época, as relações de
produção próprias do capitalismo dependente haviam
se constituído amplamente como um obstáculo ao
desenvolvimento das forças produtivas, e era justamente
essa a condição necessária para inaugurar um tempo
revolucionário: apenas faltava resolver, etapa por etapa,
o enigma da acumulação sociopolítica contra o “inimigo
principal”. O acesso ao governo de forças reais ou
declaradamente anti-imperialistas no Chile de Allende,
no Peru de Velazco Alvarado, na Bolívia de Torres, no
Equador de Rodriguez Lara, no Panamá de Torrijos ou

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na Argentina de Cámpora funcionou como a confirmação


satisfatória dessas convicções otimistas.
Tratava-se de um momento histórico em que
pareciam verificar-se as teorias evolucionistas, segundo
as quais as mudanças revolucionárias não eram o
resultado e o cadinho de decisões individuais e coletivas
profundamente enraizadas nos desejos e na vontade de
pessoas e organizações reais e concretas, que se fazem
e se desfazem em seu devir combativo, mas o produto
mecânico e o escoadouro de uma sucessão de “modos de
produção” que, por si só, geram as condições ou desculpas
de uma sociedade que supera suas próprias contradições
em uma espécie de epifania “socialista”. Nesse arcabouço
teórico, ao qual já não é possível nem desejável recorrer,
o real foi interpretado como uma consequência infalível
da “necessidade” e como um estágio intransponível de
uma longa travessia histórica. Com certeza, a história
precedente era, em si, suficientemente ilustrativa para a
negação pontual dessas convicções, mas sua obstinada
reinterpretação na versão soviética foi, naqueles anos,
suficientemente “prestigiosa” e avassaladora para se
acreditar nela ao pé da letra; uma celebração do dogma
da qual, felizmente, os anarquistas não faziam parte, mas
que, no entanto, limitou nossos desdobramentos. Tudo
isso mudou profunda e radicalmente após o fracasso do
“socialismo realmente existente”, e apenas uma teimosia
invencível pode mantê-lo em alta; porém, uma descrição
adequada da época, como a que aqui se tentará, deve
ao menos deixá-lo formulado como ponto de partida,
pois é um componente substancial das concepções
predominantes nos anos que serão apresentados a seguir.

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

2. À guerra com poucas armas


O movimento anarquista uruguaio chegou ao
período entre 1968 e 1973 com a casa em desordem.
Desde a decepção provocada pela derrota da revolução
espanhola, o movimento anarquista mergulhou,
internacionalmente, num prolongado refluxo. Na falta
de um paradigma revolucionário renovado para substituir o
antigo anarcossindicalismo, confinado em suas pequenas
organizações específicas e muitas vezes limitado a meras
tarefas de propaganda, enfrentou o pós-Segunda Guerra
com a dedicação generosa de sempre, mas com uma
incidência social reduzida e escassas possibilidades de
imprimir suas pautas nas lutas que se estendiam aqui, lá
e acolá. De outro lado, o surgimento do bloco soviético
e os processos de descolonização na África e na Ásia
conferiram às opções jacobina e estatista de mudança, tanto
na sua vertente marxista-leninista, quanto na nacionalista
e populista, um vigor inusitado; situações que limitaram,
ainda mais, o interesse imediato de uma concepção que,
em sua especificidade inequívoca, só poderia manter uma
sobressaltada relação com tais cursos de transformação
social. No Uruguai, com as singularidades do caso, a
realidade do movimento anarquista respondia, igualmente,
às características assinaladas.
O impacto produzido pela revolução cubana inaugurou
um ciclo de debates dissidentes na Federação Anarquista
Uruguaia. Desde a complexa e variada discussão sobre
o ponto6 e sua derivação, até temas em torno dos quais
sideraram diferenças importantes de concepção, revelaram
uma crise teórica, ideológica, política, metodológica e
organizativa que parecia impensável em sua fundação, em
outubro de 1956. A ausência de um robusto paradigma

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revolucionário partilhado, que permitisse incorporar


e resolver as novidades e exigências dos tempos que
se abriram no início dos anos 60, ficou profunda e
amplamente evidente.
Da separação consumada em 1963 resultariam duas
bifurcações mais ou menos irreconciliáveis, e o que cada
uma ganhou em harmonia e coerência imediata foi perdido
ao final em termos de riqueza, diversidade e perspectiva de
longo prazo: uma delas se agrupou, durante um curto
espaço de tempo, como Aliança Libertária Uruguaia7 e
não conseguiu encontrar o amálgama que permitisse
transcender as práticas particulares de seus grupos e
militantes independentes, enquanto a outra, mantendo
sem variações a denominação de FAU, logrou compactar-
se e desenvolver diretrizes que lhe permitiram um
protagonismo, muito mais pronunciado em nível geral, no
período subsequente.
No entanto, sem prejuízo desse protagonismo — e
da persistência e da concessão colocadas em evidência
na demanda —, a parte que continuaria a ser chamada
de FAU inaugurou um processo aberto de buscas pelo
final, que a levaria a uma perda gradual da identidade
anarquista no sentido agudo e intransigente do termo.
E foi assim que, não muito tempo depois, passou-se do
nome original F.A.U. — enquanto sigla e com os pontos
correspondentes — para a “FAU sem pontinhos”, isto é,
uma organização que já não se considerava nem como
federação nem como anarquista, sem prejuízo de que esta
fosse a definição particular do grosso de sua militância8.
A “FAU sem pontinhos”, que foi ilegalizada em
dezembro de 1967, ainda abrigava expectativas quanto ao

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

curso do processo cubano, que o tempo se encarregaria


de refutar contundentemente; demonstrava-se disposta
a reconsiderar as posições clássicas em relação ao poder;
abandonou sua configuração federal inicial,em favor de uma
forma organizacional de maior disciplina e centralização,
a qual presumia mais apta para o desenvolvimento de um
“aparato armado”, e a resolução das implicações posteriores
mostrava inclinações aliancistas com os setores que então
compunham a “esquerda revolucionária”; por último,
propôs-se a percorrer o árduo caminho de elaborar uma
síntese teórico-política com o marxismo que — como
poderia ser previsto desde o início e sem margem de erro
— a levariam, mais cedo ou mais tarde, a um beco sem
saída9.

3. O 68 uruguaio
Jorge Pacheco Areco, desde sua favorável e casual
ascensão presidencial em dezembro de 1967, mostrou
suas orientações repressivas mediante a ilegalidade de seis
grupos da esquerda radical — um dos quais, como acabamos
de dizer, foi precisamente a FAU. A partir de 1968, a
aplicação das chamadas “medidas imediatas de segurança”
era um lugar comum nas políticas governamentais, embora
o decorativo Parlamento as tenha suspendido em mais de
uma ocasião10. As “medidas imediatas” permitiram uma
e outra vez, entre tantas “belezas” de teor semelhante, a
prisão arbitrária de militantes sindicais, integrantes das
associações de bairro e estudantis, bem como ofereceram
o quadro normativo para a aplicação de um regime militar
de trabalho a certos setores do funcionalismo público. Esse
foi, sem dúvida, um dos vetores da radicalização social e da

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política iniciada em 1968; uma radicalização cujo substrato


mobilizador sindical se situava ao nível das reivindicações
salariais, acumuladas em consequência dos registros
inflacionários extraordinariamente elevados de 1967.
Essas demandas não fizeram outra coisa senão aumentar a
partir da adoção de políticas de ajuste recomendadas pelo
Fundo Monetário Internacional e baseadas na contenção
do consumo através do congelamento de salários. Para
piorar a situação, o elenco de governo mostrou um
rosto descaradamente burguês contrário às tradições de
mediação e “neutralidade” do Estado uruguaio: a carranca
da proa era, então, um setor das classes dominantes que se
encarregava de correr atrás de seus assuntos com uma vara
longa e sem cenoura.
A concentração de 1º de maio serviu como augúrio
do que aconteceria nos meses seguintes com os duros
confrontos entre as forças policiais e os setores mais
aguerridos que participaram do evento convocado
pela Convenção Nacional dos Trabalhadores (CNT);
este ato contou com a presença dos cortadores de cana
de Artigas11, que tinham chegado poucos dias antes,
depois de uma marcha de centenas de quilômetros até
Montevidéu. Imediatamente, teve início a agitação em
escolas secundárias e faculdades contra o aumento da
tarifa de transporte estudantil, e a gravitação do respectivo
movimento no conjunto de organizações populares
ampliou-se. O mês de junho foi cenário de duas decisões
governamentais já insinuadas e que acentuaram o clima
de mobilização: no dia 13, as Medidas Imediatas de
Segurança foram implementadas, e apenas 15 dias depois
o congelamento de preços e salários foi decretado. Neste
último dia inaugurou-se também o lamentável ciclo de

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

militarizações com os funcionários do Conselho Nacional


de Subsistência, que será prontamente continuado
pelos trabalhadores das Usinas e Telefones do Estado
(UTE, hoje Usinas e Transmissões Elétricas), das Obras
Sanitárias do Estado (OSE) e das Telecomunicações.
Foi nesse contexto que a guerrilha urbana, ainda
incipiente, representada pelo MLN12, aumentou a aposta
de suas ações e sequestrou o presidente da UTE — uma das
figuras mais impopulares do governo — no dia 7 de agosto.
Quase que imediatamente, as forças repressivas entraram
com um plano de busca nas instalações universitárias,
com evidente violação de sua autonomia. As mobilizações
brotaram sistematicamente em enfrentamentos violentos,
e os órgãos do Estado recolheram suas primeiras vítimas
nas fileiras de estudantes: em 14 de agosto foi preso Líber
Arce e em 20 de setembro, Hugo de los Santos e Susana
Pintos. A sesta provincial característica do Uruguai
“liberal e batllista13” recebeu um chicotaço estridente, e a
consciência se estremeceu em suas raízes mais profundas:
para muitos, tornou-se indiscutível que era o chamado
augural de um processo revolucionário. A outrora “Suíça
da América” fundiu, assim, seu destino com os do resto
dos países latino-americanos.

4. A luta continua
Os anos sucessivos foram uma continuação do que
1968 permitiu encenar, mas agora dentro de marcos
organizacionais mais rígidos e sem a criatividade
espontânea proporcionada por essas lutas de rua;
uma criatividade facilitada pela incorporação rápida
e comprometida de milhares de novos militantes que

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transbordaram as estruturas mais institucionalizadas


do campo popular. A partir de 1969, as organizações
de esquerda se concentraram em preservar os espaços
sociais sobre os quais exerceram algum tipo de influência,
e os encontros facilitados pela dinâmica da ação
foram diluídos e empobrecidos nas mais emaranhadas
negociações de cúpula, previamente mediadas pelos
interesses “partidários”. Contudo, o enfrentamento em si
se aprofundaria em diferentes planos, adotando fórmulas
relativamente simples, redutoras e quiçá maniqueístas para
expressar em linhas muito densas todas as complexidades
e variantes do conflito social. O problema era — segundo
a concepção mais difundida — entre a oligarquia aliada ao
imperialismo e o povo. Não havia opção a não ser escolher
um ou outro, e quem o fizesse pelo campo popular
inevitavelmente convergiria nas ofertas “frentistas”14 e
de “libertação nacional” que começavam a despontar e
adquirir força em consonância com o auge da mobilização.
Em 1969 continuaram as greves de longa duração em
setores estratégicos da economia (frigoríficos, bancários,
UTE, etc.), os estudantes mantiveram suas mobilizações
por autonomia e aumento orçamental e a guerrilha do
MLN aumentou a frequência e a espetacularização de suas
ações, chegando ao que seria sua operação mais ressonante:
tomar a cidade de Pando15 no dia 8 de outubro. Com
este último ato, segundo alguns observadores, o caráter
folclórico e simpático das ações anteriores teria sido
abandonado para dar lugar aos enfrentamentos realmente
sangrentos. Em 1970, o MLN realizou vários sequestros,
e em um deles foi executado o funcionário estadunidense
Dan Anthony Mitrione, assessor em “interrogatórios”,
assim como antes tinha sido o delegado de polícia Héctor

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

Morán Charquero. O parlamento votou, no mês de agosto,


a suspensão das garantias constitucionais para facilitar
abusos repressivos dos mais diversos. Nesse ano, os dois
eixos do ensino secundário16 foram alvo de intervenção, e
isso concentrou a atenção do movimento estudantil.
Entretanto, 1971 seria um ano parcialmente diferente,
já que, tratando-se de um ano eleitoral, o governo
não podia deixar de oferecer seu rosto mais “bonito”:
organizações que haviam sido banidas em dezembro de
1967 foram novamente legalizadas, cessou a intervenção
nos organismos do ensino médio e houve um aumento
relativamente significativo do salário real. Face às eleições,
formou-se o Frente Amplio: a confluência mais ampla
possível de forças “antioligárquicas” e “anti-imperialistas”,
composta pelos setores da esquerda tradicional, a
democracia cristã e facções “progressistas” procedentes dos
partidos Blanco e Colorado. Não obstante, e sem prejuízo
de seu apoio ao Frente Amplio, o MLN continuou com
ações de envergadura, novos sequestros e duas grandes
fugas da Prisão Feminina e da Penitenciária de Punta
Carretas. Em seu rosto mais sórdido, 1971 também trouxe
as primeiras ações dos esquadrões paramilitares, as mortes
de outros dois militantes estudantis, Herber Nieto e Julio
Spósito, e a incorporação formal das forças armadas à “luta
antissubversiva” — fato esse que, no final, será decisivo e
fundamental.
A escalada repressiva só se intensificaria em 1972 — já
com Juan María Bordaberry na presidência, como resultado
das eleições de novembro do ano anterior —, sobretudo
a partir da decisão do MLN de aumentar suas ações
de confronto com as Forças Armadas do Estado, o que
serviria de desculpa para a imediata ofensiva militar. Em

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termos de instrumentos jurídicos, passou-se da suspensão


das garantias constitucionais à declaração do “estado
de guerra interno”, e deste para a Lei de Segurança do
Estado. Equipadas com tais instrumentos e em um regime
generalizado de tortura, as forças armadas dizimariam
em poucos meses a estrutura do MLN e continuariam
com seus preparativos propriamente “políticos” para
finalmente assumir a titularidade do governo. Os órgãos
repressivos do Estado, uma vez concluída com sucesso sua
“luta antissubversiva”, avançariam suas peças não apenas
sobre os rescaldos das organizações guerrilheiras, mas
sobre tudo aquilo que pudesse simbolizar algum tipo de
obstáculo.

5. A presença anarquista
Nesse marco de convulsões sociais e políticas, os
anarquistas uruguaios saíram à sua própria batalha, apesar
de seus enfraquecimentos, suas dúvidas e suas buscas não
resolvidas. E assim o fizeram tanto aqueles agrupados
na FAU, quanto os que definiram para si um caminho
diferente desde 1963.
A FAU continuou a concentrar suas ações marcando
presença no movimento sindical, porém, também se
mostrou resolutamente decidida a constituir um “centro
político” a partir do qual estabeleceu um papel de direção
em diferentes frentes de atividade. No plano sindical,
a partir de 1968, deu vida à Resistência Operário-
Estudante (ROE), projetada para servir como um provável
receptáculo do que, no âmbito da CNT, era conhecida
como Tendência Combativa — uma ampla confluência
de grupos orientados por organizações da esquerda

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

radical que poderiam funcionar como uma alternativa


às orientações predominantes na central operária
exercida fundamentalmente pelo PC. Ao mesmo tempo,
a presença estudantil foi crescendo em seu interior, e se
voltou, preferencialmente, às tarefas de apoio aos conflitos
sindicais. Em termos da concepção organizacional global,
os militantes da FAU que atuaram através da ROE
constituíram-se em sua “perna” de atuação pública ou
semi-pública17, enquanto que paralelamente também se
destinou um setor de seus ativistas para a formação de um
“aparato armado” que formaria sua “perna” estritamente
clandestina. Com base nessa conformação, a FAU teve
um desenvolvimento numericamente importante entre
os anos 1968 e 1972, conseguindo ativar boa parte de
suas diretrizes iniciais. O modo como se processaram os
conflitos sindicais que ficaram sob a área de influência de
seus militantes tornou visível, embora sempre em condição
de minoria, uma metodologia efetivamente alternativa
à condução majoritária da CNT, e no meio desses
conflitos combinaram-se ações de boicote, sabotagem e
apoio externo por parte da militância clandestina. Seu
“aparato armado” — que desde 1971 adotou o nome de
Organização Popular Revolucionária 33 — acompanhou
esse desenvolvimento aumentando sua capacidade
operacional, que passou das ações de financiamento
e instrumentalização até a maior complexidade dos
sequestros18.
Em contrapartida, a FAU daquela época deu a sensação
de funcionar relativamente bem em uma sucessão de
momentos táticos; mas, em seu processo de buscas
teóricas, foi perdendo imperceptivelmente parte de sua
longínqua identidade original. O marxismo, já utilizado

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a torto e a direito em suas análises, transformou-se no


conteúdo substantivo dos cursos de formação por meio
dos textos de Louis Althusser, Nicos Poulantzas e Marta
Harnecker — fundamentalmente na “perna” da atuação
pública ou semi-pública —, e esse era o reconhecimento
de fundo teórico de um setor crescente de sua militância19.
Por sua vez, aqueles anarquistas que foram deixados
à margem da FAU também fizeram a sua parte. Tanto
a turma de Belas Artes quanto o Grupo Libertário de
Medicina tiveram atuação destacada na agitação de
rua do ano de 1968, no marco das ações da Federação
de Estudantes Universitários do Uruguai (FEUU);
no entanto, no caso dos companheiros de Medicina,
rapidamente optou-se por um formato conspiratório que
estranhamente aproximou muitos de seus militantes ao
MLN, e isso repercutiu nos infortunados fins da notória
perda de influência gremial. A Comunidad del Sur20, por
seu lado, deu lugar direta ou indiretamente a experiências
duradouras sobre as quais, depois, todos os tipos de
incidência foram perdidos: o Movimento Nacional
de Luta pelas Terras, a Federação de Cooperativas de
Produção e a Federação Uruguaia de Cooperativas de
Moradia por Ajuda Mútua (FUCVAM). A partir de
1968, um grupo de companheiros da Comunidad del
Sur, junto com algumas individualidades, também deu
vida à Editorial Ação Direta — afinal, uma das poucas
expressões que difundiram durante o período materiais de
caráter expressamente anarquista. Nesse campo libertário
disperso havia presença e vontade, porém, a ausência de
um paradigma revolucionário comum e estritamente
anarquista deixava sentir seus prolongados e profundos
efeitos.

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

5. Uma visão alternativa


Enquanto isso, desde o final dos anos 60 e início
dos 70, forças jovens começaram a aparecer vagamente
inspiradas no “maio francês”. Em princípio, tratou-se
de um espaço híbrido em que três linhas de influência
se combinaram de forma um tanto quanto forçada: a
emergência dos movimentos juvenis dos anos 60, as
guerrilhas latino-americanas e a experiência revolucionária
do anarcossindicalismo espanhol. As concepções que
Abraham Guillén elaborou naquela época constituíram
um referencial teórico que buscava amalgamar essas
linhas de força e, durante um breve período em 1969,
um grupo retomou a denominação tradicional de
Juventude Libertária, tentando trabalhar com base nessas
preocupações. Essa experiência seria reeditada em 1971,
novamente como Juventude Libertária, mas com maior
desenvolvimento ideológico-político e com um impacto
mais amplo, embora ainda reduzido. Nesse ínterim, havia
amadurecido a ideia de que não era possível unir-se
libertariamente aos processos de mudança em curso sem
o apoio de alguma forma de organização especificamente
anarquista e de um trabalho ideológico consistente nesse
sentido; tudo isso junto com a convicção de que a FAU, em
sua tentativa de construir uma síntese com o marxismo,
havia renunciado a essa aspiração. Desde o primeiro
momento, concluiu-se que essa intenção de “síntese” só
poderia perdurar no tempo baseada em indefinições que,
mais cedo ou mais tarde, teriam que ser abordadas de uma
forma ou de outra.
Essa convicção colocou-se num lugar diferente
daquele das duas frações que resultaram da divisão da
FAU de 1963, estendendo sua visão crítica em ambas

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direções. De um lado, consederava-se importante ter


mantido inalterados os elementos básicos do pensamento
anarquista, e isso aproximou esta área daqueles que haviam
sido os componentes da ALU; mas, de outro lado, ainda
se considerava resgatável a permanência nas organizações
populares e a necessidade de ativar um processo de
renovação teórico-ideológica que parecia inadiável, o que
de fato criou algumas expectativas na FAU21. Também
explica o caso que, nesse território de ideias, dilataram-
se elementos que pertenciam à ROE, bem como a faceta
da tentativa “especifista”, ou seja, as próprias Juventudes
Libertárias. Isso foi favorecido pela conclusão básica de
que a “síntese” com o marxismo era, na realidade, uma
quimera de vida curta e que, mais cedo ou mais tarde,
haveria um rearranjo organizacional que dissiparia todas
as dúvidas que se encontravam, momentaneamente, em
suspenso. De certa forma, planejava-se uma esperança
ingênua e “iluminista” com relação ao predomínio da razão
abstrata e à possibilidade de reunir todos os anarquistas
sob as mesmas bandeiras depois que o processo em curso
produzisse por si mesmo as três ou quatro formulações
básicas de um paradigma libertário remoçado.
A ideia era extraordinariamente otimista a curto
prazo, e somente o transcorrer dos anos iria demonstrar
que se tratava de uma intuição correta. No entanto, o
certo é que as características geracionais impediram que
essa corrente pudesse adquirir uma gravitação imediata
mínima para além do que foi expresso de maneira
relativa e limitada durante esses anos em algumas escolas
secundárias, escolas técnicas e faculdades. A radicalização
que estava em ascensão não oferecia muita margem para
o surgimento de proposições e agrupamentos sustentados

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

predominantemente por elementos de novidade: o campo


das oposições já estava traçado, só admitia a formação
de alianças baseadas no que já existia e os principais
norteadores da mobilização eram, como já foi dito, os
militantes formados ou consolidados durante a década de
195022. As Juventudes Libertárias que estavam integradas
pelos “filhos” dessa geração não encontraram o lugar
apropriado na mesa “familiar”, e a presente tentação
conspiratória de alguns de seus membros os obrigou a
se dissolverem sem mais nem menos. Em compensação,
suas convicções básicas seriam confirmadas pelos eventos
posteriores — algo que só pôde ser visualizado muito
depois.

6. Golpe de Estado e greve geral


Em fevereiro de 1973, as forças armadas tinham
completamente sob controle tudo o que poderia
representar uma “ameaça” guerrilheira. Os presídios
já apresentavam uma situação de superpopulação e os
fragmentos da ação armada que puderam manter-se a
salvo vincavam-se com vistas a reorganizarem-se nos
países vizinhos, especialmente Chile e Argentina. Mas o
alúvio militar estaria longe de parar depois de ter cumprido
a missão específica que a condução do Estado lhes havia
encomendado: agora, sua lógica de atuação no marco
da “doutrina da segurança nacional” os impulsionava a
desembaraçar-se de tudo aquilo que pudesse significar
uma continuação da “agressão” e, de acordo com essa
concepção predominante, cada habitante do país poderia
transformar-se num instrumento do inimigo e ser
concebido como um agente potencial ou consumado

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de Moscou e de Havana23. Foi nesse mês de fevereiro


que se produziu a primeira tentativa golpista e as forças
armadas emitiram dois pronunciamentos de conteúdo
“nacionalista” e “desenvolvimentista” — popularmente
conhecidos como “comunicados 4 e 7” — que semeariam
uma confusão insólita.
Segundo as concepções teórico-políticas defendidas
pelo PC — a partir das quais se exercia uma severa
“colonização” de quase toda a esquerda uruguaia —, as
forças armadas ocupavam um lugar neutro na estrutura
produtiva, e por esse motivo podiam transitar no regime
de “opção livre” em torno da murcha contradição principal
entre a “oligarquia” e o “povo”. Nessa vigilância dialética
de base economicista tão cara à vulgata marxista-leninista,
a análise prescindia das características institucionais
das forças armadas, da sua estruturação hierárquica,
de seu fundamento funcional nas noções de comando
e obediência e até de sua articulação em complexas
tramas de poder que normalmente lhes conferem tarefas
de conservação das tradições, da disciplina e da ordem.
Assim, uma porção mais do que significativa do campo
popular perdeu-se afiançando ilusões vãs relativas a uma
eventual orientação “peruanista” das forças armadas24, em
vez de organizar meticulosamente a resistência a um golpe
de Estado completamente regressivo cujo único enigma
consistia em conhecer com exatidão o mês, a semana, o
dia e a hora.
E isso ocorreu na madrugada do 27 de junho de 1973.
A militância de base respondeu em todos os lugares com
a ocupação dos locais de trabalho e de estudo sem que
parecesse imprescindível uma única voz de comando a
esse respeito: só foi necessário rememorar uma velha

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

resolução tomada vários anos antes e a resistência ao golpe


de Estado foi imediatamente consumada, adquirindo
dimensões que nunca havia tido qualquer greve. A partir
daí, sucederam-se as desocupações realizadas a ponta de
baioneta em locais quase sempre fabris que poucas horas
depois voltavam a ser ocupados com o apoio dos vizinhos
mais próximos e dos estudantes da região. A dissolução
da CNT foi de pouca utilidade para as forças armadas
três dias após o golpe: a resistência popular não tinha um
comitê central e, por definição, as pessoas não podiam ser
ilegalizadas. Em 9 de julho, uma multidão confrontou
as forças repressivas na principal avenida montevideana.
Finalmente, em 11 de julho, a CNT e a FEUU conseguiram
o que as forças armadas não haviam logrado: com a
atuação dos dirigentes e a modificação política, a greve
geral foi suspensa — na CNT, com a posição discordante
da Federação Uruguaia de Saúde (FUS), a Federação de
Operários e Empregados da Bebida (FOEB) e a União de
Trabalhadores, Empregados e Supervisores de FUNSA;
e na FEUU, com a recusa da Associação de Estudantes
de Belas Artes25. A greve geral havia sido derrotada,
mas graças a ela — à sua profundidade, à sua extensão,
à energia mostrada na ação —, a ditadura militar nascia
mortalmente ferida em termos de legitimidade e apoio
interno.

6. Os militares à vontade
Alguns meses depois, no final de outubro, a universidade
foi alvo de intervenção e, com isso, encerrava-se qualquer
possibilidade de atuação pública ou legalmente admitida.
Os militares tinham o país inteiro sob suas botas; eles

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dedicar-se-iam a se abastecer com os elementos jurídicos


e orgânicos necessários para governar e começariam a
eliminar os focos de resistência um por um. Formalmente,
o presidente da república continuou a ser Juan María
Bordaberry até 1976, mas de fato eram as forças armadas
que ocupavam as verdadeiras molas governamentais na
companhia de uma esquecível e supranumerária corja de
adjacentes em trajes civis. Entre 1973 e 1980, o país se
tornaria um páramo desolado, onde discursos adversos
não tinham possibilidade alguma de aparecer. Enquanto
isso, assim como na Argentina e no Chile, e na ausência de
organizações de trabalhadores que pudessem desencadear
algum tipo de antagonismo, os militares auspiciavam os
primeiros ensaios da aplicação de fórmulas econômicas
mais ou menos atribuídas à escola neoliberal.
O que aconteceu então nos grupos libertários? A FAU
acentuou seu processo de redefinição, reorganizando-
se clandestinamente em Buenos Aires e incorporando
um bom número de militantes de outras procedências
que já concebiam como definitivamente impossível um
retorno às antigas posições anarquistas. Foi em Buenos
Aires, em julho de 1975, que se celebraram as sessões
finais do congresso constitutivo de uma organização
diferente: o Partido pela Vitória do Povo. O desempenho
desse partido foi localizado pelos serviços de inteligência
militar e ele mesmo acabou por ser vítima de uma tácita
política de extermínio26: aqueles que não eram retidos
nas prisões “desapareceram”, e aqueles que conseguiram
superar o cerco partiram para o exílio na Europa. Nesses
episódios, os antigos militantes, formados nos anos 50 e
que ainda podiam manter algum tipo de alento libertário,
ficaram pelo caminho. Os sobreviventes dessa campanha

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

repressiva reuniram-se num encontro em Paris em 1977


— conferência de balanço e perspectivas, segundo Hugo
Cores27 —, e realizaram uma “autocrítica” da derrota na
qual, insolitamente, carregaram nas tintas do pensamento
libertário que houvesse chegado até esse momento e já se
constituíram num partido declaradamente marxista que
reconheceu no anarquismo apenas suas origens distantes,
mas não precisamente uma fonte de inspiração.
Durante muito tempo, pequenos grupos do “aparato
armado”, que visavam a recuperação de uma tonalidade
mais fortemente anarquista, haviam adensado seus
desprendimentos. Foi o que aconteceu com Os Libertários,
cujos militantes acabaram quase todos atrás das grades,
com exceção de dois companheiros extraordinários mortos
em combate: Julio Larrañaga (el Polo), em abril de 1974,
e Idilio de Leão (el Gaucho), em outubro do mesmo ano.
Por sua vez, em Buenos Aires, separou-se uma Tendência
Anarquista Revolucionária, que buscou sem encontrar
os militantes do grupo anterior. Foram mais numerosas
as separações das posições anarquistas produzidas na
ROE, sendo a mais importante a Agrupação Militante da
Universidade do Trabalho.
Os embates repressivos desmantelaram tudo o que
houve até 1973, e os anarquistas que haviam pertencido ao
Grupo Libertário de Medicina, à Comunidad del Sur ou à
Escola de Belas Artes tiveram que embarcar no caminho
do exílio. No exílio, dois grupos seriam formados: os
Núcleos pela Resistência 29 de outubro e a Organização
da Resistência, pensados para apoiar atividades de
reconstrução libertária. Dentro do país, os anarquistas só
puderam manter pequenos grupos ligados entre si e mais
uma vez empenhados em tarefas básicas de intercâmbio de

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informação, discussão, análise, elaboração, fortalecimento


mútuo, solidariedade e organização incipiente — algo que
nunca atingiu mais do que algumas dezenas de militantes.

7. A “abertura democrática”
No final da década de 1980, as forças armadas haviam
planejado fazer uma jogada de mestre: um plebiscito
constitucional que institucionalizaria a presença das esferas
governamentais com vistas à eternidade. Relativamente
desgastados, não desprovidos de contradições internas
e requeridos de uma legitimação mais ampla do que até
então, optaram por gerar espaços de discussão pública com
figuras políticas de segunda e terceira ordem, convencidas
de que uma combinação maquiavélica de vigilância e medo
levaria as maiorias eleitorais a escolher pelo “mal menor”;
referendaram com seu voto um projeto que, de todos os
modos, seria preferido de acordo com seu ponto de vista
míope, ante o vazio, a incerteza e a indefinida perpetuação
da mesma situação. No calor das discussões estabelecidas
por esse plebiscito, até mesmo anarquistas anônimos
puderam dar a conhecer suas opiniões modestas, e um
comunicado encarregou-se de difundir em seu círculo de
“amizades” a importância de levantar uma recusa radical a
tudo o que procedesse de fontes militares28.
Incrivelmente e contra todos os prognósticos, a reforma
constitucional proposta pelas forças armadas foi rejeitada
no correspondente plebiscito, e isso obrigou aos fardados
formular um cronograma de diálogo e “abertura”— algo que
inicialmente contemplava apenas a oposição dos partidos
“tradicionais” Nacional e Colorado. Além dessas intenções
mínimas, os militares também precisavam oferecer algum

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

tipo de respiradouro à sociedade, mesmo sob o mais estrito


controle. Assim, em 1981, o seu Conselho de Estado, que
serviu como parlamento, aprovou uma Lei de Associações
Profissionais destinada a habilitar a organização de algo
que se assemelhasse a um sindicato, mas que mantivesse a
devida compressão dos momentos de supervisão absoluta e
que deixasse fora de qualquer prerrogativa os funcionários
públicos. A lei não contemplava a possibilidade de que
fossem organizadas federações sindicais, limitando-se
à constituição de “associações civis” de primeiro grau;
no entanto, isso transbordou rapidamente e, em menos
de dois anos, deu lugar à formação de uma Plenária
Intersindical de Trabalhadores (PIT), com a presença
direta dos sindicatos de base. Em simultâneo, em torno das
cooperativas de apostilas e revistas engenhosas, começou-
se a produzir a reorganização do movimento estudantil
na chamada Associação Social e Cultural de Estudantes
do Ensino Público, assim como também foi iniciada uma
série de publicações interessantes de bairro que visavam
difundir problemas próprios e incentivar a participação
ativa dos vizinhos próximos. Para completar o panorama
é necessário dizer que a FUCVAM também constituiu
um dos eixos da reorganização e da mobilização popular
com campanhas por moradias que tiveram uma enorme
adesão popular.
Ademais, entre 1981 e 1982, o desenho econômico
militar entrou em sua fase de bancarrota depois que
Aparicio Méndez, na primeira magistratura desde 1976,
transferiu a faixa presidencial para Gregorio Álvarez, o
primeiro presidente fardado propriamente dito. Uma lei de
partidos políticos foi aprovada e foram realizadas eleições
internas com o proscrito Frente Amplio, e os oponentes da

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ditadura triunfam amplamente — encarregados de buscar,


desde então, em diálogo com as forças armadas, uma saída
“democrática”. A mesa de diálogo foi finalmente instalada
em maio de 1983 e levantada, apenas alguns meses depois,
sem qualquer acordo, o que habilitou novas disposições
repressivas. Apesar desse primeiro fracasso, o processo de
“abertura” não tinha margem para reversão, especialmente
porque a mobilização popular ganhou terreno e, em
sua dinâmica, constituiu atores imprevistos e com força
suficiente para se apresentar como convidados de pedra.
Em julho de 1984 foi prescrito finalmente o Frente Amplio,
que já participava das negociações com os militares depois
que o Partido Nacional se retirara das mesmas. Em agosto,
os chamados “acordos do Clube Naval” foram alcançados,
alguns presos políticos que já haviam cumprido a metade
de sua sentença começaram a ser liberados, e encerrou-se a
intervenção na universidade. As eleições nacionais foram
realizadas no último domingo de novembro, e triunfou
a fórmula do Partido Colorado: Julio María Sanguinetti
— o grande arquiteto da “abertura”, junto com o tenente
general Hugo Medina — assumiria o comando do país
em março de 1985 e iniciaria seu período de “mudança
em paz”, isto é, o rearranjo “democrático” do capital e do
Estado.

8. A reorganização anarquista
Do ponto de vista que optei no presente trabalho,
o é essencial destacar a reorganização anarquista que
ocorreu nesse contexto. Nos anos de 1983 e 1984, o
movimento popular uruguaio não apenas se rearticulou
pontualmente e de ponta a ponta, mas entrou em uma

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

fase de mobilização contínua. Nos primeiros meses de


1983, contra todos os prenúncios e apesar das intenções
militares de permitir apenas uma “abertura” controlada,
emergiram por todo o país centenas de sindicatos, grupos
de estudantes, revistas de bairro, cooperativas de moradias,
refeitórios populares, policlínicas de bairro etc. Foi esta
constelação interminável de organizações de base que
permitiu, pela primeira vez em 10 anos, um ato sindical no
dia 1º de maio sob a responsabilidade do então chamado
Plenário Intersindical dos Trabalhadores. Foi nesse ato,
para apresentar só um exemplo, que um bloco robusto
chegou inesperadamente, procedente dos distantes bairros
operários do Cerro e La Teja, cantando pela liberdade de
prisioneiros políticos29; um bloco em cuja frente vinham,
entre outros, os militantes da recém-formada “Associação
Anarquista Pedro Boadas Rivas” como organizadores
do ato30. Nessa efervescência, não era estranho que os
anarquistas fossem os que formavam a quarta parte
da comissão de organização da primeira greve geral na
ditadura — o 18 de janeiro de 1984 —, nem que naquele
mesmo dia tais sujeitos incorrigíveis tivessem cometido
uma mobilização no Cerro — na praia! —, acompanhada
por milhares de banhistas.
Nunca será possível saber exatamente quando, mas é
certo que, em algum momento, no afã de alguma dessas
múltiplas manifestações de rua dos anos de 1983 e 1984,
voltou a flamular desafiante, mais uma vez, a bandeira preta
e vermelha. Nascidos quase do nada — por osmose, por
geração espontânea, por contágio ou vai saber por quê —,
até então aquelas poucas dezenas de militantes libertários
que sobreviveram aos primeiros anos da ditadura tinham
se transformado em centenas de anarquistas enraizados

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nas novas organizações de bases populares: desde o Cerro


e La Teja até Villa Española e Bella Italia, desde a central
elétrica e a refinaria até o hipódromo e as alfândegas,
passando pelas gráficas, os bancos, os hospitais e os
estabelecimentos de ensino. A esmagadora maioria tinha,
então, aproximadamente 20 anos e não era o produto
do proselitismo deliberado de nenhuma organização
específica, senão o resultado de um irresistível apetite
libertário e de uma enorme vontade de inventar uma
palavra intransferível na infindável diligência de construir
sua própria vida. Foi nessa atmosfera que o pensamento
e as práticas anarquistas recuperaram um lugar e uma
trajetória sem a possibilidade de substituição.
Não foi e não poderia ser a revolução, é claro, mas foi
a oportunidade de criar uma densa rede de organizações
sociais a partir do zero — sem vanguardas iluminadas, sem
dirigentes perpétuos e sem estruturas institucionalizadas
para reverenciar. Muito foi dito e feito pelas forças
armadas em nome do país sem qualquer consulta para que
alguém pudesse defender imediatamente depois, e com
um mínimo de dignidade, o critério de representação:
foi, portanto, a hora da apresentação, das numerosas
assembleias e das vozes em corais desenfreados — essa
circunstância estatisticamente improvável que nasceu
da reflexão e das entranhas, na qual cada um se sentiu
iniciando com os outros uma relação entre homens e
mulheres livres e iguais e solidários. Ou que, já para ferir
ex professo a couraça epidérmica dos profetas leninistas, a
delegação de funcionários públicos ao PIT foi escolhida
por sorteio, no entendimento de que não se tratava mais
de simples portadores das posições de base.

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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

Foi nesse clima que se formaram nada menos do que uma


dúzia de grupos libertários, dois dos quais — Resistência
Libertária e Luta Libertária — eram de fato federações
incipientes ou coordenadoras de grupos. Seriam esses
grupos e os militantes individuais que havia aqui e ali os
que se encarregariam de retomar e personificar um projeto
anarquista dali em diante. Na jornada realizada no mês de
dezembro de 1984, denominada Semana do Dinamismo
Libertário, passariam de 500 os militantes recém-
chegados às agrupações anarquistas. A partir daí, outra
história começaria: 1985 não permitiu mais a repetição das
fórmulas de 1968 e esboçou, com relação a essa data, um
consistente esforço de renovação. Sem mencionar que tal
exigência se delineava na época e é delineada nos tempos
vigentes, agora de maneira redobrada. Tal renovação é
incerta em sua desembocadura, porém, em todo caso, não
deixa de ter nela um elemento de certeza impassível: a de
que o que compete aos anarquistas, hoje como ontem, são
pensamentos e práticas centrados em torno de uma crítica
radical do poder e uma ética intransigente da liberdade.

Tradução do espanhol por Adriana Ferreira Martinez.

Notas
1
A tradução foi realizada a partir do texto original datado de 4 de julho
de 2008 e postado pelo autor em: https://www.nodo50.org/ellibertario/
danielbarret.html. Foi publicado por primeira vez em Tierra y Tempestad.
Ano 1, Número 2. Inverno 2008. Montevidéu, Uruguai. Disponível em:
https://laturbaediciones.files.wordpress.com/2010/03/numero-2.pdf (N.
T.).

verve, 35: 14-46, 2019 41


35
2019

2
Em 25 de outubro de 1928 um grupo de anarquistas expropriou a casa de
câmbio chamada Messina no centro de Montevidéu (N.T.).
3
Ditador uruguaio da década de 1930. Estabeleceu relações com Mussolini
e Hitler, dos quais recebeu empréstimos para construir uma barragem
hidrelétrica (N.T.).
4
Os grifos marcados no decorrer do texto seguem o original do autor (N.T.).
5
Falar sobre os anos 60 não implica desconhecer que, em grande parte, as
sementes que mais tarde germinariam foram plantadas na década de 50: a
organização dos trabalhadores rurais realizada por Raúl Sendic que depois
daria lugar à formação do Movimento de Libertação Nacional (MLN), a
liderança de Rodney Arismendi e sua equipe no Partido Comunista (PC), as
primeiras fraturas dentro dos partidos Colorado e Nacional, a aprovação da
lei orgânica universitária e até a formação da Federação Anarquista Uruguaia
(FAU) são fatos históricos próprios daquela década. Há também consenso
de que a crise econômica que atuou como pano de fundo foi substanciada
em meados dos anos 50, e é perfeitamente demonstrável que as figuras mais
relevantes do período iniciado em 1968 foram formadas ou consolidadas nas lutas
sociais e políticas da década anterior, sem dar muitos protagonismos aos elementos
mais jovens. Enfatizar isso responde à necessidade de explicar, em nossos
efeitos atuais, os motivos pelos quais não chegaram a adquirir uma excessiva
autonomia de voo as expressões orgânicas geracionais próprias da ascensão
da mobilização do final da década de 1960.
6
O ponto ao qual o autor refere-se é o que separa as letras da sigla F.A.U.
(N.T.).
7
A sigla correspondente é ALU (N.T.).
8
Há versões documentais coincidentes em torno deste assunto da supressão
dos pontos e seu significado por dois dos protagonistas mais relevantes
dessa organização: Juan Carlos Mechoso e Hugo Cores — apesar de ambos
seguirem caminhos divergentes. Ver: María Eugenia Jung e Universindo
Rodríguez. Juan Carlos Mechoso anarquista. Montevidéu, Edições Trilce,
2006, p. 64; e Hugo Cores. Memórias da resistência. Montevidéu, Ediciones
de la Banda Oriental, 2002, p. 112. Cabe assinalar, embora seja muito menos
importante, que essas versões também coincidem com as memórias deste
articulista.
9
Pode-se dizer, em um sentido restrito, que a apresentação da revista Rojo
y Negro contém um certo resumo deste programa de trabalho. Ver: Rojo y

42 verve, 35: 14-46, 2019


verve
o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

Negro, n. 1, Montevidéu, maio de 1968, pp. 3-6; precisamente no alvorecer


do período que agora nos ocupa.
10
Na verdade, as “medidas imediatas de segurança” já haviam sido adotadas
em 1967, no primeiro ano do governo “colorado”, mas só foram aplicadas
só por 12 dias.
11
Departamento localizado ao norte do Uruguai que fica a 600 quilômetros
de Montevidéu (N.T.).
12
Mais conhecido como Tupamaros (N.T.).
13
Batllismo é sinônimo do Partido Colorado no Uruguai, criado por José
Batlle y Ordoñez, presidente nos períodos de 1903-1907 e 1911-1915
(N.T.).
14
São assim chamados os integrantes da coalizão de partidos políticos
Frente Amplio (N.T.).
15
Cidade que fica a 30 quilômetros de Montevidéu (N.T.).
16
Trata-se do ensino secundário formal e o técnico (N.T.).
17
Embora a ROE fosse pensada como um espaço de “tendência” e de
encontro entre grupos da esquerda revolucionária, o já mencionado
enrijecimento de posições a partir de 1969 estreitou o espectro de domínios
e o reduziu tacitamente à FAU; em particular desde a fundação do Frente
Amplio em 1971.
18
É óbvio que, em um trabalho com as características do atual, não é possível
fazer outra coisa senão um resumo apressado e pobre. Para uma revisão
detalhada do período, no entanto, o trabalho de Juan Carlos Mechoso
está disponível, o qual é recomendado recorrer; ver Ação Direta Anarquista.
Uma história da FAU, especialmente seu volume I; Montevidéu, Editorial
Recortes, 2002.
19
Ver o que foi afirmado por Hugo Cores, op. cit., 2002, p. 112. Em relação a
essa questão altamente controversa, podemos dizer que o texto de Mechoso
minimiza o fenômeno, e isso provavelmente é atribuído ao fato de que
seu lugar claramente clandestino na organização impedia notar a total
dimensão dos alcances e os correspondentes riscos teórico-ideológicos. De
nossa parte, embora pouco importe para todos os efeitos, vale assinalar que,
se bem as diferenças com Hugo Cores são absolutamente intransponíveis,
na medida em que ele foi o principal expoente da conversão marxista e

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35
2019

que trabalhou sistemática e francamente nessa direção, entende-se que seu


tratamento nesse tema reflete mais fielmente o que realmente aconteceu
entre a militância da FAU considerada como um todo.
20
Experiência autogestionária de “vida cooperativa integral”, fundada em
1955 em Montevideo (N.E.).
21
Não obstante, esta última coincidência com a FAU deve ser entendida
em um plano exclusivamente formal, uma vez que, como já vimos, o
programa de trabalho das Juventudes Libertárias em torno da necessidade
de renovação teórico-ideológica se esquivava resolutamente da ideia da
“síntese”; entendendo-se, antes, como uma atualização a partir de uma
reafirmação dos postulados libertários clássicos.
22
A abordagem geracional pode parecer rebuscada, mas não é. De certo
modo, algo semelhante aconteceu nas fileiras marxista-leninistas com a
Frente Estudantil Revolucionária (FER), que, em seu momento, tampouco
conseguiu qualquer consideração como uma organização “madura”; assim,
não pôde incidir com seus planos no MLN, fracassando na tentativa de
formar um partido próprio e depois incorporando uma boa quantidade de
seus elementos mais destacados ao Partido pela Vitória do Povo.
23
A chamada “doutrina da segurança nacional” foi a concepção básica
dos exércitos latino-americanos no contexto da Guerra Fria. Em geral, as
abordagens mais simplistas tendem a atribuir um protagonismo exclusivo
em sua formação e disseminação aos Estados Unidos, por meio de sua Escola
das Américas no Panamá. No entanto, a mesma foi também constituída
com as contribuições relevantes do General D’Allegret — militar francês
com experiência em Indochina e Argélia — e encontra um antecedente
digno de nota no plano argentino chamado Conintes (Comoção Interna
do Estado) sob a presidência de Arturo Frondizi em 1958. E, claro, seu
principal teórico foi o brasileiro Golbery do Couto e Silva, cujas elaborações
primevas datam do final dos anos 40.
24
O PC estabeleceu uma distinção entre os setores “peruanistas” e os setores
“fascistas” dentro das forças armadas, de tal modo que sua caracterização da
situação de fevereiro e depois da própria ditadura nunca chegou a abordar
satisfatoriamente o componente institucional da mesma; tudo isso com
perseverança e fascinação aplicadas pontualmente, sem peso nem medida.
É precisamente esse tipo de coisas que nos obriga a perguntar mais uma
vez onde exatamente residia o fascínio “científico” das análises marxista-
leninistas que se lhes lançavam aos “anticientíficos” anarquistas.

44 verve, 35: 14-46, 2019


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o movimento anarquista uruguaio nos tempos de cólera

25
A posição dos sindicatos “opositores” dentro da CNT foi profusamente
difundida depois, e é conhecida como o “Documento dos 3 Fs” (FUNSA,
FUS, FOEB). Cabe assinalar que o sindicato de FUNSA foi um dos bastiões
da FAU, enquanto que as diretrizes básicas em Belas Artes seguiram àqueles
que, em algum momento, haviam integrado a ALU: por ironia da história,
novamente estavam identificados na mesma posição de combate os que dez
anos antes tinham se separado de maneira definitiva.
26
A atrocidade militar era tal que alguns dos protagonistas fardados o
rememoram e o divulgam com “orgulho” ainda hoje, mais de 30 anos
depois. Ver, de José Gavazzo, sua litania tragicômica em www.envozalta.
org/CREACION_DEL_PVP.pdf, uma ladainha em que seu autor mantém
erros e confusões geradas naqueles anos dos quais ele só pode reter as
referências policialescas, mas não as minúcias político-ideológicas. [O link
indicado pelo autor já não se encontra disponível. Embora seja possível
acessar a página inicial do portal En Voz Alta, que serve à propagação da
ladainha saudosista militar, o conteúdo ali apresentado indica que a página
está fora de atividade desde 2012 (N. T.)].
27
Ver Hugo Cores, op. cit., 2002, p.14.
28
No plebiscito acima mencionado, as opções foram reduzidas a um “sim” e
um “não”: o “sim” implicava a aprovação da reforma constitucional, enquanto
o “não” era a sua reprovação lógica. O comunicado do qual falamos não
convocava expressamente a votar contra a reforma constitucional que os
militares submetiam à consideração “cidadã”, mas solicitava uma negação
militante que ia além da proposta militar.
29
Reivindicar a “liberdade dos presos políticos” era, na época, praticamente
uma “transgressão ultra esquerdista”, já que o lema oficial do ato se
concentrava no pedido de uma “anistia”, isto é, uma amnésia e um perdão
decididamente alheio a uma sensibilidade libertária.
30
O nome daquele grupo de libertários cerrences recordou, irreverente e
orgulhosamente, a memória de um anarquista catalão, militante do sindicato
do vidro em Barcelona, participante da expropriação do Câmbio Messina,
preso durante mais de 20 anos em prisões uruguaias e morto como um
humilde “Canillita” nas ruas de seu bairro de adoção, o Cerro. Cabe informar
aos leitores não uruguaios que “canillita” é a expressão popular que designa
os vendedores ambulantes de jornais e revistas.

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35
2019

Resumo
O ensaio analisa as práticas anarquistas no final da década
de 1960 e início dos 1970, no Uruguai; a repressão decorrente
da ditadura militar e, por fim, a irrupção de resistências
libertárias em meados dos anos 1980 com a chamada “abertura
política”.
Palavras-chave: Anarquismo, América do Sul, resistências.

Abstract
This essay analyzes the anarchist practices in the late 1960s
and early 1970s in Uruguay; the repression resulting from the
military dictatorship; and, finally, the libertarian resistance
burst in the mid-1980s, following the so-called “political
openness”.
Keywords: Anarchism, South America, resistences.

The Uruguayan Anarchist Movement in the Time of


Cholera, Daniel Barret.
Recebido em 23 de outubro de 2018. Confirmado para
publicação em 30 de outubro de 2018.

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verve

ponto para o advogado

christian ferrer

Se ele não estivesse vivendo há muitos anos debaixo da


terra, eu recomendaria a vocês o Dr. Carlos Caminos, caso
necessitem do auxílio de um advogado. Posso garantir, da
leitura de seus argumentos, que este homem era pródigo
em voos retóricos, em táticas e recursos imaginativos, e
desde sempre sabia como se dirigiu a um juiz. Mas, provas
de lado, remetemo-nos a um dos casos em que lhe coube
intervir, referente a uma suposta intenção de assassinato,
e dos grandes.
Eis os fatos: no domingo, 9 de julho de 1916, na
ocasião dos festejos do Centenário da Declaração da
Independência, o anarquista Juan Mandrini, estado civil
solteiro, 24 anos de idade, profissão pedreiro e ali presente
na Praça de Maio, sacou um revólver, fez um disparo e a
bala acabou incrustada na moldura de uma das janelas do
Palácio do Governo, a escassos sessenta centímetros da
cabeça de Victorino de la Plaza, na época presidente da
nação. Imediatamente Mandrini foi preso — previamente
espancado pela multidão — e logo conduzido a julgamento.
A causa recaiu no julgado de Sua Senhoria o Juiz Orto,

Christian Ferrer é professor na Universidade de Buenos Aires. Contato: cferrer@


fiertel.com.ar.

verve, 35: 47-56, 2019 47


35
2019

do foro criminal, que de imediato solicitou uma perícia


“médico-psiquiátrica” no réu.
O letrado Caminos tomou o caso, nada simples,
tratando-se de um suposto delito de lesa-majestade. Na
verdade, Mandrini tinha isso como verdadeiramente
difícil — muito —, e se diria inclusive que sua cabeça
estava por um fio. Além de tudo, ainda existia pena de
morte no país, e pouco antes haviam sido justiçados
dois pescadores calabreses, os últimos que sofreram a
pena máxima aplicada pelo Estado argentino, se forem
excluídos massacres posteriores e justiçamentos de presos
e sequestrados por motivos políticos.
Antes de tudo, o advogado teria de se ver com o fato
indubitável de que seu defendido tinha sim disparado
uma arma de fogo. Havia testemunhas. Bem, o que estava
fazendo Juan Mandrini na Praça de Maio com um
revólver Smith & Wesson nas costas? O advogado explica
isso: Mandrini estava na dita praça fazendo o mesmo que
todos os demais concorrentes: esperava o momento em
que o presidente da nação sairia para fazer sua saudação
desde o balcão da Casa Rosada, que é o que fazem todos
os presidentes. Isso está indicado no cerimonial e não
deixa de ser um entretenimento possível também para um
anarquista. Por acaso os anarquistas não teriam direito a
participar das algazarras populares como qualquer outro
habitante da cidade? Evidentemente que teriam. Logo:
ponto para o advogado!
Apesar de certamente Mandrini professar ideias
anarquistas, e de que atentar contra altas autoridades
costumava ser uma fantasia recorrente entre os membros
desta irmandade — uma lasca de seu ”imaginário” —,

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verve
Ponto para o advogado

tampouco era questão de castigar Mandrini simplesmente


por compartilhar bravatas de mesa de bar com seus
companheiros de ideal. Não pensaria o senhor juiz que
Juan Mandrini estivera propenso a confundir imaginação
com realidade? Está claro, uma coisa não implica a outra.
De modo que: ponto para o advogado! E lá vão dois.
Mas eis aqui que o promotor acusa que o homem tinha
em sua casa diversos livros de conteúdo “problemático”,
para não dizer explosivo. Este argumento da promotoria
não amedronta em absoluto o Dr. Caminos, que retruca
o seguinte: “Fácil é compreender que a leitura da Vida de
Santo Antônio, Prazeres Cruéis e Os grandes revolucionários,
títulos todos sequestrados pela batida policial, puderam
produzir em Mandrini o mesmo efeito que Amadis de
Gaula ou Os doze pares de França fizeram outrora com
os miolos de Don Quixote”. Bem, bem, muito bem,
irrefutável verdade, a julgar pela conduta errática seguida
prontamente pelo “Cavaleiro da Triste Figura”.
Não se detém aqui o Dr. Caminos, e sem hesitação
alguma sobe um degrau a mais na escada da defesa, posto
que, diz, estaríamos então enfrentando um tempo de
“teoricismos”, no qual muitos acadêmicos e homens de
letras, e inclusive vulgares ignorantes, resolvem escrever
todo tipo de tratados com a finalidade de explicar a
“trama da vida”, fazendo-o com maior ou menor sorte
e ambição. Mas também ocorria que outras pessoas não
familiarizadas com as letras, Juan Mandrini, por exemplo,
“revelam ser meros iludidos que simplesmente disparam
um tiro ao ar em dia de alvoroço popular a fim de destruir
um preconceito”.

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Enquanto os “teoricistas” levam anos de cansaço e de


esforços para concluir seus livrecos de 600 páginas, seres
como Mandrini resolvem isso em só um segundo. E o
que Dr. Caminos trata de nos dizer com esta afirmação?
Que Mandrini, antes de se dirigir à Praça de Maio,
seguramente estava lendo Miséria da Filosofia, ou melhor,
O ocaso do direito penal, “e então o tóxico produz seus
efeitos”. A palavra tóxico — me dou conta agora — quer
dizer “veneno”. Mas como esses livros tinham sido escritos
em um tom puxando para o enfático, então Mandrini
seria “uma vítima da doutrinação dos últimos tempos”. A
culpa não era dele, então, mas sim dos livros. “Por acaso
não se dizia antes que ler muito faz mal?”. Ponto para o
advogado.
Não se pode negar, entretanto, que na casa de
Mandrini tinha sido encontrado um pequeno folheto que
explicava como fazer uma bomba, mas isso não quer dizer
que ele o tenha lido. Era o tipo dos livrinhos de rotina
nas pranchetas dos anarquistas de todo o mundo e Juan
Mandrini não pretendia ser uma exceção à regra. Quanto
aos livros subtraídos, já vinham com o folheto, sem contar
que uma bomba não é o mesmo que um revólver. O
advogado deixava clara a diferença entre uma prova certa e
outra meramente “circunstancial”. Bem, mais outro ponto.
E ainda que não deixe de ser verdade que Mandrini
vinha escrevendo uma coletânea de poemas intitulada
Contra os tiranos, isso resulta ser tema genérico. Tampouco
se pode dizer que Victorino de la Plaza fora um deles —
um tirano —, senão apenas um representante da classe
oligárquica argentina que havia ascendido da vice-
presidência até o mais alto em virtude da morte de Roque
Sáenz Peña, seu antecessor no cargo. Meio que chegou

50 verve, 35: 47-56, 2019


verve
Ponto para o advogado

por causalidade. E, como sabe qualquer estudante da


carreira de Letras, um ramalhete de poemas não dá forma
a manifesto ou proclamação. São gêneros distintos.
Claro que ninguém esquecia que, em 1886, o espírita e
epilético Ignacio Rojas Monjes, também na Praça de Maio,
tinha amassado a cabeça do presidente Julio Argentino
Roca com uma caliça, e que em 1891, Tomás Sambrice
tinha atirado, outra vez em Roca, com um revólver Bull
Dog, errando por pouco e ganhando de passagem uma
bofetada das mãos de Julio Argentino, um ato que hoje
quase seria considerado abuso infantil — o menino
tinha catorze anos, ou melhor, doze, dependendo das
fontes. Era sabido também que em 1905, o vegetariano
e tipógrafo anarcoindividualista Salvador Planas havia
atirado no presidente Manuel Quintana com outro Smith
& Wesson, se bem que o tiro não chegou a sair do revólver,
e que em 1908, o mosaicista e anarcocomunista Francisco
Solano tinha jogado uma bomba nos pés do presidente
José Figueroa Alcorta, que não explodiu. Mas, mas, mas,
o que tinha a ver Juan Mandrini com todos esses sujeitos?
Nada. Por acaso Monjes não acabou meio desequilibrado,
e Sambrice não caiu morto um tempo depois, e, além
disso, não era certo que tanto Solano como Planas tinham
fugido juntos da Penitenciária Nacional através de um
túnel e ninguém voltou a vê-los nunca mais? Não, não se
poderia demonstrar nenhum vínculo entre Juan Mandrini
e qualquer um deles.
Bom, tudo bem, mas Juan Mandrini teria feito o disparo
ou não o teria feito? Sim, Mandrini tinha disparado, o
advogado o admite, mas isso não quer dizer que tenha
existido uma tentativa de matar alguém, pois nesses casos
“o disparo deve ser feito contra uma pessoa determinada e

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não para o ar ou contra um muro, como o fez Mandrini”.


Bem aqui, isso é fazer de uma verdade indiscutível —
a bala na moldura — uma demonstração de absoluta
inocência. O fato de que o balaço se tenha detido a um
metro de Victorino de la Plaza era justamente a prova de
que não estava direcionada contra ele. O advogado ganha
outro ponto.
E ainda mais, na verdade Mandrini tinha sim feito
pontaria, mas na direção do céu: Deus era seu alvo. Se
a bala tinha se desviado “caprichosamente” até a frente
da casa de governo, tinha decidido isso sozinha, e, em
todo caso, a trajetória de nenhum modo correspondia
ao objetivo do anarquista Mandrini. Tal qual. Ah, mas o
advogado não solta tão rápido esta linha de defesa do seu
cliente. Além do mais, disse-lhe o juiz, as testemunhas
do fato deixaram claro que quando Mandrini, que andava
diante da fila de escoteiros, fez o disparo, “havia virado o
rosto para o lado contrário ao da Casa Rosada”. Ou seja,
nem sequer tinha olhado para onde estava apontando.
Portanto: “O fato de que o braço de Mandrini se estendera
até a perpendicular sobre a qual estava situado o balcão
presidencial não significa, naturalmente, que Mandrini
dirigira seu tiro para lá e menos ainda ao doutor da Praça”.
Um gênio este defensor. E desde já não podemos senão
nos encantar com a inserção da palavra “naturalmente” no
meio da frase anterior.
Por alto, o Dr. Caminos, que parecia ser filiado ao
partido socialista, aproveita para jogar pedra na estadia de
Victorino de la Plaza na Casa Rosada: “Opaca presidência”.
Mas ao advogado não basta esse gostinho, e bate um
pouco mais: “E por acaso também é opaca sua longa e
uniforme vida”. Para sermos justos com Don Victorino

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verve
Ponto para o advogado

é preciso dizer que essas palavras eram de algum modo


imerecidas, pois em tal opacidade refulge ainda o fato de
que o Presidente da Nação tinha se unido, em concubinato,
com a governanta e agora Primeira Dama do país, Emily
Henry, vinda da Escócia, sem relação familiar nenhuma
com Émile Henry, o anarquista francês guilhotinado em
1894.
Mas enfim, estas são coisas — chicanas — da política.
Sigamos. O advogado Caminos, já se lançando a especular
minuciosamente em favor de seu defendido, sugere o
seguinte: dado que ao lado do presidente De la Plaza
estava o ministro da Justiça, “por que não imaginar que
o tiro fora dirigido ao ministro?”. E um ministro não
é o mesmo que um presidente. Ministros são muitos,
presidente, um só. A propósito, esse ministro de Justiça,
“tão esmerado quanto reacionário”, era Carlos Saavedra
Lamas, bisneto de Cornélio Saavedra e futuro Prêmio
Nobel da Paz. Bem, não deixa de ser um ponto possível.
É o momento do contra-ataque pelo promotor, que
alega que Juan Mandrini tinha “antecedentes”: um ano
inteiro na prisão acusado de alteração da ordem — tinha
dado socos em um pintor em plena rua —, e também uns
dias numa cela por exercer um ato grevista. Ok. De acordo,
mas o advogado responde que tais incidências não são
nada de outro mundo e para o momento não têm relação
com o caso, pois Mandrini não tinha feito esse disparo
motivado pela política ou por sectarismo. Não, não, não.
Não se poderia comprovar filiação a nenhum partido
nem sequer a um sindicato: “Agiu sob o império de seus
próprios impulsos”. E com isto o Dr. Caminos refere-se
ao parecer psiquiátrico requerido pelo juiz, no qual se
estabelecia o seguinte: “Juan Mandrini é um degenerado

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simples com degeneração psíquica hereditária e carece da


capacidade de imputação moral”. Em síntese — segundo
o parecer —, Mandrini era um “emotivo”. Isso era a
coisa: “emotividade”. De modo que nada de motivos, seu
defendido estava além do bem e do mal, era inimputável.
Outro ponto para o advogado de defesa.
E consta que o dito parecer tinha sido escrito e assinado
pelo médico José Tibúrcio Borda — um especialista em
delirium tremens cujo nome adorna a entrada do manicômio
municipal — e pelo neuropsiquiatra Amable Triton Jones,
algum dia adscrito ao serviço de Charcot no parisiense
Hospital de la Salpêtrière, que seria nomeado interventor
da província de San Juan em 1919, e assassinado em 1921,
por 18 balaços (e mais uma bomba, para não haver dúvidas),
sendo o sexto governador sanjuanense a ir-se desse mundo
de forma violenta. E pensar que quando assumiu tinha
dito: “Não deve ser muito diferente governar o Hospício
que a província de San Juan”. Inclusive dissera mais: “Os
governadores de San Juan morrem em seus postos!”. A
história lhe daria razão.
A respeito da data do acontecimento que consta em
autos, a saber, a festa da Independência enfeitada por
escolares e militares, tal dia era apenas um dos 365 com
os quais conta o ano. Diz-nos o advogado que se Juan
Mandrini tivesse querido realmente matar Victorino
de la Plaza, teria feito isso “nas muitas diversas ocasiões
em que esteve perto dele”, não no 9 de julho, que é um
dia qualquer. E que tampouco Victorino — bastão do
casamento Palácio-de la Plaza — valesse para tanto.
Quase ninguém o conhecia, e pouco era entendido do que
ele dizia ao discursar, razão pela qual o humor popular
o apelidara de “Doutor Confúcio”. E ademais, segundo

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Ponto para o advogado

Caminos, não há de se magnificar as coisas, “nem cair na


debilidade de considerar os homens que ocupam altos
cargos como pessoas providenciais”. Notável. Aberta
manobra de obscurecimento da autoridade presidencial.
Ponto duplo para o advogado.
Mas então, Deus do céu, o que Mandrini quis fazer?
Segundo o Dr. Caminos, tão somente “protestar de forma
ruidosa”. Algo assim como dar um grito forte ou fazer
algum barulho no âmbito público, não muito mais. E desde
já não se pode atribuir “intenção criminosa” a um “simples
disparo feito no ar”. Que a curvatura feita pela bala
culminou na Casa Rosada, isso foi algo não premeditado.
Mas justamente por isso Juan Mandrini nem sequer tinha
culpa, pois apenas a teria se tivesse causado algum dano,
“e todo dano se reduziu a perfurar alguns centímetros de
reboque da parede da Casa do Governo”. Outro ponto
mais.
Como o advogado qualifica então o ato cometido
por Juan Mandrini? Como uma “simples contravenção
municipal realizada por um irresponsável a quem os
modernos livros de cavalaria transtornaram seus miolos”.
E qual é o nome de dita contravenção às ordens policiais?
A de desordem na via pública, “cuja pena pode ser paga
com uma multa comum e corrente”. E afinal de contas,
disse o advogado, trata-se de um fato de “ressonância
passageira”. Isso! Quanto pode durar o eco de uma bala
perdida? Um par de dias nos jornais, no máximo uma
semana. Somam-se mais pontos.
Finalizadas as argumentações da promotoria e da
defesa, o juiz Orto determinou o seguinte: que processava
Juan Mandrini, não por tentativa de homicídio, mas por

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disparo de arma de fogo, e o condenava a 1 ano e 4 meses


de prisão, que afinal de contas, não é tanto assim.
Uma magnífica defesa do presumido homicida,
pontuação próxima ao máximo, triunfo quase total do
advogado. Quando Juan Mandrini saiu da prisão, já
havia novo presidente, o muito popular Dr. Hipólito
Yrigoyen, que também foi baleado por um anarquista,
mas isso ocorreria dez anos depois, e o dentista Gualterio
Marinetti, que disparou cinco vezes na direção do
automóvel presidencial, por sua vez recebeu cinco réplicas
fatais em seu corpo. E não ia precisar de um advogado, e
sim de um coveiro.

Tradução do espanhol por Beatriz Carneiro.

Resumo
O texto narra a defesa do anarquista Juan Mandrini, acusado
de atentado, em 1916, contra o presidente da Argentina.
Palavras-chave: Anarquismo, América do Sul, tribunal.

Abstract
The text describes the defense of the anarchist Juan Mandrini,
accused of carrying out the attack, in 1916, against the
Argentine President.
Keywords: Anarchism, South America, Court.

Point for the Lawyer, Christian Ferrer.


Recebido em 04 de fevereiro de 2019. Confirmado para
publicação em 11 de fevereiro de 2019

56 verve, 35: 47-56, 2019


Os anos
Eu ainda pareço vê-lo, seu rosto marcado pelo fogo
no horizonte
Um jovem charmoso e valente
Um poeta latinoamericano
Um perdedor não preocupado com dinheiro
Um filho das classes médias
Um leitor de Rimbaud e Oquendo de Amat
Um leitor de Cardenal e Nicanor Parra
Um leitor de Enrique Lihn
Um tipo que se apaixona loucamente
e que depois de dois anos está sozinho
mas pensa que não pode ser
que é impossível não acabar encontrando
outra vez com ela
Um vagabundo
Um passaporte enrugado e gasto e um sonho
que atravessa postos de fronteira
afundado no lodo do seu próprio pesadelo
Um trabalhador temporário
Um santo selvagem
Um poeta latino-americano longe dos poetas
latinoamericanos
Um cara que fode e ama e vive aventuras agradáveis
e desagradáveis cada vez mais distantes
do ponto de partida
Um corpo chicoteado pelo vento
Um conto ou uma história que quase todo mundo
esqueceu
Um cara obstinado, provavelmente de sangue indígena
mestiço e galego
Uma estátua que às vezes sonha com voltar a encontrar
o amor em uma hora inesperada e terrível
Um leitor de poesia
Um estrangeiro na Europa
Um homem que perde o cabelo e os dentes
mas não o valor
Como se o valor valesse algo
Como se o valor fosse devolver-te
aqueles distantes dias de México
a juventude perdida e o amor
(Bom, digo, supomos que aceito perder o México e a
juventude
mas jamais o amor)
Um tipo com uma estranha predisposição
a sobreviver
Um poeta latinoamericano que ao chegar à noite
se atira em seu colchão e sonha
Um sonho maravilhoso
que atravessa países e anos
Um sonho maravilhoso
Que atravessa ausências e enfermidades

Tradução Gustavo Simões


verve

a abundância exuberante de uma


abolicionista penal

salete oliveira

O surpreendente do raro da vida acompanhou a


existência de Heleusa Câmara do começo ao fim. Ela
desapareceu de repente, da mesma maneira como viveu,
num de repente, de um repente, num repente. Ela era assim,
desde as miudezas raras da vida até instantes definitivos,
aqueles que tecem o inesquecível desta mulher linda e
rara, em rastros de marcas que deixou em quem teve o
presente extraordinário de conhecê-la, saboreá-la em
pelejas e gestos, em cores e tons.
Bela e corajosa nordestina, vertia de si, e em suas escritas
de si, a água preciosa e fresquinha que brota do recôndito
forte de cactos que povoam a aridez do sertão. Água que
vigora e revigora. Refresca, mata a sede e dá coragem
para avançar. Heleusa era assim! Fazia do impossível o
possível e banhava com sua presença radiante os dias e as
noites de quem dela se aproximava. Generosa e desabusada
(este termo tão baiano), nos fartava livremente com suas
abundâncias exuberantes, em lutas abolicionistas penais
junto ao Nu-Sol. E lá vem ela, e lá vamos nós, numa peleja

Salete Oliveira é pesquisadora no Nu-Sol e doutora em Ciência Política. Contato:


saletemagdaoliveira@gmail.com.

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35
2019

incansável banhada por muito prazer e leveza, força e


contundência.
Da cidade de Vitória da Conquista, na Bahia, ela
extraiu um alto-relevo que nela jamais foi provinciano e o
levava por onde quer que fosse pelo país afora e, também,
no exterior, em especial nos EUA. Ela habitava as altas
altitudes de uma topografia sem mapa. E foi sempre uma
presença corajosa para fortalecer o Nu-Sol e cada um
de nós, mesmo em momentos dificílimos e inomináveis,
e o PEPG-CS/PUC-SP, além de ter desdobrado,
infinitamente, sua presença constante para além de seus
belos e vigorosos trabalhos de mestrado, Além dos muros
e das grades (discursos prisionais), publicado pela EDUC, e
doutorado, Leitura e poder: lembranças de leitores.
Reinventou o Ulisses de Joyce a seu modo, na vida e em
trechos selecionados por ela para abertura dos capítulos
de seu lindo, contundente e inesquecível mestrado,
premiado como a melhor dissertação do ano de 1999 e
publicado, em 2001, sob a forma de livro com o mesmo
título. Travessia longuíssima de um dia (?) que coloca a
passagem do tempo de pernas para o ar. Abolicionista
penal, Heleusa afirma direta e sem meias palavras: “Para
quê prisões?”.
Heleusa sabia como poucos extrair das palavras forças
inusitadas e, ainda, soube despertar em homens e mulheres
simples palavras imperdíveis jamais suspeitadas pela
mesmice da gramática e da sintaxe. Heleusa, de um jeito
só seu, também subverteu a gramática e arruinou a sintaxe,
ainda que um de seus instrumentos de trabalho fosse a
redação. Ela não separava a escrita e a leitura da própria
vida. Daí, dentre outros, seu interesse por hypomnematas,

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verve
A abundância exuberante de uma abolicionista penal

pelas escritas de si, pela estética da existência, como situa


Michel Foucault. E, também, foi buscá-los em lugares
inóspitos, terríveis, medonhos, pútridos como as prisões.
Não para fazer das palavras dos que lá encontrou um
refúgio de idílio ou prática benfazeja que tanto agrada aos
reformistas dos cárceres. Mas transformou a si mesma,
fazendo da palavra minúscula e imensa de prisioneiros
uma arma de luta que, ao mesmo tempo, explicita o
que é a prisão em simultaneidade com sua urgência de
arruiná-la, para que ninguém mais seja aprisionado. E
não só. Conhecia e enfrentava, também, como poucos,
os meandros e os interstícios dissimulados do sistema
prisional, dispostos, arranjados e rearranjados pelo sistema
penalizador, pelo direito penal e pela cultura do castigo que
ultrapassa e antecede os muros da prisão. Não era fortuito
o uso consistente que ela fazia de seu amplo domínio sobre
a tradição judaico-cristã, também, indissociável da cultura
do castigo, em suas lutas e enfrentamentos que recusavam
a existência, de quem quer que seja, reduzida a uma coisa
estúpida. Apenas isto e tudo isto pode ser encontrado e
lido em seu precioso trabalho.
Com Heleusa não havia cronologia. Nela não cabia
idade. E se a alegria pode assumir forma no corpo de
alguém, ela tem a cara da Heleusa! E belas íris azuis!
Olhinhos atentos, travessos e, como se saídos de um conto
de Guimarães Rosa, apertadinhos por trás das lentes de
seus óculos, de tão acostumada que a boca está a rir e sorrir.
Heleusa não sossegava, nem dava sossego. Foi tudo
ao mesmo tempo agora, garota subversiva, em Vitória da
Conquista, que rompeu com o pentecostalismo protestante,
religião tradicional de sua família, resultando em sua
expulsão da Igreja Batista porque gostava de dançar e fugia

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2019

de casa para ir a bailes proibidos, para dançar, fumar e


namorar muito. Pularia outros muros ao fugir, novamente,
mais tarde do Internato das freiras marcelinas, quando foi
para São Paulo estudar, e estarreceria, logo em seguida, a
sisudez e a caretice do conservadorismo característico da
Universidade Mackenzie.
Amiga atenta e rara; mulher, amante e professora
arrojada; orientadora cuidadosa; boêmia incansável
que atravessava noites afora ao lado dos amigos; mãe,
avó, bisavó; reitora do campus da UESB de Vitória
da Conquista; Secretária de Educação nesta mesma
cidade; membro da Academia de Letras Conquistense;
cofundadora e coordenadora do PROLER, compiladora,
organizadora e editora de inúmeras publicações dentro e
fora da universidade, descobridora de escritores anônimos;
pesquisadora aguerrida interessada em ampliar espaços de
liberdade, pesquisadora combativa de espaços prisionais;
cozinheira de mão cheia; contista e cronista delicada;
inventora de espaços deliciosos como o sítio Xangri-lá,
que dividia junto com a universidade, e para além dela e a
casa seu trabalho diário, ao permanecer atenta às plantas
lá cultivadas entre horta e pomar, assim como aos bichos
que forneciam carne, ovos e leite saborosos preparados
com capricho e apreciados em refeições ma-ra-vi-lho-
sas, divididas, também, entre amigos. Amiga generosa de
portas e janelas sempre abertas.
Heleusa foi, é, e sempre será uma saúde para o Nu-Sol!

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verve
A abundância exuberante de uma abolicionista penal

Resumo
O texto acompanha os percursos ético e estético da abolicionista
penal Heleusa Câmara.
Palavras-chave: resistências, abolicionismo penal.

Abstract
The article follows the ethics and esthetics paths of the Penal
System’s abolitionist Heleusa Câmara.
Keywords: Resistences, Penal System Abolitionism

The Exuberant Abundance of an Abolitionist, Salete


Oliveira. 
Recebido em 29 de março de 2019. Confirmado para publicação
em 3 de abril de 2019.

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um caso menor…

Brazil-Brasil, a ultrapassada distinção in-


ternacional está reatualizada em alinhamento
com o governo republicano nos EUA, abençoado
por Deus, segundo os evangélicos que assumirão
o governo do Estado a partir de 1º de janeiro. 

A voz do Ministério das Mulheres, Família e


Direitos Humanos, que herdou a FUNAI, declara
que estará “do lado do índio”, mas não com
antropólogos e ONGs; reconhecerá muitos
conflitos em muitas áreas; que todos (?)
deverão ceder. Pretende-se trazer “o índio”
isolado para o “protagonismo”. Palavras da
ministra: “quem vai assumir o cuidado com esse
povo isolado é o Estado”. 

É sabido como foram sangrentas as relações


religiosas comandadas contra os indígenas no
Brasil desde o chamado descobrimento. Estancar
essa hemorragia é uma luta decente de várias
forças no sentido de pelo menos garantir a
vida destes povos e um tanto de suas culturas.
A tensão sempre foi enorme, em relação ao
papel do Estado nas chamadas integrações, e
não deixará de ser. 

O presidente eleito fala em encerrar a


fase de cuidados com indígenas tratados
como habitantes de um zoológico. De fato, os
confinamentos de animais em zoológicos e em
circos são questionados, há muito tempo, assim
como as suas utilizações para experimentos
cosméticos da indústria do embelezamento. A
retórica se expande, assim como os incentivos
aos negócios, às caças, às matanças e às
evangelizações. Os indígenas, vistos como
quase-animais, dependem de uma alma para
emanciparem-se.

Porém, há uma outra “pegada” que cada vez


menos “cola”. Trata-se da situação-problema
que envolve infratores “adolescentes”. Neste
caso, o “cuidado” passa a ser com a sociedade
exposta às mais variadas infrações cometidas
por jovens entre 16 e 18 anos que “ameaçam”
a paz de famílias, mulheres, comunidades e
talvez de “direitos humanos”. Trata-se de um
caso de justiça e de política; trata-se de um
caso de correção de condutas destas almas. 

Mais uma vez, sob os argumentos mais


esdrúxulos, a algaravia em favor da redução
da idade penal assombra.

Reaparecem os democratas de plantão para


dizer que se o jovem está habilitado a
votar ele também deve ser reconhecido como
sujeito de discernimento. Em um país onde o
voto é obrigatório, o voto facultativo de
jovens é somente outra artimanha, pois se
os adultos devem permanecer tutelados pelo
Estado como cidadãos livres para escolher
“seus” governantes, o voto facultativo aos
jovens aparece como benesse de politização
“obrigatória”. 

Os saberes psi são chamados por todos os


lados para justificar tanto a manutenção como
a redução da maioridade penal. É uma disputa
de poder pelo fundamento da verdade. Os mais
prudentes escorados em diversos saberes,
recomendam que não se altere a idade penal.
Os  mais de qualquer outro lado supostamente
conservador justificam com suas opiniões
a necessidade de se reduzir a idade penal
e enfatizam a importância da penalização
ampliada.

A presença das medidas de tolerância zero


governam estas opiniões e os exemplos recorrentes
identificam a emergência deste programa como
base de política a ser implementada, tendo
como referência os efeitos obtidos em Nova
Iorque pelo seu prefeito, no final do século
passado. Punir mais e melhor passa a ser a
palavra-chave de governo com lei e ordem!

A racionalidade neoliberal justifica o


discernimento do jovem como capital humano. É
aquele que sabe, de antemão, que será punido
perante uma infração à lei. E também abona
as variadas propostas de reformas do sistema
penal como base na reconhecida impossibilidade
de se acabar com o chamado “crime”. De seu
lado, apenas não explicita que capitalismo
sem ilegalismo é impossível, esperando que
cada  cidadão colabore para melhorar esta
situação insustentável não só pedindo mais
segurança, mas exercitando-se como cidadão-
polícia.
Mais polícia, mais armamentos, mais
prisões, mais penalizações, enfim, mais
punições, somente podem ser pensadas e
levadas adiante com implementos à indústria
de armamentos, de segurança, de construção
civil, de monitoramentos com empregabilidades,
incluindo parcerias público-privadas na gestão
compartilhada das punições.

A prisão não educa, todos concordam, mas ela


deve ser mantida; as medidas socioeducativas
ampliam monitoramentos e empregabilidades, e
devem ser mantidas; as políticas compensatórias
para pobres são ineficazes, assim como políticas
culturais são paliativos ou placebos, e devem
ser mantidas. 

Mas os confinamentos permanecem aumentando;


as “vagas” são consideradas insuficientes;
a gestão interna das prisões solidificaram
os ilegalismos na parceria entre presos
“organizados” e gestão prisional; os programas
de  integração fracassam; as religiões
proliferam em seus interiores e participam
do governo das punições. Afinal, o “forte”
das religiões é a aplicação de penitências
e de conforto para as culpas devidamente
reconhecidas por estes sujeitos mortificados.
Então, para que serve manter ou reduzir
a idade penal? Diante do mal maior, não são
poucos os que defendem a manutenção da idade
penal em 18 anos, embalados pelo vício do
pensamento por meio de comparações. Diante da
suposta redução do mal, não são poucos os que
exigem a redução da idade penal para 16 anos,
pelo vício do pensamento saneador. Viciados por
tantas luminosidades, e geralmente acusadores
de vícios alheios, os lados se defrontam em
torno da continuidade da moral da prisão e do
castigo. 

Há algo mais sutil na abordagem deste


problema que não se reduz à disputa pela
demarcação da idade penal. Se seguirmos a
racionalidade neoliberal, que justifica não
haver solução para os “crimes” dos outros,
sempre haverá “crimes” no capitalismo ou em
qualquer sociedade hierarquizada. 

Portanto, é preciso mover as partes acomodadas


e redimensionar a luta pelo jogo das verdades,
pois levada ao seu limite, a racionalidade
neoliberal reveste a descriminalização de
certas substâncias consideradas ilícitas,
como a maconha transformada em matéria de
empreendedorismo médico-farmacológico, de
lucratividades e de saúde mental. 

Todavia, em relação à cocaína, o grande


produto de enriquecimento ilegal que beneficia
o “crime organizado”, empresas e institutos de
saneamento de dinheiro sujo, ela já possuí seu
mercado legal médico-farmacológico. Entretanto,
atende, em especial, a um mercado, cada vez mais
volumoso, de consumidores que a buscam (assim
como outras drogas sintéticas), como estimulante
ou justificadora de qualquer conduta. 

Ela vem malhada, como sublinhou o poeta,


e produz problemas de saúde aos usuários
além de encarecer o sistema de saúde dos
Estados. Reduzir os custos de saúde do Estado
com uso de drogas puras seria uma medida de
cálculo econômico e social inestimável a
qualquer governo. Mas com isso, as autoridades
governamentais e as não governamentais e os
empreendedores sociais do momento, pouco se
ocupam. Tratar deste cuidado com o jovem e
o cidadão seria colocar em risco a própria
racionalidade neoliberal. Seria?

Não é necessário mostrar os índices de


encarceramentos dos países, nem tampouco
a incidência de “crimes” com drogas para
ilustrar a argumentação. Das redes sociais
às mídias em geral, não falta em suas agendas
a persistência com os índices alarmantes de
ocupação de vagas nas prisões e espaços de
confinamentos para jovens relacionados ao uso
e tráfico de drogas ilícitas. 

Liberar o uso de drogas ilícitas seria


uma medida eficaz para se obter redução de
encarceramentos, principalmente de jovens.
É sabido que os jovens apanhados pelo seletivo
sistema penal são acusados de tráfico de drogas;
que eles trabalham e vivem para os grandes
empreendimentos de produção e circulação de
drogas; que participam diretamente de disputas
por “territórios” de controle da circulação
de drogas (e demais mercadorias ilegais),
submetendo os habitantes locais a regimes
de terror; que eles estão relacionados com
policiais, pois não há “crime” que não esteja
conectado com a polícia… 

Enfim, a racionalidade neoliberal depende


destes jovens para a expansão dos ilegalismos
e legalizar empreendimentos empresariais e
sociais (que vão de ocupação de jovens em
comunidades para ofícios sustentáveis, ao
monitoramento de condutas, às práticas
de redução de danos etc.).

Porém, os sábios não deixam de perseverar que


o uso de drogas estimula outros “crimes” mais
insuportáveis como roubo e furto (em defesa da
propriedade) e homicídio e estupro (em defesa
do próprio capital humano). Entretanto, como
capital humano o infrator não deixa de ser um
empreendedor ilegal.

Neste entrecruzamento se expande o


empreendedorismo empresarial e o de qualquer
um. Nesta linha imaginária e real se estabelece
a fronteira colocada pela racionalidade
neoliberal que justifica os argumentos de
defensores da redução e os da manutenção da
atual idade penal.

Se o governo do Estado pretende melhorias


não há como escapar da escolha pelo mal menor
e não deve haver lugar para a argumentação da
redução da idade penal, esteja ela firmada
na sapiência dos ilustrados, na eficácia das
religiões, na moralização almejada pelas
sentinelas de plantão do momento. 

Todavia, até hoje, no exercício democrático,


apesar da proposta da redução penal ter feito
sombra a todos os governos anteriores, ela
esbarrou na composição majoritária capaz de
conter essa escalada pelo jogo de poder político
entre suas verdades. A partir de agora, com o
governo do Estado, sob a direção conservadora,
essa medida parece ter chance de se confirmar.

Neste momento, de luta pelo mal menor,


avolumam os argumentos em favor da manutenção
da idade penal, convocando todos os
setores  progressistas a unirem forças. E em
situações como esta, as propostas abolicionistas
penais são colocadas para escanteio, reduzidas
a utopias, a obstrução na defesa de direitos
e segurança e consideradas inconsequências
radicais, quando o que se pretende é a moderação.
É a mesmíssima argumentação usada anteriormente
pelo centro e a esquerda para conter a escalada
em favor da redução da idade penal com os seus
vícios e suas virtudes governando o sistema
político e o sistema penal.

Os defensores progressistas, com base


no  garantismo e nos princípios de justiça
restaurativa, esvaziam a argumentação
abolicionista penal com base na justificativa
da penalização a céu aberto (que não reduz
os encarceramentos e paradoxalmente aumenta
as penalizações) e de reconhecimento de
culpa entre os envolvidos em uma situação-
problemática, renovando a moralidade em curso. 

Os sequestros de argumentos abolicionistas


penais pelos progressistas foram incapazes de
apresentar a redução de custos governamentais
com o sistema penal. E neste sentido,
deformando a racionalidade neoliberal, o
abolicionismo penal é uma solução para um
dos deficits do Estado, além de ser uma nova
cultura diante da infração. Mas, a seu modo,
os  progressistas aderiram à racionalidade
neoliberal de punir mais e melhor! 

Então, a oscilação entre reduzir a


idade penal ou defender sua manutenção
depende do jogo de poder entre as forças na
gestão democrática conservadora ou não, desde
que não se perca de vista a moderação de
condutas e a vontade de punir!
Quanto a punir melhor, essa passou a ser uma
zona de investimentos ininterruptos para gerar
empregabilidades e novos empreendedorismos.
E assim, direita,  centro e esquerda se
amontoam em torno da racionalidade neoliberal
sobre o “crime”, como em outras relações
econômicas, culturais e políticas, compondo
o  ambiente democrático da ocasião. E assim,
a racionalidade neoliberal separa, quando
convém, o investimento empresarial dos seus
eventuais corolários perigosos a ela.

Para os abolicionistas penais é inaceitável


a prisão, especialmente para jovens. No caso
do Brasil, desde os 12 anos de idade, segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente, que ressalta
ser a internação uma medida socioeducativa em
último caso. E com base nisso, as autoridades
exercitaram e exercitam a seletividade do
sistema penal de forma encarceradora, sob
qualquer regime político.

Em tempo de oratória sobre horizontalidades


nas relações de poder, de relações pessoais
para estancar a virtualidade das redes de
comunicação, de saídas às ruas para expor
novas relações, e quando nisto tudo as forças
fascistas se tornam cada vez mais presentes
dissimuladas de liberalismo, o abolicionismo
penal permanece recusando as frentes
políticas progressistas sem dar as costas
para equacionamentos libertários diante das
inevitáveis infrações. Mesmo porque há poucos
habitantes da população carcerária que não
passaram anteriormente pelos encarceramentos
para menores.
Discutir o sistema penal hoje em dia é mais
que se achar enviado divino, mito, Ideia ou
sujeito superior capaz de defender o outro.
É preciso ouvir o outro, não somente como
expressão majoritária, porque é entre estes
fornecedores da alimentação de corpos para
a prisão que se encontra a grande base que
enuncia os clamores por mais encarceramentos,
punições, polícias e segurança… É preciso
ouvir o outro como potência do inédito.

O indígena isolado não depende da vontade da


ministra evangélica, o povo da rua não depende
dos padres, os pauperizados não dependem
de premiados empreendedores sociais. Mas o
Estado e os empreendedores sociais dependem da
manutenção de jovens infratores encarcerados
nas instituições austeras ou em medidas
socioeducativas em meio aberto a partir de 18
ou de 16 anos de idade. E deixem o indígena
isolado livre das boas almas!!!! 

Os jovens infratores não precisam de prisão.


Aliás, o que não falta na prisão, na justiça,
na polícia, nas indústrias de segurança,
nos governos de Estado, na escola e entre
empreendedores sociais (premiados ou não) é
religião e ilegalismos. E não é de hoje.

[Publicado como hypomnemata 207. Boletim


eletrônico mensal do Nu-Sol, novembro de 2018.]
verve

entrevista com
josé maria carvalho ferreira

Nu-Sol — Você possui uma das definições mais instigantes


de anarquia: “um caos auto-organizado sem deuses e sem
amos”. Como é isso? Fale sobre essa concepção de anarquia e
como você a diferencia de anarquismo.
José Maria — A minha análise de anarquia procede de
um processo histórico que começa em meados da década
de 1960 e tem um epílogo interpretativo, explicativo e
compreensivo em 2016. Se tivermos presente os aspetos
econômicos, sociais, políticos, culturais, ideológicos e
religiosos, eu sou uma construção de aprendizagem e
aculturação singular que tem início com o marxismo,
passa pelo situacionismo e o anarquismo e culmina no
que, hoje, denomino de anarquia.
A minha entrada no anarquismo ocorre nos princípios
da década de 1980, sendo que esta evolução propiciou-me
enveredar por uma postura comportamental ideológica e
política contrárias aos modelos e paradigmas centrados na
defesa do capitalismo e do Estado. Em correlação estreita
com estes pressupostos, a minha adesão ao anarquismo

José Maria Carvalho Ferreira é professor aposentado e pesquisador no Instituto


Superior de Economia e Gestão (ISEG), na Universidade Técnica de Lisboa/
SOCIUS, Portugal. Contato: jmcf@iseg.ulisboa.pt.

verve, 35: 75-98, 2019 75


35
2019

primava por uma ação individual e coletiva inscritas


numa vida quotidiana identificada com os pressupostos
da liberdade, solidariedade, amor e amizade passíveis
de se traduzirem, substantivamente, nos designíos
históricos emancipalistas da revolução social das massas
trabalhadoras, oprimidas e exploradas, como também do
povo, que aspiravam realizar a extinção do Estado e do
capitalismo.
Não obstante estas premissas básicas, a crítica radical
aos sindicatos, aos partidos de esquerda e de direita, os
diferentes anarquismos para além disso eram críticos de
todas as religiões e ideologias que alienavam as massas
trabalhadoras e o povo, com exceção do anarquismo cristão
preconizado por Liev Tolstói. No contexto da diversidade
de anarquismos que conheci, quer em termos teóricos
quer práticos, durante duas décadas, apercebi-me de uma
multiplicidade de conflitos, contradições, provocações
e intrigas, muitas vezes, orientados no sentido de não
submissão aos meios para atingir determinados fins.
Observei que estas contingências modelares dos diferentes
anarquismos colidiam, condicionavam e, na maioria dos
casos, negavam os princípios e as práticas singulares da
liberdade, amizade e da solidariedade e, consequentemente,
da interdependência e da complementaridade entre eles
como expressão de percepção e vivência quotidiana do
que entendiam e diziam sobre a anarquia. Neste contexto,
interroguei-me acerca das diferentes causas e efeitos da
degenerescência histórica dos diferentes anarquismos,
com especial incidência para o anarcossindicalismo
e o anarcocomunismo. As contradições e conflitos
eram visíveis entre aqueles que, supostamente, leram e
interpretaram melhor ou pior autores emblemáticos, como

76 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

foram os casos de Bakunin, Proudhon, Kropotkin, etc. De


outro lado, a dicotomia gerada à volta de quem é mais
revolucionário ou mais reformista nos propósitos e dilemas
de ação individual e ação coletiva na condução à extinção
do Estado e do capitalismo era sempre considerada como
fundamental. Na incapacidade histórica manifesta em
realizar tais objetivos, veem-se constrangidos a realizar
comemorações, ações culturais diferenciadas, debates e
festas de um passado histórico revolucionário frustrado de
heróis, bandeiras e autores emblemáticos do anarquismo.
Na primeira década do século XXI, apercebi-me de
que estes elementos geradores de conflitos, contradições,
antagonismos, provocações e intrigas provinham,
fundamentalmente, da civilização judaico-cristã, e não,
como é habitual discernir, do Estado, do capitalismo, da
economia, da sociedade, da cultura, da religião, da ideologia
e da política. A sua expressão comportamental genuína na
vida quotidiana traduzida em tipologias de ação individual
e coletiva, de outro lado, tem sido vivificada por modelos
ideológicos-religiosos contrastantes através de práticas
e teorias uniformes hierarquizadas, regidas por um
controlo e sanção sistemática de qualquer tipo de desvio
ou transgressão modelar. Estes princípios e práticas dos
modelos anarquistas analisados são de natureza judaico-
cristã. Para mim, ao caminharem para uma situação de
frustração e de decadência histórica, transformaram-
se, indelevelmente, em grupúsculos sectários e seitas
lideradas por chefes deificados com objetivos específicos
de defesa e enaltecimento dos seus heróis, bandeiras e
mitos históricos.
A minha interpretação, explicação e compreensão da
anarquia decorre, basicamente, da minha aprendizagem

verve, 35: 75-98, 2019 77


35
2019

e vivências opositivas e dicotômicas no âmbito destes


anarquismos. Desde logo, há vários anos que já tinha
escrito na revista Utopia que o significado da anarquia não
é passível de ser um “ismo”. Não pode ser um modelo,
porque se fosse assim perdia a sua essência e singularidade
como negação da institucionalização, formalização e
legitimação social, econômica, política e cultural dos
processos de socialização e sociabilidade inerentes às
características do Estado e do capitalismo. No mais,
a anarquia, para mim, só pode vista como uma nova
civilização alicerçada num espaço-tempo utópico não
vivido, sempre como probabilidade não linear no planeta
Terra. Estas probabilidades são as potências essenciais da
anarquia para extinguir e superar a civilização judaico-
cristã e, consequentemente, as dicotomias, oposições e
antagonismos gerados pela mesma. Por fim, a anarquia
permite singularizar todo e qualquer indivíduo num
espaço-tempo de autogoverno generalizado, prescindindo
quer do Estado, patrão, deus, militar, polícia, quer de
partidos ou sindicatos, etc. Haveria muito mais para
escrever, mas em março de 2016, tive oportunidade de
dizer e dar consequência ao conceito de Anarquia: “A
Anarquia é um caos auto-organizado sem deuses e sem
amos. É e só poderá ser uma probabilidade não linear no
espaço-tempo do universo”.

— Para os anarquistas, a comida e a bebida sempre foram


momentos de encontros e experimentação da anarquia. Você
tem produzido vinhos e azeite na Adega Ácrata. Como acontece
essa produção?
— Desde novo, a partir dos sete até aos 12 anos, fui
constrangido a trabalhar numa família de camponeses

78 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

pobres. Nesse período também trabalhei, ainda, como


assalariado agrícola, para outras famílias camponesas.
Durante vários anos abracei a profissão de mecânico de
máquinas industriais, automóveis, caminhões e barcos.
Mais tarde, em 1975, enveredei pela profissão de professor
universitário no ISEG-UTL, onde fiquei até o final de
2010. Como tive uma parte da herança de propriedade
agrícola que pertencia ao meu pai e à minha mãe, a partir
da década de 1980 comecei a trabalhar a terra através da
minha responsabilidade, sobretudo produzindo frutos
diversos.
Entretanto, no final da década de 1980 construí uma
casa na minha terra natal em Bogarréus, o que me permitiu
relacionar-me mais intensamente com os produtos
agrícolas que produzia. Em simultâneo, no final da década
de 1990 comprei uma vinha que existia em Bogarréus e,
como é lógico, iniciei o meu processo de aprendizagem
das diferentes operações que era necessário realizar para
produzir vinho: poda, sulfatagem, cava, fresar, vindima,
fermentação. Diga-se, em abono da verdade, que estas
práticas de produção de vinho envolvem um saber-fazer
muito genuíno. Numa dimensão menor, mas importante,
também produzo azeitonas e azeite. Em menor escala,
produtos hortícolas, frutos e floresta.
Estas produções e sobretudo o vinho que denominei,
formalmente, de Adega Ácrata, na ocasião das festas
da Associação Cultural A Vida, e, informalmente, de
Sangue do Senhor, são um espaço-tempo genuíno de
amor, amizade, liberdade e criatividade entre a espécie
humana e as outras espécies vegetais e animais. No
sentido que lhe atribuo como étimo, a Adega Ácrata,
enquanto singularidade biológica e social da espécie

verve, 35: 75-98, 2019 79


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2019

humana expressa os meus desejos e motivações vivenciais


da anarquia possível no sentido do amor, da amizade,
da liberdade e da criatividade. São probabilidades não
lineares de vida num espaço-tempo utópico ainda não
vivido que me permitem interagir com a espécie humana,
as espécies animais e espécies vegetais no caminho da
Anarquia possível.

— Depois de viver criança no campo, e após décadas


vivendo em Lisboa, qual é a sua relação com a terra hoje? O
que é o trabalho para um homem que foi camponês, operário,
trabalhador intelectual e agora voltou a viver no campo e lidar
com a terra?
— Por razões lógicas a que já fiz alusão nesta entrevista,
posso afirmar que, aproximadamente, estive afastado do
campo e do mundo rural, que era predominante na minha
terra em Bogarréus, entre 1958 e 2010. A minha relação
com a terra, hoje, é mais intensa e extensa. As relações
de proximidade e de intensidade relacional no campo
são muito mais visíveis e passíveis de comunicar do que
no contexto urbano. O silêncio da vida sem o ruído dos
automóveis e da vida quotidiana sem necessidade de
correr a todo o momento, como é apanágio do homo
urbanus, ainda, em certa medida no mundo do homo
ruralis, é ainda diferente dos contextos urbano-industriais
que conhecemos. Porém, tudo isso não me impede
de percecionar os efeitos das contingências das TIC
(Tecnologias de Informação e Comunicação) no espaço-
tempo da vida quotidiana dos camponeses.
Como estou numa fase da minha vida de aposentado, a
vida quotidiana não é objeto dos vários constrangimentos

80 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

que são originados pelo trabalho assalariado, como


foram os casos das profissões que exerci como camponês,
operário e trabalhador intelectual. O trabalho para mim
foi quase sempre uma tortura, uma transfiguração da
minha identidade biológica e social, sobretudo pelo que
personificava em termos de escravidão salarial e negação da
liberdade, criatividade nos planos físico, mental e psíquico.
Evidentemente que a profissão de trabalhador intelectual
não é comparável com estas que exerci, quer no montante
de salário que usufruía, na liberdade e criatividade
intelectual, quer ainda no esforço, motivação, liberdade
e criatividade que envolve mais a psique e a mente em
detrimento do esforço físico do trabalho exercido, como
ocorria com as profissões de camponês ou operário. Hoje,
sem a obediência a horários e a rotinas estandardizadas de
execução de tarefas e de relações hierárquicas alienantes
inscritas numa autoridade formal despótica, deleito-me
com o mundo da espontaneidade e da informalidade, da
liberdade e da criatividade psíquica, mental e física nas
minhas interações com as espécies animais e espécies
vegetais, não descurando, bem entendido, as festas da
vida quotidiana do campo e a imprescindível fuga para a
preguiça, o amor e a amizade, a criatividade e a liberdade
da escrita e da oralidade que emergem das contingências
das TIC.

— Roberto Freire viveu e defendeu o Tesão como modo


de vida anarquista. Você disse certa vez que era preciso
acrescentar o Tesão à “saúde e liberdade” presentes nas saudações
anarquistas. Quais são os seus tesões hoje?
— Se bem compreendi e vivi, os escritos e as falas
quotidianas reproduzidas na vasta obra de Roberto

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2019

sempre estiveram correlacionadas com linguagens


comportamentais psíquico-físicas identificadas com o
prazer e o amor, não esquecendo os aspetos da liberdade,
da amizade e da solidariedade no mundo imaginário
do anarquismo. A somaterapia, como sua criação mais
representativa, é simplesmente genuína, na estrita medida
em que a sua inteligibilidade e vivência concreta não
separa a mente da psique e do corpo e vice-versa. Não
separa a vida quotidiana real da vida deificada e alienada
em relação às preposições castradoras da ideologia, política
e religião. Todas as partes da vida biológica e social são
interdependentes e complementares como pulsões de vida
erótica e de prazer, como também as pulsões de morte, se
vivenciadas como couraças musculares mentais, psíquicas
e físicas.
Neste sentido amplo, a vida e a obra de Roberto
Freire no cinema, romance, psicologia, teatro, etc., é
um hino de criação e desenvolvimento das pulsões de
vida em detrimento das pulsões de morte circunscritas
à influência estruturante e dominante do Estado, do
capitalismo e da religião judaico-cristã. Devo afirmar que
minha aprendizagem com Roberto Freire foi sempre um
prazer no sentido de problematizar e viver o anarquismo
que potenciasse as hipóteses de realização histórica de
uma sociedade anarquista. O resultado dos ensinamentos
preconizados por Roberto Freire no que concerne a uma
vida quotidiana pautada pelo amor, amizade, liberdade
e criatividade, para mim, foram muito importantes.
Em última instância, aprendi a exercer a liberdade de
transgredir e de superar as múltiplas couraças musculares
do corpo humano que nos foram impostas pela civilização
judaico-cristã. Estes pressupostos levaram Roberto Freire

82 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

a conceituar o tesão como elemento polissistêmico de


crítica radical das dicotomias judaico-cristãs padrão, como
foram e são vida-morte, homossexual-heterossexual,
amor-ódio, bem-mal, pequeno-grande, verdade-mentira,
etc.
No meu entendimento, não pode haver separação
entre tesão e saúde, porque são interdependentes e
complementares e porque, ainda, não pode haver saúde
mental, psíquica e física sem anarquia, razão pela qual
a liberdade, a criatividade, o amor e a amizade sejam os
étimos adequados para analisar a essência da anarquia
enquanto caos singular auto-organizado sem deuses e
sem amos no sentido metabólico do termo em que corpo
humano é ator utópico de probabilidades não lineares
de pulsões de vida no espaço-tempo do universo. Tendo
presente a minha trajetória biológica e social, o meu grande
tesão de hoje é desconstruir-me como elemento padrão de
aculturação da civilização judaico-cristão e construir-me
como ator utópico de uma nova civilização a que chamo
de anarquia aqui, agora e para sempre no espaço-tempo
do planeta Terra e do Universo-Cosmo.

— Como foi sua experiência na universidade de Vincennes


logo após os acontecimentos de 1968?
— A minha experiência na Universidade de Paris VIII-
Vincennes teve o seu início em 1970. Embora não tivesse
vivido em plenitude os acontecimentos revolucionários no
que toca a integração nos movimentos sociais estudantis
e operários que estiveram na base do Maio de 1968 em
França, quando cheguei a Paris tive oportunidade de
assistir a várias manifestações, reuniões, debates, vida

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2019

quotidiana no sentido geral do termo, em casa, nos cafés,


restaurantes, teatros, cinemas, outros espaços públicos, etc.;
em última análise, ainda eram o prolongamento e o reflexo
ideológico e partidário desse processo revolucionário.
No que concerne a originalidade revolucionária
estudantil do Maio de 1968 em França, a criação do
Centro Universitário Experimental de Vincennes, no
outono de 1968, foi uma resposta pertinente do poder
instituído decorrente da contestação do movimento social
estudantil. Para responder às exigências revolucionárias
dos estudantes, Edgar Faure, Ministro da Educação
Nacional do governo liderado por Maurice Couve de
Murville, com a legitimidade adquirida junto de Georges
Pompidou, recém-eleito Presidente da República, criou a
referida instituição universitária.
Esta decisão do governo francês logo a seguir ao epílogo
de Maio de 1968 em França, ao criar de modo efetivo
o Centro Universitário Experimental de Vincennes em
1969, revelou-se genial porque concentrou num território
bem específico afastado do centro de Paris as energias
contestatárias e revolucionárias dos estudantes que
pretendiam abolir o capitalismo e o Estado, sendo que,
para o efeito, as mesmas foram drasticamente atenuadas ou
abandonadas. Diga-se também que, em termos políticos,
ideológicos e filosóficos, para além dos estudantes
poderem usufruir de uma entrada direta na Universidade
de Paris Vincennes, qualquer trabalhador assalariado que
tivesse mais de 25 anos e não tivesse o ensino secundário
concluído (BAC), mediante uma entrevista podia iniciar
o curso de graduação que pretendia. Outro elemento
relevante foi a identidade e adesão de alguns professores
de renome científico e intelectual, como foram os casos

84 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

emblemáticos que François Châtelet, Gilles Deleuze,


Jean-François Lyotard, Michel Deguy, Michel Foucault,
Maurice Gross, Georges Lapassade, Hélène Cixous,
Michel Beaud, Alain Badiou, René Schérer, Michel
Serres, Robert Castel, André Miquel, Yves Lacoste, Jean
Bouvier, Jean Claude Chevalley, Nicolas Ruwet, Henri
Weber, Denis Guedj, Madeleine Rebérioux, Giorgio
Agamben, Jacques Lacan, etc.
No meu caso pessoal, devo dizer que este caldo de
vivência ideológica e científica permitiu-me ingressar na
Universidade de Paris VIII-Vincenes já não como Centro
Experimental, mas como instituição universitária formal,
quer em termos de denominação quer em termos de
atributos científicos. Para mim, a Universidade de Paris
VIII – Vincennes foi, sem dúvida alguma, um elemento
crucial de aprendizagem de conhecimento em matérias
relacionadas com o curso de graduação em Economia
Política, cujo padrão epistemológico e científico
predominante oscilava entre o marxismo e o marxismo-
leninismo. Frequentei esta universidade entre 1970 a 1974.
Devido a vários fatores, não terminei o curso de graduação
de denominado “Maitrise” em Economia Política.
Para além de estudante, também exerci as funções de
Monitor (moniteur) entre 1971 a 1973. Esta graduação
inacabada foi primacial para exercer a profissão de professor
universitário em Portugal e abandonar a profissão de
mecânico para sempre em França. Duas razões estão na
base desta afirmação. Tornei-me especialista no léxico
epistemológico marxista no que se refere ao subsistema
da Economia Política, mas também aos subsistemas
político, social, econômico e cultural identificados com
as preposições do materialismo histórico e dialético.

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2019

Segundo, só fiquei em primeiro lugar no concurso que


foi aberto em outubro de 1975 no ISEG-UTL (na
altura denominado ISEG) porque o objeto científico
que era privilegiado na disciplina de Economia Política
identificava-se com marxismo, na estrita medida em que
as exigências do processo histórico revolucionário da
transição para o socialismo decorria em Portugal entre
1974 e 1975. Não tenho dúvidas de que se fosse hoje,
com base nos conhecimentos que possuía, ficaria em
quadragésimo segundo lugar em vez do primeiro lugar,
como ocorreu em 17 de Outubro de 1975.

— Como foi sua vida de professor? Você gostava de dar


aulas? O que você pensa da universidade hoje?
— A minha vida de professor universitário começa
com a categoria de Equiparado a Assistente, no Instituto
Superior de Economia da Universidade Técnica de
Lisboa, desde 17 de outubro de 1975 a 25 de setembro de
1980. Exerço também as funções Equiparado a Assistente
na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de
Lisboa, no ano letivo de 1975/1976; Assistente no
Instituto Superior de Economia da Universidade Técnica
de Lisboa, desde 26 de setembro de 1980 a 4 de março de
1985; Professor Auxiliar do Núcleo de Ciências Sociais
do Instituto Superior de Economia da Universidade
Técnica de Lisboa, desde 5 de março de 1985 a 18 de abril
de 1989; Professor Associado, da Secção de Sociologia,
do Departamento de Ciências Sociais do Instituto
Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica
de Lisboa, desde 19 de abril de 1989 a 20 de outubro de
1992; Professor Catedrático, da Secção de Sociologia do
Departamento de Ciências Sociais do Instituto Superior

86 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa,


desde 6 de janeiro de 1994 até 31 de dezembro de 2010.
Estas funções e competências de professor universitário
ao longo de 35 anos no ISEG-UTL sedeado em Lisboa,
foram vividas, na minha opinião, sob diferentes prismas
ou dimensões comportamentais. Em primeiro lugar,
emerge o que podemos denominar das suas capacidades-
possibilidades de acesso e difusão do conhecimento
científico nas relações intrapessoais que têm que ver com
a sua cognição e emoção e energia física, mas também
nas suas relações interpessoais, intragrupais, intergrupais
e interorganizacionais com estudantes, professores e
funcionários. A sua realidade comportamental interna e
externa é sempre objeto de uma concorrência e competição
entre os vários saberes científicos, quer pela via verbal oral,
quer pela via verbal escrita. As relações sociais em qualquer
espaço-tempo da universidade são atravessadas na luta
pelo poder gerado pelas ideologias, religiões, economias,
políticas e sociedades dominantes. Os bens e os serviços
científicos não escapam a esta realidade.
Como professor, desde o início, sempre corri atrás
do prejuízo no que se refere a competências científicas,
porque a minha escolarização foi sempre condicionada
pelo esforço físico decorrente da minha profissão de
mecânico. Só consegui estudar de forma condicionada
durante o ensino noturno desde o ensino secundário
até à graduação. Só a partir de 1980 consegui estudar
livremente sem ser constrangido a seguir a tramitação
do ensino noturno. Desde então estudei na formação
diurna, tendo obtido o mestrado em 1982 e o doutorado
em 1984. Esta investigação e formação permitiu-me
recuperar e atualizar os meus conhecimentos científicos,

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2019

potenciando, consequentemente, as minhas capacidades


e competências de concorrência e competição junto dos
colegas professores e estudantes.
Estas premissas institucionais e formais das funções do
professor universitário, para mim, nunca me condicionaram
ou impediram de exprimir a minha identidade científica a
partir das premissas dos objetos científicos do anarquismo
e da anarquia, quer observando as omissões ou erros dos
paradigmas ou modelos científicos hegemônicos, quer
criticando todos os modelos científicos que naturalizavam
a exploração do homem pelo homem, ou deste sobre as
espécies animais e espécies vegetais. Diga-se de passagem
que os alunos, meus colegas e funcionários, embora me
considerassem um professor normal, gente boa, olhavam-
me e classificavam-me mais como anarquista ou libertário
do que grande cientista.
Sempre gostei de dar aulas. Tive muito prazer
até princípios de 1990. A partir desta data, com as
contingências das TIC e o alheamento relativo dos
estudantes em relação às matérias científicas que lecionava,
ao ouvir ou assistir a situações de ignorância, frustração e
cansaço, perguntei-me e questionei-me: que coisa é esta
de “dar aulas” ou transmitir conhecimentos? Eu sentia
que debitava conceitos em catadupa na sala de aula para
os alunos, os quais entravam por um ouvido e saiam por
outro. Era parecido com um papagaio e sentia-me um
simulacro comunicacional de conceitos e teorias. Não
existia qualquer tipo de aprendizagem efetiva no espaço-
tempo da sala de aula. Com as contingências das TIC,
os erros e omissões sobre o conhecimento, a informação
e a energia humana transformam o professor numa
entidade cognitiva, emocional e energética de ignorância

88 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

e de prepotência, enquanto os estudantes se limitam


a ser entidades passivas e receptáculos mecânicos de
conceitos e modelos científicos que facilmente esquecem
e, posteriormente, são constrangidos a memorizar
aquando a época dos testes e dos exames. Todavia, os
estudantes, face às contingências, têm maior capacidade
e probabilidade de codificar e descodificar as linguagens
das TIC que envolvem informação, conhecimento e
energia, ao transformar estes de inputs em outputs e,
consequentemente, em bens e serviços científicos.
Com as TIC, o acesso e a aprendizagem do
conhecimento, informação e energia humana, os
estudantes, assim como os professores e os funcionários,
podem produzir, distribuir, trocar e consumir esses
elementos como inputs e outputs, ou seja, bens e serviços
analítico-simbólicos. A essência de todo esse processo
persiste na capacidade ou não da auto-organização
individual singular, onde de modo atempado e adequado,
cada um de nós pode ou não decodificar e codificar as
linguagens científicas que estão diretamente reportadas à
produção, distribuição, troca e consumo de bens e serviços
analítico-simbólicos ou bens e serviços científicos. Hoje,
dar aulas ou transmitir conhecimentos no sentido clássico
do termo torna-se uma paradoxo gritante e inconsequente
para alunos e professores

— Como você vê a anarquia e os anarquistas no século


XXI?
— Vejo a anarquia e os anarquistas não de forma
interdependente e complementar como gostaria, mas
numa base, ainda, de alguma identidade específica. Nos

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2019

primórdios da minha entrada no imaginário individual


e coletivo do conceito da Anarquia, tinha como mais
relevante as interpretações de Max Stirner, Proudhon e
Élisée Reclus. Eram formas incipientes de compreensão
de um conhecimento sem análises sistemáticas, sem
contradições, sem interrogações, sem questionamentos.
Anarquia aparece aos olhos da maioria dos anarquistas
como algo deificado, que não se discute, em que se crê como
fé, ideologia ou religião. Poucas vezes é percepcionado
como um espaço-tempo utópico inacabado não linear,
mas sempre como o final da história revolucionária da
espécie humana.
Nos debates em que participei, nas discussões por
vezes infinitas, encontros, debates, colóquios, piqueniques,
acampamentos,festas,feiras do livro,exposições,etc.,sempre
tentei perceber, discutir, discordar, brincar ou conflituar
de uma forma solidária e livre, orientando-me numa
perspectiva de pensar, sentir e agir com base na seguinte
perspectiva: nós sabemos que existe uma diversidade de
anarquismos (anarcossindicalismo, anarcocomunismo,
comunismo libertário, federalismo autogestionário,
anarconaturismo, anarco-insurrecionalismo, anarco-
individualismo, anarcocristianismo, anarcopacifismo,
anarcoprimitivismo, zonas autónomas temporárias,
municipalismo libertário, etc.). Todos eles podem e são
rios com a sua especificidade, cujas margens e correntes,
geralmente, vão desaguar no mar. São, acima de tudo,
formas de vida assentes em liberdades paralelas. De forma
veemente, afirmava que os rios deveriam ser sempre um
grande exemplo de liberdades paralelas de ação individual
e coletiva a desaguar na anarquia.

90 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

Pois bem, nem todos os anarquismos estavam e


estão disponíveis para assumir esse desiderato histórico
em relação à anarquia, porque, em última análise, são e
ambicionam ser um modelo anarquista considerado o
mais proficiente, positivo e revolucionário para construir
uma hipotética sociedade anarquista. Todavia, quem
diz modelo, implica pensar em modalidades de divisão
do trabalho, estruturas e funções que uniformizam
comportamentos nos processos de tomada de decisão e de
liderança, de defesa ideológica e política intransigente do
modelo, como sobretudo da sua difusão comunicacional
para estimular respostas motivacionais, adesões de
militantes e propagação hegemônica do modelo junto da
sociedade.
Foi a partir do marasmo, saturação, desistências,
contradições e conflitos provenientes da vida quotidiana
dos modelos anarquistas no espaço-tempo interno e
externo que me apercebi das causas e efeitos gerados
por essa realidade. No meu caso pessoal, começo a
intervir nesta reflexão a partir de 2005/2006 na rede
Anarqlat, sedeada na Venezuela, aquando respondo
uma intervenção de um interveniente brasileiro sobre a
necessidade de atualizar e construir uma teoria anarquista
para as sociedades contemporâneas. Face à leitura deste
documento tive oportunidade de escrever algo aproximado
do seguinte: a grande crise dos modelos anarquistas é que
os seus pressupostos analíticos se baseiam numa série de
dicotomias, oposições e antinomias que precedem dos
valores, da ética, dos costumes, da religião da civilização
judaico-cristã, que separa mecanicamente o bem do mal,
a morte da vida, a verdade da mentira, o amor do ódio e
por aí fora. Exemplifiquei com os casos emblemáticos do

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2019

Chosmsky (o mal está nos EUA e o bem noutros países),


Proudhon (inexistência de propriedade é o bem, o mal
está na propriedade), Max Stirner (o bem é assente no
egoísmo e o mal no altruísmo), Malatesta (o bem está na
organização e o mal está na antiorganização).
Claro que não posso nem devo comparar interpretações
e análises de autores sobre a anarquia e o anarquismo.
Quando falamos ou escrevemos sobre os anarquismos,
estamos a escrever sobre militantes, sobre modalidades
de ação individual e coletiva, estamos a escrever sobre a
existência ou não de estruturas espontâneas e informais,
de democracia direta ou não. Como geralmente a maioria
das organizações anarquistas têm poucos militantes,
vivem fechadas e muitas vezes transformam-se em guetos
defensores de heróis, mártires e bandeiras, razão pela qual,
servindo o modelo de forma intransigente, funcionam
melhor como seita ideológica fechada e dogmática e são
os melhores defensores do templo a que pertencem.
Hoje, vejo a anarquia mais como utopia e não como
modelo baseado nos pressupostos judaico-cristãos. É
uma probabilidade não linear de extinção da civilização
judaico-cristã e, como consequência, da extinção do
Estado, do capitalismo e de todos os subsistemas que lhes
dizem respeito. Em termos de relações de causa-efeito, ela
é imanente a todos nas pulsões de vida que clamam por
oxigênio, água, criatividade, liberdade, amor e amizade nas
interações entre a espécie humana e as espécies animais,
assim como nas relações perversas e mortíferas atualmente
persistentes entre a espécie humana. Neste aspecto, o
maior inimigo da anarquia como probabilidade utópica
não linear no universo é a espécie humana alicerçada na
civilização judaico-cristã.

92 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

As TIC permitem potenciar, enormemente, os


comportamentos livres e criativos da espécie humana no
sentido do amor e da amizade, na estrita medida em que a
socialização da informação, do conhecimento e da energia
emergem no espaço-tempo confinado à auto-organização e
à democracia direta, da informalidade e da espontaneidade
de cada ser singular inscrito na ação individual e coletiva
das múltiplas dimensões da vida quotidiana da espécie
humana, e nas interações desta com as outras espécies
animais e espécies vegetais. A plasticidade social destas
tendências históricas de probabilidades não lineares
é visível sobretudo a partir dos “Hackers”, da Ficção
Científica e das Redes Sociais de diferentes tipos e nos
múltiplos ecologismos que aspiram caminhar no sentido
das pulsões de vida nas relações entre a espécie humana e
outras espécies animais e espécies vegetais.

— Nessas muitas décadas entre Brasil e Portugal,


atravessando o mar de sal, quanto do seu sal são lágrimas de
Portugal?
— A minha relação com o Brasil é uma relação de amor
e paixão que tem sido estruturada no Brasil, pelas pessoas
lindas que conheci desde 1988 em Recife e desde aí até
agora em quase todos os estados do Brasil. Escusado será
afirmar de que a beleza e a vida do oceano atlântico, dos rios,
cachoeiras e riachos, assim como todas as espécies animais
e vegetais, potenciaram esse meu amor e paixão pelo
Brasil no contexto do planeta Terra. A língua portuguesa
comum, não obstante as diferenças gráficas e orais que
existem entre o Brasil e Portugal, permitiu estreitar laços
culturais e civilizacionais que passam por uma melhor
comunicação e probabilidades de entendimento da vida

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2019

em geral e, consequentemente, de melhor identidade,


interdependência e complementaridade no que se
convencionou denominar amor, amizade, liberdade e
criatividade.
Passando agora por cima do genocídio e da escravidão
das populações indígenas e africanas, também não posso
esquecer ou descurar que este Brasil belo e rico não existe
para uma grande parte da população brasileira que vive em
condições infra-humanas. Acresce-se a este fato que uma
outra parte da população domina e vive às expensas destas.
Foi com base nestas identidades, contradições e conflitos
que também olhei para o Brasil com potencialidades
únicas em termos de espécies animais e vegetais, e também
constatei a destruição irreversível destas mesmas espécies.
Quero e devo acrescentar que a minha paixão e amor
pelo Brasil resultam, fundamentalmente, das relações
que estabeleci através do anarquismo no âmbito das
universidades, de grupos e anarquistas brasileiros. Foi e é
um manancial de relações, experiências de vida, debates,
reflexões que potenciaram a minha caminhada do
anarquismo para a Anarquia. Devo afirmar que, em termos
de potenciação reflexiva e vida quotidiana experimentada
no sentido da afirmação de pulsões de vida identificadas
com a Anarquia, o Brasil foi tanto ou mais importante
que Portugal, logo seguido pela França, Espanha, Itália,
Uruguai e Argentina.
Quando a pergunta procura a lógica do “meu sal das
lágrimas de Portugal” no significado que lhe deu Fernando
Pessoa, não o posso sentir nem o posso descrever como
ele o fez, porque ele atribui o sentido de ser português
que trabalha e luta no mar como foram os casos daqueles

94 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

que participaram no que foi denominado “descobertas” e,


posteriormente, aqueles que são trabalhadores assalariados
como marinheiros, pescadores e emigrantes. Foi e é uma
grande reflexão sobre o que é a religiosidade, tristeza,
miséria, saudade, sofrimento de parte da população
portuguesa que morreu no mar desde o século XVI até
princípios do século XX. Penso, no entanto, que embora
alguns destes aspectos sublinhados por Fernando Pessoa
possam subsistir, os mais importantes deles já não
existem. Antes, o sal do mar era uma espaço-tempo de
trabalho assalariado, de sofrimento, de medo, da dúvida,
da angustia. Hoje, o sal do mar é mais um espaço-tempo
de lazer, de turismo, em conjugação com as virtualidades
da areia e do Sol e destruição e poluição do mar profundo
de Fernando Pessoa.

— Como é ser um avô anarquista?


— Ser anarquista avô está a ser uma experiência única
da minha vida, onde pela primeira vez, tento desconstruir-
me dos milhares de atavismos destrutivos e castradores da
liberdade, da criatividade, do amor e da amizade inerentes
aos valores, moral, ética e costumes da civilização
judaico-cristã. Duas condições são-me, para o efeito,
imprescindíveis: a informalidade e a espontaneidade e, por
outro, o riso e a brincadeira. Sei que é extraordinariamente
difícil, mas só assim consigo chegar a relações de estímulo-
resposta de aprendizagem permanente quando partilho
a minha vida quotidiana como o espaço-tempo da vida
quotidiana da Sara, que irá fazer nove anos no mês de
maio, e a de Joana, que completará três anos no mês de
agosto de 2019.

verve, 35: 75-98, 2019 95


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2019

Quando consigo estabelecer uma relação como referi


acima, não tenho dúvidas que estou próximo do que defini
como Anarquia. Quando não sou mais do que um adulto
em situação de simulacro potencial da anarquia, que pensa
e vive com base numa multiplicidade de regras e normas
institucionalizadas pela lei, valores e costumes judaico-
cristãos, então o problema é educar, castrar, reprimir,
normalizar a personalidade e a vida das minhas netas no
sentido da sociedade vigente.
A primeira opção relacional com as minhas netas, no
meu entendimento, potencia as pulsões de vida e está em
sintonia com os pressupostos de aprendizagem utópica
civilizacional da Anarquia. A segunda opção relacional
com as minhas netas caracteriza-se pela negação de
estímulos-respostas comportamentais conducentes à
potenciação de pulsões de vida, negando a sua liberdade e
criatividade existencial a diferentes níveis da afirmação da
sua personalidade.

— José Maria, você costuma dizer que seu próprio nome


traz um homem e uma mulher. Afinal, entre homem e mulher
não há dicotomia?
Por ignorância ou desleixo com base na reflexão
filosófica de Friedrich Nietzsche, já me tinha apercebido
da problemática da dicotomia. Todavia, a minha intuição
e capacidade analítica advém do objeto científico da
Sociologia e das sucessivas contradições e conflitos
presenciados ao longo da minha vida quotidiana.
Sempre que escrevia um texto em Sociologia e quando
precisava escolher a citação apropriada, estava sempre
constrangido o autor que sabe e o autor que não sabe, o

96 verve, 35: 75-98, 2019


verve
Entrevista com José Maria Carvalho Ferreira

paradigma ou modelo científico que eram considerados e


legitimados pela comunidade científica dos sociólogos ou
os que não eram considerados como tal. Claro que, afina, a
decisão destes dilemas obedecia a uma lógica dicotômica
entre o texto bom e o texto mau, o texto científico e o
texto não científico.
No meio anarquista e na vida quotidiana, assisti
a inúmeros conflitos, cenas de violência, discussões
intermináveis, desentendimentos sobre variadíssimos
assuntos sempre determinados por uma série de dicotomias,
oposições, antagonismos: vida-morte; homem-mulher;
heterossexual-homossexual; bissexual-transexual; bem-
mal; bom-mau; inteligente-ignorante; belo-feio; verdade-
mentira; teoria-prática; pequeno-grande; revolucionário-
reformista; comunista-fascista; etc. Enfim, poderia
enumerar mais uma série de dicotomias presentes na
vida quotidiana que chegaria sempre a uma conclusão.
Apercebi-me que essas dicotomias foram geradas pela
civilização judaico-cristã que implica que todas as
manifestações de vida de todas as espécies no planeta
Terra — psíquicas, mentais ou físicas — sejam atributo
criativo e imperativo de Deus em todos os domínios.
Este atributo criativo e imperativo centrado em Deus
deu azo a que a dicotomia vida-morte da civilização
judaico-cristã funcionasse com um imperativo categórico
da religião em todos os domínios da vida quotidiana
da espécie humana. A partir de 2007, senti que o valor
heurístico destas preposições não eram irrelevantes. Pelo
contrário. Foi a partir daí que comecei a escrever textos
afirmando que as dicotomias nunca poderiam resultar
em sínteses, porque os elementos contrários que se
dizem como negativos, dicotômicos e antagônicos não

verve, 35: 75-98, 2019 97


35
2019

necessitam de evoluir no sentido da síntese, porque já são


interdependentes e complementares.
Quando eu me identifico ou me chamam José Maria,
eu costumo brincar com os meus amigos anarquistas,
dizendo que o meu nome simboliza o pai de Jesus Cristo,
denominado José, e a mãe de Jesus Cristo, conhecida como
Virgem Maria. Mas neste aspecto, na minha opinião,
todas as dicotomias entre homem-mulher, baseadas na
distinção do sexo, são um grande equívoco da civilização
judaico-cristã, porque confundem prazer sexual com
coito e porque, ainda, qualquer homem e mulher, mesmo
que sejam o resultado biológico do coito, em última
instância, qualquer homem e mulher só existem porque
são a junção de um óvulo e de um espermatozoide. Mais
interdependência e complementaridade não poderia
existir. Dizer ou escrever que existe dicotomias entre
homem e mulher é absurdo, tal como é absurdo o que
se escreve e diz sobre heterossexuais, homossexuais,
bissexuais, transexuais, travestis.

98 verve, 35: 75-98, 2019


o ronco do surdo é a batalha

a repercussão da mangueira
“Meu nego, deixa eu te contar/ a história que
a história não conta/ o avesso do mesmo lugar/
na luta é que a gente se encontra”, cantou
a Estação Primeira de Mangueira, campeã do
carnaval do Rio de Janeiro em 2019. Sob efeito
do enredo “Histórias para ninar gente grande”,
depois do título, não faltaram reportagens,
nas mais variadas mídias, sobre as pouco
conhecidas existências das mulheres e homens
cantados pela escola na Marquês de Sapucaí.
Pouco se comentou acerca da própria história
de lutas da qual irrompeu a Mangueira, em
1929, na zona norte carioca. 

Inventado há exatos 90 anos, o Grêmio


Recreativo Escola de Samba Estação Primeira
de Mangueira foi o desdobramento de inúmeras
outras experiências. Até a reunião de
compositores como Cartola e Carlos Cachaça,
no final da década de 1920, o batuque no Morro
do Pedregulho, depois Morro do Telegrafo e,
enfim, Mangueira, acontecia primeiro nos
terreiros de candomblé, assim como a capoeira
e o samba perseguidos pela polícia até meados
da década de 1930. Era comum os jornais
cariocas da primeira década do século XX, como
o Correio da Manhã, estamparem denúncias como
“na rua Francisco Ziss, lugar denominado Terra
Nova, há um samba onde continuamente se dão
distúrbios e arruaças”, ou “o samba termina
quase sempre à meia-noite ou a uma hora da
madrugada, é costume ouvir-se nesta ocasião
tiro de revólver”.

Para além dos terreiros e espaços como a


casa da Tia Ciata situado na “Pequena África”,
região do centro do Rio de Janeiro que abrigava
sambistas como Donga, Sinhô, João da Baiana, no
início do século XX, o batuque se amplificou no
carnaval pelos chamados “cordões”, grupos que
se reuniam para festejar a folia. João do Rio,
em breve conto publicado em 1906, descreveu que
era provável que pela cidade “dançassem vinte
cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos
tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem
cinquenta mil pessoas. A rua convulsionava
como se fosse fender, rebentar de luxúria e
de barulho”. A partir dos “cordões” descritos
pelo cronista, na primeira década do século
passado, surgem os “ranchos”, marcados por
novidades como alegorias, fantasias, enredos e
os “blocos” que formarão as primeiras escolas
de samba. 

A Mangueira surgiu em 1929 e teve como


procedência precisamente um bloco denominado
“arengueiros”, reunião, como o nome já
explicita, de sambistas dispostos não somente
a brincar. Em depoimento à antropóloga Maria
Júlia Goldwasser, Cartola, integrante do bloco,
recordou: “nós éramos desorganizados, saíamos
de qualquer maneira (…) Saía para brigar,
machucar, ser machucado, preso. Tanto que esse
pessoal que tinha aí, esses outros blocos, não
aceitava a gente não: ‘São maus elementos’”.
Depois de cinco anos de carnaval, Cartola,
então com vinte e um anos, propôs à turma da
arenga a associação com outros blocos do morro
visando um desfile na Praça Onze. O encontro,
realizado na casa de Seu Euclides no “Buraco
Quente”, deu certo. Pouco tempo depois, em
1932, a Estação Primeira realizou sua primeira
apresentação. Todavia, na década de 1930, sob
a campanha nacionalista do governo de Getúlio
Vargas para pacificar e capturar a malandragem
e a vadiagem do samba, a Mangueira e as demais
escolas ainda sofriam com a repressão de
inúmeros delegados de polícia como Dulcídio
Gonçalves que, em 1937, primeiro ano do Estado
Novo, proibiu o desfile de carnaval. 

Após ser identificada, no final dos anos 1940,


como subversiva e simpatizante do comunismo,
nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura
civil-militar, a Estação Primeira também foi
alvo sistemático de grupos de extermínio
ligados à polícia e ao governo carioca. Em
1965, Hélio Oiticica, passista da escola,
levou os passistas Mosquito, Miro, Tineca,
Rose, para apresentarem seus “Parangolés” na
exposição “Opinião 65”, realizada no Museu
de Arte Moderna (MAM-RJ). Foram impedidos de
entrar, mas dançando do lado de fora, expuseram
o racismo da instituição. Três anos depois,
o artista, neto do anarquista José Oiticica,
escancarou com “HOMENAGEM A CARA DE CAVALO”,
a execução de um jovem ligado à Mangueira,
amigo seu, pelo esquadrão da morte Scuderie
Le Cocq. “Posso dizer que [Cara de Cavalo
era] meu amigo, mas para a sociedade ele era
o inimigo público número 1 (…) Esta homenagem
é uma atitude anárquica contra todos os tipos
de forças armadas: polícia, exército, etc. (…)
Cara de Cavalo reflete um importante momento
ético, decisivo para mim, pois que reflete
uma revolta individual (…) Em outras palavras:
violência justificada como sentido de revolta
nunca como o de opressão”. Depois de voltar ao
Brasil em 1978, após uma temporada de quase
uma década em Nova York, Oiticica declarou:
“há um programa de genocídio, porque a maioria
das pessoas que eu conhecia na Mangueira ou
estão presas ou foram assassinadas”. Somado ao
genocídio apontado pelo artista, no primeiro
ano da década de 1980, a Estação Primeira perde
um de seus inventores, Angenor de Oliveira, o
sambista Cartola. 

A partir da metade dos anos 1980, ocaso


da ditadura civil-militar, com a ampliação
do carnaval como festa institucional carioca,
o então governador Leonel Brizola inaugura
a “Passarela Professor Darcy Ribeiro”,
popularmente chamada de Sambódromo da Marques
de Sapucaí. A Estação Primeira, a partir daí,
tornou-se alvo, como outras agremiações,
de investimentos de empresas de turismo e
municípios interessados em se promover por meio
dos patrocínios de enredos para os desfiles. 

Nas décadas seguintes, 1990 e 2000, a Mangueira


seguiu adiante com suas transformações e foi a
primeira escola a incluir mulheres na bateria.
Em meio às comemorações de 70 anos, em 2008
foi também acusada de ligação com práticas
ilegais identificadas como tráfico de drogas.
Ainda em 2008, momento marcado pela morte de
Jamelão e expondo o distanciamento cada vez
maior dos começos no “Buraco Quente”, em vez de
celebrar a existência de Cartola, a diretoria
da Estação optou pelo enredo patrocinado pela
prefeitura do Recife para homenagear o frevo.
Depois de quatorze anos sem título, somente em
2016, depois de sucessivas disputas políticas,
cantando a vida de Maria Bethânia, estreou o
carnavalesco Leandro Vieira e a escola voltou
a ganhar o campeonato do carnaval no Rio. 

Como as outras agremiações que desfilam na


Sapucaí, a Mangueira, de um bloco de arengas
tornou-se uma escola organizada. Contudo,
de tempos em tempos também é retomada por
forças e movimentos surpreendentes. Foi
o que ocorreu agora, em fevereiro de 2019,
quando praticamente sem presidente (preso sob
acusação de corrupção), quase um ano depois da
execução de Marielle Franco e da intervenção
constitucional militarizada no Rio de Janeiro,
sob os cortes orçamentários da prefeitura do
bispo pentecostal da Igreja Universal do Reino
de Deus, Marcelo Crivella, para a realização
do desfile na Sapucaí, a Estação desfilou
sua “História para ninar gente grande”. Sem
homenagear personagens históricos oficiais
e episódios conhecidos, a Mangueira foi à
resistência no Brasil, território que certos
anarquistas chamaram atenção para a história
de “500 anos de mortes, massacres, etnocídios
e genocídios”, que se tornou o enredo na
avenida. 

Apesar de determinada euforia interessada


no desfile, uma estratégia para fortalecer a
oposição ao atual governo federal, grande parte
da esquerda acostumada a homenagens a Chico
Buarque, Darcy Ribeiro, Maria Bethânia, foi
surpreendida com a evocação, no samba-enredo,
de existências como as de Chico da Matilde,
Luiza Mahin, Aqualtune, os caboclos de julho.
E foi dessa maneira, valorizando estas vidas
e outras como Cunhambebe, os Cariris, Dandara,
Marielle, “quem foi de aço nos anos de chumbo”,
que a Escola empolgou a Sapucaí, dando forma a
um desfile que simultaneamente se apresentou
também como contundente protesto. 

Diante da força da Mangueira não faltaram


análises acadêmicas sobre a perspectiva
de história afirmada pela escola ou de
intelectuais reproduzidas em jornais, blogs,
sites. Entretanto, como era de se esperar,
poucos foram os que valorizaram o coração, a
bateria da escola, essa que foi construída,
pouco a pouco, por milhares de anônimos,
“heróis de barracões”, entre terreiros,
cordões, ranchos, blocos, lutas contra as
autoridades e hoje é conhecida como Surdo Um
pelo acento singular na primeira nota do ritmo.
Um filósofo estrangeiro atento às lutas por
liberdade e que apreciava com prazer a noite
do centro do Rio, nos anos 1970, escreveu
certa vez: “temos que ouvir o ronco surdo
das batalhas”. A Mangueira em 2019, ecoa tal
afirmação e escancara que onde soar seu surdo
outras histórias serão ouvidas.

nas quebradas
“Eu conto as histórias das quebradas do
mundaréu. Lá de onde o vento encosta o lixo
e as pragas botam os ovos. Falo da gente que
sempre pega o pior, que come da banda podre,
que mora na beira do rio e quase se afoga toda
vez que chove, que só berra da geral sem nunca
influir no resultado (…) E é nesse embalo que
eu vou. Vou contar do samba da Paulicéia e de
sua gente, que é do tamanho do mundo, porque
não se acanha em contar as histórias do seu
pedaço de terra firme (…) vamos de samba”. É
assim que Plínio Marcos abre o Nas quebradas
do mundaréu, disco sobre o samba de São Paulo,
gravado com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde
e Toniquinho Batuqueiro. 

Lançado em 1974, o álbum apresenta


inúmeras histórias do samba na cidade. Nas
quebradas sublinha a procedência rural do
batuque paulistano no início do século XX, com
as festas de colheita de café, a “tiririca”,
espécie de brincadeira similar à capoeira e
que levava muitos sambistas à prisão até a
irrupção dos primeiros cordões e escolas de
samba como a Lavapés. Similar ao que ocorreu
no Rio de Janeiro, a violência sistemática
do Estado sobre comunidades negras ligadas
ao samba, o disco narra também as execuções
de sambistas como Pato N’água, diretor de
bateria da Vai-Vai, assassinado, em 1969, como
Cara de Cavalo, pelo Esquadrão da Morte. Com
o registro de Plínio Marcos – inventor, em
1972, da Banda Redonda, tradicional bloco de
carnaval e de enfrentamento a ditadura civil-
militar –, apreendemos, sobretudo, a história
do carnaval como resistência em São Paulo. 

Mais de quatro décadas depois do lançamento


de  Nas quebradas do mundaréu, em 2019, às
vésperas do carnaval, autoridades paulistanas
se vangloriavam de organizar, segundo eles, “o
maior carnaval do Brasil”, composto por mais
de quinhentos blocos cadastrados oficialmente,
com cerca de 12 milhões de pessoas pelas ruas
e estimativa de lucro de 2 bilhões de reais.
Entretanto, acabada a festa, o embate entre o
samba e tais autoridades surgiu novamente por
meio de inúmeras críticas à reação policial
ao carnaval na cidade. Como nos outros
anos, depoimentos relataram além de prisões
e intimidações, apreensão de instrumentos
musicais, uso de balas de borracha, jatos de
água e uma série das chamadas “armas não-
letais” visando dispersar os blocos. Frente
a isso fica, então, a pergunta: se as mesmas
autoridades que celebram o recorde e os lucros
oriundos do carnaval violentam os foliões por
que se cadastrar oficialmente para botar o
bloco na rua, com aval da prefeitura arrivista? 

Diante dos recordes, da violência e ligados


às histórias narradas pela Mangueira e por
Plínio Marcos, o melhor é aproveitar o
carnaval sabendo que nele suas procedências
são batalhas prazerosas, sobretudo, contra o
Estado e suas autoridades.

[Publicado como hypomnemata 210. Boletim


eletrônico mensal do Nu-Sol, março de 2019.]
Dois poemas para Lautaro Bolaño
Leia os velhos poetas
Leia os velhos poetas, meu filho
e não te arrependerás
Entre as teias de aranha e as madeiras apodrecidas
de barcos encalhados no Purgatório
ali estão eles
cantando!
ridículos e heróicos!
Os velhos poetas
Palpitantes em suas oferendas
Nômades abertos no canal e oferecidos
ao Nada
(mas eles não vivem no Nada
e sim nos sonhos)
Leia os velhos poetas
e cuida de seus livros
É um dos poucos conselhos
que pode dar o seu pai
Biblioteca
Livros que comprei
Durante as estranhas chuvas
E o calor
De 1992
E que já tinha lido
Ou que nunca lerei
Livros para que meu filho leia
A biblioteca de Lautaro
Que deverá resistir
A outras chuvas
E outros calores infernais
- Então, o lema é o seguinte:
Resistam queridos livros
Atravessem os dias como cavaleiros medievais
E cuidem dos meus filhos
Nos anos que virão

Tradução Gustavo Simões


35
2019

emma goldman, saúde!

eliane carvalho

Nascida na Lituânia, à época incorporada ao território


Russo, no dia 27 de junho de 1869, Emma Goldman
permanece viva 150 anos depois. Este ano marca
também 100 anos de sua deportação dos Estados Unidos,
quando seguiu para a Rússia, com seu antigo e querido
companheiro, Alexander Berkman, onde observou e se
posicionou contrariamente às atrocidades do regime
revolucionário. Isso lhe rendeu inimizades inclusive entre
anarquistas encantados com a promessa comunista. O
momento em que escreve o artigo "A minha vida valeu
a pena?" é marcado pelo totalitarismo na Europa, com
Mussolini na Itália, Adolf Hitler na Alemanha, e a
ditadura comunista na URSS.
Emma Goldman foi uma mulher inclassificável e
também perigosa. Como muitos anarquistas, transitava
entre os chamados anarquismo individualista e coletivista.
Valorizava a liberdade na vida e experiências de cada um
e a dimensão da singularidade, sem ignorar a importância
do apoio mútuo, tal qual aprendera com seu amigo Piotr

Eliane Carvalho é pesquisadora no Nu-Sol e doutora em Ciências Sociais pela


PUC-SP. Contato: eliane@riseup.net.

110 verve, 35: 110-112, 2019


verve
Emma Goldman, saúde!

Kropotkin. Afirmava a possibilidade de uma sociedade


livre no futuro, sem se esquecer que mesmo esse futuro
só é possível com a invenção de práticas de liberdade
no presente. Afirmava a coletividade sem abrir mão da
afirmação do indivíduo. Afastava-se da necessidade de
rótulos limitadores da existência.
Atenta ao presente, reconhecia a precisão do prazer
e do que é belo. Interessava-se pela literatura, artes
plásticas, amava o teatro, circulava nestes espaços e entre
artistas. Era uma grande apreciadora da boa comida,
além de uma cozinheira de mão cheia. Ao visitar uma
fábrica de champanhe coletivizada na Espanha durante a
revolução, perguntou ao responsável em que momento os
trabalhadores beberiam o champanhe.
Em 1934, ao publicar o artigo a seguir, Emma Goldman
estava com 65 anos. Três anos antes era de conhecimento
público sua autobiografia intitulada Living my life. O
texto mostra sua atualidade no presente e a atenção de
quem não se deixa iludir por promessas à direita ou à
esquerda. Além disso, explicita as capturas de termos e
práticas pelo liberalismo atual. Ainda que os liberais
procurem capturar certas experiências anarquistas como
mera roupagem oportunista, Emma Goldman deixa claro
que suas motivações passam longe da ampliação de uma
liberdade que se traduz em meios de manter a propriedade
e o prestígio econômico de seus profícuos negócios.
Emma Goldman sabia de sua grandeza, o que
provocava certo incômodo nos devotos do hipócrita voto
de humildade de alguns militantes. Em sua aparente
seriedade (dizem que Emma Goldman só sorria depois
de alguns drinques), era também uma mulher generosa

verve, 35: 110-112, 2019 111


35
2019

que apreciava e admirava a luta de seus companheiros.


Sabia que o esplendor de cada um só carecia de prazer e
liberdade para florescer.
Emma Goldman, saúde!

112 verve, 35: 110-112, 2019


verve

minha vida valeu a pena?1

emma goldman

I
Quanto uma filosofia pessoal é uma questão de
temperamento ou resultado de experiências é um assunto
para debate. Naturalmente, chegamos a conclusões à luz
de nossas experiências por um processo que chamamos
de raciocínio sobre os fatos observados nos eventos em
nossas vidas. A criança é suscetível à fantasia. Ao mesmo
tempo, ela enxerga a vida de forma mais verdadeira do
que os mais velhos à medida em que se atenta ao seu
entorno. A criança ainda não foi impregnada pelos
costumes e preconceitos que constituem a maior parte do
pensamento. Cada criança responde de uma maneira ao
seu ambiente. Algumas se tornam rebeldes, recusando o
deslumbramento com as superstições sociais. Revoltam-
se com cada injustiça cometida contra elas ou contra os
outros. Crescem cada vez mais sensíveis ao sofrimento que
as circunda e às restrições que marcam cada convenção e
tabu impostos sobre elas.
Eu, evidentemente, pertenço à primeira categoria.
Desde as primeiras lembranças de minha juventude na
Rússia, tenho me rebelado contra a ortodoxia em todas

verve, 35: 113-129, 2019 113


35
2019

as suas formas. Nunca suportei presenciar a severidade,


e me indignava com a brutalidade oficial praticada sobre
os camponeses na nossa vizinhança. Derramei amargas
lágrimas quando os jovens foram recrutados pelo exército
e arrancados de seus corações e lares. Ressenti-me contra
o tratamento dado aos nossos serviçais, que realizavam
todo o trabalho duro e ainda tinham que se resignar
aos miseráveis quartos de dormir e aos restos de nossa
comida. Indignei-me ao descobrir que o amor entre jovens
judeus e jovens gentios era considerado o crime entre os
crimes, e que o nascimento de uma criança ilegítima era
considerado a mais depravada imoralidade.
Chegando à América, trouxe as mesmas esperanças
da maioria dos imigrantes europeus e me deparei com as
mesmas desilusões, mas estas últimas me afetaram mais
profunda e intimamente. Ao imigrante sem dinheiro e
sem conexões não é permitido apreciar a reconfortante
ilusão de que a América é o tio benevolente que assume
uma imparcial e carinhosa guarda de seus sobrinhos
e sobrinhas. Logo aprendi que em uma república há
inúmeras maneiras pelas quais os mais fortes, astutos e ricos
podem tomar o poder e mantê-lo. Vi muitos trabalharem
por salários baixos que os mantinham nos limites da
escassez para aqueles poucos que obtinham grandes
lucros. Vi os tribunais, os salões do legislativo, a imprensa
e as escolas — na realidade, todo local para a educação e
proteção — usados de forma efetiva como instrumento
de proteção de uma minoria, enquanto às massas era
negado qualquer direito. Descobri que os políticos sabiam
como obscurecer cada questão, como controlar a opinião
pública e manipular os votos para sua própria vantagem e
de seus aliados financeiros e industriais. Este é o retrato

114 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

da democracia que logo descobri na minha chegada nos


Estados Unidos. Houve basicamente pouca mudança
significativa desde aqueles tempos.
Essa situação, experimentada no dia a dia, foi-me
exposta com uma força tal que rompeu os embustes e
fez com que a realidade se sobressaísse viva e claramente
a partir de um evento que aconteceu pouco depois da
minha chegada na América. Foi a então chamada revolta
de Haymarket, que resultou no julgamento e condenação
de oito homens, entre eles cinco anarquistas. Seu crime foi
um imenso amor por seus companheiros e a determinação
em emancipar a massa oprimida e desapossada. De forma
nenhuma o estado de Ilinois conseguiu provar a conexão
desses homens com a bomba atirada em um comício ao
ar livre na Praça de Haymarket, em Chicago. Foi o fato
de serem anarquistas o que resultou em sua condenação
e execução no dia 11 de novembro de 1887. Este crime
jurídico deixou uma marca indelével em minha mente e
em meu coração, e levou à minha aproximação do ideal
pelo qual estes homens haviam morrido tão bravamente.
Passei a me dedicar à sua causa.
É necessário mais do que a experiência pessoal para
se adquirir uma filosofia ou um ponto de vista a partir de
algum evento específico. É a qualidade de nossa resposta
ao evento e nossa capacidade de entrar na vida dos outros
que nos possibilita tornar a vida e a experiência deles em
nossa própria. No meu caso, minhas convicções derivaram
e se desenvolveram dos eventos e das vidas de outros,
bem como da minha própria experiência. Tudo o que vi,
relativo à autoridade e à repressão econômica e política
sobre os outros, transcende qualquer coisa que eu tenha
sofrido.

verve, 35: 113-129, 2019 115


35
2019

Perguntam-me frequentemente por que mantenho


um antagonismo tão inflexível em relação ao governo e
de que maneira eu me encontro oprimida por este. Na
minha opinião, todo indivíduo é mutilado pelo governo.
Este extorque impostos da produção. Cria tarifas que
impedem a troca livre. Coloca-se sempre ao lado do status
quo e das condutas e crenças tradicionais. Entra na vida
pessoal e nas relações pessoais mais íntimas, incitando
os supersticiosos, puritanos e corruptos a impor seus
preconceitos obtusos e servidão moral sobre os sensíveis,
os criativos e os espíritos livres. O governo faz isso por
suas leis de divórcio, por sua censura moral e por milhares
de perseguições mesquinhas àqueles que são honestos
demais para vestirem a máscara moral da respeitabilidade.
Além disso, o governo protege os fortes à custa dos fracos,
fornece tribunais e leis, que os ricos desdenham e que o
pobre deve obedecer. Permite que o rico predador faça
guerras que lhes irão fornecer mercados estrangeiros para
os favorecidos, com prosperidade para os mandatários
e morte a granel para os governados. No entanto, não
é apenas o governo no sentido do Estado que destrói
todo valor e qualidade individual. É todo o complexo de
autoridade e dominação institucional que sufoca a vida.
São as superstições, os mitos, dissimulações, evasões e a
subserviência que sustentam a autoridade e a dominação
institucional. É a reverência a essas instituições incutidas
nas escolas, na igreja e no lar, de modo que o homem acredite
e obedeça sem protestar. Tal processo de desvitalização e
deturpação da personalidade dos indivíduos e de todas as
comunidades pode ter sido parte da evolução histórica,
mas deve ser vigorosamente combatido por toda mente

116 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

honesta e independente em uma era que tenha qualquer


pretensão ao esclarecimento.
É frequentemente sugerido a mim que a Constituição
dos Estados Unidos é a garantia suficiente de liberdade
para seus cidadãos. É obvio que mesmo a liberdade
que ela finge assegurar é muito limitada. A adequação
da garantia não me impressiona. As nações do mundo,
com séculos de leis internacionais por trás delas, nunca
hesitaram em se empenhar na destruição em massa, ao
mesmo tempo que, solenemente, prometem manter a
paz. E os documentos oficiais na América não evitaram
que os Estados Unidos fizessem o mesmo. Aqueles com
autoridade sempre abusaram e abusarão de seu poder, e
as ocasiões em que não o fazem são tão raras como rosas
em icebergs. A Constituição está longe de desempenhar
qualquer papel liberador na vida dos americanos, ela
lhes roubou a capacidade de confiar em seus próprios
recursos ou de pensar por si mesmos. O povo americano é
facilmente ludibriado pela santidade da lei e da autoridade.
Na realidade, o padrão de vida se tornou uniformizado,
rotinizado e mecanizado tal qual a comida enlatada e os
sermões de domingo. Os “100% Americanos”2 facilmente
engolem informações tendenciosas, crenças e ideias
industrializadas. Eles proliferam a partir da sabedoria
transmitida pelo rádio e por revistas baratas de empresas
cujo objetivo filantrópico é vender a América. Estes
homens aceitam os padrões de conduta e de arte da mesma
forma que um comercial de chiclete, pasta de dentes e
graxa de sapatos. Até canções são produzidas como botões
ou pneus de carros — tudo projetado pelo mesmo molde.

verve, 35: 113-129, 2019 117


35
2019

II
Ainda assim, não me desespero com a vida americana.
Ao contrário, sinto que o frescor da perspectiva americana
e as inexploradas provisões de energia intelectual e
emocional que existem no país são uma grande promessa
para o futuro. A guerra deixou em seu rescaldo uma geração
confusa. A loucura e brutalidade presenciadas, a crueldade
e o desperdício desnecessários que quase o destruíram
o mundo, fizeram com que essa geração duvidasse dos
valores transmitidos por seus antecessores. Alguns, sem
nada saber do passado, tentaram criar novas formas de
vida e arte do nada; outros vivenciaram a decadência e
o desespero; muitos, mesmo na revolta, foram patéticos.
Recuaram para a submissão e a futilidade porque lhes
faltava um ideal e estavam atravancados por um senso de
pecado e pelo peso de ideias mortas em que não poderiam
mais acreditar.
Nos últimos tempos, um novo espírito tem se
manifestado na juventude que tem crescido com a
depressão. Este espírito tem um propósito, ainda que
confuso. Quer criar um mundo novo, mas ainda não é
claro como quer alcançá-lo. Por esta razão, a geração mais
jovem pede por salvadores. Tende a acreditar em ditadores
e saudar cada novo aspirante como um messias. Busca
um sistema inequívoco de salvação com uma minoria
sábia para dirigir a sociedade em uma via única para a
utopia. Ainda não notou que deve salvar a si mesma. A
jovem geração ainda não aprendeu que os problemas que
enfrenta só podem ser resolvidos por ela mesma, com base
na liberdade econômica e social em cooperação com as
massas trabalhadoras por seu direito à mesa e aos prazeres
da vida.

118 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

Como já afirmei, minha objeção à autoridade, seja


qual for a sua forma, deriva de uma visão social muito
mais ampla do que qualquer coisa que eu tenha sofrido
em relação a ela. O governo, obviamente, interferiu
na minha plena expressão, assim como faz com outros.
Certamente, os poderes não me pouparam. Batidas
policiais em minhas conferências, durante meus trinta
e cinco anos de atividades nos Estados Unidos, eram
uma ocorrência comum, seguida de inúmeras detenções
e três condenações à prisão. A isso seguiu-se a anulação
da minha cidadania e minha deportação. A mão da
autoridade esteve sempre interferindo em minha vida. E
se, todavia, pude me expressar, foi apesar de toda restrição
e dificuldades colocadas no meu caminho e não por causa
delas. E nisso eu jamais estive sozinha. Em todo o mundo
existiram figuras heroicas para a humanidade que, frente
às perseguições e difamações, viveram e lutaram por seus
direitos e pelo direito da humanidade à livre e ampla
expressão. A América destaca-se pelo grande número de
crianças nascidas em seu território que definitivamente
não deixam nada a desejar: Walt Whitman; Henry
David Thoureau; Voltairine de Cleyre, uma das grandes
anarquistas na América; Moses Harman, pioneiro na
questão da emancipação da mulher de sua subserviência
sexual; Horace Traubel, doce cantor da liberdade, e toda
uma gama de almas corajosas se expressaram de acordo
com uma nova ordem social baseada na liberação de
qualquer forma de coerção. É verdade que tiveram que
pagar um preço alto. Foram privados de grande parte
dos confortos que a sociedade oferece aos inteligentes
e talentosos, mas que lhes são negados se não forem
subservientes. Porém, independente do preço, suas vidas

verve, 35: 113-129, 2019 119


35
2019

foram enriquecidas para além do senso comum. Eu


também me sinto desmesuradamente abastada. E isso
se deve à descoberta do anarquismo, que mais do que
qualquer outra coisa, fortaleceu minha convicção de que
a autoridade embrutece o desenvolvimento humano,
enquanto a liberdade plena o afirma.
Considero o anarquismo a filosofia mais bela e prática
já pensada em sua aplicação para a expressão individual e
a relação que estabelece entre o indivíduo e a sociedade.
Além disso, creio que o anarquismo é demasiadamente
vital e próximo da natureza humana para acabar. Tenho
como convicção que a ditadura, seja à direita ou à
esquerda, nunca funcionará — ela nunca funcionou e o
tempo provará, como já aconteceu. Quando o fracasso de
ditadores modernos e de filosofias autoritárias se tornarem
mais aparentes e a percepção de fracasso se tornar mais
geral, o anarquismo vingará. Deste pondo de vista, a
erupção das ideias anarquistas em um futuro próximo é
muito provável. Quando isto acontecer e produzir efeito,
acredito que a humanidade deixará o labirinto em que se
encontra e, pela liberdade, começará um caminho para
uma vida sã e para a regeneração.
Há muitos que negam a possibilidade de tal regeneração
alegando que a natureza humana não pode mudar. Aqueles
que insistem que a natureza humana permanece a mesma
em todos os tempos não aprenderam nada e esqueceram
tudo. Eles certamente não têm a mínima noção dos passos
significativos nas áreas de sociologia e psicologia que
provam que, sem sombra de dúvidas, a natureza humana é
plástica e pode mudar. A natureza humana não é de modo
algum fixa, e sim fluida e receptiva às novas condições. Se,
por exemplo, o chamado instinto de autopreservação fosse

120 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

tão fundamental como se supõe, as guerras teriam sido


eliminadas há muito tempo, assim como as ocupações
insalubres e perigosas.
Aqui eu gostaria de salientar que não seriam necessárias
mudanças tão grandes, como se supõe, para garantir o
sucesso de uma nova ordem social, como a concebida
pelos anarquistas. Eu penso que o nosso aparato atual seria
suficiente se as opressões artificiais e as desigualdades, bem
como a força organizada e a violência que a sustentam,
fossem removidas.
Diz-se também que, se a natureza humana pode ser
mudada, o amor pela liberdade não poderia ser removido
por adestramento dos corações humanos? O amor à
liberdade é algo universal, e nenhuma tirania pode
erradicá-lo. Alguns ditadores contemporâneos podem até
tentar, e na realidade estão tentando com todas as formas
de crueldade ao seu comando. Mesmo que eles durem
tempo suficiente para levar este projeto adiante — o que
é pouco viável —, há outras dificuldades. Em primeiro
lugar, as pessoas que os ditadores procuram adestrar teriam
de ser subtraídas de toda a tradição em sua história que
pudesse sugerir os benefícios da liberdade. Também seria
necessário isolar estas pessoas do contato com qualquer
outro que lhes pudesse trazer ideias libertárias. O simples
fato, no entanto, de que a pessoa tem consciência de si, de
ser diferente dos outros, cria o desejo de agir livremente.
A vontade de liberdade e autoexpressão é um traço
fundamental e dominante.
Como é habitual quando as pessoas estão tentando
se livrar de fatos incômodos, frequentemente me deparo
com a alegação de que o homem médio não quer a

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35
2019

liberdade, que o amor à mesma existe para poucos, que o


povo americano, por exemplo, simplesmente não liga para
isso. Que o povo americano não carece completamente
do desejo por liberdade foi provado com sua resistência
à antiga Lei Seca3, que foi tão efetiva que até mesmo
os políticos finalmente responderam ao apelo popular e
revogaram a emenda. Se as massas americanas fossem tão
determinadas ao lidar com questões mais importantes,
teriam alcançado muito mais. É verdade, no entanto,
que o povo americano está apenas começando a se
abrir para ideias mais avançadas. Isto se dá por conta da
evolução histórica do país. A ascensão do capitalismo e
de um Estado poderoso são, afinal de contas, recentes
nos Estados Unidos. Muitos ainda creem ingenuamente
na tradição dos pioneiros, quando o sucesso era fácil, as
oportunidades abundantes, e era pouco provável que a
posição econômica do indivíduo se tornasse estática ou
desesperançada.
É verdade, contudo, que o americano médio
continua imbuído dessas tradições, convencido de que
a prosperidade voltará. Mas, diante do fato de alguns
carecerem de individualidade e da capacidade de pensar
de modo independente, não posso admitir que isso seja
motivo para que a sociedade mantenha um berçário
especial para regenerá-los. Insisto que a liberdade, a
liberdade real, uma sociedade mais livre e mais flexível,
é o único meio para o desenvolvimento das melhores
potencialidades do indivíduo.
Concordarei que alguns indivíduos alcançam uma
grande envergadura em sua revolta contra as condições
existentes. Sei perfeitamente que meu próprio
desenvolvimento foi em grande parte em meio à revolta,

122 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

mas considero um absurdo o argumento de que os males


sociais devem ser perpetrados para que se faça necessária
a revolta contra eles. Tal argumento seria uma repetição
da velha ideia de purificação religiosa. Em primeiro lugar,
é falta de imaginação supor que aqueles que mostram
qualidades acima do comum só poderiam se desenvolver de
uma maneira. A pessoa que sob este sistema desenvolveu
traços de revolta poderia facilmente, em um contexto
social diferente, ter se desenvolvido como artista, cientista,
ou em qualquer outra capacidade criativa e intelectual.

III
Hoje, não afirmo que o triunfo das minhas ideias
eliminaria todos os problemas possíveis da vida do
homem para sempre. Acredito que a erradicação dos
atuais obstáculos artificiais ao progresso abriria caminho
para novas conquistas e prazeres da vida. A natureza e
nossos próprios sistemas são aptos a continuar nos
proporcionando dores e lutas suficientes. Por que então
manter o sofrimento desnecessário imposto por nossa atual
estrutura social, com base no mito de que isso fortaleceria
nosso caráter, quando corações e vidas partidas sobre nós,
todos os dias, desmentem tal noção?
Grande parte da preocupação sobre o abrandamento
do caráter humano sob a liberdade vem de pessoas
prósperas. Seria difícil convencer alguém faminto de
que muita comida arruinaria o seu caráter. Quanto ao
desenvolvimento individual na sociedade que anseio,
me parece que com liberdade e abundância saltos
inimagináveis de iniciativa individual seriam liberados.
A curiosidade humana e o seu interesse no mundo são

verve, 35: 113-129, 2019 123


35
2019

indubitáveis para o desenvolvimento individual em


qualquer campo de ação.
Claro que para aqueles imersos no presente é impossível
notar que o incentivo pelos ganhos poderia ser substituído
por outra força que motivasse as pessoas a dar o melhor
que existe nelas. Com certeza, o lucro e os ganhos são
fortes fatores em nosso sistema atual. Eles têm que ser.
Até os ricos possuem uma sensação de insegurança. Quer
dizer, eles querem proteger o que têm e se fortificar.
A motivação pelos ganhos e pelo lucro, entretanto,
está relacionada a outros motivos mais fundamentais.
Quando um homem se proporciona roupas e abrigo, caso
ele seja do tipo "faz dinheiro", ele continua a trabalhar
para garantir o seu status — para receber o prestígio do
gênero admirado por seus colegas. Sob condições de vida
diferentes e mais justas, estes motivos mais fundamentais
podem ser empregados para fins especiais, e a motivação
pelo lucro, que é apenas a sua manifestação, sucumbirá.
Mesmo hoje, cientistas, inventores, poetas e artistas
não são primordialmente movidos pelas possibilidades
de ganhos ou lucros. O impulso de criar é a primeira
e a maior força em suas vidas. Se este impulso falta às
massas de trabalhadores, isso não é de modo algum
surpreendente, uma vez que a sua ocupação é uma rotina
mortífera. Sem nenhuma relação com suas vidas ou
necessidades, o trabalho é executado nos mais deploráveis
espaços, ao comando daqueles que têm o poder de vida e
morte sobre as massas. Por que, então, deveriam eles se
sentir impulsionados a fazer mais do que o absolutamente
necessário para garantir sua miserável existência?
Nas artes, ciências, literatura e em áreas da vida
que acreditamos ser extirpadas de alguma maneira de

124 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

nosso cotidiano, somos dados à pesquisa, experimentos


e inovação. Porém, nossa tradicional reverência à
autoridade é tão grande que um medo irracional
emerge na maioria das pessoas quando se sugere que
experimentem. Certamente, há ainda razões maiores para
a experimentação no campo social do que no científico.
Espera-se, assim, que à humanidade ou a uma parte
dela seja dada a oportunidade, em um futuro não muito
distante, de tentar esta vida afortunada e se desenvolver
sob a liberdade que corresponde às etapas iniciais de uma
sociedade anarquista. A crença na liberdade pressupõe
que os seres humanos são capazes de cooperar. Mesmo
agora eles o fazem em uma dimensão surpreendente, do
contrário, a sociedade organizada seria impossível. Se os
instrumentos com os quais os homens podem prejudicar
uns aos outros, tal como a propriedade privada, fossem
eliminados, e se o culto à autoridade pudesse ser excluído,
a cooperação seria espontânea e inevitável, e o indivíduo
descobriria sua maior vocação para contribuir e enriquecer
o bem-estar social.
Somente o anarquismo ressalta a importância do
indivíduo, suas possibilidades e necessidades em uma
sociedade livre. Em vez de dizer que ele deve se submeter
e venerar as instituições, viver e morrer pelas abstrações,
partir seu coração e impedir seu próprio desenvolvimento
em nome de tabus, o anarquismo insiste que o centro
de gravidade na sociedade é o indivíduo, que ele deve
pensar por si mesmo, agir livremente e viver plenamente.
O objetivo do anarquismo é que cada indivíduo no
mundo possa fazer isso. Se ele puder se desenvolver livre
e plenamente, se livrará da interferência e opressão de
outros. A liberdade é, desta forma, o alicerce da filosofia

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35
2019

anarquista. Obviamente, isto não tem nada a ver com o tão


vangloriado “individualismo sólido”4. Tal individualismo
predatório é na realidade murcho, e não sólido. Ao menor
sinal de perigo, ele corre para os braços do Estado e chora
pela proteção do exército, marinha ou qualquer outro
aparelho repressivo que estiver sob o controle do Estado.
Seu “individualismo sólido” é simplesmente uma das
desculpas que a classe dominante usa para ampliar seus
negócios ilimitadamente e para a extorsão política.
Sem se importar com a tendência atual em direção
aos brutamontes, aos Estados totalitários ou a ditaduras
de esquerda, minhas ideias permanecem inabaladas. Na
realidade, elas foram fortalecidas pela minha experiência
pessoal e pelos acontecimentos mundiais no decorrer
dos anos. Não vejo razão para mudar, uma vez que não
acredito que a tendência à ditadura possa ser bem-
sucedida na solução de nossos problemas sociais. Assim
como no passado, ainda insisto que a liberdade é a alma do
progresso e essencial em cada fase da vida. Considero-a
o mais próximo que poderíamos postular de uma lei de
evolução social. Minha fé é no indivíduo e na capacidade
de indivíduos livres se unirem.
O fato do movimento anarquista, pelo qual me
empenho há tanto tempo estar, de certa maneira,
estagnado e obscurecido por filosofias autoritárias e
coercitivas me preocupa, mas não me desespera. Parece-
me um fato de grande importância que muitos países se
neguem a receber anarquistas. Os governos sustentam
que, enquanto partidos à direita ou à esquerda podem
defender mudanças sociais, estes ainda preservam a ideia
de governo e autoridade. Somente o anarquismo rompe
com ambos e propaga a rebelião irredutível. A longo

126 verve, 35: 113-129, 2019


verve
Minha vida valeu a pena?

prazo, portanto, o anarquismo é sempre o mais mortal dos


inimigos do atual regime do que outras teorias sociais que
agora clamam pelo poder.
Deste ponto de vista, penso que minha vida e trabalho
foram bem-sucedidos. O que geralmente se tem como
sucesso — aquisição de bens, conquista do poder ou
prestígio social —, considero fracassos deploráveis.
Desconfio quando ouço que um homem chegou lá. Isso
significa que ele está acabado, que seu desenvolvimento
parou em determinado ponto. Sempre me esforcei para me
manter em um estado de fluxo e crescimento contínuos,
e não me estagnar em um nicho de autossatisfação. Se
tivesse que viver minha vida novamente, assim como
qualquer um, mudaria alguns pequenos detalhes. Mas,
em minhas ações e atitudes mais importantes, viveria
exatamente como fiz. Certamente eu trabalharia pelo
anarquismo com a mesma convicção e confiança em seu
triunfo final.

Tradução do inglês por Eliane Carvalho.

Notas
1
Publicado originalmente em Harper’s Monthly Magazine, Vol. CLXX,
dezembro 1934. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/
emma-goldman-was-my-life-worth-living. Apesar de não ser uma revista
anarquista, a Harper’s Magazine, fundada em 1890 em Nova York, tem como
tradição publicar novas perspectivas relativas à política, sociedade, arte e
cultura (N.T.).
2
O termo original em inglês, hundred-percenter, refere-se aos
ultranacionalistas estadunidenses (N.T.).

verve, 35: 113-129, 2019 127


35
2019

3
A Lei Seca, nos Estados Unidos, que proibia a produção, importação,
transporte e venda de bebidas alcoólicas no país, estendeu-se entre os anos
de 1920 e 1933, quando foi revogada pelo presidente Franklin Roosevelt
(N.T.).
4
O termo em inglês, Rugged Individualism, foi utilizado publicamente pela
primeira vez nos Estados Unidos durante o discurso de posse do presidente
republicano Herbert Hoover, em 1928, um ano antes do início da chamada
Grande Depressão. O termo reproduz a posição liberal do individualismo
e a crença na oportunidade estadunidense, diante da crescente interferência
estatal nos governos da Europa (N.T.).

Resumo
Aos 65 anos Emma Goldman, faz uma breve análise do
contexto político e do movimento anarquista no momento em
que escreve. Apesar da ascenção de regimes fascistas na Europa
e da ditadura soviética na URSS, Goldman continua atenta,
contudente, sem se deixar iludir ou desesperar.
Palavras-chave: Emma Goldman, totalitarismo, movimento
anarquista.

Abstract
At the age of 65, Emma Goldman gives a short analysis of the
political context and the anarchist movement from the time
she writes. In spite of the rise of fascist regimes in Europe, and
the soviets dictatorship in USSR, Goldman stays attentive
and forceful, with no illusions or despair.
Keywords: Emma Goldman, Totalitarianism, Anarchist
Movement.
Was My Life Worth Living?, Emma Goldman.
Recebido em 4 de fevereiro de 2019. Confirmado para
publicação em 15 de abril de 2019.

128 verve, 35: 113-129, 2019


v
dossie
v
sakae osugi
35
2019

sakae ôsugi e a expansão da vida

luíza uehara

Sakae Ôsugi percorreu parte da Ásia e da Europa.


Travou lutas, atirou-se em paixões e não deu sossego,
nem mesmo aos anarquistas. Um de seus alvos foram
os costumes japoneses calcificados na obediência ao
Imperador e à nação. Ele era insuportável aos guardiões
da ordem.
Sua vida foi interrompida aos 38 anos. Em 1923, após
um terremoto devastar a cidade de Tóquio e região, a
polícia capturou Ôsugi e Noe Ito, sua companheira, e seu
sobrinho de 7 anos que passeava com eles. Espancou e
estrangulou os três atirando os restos mortais em meio
aos escombros do terremoto; fariam o mesmo com tantos
outros.
As perseguições a Ôsugi não cessaram até mesmo
quando seu corpo virou pó. A fim de que sua alma nunca
descansasse, segundo as crenças japonesas, policiais à
paisana invadiram sua cerimônia fúnebre e roubaram suas
cinzas. Jamais foram encontradas.

Luíza Uehara é pesquisadora no Nu-Sol e doutoranda em Ciências Sociais na


PUC-SP. Contato: luiza.uehara@gmail.com.

130 verve, 35: 130-157, 2019


verve
Dossiê Sakae Ôsugi

Ôsugi era um perigo para as devoções. Viveu em


constante luta para delas se desfazer e não temeu
incomodar até mesmo alguns anarquistas. Desde criança,
Ôsugi foi marcado pela submissão japonesa. Era filho
de um ex-samurai, devoto a um senhor, e que tentou
incutir nele o dever de defender o Imperador Meiji e de
devoção ao Império do Japão. Desde o início da Era Meiji
(1867-1912) não havia mais samurais, e sim, militares
organizados em um exército. Obrigado a seguir os passos
de seu pai, Ôsugi foi enviado para a escola de cadetes.
Nesta escola era submetido a constantes punições,
como reclusão e contínuas surras. Isso o tornou gago —
característica que se manifestou algumas vezes quando
mais velho, nas várias passagens pela prisão.
Ôsugi foi expulso várias vezes da escola de cadetes,
mas por influência seu pai ele era readmitido. A derradeira
expulsão deveu-se a uma briga com outro garoto que,
armado com uma faca, furou-o repetidas vezes. Ôsugi
foi levado ao hospital onde ficou internado por mais de
duas semanas e nunca mais voltou a pisar naquela escola.
Levou na pele, marcada por cicatrizes de surras, o repúdio
a qualquer policial. Anos mais tarde, tomou parte em uma
manifestação para comemorar a soltura da prisão de um
de seus amigos, agitou uma bandeira vermelha e negra e
foi preso. Enquanto estava sendo contido, não suportou
e, sem forças para livrar-se, instintivamente urinou sobre
um policial na tentativa de soltar-se. Seria somente uma
das muitas vezes que seria espancado.
Aos 18 anos, em 1903, foi a Tóquio para estudar francês.
A capital do país concentrava diferentes lutas. Pelas suas
ruas percorriam estrangeiros, cristãos, socialistas, liberais

verve, 35: 129-157, 2019 131


35
2019

e anarquistas. Nos passeios pela cidade, Ôsugi encontrou


com a Heimin Sha (Sociedade da Plebe)1, associação que
aglutinava anarquistas e socialistas na luta contra a Guerra
Russo Japonesa. Passou a frequentar as suas reuniões na
associação, e lá conheceu os libertários Shusui Kôtoku,
Kanson Arahata, Jun Tsuji, Sugako Kanno, Kyûtarô
Wada, Sen Katayama, entre outros.
Em meio aos debates calorosos na Heimin Sha, Ôsugi
lançou-se na impressa libertária. Por suas publicações,
seria preso algumas vezes. Outras tantas o seria por tomar
parte em manifestações e ações diretas, como no famoso
Incidente do Telhado, de 1908, quando a polícia invadiu
uma reunião que realizava com seus amigos, alegando que
estavam proibidos os discursos socialistas e anarquistas.
Subiram ao telhado da casa para fugir, e do alto, pulando
para outros telhados, bradar passaram a alguns resultados
da conversa entre eles. Foram presos assim que alcançados
pela polícia.
Entre 1904, um ano após a sua chegada a Tóquio, até
1910, Ôsugi passou mais de três anos encarcerado. A
sobrevivência na prisão foi relatada em suas memórias,
o único de seu escrito publicado em português2. Ali,
registrou suas aflições, esperanças, saudades, fome e dores.
Mesmo diante das perseguições e do assassinato de seus
amigos no Incidente de Alta Traição3, fundou periódicos,
estabeleceu conexões com libertários pelo planeta e não
temeu encarar a moral de alguns anarquistas quando
se envolveu em um triângulo amoroso com Kamichiko
Ichiko e a libertária Noe Ito; tampouco deixou de tomar
parte em manifestações contrárias ao Imperador Meiji,
como a Revolta do Arroz, que agitou o Japão em 19184.

132 verve, 35: 129-157, 2019


verve
Dossiê Sakae Ôsugi

Em suas fugas e em uma luta incessante contra a


subserviência, assim como Mikhail Bakunin, Ôsugi
escreveu artigos esparsos. Certa vez, Ôsugi sublinhou
sobre o anarquista russo: “Kropotkin descreveu Bakunin
como um homem inocente que almejava paz e liberdade.
Mas essa descrição é impossível de me atrair em Bakunin.
Eu prefiro os textos que descrevem Bakunin como um
homem que ruiu a paz e a ordem entre os anarquistas e
como um homem que semeou mesmo entre os anarquistas
a rebeldia nas relações. Eu prefiro os textos que descrevem
Bakunin como um revoltado por natureza, um anarquista
comum, que viveu irresponsavelmente. Quando eu leio
essa descrição de Bakunin, eu me sinto encontrando um
velho amigo. Quando eu relembro a vida de Bakunin, eu
só posso sorrir para mim mesmo”5.
Até mesmo sua biografia e o livro póstumo My
escapes from Japan6 são a reunião de escritos publicados
na imprensa operária. Como o anarquista russo, e tantos
outros, seus escritos estão reunidos em uma coleção de
6 tomos chamada Ôsugi Sakae zenshu (Obras completas
de Sakae Ôsugi)7. Ali, é possível encontrar seus escritos e
acompanhar também a sua produção em periódicos. Um
dos que fundou foi o Kindai Shisô (Pensamento Moderno),
que discutia anarquismos e o chamado pensamento
ocidental, iniciado em 1912, e interrompido dois anos
depois. O jornal foi publicado ainda em meio ao boicote
de certos anarquistas a seus escritos por suas relações de
amor livre com Noe Ito.
Os textos apresentados aqui remontam ao Kindai
Shiso, e foram publicados entre 1912 e 1914. Neles, Ôsugi
apresentou o pensamento de Max Stirner, na época ainda
não traduzido para o japonês. Atentou para a afirmação

verve, 35: 129-157, 2019 133


35
2019

da potência do eu em uma sociedade que prezava pela


uniformidade na subserviência ao Imperador. Rompeu
com qualquer ideia fixa e não se dispunha a um ideal para
governar sua vida, fosse a profecia da revolução socialista
ou a devoção ao Império japonês.
A leitura de O único e sua propriedade foi vital para que
desenvolvesse a noção de expansão da vida, presente nos
artigos que seguem com “A verdade da conquista” e “A
expansão da vida”. Neles, Ôsugi afirma o eu e a expansão da
vida enquanto uma recusa à construção de uma harmonia
na submissão ao Imperador, à pátria, ao pai, ao professor
e ao policial. Declara o ódio e a destruição enquanto uma
beleza. Para ele só há beleza no caos. A harmonia não passa
de uma mentira construída pela verdade da conquista, ou
seja, com massacres, instituições, instrução e Estado.
Hoje, diante da renovação da obediência do súdito
japonês enquanto um empreendedor de si que se entrega
à nação e à empresa, seus escritos permanecem atuais.
É preciso atiçar, como diria Ôsugi. Fazer eclodir o
inesperado da revolta. E, diante de tanta subserviência
por todos os cantos do planeta, aos ouvidos atentos, Ôsugi
afirma o ódio e a paixão para irromper a afirmação do eu,
a expansão da vida.

134 verve, 35: 129-157, 2019


verve
Dossiê Sakae Ôsugi

Notas
1
Fundada por Toshihiko Sakai e Shusui Kôtoku. Debatia a abertura
dos portos japoneses, a guerra, e trazia escritos anarquistas e socialistas.
Era disponível a qualquer interessado, por isso, sua formação mudava
constantemente. Ali também era editado o jornal Heimin Shinbun ( Jornal
da Plebe), um dos principais periódicos do período e que contava com
traduções e artigos dos integrantes da associação.
2
Sakae Ôsugi. Memórias de um anarquista japonês. Tradução de Ludimila
Hahimoto Barros. São Paulo, Conrad, 2002.
3
Ocorrido em 1910, quando um grupo de anarquistas e socialistas foram
acusados de planejar o assassinato do Imperador. 25 homens e uma mulher
foram presos. 12 foram condenados à forca, outros 12 à prisão perpétua e
os dois restantes a 8 e 11 anos de prisão, respectivamente. Anarquistas nos
EUA manifestaram-se contra a decisão do tribunal com ameaças de morte
ao Imperador estampadas no Consulado japonês, e a revista Mother Earth,
editada por Emma Goldman, engajou-se em uma campanha para evitar o
assassinato dos militantes. Entre os executados estavam Shusui Kôtoku, o
monge zen e anarquista Gudo Uchiyama, e a anarquista Sugako Kanno.
4
A Revolta do Arroz foi o ápice de uma série de manifestações que ocorreram
desde 1905. Diante da miséria no campo e na cidade, não houve negociação
possível. Os enfrentamentos tiveram como força motriz o aumento do grão.
Não havia reivindicações por maior presença do Estado ou algo similiar.
Segundo a leitura de Ôsugi, a revolta tomou contornos de uma tentativa de
destruição do governo. Estima-se que 10 milhões de pessoas, em um Japão
de 56 milhões, tomaram parte nas manifestações, greves e enfretamentos.
As perseguições intensificaram-se e, após meses, milhares foram capturados,
sendo 7000 condenados à prisão perpetua. Ôsugi estava entre os presos, mas
seria solto meses depois.
5
Sakae Ôsugi apud Hikaru Tanaka.“Bakunin and Japanese Anarchism”. 2012.
Disponível em: http://kansaianarchismstudies.blogspot.com/2014/07/
bakunin-and-japanese-anarchist.html. Acesso em 02/05/2019.
6
Cf. Sakae Ôsugi. My escapes from Japan. Tradução de Michael Schauerte.
Tokyo, Doyosha, 2014.
7
Cf. Sakae Ôsugi. Ôsugi Sakae zenshu. Vol. 1-6. Tokyo, Gendai shichô, 2014.

verve, 35: 129-157, 2019 135


35
2019

o único, pensamento de max stirner

I
Não há muito o que se dizer acerca do fato de que a
raiz do pensamento moderno reside no indivíduo. E, como
se autorizado por este indivíduo, rapidamente Nietzsche
relatou ao Japão acerca do ego. No entanto, ao falarmos
de Nietzsche, dizem que ele plagiou seu pensamento de
um estudioso pioneiro, Max Stirner, uma vez que não há
quase nada de sua autoria.
Não acredito que Nietzsche tenha sido plagiador
de Stirner. Também não penso que Nietzsche tenha
aprendido diretamente dos escritos de Stirner. Nietzsche
era, em suas próprias palavras, uma pessoa que “vivia
em seu próprio mundo”. Mas não há dúvida de que o
trabalho de Stirner tenha exercido grande influência sobre
Nietzsche, ainda que indiretamente. Na verdade, existe
bastante afinidade entre as obras literárias dos dois.

II
Stirner era um pseudônimo. Ele se chamava Johann
Kaspar Schmidt. Nasceu em 25 de outubro de 1806,
em Bayreuth, cidade que pertencia à região da Prússia e,
hoje pertence à Baviera1. Seu pai era fabricante de flautas
e morreu pouco depois de seu nascimento. Três anos
depois, sua mãe casou-se com o farmacêutico (Heinrich)
Ballerstedt, e mudaram-se para a pequena cidade de
Kulm, no oeste prussiano. Ali ele ainda era Schmidt.

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verve
Dossiê Sakae Ôsugi

Schmidt recebeu sua educação elementar, mas, aos doze


anos, retornou a Bayreuth e frequentou um famoso ginásio
da região. Ali, ele permaneceu por sete anos. Além disso,
entrou na Universidade de Berlim onde, por dois anos (de
1826 a 1828), estudou Filologia e Teologia através de Bouk,
Hegel, Marheineke, Ritter e Schleiermacher, entre outros.
Pouco depois, ele passou um período na Universidade
de Erlangen, assistindo a palestras de professores como
Wiener. Entretanto, abandonou a faculdade e passou
um ano viajando pelo país. Então, passou um ano em
Krumm por questões familiares. Também passou outro
ano em Konigsberg. Neste período, voltou a frequentar
a faculdade, e passou a estudar Filologia e Filosofia. Em
outubro de 1833, de acordo com os professores Bouk,
Rachmann e Mihele, mesmo tendo passado um tempo
afastado por problemas de saúde, ele concluiu seus estudos
como estudante da faculdade.
Pouco tempo depois, este Schmidt passou a se chamar
Max Stirner e, com exceção de uma pequena autobiografia
feita por ele em 1834, muito pouco foi revelado dele ao
mundo. Mesmo após a sua morte, sua história continua
encoberta pela escuridão.
Depois de terminar a faculdade, passou a ensinar em
uma escola de nível médio e em uma escola feminina em
Berlim, mas não há registros de que tenha comentado
sobre seu pensamento do eu ali. Neste meio tempo, ele
conseguiu arrumar uma esposa, mas foi abandonado cerca
de seis meses depois. Teve problemas com a mãe, que ficou
louca, mas conseguiu outra esposa, depois de seis anos.
Esta companheira também o abandonou após três anos.

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Em 1844, a obra de Max Stirner, O Único e sua


Propriedade2, foi publicada por Otto Wigand, em Leipzig.
Em certo ponto, as críticas foram tão vigorosas que o livro
chegou a ser proibido. No entanto, com a aproximação
cada vez maior das Revoluções de 1848, sua reputação se
extinguiu por completo.
Ao mesmo tempo em que Stirner lançava seu livro, os
portões da escola em que ensinava foram fechados. Por
meio da caridade de Wigand, ele passou a fazer traduções
a fim de comprar comida e roupas; após esse momento
de pobreza, aprendeu a sobreviver. E então, em 1850, foi
preso por suas dívidas.
Assim, acabou por ser esquecido pelo mundo e, em
25 de junho de 1866, morreu sem ser lamentado por
ninguém. Tinha 49 anos e oito meses.

III
Para dar o devido valor ao Único de Stirner, é preciso
voltar a Hegel e a alguns de seus sucessores. Hegel era de
uma escola de pensamento restauradora. Por essa razão,
o pensamento que pregava em Berlim era conservador e
reacionário. Assim, a maioria de seus seguidores correram
para o autoritarismo. Apesar disso, seu pensamento
filosófico era bastante revolucionário. Desta forma, para
o resto dos estudantes, a dialética, que pode ser chamada
de uma espada de dois gumes, forçou uma batalha de
pensamentos pelo domínio do autoritarismo.
O primeiro exercício foi tirar as fundações da vida
social da Teologia. A origem das religiões foi considerada
histórica. Houve uma crítica filosófica da própria base da

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verve
Dossiê Sakae Ôsugi

religião. Surgiu um ataque à moralidade do Cristianismo.


A Vida de Jesus, de Strauss, Crítica ao Evangelho, de Bruno
Bauer, e A Essência do Cristianismo, de Feuerbach, são
as três obras mais representativas da rebelião contra o
autoritarismo da Igreja.
Ao escrever que “a divindade (o coração de Deus) não
é nada além da sombra da pessoa refletida nos céus, e isso
não exclui os atributos pertencentes às pessoas”, Feuerbach
transformou Teologia em Antropologia e o Cristianismo
em Humanismo.
Entretanto, uma vez que a espada da Dialética sai
da bainha, ela não pode ser contida meramente pela
convocação de uma autoridade religiosa. É neste ponto
que entra O Único e sua Propriedade, de Max Stirner. Stirner
não apenas derrubou os ídolos humanos de Feuerbach,
mas, além disso, construiu o ensinamento do “único” e do
“eu”. Ele pode ser considerado um anticristo. Ao mesmo
tempo, sua filosofia era antimoral e antissocial. Rejeitava
qualquer autoridade além do “único”.

IV
“Há um fantasma em sua cabeça... Há uma fissura
dentro do seu cérebro! Você tem uma ideia fixa. Assim
como dizem sobre a autoridade das pessoas inertes, assim
como dizem das autoridades morais que não movem um
único dedo. Sendo possuído por essa ideia fixa, confinado
em um hospício, você, um lunático de dar dó”.
Esta ideia fixa, essa ideia fantasma, mais especificamente
algo chamado sociedade, moralidade ou religião, nas
palavras de Stirner, são como um vampiro que sugam

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o sangue dos vivos. Enquanto não se conseguir matar


o coração desse vampiro por completo, enquanto não
se recusar a submissão a isso, não é possível obter esta
liberdade. Assim sendo, esta liberdade não pode ser
alcançada pela metade, sem dar tudo de si mesmo, sem ir
até o fim. Portanto, quando todos os laços da sociedade são
rompidos, tudo o que resta é o eu do indivíduo. Somente
aquele ser único.
“Eu sou o único. Não existe nada além de mim”. Coisas
como leis morais não passam de ilusão. Ainda assim,
aqueles portadores dos ensinamentos que guiam as pessoas
ao redor do mundo, em nome desta ilusão, aumentam cada
vez mais o barulho de suas flautas e tambores, deixando
que as pessoas dancem em inocente ignorância.

V
O individualismo de Stirner é radicalmente extremo,
assim, ele não desaprovava o chamado coração altruísta.
Ele se recusava a enlaçar este conceito à natureza (humana)
de maneira obrigatória ou compulsória.
“Eu amo as pessoas. No entanto, este é um amor
consciente e que parte do egoísmo. Porque faz com que
me sinta bem. Porque me faz feliz. Desta maneira, eu não
penso (me preocupo) em absoluto se estou sacrificando uma
pessoa. É mais fácil conquistar o coração das pessoas com
gentileza do que cometendo crueldades”.“Eu simpatizo
com cada sentimento. A agonia (do outro) dói igualmente
em mim. O prazer (do outro) me faz igualmente feliz.
Eu poderia matar estes sentimentos em um segundo, mas
não sou capaz de fazer coisas como ignorar uma agressão

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Dossiê Sakae Ôsugi

óbvia. Isto porque não quero perder a calma da minha


consciência ou meu sentimento de perfeição. Nós não
somos pecadores, como ensina a religião. Somos todos
perfeccionistas”.
“Assim como acontece com as flores, não existe algo
como paraíso ou chamado divino. Eu não pertenço a
ninguém além de mim mesmo. Eu vivo apenas para mim
mesmo, aproveitando o mundo, e não peço nada além do
direito de viver feliz”.
“Sendo assim, tudo que consigo obter e tudo que
consigo manter, tudo me pertence; é minha propriedade.
E para isso, todos os meios se tornam normais para mim.
No entanto, o que me dá esse direito é somente o meu
poder”.
“Aqui temos um cachorro, olhando para outro que está
com um osso; se ele se controla em silêncio, é porque se
considera fraco demais. As pessoas respeitam os ossos
das outras pessoas. Isso passa como sendo humanidade.
E o que vai contra isso é chamado de ‘barbaridade’ ou
‘egoísmo’. Que sejam organizados grupos egoístas. É
preciso reclamar, por exemplo, quando uma propriedade
é roubada”.
Organize grupos de ideologia egoísta. É o que se
precisa para reclamar de propriedades roubadas, entre
outras coisas.

VI
Por quarenta anos, esta obra-prima de Stirner ficou
esquecida num canto da prateleira, coberta em poeira.
Mas seu pensamento avançou. Finalmente, este autor

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desconhecido e solitário veio a ser reconhecido como um


dos mais intensos pensadores de sua era. Além disso, sabe-
se que as reclamações feitas pelas pessoas hoje estavam já
corretamente descritas ali. No início de 1882, uma nova
edição alemã foi lançada. Por fim, também traduções
em francês, inglês e italiano. Também foi traduzido para
muitas outras línguas da Europa. E, da mesma forma,
John Henry Mackay, depois de mais dez anos de trabalho,
lançou Vida e Obra de Max Stirner e também Coleção
de Ensaios de Max Stirner, dando um pouco mais de
conveniência aos novos pesquisadores.
Eu reconheço que existem muitas falácias na discussão
sobre Stirner. Mas não vou falar sobre elas agora. No
entanto, ao ver o estado em que a nação alemã se encontra,
no momento em que esse livro é escrito, não posso deixar
de pensar no quão profundo é seu valor histórico e
filosófico.
Entre todas as obras do partido oposicionista de Hegel
não é possível encontrar uma revolta tão feroz contra a
disciplina severa e sufocante da Prússia de 1848. Nem
mesmo entre o chamado liberalismo da época, aqueles
covardes que falavam mal por não saberem requerer seus
direitos através da força.
A liberdade exigida pelos liberais, em sua visão, era
apenas como esmolas oferecidas a mendigos. Essas
chamadas liberdade e propriedade tinham que ser
conquistada acima de tudo pelas suas próprias forças. J. L.
Walker, que escreveu o prefácio da tradução estadunidense
da obra de Stirner, disse que Stirner fundamentou sua
filosofia na liberdade política, entre outras coisas, mas isso
não passa de uma incompreensão do verdadeiro espírito

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Dossiê Sakae Ôsugi

da coisa. Para Stirner, a chamada liberdade política não


deveria ser tratada levianamente. Para ele, se as pessoas
começam a mendigar pelo que podem, é porque se
recusam a aceitar tal liberdade. As pessoas não sabem obter
suas coisas pelo uso da própria força, por isso são esses
chamados liberais, que mendigam pelos próprios direitos,
por liberdade e independência, os que, na verdade, traçam
as regras mais abusivas.
Um individualista com medo da violência, que se
esconde com medo da sociedade — eu odeio esse tipo de
compaixão. Neste ponto, eu me preocupo particularmente
em relação à sociedade japonesa contemporânea, pois
acho necessário explicar a ela vez após vez sobre filósofos
individualistas de força como Stirner e Nietzsche.

(Pensamento Moderno, 1º de dezembro de 1912)

a verdade da conquista

Dentro dos escritos de Chogyu, encontramos a


seguinte frase, tirada de um dos livros de Brandis:
“Ao menos quatro das maiores civilizações europeias
possuem nomes estrangeiros. O nome da França vem
do povo franco, que vivia na margem oeste do rio Reno;
embora seus ancestrais sejam celtas, o nome não tem
qualquer relação com eles. O nome da Inglaterra vem

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originalmente de uma região da Alemanha, mas os anglo-


saxões não possuem nenhum vínculo ancestral com eles.
O nome da Rússia tem sua origem bem mais ao norte;
é uma corruptela de Rosel, uma região da Escandinávia.
Prússia vem do nome de um bárbaro eslavo chamado
Prussian; na metade do século XX, ela passou a fazer parte
da Alemanha”.
Estes fatos podem ou não estar relacionados ao que
tentarei descrever aqui a partir de agora. Mas, quando
leio isto, sinto-me fortemente compelido a analisar mais
profundamente certos fatos sociais.
“É a dominação!”, bradei. A sociedade, ao menos aquela
da qual as pessoas de hoje falam, começou a dominar.
Karl Marx e Friedrich Engels escrevem no início de seu
Manifesto do Partido Comunista: “a história da origem de
toda sociedade é uma história de luta de classes”. Mas,
ao mesmo tempo, antes da luta de classes haviam as lutas
tribais. E é aí que entra a realidade da chamada conquista.
Imagina-se que, quando a raça humana ainda vivia
como animais, provavelmente residia nos trópicos. Além
disso, vários fatos apontam o Sul da Ásia como tendo visto
o início da humanidade. Aqui3, a raça humana primitiva,
sob o ar morno da natureza abundante, mesmo vivendo
ainda como animais, foi capaz de modificar o ambiente de
certa forma, proteger-se e enganar predadores carnívoros
e se multiplicar a uma velocidade extraordinária. Assim,
à medida em que a população de um determinado grupo
conectado por relações consanguíneas aumentava, se
ocorresse um confronto entre eles, eles migravam para
qualquer direção que desejassem. Desta forma, por um
longo tempo, continuou a haver paz e tranquilidade entre

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Dossiê Sakae Ôsugi

os homens primitivos. Desde muito tempo atrás, este


período é chamado de “Era de Ouro”.
Este grupo, cada vez mais distante, talvez até mesmo
em uma ilha, sem contato com outros grupos e, portanto,
sem conflitos, prosseguia com sua existência quase bestial.
Ainda hoje restam algumas destas raças primitivas em
várias partes do mundo. No entanto, entre os grupos
que não se afastaram muito do centro, além do rápido
crescimento populacional, contatos mútuos e conflitos
também ocorreram. E aí, da perda da liberdade até então
pacífica de viver quase como um animal, nasce a chamada
civilização. É o começo da História.
Enquanto isso, cada um desses grupos perdeu vestígios
e evidências de uma origem comum, passou a ter idiomas,
costumes e religiões diferentes, formando grupos étnicos
completamente distintos. E, assim, o contato entre essas
etnias passou a virar conflito e guerra, elas se tornaram
inimigas brutais.
Este cenário se tornou um poderoso estímulo para o
surgimento de invenções, principalmente na produção
de métodos de ataque e defesa. Tanto hoje quanto no
passado, mais do que medir a bravura de um indivíduo, a
questão principal da guerra era a superioridade mecânica
do armamento. E assim o espírito militar se desenvolveu.
Líderes tribais fortemente ambiciosos começaram a
competir entre si.
Gunplowitz e Raffenhofer demonstram habilmente
que a sociedade foi criada através do confronto entre estas
tribos. O primeiro passo do conflito tribal é a dominação
de uma tribo por outra. A tribo que possuir melhores
armamentos e talentos estratégicos leva a vitória e se

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torna uma dominadora. E a outra tribo cai na posição de


dominada.
Através desta dominação, duas raças completamente
diferentes passam a ter um contato íntimo. Porém,
não conseguem se assimilar em absoluto. Em outras
palavras, esta sociedade fica dividida em dois extremos.
O conquistador sempre despreza os conquistados. Usa
de todas as formas para escravizá-lo. Os conquistados
se submetem por falta de opção e não reconhecem nada
além da violência do conquistador. Desta forma, estes dois
grupos étnicos, que se encaram com antipatia e hostilidade,
formam os polos opostos da sociedade.
Porém, a desigualdade entre estas duas etnias ia além
da posição social. Como dito antes, estas etnias eram
completamente diferentes originalmente. Elas usavam
línguas distintas. Adoravam deuses diferentes. Possuíam
cerimônias e formas de adoração distintas. Tinham
costumes, hábitos e organização distintas. E a tribo
dominada, na verdade, no lugar de perder algumas destas
características, fica na esperança da exterminação do outro.
A tribo dominada permanece com um absoluto desprezo
por tudo que pertence a seu captor. Porém, não consegue
assimilar isto para si.
Aqui, no lugar da harmonização entre estes dois polos,
uma vez que conquistadores não subjugam realmente
os conquistados, vários sistemas sociais surgiram. As
tributações e despesas com a força militar a cada investida
e suas derrotas parciais finalmente se tornaram um
grande fardo aos conquistadores. Embora cada sujeito
que se rebelasse contra o sistema fosse severamente
punido, ele ficava temporariamente orgulhoso com

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Dossiê Sakae Ôsugi

a vitória. Seria, entretanto, trabalhoso controlar cada


pessoa separadamente desta forma; assim sendo, houve a
demanda por um tipo unificado de governo.
De modo a controlar os atos de violação cometidos
com maior frequência, estabeleceu-se certas regras gerais.
E, uma vez que entendemos como este método era
econômico, decidimos estabelecer uma regra geral para
outros tipos de atos diversos desta mesma forma. Por esta
razão, hoje finalmente temos as regras da lei estabelecidas.
E, enquanto não violar estas regras, alguma liberdade é
dada ao povo conquistado. Em outras palavras, é obrigação
do governado cumprir com esta lei, e a não violação desta
lei faz com que seus direitos sejam reconhecidos.
Ao mesmo tempo, ocorreu também a chamada
educação do povo dominado. Para manter a desigualdade
social entre ambos, originalmente a intenção era plantar e
manter no coração do dominado a ideia de que ele era parte
de uma tribo inferior em todos os aspectos. Se o dominado
colocasse a mínima suspeita sobre isto, produziria uma
grande desordem no bem-estar e na ordem social. Neste
ponto, várias políticas foram realizadas. Este foi o começo
da chamada educação nacional, e várias formas de táticas
de engodo se fundamentaram aí.
Entretanto, esta situação não vai aparecer por si só. A
dominação de uma raça pode significar uma coincidência,
ou que a tribo era pobre na arte da guerra. De outro
lado, é possível que a raça dominadora fosse muito mais
excepcional. Então, para fugir das dificuldades de governar
com características tão diferentes, os dominadores
passam a pedir a ajuda dos dominados. Uma vez que
estes dominados também ganham algum privilégio,

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eles concordam facilmente com isto. Ou seja, os mais


informados se juntam ao patamar dos dominadores e
cooperam-no projeto de dominação. E, desse jeito, direitos
e deveres se tornam de certa forma recíprocos entre as duas
classes, entre dominadores e dominados. Esta foi a forma
perfeita do dominador convencer os dominados de que
não havia desigualdade. Isto é o que dizem os intelectuais.
Mas, veja bem, a minha vila não é a mesma vila
dos conquistadores. Ao perceberem seu erro, eles nos
concederam o direito de voto. Todos são iguais perante
a lei.
Além disso, em diversas circunstâncias, se de um lado
eles recebiam várias concessões dos dominadores, de
outro lado, caíam em um orgulho vazio e desistiam de
lutar contra a dominação. Então, entre estas duas classes,
avançou um comprometimento abrangente.
Neste momento, eu não tenho tempo para contar os
detalhes da realidade desta conquista. No entanto, os fatos
mencionados acima são fatos que ninguém, nem mesmo o
mais íntegro dos socialistas, consegue perceber.
A História é complexa. Porém, sua complexidade
consiste exclusivamente em sua simplicidade. Por exemplo,
existem diversas formas de dominação. Apesar disso, em
todas as sociedades, de ambos os lados, dominadores e
dominados possuem um relacionamento íntimo.
Se tomarmos emprestado o Manifesto Comunista,
ali está escrito: “Na Grécia, o povo livre e os escravos;
em Roma, nobres e plebeus; lordes medievais e servos;
sindicatos e trabalhadores”. E mesmo a sociedade moderna

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está dividida em dois polos: os dominadores capitalistas e


os trabalhadores dominados.
A sociedade avançou. E, com isso, os métodos de
dominação também se desenvolveram. Os métodos de
violência e engodo foram se tornando cada vez mais
engenhosos.
Política! Direito! Religião! Educação! Moral! Forças
Armadas! Polícia! Justiça! Congresso! Ciência! Filosofia!
E outras instituições sociais.
E aqueles que ficam entre os dois extremos, entre a
classe dominada e a dominadora, como os sábios da era
primitiva, de forma consciente ou não, acabam se tornando
colaboradores e auxiliares da violência e da enganação
social.
O fato é que esta dominação é uma realidade
fundamental de milhares de anos entre passado, presente
e futuro próximo. Embora esteja claro que esta dominação
não seja consciente, nenhum dos eventos sociais permitem
que a compreendamos apropriadamente.
Os estudantes de literatura, que se gabam de serem
sensíveis e inteligentes, clamam pela supremacia do
indivíduo. Enquanto sua sensibilidade e inteligência não
estiverem tocadas por esta realidade da conquista e, mais
ainda, contra ela, suas obras serão apenas brincadeira e
diversão. Eu já desisti de esquecer o peso dessa realidade,
esta pressão exercida sobre nossa vida cotidiana. É um
poderoso elemento de desonestidade sistemática.
Permanecer na beleza estática do transe em que
estamos é uma questão de escolha. Quero admirar a beleza
dinâmica que nos trará êxtase e também entusiasmo. A

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literatura que buscamos é uma literatura criativa, da beleza


de ódio e de revolta contra esta realidade.

(Pensamento Moderno, Capítulo 1, Volume 9, 1º de junho


de 1913)

a expansão da vida

I
Na edição de “A verdade da conquista”, discorri a respeito
da conquista como “verdade fundamental da sociedade
humana durante alguns ou vários milhares de anos entre
o passado, o presente e o futuro próximo”. Concluí que
“enquanto não se tiver uma certa compreensão, não se
pode compreender corretamente seus fenômenos”.
Assim, estendi esse pensamento ao mundo da arte,
observando que “nesta Verdade da Conquista e até onde
ela não encontra resistência, vossas obras são brincadeira e
diversão”. Pode ser só uma resignação que nos faz esquecer
a pesada realidade que nos impele para a rotina diária. É
um elemento fundamental de uma fuga sistemática.
E, no final, chegamos à seguinte conclusão:
“Permanecer na beleza estática do transe em que
estamos é uma questão de escolha. Quero admirar a beleza
dinâmica que nos trará êxtase e entusiasmo. A literatura

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que buscamos é uma literatura criativa, da beleza do ódio


e da revolta contra essa realidade”.
Agora, entrarei novamente nesta questão e aprofundarei
o contato entre estes três termos. Assim, darei um pouco
mais de clareza ao meu argumento.

II
Não é preciso dizer que, ao se falar do eu, a expansão da
vida tem sido a tônica do pensamento moderno. É o alfa e
o ômega do pensamento moderno. Porém, para entender
o que é o eu ou a expansão do eu, há um primeiro ponto
em que devo tocar.
Em relação ao eu, existe o senso amplo e o estrito. Neste
momento, vou considerar a moral do indivíduo no senso
mais estrito possível. O verdadeiro sentido desta vida é o
eu. E o eu é, em essência, uma espécie de força. É o tipo
de força que segue a lei das forças dinâmicas.
A força deve imediatamente aparecer em forma de
ação. Qualquer que seja o poder, sua existência e sua ação
são sinônimos. Assim sendo, a ação do poder é inevitável.
A ação, por si só, é completamente força. A ação é o único
aspecto do poder.
Portanto, a lógica inevitável de nossas vidas é
determinar ações para nós mesmos. Mais do que isso,
determinar nossa expansão. Qualquer que seja a ação, ela
representa o desenvolvimento de uma existência no espaço.
No entanto, a expansão da vida deve vir acompanhada de
sua realização. É a realização da vida do eu que força sua
expansão. Portanto, realização e expansão devem ser a
mesma coisa.

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Desta maneira, a expansão da vida é o nosso único


objetivo. A nossa atividade está em satisfazer nossa vontade
implacável de vida. Além do mais, a lógica inevitável do
eu requer que nós destruamos e eliminemos tudo aquilo
que se oponha à expansão do eu. E, ao desobedecer a essa
ordem, tudo fica estagnado, apodrece e se destrói.

III
A expansão da vida é uma propriedade fundamental
da vida por si só. Desde os tempos primitivos, o homem
vem lutando com o ambiente a seu redor e usando este
ambiente para expandir o eu. Ademais, mesmo entre
companheiros humanos, viemos continuamente lutando
e usando uns aos outros de forma a expandir a vida. E
estes conflitos e o uso dos seres humanos não são ainda
realizados à luz do conhecimento desenvolvido, de modo
que o caminho para o eu encontra-se perdido.
Os conflitos entre os homens, em vez de expandir a
vida uns dos outros, acabou por se tornar um obstáculo.
Em outras palavras, como resultado de métodos errados
de lutas e usos, entre os homens existiram ambos os polos
de conquistadores e conquistados. Este assunto já foi
discutido em detalhes em “A Verdade da Conquista”.
A expansão da vida das pessoas conquistadas foi
amplamente destruída. Elas praticamente perderam
seu eu. Elas ficaram à mercê da vontade e do comando
de seus conquistadores; tornaram-se escravas do
trabalho, tornaram-se instrumentos. A vida pessoal e
o autodesenvolvimento dos povos conquistados não
puderam fazer nada que não estagnar e apodrecer.

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Dossiê Sakae Ôsugi

Acontece o mesmo com os conquistadores. A corrupção


dos escravos e a depravação não perdoam nem mesmo os
mestres com seus danos. Além do mais, se nos escravos há
o vício da escravidão, nos mestres há o vício do domínio.
Se os escravos são submissos, os mestres são arrogantes.
Ou seja, enquanto os escravos enfrentam suas vidas com
relutância, os mestres destroem suas vidas com vigor. É
o mesmo que criar obstáculo à expansão da vida de uma
pessoa.
Ademais, os conflitos e abusos da raça humana e a luta
da humanidade com o meio ambiente tornaram-se um
obstáculo considerável ao uso deste espaço.

IV
Sempre que pensamos que os danos ao eu dessas
polaridades estão para acabar, uma invasão ou revolução
acontece aqui. Uma classe média com um eu relativamente
saudável toma a iniciativa, a título de salvar o povo
conquistado, e usa sua assistência para se elevar. Ou
ocorre uma revolta desesperada da classe conquistada, sob
influência da classe média. E, obviamente, sempre termina
com a classe média se tornando um novo mestre. A história
da humanidade é, em suma, este ciclo de repetição. Cada
ciclo é uma repetição que passou por alguma revolução.
No entanto, a humanidade não conseguiu retornar
ao primitivo, afinal. A humanidade não conseguiu voltar
ao primitivo, onde não havia a divisão entre mestres e
escravos. Não soube regressar à era livre primitiva, onde
não havia autoconsciência, com a consciência mais que

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suficiente que lhe fora dada. Não sabia que estava a repetir
uma história de enorme significado.
Seres humanos mergulhados em uma sociedade de
senhores e escravos por um longo tempo não são capazes
de imaginar uma sociedade em que não haja senhor ou
escravo. Não conseguem pensar em uma maneira melhor
de expandir suas vidas, com exceção da autoridade
exercida por alguém superior sobre ele, ainda que esteja
em controle de si próprio.
Eles simplesmente escolhem os senhores. O nome
dos senhores muda. E, finalmente, não ousam tocar no
machado que é a conquista fundamental por si só. Este é
o maior erro da história da humanidade.
Nós precisamos acabar com esta repetição da história.
Esta peregrinação de milhares e milhares de anos já
nos mostrou sua estupidez. Para acabar com este ciclo,
precisamos realizar uma última imensa repetição. Para
uma verdadeira expansão de vida como indivíduos, para
uma verdadeira expansão de vida como seres humanos.

V
A verdade da conquista na sociedade moderna
praticamente já alcançou seu ápice. Nem as classes de
conquistadores, nem as classes médias, nem mesmo as
classes conquistadas podem mais suportar o peso desta
realidade. A classe conquistadora vem sofrendo com o
desenvolvimento desta vida cheia de excessos ou anormal.
A classe conquistada está sofrendo ao ser sufocada por
uma vida de opressão. Até mesmo a classe média está

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Dossiê Sakae Ôsugi

sofrendo pela pressão acumulada dessas duas classes. Esta


é a principal causa dos problemas da vida moderna.
É neste ponto, para que o eu possa continuar a existir,
que é preciso surgir o ódio contra a verdade da conquista.
O ódio tem que gerar mais revolta. É preciso despertar o
desejo por uma nova vida. As pessoas não devem possuir
autoridade sobre outras; é preciso despertar a vontade
por uma vida livre. Como esperado, este sentimento, esta
ideologia, este desejo surgiu de uma minoria, especialmente
da minoria de conquistados.
A revolta contra a verdade da conquista apareceu pela
primeira vez como a única ação efetiva para satisfazer
esse desejo implacável do nosso eu. Diante da verdade da
conquista, ficou visível a destruição de todas as coisas que
impedem a expansão da vida.
Eu vejo a beleza suprema da vida na expansão da vida,
eu vejo a beleza suprema da vida na revolta e destruição,
vejo a beleza suprema do meu eu de hoje. Quando a
verdade da conquista atinge seu ápice, a harmonia não é
mais tão bonita. Só existe beleza no caos. A harmonia é
uma mentira. Só há verdade no caos.
Agora, a expansão da vida só se alcança por meio da
revolta. A criação de uma nova vida, a criação de uma
nova sociedade, somente é possível por meio da revolta.

VI
Em minha própria vida, no meio desta revolta, estou
aproveitando a infinita beleza. E o significado daquilo que
chamam de minha arte está resumido aqui. A execução
é a ação direta do eu. E o desempenho da sofisticação

verve, 35: 129-157, 2019 155


35
2019

científica do cérebro de um homem moderno não pode


ser chamado de uma execução “não realmente séria”.
Não é uma execução que não tenha sido pensada antes e
depois. Além disso, não é necessariamente uma execução
para confiar a alguém.
Através de anos de observação e reflexão, é o
desempenho que acredito que seja a ação mais efetiva
do eu. É uma prática cujo cenário de um evento corrente
se reflete completamente na mente, antes, depois e,
obviamente, durante. Há um êxtase que acompanha a
meditação. Há um fervor que acompanha o êxtase. E este
fervor chama por uma nova ação. Então, já não há mais
uma única subjetividade, nem uma única objetividade.
Subjetividade e objetividade entram em um acordo. Esta
é a fronteira de meu êxtase como revolucionário. É a
fronteira da arte.
E quando estou nesta fronteira, meu eu contra a verdade
da conquista, é o momento mais claro em meu coração. É
o momento em que meu eu foi estabelecido com mais
certeza. E toda vez que experimento esta fronteira, minha
consciência e meu eu vão se tornando cada vez mais claros
e confiáveis. O prazer do eu está transbordando.

VII
Este enriquecimento da minha vida é, ao mesmo
tempo, a expansão da vida. E, ao mesmo tempo, a expansão
da humanidade. Entre as ações do meu eu, vejo as ações
da humanidade.
Além disso, não sou o único a tomar a direção de
um eu mais efetivo dessa forma. Ainda que hoje sejam

156 verve, 35: 129-157, 2019


verve
Dossiê Sakae Ôsugi

poucas, existem pessoas conscientes de si mesmas, de seu


relacionamento entre elas e o ambiente a seu redor, e que
estão avançando neste caminho. Com exceção dos cegos,
qualquer um pode ver que o pensamento da sociedade do
futuro está sendo moldado.
Ao se estabelecer os fatos, por que na Literatura
Japonesa contemporânea não se menciona a conquista
como fato fundamental da sociedade, ou mais, que ela
está hoje em seu ápice? Por que não tocar na raiz dos
problemas da vida moderna? Dando um passo adiante, por
que não tocar no fato de que há uma revolta contra isso?
Não iremos tocar na criação deste novo eu, desta nova
sociedade? Formada sobre uma base de conhecimento
social confiável, a literatura criativa sobre a beleza do ódio
e a beleza da revolta não irão surpreender?
Eu, atendendo a um pedido do meu eu, quero literatura
contemporânea nesse sentido, quero ciência, quero
filosofia.

(Pensamento Moderno, Capítulo 1, Volume 9, 1º de junho


de 1913)

Tradução do japonês por Luíza Uehara.

Notas
1
Atual Alemanha (N.T.).

2
Max Stirner. O único e sua propriedade. Tradução de João Barreto. São
Paulo, Martins Fontes, 2002 (N.T.).

3
No Japão, sul da Ásia (N.T.).

verve, 35: 129-157, 2019 157


hécuba, de eurípedes
aula-teatro 25
6 e 7 de maio de 2019 – 19:30h
com: acácio augusto (polidoro), beatriz scigliano carneiro
(hécuba), flávia lucchesi (polixena e coro), gustavo simões
(agamêmnon), luíza uehara (coro e escrava), marcia
cristina lazzari (coro e odisseu), salete oliveira (coro e
electra) e vitor osório (taltíbio e polimestor).
trilha musical e execução: gustavo simões e flávia lucchesi
operador de luz: gustavo vieira
produção gráfica: andre degenszajn

os deuses, o castigo e a justiça estão presentes na cultura


grega e atravessaram a história, metamorfoseando-se até
os dias de hoje.
o nu-sol em suas pesquisas para as aulas-teatro
semestrais chegou a HÉCUBA de eurípedes (redigida em
data incerta no final do século V a.C.) e nela encontrou as
instaurações da permanência do castigo, as procedências
aristocráticas das produções de leis divinas e humanas,
reiterando a vingança, os efeitos das submissões sociais, a
subalternidade das mulheres, a rotina da guerra, o eterno
retorno do trágico.
convidamos a todos a escolherem seus lugares na
grande nau do tucarena que aguarda o retorno do vento
para seguir viagem de volta a argos. dela se avista
a praia onde estão a rainha-escrava hécuba, as demais
mulheres, os emissários dos vencedores, o fantasma, um
cadáver, a exigência do sacrifício da filha da rainha ao
grande aquiles, os reis polimestor e agamêmnon. será
a consumação do sacrifício que garantirá o regresso das
naus dos gregos (também mencionados como helenos,
aqueus e argivos) depois da vitória na guerra de tróia (os
troianos são também referidos como frígios). antes
disso, relações de poder, vingança e justiça entrelaçam-se
para reiterar os imperativos castigos.
a tragédia grega, ao lado dos escritos históricos, da
filosofia, da estética e de muitos fragmentos, permanece
uma referência decisiva para se compreender a produção
da verdade nesta cultura entranhada na chamada cultura
civilizada ocidental. nela está perfilada a continuidade
do governo de minorias aristocratas, religiosas, elitistas ou
vanguardistas. a tragédia expõe com crueza a verdade
desta cultura e a força de sua permanência. os castigos
e suas recompensas, considerados divinos, naturais,
culturais ou sociais, são motrizes para famílias, educações,
hierarquias, justiças, estados, guerras, obediências legítimas
dos súditos e entre eles.
diante do eterno retorno que redimensiona a
permanência da dominação, das mais totalitárias
às sutis democracias contemporâneas, está o
enfrentamento com o trágico e as astúcias das
pacificações, a invenção na demolição, uma decisão ética.
boa viagem de volta!

Bibliografia
Eurípedes. Hécuba. In A tragédia grega. Tradução de Mario da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, v. 4, 1992, pp.
151-219.
Sófocles, Electra. In A tragédia grega. Tradução de Mario da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, v. 4, 1992,
pp. 81-82.
verve

Resenhas
2013 que urge e ruge
FLÁVIA LUCCHESI*

Camila Jourdan. 2013: memórias e resistências. Rio de Janeiro,


Circuito, 2018, 181pp.

2013 não acabou. Seus efeitos permanecem em


desdobramentos no presente e as forças que estiveram
em seu epicentro seguem em luta. Muitos formadores de
opinião — jornalistas, comentaristas, políticos, youtubers,
intelectuais, etc. — falaram e falam sobre junho de 2013. Em
sua maioria, situam-se prostrados em um lado e apontam
para os culpados, obviamente, localizados do lado oposto.
Esses discursos à esquerda, à direita e ao centro, fazem
um balanço positivo ou negativo dos efeitos de junho, e
condenam, em uníssono, as ações diretas dos black blocs e
sua recusa à negociação, muitas vezes colocando-os como
a causa da situação política adversa atual.
Na contramão desses discursos binários e na disputa
pelo legado de 2013 está o livro 2013: memórias e
resistências. Ele afirma a importância salutar de se contar
uma história menor, histórias próprias dos insurgentes e
daqueles que explicitam os interesses de Estado. E mostra
os embates quentes que atravessam o livro e que situam sua

Flávia Lucchesi é pesquisadora no Nu-Sol e doutoranda em Ciências Sociais pela


PUC-SP. Contato: fllucchesi@gmail.com.

verve, 35: 161-169, 2019 161


35
2019

urgência: as forças dominantes almejam aniquilar as forças


insubordinadas que incendiaram as ruas e mostraram que
uma outra forma de vida é possível.
Camila Jourdan, autora do livro, é professora no
Departamento de Filosofia da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e anarquista. É também uma das
pessoas sentenciadas pelo que ficou conhecido como
“processo dos 23”, pessoas delatadas e apanhadas em meio
às centenas de milhares de manifestantes que fizeram as
jornadas de junho. Os relatos de Camila Jourdan e suas
análises mostram com clareza o que estava e está em jogo
e as forças em luta. A sentença aos 23 foi a maneira penal,
própria do Estado, de tentar enterrar junho de 2013; mas,
como enfatiza a libertária, “a prisão não apaga nossas lutas,
e nossa história permanecerá viva” (p. 18). E o registro
dessa história viva pulsa através das páginas, encontrando
os leitores, conhecedores do que se passou e passa, e
problematizando as variadas interpretações acadêmicas,
jurídicas e políticas para os demais. Situa a expansão de
sua potência, do que é incontível.
Neste contrafluxo também está a Coleção Ataque,
inaugurada no final do ano passado com o lançamento
do livro de Jourdan. A coleção busca captar e publicizar
um efeito de junho de 2013, “ao menos uma pequena
parte do fluxo de radicalidade (anti)política que escorre
pelo planeta”. Propõe-se a trazer textos anárquicos que
situam temas de enfrentamento com alvos precisos, como
os escritos de Camila Jourdan. “Livros curtos para serem
levados no bolso, na mochila ou na bolsa, como pedras
ou coquetéis molotov. Pensamento-tática que anima o
enfrentamento colado à urgência do presente. Ao serem
lançados, não se espera desses livros mais do que efeitos

162 verve, 35: 161-169, 2019


verve
2013 que urge e ruge

de antipoder, como a beleza de exibições pirotécnicas. (...)


[e] que as leituras produzam efeitos no seu [nosso] corpo.”
A leitura deste livro produz efeitos que ativam a
memória de quem viveu junho de 2013. Este acontecimento
alvejou não só a história política, social e econômica do
Brasil, mas cada corpo — ao menos cada corpo que vive
nas grandes cidades do país. Corpos que experimentaram
outras formas de se manifestar, de se relacionar, que se
lançaram em combates diretos, descobrindo outras formas
de viver; corpos rígidos de quem ia às ruas marchar por
suas causas e reclamar suas indignações, voltando para
casa incólumes; corpos autoritários que queriam ordenar
e eliminar seus inimigos, escancarando que os fascistas
não são mais identificáveis apenas pela estética dos carecas
e grupelhos neonazistas; corpos apavorados de grandes
proprietários e governantes que apelaram para o seu
monopólio da violência e do terror, convocando os corpos
fardados para exercer a repressão; corpos de gente de bem
que se esconderam, pretendendo estar seguros, em suas
casas e empregos, temerosos.
A leitura de 2013: memórias e resistências ativa outras
percepções, atiçando outros corpos.
Ao escrever sua história, de quem viveu 2013 no campo
de batalha como militante na OATL (Organização
Anarquista Terra e Liberdade) e na FIP (Frente
Independente Popular, surgida neste contexto), Camila
Jourdan nos convida à parceria. Em sobressalto, lemos
alguns episódios que mudaram sua vida e a transformaram.
E que fazem pensar em quantas mais vidas que ali
estiveram, dentre os milhares de pessoas que tomaram
as ruas, não foram também completamente arrebatadas

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35
2019

e transformadas. Sem lançar mão de recurso literário,


Camila Jourdan nos leva a sentir o “sabor de chocolate e
cheiro de gás lacrimogêneo” (p. 52) na batalha da ALERJ
e arrepiar com a força daqueles muitos corpos incógnitos,
vestidos de negro e com seus rostos cobertos.
As descrições da autora, feitas de dentro do acontecimento,
mostram a potência das diferenças. Foi o heterogêneo que
fez eclodir o junho incendiário e que se erigiu contra alvos
precisos: as forças policiais, afirmando a recusa à sujeição
às suas violências; os prédios públicos e as instituições do
Estado; os bancos que tanto roubam e endividam muitos
dos que ali estavam; as lojas cujos produtos e sabores
são acessíveis a poucos. A mistura entre diferentes que
partilham a revolta é insuportável às autoridades e aos que
querem conservar a ordem. Isso fica explícito também na
passagem em que Jourdan narra a manifestação contra a
remoção da favela do Metrô-Mangueira, que aglutinou
moradores e estudantes da UERJ em um combate direto
contra a polícia e a ordem de remoção.
Os desdobramentos deste protesto chegaram até a
universidade e expõem o atual estado das universidades
no Brasil, diante do qual a professora anarquista age,
inventando outros espaços como a Ação Direta de
Educação Popular e o Grupo de Estudos Anarquistas
Maria Lacerda de Moura. Há ainda outras questões
que reverberam no livro, que também dizem respeito ao
presente e às inquietações da libertária; e que mostram
seu outro jeito de olhar e levar a vida, que não é só uma
forma de analisar os temas centrais da obra, mas um estilo
de vida libertário.

164 verve, 35: 161-169, 2019


verve
2013 que urge e ruge

Camila Jourdan, junto aos outros 22, foi detida às


vésperas da final da Copa do Mundo de 2014. Seus
relatos prosseguem desde o momento em que sua casa foi
invadida e ela e seu companheiro foram detidos até a vida
encarcerada, passando pelo espetáculo do tribunal. Os
escritos sobre a sua prisão e a vida de prisioneira trazem a
crueza e o terror que alimentam essa instituição, evitando
melodramas humanitaristas, para afiar a análise e esmiuçar
o funcionamento deste lugar que, como ela afirma, “não
deveria existir”.
Na prisão, somente os animais são livres. Os mosquitos
que sugam o sangue das presas e atrapalham ainda mais
o sono, os pássaros que voam para dentro e para fora e os
gatos que entram e saem — curiosamente, os gatos que
viviam com a autora em sua casa, ao perceberem a invasão
da polícia, correram para bem longe dali.
Vale ressaltar que este é um dos raros escritos de uma
mulher que foi presa no Brasil. Poucos se importam com
essa questão, poucas são as pesquisas e são escassas as
histórias escritas por essas mulheres — que, em sua maioria,
têm vivências muito diferentes da autora e das outras sete
sentenciadas no “processo dos 23”. Com a garganta seca
e a respiração curta, vamos da solitária reformada, branca
e limpinha na Polinter, pronta para encarcerar corruptos
e ativistas (ou seja, gente que não é pobre), para a cela
que as militantes dividiram em Bangu. Lá, elas não eram
tratadas como as demais presas, majoritariamente negras
e pobres, pelas carcereiras, majoritariamente brancas —
mesmo quando têm a pele negra — e reproduzem ali a
estética da branquitude burguesa exercendo seu poder
feminilizado com seus longos cabelos alisados, unhas
compridas, maquiagem e salto alto. Jourdan sugere que

verve, 35: 161-169, 2019 165


35
2019

há uma dicotomia entre as vestimentas das carcereiras,


que exigem ser chamadas de “senhoras funcionárias”, e
das presas. Enquanto as primeiras reforçam os signos de
feminilidade, o uniforme das presas — bermuda, camiseta
e chinelo — remeta a uma estética que pode ser comum
a ambos os gêneros. Como não existe neutralidade, esse
visual é tido como masculino.
Em algumas passagens, a autora nos dá pistas e,
generosamente, sugere questões que levam à reflexão. Em
outras, ela é enfática e precisa, como quando escancara o
modo com o qual se dão as relações ali e como a prisão
funciona e se mantém por meio do medo. Medo que
mantém também outras prisões, não somente a prisão-
prédio, que constitui parte visível da cultura do castigo.
Medo do qual aquelas e aqueles que fizeram o junho
insurreto não precisaram se liberar, porque já estavam
liberados. A prisão não produz consciência de liberação,
apenas reitera a cultura do medo aos seus encarcerados.
Se naquele momento as forças repressivas agiam com
brutal violência para espalhar o pânico pelas ruas, ele
também foi necessário para a estratégia de criminalização
do movimento. Camila Jourdan e os 22 vivem sob medidas
restritivas, tiveram suas vidas invadidas e reviradas, e
permaneceram por três anos à espera da sentença, na
angustiosa iminência da punição. Esta foi pronunciada
em julho de 2018 e condenou a sete anos de prisão os
20 adultos, e a 5 anos e 10 meses os três que, entre 2013
e 2014, eram menores de idade. Após a condenação,
iniciou-se o horror de uma nova espera.
A sentença foi dada às vésperas do lançamento de 2013:
memórias e resistências, mas é comentada pela autora que, ao

166 verve, 35: 161-169, 2019


verve
2013 que urge e ruge

longo de todo o livro, faz questionamentos e pontuações


que demolem cada acusação e o processo, por meio de
uma exposição também cruel. A crueldade não se deve às
particularidades deste caso, mas ao próprio funcionamento
do tribunal e do direito penal. Escancara a seletividade do
sistema penal, para explicitar que todo preso é um preso político.
As análises que a autora faz da sentença, do processo
e de todo o julgamento trazem à tona o teatro absurdo
que lhes é inerente. Por vezes, tão ridículo, por vezes, tão
cômico, na intenção de criminalizar a prática black bloc e
os anarquistas. O inquérito é explícito: é a “delinquência
política de viés anarquista a mais insidiosa e a que precisa
ser mais fortemente combatida” (pp. 133-134).
Além dos relatos de suas memórias, o livro é composto
por entrevistas que a libertária deu a distintas mídias,
realizadas no calor do acontecimento, e que trazem a público
suas análises no calor e frescor das batalhas. Jourdan faz
do enfoque midiático uma brecha para afirmar a anarquia.
Sem desculpas ou vitimização, libertária, instiga. No
movimento final do livro, ela apresenta suas análises mais
minuciosas sobre o acontecimento e seus efeitos. Como
não se trata de um dogma, mas de anarquismos, nota-
se na exposição da filósofa seu pensamento próprio e as
reverberações das discussões e da perspectiva dos grupos
anarquistas que ela frequenta e com quem se relaciona.
Neste sentido, contribui muito para o pensamento
anarquista hoje, colocando outras questões e modos de
olhar, afirmando nossas diferenças.
Ao longo de todo o livro a autora enfatiza as
diferenças. Em meio aos manifestantes mais radicais de
2013, sublinha que não estávamos diante do óbvio, que

verve, 35: 161-169, 2019 167


35
2019

ali não estavam apenas militantes anarquistas e já adeptos


da tática black bloc. Muitas outras pessoas cobriram seus
rostos e partiram para ação. Bem distante da história
contada pela mídia, e partilhada por alguns setores da
esquerda institucionalizada, que diz que junho de 2013 foi
um movimento de jovens de classe média, ela expõe que
a grande parte dos que incendiaram as ruas eram jovens
pobres e pretos, que sentem na pele, cotidianamente, as
violências do capitalismo e do Estado. Essas pessoas,
diferentes mas com uma revolta em comum, escancaram
a potência deste acontecimento que borrou identidades e
identificações. Não à toa, os que querem ordem e governo
ficaram enlouquecidos à procura de líderes e culpados.
Foram até atrás do Bakunin... mas acharam 23 que podem
ser encarcerados e servir de exemplo.
Antes deles, pegaram Rafael Braga, jovem preto e
pobre, que portava um perigoso frasco de Pinho Sol. Os
processos e as condenações de Braga também explicitam
o absurdo. Como de praxe, já estava clara a intenção das
autoridades em relação à vida dele. Camila Jourdan sinaliza
que a ameaça não vinha do produto de limpeza, mas da
existência desse jovem, “potencialmente revolucionário” e,
portanto, amedrontador para as autoridades, os grandes
proprietários e os acomodados com seus privilégios.
Quantos e quantas não vivenciam violências semelhantes
à de Rafael, mesmo não encarcerados em prisões-prédio?
E se essas pessoas se revoltam?
A forma como os 23 foram pegos pelas autoridades faz
lembrar tantos outros casos de perseguição aos anarquistas
e antifascistas em todo o planeta. A coincidência com a
Copa do Mundo faz gritar a lembrança da repressão na
Rússia, as prisões e perseguições que não cessaram após

168 verve, 35: 161-169, 2019


verve
2013 que urge e ruge

a final, com a França campeã e a ação da Pussy Riot que


invadiu o campo. Muitos libertários seguem presos e sendo
torturados na Rússia, na Criméia e na Bielorrússia. Assim
como em muitos outros cantos do planeta. Os anarquistas
foram e continuam sendo alvo. Aqui no Brasil, também
como efeitos repressivos de 2013, não podemos nos
esquecer da perseguição aos anarquistas no sul do país,
que culminou na Operação Érebo.
Ao esmiuçar sua história, Jourdan nos alerta para
os meios usados corriqueiramente pelo Estado para
tentar conter os libertários: “infiltração policial; prisões
preventivas em bloco; foco espetacular midiático em
alguns indivíduos; tentativa de cooptação das imagens do
protesto radical para fins comerciais” (p. 131). Acrescenta-
se também o monitoramento pela internet, notadamente
publicações no Facebook, bem como o rastreamento de
e-mails, aplicativos de mensagens e conversas telefônicas.
Camila Jourdan faz uma leitura favorável aos
anarquistas no presente. Mostra como os anarquismos
voltaram a chamar atenção também em outros lugares do
planeta, a partir de outros acontecimentos, como a Grécia em
2008, Seattle em 1999, as acampadas e o occupy fechando
a primeira década dos anos 2000. A esta lista, poderíamos
acrescentar outras histórias de lutas e acontecimentos
recentes. Seu livro nos convida a refletir sobre a vida de
2013 hoje e ampliar nossas práticas de liberdade.
Além de toda a franqueza com que fala, dos alertas
precisos e da potência afirmativa com que relata suas
memórias e mostra o presente, apartada de histórias tristes e
de uma leitura derrotista, o livro 2013: memórias e resistências
urge: que se interrompam os julgamentos e sentenciamentos!

verve, 35: 161-169, 2019 169


35
2019

um ladrão de livros anarquistas


e as histórias que seguirão
GUSTAVO SIMÕES

Roberto Bolaño. A literatura Nazista na América. Tradução de


Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras, 2019,
237 pp.

Em entrevista realizada no final dos anos 1990,


Roberto Bolaño declarou que a vantagem de roubar livros
em vez de um caixa-forte é que é possível examinar com
paciência o material antes de praticar a delinqüência. Com
dezesseis anos de idade, vivendo na Cidade do México e
o 1968, o escritor lembrou como na Libraria de Cristal,
somada à ruptura com a família, o roubo de obras como
as de Pierre Louys, anarquista próximo a Oscar Wilde,
foi decisivo para sua formação literária. Cinco anos
depois dos primeiros delitos, com vinte anos de idade,
empolgado com o governo de Salvador Allende, retornou
a seu país natal, Chile. Depois do golpe civil-militar de
11 de setembro de 1973 foi preso pela polícia de Augusto
Pinochet.
De volta ao México – narrou como conseguiu escapar
da prisão no conto “Os Detetives” (Chamadas Telefônicas)
–, Bolaño produziu suas primeiras poesias e estabeleceu
relações de amizade definitivas, entre elas com Mario
Santiago, poeta com quem inventou o movimento infra-
realista, coletivo, segundo ele, constituído somente pelos

Gustavo Simões é pesquisador no Nu-Sol e doutor em Ciências Sociais pela PUC-


SP. Contato: gusfsimoes@gmail.com.

170 verve, 35: 170-174, 2019


verve
um ladrão de livros anarquistas e as histórias que seguirão

dois jovens escritores. Em relatos variados, lembrou


que naquele instante, ao lado de Santiago, o Ulisses
Lima de Detetives Selvagens, para ele a perspectiva de
revolução tornou-se outra. Desta maneira, deslocando-
se constantemente – da Cidade do México, passando
por perambulações pela Europa, até se estabelecer em
Barcelona, a partir de 1977, onde, inclusive, conviveu com
anarquistas – assumiu a revolução como maneira de viver
um percurso radical.
Fixado na Espanha, primeiro em Barcelona,
posteriormente, na metade da década de 1980, em Blanes,
onde vivia com poucos recursos – em algumas conversas,
valoriza, sobretudo, um walkman, no qual, ouvia Lou Reed
ou David Bowie enquanto rascunhava seus textos –, não
cessou de escrever a partir das memórias das coexistências
com os amigos no Chile e no México (boa parte mortos
em resistências às ditaduras, overdoses ou AIDS). Mesmo
vivendo distante jamais abandonou os embates contra
a continuidade das violências autoritárias ocorridas no
continente americano. A Literatura Nazista na América
(1996), o primeiro dos seus livros dedicado precisamente
a este combate, somente agora, vinte e três anos depois, é
lançado aqui no Brasil.
Neste momento em que, forças a direita se ampliam
institucionalmente, autoridades elogiam torturadores da
ditadura e recomendam comemorações de aniversário
do golpe civil-militar e propagam que o “nazismo foi um
fenômeno de esquerda”, o lançamento de mais um Bolaño,
sobretudo este, é urgente e vital. Mesmo que tardia, é
mais uma peça, ao lado de contos como “Dias de 1978”
e “Olho Silva” (Putas Assassinas, 2001) e Noturno do Chile
(2000) para apreendermos a maneira contundente como

verve, 35: 170-174, 2019 171


35
2019

o escritor encarou a ubiqüidade das violências do Estado


na America do Sul.
Apesar de ser o primeiro de uma série de livros
dedicados a desvelar tais violências, de partida A
Literatura já evidencia uma preocupação constante
de Bolaño mostrar o funcionamento do circuito de:
mortes produzidas não somente pelas mãos de policiais
e funcionários regulares da repressão. No caso específico
do livro, a violência está acompanhada e também é
construída por “civis” como a mulher “incentivadora das
artes”, devota, ao mesmo tempo, de Hitler e de Edgar
Alan Poe (“Edelmira Thompson Mendiluce”), passando
pelo romancista fracassado (“Juan Mendiluce Thompson”)
indignado com o “irreal” e “cruel” Júlio Cortázar ou os
líderes de torcida organizada na Argentina que trabalham
para grupos de extermínio e anseiam um dia assassinar
Johan Cruyff (“Os fabulosos Irmãos Schiaffino”) ou o
jogador de futebol americano que sonha espancar Allen
Ginsberg e até mesmo o filósofo irrelevante, inimigo
de pré-socráticos e Buster Keaton (o brasileiro, “Luiz
Fontaine da Souza”). Ao lado deste último, representando
o Brasil, comparece também, Amado Couto, integrante do
Esquadrão da Morte. Durante a ditadura, Couto defendia
em literatura “algo moderno mas puxando para o seu
terreno, algo policialesco (mas brasileiro, não americano),
um continuador de Rubem Fonseca, para sermos claros”
(p. 121).
Animado por obras como La sinagoga de los iconoclastas
(Rodolfo Wilcock) e Vidas Imaginarias (Marcel Schwob),
A Literatura Nazista na América é a procedência direta
de A Estrela Distante, um dos romances mais conhecidos
de Bolaño. É nas páginas de A Literatura que irrompe

172 verve, 35: 170-174, 2019


verve
um ladrão de livros anarquistas e as histórias que seguirão

pela primeira vez Ramirez Hoffman, o frequentador das


oficinas literárias que depois do golpe se tornará o piloto
da aeronáutica chilena responsável por grafar no ar poemas
de elogio à morte e à ditadura de Pinochet, personagem
recuperado em A Estrela Distante. Pouco a pouco, após o
11 de setembro, junto aos “desaparecimentos” dos poetas
que frequentavam as oficinas e da repercussão dos vôos,
o piloto ganha notoriedade entre os militares e organiza
uma exposição onde exibe fotos suas de cadáveres de
jovens executados em sessões de tortura. Entretanto, com
o ocaso da ditadura, se oculta na Europa. Seu paradeiro
é desmascarado a partir da investigação, realizada por
um poeta e um detetive de revistas literárias fascistas
européias. É morto em 1998.
Ao recontar o episódio de A Literatura em Estrela
Distante, Bolaño insere, pela primeira vez Arturo Belano
como personagem. Belano, assumido pelo próprio escritor
como uma espécie de alter-ego, é o narrador da história.
Poeta preso pela resistência à diratura Pinochet, ele é um
dos espectadores, do pátio da prisão, das performances
aéreas do torturador. Mas as alterações não param com
entrada em cena de Belano. Em A Estrela Distante o
piloto/torturador deixa de se chamar Ramírez Hoffman.
Agora ele é Carlos Wieder, “wieder”, em alemão, sinônimo
de “outra vez”. Alguns leitores de Bolaño apontam que a
mudança pelo autor mira chamar a atenção para o ranço
nazista que, de tempos em tempos, retorna assustador ao
céu chileno. Impossível não pensar no cineasta Patrício
Guzmán e seu “Nostalgia da Luz”, filmado no Atacama,
registro simultâneo, no deserto, da busca por pistas dos
“desaparecidos” e das investigações astronômicas visando
identificar novos corpos celestes.

verve, 35: 170-174, 2019 173


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2019

Arrancar as máscaras, expor a história terrível e


infindável das violências na América do Sul, como as
conduzidas por Hoffman-Wieder, eis uma das potências
singulares do trabalho de Roberto Bolaño. Próximo
dos anos 2000, um pouco antes de sua morte, depois
de revelar sua admiração pelas ações das Abuelas de La
Plaza de Mayo, o escritor afirmou que não acreditava na
felicidade. Em suas palavras, vislumbrava somente uma
felicidade imperfeita. E experimentava essa espécie de
imperfeição, segundo ele, com seu filho, Lautaro. Estrela
Distante é dedicado a Lautaro, nome de um índio mapuche
reconhecido por seu combate aos espanhóis (e porquê
não ao “wieder”?) durante a colonização. Hoje, Lautaro
é também o nome de um grupo de jovens radicais e
anticlericais no Chile. Talvez, em breve, alguém também
conte essas histórias, episódios no presente, atitudes de
coragem. O que importa agora é que enquanto houver
ladrões de certos livros e jovens incendiários as histórias
das resistências seguirão...

174 verve, 35: 170-174, 2019


Outras
Meu interesse básico era o de viver como poeta. Para mim,
ser poeta era, simultaneamente, ser revolucionário e estar
totalmente aberto a qualquer manifestação cultural, a
qualquer expressão sexual, enfim, aberto a tudo, a qualquer
experiência com drogas.
...
Aqueles que estão no poder (ainda que por pouco tempo)
não sabem nada de literatura. Somente interessa a eles o
poder. Eu posso até ser o palhaço dos meus leitores se
esse é realmente o meu apetite, mas nunca serei o dos
poderosos. Soa um pouco melodramático. Soa como uma
declaração de uma puta honrada. E é mesmo.
...
A América Latina é como o manicômio da Europa. Talvez,
originalmente, tenha se pensado a América Latina como
o hospital da Europa ou o celeiro da Europa. Mas agora
é o manicômio. Um manicômio selvagem, empobrecido,
violento, onde apesar do caos e da corrupção, se alguém
abrir os olhos, conseguirá enxergar a sombra do Louvre.
...
Artaud dizia que escrever era uma baixaria, que todos os
escritores eram porcos, sobretudo os de seu tempo. Assino
embaixo. Contudo, apesar disso, continuo admirando os
jovens escritores. Assim como sigo admirando os jovens
boxeadores.

Tradução de Gustavo Simões.


35
2019

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999;
flecheira libertária, semanal, desde 2007;
observatório ecopolítica, quinzenal, desde 2015;
Aulas-teatro, no tucarena
Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007;
Eu, Émile Henry, outubro de 2007;
FOUCAULT, maio de 2008;
estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009;
limiares da liberdade, junho de 2009;
FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010;
drogas-nocaute, maio de 2010;
terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011;
eu, émile henry. resistências., maio de 2011;
LOUCURA, outubro de 2011;
saúde!, maio e outubro de 2012;
limiares da liberdade, maio e agosto de 2013;
anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014;
drogas-nocaute 2, maio de 2014;
a céu aberto. controles, direitos, seguranças, penalizações e liberdades,
novembro de 2014;
terr@ 2, maio de 2015;
libertárias, novembro de 2015;
LOUCURA, maio de 2016,
A Revolução Espanhola, novembro de 2016;
a segurança e o ingovernável, maio de 2017;
greve geral em são paulo, 1917, 21 e 22 de novembro de 2017, 6 e 7 de
dezembro (Teatro Ágora-SP);
estamos todos presos. estamos?, 11 e 12 de junho de 2018;
68: invenções e resistências, 16 e 17 de setembro de 2018;
hécuba, de eurípides, 6 e 7 de maio de 2019.
DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC
ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; 2007-2009.
os insurgentes, edição de 9 programas; 2008-2009.
ágora, agora 2, edição de 12 programas; 2008-2009.
ágora, agora 3, edição de 7 programas; 2010.
carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, 2010-2012.
ecopolítica-ecologia, 2012.
ecopolítica-segurança, 2012.
ecopolítica-direitos, 2013.
ecopolítica-céu aberto, 2015.
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(2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola
(2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); Vídeo-Fogo (2009).
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um Incômodo).
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004, 29 títulos.
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verve

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Verve aceita artigos e resenhas originais para possível publica-


ção. Cada texto, respeitando o anonimato do autor, será apresentado
a dois revisores escolhidos entre os membros do Conselho Editorial
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que poderão recomendá-lo para publicação, recomendá-lo mediante
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e divulgação ampla, pelos meios disponíveis, dos seus escritos.

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Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim


de texto.

Resenhas não devem conter notas explicativas.

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35
2019

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Rogério Nascimento. Florentino de Carvalho: pensamento


social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000, p. 69.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios,


vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção
Os pensadores, 1987, p. 76.

III) Para artigos publicados em periódicos:

Nome do autor. “Título” in Nome do periódico. Cidade, Editora,


volume e/ou número, ano, páginas.

José Maria de Carvalho. “Elisée Reclus, vida e obra de um apai-


xonado da natureza e da anarquia” in Utopia. Lisboa, Associação
Cultural A Vida, n. 21, 2006, pp. 33-46.

IV) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano,


op. cit., p. número da página.

V) Para obras traduzidas:

Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].


Cidade, Editora, ano, número da página.

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma


T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p.42.

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verve

VI) Para textos publicados na internet:

Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço


da web] (acesso em: data da consulta).

Ex: Claude Lévi-Strauss. Pelo 60º aniversário da Unesco. Dispo-


nível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm
(acesso em: 24/09/2007).

VII) Para resenhas:

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


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Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver). Cidade,


Editora, ano, número de páginas.

Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro,


Ed. Guanabara, 1987, 193 pp.

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