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R ev ista do M useu

de
A rq u eo lo g ia e Etn o lo g ia

U n iv e r sid a d e de S ã o P aulo

N2 10 I m a e| 2000
REVISTA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

Com issão Editorial

Maria Beatriz Borba Florenzano


Maria Christina de Souza Lima Rizzi
Maria Cristina Mineiro Scatamacchia
Maria Isabel D'Agostino Fleming
Paulo De Blasis

Editora Responsável

Maria Isabel D'Agostino Fleming

Conselho Editorial

Ana Mae Tavares Barbosa LuxVidal


Antonio Porro Maria Luiza Corassin
Augusto Titarelli M aria Manuela Carneiro da Cunha
Aziz N. Ab'Saber Maria Margareth Lopes
Carlos Serrano Niède Guidon
Fábio Leite Noberto Luiz Guarinello
Felipe Tirado Segura Oscar Landmann
Gabriela Martin DÁ vila Pedro Ignácio Schmitz
Igor Chmyz Pedro Paulo Abreu Funari
Jacyntho Lins Brandão Roberto Cardoso de Oliveira
José Antonio Dabdab Trabulsi Rudolf Winkes
Kabengele Munanga Solange Godoy

Pede-se permuta
We ask fo r exchange

Av. Prof. Almeida Prado, 1.466


Cidade Universitária - São Paulo, SP
CEP 05508-900 - FAX 3818-5042 - 3818-4888
ISSN 0103-9709

R ev ista do M useu
de
A r q u eo lo g ia e Etn o lo g ia

U n iv e r s id a d e d e S ã o P a u l o

publicação anual

N 2 10

2000

S ã o P a u l o , B rasil
Sumário

ARTIGOS

3 José Luís de Morais - Tópicos de Arqueologia da Paisagem

31 Silvia Cristina Piedade - Considerações sobre um enterramento


André Luis R. Soares Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas

69 Suzanne K. Fish - Eventos incrementais na construção de


Paulo De Blasis sambaquis, litoral sul do estado de
Maria Dulce Gaspar Santa Catarina
Paul R. Fish

89 Walter Mareschi Bissa - Evolução paleoambiental na planície


Jean-Pierre Ybert costeira do Baixo Ribeira durante a
Eduardo Luís Martins Catharino ocupação sambaquiera
Miryam Kutner

103 Sérgio Augusto de Miranda Chaves - Estudo palinológico de coprólitos pré-


históricos holocenos coletados na Toca
do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada.
Contribuições paleoetnológicas,
paleoclimáticas e paleoambientais para
a região sudeste do Piauí - Brasil

121 Gilson Rodolfo Martins - Arqueologia do contexto do rio Jauru


Emilia Mariko Kashimoto (MT) impactado pelo gasoduto Bolívia-
Mato Grosso

145 Rolf Winkes - Natura Morta

163 Katia Maria Paim Pozzer - Selos-cilindros mesopotâmicos - um


estudo epigráfico

175 André Leonardo Chevitarese - Mulher e colheita de frutas na pólis


ateniense: análise iconográfica dos vasos
áticos de figuras negras e vermelhas

189 Leila Maria França - O estudo da noção de valor e o univer­


so de aplicação do dinheiro primitivo

197 Antonio Porro - Contatos transpacíficos entre Ásia e


Mesoamérica: uma questão em aberto

211 Mona Birgit Suhrbier - A poética da fome na arte Guarani


Mariana Leal Ferreira

231 Camilo de Mello Vasconcellos - A abordagem do período pré-colonial


Ana Carla Alonso brasileiro nos livros didáticos do ensino
Paulo Rodrigues Lustosa fundamental
ESTUDOS DE CURADORIA

241 Suely Moraes Ceravolo - Tratamento e organização de informa­


Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tàlamo ções documentárias em museus

255 Rita Amaral - A coleção etnográfica de cultura religiosa


afro-brasileira do Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São Paulo

271 Orlando Sampaio-Silva - Máscaras de dança Tükúna

ESTUDOS BIBLIOGRÁFICOS

291 Francisco Silva Noelli - Comentário d’ “A população nativa da


América do Sul”

303 Julian H. Steward - A população nativa da América do Sul

317 Marisa Coutinho Afonso - Resenha: SCHEEL-YBERT, R. Stabilité de


VEcosystème sur le Litoral Sud-Est du
Brésil à l ’Holocène Supérieur (5500-
1600 Ans BP) - Les Pêcheurs-Cuilleurs-
Chasseurs et le Milieu Végétal: Apports
de VAnthracologie. Université Montpellier
II Sciences et Techniques du Languedoc,
França, 1998, vol 1, 232 pp.; vol. 2, Atlas
Anthracologique des Sambaquis du Sud-
Est de l ’Etat de Rio de Janeiro; CD-Rom
incluso: Banque de données anthracolo­
gique “Atlas Brasil” - version 1.8
(1998); vol 3, Anexos

NOTAS

323 Gedley Belchior Braga - Conservação e restauro de cerâmicas


Moema Nascimento Queiroz Arqueológicas: workshop

329 Flaiganuch Sarian - Alguns dados relativos ao projeto de


pesquisa “Arqueologia de um santuá­
rio: o Heraion de Delos, Grécia”

337 Denise Maria Cavalcante Gomes - Arqueologia do Rio Quequen Grande


(região Pampeana, Argentina)

341 Maria C. M. Scatamacchia, Marcelo R Prestes, - Arqueologia e Arquitetura: proposta de


Silvestre de L. Neto, Sérgio Moraes, Rivaldo revitalização do Porto do Ribeira
Pavlawski, Abel de Oliveira Rocha

345 Rosaria Ono, Gedley Belchior Braga, Deise - Planos de emergência para proteção do
Cavalcante Lustosa Patrimônio Histórico-Cultural contra
desastres

351 Judith Mader Elazari - Recursos pedagógicos de museus: “kits”


de objetos arqueológicos e etnográficos
Contents

ARTICLES

3 José Luís de Morais - Topics on Landscape Archaeology

31 Silvia Cristina Piedade - Considerations on a Guarani burial:


André Luis R. Soares alterations and ethnohistoric hypo­
th esis

69 Suzanne K. Fish - Incremental events in the construction


Paulo De Blasis of sambaquis, southeastern Santa
Maria Dulce Gaspar Catarina
Paul R. Fish

89 Walter Mareschi Bissa - Palaeoenvironmental evolution in the


Jean-Pierre Ybert coastal plain of Baixo Ribeira during the
Eduardo Luís Martins Catharino shell mounds occupation
Miryam Kutner

103 Sérgio Augusto de Miranda Chaves - Pollen analysis of holocene pre-historic


coprolithes collected at “Toca do Boquei­
rão do Sítio da Pedra Furada”. Palaeoeth-
nological, palaeoclimatological and
palaeoenvironmental contributions for the
Southeastern Region of Piauí State - Brazil

121 Gilson Rodolfo Martins - Archaeology of the Jauru River (MT)


Emilia Mariko Kashimoto context, impacted by the Bolivia-Mato
Grosso gas pipeline

145 Rolf Winkes - Natura Morta

163 Katia Maria Paim Pozzer - Mesopotamian cylinder seals - an


epigraphic study

175 André Leonardo Chevitarese - Woman and fruit harvest in the Athenian
pólis: iconographic analisys of the
Athenian black and red figure vases

189 Leila Maria França - Primitive money and the study of value

197 Antonio Porro - Transpacific contacts between eastern


Asia and precolumbian Mesoamerica:
an open question

211 Mona Birgit Suhrbier - The poetics of famine in Guarani art


Mariana Leal Ferreira

231 Camilo de Mello Vasconcellos - An approach to the Brazilian pre­


Ana Carla Alonso colonial time in the didactic books for
Paulo Rodrigues Lustosa elementary school
CURATORSHIP STUDIES

241 Suely Moraes Ceravolo - Treatment and organization of docu­


Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tàlamo mentary informations in museums

255 Rita Amaral - The ethnographic collection of Afro-Brazilian


religious culture at the Museu de Arqueo­
logia e Etnologia of São Paulo University

271 Orlando Sampaio-Silva - Tiiktina dance masks

BIBLIOGRAPHICAL STUDIES

291 Francisco Silva Noelli - Comment on “The native population of


South America”

303 Julian H. Steward - The native population of South America

317 Marisa Coutinho Afonso - Review: SCHEEL-YBERT, R. Stabilité de


VÉcosystème sur le Litoral Sud-Est du
Brésil à l ’Holocène Supérieur (5500-
1600 Ans BP) - Les Pêcheurs-Cuilleurs-
Chasseurs et le Milieu Végétal: Apports
de l’Anthracologie. Université Montpellier
II Sciences et Techniques du Languedoc,
França, 1998, vol 1, 232 pp.; vol. 2, Atlas
Anthracologique des Sambaquis du
Sud-Est de l ’Etat de Rio de Janeiro;
included CD-Rom: Banque de données
anthracologique “Atlas Brasil” -
version 1.8 (1998); vol 3, Annexes
NOTES

323 Gedley Belchior Braga - Conservation and restoration of


Moema Nascimento Queiroz archaeological ceramics: workshop

329 Haiganuch Sarian - Some data related to the research


project “Archaeology of a santuary: the
Heraion of Delos, Greece”

337 Denise Maria Cavalcante Gomes - Archaeology of the Big Quequen river
(Pampean region, Argentina)

341 Maria C. M. Scatamacchia, Marcelo P Prestes, - Archaeology and Architecture: proposal


Silvestre de L. Neto, Sérgio Moraes, Rivaldo for the revitalization of the Ribeira harbour
Pavlawski, Abel de Oliveira Rocha

345 Rosaria Ono, Gedley Belchior Braga, Deise - Emergency plans for protection of the
Cavalcante Lustosa Historical Cultural Heritage against
disasters

351 Judith Mader Elazari - Museums pedagogical resources: kits of


archaeological and ethnographical objects
Artigos
Rev. do Museu d è A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 3-30, 2000.

TÓPICOS DE ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM

José Luiz de Morais*

MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e


Etnologia, São Paulo, 10: 3-30, 2000.

RESUMO: As relações entre Arqueologia e a Geografia, definidas como


Arqueologia da Paisagem, são enfatizadas neste artigo. As investigações
arqueológicas na bacia do rio Paranapanema, conhecidas como projeto
Paranapanema, Estado de São Paulo, reforçam esta abordagem interdisciplinar
como um modelo em Arqueologia de ambiente tropical. Um glossário de
termos técnicos é discutido.

UNITERMOS: Arqueologia Brasileira - Projeto Paranapanema - Arqueologia


da Paisagem.

Nos últimos anos tem sido meu propósito (Morais 1999b), tentando destacar um corpo
enfatizar alguns processos interdisciplinares de problemas pré-definido enquanto regulador
envolvendo a Arqueologia e algumas especiali­ da construção de algumas hipóteses e da
dades do campo das Geociências (Morais formulação de um leque de objetivos ligados
1999a, 1999b, 2000), convergindo para a conso­ às iniciativas futuras. Assim, como objeto de
lidação de uma subdisciplina conhecida como discussão eu formulo, neste momento, ques­
Arqueologia da Paisagem. De fato, a práxis tões da seguinte ordem:
arqueológica pelos lados do Paranapanema, 1) Em que medida os processos interdis-
iniciada por Luciana Pallestrini há mais de trinta ciplinares envolvendo a Arqueologia, a Geo­
anos (Pallestrini 1975), sempre privilegiou grafia, a Geomorfologia e a Geologia são im­
questões de ordem geoambiental, configurando portantes para o encaminhamento da inves­
um panorama técnico e científico onde o fator tigação arqueológica, especialmente aquela
geo (Morais 1999a) determinou os matizes de de caráter regional?
uma Arqueologia pioneira no interior paulista. 2) Em que medida, os fatores de ordem
Nesta oportunidade, retomo alguns ambiental colaborarão para a compreensão
pontos da abordagem iniciada anteriormente dos padrões de estabelecimento, para a
caracterização sócio-econômica e cultural
das comunidades ou para a recomposição
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universida­ dos cenários de ocupação humana de
de de São Paulo. determinadas regiões?

3
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. R evista do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 10:
3 -3 0 , 2 0 0 0 .

3) Em que medida os fatores geoam- sólidas para a compreensão dos assenta­


bientais contribuirão para a consolidação mentos pré-coloniais e históricos inseridos
de esquemas de manejo e gestão do no seu recorte ambiental.
patrimônio arqueológico evidenciado 3) Reorganização do quadro de
regionalmente? parâmetros locacionais relativo aos
assentamentos humanos, com o propósito
No caso da Arqueologia dos povos
de subsidiar um modelo locacional de
indígenas (que tem sido o ponto forte das
caráter preditivo a direcionar os levanta­
operações levadas a efeito no Paranapanema),
mentos arqueológicos sistemáticos. Neste
as proposições testáveis que poderão vir
caso, os parâmetros locacionais adquirem
colaborar na solução da problemática definida
o estatuto de geoindicadores arqueológi­
poderiam ser formalizadas na seguinte hipóte­
cos, elementos de vital importância nos
se: no ambiente da bacia do Paranapanema, a
procedimentos de levantamento, o princi­
Arqueologia Regional e seus possíveis
pal matiz da Arqueologia da Paisagem.
desdobramentos inter e intra-sítios, não
podem prescindir da parceria com a Geografia, 4) Identificação e registro do patri­
a Geomorfologia e a Geologia em todas as suas mônio arqueológico pré-colonial e históri­
etapas operacionais, sob risco da verificação co, procurando recompor os principais
de lacunas e lapsos irreparáveis, frente às traços da paisagem à época das ocupa­
necessárias intervenções no registro arqueoló­ ções. No caso do Paranapanema, o
gico. Reitero que os fatores de ordem geoam- inventário progressivo dos bens culturais
biental (aqui entendidos o meio ambiente de natureza arqueológica vem consolidan­
fisico-biòtico e sócio-econômico) constituem do paulatinamente a identificação e o
os alicerces para a compreensão e o mapea­ registro de sítios, ocorrências e paisagens
mento das características sócio-econômicas e de interesse para a Arqueologia, decorren­
culturais das populações indígenas, contribuin­ tes de mais de trinta anos de pesquisa.
do expressivamente para os esquemas de Concomitantemente, os procedimentos
manejo e gestão do patrimônio arqueológico adotados abrem caminho para a interlocu-
delas herdado. ção entre os dados obtidos por diferentes
pesquisadores nas áreas limítrofes, como as
pesquisas do Rio Ribeira médio-superior
Revivenciando o fator geo (De Blasis 2000) e do Tietê médio (Caldarelli
1983, Afonso 1995). A recomposição de
traços da paisagem à época das ocupações
No ambiente da Arqueologia, o fator geo
ainda é carente em face das lacunas nas
costuma alavancar com competência planos e
abordagens paleogeográficas que envol­
ações no âmbito da investigação arqueológica
vem a Geologia, a Geomorfologia e a
rotineira ou especial (entenda-se, neste caso, o
Fitogeografia do Quaternário continental.
salvamento arqueológico), proporcionando
5) Estímulo a uma aproximação com a
alguns elementos vitais como os que relaciono
Etnologia, fomentando enfoques etnoar-
em seguida:
queológicos, com especial ênfase nos
1) Subsídios ao reconhecimento e à grupos agricultores imediatamente
análise das mudanças nos padrões de anteriores à conquista ibérica. No caso
assentamento em relação ao meio ambiente do Paranapanema, tento entender siste­
físico-biótico, da pré-história aos grandes mas regionais de povoamento pré-
ciclos econômicos regionais, já no univer­ colonial à luz dos preceitos geográficos.
so da sociedade nacional. E isso tem algumas implicações termi­
2) Identificação dos principais traços nológicas. Não há porque inventar novos
introduzidos pelo povoamento na paisa­ nomes, novos rótulos, principalmente
gem, dos sistemas de uso e ocupação do quando se trata da abordagem das
solo e seus efeitos no meio ambiente populações indígenas do passado
regional, provendo bases arqueológicas recente. Por que ‘tradição Tupiguarani’?

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MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. R evista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
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Que tal pensarmos que, além de cacos e muito ainda que ser feito, com a concorrên­
mais cacos, houve critérios para a cia dos órgãos oficiais de proteção.
escolha dos locais de assentamento, 8) Otimização do uso das geotecno-
manejo agro-florestal, alterações pai­ logias para localizar, registrar e facilitar o
sagísticas. Enfim, cérebros e comporta­ gerenciamento do patrimônio arqueológico
mentos humanos. Então, porque não e paisagístico. Pontuo aqui um grande
acolher dois sistemas regionais de avanço que permite, inclusive, a relocali-
povoamento aparentados - Guarani e zação precisa de sítios anteriormente
Tupinambá - desdobrando a ‘arqueológi­ pesquisados. No caso do Projeto Parana-
ca’ (e um tanto convencional) tradição panema, todos os sítios anteriormente
Tupiguarani, assumindo uma desejável e registrados foram corretamente inseridos
possível postura etnoarqueológica? Não no sistema de posicionamento global com
seria mais interessante considerar a o uso de receptores GPS, colocando-o no
chamada tradição Itararé como um elenco bastante restrito de projetos de
sistema regional Kaingang, já que esta Arqueologia Brasileira que contam com a
etnia é tida como herdeira da tradição? totalidade dos sítios plenamente georrefe-
No embalo da mudança, por que não me renciados.
inspirar em José Proença Brochado 9) Retomada dos procedimentos
(comunicação pessoal, 1997) e propor ligados às técnicas arqueométricas,
justiça às populações indígenas que, principalmente as datações por termolumi-
cultivando a batata (dentre outros nescência e por luminescência óticamente
vegetais) mudaram os hábitos alimentares estimulada, com o propósito de inserir
dos europeus. Por que chamá-los de cronologicamente as ocupações humanas
horticultores, já que o termo é mais do passado. No caso do Paranapanema, a
apropriado aos plantadores de hortaliças? consecução deste objetivo permitiu
Seria pelo fato de não cultivarem espécies sensível avanço na consolidação do
exóticas, nos moldes da agricultura quadro cronológico dos estratos arqueoló­
comercial introduzida pelos conquistado­ gicos componentes dos diferentes sítios
res europeus? O justo é chamá-los, sim, regionais.
de agricultores praticantes de uma
agricultura de subsistência (e, ao que
parece, exercitaram com sucesso o manejo Desenhando uma metodologia
da floresta).
6) Identificação e registro dos fatores Em outra oportunidade (Morais 2000)
de risco que afetam os sítios, os locais e as afirmei que vez por outra alguém reclama, com
paisagens de interesse arqueológico, certa veemência, a existência de lacunas
propondo medidas para a mitigação in situ graves na Arqueologia regional e nacional,
dos impactos aos quais estão sujeitos. mormente girando em tomo da expressão
7) Proposição de ações de manejo e ‘perda do bonde da história’, aplicada à
gestão das áreas de interesse arqueológi­ discussão dos novos paradigmas da disciplina
co e paisagístico, mapeando os seus (fala-se em atrasos da ordem de uma ou duas
componentes. O mapeamento é o procedi­ dezenas de anos!). Mas o fato é que a Arqueo­
mento básico inicial. Tenho insistido que a logia Brasileira existe e está por aí criando e
instrumentalização dos Municípios e dos recriando o longo percurso dos povos indíge­
Estados da União com mapas georrefe- nas e da sociedade nacional, tentando consoli­
renciados, elaborados em ambiente dar uma cor local que promova sua melhor
eletrônico, é uma maneira de conscientizar identificação no cenário internacional. Nesse
o poder público local com relação às suas sentido, talvez possamos digerir as ‘lacunas’
responsabilidades no sistema de federalis­ como etapas (mal) queimadas, no momento em
mo cooperativo de gerenciamento do que somos atropelados pela frente ‘pós-pós-
patrimônio arqueológico. Neste sentido, há processualista’, na letra de Hodder:

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M ORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. R evista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
3 -3 0 , 2 0 0 0 . *

‘...W h at is p o s t po stp ro cessu a l arch aeo­ elaboradas. O levantamento estimativo


logy? One o f the main reasons f o r using the proporciona subsídios para a definição de
term ‘p o s t ’ in p o stp ro cessu a l arch aeology was
esquemas preliminares e genéricos de
that a diversity o f view s was to be espoused, with
no sin g u la r an d u nified p e rsp ective im posed on manejo e gestão dos registros arqueológi­
the discipline. This em phasis on diversity has cos e das paisagens notáveis correlatas,
con tin u ed on into the 1990s. Even p ro cessu a l permitindo a elaboração de MDTs (mode­
archaeology has seen its splits, as in the lagens digitais de terreno) de pequena
em ergence o f cogn itive processu al archaeology
escala. Na primeira aproximação dos
(Renfrew and Zubrow 1994) and neo Darwinian
archaeology (e.g. Dunnell 1989). The end o f registros pré-históricos são considerados
gran d narratives, regionalism and the em brace o f os geoindicadores arqueológicos que
m ultivocality are ch aracteristics o f archaeology constituem os parâmetros do modelo
in this period. There is greater person al choice locacional, de caráter preditivo. Sensores
an d ecletism in the pu tting together o f theoretical
orbitais e sub-orbitais são utilizados nesta
p o sitio n s .’ (Hodder 1999: 5, grifo meu).
fase. Neste nível não se prevê outro tipo
Nesta ótica, a subdisciplina Arqueologia de intervenção nos registros arqueológi­
da Paisagem procura ganhar corpo na peça de cos, além de coletas comprobatorias
gestão do Projeto Paranapanema, que é o seu georreferenciadas de materiais aflorantes.
plano diretor de pesquisa. Em termos de
Nível 2: corresponde à fase de identifi­
estruturação orgânica, ela concorre com
cação e avaliação, com especial ênfase nos
algumas outras - Geoarqueologia, Arqueolo­
compartimentos topomorfológicos e
gia Ambiental, Etnoarqueologia e Arqueo-
fitogeográficos (entendidos como geoindi­
metria, completando um interessante ciclo de
cadores arqueológicos), selecionados
processos interdisciplinares. O gerenciamento
durante o levantamento estimativo. O nível
de banco de dados e o mapeamento automati­
zado são os instrumentos que balizam os 2 assume características de levantamento
procedimentos de preservação patrimonial ex avaliatório. Nele se define a extensão e a
forma de cada registro arqueológico e dos
situ.
Valendo-se de um corpo de teoria que segmentos paisagísticos correlacionáveis,
admite ‘greater personal choice and ecletism contextualizando-os na topomorfologia.
in the putting together o f theoretical posi­ Cobrindo uma constelação de segmentos
tions’, a Arqueologia da Paisagem, tal como areolares de menor extensão, o levanta­
concebo, procura resgatar e revitalizar a base mento avaliatório proporciona registros
de dados arqueológica a partir de três níveis mais detalhados que permitem compreen­
de abordagem, entendidos grosso modo como der a evolução das paisagens. A partir
levantamentos (neste caso, insisto no resgate deste nível, a geoarqueologia e a arqueolo­
do melhor dos sentidos do termo): gia ambiental convocadas para desempe­
nho mais expressivo, em escala mais
Nível 1: objetiva localizar e promover o detalhada. Promovendo a aquisição de
levantamento básico estimativo de locais pontos e dados adicionais, o levantamento
de interesse arqueológico e paisagístico avaliatório é projetado para, gradativãmen­
por superfícies extensas, em escala te, alcançar o nível 3. Todavia, ainda neste
regional. Loci são inventariados com o nível é possível registrar detalhadamente
propósito de iniciar a construção da base os cenários humanos e paisagens notáveis
de dados dos recursos patrimoniais da
de interesse arqueológico, desenhando o
região. Os pontos centrais dos registros
processo das atividades humanas em
arqueológicos in situ são georreferencia-
determinados locais. MDTs mais pontuais
dos (sítios e ocorrências arqueológicas
são elaboradas, abrangendo os cinturões
descobertas ou revisitadas). As paisagens
de ambiência dos pontos focalizados.
notáveis, com algum interesse para a
Arqueologia, também são inseridas no Nível 3: reconhecido como levanta­
sistema de posicionamento global. Descri­ mento mitigatorio, corresponde à plenitude
ções sumárias para a base de dados são do manejo e gestão do registro arqueológi-

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MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
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co e das paisagens notáveis de interesse Não é meu propósito fazer escola ou impor
para a arqueologia. Representa o registro definições que, muitas vezes, poderiam não ser
paisagístico mais compreensivo dos sítios, apropriadas em outras situações. Assim, para
das ocorrências ou dos geoindicadores os exclusivos efeitos da Arqueologia da
arqueológicos selecionados no nível Paisagem em prática na bacia do Parana-
anterior. As geotecnologias são usadas panema, são entendidos os seguintes termos:
com maior ênfase no sentido de propiciar o Patrimônio arqueológico: conjunto de
manejo e a gestão dos registros arqueoló­ expressões materiais da cultura referentes às
gicos nas condições in situ e ex situ, sociedades indígenas pré-coloniais e aos
diametralmente opostas, porém absoluta­ diversos segmentos da sociedade nacional
mente interdependentes. A geração de (inclusive as situações de contato inter-
modelagens digitais de terreno é em escala étnico), potencialmente incorporáveis à
de detalhe. Os produtos resultantes do memória local, regional e nacional, compondo
levantamento mitigatorio incluem o parte da herança cultural legada pelas gera­
mapeamento na forma de construções ções do passado às gerações futuras.
isométricas do terreno ou edificações e Patrimônio arqueológico histórico-
maquetes. O desenvolvimento do nível 3 arquitetônico: segmento que compreende as
permite escolher se o manejo e o gerencia­ estruturas construídas e respectivos contextos
mento detalhado de cada registro arqueo­ referentes à sociedade nacional, dotadas de
lógico será na sua inserção natural, como significado histórico local ou regional, com­
parte de uma matriz arqueológica (preser­ pondo parte da herança cultural legada pelas
vação in situ), ou como patrimônio gerações do passado às gerações futuras.
resgatado de suas origens virtualmente Patrimônio paisagístico: paisagens
recomponíveis em ambiente digital (preser­ notáveis reconhecidas ou não por diplomas
vação ex situ). A opção pela preservação legais, de significância para as comunidades
in situ é preferível em função da natureza regionais. Inclui qualquer tipo de unidade de
finita dos bens arqueológicos enquanto conservação estabelecida pela legislação
recursos culturais, principalmente no caso competente.
do registro arqueológico pré-colonial. Registro arqueológico: referência genérica
Nesta opção há de se pontuar o efetivo aos objetos, artefatos, estruturas e construções
comprometimento dos órgãos oficiais de produzidas pelas sociedades do passado,
proteção e da sociedade em geral, com a inseridas em determinado contexto. Conceito
responsabilidade da preservação in situ. amplo que independe da posterior classificação
Em contrapartida, na opção pelo resgate do registro como sítio, ocorrência ou geoin-
do registro arqueológico, pontua-se a dicador arqueológico. Refere-se aos objetos
responsabilidade do exercício profissional, naturalmente inseridos no meio ambiente físico
pois a qualidade da preservação ex situ ou às estruturas implantadas nas paisagens
dependerá do georreferenciamento preciso urbanas e rurais. Abrange as matrizes arqueoló­
e detalhado de cada elemento inserido na gicas, as expressões arqueológicas evidentes
matriz arqueológica literalmente desmonta­ (um conjunto funerário, por exemplo) e as
da pelas intervenções de campo. expressões arqueológicas latentes (por exem­
plo, as assinaturas físico-químicas no solo que
corroboram estruturas funerárias praticamente
Navegando por alguns conceitos invisíveis). Inclui certos arranjos paisagísticos
(como aqueles decorrentes do manejo das
A leitura do texto talvez venha esbarrando formações florestais por agricultores indíge­
em alguns termos nem sempre de uso corrente. nas), bem como os elementos do meio físico-
Desse modo, convém colocá-los e explicá-los biótico de interesse para a Arqueologia (por
de forma mais precisa. Esclareço outrossim exemplo, os diques elásticos ou as cascalheiras
que se trata da emissão de conceitos estrita­ que serviram de fonte de matéria-prima para as
mente presos ao escopo e às idéias exaradas. indústrias líticas).

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MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10\
3 -3 0 , 2 0 0 0 .

Matriz Arqueológica: é o ambiente Assim, os geoindicadores sustentam um


sedimentar que contém as evidências arqueo­ eficiente modelo locacional, de caráter pre­
lógicas. A ausência da matriz arqueológica não ditivo, muito útil no reconhecimento de área e
desqualifica um sítio como tal, mas limita as levantamento arqueológico. Exemplos: casca-
investigações. Os sedimentos proporcionam o lheiras de litologia diversificada, diques de
contexto e mantêm as relações entre as arenito silicificado, pavimentos detríticos
assinaturas físicas e químicas que compõem o (matérias-primas de boa fratura conchoidal
registro arqueológico. Materiais' arqueológicos para o lascamento), barreiros (afloramentos de
colocados diretamente sobre substratos barro bom para a cerâmica), compartimentos
rochosos melhor se caracterizam como agrega­ topomorfológicos adequados para determina­
dos de objetos potencialmente sujeitos a do tipo de assentamento, trechos de evidente
contínua redeposição posto que desprovidos manejo agro-florestal, etc.
da proteção veiculada pela matriz sedimentar. Siglagem: sistema alfanumérico formado
O padrão de assentamento desenhado na por um segmento alfabético composto por três
bacia do Paraná superior demonstra que, em letras retiradas do nome do registro arqueológi­
seus respectivos contextos primários, a maior co e por um segmento numérico composto por
parte dos registros arqueológicos de caçado- seis números extraídos das coordenadas UTM
res-coletores foi soterrada por sedimentos (leste e norte). Exemplo: o Sítio Marambaia, com
aluviais (sítios de terraço), assim como os de as coordenadas UTM Leste 504.464 m e Norte
agricultores o foi por sedimentos coluviais 7.513.946 m, tem como sigla MRB044139.
(sítios colinares). Sistema UTM: é a base do sistema de
Sítio arqueológico: termo unitário na siglagem do Projeto Paranapanema. Trata-se
classificação dos registros arqueológicos. de sistema de coordenadas planas baseado na
Corresponde à menor unidade do espaço projeção Universal Transversa de Mercátor.
passível de investigação, dotada de objetos Nele, a Terra foi dividida em 60 fusos de seis
intencionalmente produzidos ou rearranjados, graus de longitude cada (numerados de 1 a
que testemunham comportamentos das 60), iniciando no antemeridiano de Greenwich
sociedades do passado. Um sítio só pode ser (180°), seguindo de oeste para leste. Em
definido como tal após sua análise enquanto latitude, os fusos são limitados pelos paralelos
registro arqueológico. Sítio de referência é 80°S e 84°N, divididos em faixas paralelas de 4o
aquele que por suas características topo- de latitude. Cada faixa forma uma zona identifi­
morfológicas e estratigráficas serve de apoio cada por letras. A origem das medidas lineares
para as interpretações regionais e respectivas do quadriculado é o cruzamento do meridiano
inserções. central de cada fuso com o Equador. Por
Ocorrência arqueológica: objeto único convenção, as coordenadas de origem são
ou quantidade ínfima de objetos aparentemen­ 500.000 metros na direção leste de cada fuso e
te isolados ou desconexos encontrados em 10.000.000 de metros na direção norte. Assim,
determinado local (uma ponta de flecha, um para se determinar a longitude local, basta
fragmento de cerâmica, um pequeno trecho de adicionar aos 500.000 metros a distância do
alicerce etc). A ocorrência arqueológica poderá ponto em relação ao meridiano central. O
ganhar estatuto de sítio a partir da posterior mesmo ocorre com relação às medidas em
detecção de evidências adicionais que permi­ latitude, quando o valor atribuído ao Equador
tam esta nova classificação. (10.000.000 de metros) decresce paulatinamen­
Geoindicadores: elementos do meio te em direção ao sul.
físico-biótico dotados de alguma expressão Geotecnologias: grupo de tecnologias
locacional para os sistemas regionais de referentes à informação geograficamente
povoamento, marcando locais de assentamen­ referenciada. Trata-se, dentre outros, do
tos antigos. No Paranapanema são considera­ sistema de posicionamento global, do geopro-
dos parâmetros de um modelo preditivo, cessamento, da fotogrametria, do sensoria-
construído a partir de um ‘modelo empírico’ mento aéreo ou orbital, da topologia e da
que emergiu da práxis arqueológica regional. geodésia. Não se admite o encaminhamento da
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investigação arqueológica sem o uso das diante da fragilidade dos elementos que
geotecnologias disponíveis, especialmente o permitiriam a sua identificação precisa. Na ótica
sistema de posicionamento global. das ‘tradições’, o que fosse Humaitá apareceria
Georreferenciamento: é o ato de estabele­ no registro arqueológico do Paranapanema por
cer a ligação entre a informação literal (banco volta de 1.000 a.C., permanecendo até aproxima­
de dados) ou gráfica (vetor ou bitmap) e a sua damente 750 d.C., quando desaparece frente à
posição específica no globo terrestre por meio consolidação do sistema regional Guarani. A
de suas coordenadas. O georreferenciamento carência no que toca à melhor identidade dos
mais comum e obrigatório no processo de humaitás com relação aos umbus fica por conta
investigação arqueológica é a amarração dos da ausência de marcadores locacionais que
registros arqueológicos no sistema de posicio­ diferenciem os dois sistemas no Paranapanema.
namento global por meio de um receptor GPS. Ambos se instalaram preferencialmente nos
Sistema regional de povoamento: a terraços marginais da coleção hídrica de maior
coordenação entre sítios ou conjuntos de porte. Locais de atividades minerárias (explora­
sítios pautada por relações sociais, econômi­ ção de diques de arenito silicificado intratra-
cas e culturais (considerando sua contempo- piano) marcam sítios com características de
raneidade, similaridade ou complementaridade) oficinais líticas. As diferenças ficariam por
define um sistema regional de povoamento. conta do design dos artefatos líticos: pequenos
Por exemplo: a maior parte dos sítios lito- e leves para os umbus, grandes e pesados para
cerâmicos colinares remanescentes de assenta­ os humaitás. Este design, porém, tem mais a ver
mentos de agricultures indígenas pré-coloniais com a massa volumétrica das pré-formas
do Paranapanema, com datação em tomo de disponíveis (seixos grandes ou pequenos,
mil anos antes do presente, compõe o sistema diques de arenito silicificado de espessura
regional Guarani. variável etc.), que forçaram o uso de técnicas de
Sistemas regionais de caçadores-coletores processamento adequadas para cada caso,
do Paranapanema: formados por comunidades facilmente reconhecíveis em análises de cadeia
nômades pré-históricas originárias do sul, operatoria. De qualquer forma, não considero
migrantes pelas calhas dos afluentes da margem válidos para a eventual distinção entre as duas
esquerda do Paranapanema. Vistos em conjunto situações aqueles pressupostos relacionados
compõem um macro-sistema regional de com ‘artefatos-guias’, sustentados por
caçadores-coletores. Até o presente estágio eventuais assinaturas tipológicas (presença
das investigações, as primeiras hordas datam, ou ausência de pontas-de-projétil). Outra
aproximadamente, do ano 6.000 a.C. No registro agravante para a não identificação de um
arqueológico compõem evidências possivel­ provável sistema regional Humaitá seria a sua
mente vinculadas àquilo que tem sido definido confusão, nas datas mais recentes, com
como ‘tradições’ de caçadores-coletores Umbu oficinas líticas e áreas de lascamento correta­
e Humaitá pelos arqueólogos do Rio Grande do mente atribuíveis ao sistema regional Guarani
Sul. Ao que parece, na perspectiva dos siste­ (neste caso, pontuo a fragilidade da ‘ausência’
mas regionais de povoamento seria possível de um outro ‘artefato-guia’, a cerâmica; ou
consolidar um sistema regional Umbu, presente seja, nem todo sítio sem cerâmica seria,
na região entre 6.000 e 2.000 a.C. (assunto necessariamente, atribuível aos caçadores-
retomado adiante). Sua frente de expansão coletores ditos humaitás).
máxima, possivelmente situada na bacia do Sistemas regionais de agricultores do
Tietê, integrou uma faixa de tensão com siste­ Paranapanema: formados por comunidades
mas de caçadores possivelmente originários da sedentárias originárias do sudoeste e do sul,
bacia do alto Tocantins e do Alto São Francis­ migrantes pelas calhas do Paranapanema e de
co. Nesta faixa predominariam influências seus afluentes da margem esquerda, capazes
recíprocas de ordem social, econômica e do manejo agro-florestal. Numa visão de
cultural, provocando certa identidade ‘frontei­ conjunto, compõem um macro-sistema regio­
riça’ nos sistemas envolvidos. Não há porque nal. A grande invasão tem início por volta do
definir um possível sistema regional Humaitá início da Era Cristã, marcada no registro
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arqueológico pelos remanescentes das aldeias para os quais são definidas as políticas públi­
do sistema regional Guarani. Na Bacia Superi­ cas locais de patrimônio cultural e ambiental,
or, a implantação se fez em colinas permeadas inclusive o patrimônio arqueológico.
por pequenos canais de drenagem. Na Bacia Unidade Geográfica de Manejo Patrimonial
Média, este padrão continua, ampliado por - UGMP: corresponde à fração de terreno
uma rede de acampamentos e oficinas de onde são executados os procedimentos de
lascamento junto às calhas hidrográficas de reconhecimento de área, levantamento,
grande porte. Na Bacia Inferior, continua a prospecção e escavação arqueológica. Abran­
ocupação dos relevos colinares somada à ge diferentes escalas, podendo ser uma micro-
edificação de aldeias nos grandes terraços bacia hidrográfica, um módulo arqueológico,
marginais do Paranapanema. No caso dos segmentos de um espaço definido como área
sistemas regionais de agricultores, a faixa de diretamente afetada por empreendimento
tensão fronteiriça fica no quadrante sudeste, potencialmente lesivo ao meio ambiente etc.
nos limites das bacias do Ribeira e do Tietê Módulo arqueológico: porção de terreno
médio-superior. Aí se deparam os sistemas balizada por coordenadas planas de referência
Tupinambá, Guarani e Kaingang. O primeiro, (UTM) que encerra um sistema local ou um
ainda carente de estudos que lhe permitam conjunto de geoindicadores arqueológicos.
melhor identidade regional, resulta do desdo­ Modelo locacional: formulado para o
bramento da antiga tradição Tupiguarani. O Projeto Paranapanema, a partir da construção
último se relaciona com a tradição Itararé que de um modelo empírico, resultante da práxis
regionalmente apresenta sítios com idades rotineira. No caso, assinaturas arqueológicas
entre os anos 400 e 800 d.C. Os sistemas repetidamente gravadas em alguns comparti­
regionais de agricultores do Paranapanema mentos da paisagem sugerem escolhas bem
foram desmantelados pelas várias frentes de sucedidas, determinadas por condições
invasão ibérica, a partir do século XVI. ambientais favoráveis. O modelo empírico se
Ciclos regionais: na perspectiva dos construiu pela detecção, consolidação e
sistemas regionais de povoamento são mapeamento dessas assinaturas em seus
acolhidos os ciclos regionais de desenvolvi­ respectivos suportes. A partir daí, os suportes
mento econômico consolidados no âmbito da são assumidos como geoindicadores arqueoló­
História Social e Econômica. Quando for o gicos. O modelo preditivo, denominado
caso, particularidades locais poderão ser TocacionaT, consiste no mapeamento dos
consideradas na definição de ciclos micro- suportes assumidos como geoindicadores
regionais. Por exemplo, o pequeno ciclo arqueológicos, por meio da interpretação de
canavieiro que deu origem à cidade de Piraju, registros de sensores orbitais e sub-orbitais.
na bacia do Paranapanema médio. Desse modo, são cartografados compartimen­
Sistema local: o conjunto de registros tos da paisagem potencialmente aptos a
coordenados pela presença de um ou mais apresentarem assinaturas dos povos indígenas
geoindicadores arqueológicos constitui um pré-coloniais. Cascalheiras de litologia diversi­
sistema local. É comum, por exemplo, a existên­ ficada, corredeiras, afloramentos de rochas de
cia de sítios e ocorrências arqueológicas de boa fratura conchoidal, barreiros, trechos de
caçadores-coletores e agricultores pré- manejo agro-florestal, terraços marginais, vaus
coloniais articulados pela conjunção de alguns de rios são, dentre outros, geoindicadores
geoindicadores, tais como diques de arenito arqueológicos.
silicificado intratrapiano, cascalheiras (ambos Padrão de assentamento: é a distribuição
utilizados como fonte de matéria-prima para as dos registros arqueológicos em determinada
indústrias líricas), e acidentes do leito dos rios área geográfica, refletindo as relações das
que compõem uma seqüência de saltos comunidades do passado com o meio ambiente
cachoeiras e corredeiras, ambiente propício à e as relações entre elas próprias no seu
apanha sazonal de peixes migratórios. contexto ambiental. Estratégias de subsistên­
Unidade Geográfica de Gestão Patri­ cia, estruturas políticas e sociais e densidade
monial - UGGP: território de cada município da população foram alguns dos fatores que

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influenciaram a distribuição do povoamento, A maior parte dos estudos arqueológicos


desenhando os padrões de assentamento. relativos à bacia do Rio Paranapanema no
Núcleo de solo antropogênico: é um tipo Estado de São Paulo tem sido encaminhada,
de assinatura dos povos pré-coloniais, desde 1968, pelo Projeto Paranapanema. O
corrente nos sítios de agricultores. Conhecido propósito inicial do programa foi o levanta­
por mancha preta, é um corpo sedimentar mento de antigas aldeias de grupos ceramistas
remanescente de antigos solos de habitação e atribuídos à então tradição Tupiguarani,
seu cinturão envoltório, depósitos de lixo, situadas nos municípios de Itapeva e Piraju
áreas de cocção de alimentos, etc. Surge como (Pallestrini 1975). Além das investigações
manchas ovaladas de solo enegrecido pelo encetadas no âmbito deste programa acadêmi­
elevado teor de materiais biogênicos coleta­ co pela Universidade de São Paulo, pontuarei
dos, processados e descartados pelas comuni­ algumas outras.
dades pré-coloniais, rico em evidências Entre 1964 e 1968 destacam-se as iniciati­
arqueológicas, principalmente fragmentos de vas de Igor Chmyz, desenhadas nos projetos
cerâmica e estruturas de combustão. No caso de salvamento arqueológico das UHEs Salto
do sistema regional guarani, são, com freqüên­ Grande, Xavantes e Capivara, empreendimen­
cia, os remanescentes da tapy iguassu’, a tos da antiga estatal paulista Uselpa (posterior­
casa-grande e seu entorno. Luciana Pallestrini mente sucedida pela CESP). Os materiais
mapeou pela primeira vez os núcleos de solo resgatados na faixa de depleção daquele
antropogênico do Sítio Fonseca, Itapeva, em primeiro reservatório constituíram o acervo
1968. inicial do Pronapa, posto que processados no
primeiro seminário que deu origem ao progra­
ma (Chmyz 1972).
Arqueologia do Paranapanema paulista Neste lapso, Silvia Maranca (também sob
os auspícios do Pronapa) engendrou alguns
Escrever sobre a Arqueologia do Parana­ levantamentos na sub-bacia do Rio Verde,
panema, especialmente o trecho paulista, é Município de Itaberá, estudando o Sítio José
tarefa provocadora. Palco das mais antigas Fernandes (Maranca 1969). André Prous (em
pesquisas arqueológicas (considerando os pesquisa independente) também promoveu
horizontes da nova ordem acadêmica e científi­ investigações que resultaram no mapeamento
ca imposta a partir de meados dos anos 60), seu de algumas casas subterrâneas no trecho
território e acervo patrimonial foram os que superior da bacia, em meados dos anos 70
primeiro sentiram as ações irreversíveis das (Prous 1979). Outras pesquisas mais recentes,
principais correntes inspiradoras da Arqueolo­ ligadas ao licenciamento de empreendimentos
gia Brasileira. Exatamente no meio da década, o potencialmente lesivos ao meio ambiente,
casal Evans e seus seguidores valeram-se dos percorrem extensos trechos da bacia do
materiais recuperados nas margens da represa Paranapanema. Com estas características
de Salto Grande para estabelecer as bases do destacam-se o resgate arqueológico da faixa
processamento de materiais arqueológicos pelo impactada pelo Gasoduto Brasil-Bolívia
Pronapa. Logo em seguida, Luciana Pallestrini, (Gasbol), da Petrobrás (De Blasis 2000), e o
inspirada nos procedimentos franceses consoli­ levantamento do patrimônio arqueológico da
dados por André Leroi-Gourhan e Anette faixa de influência da Linha de Transmissão
Laming-Emperaire, inicia as escavações de Itaberá/Tijuco-Preto, de Fumas Centrais
sítios arqueológicos em Itapeva e Piraju. De Elétricas (Morais 2000).
fato, as duas posições acabaram por acentuar a
forte identidade que marca as raízes da Arqueo­
logia que se faz, hoje, em cada uma das margens Retornando às fases e
do Paranapanema (entenda-se as porções tradições arqueológicas
paulista e paranaense da bacia), pela Universi­
dade de São Paulo e pela Universidade Federal A lógica pronapiana relativa às fases e
do Paraná. tradições arqueológicas considerou que tais

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conceitos se relacionam com ‘unidades José Proenza Brochado houve por bem
arqueológicas artificiais’, que não podem ser desarticular a arqueológica tradição Tupigua-
confundidas com culturas, mesmo porque, na rani. Concordo que não é correto mesclar
maioria dos sítios arqueológicos (principal­ tupinambás e guaranis pré-coloniais (grafados
mente os pré-cerâmicos), as condições ambien­ no plural, como qualquer outro gentílico da
tais reduziram os elementos da cultura material língua portuguesa) sob o estranho rótulo de
a raros vestígios (Kem 1981). Considero este ‘tupiguarani’ (sem hífen), como se a cerâmica
pensamento válido apenas nos estreitos pudesse ser um fator de fusão de dois povos.
limites da arqueografia per se: a idéia de fase e A Arqueologia não deve preocupar-se com a
tradição apóia-se em objetos e, vez por outra, simples organização e o agrupamento de
(tropegamente) em algumas características cacos. Que uma boa arqueografia encaminhe
físicas do registro arqueológico, como chamou procedimentos preliminarmente válidos é
a atenção Solange Caldarelli (1983). Ora, os aceitável. Todavia, não há porque insistir em
objetos são meios e podem gerar classifica­ mantê-los permanentemente.
ções aplicáveis a eles próprios. Porém, é
complicado transpor a idéia de uma ‘unidade
arqueológica artificial’, gerada a partir do Cenários de povoamento do
artifício da seriação de objetos, para algo maior Paranapanema paulista
e mais complexo como são os antigos sistemas
de povoamento. Também não há porque ignorar o que foi
De início, a inspiração francesa que feito antes. O ponto de partida para se compre­
alicerçou o Projeto Paranapanema indicou a ender o design dos grandes sistemas regionais
não utilização do jargão pronapiano na sua de povoamento do Paranapanema será a
rotina científica. A investigação encaminhada arqueografia das tradições arqueológicas.
sob os auspícios do projeto continua não Embora percorra este caminho, não estarei
acolhendo os termos fase e tradição arqueoló­ simplesmente substituindo o termo ‘tradição’
gica, posto que eivados de um artificialismo por ‘sistema regional de povoamento’.
classificatório exacerbado, de todo incompatí­ Primeiramente, há de se definir dois macro-
vel com uma postura que busca, dentre outros sistemas que se sucederam no grande lapso de
propósitos, levantar e analisar os cenários das tempo, marcado pelo início do povoamento da
ocupações humanas do passado. Reconheço, América pelas populações de origem mon­
porém, que a arqueografia que inventou (e gólica e pela invasão européia do século XVI.
denominou) as fases e as tradições acabou por O macro-sistema regional de povoamento dos
distinguir características peculiares em conjun­ caçadores-coletores perdurou por mais de
tos de materiais arqueológicos e isto é prelimi­ cinco milênios, sucedido por um outro, de
narmente louvável. Mas não deveria ter parado menor expressão temporal, de dois milênios,
por aí. atribuído aos agricultores. Esta grande divisão
Assim, a chamada tradição Umbu é parte de fatores de ordem econômica e social
marcada por um traço-diagnóstico (como foi nas suas grandes linhas. Até o momento, a
entendido seu artefato caracterizador, quase Arqueometria indica que o macro-sistema
um fóssil-guia), a ponta-de-projétil. Na pers­ regional de caçadores-coletores do Paranapa­
pectiva da Arqueologia da Paisagem do nema paulista se encontra balizado entre,
Paranapanema, um eventual sistema regional aproximadamente, 6.000 a.C. e o início da Era
Umbu deverá ser, no mínimo, diagnosticado Cristã. Após um período de convivência e
pela cadeia operatoria que produziu a sua inter-relação, impõe-se nova ordem social e
tralha lítica, plenamente inserida nas condicio­ econômica com o avanço dos agricultores
nantes sociais e ambientais em vigor. Para sobre os territórios dos caçadores-coletores.
alçar o estatuto de sistema regional de povoa­ Esta situação perdurarou até a invasão ibérica,
mento, Umbu, Humaitá ou Itararé, deverão na virada do século XV para o XVI.
preencher requisitos mais sofisticados e Os macro-sistemas regionais de povoamen­
complexos. to anteriores à formação da sociedade nacional

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nas terras do Paranapanema incluem identida­ tradições consolidadas na Região Sul, cujo
des sócio-culturais em vários estágios de correspondente povoamento talvez tenha
definição. Certamente, as identidades compo­ avançado para o norte, até os interflúvios
nentes do macro-sistema regional de agriculto­ entre os rios Tietê e Grande. Retomo a questão
res são melhor definidas, principalmente em dos umbus e humaitás, sobejamente descritos
face das correlações arqueológicas, etnoar- por arqueólogos gaúchos (Mentz Ribeiro 1999,
queológicas, etno-históricas e etnográficas. Por Schmitz 1999). Na sua região nuclear, umbus e
outro lado, os registros arqueológicos remanes­ humaitás foram definidos e diferenciados
centes têm sido mais intensamente estudados. basicamente pela tipologia das suas indústrias
Desta forma, despontam o sistema regional líticas (para melhor se inteirar das discussões
Guarani e o sistema regional Kaingang. Este recentes acerca da crise das tradições meridio­
último seria correlacionável à tradição Itararé nais, sugiro a leitura dos trabalhos de Schmidt
(prefiro aproximar o jargão arqueológico do Dias, 1994 e Hoeltz, 1997). Minha intenção é
passado recente aos nomes etnográficos; daí a submeter essas tradições ao olhar dos siste­
opção por tomar o gentílico kaingang, em mas regionais de povoamento, considerando
substituição ao topónimo ‘Itararé’). explicitamente a forte influência da Geografia
O macro-sistema regional de caçadores- nesta aproximação.
coletores é de caracterização bem mais comple­ Não creio ser possível sustentar a
xa em face da sua longevidade. As tentativas identidade de dois sistemas regionais de
de subdivisão ainda são claudicantes. A povoamento no Paranapanema, a partir da
literatura arqueológica proveniente dos definição das tradições Umbu e Humaitá.
estados do sul, principalmente o Rio Grande Como frisei anteriormente, as diferenças
do Sul e o Paraná (Schmitz 1981, Kern 1982) tipológicas expressas na tralha lítica parecem
tem consolidado idéias em tomo da existência muito mais determinadas pela massa volumé­
de duas grandes tradições de caçadores- trica da pré-forma das matérias-primas disponí­
coletores - Umbu e Humaitá - que se per­ veis. No máximo, seria o caso da adaptação
meiam no tempo e se estendem até as latitudes das técnicas indígenas às ofertas da natureza.
do atual território paulista. Neste caso, a Adicionalmente, a demarcação espacial entre
Arqueologia de São Paulo lidaria com uma umbus e humaitás sugere uma configuração
faixa de fronteira (ou interação) entre as aparentemente caótica posto que seus marca­
tradições líticas meridionais e centro-orientais dores territoriais se interpenetram ao sabor de
do subcontinente (é interessante que o mesmo motivos vários. Assim, separar dois sistemas
pode ser afirmado com relação ao macro- em um mesmo espaço geográfico, tentando
sistema de agricultores). desenhar ‘fatias’ territoriais com base no perfil
de pedúnculos de pontas-de-projétil, perde
sentido na medida que se submetem as
Macro-sistema de indústrias líticas envolvidas ao olhar da cadeia
caçadores-coletores do Paranapanema operatoria e sua ambiência.
Quando acionados, alguns parâmetros de
natureza ambiental corroboram a fragilidade da
À vista dos dados arqueológicos recentes
distinção entre umbus e humaitás enquanto
e da releitura dos resultados anteriores,
candidatos ao estatuto de sistemas regionais
considero o território paulista de modo geral e
de povoamento, como pode ser vislumbrado
a bacia do Paranapanema de modo particular
em seguida.
‘arqueológicamente meridionais’. Assim, se
existem episódios arqueológicos que possam 1) Morfología e função dos assenta­
ser qualificados como ‘tradições do sudeste’, mentos: os sítios do macro-sistema
pouco abrangerão o território paulista (Calda- resultam de acampamentos com funções
relli 1983). No máximo, as latitudes paulistas ‘habitacionais’ ou onde se realizavam
seriam uma ‘terra de fronteiras’. atividades minerárias. A determinante para
Caracterizar os caçadores-coletores do a escolha do locus foi a fonte de matéria-
Paranapanema, significa discutir aquelas duas prima, geralmente cascalheiras de fitología

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diversificada (sílex, quartzito, arenito Tietê. A expansão humaitá teria vindo logo
silicificado) ou afloramentos de arenito depois (porém mesclada com a primeira por
silicificado (diques elásticos). longo intervalo de tempo) não ultrapas­
2) Técnicas e tipologia lítica: os líticos sando as vertentes setentrionais do
constituem o traço característico do Paranapanema. Os pequenos ciclos de
macro-sistema. Se há uma característica climas quentes e localmente mais secos,
que marque alguma diferença a partir do ocorrentes entre 3.050 e 2.050 a.C. (Ab’Sáber
olhar sobre as indústrias líticas, são as 1989), talvez tenham refreado a expansão
técnicas do processamento da matéria- da tradição Umbu para o norte.
prima, diagnosticáveis por meio da adoção 6) Parâmetros locacionais: os sítios do
do modelo cadeia operatoria. É interessan­ macro-sistema podem ser encontrados
te notar que tipos (considerando-se os indistintamente em terraços, patamares de
quadros tipológicos tradicionais) ‘umbus’ vertentes, cabeceiras de nascentes e topos
e ‘humaitás’ encontram-se mormente de interflúvios (parâmetros locacionais
presentes em um único sítio. Neste caso, ligados à função morar, com características
reitero o que foi dito anteriormente a de geoindicadores, no modelo preditivo).
respeito da adaptação da técnica indígena Quase sempre estão associados a cas-
à oferta da matéria-prima pela natureza. calheiras, diques elásticos ou pavimentos
3) Hidrografia e topografia: os rema­ detríticos (locais de extração mineral para a
nescentes dos acampamentos do macro- indústria lítica) e corredeiras, cachoeiras
sistema surgem tanto nas grandes ou ou saltos (locais de apanha de peixes
pequenas calhas fluviais, como em colinas, migratórios).
colos e platôs mais interiorizados, distribuí­
No presente estágio da investigação
dos por várias cotas altimétricas.
4) Geologia e geomorfologia: os arqueológica nesta faixa de fronteiras que é o
acampamentos, sem distinção, tendem a se território paulista, teria pouco fundamento a
localizar junto a afloramentos ou depósitos manutenção da dicotomia Umbu-Humaitá.
de matérias-primas aptas para o lascamento. Existe categoricamente um macro-sistema
5) Fitoecologia: a territorialidade da regional de caçadores-coletores ainda indi­
tradição Umbu e e da tradição Humaitá, no viso, que pode ser rotulado com um termo já
espaço geográfico do Paranapanema, consagrado - ‘Umbu’. A existência de ‘tradi­
dependeu menos das adaptações ambien­ ções’ líticas no seio do macro-sistema é um
tais que do distanciamento das áreas preciosismo tipológico mal amparado, que
nucleares situadas bem mais ao sul. Se a sucumbe na perspectiva da análise da cadeia
identidade separada for fato consumado, operatòria, conforme afirmei anteriormente.
ambas as tradições se alternaram nos
mesmos locais, como comprovam os
vários sítios multicomponenciais das Agricultores do Paranapanema
bacias do Paranapanema e do Tietê. Isto
contraria as afirmações de alguns arqueó­ Novas observações, principalmente
logos do Sul que frisam que as comunida­ aquelas feitas por arqueólogos do Sul do Brasil
des portadoras da tradição Umbu teriam (José Proenza Brochado, Francisco Noelli e
vivido em áreas de campo aberto, hábito André Soares, dentre outros), têm provocado
herdado dos caçadores nômades mais bases sólidas para a consolidação da chamada
antigos. Ao contrário, as comunidades tradição Guarani, que resulta do desdobramento
portadoras da tradição Humaitá teriam daquilo que foi a tradição Tupiguarani (o outro
vivido em regiões de mata densa, princi­ componente vem sendo identificado como
palmente nas margens dos rios. Neste tradição Tupinambá). Aproximações arqueoló­
modelo, a expansão umbu teria alcançado gicas, etnoarqueológicas, etno-históricas e
antes o Paranapanema, ultrapassando-o etnográficas corroboram francamente a adoção
até as vertentes setentrionais da bacia do da perspectiva dos sistemas regionais de

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povoamento no caso dos agricultores indíge­ ‘sítio-habitação’, como faziam os pesquisadores


nas do Paranapanema. do Pronapa, a pesquisadora inaugurou a perspec­
Na perspectiva dos sistemas regionais de tiva da aldeia como categoria de assentamento,
povoamento, as ocupações que resultaram nos fazendo comparecer preocupações de ordem
sítios arqueológicos guaranis estão datadas etnográfica. Para tanto, definiu uma seqüência
entre 2.030 e 200 anos antes do presente, o operacional de trabalhos de campo que pode ser
que corresponde ao lapso cronológico 80 a.C. reconhecida no seu próprio texto (Pallestrini 1975):
a 1750 d.C. (datas verificadas no Sítio Arqueo­
1) Caracterização ecológica, com
lógico Panema - Município de Campina do
análises do contexto botânico, geológico,
Monte Alegre, objeto de outro artigo integran­
pedológico e geomorfológico.
te deste volume, de autoria de Silvia Piedade e
2) Limpeza da área arqueológica, com
André Soares).
o propósito de se obter áreas suficiente­
Luciana Pallestrini (1975) descobriu os
mente claras para as futuras decisões a
primeiros sítios que hoje compõem o sistema
serem tomadas, tais como trincheiras,
regional Guarani da bacia do Paranapanema. Já
cortes e setores.
no final dos anos 60, esta pesquisadora havia 3) Topografia e quadriculamento, que
inaugurado uma série de levantamentos e representam a operação fundamental de
escavações de sítios arqueológicos por ela
amarração do sítio arqueológico.
denominados ‘lito-cerâmicos colinares do 4) Ataque em profundidade e superfí­
interior’, cujos itens fundamentais foram assim cie, por meio de perfis indicadores da
descritos: estratigrafía e decapagens horizontais.
1) Vestígios representados por A continuidade das pesquisas na área do
testemunhos cerâmicos e líticos. Paranapanema paulista levaram à localização e
2) Distribuição dos vestígios segundo
mapeamento de outras aldeias guaranis pré-
planos espaciais com zonas diferenciadas, coloniais, bem como alguns acampamentos a
representadas por manchas escuras, quase elas subordinados. O presente estágio das
negras. investigações arqueológicas permite estabele­
3) Localização dos conjuntos escuros cer o seguinte quadro ambiental para as
em áreas de ápice de colinas com declives ocupações guaranis pré-coloniais que concre­
suaves. tizam o sistema regional Guarani, por meio de
4) Existência constante de um rio na sítios e acampamentos.
base da colina.
5) Fitogeografia regional representada 1) Morfologia e função do assenta­
pelo cerrado, manchas de floresta tropical mento: aldeias e acampamentos constitu­
e palmeiras sobre solos latossólicos em sítios a céu aberto. No primeiro caso,
avermelhados. enquanto sítio de moradia, há preocupa­
6) Conceituação geral dos sítios como ções de ordem locacional, marcadamente
sendo correspondentes a aldeias pré- defensivas: o sítio colinar ocupa posição
históricas situadas em colinas próximas a em acrópole (isto também é válido para o
rios, cujos habitantes eram ceramistas alto terraço), o que permite um amplo
embora conservando ainda a técnica do domínio visual da skyline. No caso dos
trabalho da pedra. acampamentos, predomina outra variável
estratégica: a fonte para atividades
7) Inserção dos sítios arqueológicos
extrativas.
no tempo, graças às datações por termolu-
minescência, abrangendo faixas cronológi­ 2) Materiais: o material arqueológico
mais popular nos sítios do sistema Guarani
cas de mil anos.
é a cerâmica. Os remanescentes das
A grande contribuição de Pallestrini no que aldeias fornecem milhares de fragmentos e
toca aos sítios guaranis pré-coloniais foi, de fato, algumas vasilhas inteiras (inclusive urnas
sua visão do conjunto intra-sítio. Longe de funerárias de sepultamento primário).
considerar cada uma das manchas pretas um Surgem os líticos polidos, principalmente

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lâminas de machado e mãos-de-pilão aptos para a agricultura. Os acampamentos


provenientes de pré-formas selecionadas tendem a se localizar junto a afloramentos
nas minas de palanquinhos (afloramentos ou depósitos de matérias-primas aptas
de disjunções colunares de basalto). A para o lascamento.
importância do lítico lascado guarani vem 6) Tipologia topomorfológica: as
sendo descoberta nestes últimos anos. aldeias se inserem nas classes ‘sítio em
Muitos sítios líticos atribuídos erronea­ terraço fluvial’ (na calha inferior do Parana­
mente a caçadores-coletores da tradição panema), ‘sítio em terraço e baixa vertente’
Humaitá, pela ausência de cerâmica (o tal e ‘sítio em colina’. Os acampamentos
traço-diagnóstico!) são, de fato, acampa­ podem se enquadrar nas categorias ‘sítio
mentos guaranis, verdadeiras oficinas de em piso basáltico’ e ‘sítio em pavimento
lascamento. No Paranapanema médio, a detrítico’ (locais de atividades minerárias).
camada II do Sítio Camargo, do ano 920 7) Fitoecologia: as aldeias e os
d.C., associada a abundantes afloramentos acampamentos se distribuem pelos
de arenito silicificado, não apresentou domínios da floresta estacionai semide-
nenhum caco de cerâmica. O lascamento, cidual, relacionada com o clima Cwa
todavia, tem todas as características (mesotérmico com inverno tendendo a
tecno-morfológicas de sítios lito-cerâmicos seco) e terras com bom potencial agrícola.
como o Alves, situado a menos de 10 km, 8) Capacidade de uso da terra: as
cuja ocupação é do ano 930 d.C. Isto aldeias se localizam em terras de média a
indica que a camada II do Camargo é, de alta produtividade agrícola, com declivi-
fato, o registro arqueológico de uma dade inferior a 20%, embora sujeitas a
oficina guarani. O mesmo ocorre com o problemas de conservação do solo. No
Camargo 2, localizado na calha do Parana­ trecho inferior da bacia, apesar de boa
panema. Lá foi recuperada grande quanti­ parte das aldeias se situar em altos
dade de líticos com ‘características terraços marginais, comparecem manchas
humaitás’, associados a meia dúzia de de solo hidromórfico de boa sustenta-
fragmentos de cerâmica guarani, atribuí­ bilidade para atividades agrícolas.
veis a data semelhante a do Sítio Alves. 9) Parâmetros locacionais: mormente
3) Altimetria: até o momento, as aldeias e as aldeias se encontram associadas aos
acampamentos descobertos não ultrapassam seguintes parâmetros locacionais: terraços
a cota de 700 metros sobre o nível do mar. e vertentes (ligados à função morar) e
4) Hidrografia: no trecho médio- barreiros (atividade extrativa mineral /
superior da bacia, as aldeias se localizam cerâmica). Os acampamentos poderiam se
junto aos pequenos tributários, tanto do associar a cascalheiras, diques elásticos,
Paranapanema, como de seus grandes pavimentos detríticos (atividade extrativa
afluentes (o Taquari, por exemplo). Acam­ mineral / lítico lascado), disjunções
pamentos tendem a se localizar na calha colunares (atividade extrativa mineral /
lítico polido) e corredeiras, cachoeiras e
dos grandes rios. No trecho médio-inferior
saltos (atividade extrativa animal / pesca).
(a jusante da confluência Paranapanema-
Pardo) aldeias e acampamentos compare­ Se anteriormente foi possível questionar a
cem principalmente na calha do Paranapa­ afirmação pronapiana de que tradições e fases
nema, embora não possam ser descartadas são unidades arqueológicas artificiais quando
ocorrências junto a pequenos afluentes. se trata de caçadores-coletores, no caso dos
5) Geomorfologia e Geologia: as agricultores há de se convir que pelo menos o
aldeias distribuem-se por todas as grandes conceito de tradição se confunde com cultura,
unidades geomórficas, desde a Depressão haja vista o peremptório desdobramento da
Periférica até o Planalto Ocidental, passan­ convencional tradição Tupiguarani em duas
do pelas Cuestas Basálticas, o que inclui outras, Guarani e Tupinambá, quando prevale­
rochas sedimentares e de origem vulcânica ceu o bom senso dos aportes interdisciplinares
que se decompõem em solos geralmente possíveis entre a Arqueologia e a Etnologia.

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Nesta linha de pensamento, não há porque sintetizar os primeiros contatos em sentido


manter o topónimo Itararé para a identificação de genérico para colocar, em seguida, um caso
um sistema regional Kaingang, de filiação Jê, que específico de contato mais recente.
se instala nos primeiros séculos da Era Cristã nas O Tratado de la Capitulación y la Parti­
formações florestais ombrófilas mistas com ción del Mar Oceano, firmado em Tordesilhas,
araucárias. A literatura tradicional notifica que Espanha, sob os auspícios da Santa Sé, deixara
parte dos sítios está distante dos rios. Algumas a metade oeste do Paranapanema àquela
unidades habitacionais são deprecionadas potência. Assim, a partir de Assunção, os
(casas subterrâneas). Os fragmentos de cerâmica jesuítas espanhóis começaram a implantar as
correspondem a vasilhas pequenas, intensamen­ primeiras missões, exatamente as do Paranapa­
te utilizadas sobre o fogo. nema, fundando duas bastante importantes no
O sistema regional Kaingang se faz início do século XVII: Santo Inácio Menor e
presente no Paranapanema paulista de duas Nossa Senhora de Loreto. Certamente, durante
maneiras: compondo sítios próprios do sistema o período em que floresceram, a influência dos
ou pela presença de materiais kaingang, em padres espanhóis extrapolou os núcleos
sítios guaranis. No primeiro caso, o avanço originais, aproximando-se bastante do trecho
das pesquisas para a bacia superior, nas suas médio, conforme testemunham recentes pesqui­
vertentes atlânticas, já tem demonstrado a sas arqueológicas na região de Canoas (entre
existência de sítios tipicamente kaingang, as cidades de Assis e Ourinhos). Descontentes
posto que atribuíveis à chamada tradição com a pax iberica apenas formalmente aceita
Itararé. As investigações levadas a efeito por pelos europeus, os bandeirantes paulistas
ocasião do resgate do patrimônio arqueológico passaram a atacar as reduções a fim de apresar
afetado pelo Gasoduto Brasil-Bolívia veio índios para o trabalho escravo nas plantações
adicionar dados interessantes a respeito de de cana do litoral vicentino e das terras altas de
uma provável faixa fronteiriça entre os mundos Piratininga. Tais ataques resultaram na transfe­
guarani, tupinambá e kaingang. Outrossim, rência das missões jesuíticas espanholas para
materiais kaingangs comparecem com freqüên­ centenas de quilômetros a jusante na calha do
cia em sítios do Sistema Guarani, principalmen­ Rio Paraná, deixando o Paranapanema um
te no trecho médio-inferior, o que comprova deserto de índios por quase dois séculos. Neste
certos tipos de contato entre as duas etnias. momento, avento um fato curioso, afeito ao
nome do rio: parana’pane’ma significa ‘água
grande azarada’, ‘água que não presta’. Como
O cenário da identidade nacional pode um rio extremamente rico em peixes não
prestar? Por ter sido o caminho dos bandeiran­
tes na rota da destruição da ordem jesuítica
As frentes de expansão colonial das entre os guaranis? Talvez.
potências ibéricas na bacia do Paranapanema O repovoamento dos sertões do Paranapa­
seguiram caminhos opostos: de fato, o Meridia­ nema recrudesceu no século XIX, quando as
no de Tordesilhas cortava este território na sua terras devolutas passaram a ser alvo da cobiça
porção média, deixando para os portugueses a das novas frentes de posseiros. A imagem do
metade oriental e, aos espanhóis, a metade índio seria considerada um dos piores desafios
ocidental. No limiar da conquista, o Paranapa­
para eles, que se viam aterrorizados, atacados,
nema era povoado por guaranis que se distribuí­
roubados e até assassinados. Duas soluções
am em aldeias e acampamentos, compondo um
foram viabilizadas: exterminar os índios ou
sistema de ocupação territorial bastante caracte­
catequizá-los. Tais atitudes travestiam, de fato,
rístico (para melhor compreensão do assunto,
um outro objetivo: o esbulho das terras
leia-se Soares 1997). Portugueses e espanhóis
indígenas. Nesta época, três grupos marcavam
encontraram este desenho de apropriação do
presença nos sertões do Paranapanema:
espaço. Cada qual, porém, adotou um modo
diferente de submeter os guaranis. Sem maiores 1) Os kaingangs, conhecidos como co­
comprometimentos (não é objetivo deste roados, que ocupavam as vertentes seten­
trabalho aprofundar este aspecto), é possível trionais da bacia.

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2) Os g uaranis, conhecidos com o cor do sol, diferentemente do amarelo comum,


caiuás, que estavam percorrendo a bacia, na tinha significado especial na mitologia guarani.
procura da ‘terra-sem-mal’. Os posseiros vinham do Tietê médio e do
3) Os xavantes, ocupando os interflú- Sul de Minas Gerais e começaram a assentar-se
vios entre os afluentes do Paranapanema. na região, fundando os núcleos iniciais das
cidades (o solo é de grande fertilidade). Sua
Neste momento, pontuarei o caso do trecho
base econômica era a agricultura, principalmen­
médio como exemplo desta fase de contato,
te o plantio de cana-de-açúcar e algodão. Esses
envolvendo índios e posseiros. É o caso de
núcleos eram conhecidos como ‘patrimônios’.
Piraju, onde o povoamento indígena pré-
Piraju nasceu desta forma, a partir de uma gleba
colonial ou guarani histórico tem efetiva
doada por três famílias de posseiros - Arruda,
participação na herança cultural da cidade. Graciano e Faustino - onde foi levantada uma
Sabe-se que dentre as nações indígenas do
capela sob a invocação de São Sebastião.
território brasileiro, os guaranis se destacam Assim, as origens e o processo histórico
pela religiosidade e pelo misticismo. Egon de Piraju orbitam entre o sagrado e o profano.
Schaden os chamou de ‘teólogos sul-america- Entre uma antiga imagem de São Sebastião,
nos’, haja vista os cento e cinqüenta anos presente dos capuchinhos aos índios, deles
vividos nas missões jesuíticas, após a conquis­ tomada pelos posseiros e por várias vezes
ta ibérica (Clastres 1978). Isto tem um pouco a recuperada (conforme descrito por Constan­
ver com a historia da fundação de Piraju, que tino Leman, historiógrafo local).
envolve uma imagem de São Sebastião perten­ Hélène Clastres relata a versão indígena
cente a um grupo de índios aldeados. deste contato:
O ato da fundação da cidade, perdido nas
névoas dos meados do século passado (há ‘ ... Enquanto Guiracambi seguia as margens
do Paranapanema, Nimbiarapoñi chegava pelo
quem diga que aconteceu em 20 de janeiro de vale do Tietê até o oceano. Algum tempo depois
1862), foi certamente imbuído de algum espírito convencendo-se da im possibilidade de atravessá-
místico. Posseiros vindos do leste em busca lo, acreditou haver localizado erroneamente a
de nova vida, depararam com hordas messiâ­ terra-sem-mal, que uma tradição diversa situava
nicas guaranis vindas do oeste, na procura da no centro da Terra: arrepiou cam inho. No
mítica yvy marañe ’y, a ‘terra sem mal, onde não trajeto, uma epidemia de rubéola matou toda a
sua gente, exceto duas pessoas. Ele acabou
mais se morre’. Um dos encontros foi na região atravessando sozinho o Rio Paraná, sempre
onde é a cidade, na época conhecida pelos esperançoso de descobrir a terra-sem-mal.
exploradores do sertão por Tijuco-Preto, Morreu em 1905, no alto Ivaí. Seu sucessor, o
corruptela da expressão indígena teyque’p e ’, o pajé Tangará, conduziu de novo sua gente para
‘caminho da entrada’, a ‘boca do sertão’. De leste: primeiro até o Rio Verde, e daí até Piraju,
onde Nimuendajú conseguiu, em 1912, que os
fato, neste trecho, o Rio Paranapanema vence
sobreviventes do grupo (trinta e três pessoas) se
uma barreira de escarpas (cuestas arenito- instalassem na Reserva de Araribá. No mesmo ano,
basálticas), atravessando-as em estreito Tangará morreu na reserva. O breve relato dessas
afundamento, com um traçado sinuoso que migrações dos guaranis para a terra-sem-mal basta
acompanha as fraturas do basalto, sugerindo para mostrar, também aí, a originalidade de uma
que, em alguns trechos, o rio corre ‘para trás’. tradição religiosa que nem os maiores abalos
conseguiram enfraquecer. Nenhum sincretismo
As migrações messiânicas guaranis foram
existe aqui. E, ao contrário do que se dá com os
lentas e supervisionadas pela administração da movimentos messiânicos, não deparamos com
província: acampamentos e aldeias foram nenhuma ressonância política: não se trata de
implantados pelo caminho e, em pleno Tijuco- revoltas; nenhuma reinvidicação política ou
Preto, instalaram-se dois aldeamentos: o do territorial acompanha ou provoca as migrações. É,
ao contrário, e com o antigamente, o abandono do
Tijuco-Preto e o do Pira’y u ’ (Piraju), cujos
território e a passagem à vida nômade.”
patronos eram padres capuchinhos. Pira’y u ’, em
língua guarani, significa ‘peixe-dourado’, clara Os descendentes dos guaranis contempo­
referência a um importante elemento da fauna râneos da fundação de Piraju permanecem
ictiológica presente nos rios da região, o doura­ ainda hoje na Reserva de Araribá, hoje situada
do (Salminus maxilosus). O amarelo dourado, no Município de Avaí, proximidades de Bauru.

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(0,20 m) do estrato M ota cerâm ica 2000
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani no
Sítio Figueira

Camargo Guarani term olum inescênc 1530 d.C. IF-USP, 1980 450 ± 40 M orais,

cd
horizonte intermediário Piraju frag, de
(0,30 m) do estrato cerâm ica 1980
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio Camargo

Piracanjuba horizonte superficial Piraju Guarani frag, de 480 ± 50 M orais,

cd
term olum inescênc 1520 d.C. FATEC, 2000

cd
(0,20 m) do estrato cerâm ica 2000
arqueológico 1, Sistema (núcleo de
Regional Guarani solo antro-
no Sítio Piracanjuba pogênico 1)

Almeida horizonte su p erficial Tejupá Guarani frag, de

cd
term olum inescênc 1502 d.C. IF-USP, 1972 P a lle s tr in i,

cd
470 ± 50
(0,10 m) do estrato cerâmica 1972
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio Almeida

Bersi horizonte intermediário Tejupá Guarani frag, de term olum inescênc


cd

1480 d.C. FATEC, 2000 520 ± 60 M orais,


(0,30 m) do estrato cerâm ica 2000
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio Bersi
.
2

Campina horizonte interme- Campina Guarani frag, de term olum inescênc 1460 d.C. FATEC, 2000 540 ± 50 M orais,
diário (0,20 m) do M .Alegre cerâm ica 2000
estrato arqueológico 1,
Sistema Regional
Guarani no Sítio
Campina
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10\
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Regional Guarani
no Sítio Peroba

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Regional Guarani

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rio (0,50 m) do estrato fogueira
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio Almeida

horizonte superficial Piraju Guarani frag, de

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A lves term olum inescência 1015 d.C. IF-USP, 1970 955 ± 100 Pallestrini,
(0,30 m) do estrato cerâm ica 19 7 0
arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio A lves
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A lv es horizonte superficial Piraju Guarani frag, de term olum inescência IF-USP, 1970 960 ± 100 P allestrini,
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arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani
no Sítio A lves

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MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. R evista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
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Sistema Regional
Guarani no Sítio Alvim

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Sistema Regional cerâm ica 1970
Guarani no Sítio (urna 1)
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arqueológico 2, Sistema
Regional Guarani
no Sítio Jango Luís
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Fonseca estrato arqueológico 1, Itapeva Guarani frag, de term olum inescência 960 d.C. IF-USP, 1970 i Pallestrini,
Sistema Regional cerâm ica 1970
Guarani no Sítio (urna 1)
Fonseca
I

1
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Guarani no Sítio Alves

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Regional Guarani
no Sítio Camargo
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arqueológico 1, Sistema
Regional Guarani I
no Sítio Camargo 2
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10'.
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28
MORAIS, J.L. Tópicos de Arqueologia da Paisagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10:
3 -3 0 , 2 0 0 0 .

MORAIS, J.L. Topics on Landscape Archaeology. R evista do Museu de A rqueologia e


Etnologia, São Paulo, 10: 3-30, 2000.

ABSTRACT: Relations between archaeology and geography, defined as


landscape archaeology, are emphasized in this article. Archaeological investi­
gations in Paranapanema River Basin, called Paranapanema Project, São Paulo
State, reinforce this interdisciplinary approarch. A glossary of technical terms
is discussed.

UNITERMS: Brazilian archaeology - Paranapanema Project - Landscape


archaeology.

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30
Rev. d o M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 1 0 • 31-68, 2000.

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM ENTERRAMENTO GUARANI:


ALTERAÇÕES E HIPÓTESES ETNO- HISTÓRICAS*

Silvia Cristina Piedade**


André Luis R. Soares***

PIED A D E, S.C.; SO A R ES, A .L.R . C onsiderações sobre um enterram ento Guarani:


alterações e hipóteses etno-históricas. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 10: 31-68, 2000.

RESUMO: Durante o tratamento curatorial de ossada humana Guarani,


foram detectadas diversas alterações nos ossos, como marcas de cortes,
sulcos, faixas raspadas, depressões e queima. Devido à ausência de estudos
ou notícias de material semelhante, na arqueologia brasileira, baseamos os
procedimentos analíticos na bibliografia internacional. Como resultado,
obtivemos que parte das alterações foram provocadas antropicamente e, com
exceção das marcas de descamamento, foram feitas em ossos já desidratados
ou secos.
Para entender a ocorrência de tais alterações, foram levantadas, a partir de
fontes históricas e etnográficas, algumas possibilidades de interpretação, que
não podem ser tomadas como definitivas em nível de analogia direta e sim
como base para especulações futuras.
As principais dificuldades encontradas foram a ausência, no Brasil, de
coleções experimentais de referência e a escassez e fragmentação dos dados
na bibliografia etno- histórica relativa a rituais e destino de ossadas humanas.

UNITERMOS: Bioantropologia - Etno-História - Guarani - Ossos humanos


- Alterações.

O material ósseo humano, objeto deste do MAE- USP situado em Piraju, onde estava
artigo, deu entrada no Museu de Arqueologia depositado desde o seu achado, em outubro
e Etnologia da Universidade de São Paulo em do mesmo ano.
dezembro de 1999, vindo do Centro Regional Consta de um indivíduo enterrado em uma
de Arqueologia Ambiental, base operacional vasilha cerâmica, que foi utilizada como uma
funerária. Foi encontrado e exumado por não
arqueólogos, no Sítio Arqueológico Panema,
(*) Trabalho desenvolvido no Projeto “Arqueologia da localizado na Fazenda Prados do Panema, nos
Paisagem, Cenas do Paranapanema Paulista: da pré- arredores de Campina do Monte Alegre, SP (Fig. 1).
história ao ciclo do café” - ProjPar, coordenado pelo Posteriormente ao achado, a equipe do
Prof. Dr. José Luiz de Morais e financiado pela FAPESP.
projeto, sob a Coordenação de Marisa Coutinho
(**) ProjPar - Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo.
Afonso, fez duas visitas ao sítio, ocasião em
(***) Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológi­ que foram realizadas sondagens para sua
cas da Universidade Federal de Santa Maria, RS. delimitação, coleta de material para datação,

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PIED A D E, S.C.; SO A RES, A.L.R. C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

alterações presentes nos


ossos, extremamente intrigan­
tes, direcionaram a busca de
análises específicas, além do
rotineiro inventário descritivo
do material. Para tanto,
elaboramos algumas questões
que foram usadas como ponto
de partida:
1. Seriam alterações tafonô-
micas ou de ação antrópica?
2. Em que época foram
provocadas? Antes, durante ou
após a morte do indivíduo?
3. Se antrópicas, estão liga­
das a algum tipo de ritual?
4. Em que seqüência ocor­
reram as alterações?
5. Qual o sexo do indivíduo?
Há relação com as alterações?
Fig. 1 - Augusto Rua Pinto Guedes e urna funerária, na oca­ 6. A falta de referência na
sião em que fo i encontrada (foto de autoria desconhecida, gen­ bibliografia arqueológica sobre
tilmente cedida pela Prefeitura de Campina do Monte Alegre, ossos humanos com alterações
SP). semelhantes é por se tratar de
ocorrência única ou por terem
passado despercebidas?
além da obtenção das coordenadas UTM do Para tentar responder tais questões, entra­
local (22 K, 755.715 e 7387. 730). Trata-se de uma mos em contato com diversos profissionais com
aldeia de agricultores ceramistas, ocupando o o objetivo de encaminhar algumas análises
topo e meia encosta de colina suave (Fig. 2), específicas, cujos dados preliminares estamos
apresentando as tradicionais manchas de solo apresentando neste trabalho. Estamos cientes da
antropogênico. Não foi realizado, até o momento, necessidade de verticalização das informações,
nenhum tipo de intervenção arqueológica, tanto as de análise das alterações como, princi­
entretanto, a escavação sistemática no sítio está palmente, as relacionadas com o contexto do
prevista em projeto futuro que se encontra em achado, no sentido de conhecer e entender as
fase de elaboração pelos mesmos coordenadores. relações sociais em que esteve inserido.
A urna funerária está exposta no Centro É nosso objetivo, neste trabalho, apresen­
Cultural de Campina do Monte Alegre, e a tar os procedimentos analíticos adotados e
tampa permanece em depósito na base opera­ mostrar a importância de como um exame mais
cional de Piraju, para onde foi encaminhada detalhado e cuidadoso de alterações em ossos
para tratamento e reconstituição pelo técnico humanos pode nos fornecer um potencial de
João Carlos Alves (Fig.3). informações, muitas vezes negligenciado.
Ao iniciarmos os trabalhos de tratamento e Além de análises como a de DNA para determi­
análise no material, constatamos que os ossos nação do sexo do indivíduo e de datação pela
apresentavam uma série de alterações que os extração do colágeno, que segundo consta,
diferenciavam dos outros indivíduos que estão sendo usadas pela primeira vez na
inventariamos no âmbito do Projeto (Piedade arqueologia brasileira, levantamos algumas
1998, 1999). Percorremos a bibliografia arqueo­ hipóteses de possibilidades de interpretações
lógica brasileira e não encontramos nenhum etno-históricas, baseadas nos documentos
relato de ocorrência semelhante. Por isso, as relativos aos sécs. XVI ao XVIII.

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PIED A D E, S.C.; SO A RES, A.L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e h ip óteses etno-
históricas. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Desta forma, este artigo é


apresentado em duas partes
distintas: a primeira trata da
análise e descrição das altera­
ções presentes no material
esqueletal encontrado; no
segundo momento, levanta­
mos hipóteses e possíveis
interpretações para as altera­
ções registradas. É necessário
que esta divisão exista pelo
caráter das análises, em um
primeiro instante descritivas,
que resultou em conclusões
que geraram outras questões
interpretáveis somente a partir
de especulações etno-históri-
cas. Se a primeira parte do
trabalho é analítica, a segunda
é hipotética, razão pela qual
não foram aglutinadas.
Fig. 2 - Vista do Sítio Panema, orientação NS. Em segundo
plano, a árvore que fica próxima ao local onde fo i encontrada
Procedimentos analíticos a urna. Foto de Marisa Coutinho Afonso.

Iniciamos pela limpeza do material com Cada peça foi analisada com lente de
escova macia e água para a retirada do sedi­ aumento manual sob iluminação incandescente.
mento impregnante. As partes que se apresen­ Segundo Bunn 1982 (apud White 1992), a
tavam erodidas ou com ausência do tecido iluminação fluorescente é difusa, subdividindo
ósseo compacto, expondo o tecido esponjoso, detalhes topográficos, fundamentais na inter­
foram delicadamente escovadas a seco. pretação das alterações na superfície do osso.
Em seguida, encaminhamos as três etapas de Constatamos a veracidade desta afirmação,
triagem. A primeira consistiu no reconhecimento verificando que várias alterações, não perceptí­
e agrupamento dos ossos pelas partes anatômi­ veis sob iluminação fluorescente, se tomavam
cas, isto é, fragmentos de crânio, de costelas, claramente visíveis na iluminação incandescen­
ossos longos etc. e identificação de lateralidade. te. Posteriormente foi utilizada lupa binocular
Na segunda, identificamos os ossos principais para auxiliar na caracterização das alterações,
que apresentavam as alterações (sulcos, depres­ construindo-se uma ‘classificação paradigmá­
sões, faixas raspadas) e na terceira triagem os tica’, conforme proposto por Dunnell (1971).
pequenos fragmentos (> lcm) pelas característi­ Fizemos ainda observações de detalhes das
cas anatômicas e cor de queima. Uma vez triados, alterações no sistema de análise óptico e
passamos à reconstituição provisória do que foi tratamento digital de imagem Leika Q 550 IW,
possível e, posteriormente, para a definitiva, marca Zeiss Stemi Sv 11} Elaboramos o inven-
utilizando cola branca PH Neutral Adhesive.
Os ossos foram identificados com a sigla
do sítio (Pa-1) e numerados para facilitar a
(1) Equipamento do Projeto de A poio à Infra-
referência: cada parte anatômica recebeu um
Estrutura de Pesquisa - M odernização do Laboratório
número e seus diversos fragmentos letras (por
de Sed im entologia/P rocesso Fapesp 1997/1 0 6 6 9 -0 ),
exemplo, o crânio recebeu o n° 1 e seus frag­ sob a responsabilidade de Paulo César Fonseca
mentos IA, IB, 1C; a mandíbula o n° 2 e seus Giannini, do Instituto de G eociências da USP, a quem
fragmentos 2A, 2B etc.) agradecem os a disponibilização do equipamento.

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PIED A D E, S.C.; SO AR ES, A.L.R. C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

tário dos ossos, no qual


aproveitamos para incluir os
dados levantados relativos à
quebra (Mello 1999 e White
1992), queima (Shipman, Foster e
Shoeninger 1984; Machado 1990
e Stiner, Kuhn, Weiner, Bar-
Yosef 1995), além de mapea­
mento das alterações para
melhor visualização dos dados.
Tomamos as dimensões dos
ossos, comprimento e largura
máximos, apenas para referência.
Encaminhamos o material
para as seguintes análises:
exame de DNA para determina­
ção de sexo do indivíduo e Fig. 3 - Vasilhas cerâmicas utilizadas como urna funerária.
para datação pela técnica de
“Spectometria por Acelerador
de Massa (AMS)” no Laboratório Beta É útil a apreciação realizada por Brochado,
Analytic Inc., Miami, Flórida, USA. por meio de contato eletrônico, sobre as formas
Documentamos fotográficamente todo o das vasilhas:
material, em seus aspectos gerais e em deta­
“A tampa me parece a forma usual do ñaetá
lhes, tendo em vista o registro curatorial. Além que existe tanto no Guarani como no Tupinambá,
disso, a fotografia foi utilizada como método apesar de muito arredondada. Verifica porém se o
de análise, considerando a projeção de luz perímetro da boca é muito ovalado, se interiormente
para o registro das alterações.2 a borda é muito reforçada e se exteriormente a
superfície plana apresenta pintura, o que seriam
características que apontariam para o Tupinambá,
As vasilhas especialmente a pintura (desenhos). A panela parece
que está com a borda quebrada toda ao redor. Se a
Em relação às formas, as vasilhas podem borda era extrovertida poderia ser um yapepó Guarani
pertencer tanto a grupos historicamente apesar de meio esquisito; se não, é uma vasilha
definidos como Tupinambás ou como Guaranis. Tupinambá característica do sul de São Paulo (bacia
A classificação destas vasilhas pode ser do rio Pardo) aparece nos trabalhos do velho
Pereira Jr. e se aproxima também das grandes umas
realizada sob distintas óticas, oriundas de
Caiapó daquela região. Na cerâmica Guarani não há
diferentes momentos da arqueologia brasileira. vasilhas ovoides assim com a borda introvertida e
Segundo a ‘Terminologia do PRONAPA’ (1976), com o diâmetro maior tão em baixo. A Pallestrini
trata-se de duas vasilhas pertencentes à ilustra várias assim dos sítios Tupinambá. É
Tradição Tupiguarani, do tipo corrugado. possível que na fronteira Guarani/Tupinambá a
Segundo Brochado (1984) estas mesmas cerâmica tivesse elementos tanto de uns como de
vasilhas podem ser classificadas como Tradição outros. Mesmo inimigos, devem ter tido muitos
contatos durante muito tempo. Scatamacchia diz
Policrômica Amazônica, Subtradição Guarani. que no vale do Ribeira do Iguape encontrou coisa
A vasilha que serviu de tampa tem forma de parecida (mas nunca publicou). Seria a cerâmica dos
semi-esfera, com tratamento de superfície Tupiniquim cf representada por Staden (tigelas
corrugada, sem pinturas. A vasilha que serviu de características Tupinambá, jarras ou talhas muito
uma tem a forma de duplo cone, sendo o cone próximas das Guarani). (Brochado, mensagem
superior seccionado, não possuindo borda, com eletrônica, 22/07/00)
tratamento de superfície corrugado (Fig.3). No caso tratado, a forma da boca é
arredondada, a borda reforçada externamente
e ausência de pintura interna, o que poderia
(2) A s fotografias são de autoria de Wagner Souza e levar à conclusão de ser um ñaetá Guarani,
Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. ou tigela de cozinhar, segundo o vocabulário

34
PIED A D E, S.C.; SO A R ES, A .L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e h ip óteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

1 - Padrão de 100 pares de base

2 - Dente (5 ul)

3 - Fíbula (5 ul)

4 - Crânio (5 ul)

5 - Dente (10 ul)

6 - Fíbula (10 ul)

7 - Crânio (10 ul)

8 -B la n k (5 ul)

9 - Blank (5 ul)

10 - Padrão de 100 pares de base

11 - C. 9 (Analr)

12 -C.Cf(Alex)

Fig.4 - Determinação do sexo através do locus amelogenina resultando em perfil masculino (XY).
Note na coluna n° 7 (crânio) o resultado idêntico à coluna n° 12 (Cf - Alex).

etno-histórico de Brochado colhido a partir raspadas e depressões, além de um campo


das informações dos dicionários de Montoya. para observações onde constam informações
Com relação à panela maior, uma vez que a complementares.
borda está quebrada, não se poderia realizar
conclusões diretas, mas pode-se imaginar que, se
a tampa é tipicamente uma forma Guarani, o DNA
mesmo se deve dizer a respeito da uma, embora a
cintura esteja abaixo da metade da altura, o que é A determinação do sexo através do locus
pouco usual nas formas de Yapepó Guarani. amelogenina resultou perfil masculino (XY). A
É interessante observar também que, no extração do DNA foi efetuada pelo método
caso da panela maior, sua forma cônica, fenol-clorofórmio. A amostra contendo DNA
presente tanto em Guaranis como Tupi- foi submetida ao processo de amplificação
nambás, não pode ser utilizada como critério pelo método da PCR (Reação de Cadeia
de exclusão para a forma. Em contrapartida, Polimerase). Os produtos de amplificação
não se descarta nem a hipótese de contato foram caracterizados após separação eletro-
interétnico (através de fronteira espaço- forética em gel de poliacrilamida e corado por
cultural) nem de influências mútuas sobre as técnica de precipitação com prata.3 (Fig. 4).
formas das vasilhas.

Inventário e levantamento das alterações


(3) Este ensaio foi realizado por Akimi Mori Honda, Kazuio
Umeda Iwasa e Massato Yamaguchi, sob a orientação de
Na Tabela 1, apresentamos o inventário
Mário Hirata, responsável pelo Laboratório de B iologia
do material, com o número e uma breve Molecular Aplicada do Departamento de Análises Clínicas
descrição dos ossos. A crescentam os os e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da
dados de quebra, queima, sulcos, faixas Universidade de São Paulo, aos quais agradecemos.

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SIM, na superi.

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PU
SIM. Leve descamação. Cor

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NÃO
recente predominante: 7,5YR 7/4 endocraniana
ou 10YR 8/4: ~185°C (paralelos e cruzados)



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Crânio Antiga e

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SIM, Leve. Cor: 10YR 7/6: SIM, finos e longos na

Uh
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ovavelmente os sulcos
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NÃO

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recente superfície endocra­ ovocaram a fragm entação
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niana. Bem marcados, ) osso


paralelos, em “V ” ou
se superpondo,
próximos à fragment.

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26 frag. não SIM. Superfície exocraniana Superfície exocraniana mais

—<
NÃO NÃO 1 a 3 cm
identif. = > 285°C e superfície queimada que a superfície
endocraniana = < 185° C endocraniana

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a)

(N
Frag. de ramo E A ntiga SIM, c/ rachaduras e queima SIM, simples, finos NÃO 8.4 x 3, 9cm
próx. ao côndilo. Cor: paralelos, na porção
10YR 8/4 (~185°C) e anterior do osso
próximo ao côndilo 7YR 6/6
(> 185°C)

S
3
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(N
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Frag. do ramo D

CO
Recente (?) SIM, c/ finas rachaduras e SIM, no bordo um SIM (superf. inter.) 3.2 x l,4cm Possível percussão que
(bordo inferior) finas linhas de contração. pouco acima do culminou na quebra
Cor: 10YR 8/4: ~185°C ângulo e espalhados
(am arelo) pela superf. do osso

S
U
§
3

(N

-O
Frag. de corpo E Antiga e SIM. C/ finas rachaduras e NÃO NÃO 8.4 x 4 ,lc m Ausência do bordo inf.
recente descamação. Cor: 10YR 8/4: Articulado frag. do 1° molar
~185°C e alvéolo do 2o pré- molar

<
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W
ca
Região escapular Antiga SIM, com rachaduras.

Q.
SIM, no colo do NÃO 15.2 x 6,0cm Os sulcos atingem o tecido
frag. (colo do Porção anterior mais acrômio e no bordo ósseo esponjoso
acrômio) e queimada que a posterior. lateral
recente Cor: escura ( 7,5YR 4/3 =
~285°C ) clara (7,5YR 7/4 =
~ 185°C )

w
1
Q
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Frag. da espinha Antiga SIM, c/ rachaduras e descam. NÃO NÃO 8.7 x 2,9 cm

D,

CQ
da escápula Idem 3A

<
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G
3
3
Frag. nas extr., A ntiga, SIM, c/ rachaduras e SIM, bem marcados, SIM, depressão 7.8 x 1,5 cm

W
Os sulcos apresentam erosão
na porção anter. transversa, descamação. Cor: marrom oblíquos ao eixo provocada por vários nas bordas. A área c/ sulcos
à extr. acromial e na p orção avermelhado (285° C a 525° principal do osso sulcos juntos vai até a fragmentação, o que
na porção anter. mediai e re­ C); cód. de cor 2 (ligeira­ deve ter fragilizado o osso
à impressão para cente, irre­ mente queimado) e cor
o ligam ento gular nas ex­ predominante: 10 YR 6/2
costo-clavicu lar tremidades
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Descrição Quebra Queima Sulcos Outras D im ensões Observação

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00

00

S
5A Diáfise, frag. Ocor- Antigas,

<u
[M, c/ rachad. longit. e SIM, na extrem. [M, faixas raspadas, 14,0 X 2,4 cm Provavelmente a fragmen-

JJ
reu transver. p/ queima etas de contr. Cor predom.: distai, perpend, e ngitudinais, ao tação ocorreu por fragili-

W) —
JJ
e longit. ao eixd e recentes )YR 6/2 (285°C a 525°C). oblíquos ao eixo ngo da diáfise zação pela queima. Linhas de

U
princ. do osso (exumação) ódigo de queima n° 2 principal do osso fraturas curvas e trans-
versais

on

£
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o
5B Antiga, SIM, bem marcados;

W
Frag, na diáfise [M, com rachad., gretas de [M, faixa raspada na 8,0 X 3,7 cm Apresenta ainda uma parte

¡Z3


O
(próx. à metàfise oblíqua, na >ntr. e descam.. Cor: mar- perpend, ao eixo irte posterior, próx] da diáfise que recebeu o n°

D, /Cd


distal). Extrem, diáfise >m avermelhado (285°C a princ. do osso, próx. frag, da diáfise 5C. Preservada parte da
distal, c/ frag, da 525° C); ÍOYR 6/2 (Estágio à frag, da diáfise fossa olecraniana

M
epífise I- 525°C); cód. de cor 2

O
ig. queimado)

O
U
o
S
5C Frag, de diáfise Antiga e NÃO 7,5 X 2,0 cm O sulco se apresenta com

C/3
[M, com rachauras, gretas SIM. Duplo, isolado,

<u
oblíqua nas de contração e descamação. oblíquo ao eixo morfologia diferente dos

in
OQ

<u
e
extrem id. principal do osso demais

5
<
cd
Q
Frag, na porção Presença da epífise pro-

C
Antiga, [M, c/ rachad. longit. e NÃO NÃO 13,5 X 3,5cm

VO
mesial da diáfise irregular iscam.. Cor:amarelo pálido xim al
:0°C a 285 °C); 10YR 8/3
stágio I: ~ 185°C); código

-
= (ligeir. queimado- creme/

d
O

cd
Uh
Uh

5
in
on

cd
G
6B Frag, na altura da Antiga, [M, com rachad. e gretas de SIM, sulcos longos e 1M, faixa raspada, 16,2 X 2,4cm Os sulcos apresentam erosão

O
C/3
metáfise prox. e transversa. intr. Cor: marrom finos na lateral da íperposta aos sulcos dos bordos

cd
na diáfise distai (prox.) e /ermelhado (285 °C a diáfise. Bem bem marcados
oblíqua 525°C); cód.de cor 2 -ligeir. marcados, perpen-
(distai) diculares ao eixo

O*
jeim.); 10YR 6/2 (estágio

in
in
princ. do osso

CN
SIM. Sulcos feitos


'cd
on

Oi
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7A Diáfise frag. Antiga. 1M, c/ rachad. e gretas de NÃO 12,6 X l,6 cm Ausência das epífises. Sulcos
depois da queima

o
Distai e mtr. Cor: marrom c/ erosão dos bordos

cd
prox. irreg.; /ermelhado (285°C a
recente e 525°C); código de cor 2

w
irreg. na igeir. queim.); cor predomi-

c
porção inte: 10YR 6/2: ~ 525°C
mesial da

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Diáfise frag. na Antiga- irregular Ausência das epífises

X
SIM, c/ rachad. longit. e

O
NÃO SIM, faixa raspada,

<N
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metàfise prox. e (distai)/ recente gretas de contr. Cor: marrom longitudinal ao eixo
na distai na região irregular (prox.) averm. (285° C a 525° C); principal do osso e
que antecede a transver. (diáfi- 10YR 6/2 (estágio III- depressão causada
m etàfise se mesial) 525°C); cód. de cor 2 por vários sulcos
(ligeiramente queimado)

w
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O
8A Manúbio, c/ Recente na NÃO NÃO Ausência do corpo. Presença

X
O
NÃO

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rachad. na face posterior da apófise xifóide (frag.).
chanfrad. jugular Manúbio - 8A Apófise
xifóide - 8B

O
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(A)
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cd
C/5

C/D
O
9A 10 ossos Antigas e SIM, c/ Tachaduras longitudi- NÃO NÃO

1
m ãos completos e 48 recentes; nais e descamação
fragm entos transversas e
irregulares

o
O
-o
27 (astrágalos, Antigas e

C/D
NÃO NÃO

C/D
C/D
O
9B SIM, c/ Tachaduras longitudi-
1

pés navicular, recentes nais e descamação


falanges, etc.)

U
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VOI

cd
Fragmentos SIM, variam do amarelo

C/D
O
Antigas e NÃO NÃO Fragmentos de 1,0 a 3,0 cm

a>
1

recentes (inter.) ao marrom averm e­


lhado, c/ descamação e finas
Tachaduras (ext.)

u
aoi

cd
V
SIM, variam do amarelo

C/D
NÃO

C/D
Fragmentos

O
Antigas e NÃO Fragmentos de 3,1 a 6,0 cm.
1

recentes (inter.) ao marrom averme- Uma delas apresenta queima


lhado, c/ descamação e mais intensa em uma das
Tachaduras longitudinais extremidades
(ex t.)

u
B
cd
Antigas e SIM, variam do amarelo SIM, localizados SIM

C/D
10C Fragmentos de 3,1 a 5,0 cm.

C/D
8 fragm entos
1

O
recentes, (inter.) ao marrom na face interna, Faces internas c/ aparência
transversas e avermelhado, c/ descamação extema e nos mais lisa, menos queimadas
irregulares e Tachaduras longitudinais bordos
(ex t.)
TABELA 1 - Inventário e levantamento das alterações (cont.)
Alterações

0
Osso D escrição Quebra Queima Sulcos Outras D im ensões Observação

O
Q
Costelas 26 fragmentos Antigas e SIM, d rachaduras longitudi­ SIM, algumas d SIM, faixa raspada Fragmentos de 1,0 a 3,0 cm.
recentes nais sulcos na A maioria apresenta o tecido
superfície inter., ósseo compacto das faces
outros na extr. externas fragmentados
ou nos bordos

<
i-*
Vértebras 11 fragmentos: 2 Antigas e SIM. Processos espinhosos - NÃO NÃO
proces. espinho­ recentes (2) Cor: marrom escuro (c/
sos frag.;5 frags. manchas) e rachaduras
de corpo; 1 (~285°C a 525°C)
fragmento de
apófise transv.; 3
fragm. não iden­
tificados; axis

03
Vértebras 2 processos Antigas e 2 c/a cor amarela e 1 SIM NÃO
espinhosos; 1 recentes marrom avermelhada (~285°
fragmento não a 525°C)
identificado

<
Presença do

<N
Osso do A ntiga SIM, leve, d rachadura NÃO NÃO 4,5 x 4,0cm
quadril tubérculo da
crista ilíaca E

<
m
Fêmur D Diáfise d Extrem.proximal SIM, marrom escuro, com SIM, nas SIM, faixas raspadas 15.0 x 4,0 cm Os sulcos apresentam
fragmento nas fragm. antiga, gretas de contr. em toda a extremidades. feitas pós queima características diferentes dos
extremidades curva e transv., superfície do osso e racha­ Prox. (parale­ demais (longos e finos)
na altura do duras longitudinais. Cor los) oblíquos ao
colo. Na distai, predom.: 10YR 5/6 (mais eixo principal
frag. antiga, escura) 10YR 4/3 (285°C a do osso
transv. 525° C)

m
Fêmur E Diáfise com epífi­ Antiga e SIM, principalmente nas NÃO NÃO 30.0 x 8,0 cm Epífise do fêmur esquerdo

CQ
se distai (a porção recente. Prox.: extremidades. Na proximal recebeu o n° 13C. Superf. do
anter. está frag.). irreg., transv. e houve “amputação” da osso d aspecto vítreo, sem
A epífise prox. a distai: irreg. epífise. Cor predominante Tachaduras ou gretas de
“amputada” por (10YR 7/6= ~20°C a 185°C). contração (apenas na
queima (presente) Cor das extremidades: extremidade proxim al)
marrom avermelhado (10YR
5/8= ~360°C )
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Tíbia E Diáfise fragmen­ Prox.: recente/ Na faixa anter., c/ rachad. NÃO NÃO 22,5 X 4,0 cm
tada nas porções irregular; distai: longit., leves gretas de contr.
que precedem as recente/ e descam. intensa. Cor:
m etáfises irregular amarelo- 10YR 7/6: ~ 185°C.
Na faixa posterior, o osso
está melhor preservado (cor
amarela)

^
aa
Tíbia D Diáfise fragmen­ antiga/irregular; Na faixa longit. anter., d rachad. NÃO Faixa raspada, 12.2 X 3,0cm Com provável percussão
tada recente/irregular longit., leves gretas de contr. e longitudinal ao eixo que causou a fragmenta­
desc. intensa. Cor: amarelo- principal do osso. ção na diáfise
10YR 7/6 (~ 185° C). Na (2 8 x 5 m m )
faixa poster., o osso está
melhor preserv. (cor amarela)

^
<
Fibula D Frag. de diáfise Extr. prox.: SIM. Cor: amarelo, com NÃO NÃO 10.0 X 1,2 cm 15C- epífise distai

m
oblíqua e irreg.; rachaduras longitudinais -
na extr. distai: 10YR 7/4: ~ 185° C
irreg.

^
NÃO NÃO 8.2 X 2,4 cm

en
Fibula E Frag. de diáfise na diáfise: SIM, c/ leves rachaduras
com epífise distai irreg.; na longitudinais. Cor: amarela
epífise: erosão 10YR 7/4: -185° C

v
Q
Frag. Frag. de diáfise Antiga e recen­ SIM. Cor: amarela - (~185° C) NÃO NÃO 10.0 X l,lc m

~)

fibula sem determinação te, transversas c/ rachaduras longitudinais e
de lateralidade descamação

w
NÃO NÃO Osso enviado para o

i—t
Fibula Frag. de diáfise s/ Idem 15D Idem 15D
determ. de lateral. laboratório p/ análise de
Idem 15 D DNA (determinação de
sexo) e posteriorm ente
para datação
d) cd

ipenas as coroas, são eles: 3


fresco (leves e finos) e no
CA o

Os sulcos foram feitos em

extremamente m odifica-

Fragm entações provavel-


cd

dois momentos; no osso


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mente ocasionadas na
osso desidratado (bem
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marcados). Osso
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PIED A D E, S.C.; SO A RES, A .L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Datação apresentariam quebras em ponta, ou esmi-


galhamento).
A análise foi feita no Laboratório Beta O encaixe das quebras foi classificado
Analytic Inc. Optamos pela técnica do Specto- como ‘perfeitos’ em alguns casos e ‘parciais’
metria Acelerador de Massa (AMS), que data em outros. Quanto mais recente a quebra, maior
o osso por meio de sua proteína (fração é a possibilidade de um encaixe perfeito. (Mello
colágeno). O material foi enviado em dois 1999). Diversos ossos fragmentados não
momentos: no primeiro, em abril de 2000, 30g. apresentam o complemento. Alguns, com
de fragmentos de ossos longos (que conti­ fragmentação recente, podem ter sido extravia­
nham proteína insuficiente para uma datação dos por ocasião da exumação e outros, com
confiável); num segundo momento, em meados fragmentação antiga, devem ter sido perdidos
de julho enviamos 25g. de fragmentos de ou destruídos por ação antrópica na época em
crânio. O resultado, 290 ± 40 BP (Beta n° que foram feitas as alterações.
144862), foi- nos enviado em 6 de setembro.

Queima
Quebras
Para a caracterização da queima nos ossos,
Para caracterizar as fragmentações presen­ nos valemos, inicialmente, da metodologia
tes, utilizamos a classificação proposta por Mello proposta por Shipman, Foster e Shoeninger
(1999), que é semelhante a de White (1992), com (1984). Estes autores associam as cores pre­
pequenas diferenças de nomenclatura. dominantes do tecido ósseos compacto,
As quebras nos ossos nos fornecem classificadas por meio da tabela de Munsell e
excelentes indicadores da época em que relacionadas às temperaturas de queima. Ainda
ocorreram (se antes da morte, na época da subdividem o material em 5 estágios de calor em
morte ou posteriormente). A quebra em ângulo tecidos ósseos e os correlacionam com obser­
reto ou oblíquo significa que foi feito em osso vações da morfologia microscópica do osso,
seco; em ângulo agudo, obtuso e de contorno com o auxílio do Microscópio Eletrônico de
arredondado e em espiral, em osso fresco. A Varredura. Tal descrição foi utilizada por
presença de sedimento incluso nas trabéculas Machado (1990) no trabalho desenvolvido
é testemunho do ambiente em que o osso sobre as práticas funerárias de cremação e sua
esteve inserido, podendo auxiliar na inferência variação em grutas do norte e noroeste de
dos processos de deposição ocorridos. Minas Gerais. Concordamos que esta meto­
O material em questão apresenta quebras dologia é um pouco subjetiva e não aceita por
recentes, provavelmente causadas por ocasião diversos autores, porém, foi o recurso disponí­
da exumação do indivíduo e, na maioria dos vel e os resultados foram satisfatórios.
ossos, quebras antigas, testemunhada pela Iniciamos pela separação dos ossos de
presença de sedimento incluso e aderido às acordo com as tonalidades apresentadas pela
trabéculas, com a mesma cor do restante da superfície. Em seguida, utilizando a tabela de
peça, indicando sua ocorrência antes ou Munsell, determinamos os códigos referentes às
durante o envolvimento sedimentar. As fraturas cores predominantes e às secundárias, reportan­
post- mortem refletem o grau de hidratação do do o resultado para a temperatura de queima
osso no momento em que aconteceram. No Pa­ constante na tabela de Shipman, Foster e
ri o conjunto da fragmentação é preferencial­ Shoeninger, conforme apresentado no inventário.
mente transversa (Mello 1999) ou perpendicular O material mostra diversificação de cor e
típica (White 1992) e irregular, indicando quebra conseqüentemente de queima ao longo dos
ocorrida já no osso desidratado, podendo ter ossos, com manchas escuras e claras alterna­
sido causado por pressão da deposição. Esta das. Em geral, as cores predominantes são as
evidência é um dos dados que possibilita o mais claras e as secundárias, mais escuras,
descarte das hipóteses de ritual antropofágico com uma variação que vai do amarelo claro ao
ou de ataque de animais carnívoros por ocasião marrom avermelhado, acusando uma tempera­
da morte do indivíduo (caso contrário, os ossos tura de queima de 185°C a 525°C. Em alguns

43
PIED A D E, S.C ., SO A RES, A .L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

ossos, como fragmentos da calota craniana, além das gretas de contração longitudinais e
escápula e costelas, por exemplo, a superfície transversais, um leve arqueamento do osso
interna é bem mais clara que a externa; em (Ubelaker 1989). Pelas características apresen­
outros como o fêmur, a extremidade proximal tadas, podemos inferir que a queima ocorreu
apresenta-se bem mais queimada que o com os ossos já desidratados, diretamente nas
restante do osso, com conseqüente amputação chamas, em fogueira simples.
da epífise. Observando o material na lupa binocular,
Descrevemos também as categorias de com aumento de 60x, notamos concentrações
queima com base na superfície macroscópica e de micro-fragmentos de carvão aderidos à
na cor, considerando sete níveis (que vão de superfície dos ossos, porém se apresentam
zero a seis), inspirados nas experimentações e ausentes ou bem esparsos nas faixas raspadas,
análise de ossos fragmentados encontrados nos sulcos e nas depressões. Provavelmente
em abrigos no Paleolítico (Stiner et al. 1995). foram transferidos para as alterações por
Aplicando esta metodologia ao material em ocasião da limpeza dos ossos.
questão, obtivemos como resultado os níveis Para sistematização e visibilidade dos
de zero a dois, que significam material não dados levantados, elaboramos mapeamento de
queimado, levemente queimado ou ligeiramen­ queima na Fig. 7 (modificado de Rubio-Fuentes
te queimado, respectivamente. 1975), onde registramos as duas faixas de
Na observação macroscópica, os ossos temperaturas detectadas.
que apresentam temperatura de queima mais A Tabela 2 apresenta as principais infor­
baixa, de 185°C a 360°C, mostram na superfície mações sobre a queima.
rachaduras longitudinais, descamação e em
alguns casos, finas gretas de contração
(Fig.5), enquanto que, nos mais queimados, - Sulcos, faixas com ‘raspagem’ e depressões
525° C - as gretas de contração são mais
marcadas e os ossos visivelmente mais friáveis Assim que detectamos nos ossos as
(Fig.6). As Tachaduras se caracterizam por estranhas e intrigantes alterações, iniciamos a
rupturas na superfície do osso que podem ou busca de situações semelhantes na literatura
não alcançar extremidades opostas e as gretas especializada. Porém, os trabalhos consulta­
e fendas podem ser paralelas ao seu eixo dos tratavam de quebras, queimas e cortes
principal - no caso do osso fresco- e transver­ causados por ritual antropofágico, limpeza dos
sais, quando ocorre no osso seco. Além disso, ossos para enterramento secundário, descar-
constatamos que a queima não se deu com os namento de ossos de animais para consumo da
ossos envoltos em tecido mole o que causaria, carne ou ataque por carnívoros, todos eles

Fig. 5 - Diáfise de tíbia direita, levemente queimada, apresentando rachaduras


longitudinais.

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históricas. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Fig. 6 - Aspecto de fragm ento do úmero esquerdo, com queima mais acentuada,
apresentando rachaduras longitudinais, gretas de contração e tecido ósseo com­
pacto bem friável.

apresentando marcas de cortes ou de dentes fêmur direito. Nos ossos longos estão localiza­
em ossos frescos, não se assemelhando à dos preferencialmente nas diáfises, conforme
maioria das alterações encontradas no material demonstra o mapeamento de alterações (Fig.8).
em questão, que foram provocadas nos ossos Os sulcos apresentam-se por vezes paralelos,
já desidratados ou secos. cruzados, retilíneos ou desenhando curvas. Em
As marcas de cortes provocadas em ossos alguns casos são simples, em outros, duplos,
frescos mostram-se mais estreitas, com compostos, em V ou isolados. São mais
estrutura semelhante a uma linha. Além disso, profundos na região central, ficando mais
tanto para descarnamento (para consumo da rasos conforme se aproximam das extremida­
carne), como para desmembramento (corte dos des, que, em geral, terminam em ponta (mais
ligamentos dos ossos) e sua limpeza com estreitas que a largura central). Não apresen­
finalidade de enterramento secundário, as tam lingüetas nas extremidades. Em secção
marcas podem ocorrer nas diáfises dos ossos; transversal, o sulco tem a forma de U. Em
porém, localizam-se preferencialmente nas alguns casos, as bordas se apresentam
metáfises e nas epífises (White 1992, Ubelaker erodidas, principalmente nos ossos mais
1989, Binford 1981). queimados.
Ao analisar o material, utilizando lupa No fêmur direito, na mandíbula (Fig.9), em
binocular com aumento de lOx, detectamos três alguns fragmentos de costelas e no fragmento
tipos de alterações: sulcos, faixas raspadas e do osso do quadril, os sulcos apresentam
depressões, muitas delas não visíveis a olho nu. morfologia ligeiramente diferente dos demais,
Os sulcos, que se assemelham a cortes, assemelhando-se a cortes feitos em ossos
foram predominantes (63,8%) e ocorrem em ainda frescos.
quase todo o esqueleto, ou seja, nos fragmen­ Em diversos ossos notamos que os sulcos
tos de crânio, de mandíbula, de escápula não foram feitos com o intuito de cortá-los,
esquerda, de clavícula esquerda, do úmero pois atingem apenas o tecido ósseo compacto
direito e esquerdo, da ulna esquerda, do rádio e nem sempre estão próximos à fragmentação
direito, além de trinta e quatro fragmentos de (Fig. 10). A exceção fica por conta de alguns
costelas, três fragmentos de vértebras e no fragmentos de costelas e do úmero esquerdo,

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históricas. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Proj Par
Sítio Panema
Campina do Monte Alegre
Enterramento: Pa -1
Queima

Legenda:
M 20°C a 285° C
■ 285°C a 525°C
Obs; foram mapeados apenas as
queimas ocorridas nos fragmentos
ósseos identificados e com
referência de lateralidade.

Fig. 7 - Mapeamento da queima.


PIED A D E, S.C.; SO ARES, A.L.R . C onsiderações sobre um enterram ento Guarani: alterações e hip óteses etno-
históricas. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Tabela 2 - Temperaturas de queima e alterações nos ossos


Cor predominante Classificação Classificação
N° Osso Alteração do osso
Tabela de Munsel Shipman Stiner
IA Frag. crânio 10YR 7/7 ~285°C a 525°C 2- ligeir.queim. Gretas de contração
1B u 10YR7/7 ~285°C a 525°C 66
Gretas contr./desc.
66 66
1C 10YR7/4 ~185°C Desc.
66
1D 10YR 7/4 ~185°C 66
Gretas/desc.
1E 66
10YR 6/4 ~360°C 66

1F 66
7,5YR 5/4 ~360°C 66

66 66
1G 7,5YR 7/4 ~185°C Desc.
66
1H 10YR 7/6 ~185°C 1- levem, queim. -
66
11 10YR 5/6 ~525°C 2- ligeir. queim. -
66
1J - - 0- não queim. -
1L 66
- - “ -
2A Frag. mand. 10YR 8/4 ~185°C 2- ligeir. queim. Rachaduras
2B “D 10YR 8/4 ~185°C “ “
2C “E 10YR 8/4 ~185°C “ “
3A Escápula D 7,5YR 7/4 ~185°C “ “
3B Escápula E 7,5YR 7/4 ~185°C “ Rachad./ desc.
4A Clavícula E 10YR6/2 ~525°C “ “
5A Úmero D 10YR 6/2 ~285°C a 525°C “ Rachad./gretas
5B Úmero E 10YR 6/2 ~525°C “ Rach./gretas/desc.
5C Frag. úmero E 10YR 6/2 ~525°C “ “
6A Ulna D 10YR 8/3 ~185°C 1-levem, queim. Rachad./desc.
6B UlnaE 10YR 6/2 ~525°C 2- ligeir. queim. Rachad./gretas
7A Rádio D 10YR6/2 ~525°C “ “
7B Rádio E 10YR6/2 ~525°C “ 66

8A Esterno - - 0- não queim. -


13A Fêmur D 10YR 5/6 ~525°C 2- ligeir. queim. Gretas/ rachad.
13B Fêmur E 10YR 7/6 ~185°C 1-levem, queim. -
14A Tíbia E 10YR 7/6 ~185°C “ Gretas/ desc.
14B Tíbia D 10YR 7/6 ~185°C “ Gretas/rachad./desc.
15A Fíbula D 10YR 7/4 ~185°C “ Rachaduras
15B Fíbula E 10YR 7/4 ~185°C “ “
15D Frag. fíbula 10YR 7/4 ~185°C “ Rachad./ gretas

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Proj Par
Sítio Panema
Campina do Monte Alegre
Enterramento: Pa -1
Legenda
• Sulcos
▲ Faixas raspadas
■ depressões
Obs 1: foram mapeadas apenas as
alterações nos fragmentos ósseos
identificados e com referência
de lateralidade.

Obs 2: Além dos ossos mapeados


apresentam ainda alterações:

1.sulcos: 2 fragmentos de crânio,


34 de costelas, 3 de vértebras e
1, provavelmente, de osso do quadril,

2,faixa rasoada; 2 fragmentos de


crânio e 1 de costela.

3,depressões: 1 fragmento de costela

Fig. 8 - Mapeamento dos sulcos, faixas raspadas e depressões.

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Fig. 9 - Fragmento de mandíbula, lado esquerdo, com marcas de descarnamento


(centro).

que se apresentam com sulcos bem marcados Segundo classificação paradigmática,


(neste último, provavelmente provocaram a elaborada para sistematização dos dados e
quebra da diáfise, como na Fig.l 1). Os restan­ onde foram computadas as variáveis, como
tes, como as costelas, diversos ossos longos, tipo de alteração, forma, posição, ocorrência,
fragmento de mandíbula e escápulas, não foram direção da alteração, posição no osso e
cortados e sim fragmentados naturalmente, orientação (Tabela 3), temos que o tipo do
provavelmente, por pressão do sedimento sulco predominante foi o simples (58,3%),
durante o processo pós-deposicional. Entretan­ paralelo (40,0%) e em ocorrência composta
to, encontramos diversos fragmentos pequenos (61,1%), este último sugerindo insistência de
com sulcos próximos à fragmentação que movimentos, causando diversos sulcos no
certamente quebraram nos locais que estavam mesmo local do osso (Dunnell 1971).
fragilizados pela alteração. A escápula esquerda Em relação ao eixo principal do osso, a
é a única peça que apresenta o tecido ósseo direção das alterações nos ossos longos foi
esponjoso atingido pelos sulcos, ficando suas variável, apresentando-se oblíquas (29,45%),
marcas no tecido ósseo compacto consecutivo. transversais (20,5%) e longitudinais (14,7%),
Em alguns casos, onde os sulcos se mostrando que a forma do osso não teve
apresentam compostos, observamos três influência na preferência pela direção das
ocorrências de marcas em forma de S seme­ ranhuras.
lhantes às causadas por caninos de animais As faixas com raspagem, verdadeiras
(Botella, Alemán, Jiménez 1999) (Fig. 12). facetas resultantes da possível retirada de
Encontramos uma única ocorrência de fatias longitudinais do osso, estão principal­
sulco duplo isolado na diáfise do úmero mente localizadas nas diáfises dos ossos
esquerdo, de origem não identificada. longos, acompanhando seu eixo principal. Sua
Não foram observadas alterações nas ocorrência totaliza 22,2% dos ossos alterados.
poucas epífises presentes de ossos longos e Estão presentes nos úmeros direito (Fig. 13) e
apenas o fêmur direito apresenta sulcos nas esquerdo (Fig. 14), no rádio esquerdo, na ulna
metáfises. esquerda no fêmur direito, na tíbia direita

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Fig. 10 - Ulna esquerda apresentando sulcos, sem fragmentação da diáfise.

Fig. 11 - Diáfise do úmero esquerdo com sulcos que provavelmente provocaram a


fragm entação.

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Fig. 12 - Detalhe da ulna esquerda onde se vê, ao centro, o sulco em forma de S.

Tabela 3 - Classificação Paradigmática


Tipo alter. N° % Forma N° % Posição N° % Ocorrência N° %

A- sulco 23 63,8 A-simples 21 58,3 A-paralelo 14 40,0 A-isolado 4 38,8


B- raspado 8 22,2 B-duplo 3 8,3 B-cruzado 7 20,0 B-compost. 22 61,1
C-depressão 5 13,8 C-circular 2 5,5 C- em “V” 2 5,7
D-alongada 9 25,0 D- em “S” 2 5,7
E-amorfa 1 2,7 E-nulo 10 28,5

Direção N° % Posição no osso N° % Orientação N° %

A-oblíqua 10 29,4 A-diáfise 10 27,7 A-anterior 9 25,0


B-longitud. 5 14,7 B-metáfise 2 5,5 B-posterior 7 19,4
C-transver. 7 20,5 C-epífise 0 - C-lateral 12 33,3
D-nulo 12 35,2 D-outro 14 38,8 D-outro 8 22,1

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(Fig. 15), em fragmento de mandíbula e de depressão, diferindo do restante dos ossos


costela. Por suas características e pelas onde elas aparecem niveladas com a superfície
ranhuras deixadas como vestígio, podemos do osso. No úmero esquerdo, a faixa raspada
inferir que foram causadas por lasca lítica com apresenta-se como resultante da fricção contra
o intuito de raspar pequenas porções do um suporte lítico (Fig. 14).
tecido ósseo compacto, sem a intenção de O material apresenta, em menor número,
atingir o tecido ósseo esponjoso. Em dois depressões (13,8%) causadas por vários
fragmentos de crânio, elas se apresentam em sulcos juntos, sugerindo lima repetição de

Fig. 13 - Úmero direito apresentando faixas raspadas, longitudinais, acompanhan­


do o eixo principal do osso.

Fig. 14 - Úmero esquerdo com faixa raspada próxima à fragmentação da diáfise.

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Fig. 15 - Detalhe da faixa raspada na tíbia direita (Fig. 5), com aumento de 6x.

movimentos. Estão localizadas na clavícula ou seja, sulcos feitos pelos dentes superiores
esquerda, ulna esquerda e em um fragmento de e inferiores (a ação de roer envolve tanto os
costela (Fig. 16). caninos como as cúspides dos molares
Analisando o conjunto de informações superiores e inferiores).
obtidas, concluímos que a maioria dos sulcos, as Se, por um lado, as evidências não nos
faixas raspadas e as depressões foram feitas com permitem afirmar se tratar de processo tafonô-
os ossos já desidratados e posterior à queima, mico, por outro, não descartamos a possibili­
conforme atesta a Fig. 17, cujo detalhe mostra dade de alteração antrópica.
uma greta de contração causada pela ação Como não há tradição de pesquisa neste
térmica, apresentando superfície polida. Porém, assunto em Arqueologia Brasileira, o que
encontramos também marcas semelhantes à de provoca a ausência de coleções experimentais
descamamento, que sugerem terem as alterações de referência, não possuímos parâmetros para
ocorrido em dois momentos, isto é, antes da comparação. Por isso estes sulcos foram
queima, com os ossos ainda frescos e posterior­ apenas descritos e incluídos na seqüência em
mente, nos ossos já desidratados (Figs. 17 e 18). que ocorreram as alterações.
Os sulcos feitos posteriormente à queima Em alguns ossos, como no úmero direito,
apresentam algumas características que deixam por exemplo, constatamos que as marcas são
dúvidas quanto à sua origem. Se tafonômicas, interrompidas pela fragmentação e, mesmo
as marcas se assemelham, em alguns casos, às depois de reconstituído o osso, os sulcos não
deixadas por dentes de carnívoro, isto é, passam para o complemento (Fig. 19). Isto
curvas, em S, compostas de forma cruzada ou significa que o osso foi quebrado antes de
superpostas (caóticas). Entretanto, faltam os ocorrer a alteração e posteriormente os
esperados e tradicionais furos circulares fragmentos foram cuidadosamente recolhidos
causados por dentes caninos, as extremidades e depositados na uma funerária, numa ação
dos ossos roídas e as marcas de bipolaridade, inquestionavelmente antrópica.

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históricas. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Fig. 16 - Fragmento de costela com evidência de depressão.

Fig. 17 - Ulna esquerda mostrando no canto direito superior marcas de descarna-


mento, no centro, sulcos bem marcados posterior à queima e no centro superior a
faixa raspada sobre os sulcos.

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históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

Fig. 18 - Fêmur direito mostrando no canto direito inferior marcas de descarna-


mento. Note ao centro faixa raspada que não ultrapassa a fragmentação, signifi­
cando que fo i feita após a fragmentação do osso.

Fig. 19 - Úmero direito. Note-se que os sulcos não passam para o complemento,
significando que o osso já estava quebrado quando foram feitos.

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Possibilidades de interpretações ao contrário de modelos fechados e perfeitos


etno-históricas pré-existentes (com farta e abundante biblio­
grafia de apoio), com uma bibliografia escassa
A interpretação de restos esqueletais a em termos históricos e quase inexistente em
partir das fontes históricas e etnográficas é termos arqueológicos. Modelos não respon­
árdua, haja vista a ausência quase completa de dem questões pertinentes a dezenas de
escavações sistematizadas sobre enter- parcialidades ao longo de centenas de anos:
ramentos e sobre as diversidades que se não resolvem nem dirimem dúvidas. Ao mesmo
apresentam. Ao mesmo tempo, os modelos tempo, ainda se desconhece a mudança interna
existentes mais confundem do que esclarecem existente dentro das parcialidades em contato
diversos aspectos no que concerne ao enten­ com grupos diferentes.
dimento dos grupos de fala Tupi-Guarani. Nossa exposição é, em face da ausência de
Desta forma, a interpretação de um enter­ padrões ou estudos locais de enterramentos
ramento em vasilha com tratamento de superfí­ dos horticultores falantes do Tupi-Guarani,
cie corrugada é absolutamente impossível, apontar que sérias dúvidas persistem, tais
frente aos dados arqueológicos, históricos ou como:
antropológicos existentes, cabendo apenas - Situação dos enterramentos frente
divagações ou possibilidades remotas que não ao status de chefia temporal;
podem ser tomadas como últimas ou definitivas. - Situação dos enterramentos frente
Não existe, até o momento desta escrita, ao status de chefia espiritual;
uma sistematização do trabalho arqueológico, - Situação dos enterramentos frente
apenas algumas reflexões baseadas timidamente às distintas parcialidades;
em dados históricos que propõem modelos, - Situação dos enterramentos frente
prática, aliás, corrente na arqueologia brasileira.4 aos diferentes momentos históricos.
Sendo assim, e frente a uma total carência
de dados empíricos sistemáticos ou interpre- Esses questionamentos são fundamentais
táveis à luz das analogias ou das fontes para que nenhuma hipótese ou especulação
primárias (históricas, antropológicas ou seja tomada como premissa ou paradigma
etnográficas), é que apresentaremos um viés quanto à Arqueologia da morte. Infelizmente,
possível, frente a nossa experiência de campo as publicações na região sul do Brasil ainda
em exumações anteriores de enterramentos inviabilizam qualquer fonte a ser tomada como
Guaranis ainda inéditos,5 mas que poderão segura ou única na interpretação dos enter­
trazer luz ao achado em questão. Este preâm­ ramentos até hoje exumados em condições
bulo é necessário para que se esclareça que, a quase sempre adversas. Sendo assim, e
partir deste momento, está se trabalhando com embora extenso como prólogo, é necessário
hipóteses sobre o material disponibilizado e, que se façam algumas observações para que
se evitem precipitações interpretativas em
futuros achados.
(4) N este caso pode-se citar a dissertação de Noelli O primeiro momento a ser considerado é a
(1993) e as propostas de investigação de N oelli e ausência total de trabalhos sistemáticos sobre
Montardo (1989), que apresentam elem entos a ser enterramentos arqueológicos identificáveis do
considerados para os arqueólogos de campo. Não ponto de vista temporal, étnica e socialmente
descrevem , porém, nenhuma prática de campo na qual
falando. Por se tratar de uma área pouco
seu próprio m odelo tenha sido testado.
(5) A equipe do LEPA-UFSM realizou, em caráter de conhecida, ainda persistimos na dúvida de
urgência, três salvam entos arqueológicos com tratar o local como de ocupação Guarani,
enterramentos Guaranis, a saber: duas urnas funerárias grupo Guaranizado ou de fala Tupi-Guarani,
com pouquíssim os vestígios ósseos em São Martinho que são MUITO diferentes e devem ser
da Serra; um enterramento em vasilha Guarani em um
tratados de forma cuidadosa e ainda incipiente
cerrito em São Gabriel; e uma doação de ossos em
vasilha Guarani proveniente da localidade da Cabecei­
na Arqueologia nacional.
ra do Raimundo, Santa Maria. Os resultados aguardam Em comunicação pessoal, José Proença
publicação. Brochado (1999) afirmou que as vasilhas

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grandes, no caso as panelas utilizadas como mento ou ao corte dos ligamentos entre os
umas funerárias, eram semelhantes entre os ossos e os nervos, cartilagens ou ligamentos
Guaranis do Rio Grande do Sul e os Tupinam- que uniam o esqueleto aos músculos. Neste
bás de São Paulo, conforme seu levantamento sentido, podem ser interpretados como prová­
bibliográfico de formas de vasilhas cerâmicas vel descamamento os ossos do maxilar inferior,
do leste da América do Sul. Da mesma forma, costela e fêmur, que apresentam cortes finos em
ainda segundo Brochado, as diferenças e coincidência com músculos e ligamentos.
disparidades das informações não permitem Os tipos de corte encontrados, no entanto,
nenhuma afirmação definitiva, uma vez que não se reduzem a cortes de descamamento. A
qualquer descrição será praticamente única no hidratação do osso em situação peri mortem
cenário arqueológico do sul do Brasil, não deixaria cicatrizes semelhantes ao já observado
sendo o mesmo em outros estados. em outros rituais para fins de enterramento ou
A localização geográfica do município antropofagia. Em nosso caso, existem sulcos e
sugere uma provável ocupação Guarani, mas cortes de caráter antrópico ou tafonômico
sujeita a uma série de indagações, como por diferentes do descamamento. Nossa observa­
exemplo, influência de outros grupos, Guarani- ção no Laboratório de Estudos e Pesquisas
zação, contato interétnico predominante, entre Arqueológicas - LEPA/UFSM -, em dois
outras possibilidades. enterramentos anteriormente exumados, nos
Até o momento desta revisão bibliográfica, municípios de São Gabriel6 (formação geológica
os dados utilizados são compostos de três do Escudo Cristalino ou Sul Rio-Grandense) e
tipos de informações não excludentes, mas não no município de São Martinho da Serra7
necessariamente complementares, que devem (formação geológica da Serra Geral) nos
ser tomadas com diversas ressalvas para que apresentaram evidências de descamamento,
não se caia no reducionismo. nas quais este, no momento da morte - peri
- As informações dos viajantes e jesuítas mortem - , propicia um tipo de marca no osso
dos séculos XVI ao XVIII, tratando dos índios hidratado, deixando vestígios específicos
de forma exótica ou pejorativa, sem preocupa­ diferentes dos cortes realizados no osso seco.
ção propriamente descritiva, ainda mais se O material ósseo apresenta uma série de
tratando do assunto em questão; alterações dignas de nota do ponto de vista
- As informações dos viajantes de meados histórico, etno-histórico e arqueológico
do século XIX e início do século XX, que são Guarani. As informações existentes sobre os
tratadas desconsiderando-se os efeitos Guaranis serão tratadas a partir da análise dos
nefastos dos contatos, que necessariamente ossos, não com o intuito de direcionar a
modificaram as formas tradicionais de vida e interpretação, mas, ao contrário, que sejam
socialização das informações em questão; possíveis leituras distintas frente às diferentes
- As informações de autodidatas, etnógra­ possibilidades que as informações viabilizam
fos e antropólogos do nosso século, cientifi­ sobre o material proposto.
camente elaboradas, porém, em contato com A partir das características descritas
realidades distintas das tradicionais. supra-citadas, buscaremos construir uma
Sendo assim, é praticamente impossível hipótese sobre várias possibilidades relativas
considerar estas informações, seja em nível de ao enterramento, considerando as especificidades
analogia direta ou etnográfica, mas que dos grupos Guarani já conhecidas, como por
poderão ser tomadas como base para especu­ exemplo, enterro primário e/ou descamamento,
lações que deverão ser comprovadas em enterramento em uma, entre outras:
outras oportunidades, quando uma maior
quantidade de enterramentos forem escavados
de forma sistemática, controlada e fartamente (6) Urna funerária com ossos humanos encontrados
por um agricultor em um cerrito, trabalho de campo
documentada. coordenado por Saul Milder, 1998.
Em primeiro lugar, os ossos provavelmente (7) Um a funerária resgatada por André Soares e
sofreram descamamento, ou seja, houve cortes equipe do LEPA, dezembro de 1998, IV Congresso
em certos ossos que remetem ao descama­ Internacional de Estudos Ibero-Am ericanos, no prelo.

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- Uma única etapa, em que os ossos foram Embora seja assunto extremamente delicado,
descarnados, cortados e, em seguida, proces­ em face da completa ausência de escavações
sos pós-deposicionais perturbaram e/ou ou exumações controladas em umas funerárias
alteraram os cortes. Queima de ossos por Guaranis, acreditamos que se trata, em virtude
incêndio ou queima intencional; das distintas etapas pelas quais passaram os
- Duas etapas, nas quais o indivíduo ossos, de uma ‘violação’ ou queima intencio­
passa por um processo de descarnamento; nal seguida de retirada de pó ou pequenos
posterior ‘violação’ do sepultamento e realiza­ fragmentos dos ossos.
ção de cortes, fraturas e queimas.
- Quatro etapas, nas quais o indivíduo foi
descarnado para enterramento; recolhido para Documentação do século XVII
queima com posterior abandono; alterações
tafonômicas e/ou antrópicas (carnívoros e Deve-se observar, primeira e principalmen­
raspagens) e; enterramento final em uma. te, que não possuímos qualquer registro,
- Quatro etapas, com exposição do arqueológico, histórico ou etnográfico, de
cadáver à intempérie, descarnamento e limpeza queima dos ossos, cremação de cadáver ou
dos ossos, queima parcial e enterro na vasilha; queima de ossos intencionalmente entre os
- Cinco etapas, com exposição do cadáver Guaranis. Em nenhuma das parcialidades
à intempérie; descarnamento e limpeza dos estudadas, ao longo de cinco séculos de
ossos - uma vez decomposto o cadáver; contato, existem registros, informações ou
enterro em uma; queima parcial; re-enterro em citações de queima em ossos, salvo a hipótese
urna; colocada a seguir.
Centrar-nos-emos na terceira hipótese, Para que esta hipótese tenha sustentação
devido aos seguintes argumentos: é necessária uma digressão relativa aos tipos
A primeira hipótese é inválida por que os de enterramentos conhecidos, à importância
cortes de descarnamento não são contemporâ­ do enterramento e da conservação dos ossos,
neos aos outros cortes, realizados em ossos já e à fragilidade dos dados etno-históricos para
secos e sem tecidos musculares; ao mesmo um texto consistente de fato.
tempo, as fraturas decorrentes dos cortes Começaremos pelo último:
evidenciam um período bem depois da morte As informações históricas utilizadas são
em que os ossos já estavam desidratados. sempre fragmentadas, no sentido descritivo,
A segunda hipótese não é inviável, mas étnico e cultural: com isto estamos afirmando
seria uma coincidência bastante grande que os que as existentes provêm de grupos muitas
ossos escolhidos para serem cortados fossem vezes descritos com forte carga eurocèntrica,
os mesmos já queimados em momentos sem precisão do grupo com que se trabalha e
idênticos, face principalmente ao fato dos sem aprofundamento sócio-temporal, quer dizer,
cortes serem posteriores à queima, como sem integração social ou tempo suficiente para
atestam as deposições de carvão na superfície conhecer a sociedade a fundo.8 Isto não quer
dos ossos e esparsas dentro das áreas raspa­ dizer que esses dados não possam ser utiliza­
das e cortadas, de forma que trabalharemos dos: apenas que eles não podem ser tomados
como eixo norteador a hipótese três. As como verdade última ou absoluta, frente ao fato
hipóteses quatro e cinco, embora viáveis, não que não sabemos, exatamente, de quem esta­
cabem nos procedimentos conhecidos para os mos falando. Os Guaranis têm sido tratados
Guaranis, ou seja, exposição à intempérie do como uma massa homogênea que vai contra a
cadáver, muito embora existam marcas que identidade étnica das diversas parcialidades e
poderiam conduzir a este raciocínio.
Os elementos que disporemos agora serão
no sentido de apontar que dois fatores devem (8) Esta proposição não é nova: diversos autores
ser observados na problemática levantada: os trabalham com a inconsistência e fragilidade das
cortes devem ser posteriores ao descar­ inform ações, com o M elià (1988), N oelli (1993),
namento e, em segundo lugar, à queima. Soares (1 996,1997) entre outros.

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PIEDADE, S.C.; SO AR ES, A.L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

suas mudanças e transformações ao longo do fuera de la choza, y es enterrado fuera de ella,


tempo. Tomemos um exemplo: entonces debe colocarse por encima de su tumba
um techo protetor. Al muerto se le agrega en la
"... el m estizam iento ... en el proceso de tumba todo su haber personal antes también rifle
este curce racial predominaba la práctica de que y máchate - éstos, hoy en dia casi siempre
los avá fundaban sus m ism os “teyy” entre los exceptuados - pero no tocado por los parientes.
grupos avasallados, de donde la simultaneidad de Por eso no hay entre ellos derecho sucesorio”
una “guaranización” culturolingüistica; el (M üller [1913] 1989:30) (sobre os Pañ-tavyterá,
m estizam iento direto, m ediante mujeres cautivas conhecidos também com o ñandeva ou Pay)”
y niños integrados o m estiços, era más freqüente “Fui informado, ainda, que os executados
con las guayaná-gé...”(Susnik 1970/80:11) com o feiticeiros ruins não são sepultados dentro
da casa, mas soterrados sem solenidade na mata
Sendo assim, utilizaremos os dados onde os parentes os podem ir lastimar.” ( Baldus
históricos,9 mas cobrindo todo o texto com as [1935] 1970: 302) (sobre os Tapirapé)
ressalvas de que são diversos grupos que “Quando muere alguno dellos entierralo
assentado y pónence de comer con una rede en
passaram distintas experiências, portanto, trata­
que ellos duermen, y dizen que sus ánimas andam
se de uma hipótese especulativa de trabalho. por los montes y que vienen allí comer (pg. 137)
A crítica às fontes já foi realizada, de forma (...) esto porque creen, según dizen, que después
que poderemos voltar à questão do enterra­ que muren toman a comer y descansar sobre su
mento da forma como é conhecido entre os sepultura. Hechanlos en cuevas redondas, y si son
Guaranis históricos, para buscar fontes de principales házenles una choça de palm a...”
(Serafim Leite [1538-1553] 1954:152) (dos
analogias com o estudo de caso. Os modelos
tupis do litoral)
teóricos10 apontam para enterramentos primári­ “.. quando se muere alguno ayunan dos dias;
os e secundários em umas, e primários direta­ todas las de su casa no comen carne ni van al
mente sob o solo. As escavações arqueo­ rio... y las indias han de llorar a gritos y se
lógicas sistemáticas e realizadas por arqueólo­ suellen dar muy crueles golpes; enterran sus
difuntos en el campo o hacenda, sobre la
gos têm poucas referências no sul do Brasil.11
sepultura unas choçuelas y de quando en quando
Os enterramentos primários e secundários, van a limpiar la yerba que nace en ella porque asi
ainda segundo modelos especulativos (Soares dicen que descansa el difunto; cortan los puños de
1997) devem ter relação com status social e las hamacas en que los entierron porque si no,
religioso, seguindo as informações históricas e morirán otros de la misma casa, por la misma
raçon quitan las cuerdas de hamaca, y en la
antropológicas de diferenças hierárquicas
sepultura. Mientras lo entierran no a de caer
tanto nas chefias temporais como espirituais. basura alguna porque si cae se morirán otros de
Isto não evita as diferentes e divergentes aquella parcialidad. Si la difunta es india que tenia
informações sobre enterramentos, locais de hijo al pecho va una vieja a la sepultura con un
enterramentos e tratamentos diferenciados redaço y com o que ensaca con el algo, lo mece
dos o tres veces, con lo qual saian el alma de allí
dados aos mortos por grupos próximos e
porque el niño no se muera porque el alma de la
usualmente utilizados para analogia etno­ india ayuda a criar al niño y se se queda en la
gráfica. Apresentamos, mesmo que de forma sepultura, el niño a de morir.” (Cortesão
longa, alguns exemplos: 1951:274) (dos Guaranis do Guairá, 1549)
“O costum e Tapirapé de enterrar o morto
“G eneralm ente, el entierro tiene lugar en la
no interior da casa era ou é praticado por muitas
choza del fallecido, aproximadamente a un tribos Tupí, a saber, pelos Tupinambá (Léry,
metro de profundidad bajo tierra. Si el Pañ muere Gabriel Soares de Souza), ... Kainguá (Ambro-
setti), Guaraní (Metraux), Chiriguano (ib.),
Kokama (ib.) (...) Seja com o for: o costum e de
sepultar o m orto‘dentro da casa onde morou, e
(9) As fontes mais conhecidas e sobejamente citadas de continuar habitar esta casa mostra os
são Susnik (vários) M ontoya (Dicionários e a Tapirapé com o parentes dos Tupinambá e da
C onquista...), Cadogan (1992). maior parte das tribos da mesma familia
(10) Ver N o elli (1 9 9 3 :1 0 2 -1 0 5 ). lingüística diferenciando-os dos Karajá (Krause),
(11) Um caso é a descrição de Chmyz (1974). Na dos Kayapó (ib.) e das tribos do Culiseu (Von Den
maior parte das vezes conhecem os casos de ‘salva­ Steinen)”. (Baldus, op.cit.: 157)
m ento’ de urnas por arqueólogos que .engordam
co leçõ es m useológicas, mas, sem nenhuma preocupa­ Estas citações seriam suficientes para
ção cien tífica . mostrar que, em termos de analogia etno-

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[EDADE, S.C.; SO ARES, A.L.R. C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
stóricas. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

ráfica ou histórica, os Guaranis e seus Contesto: Los restos de mis antepassados, se


arentes lingüísticos formariam uma bela guardan allí en señal de amor y reverência. (...)
Exteriormente estaba pintado y contenía adentro
:olcha de retalhos’, como costuma acontecer.
siete cráneos adornados con plumas en forma de
Ias talvez a citação de Métraux (1979), abaixo, corona y una sarta de chaquiras com o collar. No
2ja o suficiente para indicar que não há, quiso que estos restos tuviesen mayor distinción
jgundo a bibliografia, um padrão de enter- que las almas de estos difuntos, y así los entregó al
imento, mas diferentes possibilidades frente fuego. Al saber esto el viejo y una vieja que les
acompañó, comenzaron a dar señales de luto a su
o grupo e ao status social.
usanza, y por varios días seguidos no encendieron
“Em se tratando de um chefe de família, fuego.” (Maeder 1984:66).
enterram-no em casa, no próprio local onde
costumava dormir; se é uma criança, o morto é A lingüística como fonte de informação,
sepultado fora e atrás da oca. Alguns o são nas baseada na reminiscência vocabular também se
plantações e outros nos sítios de sua preferência. mostra complicada, pois os Mbyá-Guarani
(pg.107) A gente comum, ao que parece, era usam ambas as formas de expressão para os
enterrada fora das habitações. Todavia, os índios
não esqueciam de erigir no túmulo uma choça em
enterramentos:
miniatura. A presença de um teto sobre a “... m b a ’e g u ach u ru p a “lech o de cosa
sepultura era, provavelm ente, julgada indispensá­ grande”; probablemente una reminiscencia de la
vel, pois, quando os tupinambás abandonavam época en que los mbyá, com o otras naciones
alguma aldeia, destruíam as habitações, mas tupi-guarani, enterraban a sus muertos en urnas;”
tinham o cuidado de depositar folhas de palmeira “(...) y g a ry p y ñ am b o u p a v a ’e y v y ra k ãn ga
pindó no local onde repousavam seus antepassa­ en (recipiente de) cedro depositamos el esquele­
d os.” (Métraux 1979:108, sobre os tupinambá) to.” (Cadogan 1992: 103;116)
“ (...) om an o v a ’e ro m b o u p a ta k u a p em -
Isto posto, pode-se perceber que o by ip y, k o ’eram o roñom o al muerto lo
nterramento encontrado faz parte de uma colocam os en una estera y al dia seguiente lo
ama de possibilidades enterratórias comuns enterram os.” (Ibid, 132)
os grupos de fala Tupi-Guarani, e igualmente
omum às distintas parcialidades Guaranis,
omo colocado. Culto aos ossos
Mas outro ponto deve ser salientado, que
a importância que os Guaranis dão aos ossos
O culto aos ossos que aparece desde as
pós o enterramento, seja ele primário ou
Ânuas é fartamente descrito por Cadogan, mas
scundário. Para que não recaiamos nos
diversas lacunas ficam abertas para as formas
íesmos erros supra-citados, colocaremos um
como este ‘culto’ é realizado. Abaixo expore­
xemplo histórico e outro etnográfico, a saber,
mos alguns dos verbetes do dicionário que,
roveniente das Cartas Ânuas de 1637 (Mae-
deve-se observar, não tratam do culto no
er 1984) e, mais adiante, das experiências de
passado, mas como uma práxis corrente até o
eón Cadogan (1992).12 Infelizmente, não ano de escrita de Ayvu Rapyta (1953).
ibemos de que grupo Guarani se trata,
penas que se passou na área de abrangência “kãngo deshuesar, quitar los huesos; p ira
eik ã n g o k y rin g u e o ’u an gu ã quita los huesos
o Colégio de “La Rioja”:
del pescado para comerlo el niño; usado también
“En cierta choza pajiza estaba tendido un al referirse a la preparación del esqueleto de un
indio muy anciano.... pero viviendo en su juventud niño para el culto de los muertos, k ãn gu ek u e
entre los infieles, había vuelto a las costumbres om boetery hizo que la palabra fluyera por el
gentiles...(sobre) La confeción. En este acto notó esqueleto, hizo que vuelva a encarnarse el
el confesor al lado de la cama dei enfermo (pg.67) espíritu.” (Cadogan 1992:78);
una espécie de ataúd cubierto con un pano negro, “k a ra i o g u e r o ja p y c h a k a y v y r a ’i k ã n g a
y preguntó al anciano, que significaba ésto. el sacerdote ‘hace escuchar’ el esqueleto, objeto
de culto; rojeroky danzar con, danzar en
hom enaje a; o g u ero jero k y _ k ã n g u e k u e danzó
con los huesos, con el esqueleto, objeto de culto”
2) Este dicionário tem um história própria, pois o (ibid: 159);
ítor o escreveu com intuito de aprofundar os mitos “rokandire alcanzar el estado de inmorta­
anscritos em Ayvu Rapita (1953). lidad ‘kandire’ juntamente con el objeto de culto;

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PIED A D E, S.C.; SO ARES, A.L.R. Considerações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

todos los ejem plos anotados guardan relación Dicionários de M ontoya.13 A ausência
con el culto del esqueleto de párvulo” (ibid, 160);
completa dos assuntos religiosos dos índios
“ro ñ e m b o ’e rezar referente a, rezar por;
T ak u a V era C h y E te o g u e r o ñ e m b o ’e y v y r a ’i
nos dicionários e Anuas justifica-se porque
kanga - Takua Vera Chy Ete rezo referente al sempre foram tomados como costumes
esqueleto (Leyenda de Takua Vera Chy Ete)” pagãos a serem redimidos, por isso sua total
(ibid, 161); ausência na bibliografia jesuítica, citados
“T akua V era C hy E te heroína divinizada
esporadicamente como exemplos da ausência
que obtuvo a g u y je la perfección danzando y
entonando him nos em honor de y v y r a ’i
da fé e da barbárie indígena.
kãngua los huesos de un hijo que se la había Infelizmente, as únicas informações sobre
m uerto”(ibid, 166); queima de ossos secos provêm do procedi­
“ta k u a ry v a i k ãn ga ‘nombre relig io so ’ del mento dos padres jesuítas em relação ao culto
esqueleto humano (fem inino); ta k u a ry v a i aos ossos. Tanto os padres do Colégio de ‘La
kãn ga m itã ’i ‘nombre r elig io so ’ del esqueleto
Rioja’ em 1637 como Montoya, em 1639,
de urna niña.” (ibid, 166)
comentam, rapidamente, como os ossos
Certamente trata-se de uma coincidência, destinados aos cultos são queimados, prefe­
mas Montoya, em sua Conquista Espiritual rencialmente em praça pública, em fogueiras
(1639 [1989]) relata urna casa na qual se (abertas, não em buracos ou fomos). Parado­
realizava o culto de ossos que, segundo o xalmente, e ao mesmo tempo, não se registrou
pajé, retomaria à vida, fazendo que os paren- que os ossos tenham sido queimados até a
tes conservassem o seu corpo defumado em pulverização ou somente como fim de culto
uma rede. pagão. Tampouco aparece o destino dos ossos
“..de aquel monte descubrieron un templo
após a fogueira.
adonde eran honrados aquellos huesos secos.(...) Até aqui teríamos uma hipótese plausível
Recogieron los Padres los huesos, plumas y para a queima dos ossos, no sentido que,
arreos...(..) descubrimos unos hediondos huesos pertencendo a um objeto de culto por parte
que aunque adornados con vistosas plumas nunca dos Guaranis, o esqueleto foi profanado por
perdieron su sucia fealdad” (M ontoya [1639]
padres e levado à fogueira como forma de
1989: 132, 134)
terminar o culto.
Mas, ressalvada a importância que os Restam ainda as alterações que não
ossos e os restos mortais possuem, cabe a pertencem ao descarnamento, como as faixas
pergunta: qual o motivo dos cortes, raspagens raspadas. Considerando a inexistência de
e queima do estudo de caso? Ao que tudo informações como dados utilizáveis, poder-se-
indica, e a análise dos ossos aponta para isto, os ia supor que a completa ausência ao tratamen­
cortes, raspagens e queimas foram realizados to dado aos ossos, bem como o que levaria um
em algum momento após a extinção dos indivíduo a ter seus ossos quebrados, raspa­
tecidos moles, não compondo, desta forma, dos e queimados, seja assunto fora da alçada
parte do descarnamento com fins de sepulta- da religião cristã, leia-se feitiçaria (especifica­
mento. O estado de conservação dos ossos mente no período anterior ao contato com os
aponta, ainda, para dois momentos de cortes, europeus). Desta forma, considerando os
um com esses ainda frescos e outro com os atributos supracitados (de raspagem e queima
ossos secos. de ossos) como ausentes da bibliografia
Não sabemos o que levaria um indivíduo corrente tanto dos séculos XVI como XVII,
a ‘profanar’ o túmulo de outro. As informa­ XVIII e XIX, cremos ser possível inferir que
ções históricas já trabalhadas em momentos este assunto refere-se a um domínio cultural
anteriores (Soares 1997) não relatam nenhuma que não pôde ser acessado ou descrito, que
ação específica ou causa para tal ‘profana­ poderíamos entender como a religião ou as
ção’. Dentro do exercício especulativo,
sabemos que o maior número de informações
a respeito dos Guaranis históricos encontram- (13) Sobre a importância dos dicionários de M ontoya
se naquelas descritas pelos padres da compa­ para a etno-história Guarani, ver M elià (1988),
nhia de Jesus, os jesuítas e especialmente, os N oelli e Landa (1990) e N oelli (1993).

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PIEDA DE, S.C.; SO A RES, A .L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. Revista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

formas de expressão relacionadas à ligação do enfrentada nem pelo chefe mais audacioso,
homem com o sobrenatural. como atestam os documentos.15
Adentrando no funil, cada vez mais tênue, Não nos cabe neste momento apresentar
das informações que temos, devemos buscar as hierarquias entre os pajés localizadas nos
na possibilidade da religião indígena uma documentos,16 mas apontar que estas figuras
hipotética explicação para a ‘profanação’ são tão benquistas quanto temidas. Se pensar­
encontrada. Esta elástica ida-e-vinda na mos na segunda possibilidade e no que, em
bibliografia histórica e antropológica só pode breves exertos, significa a pajelança, podere­
ser considerada dentro da total ausência de mos esboçar uma tímida e incipiente idéia do
informações e, ao mesmo tempo, da fragilidade papel do pajé.
das analogias e inexistência de dados mais "... el poder impositivo de los shamanes
concretos. dominadores de las fuerzas mágicas desconocidas.
En contraste con los guaraníes historíeos,
culturalmente marginados e ideológicamente
Papel dos pajés consciente y dominantemente su “tekó porá”
vivencial y sy “teko kaví” socio-cultural, siendo
los shamanes en su rol de “yeri kyhara” verdade­
Em que caso poder-se-ia molestar um ros impulsores del dinámico “o guaitá” y, no
indivíduo no post mortem, haja vista a preocu­ menos, del agresivo “marándekó”. (Susnik 1979/

pação supracitada com o destino dos ossos e 80: 10)

o descanso do seu proprietário? Sendo assim, a parte a seguir refere-se à


No nosso entender (e somente frente à mais profunda especulação histórica, sem
ausência de dados melhores), nos casos de nenhum caráter comprobatorio antes de
feitiçaria ou relacionado à questão religiosa, maiores análises ao material ósseo e a biblio­
próxima ao culto aos ossos. Nas entrelinhas, grafia paraguaia contemporânea. Já colocamos
percebe-se que há uma possibilidade de que se acima a importância dada pelos diversos
continue o culto aos ossos:14 grupos Guaranis aos mortos e aos ossos,
“...pudiesen ver el desengaño en los huesos independente do local ou tipo de enterramento
fríos, mostrólos el Padre declarando los nombres utilizado. Isto nos levaria a crer em uma
de cuyos eran. (...) A porfía traían leña para valorização do momento da morte e no destino
quemarlos, y así se hizo en presencia mía para
dado aos ossos de forma generalizada para as
que no llevasen algún hueso, y con él continua­
distintas parcialidades. Fato é, no entanto, que
sen su mentira” (M ontoya op.cit.: 136)
os ossos exumados encontram-se bastante
Cadogan possui alguns verbetes que atingidos por ações provavelmente posteriores
podem esclarecer o papel do pajé, sua impor­ ao enterramento.
tância e o respeito que lhe creditam, muitas Desta forma, fomos buscar em que casos
vezes transformado em temor. Como represen­ pode-se violar o enterramento e, frente a esta
tante e elo de ligação com o sobrenatural, negativa, face ao caráter sagrado da sepultura,
poderíamos encontrar um sem-número de como buscar uma explicação plausível para a
citações que atestam o destaque do pajé violação.
dentro da sociedade. Consultado para expedi­ O que pudemos averiguar é que, por deter
ções de guerra, equilibrio social, mágico- a ligação entre o mundo dos vivos e dos não
religioso, físico e espiritual, o pajé controla vivos, o pajé também é alvo de temores tão
urna grande quantidade de forças que não é agudos que, em casos extremos, pode levar à

(14) Ver também citação acima de Maeder, 1984. (15) Para tima leitura extensa, ver Manuscritos da
Devem os lembrar que, todavia, nesta mesma passa­ Coleção de Angelis, Jesuítas e Bandeirantes no Itatim;
gem , em outro lugar, M ontoya refere-se a três no Uruguai; no Tape; no Guairá.
esqueletos que eram objeto de culto, enquanto ele (16) Em Soares (1997), apresentamos a hierarquia
relata o destino de apenas um deles. Curiosamente, horizontal que ocupam os pajés ‘sopradores’,
não aparece o destino dos outros ossos queimados. ‘chupadores’ e os karaí ambulantes.

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PIEDA DE, S.C.; SO ARES, A.L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

vingança a ser efetuada sobre o próprio pajé, Uma hipótese seria, então, isolarmos os
com penalidades variando com as atribuições ossos do enterramento segundo a ótica dos
dos males por ele causados. Novamente verbetes b/e , e teríamos, assim, um indivíduo
exporemos uma longa lista de verbetes advin­ que, tendo utilizado a feitiçaria, foi morto e,
dos dos dicionários de Cadogan para que não cessando o efeito de seu malefício, em
esbocemos analogias tímidas: seus ossos foram realizadas ‘numerosas
feridas em seu antebraço’ para uma punição
“a) ipoataa rupigua cosa o ser que se halla
fuera de nuestro alcance; m b a ’evyk ya ip oataa exemplar. Talvez isto explique, ainda que de
rupigua h echicero que, por pertenecer a otro forma simplória e especulativa, a ‘profanação’
grupo, no puede ser alcanzado físicam ente; para de um túmulo, caso diferenciado do verbete c,
castigar-le, se recurre a la hechicería, (p. 57) no qual não se encontra a explicação para as
b) m ondyi espantar, escarmentar; poroa- raspagens nos ossos.
vyk ya o ik ó r a m o ñ a m o n d y i v a ip a v a ’erá,
ip o a p y ru p i ñ a ik y ch im b a i v a ’erá si hay
Outra hipótese, ainda mais remota, seria
brujos, debem os escarm entarlos ejemplarmente: buscar a explicação justamente pela existência
debem os inferirles numerosas heridas en el das escarificações nos ossos que foram mais
antebrazo, (p. 100) queimados. As raspagens são notadamente
c) m b a ’e gu ach u “cosa grande”, ‘nombre alterações antrópicas, das quais não temos
relig io so ’ del cadáver humano; m b a ’e guachu
referências na bibliografia histórica ou arqueo­
m b o a v a i’eya profanador de cadáveres; los que,
en vez de resucitar al héroe solar, intentaron
lógica. Desta forma, buscamos possibilidades
asarlo y devorarlo, siendo convertidos en uruvu na bibliografia recente para tentar explicar a
buitres (mito del robo del fuego), (p. 103) realização das raspagens após a queima dos
d) m b a ’ek u aa sabiduría, conocim iento de mesmos ossos. A coincidência entre queima e
las cosas; también designa la ciencia perniciosa - raspagens nos leva a especular a utilização
conocim ientos de brujería - com o el la venácula;
destes ossos como componentes para uma
o im e a m o n g u e k a r a i g u a p ic h a re te iré
o m b a ’ek u a a o ip o r u , ta tá p y o m b o jech a a
ação culturalmente desconhecida, eliminada a
veces hay chamanes que usan sus conocim ientos possibilidade de perturbação tafonômica. Em
contra (los cuerpos de) sus prójimos haciendo se tratando da confecção do cachimbo ritual,
que el fuego les abrase (que se encuentren en el esta é assim descrita por Garlet e Soares17
fuego - con fuego o fiebre mortífera), (p. 104) (1998:251-274):
e) tem b ia v y k y k u e victim a de embru­
jamiento, “el que ha sido objeto de herida o “Os petyngua que se destinam ao uso ritual
manuseo furtivo”, em b iavyk u e la victim a de su normalmente contém ossos em sua pasta. O
hechicería; iñ a r a n d u vai v a ’e rem b ia v y k y k u e animal preferido é o porco do mato, koxi
o m a n ó r a m o , ja ju k a etev e i v a ’erá si muere la (ta ja ssú ) considerado ñ a n d eru rym b a (anim al
victim a de un brujo, debem os matarlo” (p. 175) dom éstico de N osso Pai), (p. 155). Também
referem -se aos ossos do k agu aré (tamanduá),
Buscando analisar o enterramento encon­ outro animal que emprestaria maiores poderes ao
trado à luz destes verbetes, observamos cachimbo. O tratamento dado aos ossos consiste
em torrá-los junto à fogueira e pulverizá-los no
(sempre afirmando tratar-se de uma especula­
p ilão : ñ a ’e ’u ñ a m o p iru k ã n g u e k u ’i k a ig u e
ção acadêmica e de analogia um tanto forçada, r e v e , j a ja p o p e ty n g u a , ñ a m o c h y i k ã n g u e
mas única à disposição) que os feiticeiros são reve ñ am b ojy, ‘m ezclam os arcilla con huesos
respeitados mas, em caso de utilização maléfi­ calcinados pulverizados, hacemos la pipa, la
ca do seu conhecimento, duramente castiga­ pulimos con un hueso y la cocinam os’. (Cadogan
1992: 140). C onstata-se, portanto, que o
dos. Se colocássemos em ordem as punições,
processo de produção de cachimbo, desde as
teríamos inicialmente o verbete a, sendo o observações feitas por Cadogan aos dias atuais,
feiticeiro de outra aldeia, apela-se, segundo a permanece inalterado. Apesar da dificuldade em
Lei de Talião, para outro feitiço. Caso haja no encontrar alguns elem entos im prescindíveis a sua
próprio grupo o conhecimento do uso maléfico
de feitiçaria, usam a punição exemplar, como
no verbete b, que sinaliza para uma punição do (17) Garlet, Ivori; Soares, André Luis R. In: P.P.
tipo corretiva, ou seja, aplicar feridas no braço. Funari (Org.) Cultura M aterial e A rqueologia
Em caso de morte, como no verbete e, conti­ H istórica. Coleção Idéias. IFCH - Unicamp, 1989:
nua vigorando a Lei de Talião. 2 5 1 -2 7 4 .

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PIEDA DE, S.C ., SO ARES, A.L.R. C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 31-68, 2000.

confecção, ainda que do ponto de vista sim bóli­ utilizada pelos não-acadêmicos, podemos
co. Os mbya do RS não tendo à disposição ossos perceber que diversos ossos foram cortados,
de koxi, incursionam com freqüência pela
raspados e queimados em um conjunto claro
Argentina e Paraguai com a finalidade exclusiva
de adquirir, junto aos seus parentes, petyngua de atividades seqüenciais que não devem ser
confeccionados com ossos deste animal. Tais atribuídas ao acaso. Ampliando a especulação,
cachim bos constituem -se em verdadeiras a título de curiosidade, é importante salientar
raridades, tendo sua circulação e uso restrito que os ossos são considerados elementos que
entre os líderes religiosos.” (p. 256). ampliam o poder do cachimbo: não se poderia
Deve ser dada uma especial atenção a que imaginar que os ossos de um pajé - considera­
o verbete de Cadogan não fala a quem perten­ do enquanto divindade18 - tivessem o mesmo
ce o osso, apenas que é utilizado. Da mesma efeito? São possibilidades.
forma, Garlet e Soares apresentam a importân­
cia do cachimbo feito com tais ossos. Não se
poderia, hipoteticamente, profanar um túmulo Conclusões
para obter os ossos a fim de serem calcinados
e pulverizados para a confecção de um cachim­ Podemos arrolar os seguintes itens de
bo? Não encontraria eco, desta forma, nas conclusão:
maneiras antes antropofágicas de ‘aquisição’
de poder espiritual? E, estando o osso já 1. Esqueleto humano enterrado em vasilha
calcinado, não seria utilizável o osso como cerâmica, utilizada como uma funerária, com
amuleto e seu pó como antiplástico? tratamento de superfície do tipo Corrugado,
O cachimbo dos atuais Mbyá-guaranis é pertencendo à Tradição Tupiguarani, segundo
uma peça anômala em diversos sentidos. Em TERMINOLOGIA (1976) do PRONAPA.
comunicação pessoal, Brochado afirma que Segundo outras classificações pode também ser
nunca foram encontrados cachimbos de enquadrada na Tradição Policrômica Amazôni­
cerâmica em escavações arqueológicas como ca, Subtradição Guarani (Brochado 1984),
aqueles confeccionados pelos Mbyás. Ao Cultura Arqueológica Guarani (Soares 1997) ou
mesmo tempo, é provável que anteriormente Sistema Regional Guarani (Morais 1999);
fizessem seus cachimbos de madeira, face a 2. Trata-se de indivíduo adulto do sexo
sua completa ausência do registro arqueológico. masculino, identificado por meio do locus
Explica-se a anomalia do cachimbo de amelogenina. Indígena, comprovado pela
cerâmica: presença de dente incisivo em forma de pá,
- Sua confecção é realizada por característica morfológica freqüente em grupos
homens (ao contrário das mulheres), com de origem mongolóide;
nomes específicos, sendo vedada sua 3. No estudo da integridade óssea consta­
produção a determinados nomes; tamos a presença de quebras recentes, causa­
- A técnica utilizada é o esculpido em das provavelmente pela exumação do material
todas as suas etapas (ao invés de modelado por não arqueólogo e quebras antigas, teste­
ou acordelado, como é a técnica tradicional munhadas pela inclusão de sedimentos
de confecção cerâmica entre os guaranis); aderidos às trabéculas. As fragmentações
- O antiplástico utilizado é preferenci­ antigas são, na maior parte, transversas e
almente o osso e, no caso descrito por irregulares, indicando sua ocorrência no osso
Garlet e Soares, de animais domésticos da já desidratado;
divindade, ao invés das ofertas locais de
areia ou minerais usuais.
Na mesma esteira da especulação anterior, (18) Paul Banh, em seu M anual do B lefador “Tudo o
que você gostaria de saber sobre Arqueologia e jamais
se partirmos das raspagens e queimas realiza­ teve coragem de perguntar”, EdiOuro, SP, 1989,
das sobre os ossos, percebemos uma ‘inten- afirma que os arqueólogos sentem -se irresistivelm ente
cionalidade’ na realização das raspagens. atraídos a explicar com o religioso TUDO aquilo que
Excetuando-se aqueles atribuídos à técnica ele não tem a mínima idéia do que se trata.

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PIEDA DE, S.C.; SO ARES, A.L.R. C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etnu-
históricas. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

4. Constatamos marcas de descarnamento mentos relativos a esta estrutura funerária


para enterramento secundário na mandíbula, ocorreu na seguinte ordem: enterramento
no fêmur direito, em alguns fragmentos de primário em uma ou cova; exumação; descar­
costela e no fragmento do osso do quadril. As namento; enterramento secundário em uma ou
poucas evidências encontradas podem cova; nova exumação; queima; alterações
significar que o corpo se encontrava em tafonômicas e/ou antrópicas, sugeridas pelos
adiantado estado de putrefação, necessitando sulcos e depressões; alterações antrópicas
de pouca limpeza ou os cortes foram mascara­ sugeridas pelas raspagens; recolhimento e
dos pelas alterações realizadas posteriormente, depósito dos ossos e fragmentos na urna e,
como queima, raspagem etc., finalmente, enterramento na uma;
5. Os ossos apresentam diferentes graus 11. Dentro do caráter especulativo,
de queima; foram considerados não queima­ podemos relacionar as raspagens com ações
dos, levemente queimados ou ligeiramente antrópicas ligadas à religiosidade guarani, seja
queimados. A variação da cor dos ossos, no caso de repreensão a pajés que causam
provocada pela queima, vai do amarelo claro malefícios, ou ainda da confecção de cachim­
ao marrom avermelhado em temperaturas que, bos rituais, confeccionados atualmente com
provavelmente, variaram entre 185° C e 525° C, ossos de animais pelos atuais Mbyá-Guaranis.
com predominância de 185° C. Pelas caracterís­ Finalizando, o que tentamos neste breve
ticas apresentadas, podemos inferir que a ensaio foi um exercício interpretativo e especu­
queima ocorreu com o osso já desidratado, lativo sem pretensão de ser definitivo. Nosso
muito tempo depois da morte do indivíduo; principal objetivo foi demonstrar que, se por
6. A partir da queima e da datação obtida, um lado, os modelos arqueológicos ou etno-
acreditamos que se trata de um caso de culto arqueológicos são consistentes, por outro
aos ossos realizados pelos Guaranis, que foi lado não têm necessariamente correspondên­
queimado pelos padres jesuítas, uma vez que cia com a realidade. Os exemplos apresentados
existem dados bibliográficos que corroboram a demonstram a dificuldade de realização de
hipótese ao mesmo tempo em que não existem analogias, e o quanto estas são frágeis e
indicações de queima de ossos realizados tênues. Ao mesmo tempo, não se propôs um
pelos Guaranis nem no período de primeiros ‘modelo’, mas, ao contrário, partir do material
contatos e tampouco no período histórico; escavado e dos vestígios arqueológicos para
7. Baseados na análise das quebras e dos buscar possíveis, mesmo que tênues, analogi­
sulcos, descartamos a possibilidade de ataque as que retirem o véu de sobre o material.
por animais carnívoros, enquanto o osso ainda
estava fresco, isto é, logo após a morte. A
ausência da marcas de caninos, de esmigalha- Agradecimentos
mento do osso e de fragmentações em ponta,
além de incompatível morfología dos sulcos, Agradecemos aos docentes, técnicos e
corroboram esta afirmação; pós-graduandos do Museu de Arqueologia e
8. As faixas raspadas foram provocadas Etnologia-USP, que colaboraram neste traba­
antropicamente nos ossos já desidratados ou lho. A Iranides Santana pela digitalização
secos posteriormente à queima e à confecção gráfica de figuras. Pela leitura dos manuscritos
dos sulcos. Podem ter sido feitas com lasca de e sugestões, José Luiz de Morais, Marisa
pedra, com exceção do úmero, que parece ter Coutinho Afonso, Walter Neves, Sandra Nami
sido friccionado contra um suporte lítico; Amenomori, Saul Milder, Astolfo de Mello
9. No mapeamento das alterações, verifica­ Araújo, André Jacobus e Miguel C. Botella do
mos que os ossos mais alterados são os mais Laboratório de Antropologia da Faculdade de
queimados, o que nos levou a inferir que pode Medicina da Universidade de Granada,
ter havido uma intencionalidade entre as duas Espanha. A FAPESP pelo apoio financeiro.
ações; Esclarecemos ainda que as opiniões aqui
10. Reunindo todos os dados, sugerimos expressas são de inteira responsabilidade dos
hipoteticamente que a seqüência dos procedi­ autores.

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[EDADE, S.C.; SO ARES, A.L.R . C onsiderações sobre um enterramento Guarani: alterações e hipóteses etno-
stóricas. R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 31-68, 2000.

PIEDADE, S.C.; SOARES, A.L.R. Considerations on a Guarani burial: alterations and


ethnohistoric hypothesis. R evista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sao
Paulo, 10: 31-68, 2000.

ABSTRACT: During the curatorial treatment of the Guarani human bones,


we observed several modifications as cutmarks, grooves, scratches, depres­
sions and bum. Due to the lack of studies or reports about similar material in
Brazilian archaeology, we based the analysis on international bibliography.
We concluded that part of the modifications is anthropic and, excluding the
defleshing marks, these alterations were done on bones already dehidrated or
dry.
In order to understand the occurence of these modifications, some
possible interpretations were raised from etinographic and historic sources.
These interpretations should not be considered as final conclusions, but only
sources for future studies.
The main difficulties found were the lack of experimental reference collec­
tions in Brazil and the shortage of ethnohistoric references related to rituals
and destination of human bones.

UNITERMS: Bioanthropology - Ethnohistory - Guarani - Human bones -


Alterations.

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Recebido para publicação em 27 de novembro de 2000.


Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 69-87, 2000.

EVENTOS INCREMENTAIS NA CONSTRUÇÃO


DE SAMBAQUIS, LITORAL SUL DO
ESTADO DE SANTA CATARINA

Suzanne K. Fish*
Paulo De Blasis**
Maria Dulce Gaspar***
Paul R. Fish*

FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M .D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção
de sambaquis, litoral sul do estado de Santa Catarina. Revista do Museu de A rqueolo­
gia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

RESUMO: A construção de cômoros artificiais (mounds) é um fenômeno


de amplo alcance em termos globais. Neste artigo são examinados alguns dos
processos responsáveis pela construção destas estruturas no litoral sul de
Santa Catarina, tomando-se como referência os trabalhos realizados no
sambaqui Jaboticabeira II, município de Jaguaruna. Além da análise dos
processos envolvidos na construção daquele sambaqui, procura-se chamar a
atenção para os aspectos sociais e demográficos destes mesmos processos,
evidenciando um sistema regional de considerável complexidade social e
duração cronológica.

UNITERMOS: Construção de sambaquis - Complexidade social de grupos


de pescadores-coletores-caçadores.

A construção de cômoros, ou aterros codificada e transmitida aos observadores de


artificiais coliniformes {mounds), é um fenôme­ modo contínuo. Enquanto e na medida em que
no transcultural de alcance praticamente construtores e observadores compartilhassem
mundial. E comum denominar-se “monumen­ de um léxico simbólico mutuamente inteligível,
tal” uma construção massiva como um mound a mensagem codificada pelo mound e o signifi­
quando é aparente, em razão de seu tamanho e cado do esforço nele investido eram comunica­
configuração, o fato de ter sido um elemento dos com sucesso.
intrusivo na paisagem pré-histórica. Em razão Embora alguns mounds monumentais
desta característica visualmente intrusiva, possam ser o resultado de um único - contínuo
mounds monumentais podem ser vistos como - episódio de construção, a forma final de muitos
condutores de uma mensagem culturalmente outros é o resultado de eventos incrementais em
estágios sucessivos. Quando estes eventos
mantiveram um tema comum através de episódi­
os seqüenciais, a mensagem codificada foi
(*) Arizona State Museum da Universidade do
repetida e reforçada. Como resultado da reiteração
Arizona, EUA.
(**) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
cumulativa por muitos participantes ao longo do
de São Paulo. tempo, é provável que a derradeira magnitude de
(***) Museu Nacional da Universidade Federal do Rio um mound monumental assim construído tenha
de Janeiro. transmitido uma mensagem de maior força do que

69
-ISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
“stado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia è Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

:ada uma de suas etapas anteriores, e menores, de posteriores (Tabela 1). Dos sambaquis visitados
:onstituição. Portanto, a chave para a compreen­ na área de estudo, Jabuticabeira II representou
são de um mound monumental é a reconstituição uma oportunidade única para a compreensão, de
io formato e contexto cultural dos eventos modo rápido e eficiente, da estratigrafía e
incrementais presentes na sua construção. estrutura de um exemplar de grande porte. A
A percepção de sambaquis monumentais mineração predatória encetada anteriormente
snquanto símbolos altamente visíveis em proporcionou os meios para um grande estudo
paisagens culturais desafia as interpretações das características estruturais do sambaqui com
anteriores dos enormes sambaquis da costa sul um mínimo de danos adicionais.
brasileira, que os entendiam como empilhamen-
tos gigantes de restos de cozinha e outros restos
de atividades (shellmiddens), ou plataformas As pesquisas em
para residência seca e elevada, ou mesmo outras Jabuticabeira II (1997 e 1998)
atividades. É improvável que o esforço necessá­
rio para criar “montes” massivos dé conchas de Jabuticabeira II cobre uma área de aproxima­
até 30 metros de altura e centenas de metros de damente 84.000 metros quadrados e se eleva ao
diâmetro tenha sido incidental ou sem um máximo de 8 metros em dois picos de mesma
propósito contundente. O conceito de samba­ altura (Fig. 2). Sua base tem cerca de um metro
quis imensos como marcadores territoriais e sob a superfície atual. Assenta-se sobre areia
construções intencionais, conforme articulado branca que contém uma grande quantidade das
por Maria Dulce Gaspar e Paulo De Blasis (1992), mesmas conchas que são proeminentes na matriz
foi fundamental em nossas pesquisas recentes do sambaqui. Seus principais componentes são
em Jaguaruna, Santa Catarina (Figura 1). conchas e areia. Um depósito de aproximadamen­
te um a três metros de solo orgânico escuro
recobre as camadas dominadas por conchas,
Contexto da pesquisa sobrepondo-se a parcelas significativas, talvez por
inteiro, do topo e da lateral leste do sambaqui.
A seguinte descrição da seqüência de Nesse manto de solo escuro as conchas estão
desenvolvimento de um sambaqui de Santa limitadas apenas a pequenas inclusões.
Catarina é um relato sintético do trabalho de No passado, Jabuticabeira II esteve sujeito
campo em julho e agosto de 1997, comple­ à mineração extensiva com equipamento
mentado por intervenções pontuais em outubro pesado. A remoção de conchas e outros
de 1998. As escavações em Jabuticabeira II materiais produziu cavidades enormes, confor­
fazem parte de um projeto mais amplo que inclui me indicado nas áreas cinzentas da Figura 2. O
o estudo dos sistemas de assentamento em maquinário atuava a partir do exterior do samba­
âmbito regional, subsistência e pesquisa qui e de uma estrada que o atravessa. O segmen­
etnoarqueológica, entre outros aspectos. to do sambaqui ao sul da estrada foi seriamente
Selecionamos Jabuticabeira II como foco de alterado mas sua conformação original ao norte
nossos principais trabalhos de escavação a partir ainda pode ser discernida. As atividades de
de um reconhecimento dos sambaquis, realizado mineração cortaram faces praticamente verticais
em 1995, de uma área de estudo situada nos no interior das áreas escavadas. Duas dessas
entornos da lagoa do Camacho, nos municípios cavidades, Locus 1 e Locus 2, foram seleciona­
de Jaguaruna, Laguna e Tubarão. Já se encontra­ das para pesquisa intensiva (Figura 2).
vam disponíveis registros de 23 sambaquis em Trabalhadores locais limparam cuidadosa­
uma área de cerca de 420 kilometros quadrados mente e aplainaram manualmente as superfícies
(Rohr 1984), o que forneceu o arcabouço para o feitas com o maquinário. Com a ajuda de uma
refinamento do estudo de padrões de assenta­ rede feita de corda de nylon com malha de um
mento. Uma série de datas obtidas em estudos metro quadrado, suspensa de modo a justapor-
arqueológicos anteriores revelam que as ocupa­ se ao perfil, registrou-se a estratigrafía ao longo
ções sambaquieiras concentraram-se entre 2000 e de 50 metros lineares em Locus 1 e 75 metros em
4000 anos atrás, com ocorrências anteriores e Locus 2. A altura dos perfis variou entre 2 a

70
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

mais de 6 metros. Os perfis de Locus 1 e 2 intersectaram sepulturas ao longo de ambas as


possibilitaram uma visão do cerne de Jabutica- áreas. Em Locus 1 foi escavada uma amostra de
beira II, revelando uma longa história deposi- enterramentos relativamente intactos.
cional envolvendo sepultamentos recorrentes e Os perfis de Locus 1 e 2 documentaram a
atividades fúnebres relacionadas. Os perfis especificidade estratigráfica em uma porção

71
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

________ TABELA 1________ recorrentemente a mesma série de estruturas


Datas radiocarbônicas de sítios (Figuras 3 e 4). Este conjunto consistia de uma
próximos a Jabuticabeira II camada fina e escura representando o nível de
superfície de um estágio de constmção do
Sítio D atação C 14 Referência
sambaqui, com covas mortuárias, fogueiras e
Caiera 795 95 Hurt 1974: Figura buracos de estacas que dali se originaram. Entre
Caiera 2110 ± 100 Hurt 1974: Figura estes níveis, nas camadas mais espessas de
Caiera 3 230± 155 Hurt 1974: Figura conchas e areia, não havia absolutamente
Carniça I 2550 ± 100 Hurt 1974: Figura qualquer dessas estruturas ou outras que são
Carniça I 3210 ± 150 Hurt 1974: Figura freqüentemente associadas a ocupações pré-
Carniça I 3370 ± 150 Hurt 1974: Figura históricas, tais como restos de cozinha (fogueiras
Carniça I 3310 ± 150 Hurt 1974: Figura
etc.) ou silos de armazenamento. Artefatos são
raros, e quase sempre ocorrem isolados.
Carniça I 3040 ± 110 Hurt 1974: Figura
Carniça I 2400 ± 110 Hurt 1974: Figura
Enterramentos
Carniça I 2460 ± 110 Hurt 1974: Figura
Carniça I 3350 ± 150 Hurt 1974: Figura
Os enterramentos ocorreram da base ao
Carniça I 3400 ± 150 Hurt 1974: Figura
topo ao longo dos 125 metros de perfis mapea­
Carniça I 3300 ± 160 Hurt 1974: Figura
dos e na maioria das sondagens adicionais
Carniça IA 3300 ± 160 Hurt 1974: Figura (Figura 2). Somente as sondagens com menos
Carniça IA 3400 ± 150 Hurt 1974: Figura de um metro de largura não revelaram restos
Carniça IA 3550 ± 110 Hurt 1974: Figura humanos. As sepulturas são covas sem formato
Carniça IA 2460 ± 125 Hurt 1974: Figura definido e tamanho que não excedia em muito
Congonhas I 3270 ± 200 Beck 1972 as dimensões necessárias para acomodar o
Figueirinha III 4240 ± 190 Martin e t al. 1988: 38 corpo ou os corpos. Escavamos uma amostra
Garopaba 3450 ± 180 Martin e t al. 1988: 39 dos enterramentos intersectados pelo perfil no
Cabeçuda
Locus 1. Em razão de cada sepultura ter sido
4120 ± 220 Mendonça de Souza 1995:99
perturbada por um corte vertical durante a
mineração anterior e, de certo modo, perturbada
central de Jabuticabeira II. Com a finalidade de mais ainda durante nossa limpeza de perfil, foi
proceder a generalizações a partir destes resulta­ algumas vezes difícil discernir o número exato
dos, foi necessário confirmar que outros setores de corpos em cada cova mortuária. A Tabela 2
do sítio eram compostos dos mesmos elementos apresenta o número de corpos quando a
estratigráficos e em uma seqüência similar. Para recuperação foi inequívoca.
tanto, foi realizada uma combinação de sonda­ Com base nas observações de campo, a
gens manuais e cortes com retro-escavadeira em população sepultada incluía indivíduos de
outros locais que representassem todos os setores ambos os sexos que variavam de crianças a
do sambaqui (Figura 2). Essas exposições idosos. Em alguns casos, os membros estavam
adicionais tomaram possível definir, aproxima­ muito dobrados junto ao corpo ainda articulado,
damente, a extensão espacial e estratigráfica de de modo a sugerir uma redução anterior do
sucessivas superfícies de ocupação disseminadas volume de carne através de processos como
em intervalos dos episódios de deposição de exposição ou dissecação. Sepultamentos
conchas, assim como demonstrar a presença de múltiplos envolviam mais de um adulto e adultos
sepultamentos por todo o sambaqui. com crianças. Esqueletos parciais ou ossos
isolados também foram enterrados juntamente
com corpos completos e articulados. Uma vez
Estruturas recorrentes nos que as covas mortuárias quase nunca se mescla­
perfis de Jabuticabeira II vam entre si, é duvidoso que esses ossos “extras”
representem sepultamentos anteriores perturba­
Nos muitos metros de perfis mapeados e dos pela escavação da tumba subseqüente. Uma
nas exposições complementares, encontramos modificação pós mortem de osso humano foi

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FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10 : 69-87, 2000.

Fig. 2 - Intervenções no sambaqui Jabuticabeira II em 1997 e 1998.

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FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

Fig. 3 - Exemplo da estrutura estratigráfica do sambaqui Jabuticabeira II.

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FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

Fig. 4. Exemplos da estrutura estratigráfica do sambaqui Jabuticabeira II.

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FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

TABELA 2 Algumas espécies de moluscos, distintas


Enterramentos escavados em Locus 1 das encontradas no sedimento que preenche a
quando o número de indivíduos enterrados maioria das covas mortuárias, assim como
pôde ser determinado ossos de peixes e mamíferos, acompanhavam
muitos enterramentos, aparentemente como
N° do enterramento N° de indivíduos
oferendas de comida. Conchas queimadas e
Enterramento 1 2 ossos de peixe em estado fragmentário, que em
Enterramento 2 1 geral constituíam uma parcela substancial do
Enterramento 3 2 conteúdo da cova, podem refletir outra forma
Enterramento 4 2 de oferenda, ou restos de comidas preparadas
Enterramento 5 1
e consumidas em conjunção à cerimônia de
enterramento. Despojos desta natureza eram
Enterramento 6 1
também proeminentes nas camadas finas,
Enterramento 7 1
relativamente escuras, que marcavam as
Enterramento 8 2
superfícies dos sucessivos estágios de
Enterramento 10 2
construção do sambaqui, a partir das quais as
Enterramento 11 1 covas mortuárias eram escavadas (Figuras 3 e 4 ).
Enterramento 12 3
Enterramento 14/19 1 Buracos de estacas
Enterramento 15 1
Enterramento 16 4 Buracos de estacas de diâmetros e profun­
Enterramento 17 2 didades variadas ocorrem a partir da maioria
Enterramento 18 1 das paleosuperfícies detectadas nos perfis de
Enterramento 20 1 Jabuticabeira II (Figuras 3 e 4). Os contornos
Enterramento 21 1 do que outrora foram estacas se evidenciavam
Enterramento 23 1
por um sedimento escuro que contrastava com
a matriz clara de conchas e areia que os
N° de enterramentos = 19
circundava. Estacas de extremidades arredon­
N° total de indivíduos = 30
dadas ou apontadas foram colocadas em uma
N° médio de indivíduos por enterramento = 1,57
variedade de posições perpendiculares ou
oblíquas em relação à superfície original. No
caso de um buraco de estaca que invadiu uma
verificada, dois conjuntos de marcas peque­ cova mortuária, a estaca queimou in situ e a
nas que se intersectavam em um osso longo. carbonização preservou um grande segmento
(Para mais detalhes sobre a população de de madeira.
Jabuticabeira II ver Storto, Eggers, Lahr Embora nossa inclinação inicial tenha sido
1999). considerar as estacas como vestígios de
Os artefatos colocados nas sepulturas estruturas residenciais, o grande número visível
eram de natureza marcadamente utilitária. ao longo dos perfis do sambaqui lança dúvidas
Machados, seixos grandes com a superfície a tal interpretação. Parece improvável que os
polida pelo uso, seixos e plaquetas de pedra perfis tenham intersectado as paredes das
com pequenas depressões circulares são casas de modo tão intenso a ponto de revelar
itens comuns. Em muitos casos, seixos uma tal densidade de buracos de estacas em
grandes ou artefatos feitos deste material locais tão dispersos. Além disso, os buracos
foram colocados sobre ou próximos à cabeça. não coincidem sistematicamente com níveis de
Uma série de pequenos seixos arredondados, superfície, como seria de se esperar se eles
parecidos com aqueles alisados pela ação das estivessem posicionados no entorno dos pisos
ondas nas praias atuais, foi recuperada de residenciais (Figura 3). A raridade dos artefatos,
várias covas. Contas planas e de formato exceto em covas mortuárias, a distribuição
circular, feitas de conchas, adornavam alguns dispersa de carvão e de outros despojos típicos
corpos. de áreas de atividade nas camadas conchíferas

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FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

de construção entre os níveis de superfície, últimas atividades antes de um novo episódio


assim como a inexistência de outras estruturas de construção. O material usual, composto de
domésticas, são outras linhas de evidência cinzas, estava ausente em algumas poucas
sugerindo que os numerosos buracos de fogueiras de formato côncavo, as quais foram
estacas não eram suportes para estruturas intencionalmente preenchidas com areia branca
comuns de habitação. e limpa antes do início do estágio de constru­
ção seguinte.
Fogueiras Apenas duas fogueiras foram escavadas,
fornecendo não mais que sugestões tantalizantes
Fogueiras também se encontravam sobre o significado destas estruturas. Cinco
amplamente distribuídas. Depressões com o conchas de ostras gigantes, uma com perfuração
formato de bacias rasas foram escavadas para para suspensão, estavam nos limites de uma das
acomodar algumas fogueiras e outras parecem fogueiras, e uma sexta concha de ostra foi
ter sido posicionadas diretamente nos paleo- recuperada próxima à base do sedimento de
níveis de superfície do sambaqui. Algumas cinzas. Provavelmente, as conchas foram
estavam adjacentes ao topo das covas mortuá­ utilizadas para servir múltiplas pessoas. Outras
rias, outras localizavam-se sobre estas e associações de conchas de ostras gigantes a
algumas foram construídas no limite perimetral fogueiras são visíveis nos perfis. O conteúdo de
das covas e usadas, aparentemente, durante uma segunda fogueira foi submetido à flotação
uma pausa enquanto a sepultura estava sendo para a obtenção de carvão destinado à datação
preenchida (Figuras 3 e 4 ). radiocarbôniça. Nesse processo foram recupera­
As fogueiras aparecem enquanto estruturas dos um pendente e contas planas feitos de
notavelmente padronizadas, lenticulares no perfil conchas, não detectados anteriormente.
do corte estratigráfico. Uma vez que os perfis
intersectavam a circunferência das fogueiras em Camadas incrementais de construção
diferentes pontos, seus diâmetros eram variáveis.
Todavia, o diâmetro máximo no perfil raramente O formato das camadas conchíferas acres­
excedeu a um metro. A parte central do conteúdo centadas para criar os sucessivos estágios do
das fogueiras consistia de cinza consolidada, de sambaqui pode ser discernido através de sua
cor clara. A combustão de conchas ricas em estrutura interna e por estarem realçadas pelas
cálcio-carbonato na matriz das fogueiras pode ter superfícies mais escuras, com buracos de estacas
contribuído para o endurecimento das cinzas. A tanto em cima como embaixo (Figuras 3 e 4). Em
elevada temperatura do fogo consumiu comple­ geral, o grosso do material utilizado para cons­
tamente o combustível, embora camadas truir as camadas entre a superfície escura anterior
enegrecidas de carvão fino no topo e na base das e posterior consistia de uma mistura de conchas
fogueiras comprimissem, como um sanduíche, o fragmentadas, muitas inteiras (incluindo, ocasio­
núcleo de cinzas de cor clara; conchas carboni­ nalmente, bivalves articulados) e areia. Carvão,
zadas e ossos de peixe bastante fragmentados conchas e ossos queimados de peixe foram
formavam inclusões freqüentes no revestimento componentes apenas ocasionais. Ao contrário,
exterior acima e abaixo das cinzas. as superfícies mais escuras que recobrem as
Na maioria dos casos, os conteúdos de camadas construtivas de conchas compunham-
cinzas estavam intactos tanto nas fogueiras das se, usualmente, de conchas esmigalhadas e
depressões como naquelas que formaram lentes compactadas, com os fragmentos estendendo-se
de cinzas compactadas nas superfícies. A paralelamente à superfície; ossos e conchas
condição intacta destes materiais sugere queimados são inclusões comuns ocorrendo,
fortemente que as fogueiras foram pouco com freqüência, em manchas, ou concentrações.
expostas às condições do tempo e do clima ou Novos incrementos de conchas e areia eram
outras perturbações, ou seja, foram rapidamente normalmente depositados na forma de pilhas ou
enterradas pela deposição das camadas subse­ montículos, e apenas ocasionalmente a superfí­
qüentes. Logo, o uso das fogueiras em uma cie recém-criada era aplainada e uniforme. Estes
determinada superfície teria estado entre as acréscimos produziram a topografia localizada

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SH, S.K., BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
tado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

) formato de montículo do estágio subse- ras e à paleosuperfície circundante, podem


iente do sambaqui. Os buracos demonstram representar oferendas aos mortos ou festejos
te a colocação de estacas em cumes e comunais de parentes e outras pessoas, como
terais das camadas de construção monti- parte da cerimônia fúnebre. Ornamentos em outra
ilares é tão comum como em porções mais fogueira sugerem destruição ritual dos pertences
tiformes das superfícies de recobrimento do falecido, ou então talvez oferendas ao morto.
?igura 3). As centenas de buracos de estacas nas
antigas superfícies do sambaqui não podem ser
explicadas exclusivamente em termos de paredes
econstrução do ritual mortuário de estruturas habitacionais. Sobretudo a partir
das escavações de 1999, ficou evidente que elas
A relação consistente entre sepultamentos, também exerceram um papel no ritual mortuário.
igueiras, paleosuperfícies, buracos de estacas As estacas, cujos buracos exibem uma variedade
camadas monticulares de construção em de diâmetros, profundidades e orientações,
ibuticabeira II só se tomou aparente quando poderiam servir a vários objetivos. Considerando
: pôde visualizar padrões espaciais repetitivos que covas mortuárias originárias de uma mesma
n perfis amplos. Este complexo recorrente de superfície nunca intrudem umas nas outras,
itruturas define um programa mortuário que algumas estacas podem ter servido para demar­
cplica tanto a distribuição padronizada de car túmulos específicos, através de cercas ou
pos particulares de estruturas como a constru- alguma coisa assim. Podem também representar
ío incremental do sambaqui como um todo. Os estruturas para sustentar oferendas ou outra
>isódios de construção parecem ter sido parafernália ritual. Plataformas sustentadas pelas
ementos intrínsecos à progressiva revalidação estacas podem ter sido utilizadas inicialmente
) ritual mortuário ao longo do tempo. para expor o corpo antes do sepultamento, ou
Indivíduos e, algumas vezes, mais de uma para dispor as oferendas. Ossuários ou outras
issoa foram enterrados em covas escavadas a estruturas não residenciais, talvez de natureza
utir de cada antiga superfície do sambaqui. Se temporária, também podem ter exercido seu papel
; corpos foram colocados na mesma sepultura nas cerimônias mortuárias. São necessárias mais
n ocasiões distintas, no contexto de um funeral escavações horizontais no futuro para esclarecer
últiplo, não foi possível detectar, arqueologica- estas e outras possibilidades.
ente, mais do que uma abertura da cova. Em Cada paleosuperfície que recobre os vários
gumas sepulturas ficou claro que ossos estágios de construção deste sambaqui repre­
alados ou partes corporais de outros indivídu- senta um período de tempo durante o qual um
: acompanharam o enterramento principal. Tais certo número de pessoas morreram e foram
clusões, assim como a modificação intencional enterradas. Pessoas que morreram em outras
: ossos humanos, pode refletir um sistema de localidades, em um intervalo específico, podem
enças que venera os remanescentes físicos ter sido trazidas para Jabuticabeira II e enterra­
>s ancestrais; outras possibilidades incluem das coletiva ou individualmente, de acordo com
)féus de guerra. Artefatos e alimentos acompa- esquemas rituais pré-estabelecidos. Uma longa
lavam muitos dos mortos. superfície antiga com muitas sepulturas pode
As fogueiras freqüentemente sobrepõem-se ser acompanhada por mais de 30 metros no
covas mortuárias e ocorrem próximas ao final extenso perfil do Locus 2. Provavelmente o
i preenchimento de algumas delas. Talvez no acúmulo de restos orgânicos, talvez inclusive
omento do enterramento, mas com certeza grandes quantidades de despojos relacionados
tes de outro episódio de construção, fogueiras a fogueiras, confere a cor escura que contrasta
iham sido acesas na periferia das covas estes níveis estratigráficos das superfícies
Drtuárias ou nas proximidades. Seis conchas anteriores do sambaqui com as camadas
andes de ostra usadas como recipiente, conchíferas de construção.
contradas dentro e em tomo de uma fogueira Assim que uma determinada superfície do
cavada, sugerem um número de participantes. sambaqui e o respectivo estágio de construção
;stos de alimentos, associados a estas foguei­ satisfizessem certos critérios para o encerramento
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

de um ciclo das atividades mortuárias, iniciava-se ritual mortuário no solo escuro parece apresentar
um novo episódio de construção. Mais uma vez, poucas mudanças em relação aos anteriores.
estas decisões parecem estar relacionadas ao Os estilos dos artefatos utilitários e dos
próprio ritual mortuário. Em alguns casos, os ornamentos pessoais enterrados com os mortos
construtores empilhavam pequenos montes de também exibem continuidade com os acompa­
conchas sobre sepulturas individuais (Figura 3). nhamentos anteriores. Um punhado de frag­
Com mais frequência, agrupamentos de sepulturas mentos cerâmicos dispersos foi recuperado na
eram recobertos por camadas monticulares. Essas superfície do sambaqui e neste depósito de
construções mais abrangentes podem ter sido solo escuro: alguns raros cacos também foram
executadas com o trabalho cooperativo de encontrados no estrato de conchas superior,
aparentados ou grupos vizinhos para celebrar mas podem ser reflexo de perturbação estrati­
seus mortos em comum. As repetições de ciclos gráfica. A cerâmica pode representar contato
de enterramento, ritual e construção resultaram na ocasional com outros grupos próximos, mas
altura e extensão finais, atuais, do sambaqui nunca está associada a enterramentos e parece
Jaboticabeira II. Seu crescimento ocorreu tanto não ter desempenhado um papel significativo na
vertical como horizontalmente ao longo do tempo, tecnologia de cozimento de moluscos e peixes,
sendo que cada episódio incrementai localizado representados por vestígios abundantes.
contribuiu para o volume total do sambaqui. Há indicações de funções ocupacionais em
Jabuticabeira II, neste último intervalo deposi-
cional representado pela camada escura que
Regimes deposicionais contrastantes recobre o sambaqui, que não são evidentes na
fase anterior onde predominou a construção
A transição dos principais constituintes da conchífera. O solo escuro apresenta bolsões
matriz sambaquieira, de conchas para o solo com materiais típicos de espaços funcionais de
escuro, é dramática. Camadas conchíferas não ocupação, tais como grande quantidade de
mais são empilhadas sobre as sepulturas, carvões (incluindo madeira e sementes) e
separando as superfícies sucessivas às quais também concentrações de restos de peixe
pertenciam as covas mortuárias. O depósito carbonizados. Em contraste, na porção mais
escuro é espesso o suficiente para sugerir a antiga do sambaqui, as concentrações de ossos
adição intencional de sedimento a qualquer de peixe e conchas queimados estavam confina­
acúmulo de despojos gerado por atividades dos, quase sempre, às antigas superfícies
diversificadas. Embora o entendimento da escuras dos estágios monticulares de constru­
estratigrafía interna seja ainda preliminar, a ção. Artefatos dissociados de enterramentos
presença de camadas monticulares não é são mais numerosos e esparsos na parte
aparente de imediato, e a maior parte do depósi­ superior de solo escuro, embora, em períodos
to parece ter se acumulado de modo relativa­ mais antigos, estivessem confinados, principal­
mente plano. Uma concreção bastante endureci­ mente, nos antigos níveis de superfície. Muitas
da, esbranquiçada e, ao que parece, de natureza covas, à primeira vista não relacionadas a
pós-deposicional, se formou em muitas partes sepulturas e, em alguns casos, contendo pedras
do sambaqui nos pontos de contato entre os rachadas pelo fogo, súgerem, nos episódios
estratos de conchas e de solo escuro. deposicionais finais do sítio, funções mais
Datações radiocarbônicas são mais ou diversificadas incluindo em larga escala ativida­
menos contínuas nesta horizontalmente ampla des culinárias e talvez outras mais envolvendo
transição estratigráfica, apontando a inexistência utensílios líricos diversos.
de hiato temporal significativo no uso do
sambaqui. Também a indicar continuidade
ocupacional e temporal está o fato de que a taxa Cronologia e contemporaneidade
de enterramentos em Jabuticabeira II não diminui
na camada escura superior - ao contrário, parece Um conjunto de datações radiocarbônicas
aumentar. Além do desaparecimento dos empilha- de Jabuticabeira II, obtidas a partir de carvão
mentos de conchas sobre os enterramentos, o de madeira, recai entre 2800 e 1800 AP (Antes

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[SH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
¡tado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

o Presente) e proporciona um contexto da América do Sul é desconhecida. Amostras


imporal para discutir a evolução do sam- modernas de conchas, coletadas antes do
aqui. Todos os resultados se adequam à advento da era nuclear, provenientes da Fazenda
eqüência estratigráfica (veja Tabela 3 e Fig. Japuiba (1944) e Jurujuba (1939), Rio de Janeiro,
). Lentes finas de carvão, algo descontínuas, foram enviadas ao Laboratório de Geoquímica da
conchas e ossos de peixe esmigalhados são Universidade do Arizona para um estudo de
acorrentes no interior dos depósitos de areia calibração de datações de conchas para a costa
conchas sob a base do sambaqui. Uma única brasileira. Datas de 400±40 e 670+30 A.P., nestas
ata radiocarbônica de uma destas camadas de conchas modernas, demonstram a enorme
cupação sugere o uso incial da área, talvez influência do carbono antigo nas datações de
omo acampamento, em 2800 A.P. A datação conchas. Embora de modo ainda inconclusivo,
lais antiga para um episódio de construção estas datas indicam uma forte possibilidade de
ropriamente dito do sambaqui em Locus 1 é que as datações anteriores de conchas, comuns
500±155. Uma segunda datação próxima à base na literatura arqueológica do litoral sul brasileiro,
m Locus 2 (Trincheira 5) é 2470±55 A.P. Data- tenham um viés excessivamente antigo.
ões associadas predominantemente à constru-
ão conchífera recaem no intervalo entre 2500 a
000 A.P, embora estas datas não representem, Parâmetros populacionais
ecessariamente, os eventos mais antigos e os
lais recentes. A mudança da matriz mais antiga, A distribuição de sepulturas em toda a
redominantemente de conchas, para o solo extensão vertical e horizontal de Jabuticabeira II
scuro que recobre Jabuticabeira II, ocorreu deixa poucas dúvidas de que sua função primor­
ntre 2000 e 1800 anos atrás. dial tenha sido funerária. A amostra de enter-
Assim como em Jabuticabeira II, as ramentos é pequena em termos do volume total
atações obtidas para os sambaquis próximos, do sambaqui, mas é espacialmente abrangente.
Jorrote e Garopaba do Sul (Tabela 3 e Fig. 5), Nossa visão conjunta dos depósitos estrati-
scaem na faixa final da série de datações gráficos e seu conteúdo, nos longos perfis e
adiocarbônicas da área pesquisada. As datas trincheiras espalhados pelo sambaqui, nos
m Garopaba do Sul sugerem que este sam- permite fazer inferências sobre implicações a
aqui é um pouco anterior ao início de Jabutica- longo prazo dos eventos sepulcrais e do cresci­
eira II. Morrote, por sua vez, parece ser, ao mento incrementai do sambaqui.
aenos em parte, contemporâneo. As datações Perfis de 373 m2 em Locus 1 e Locus 2
aram obtidas nas camadas conchíferas superi- continham um mínimo de 51 enterramentos
res e no solo escuro que recobre Morrote e independentes, um número que se apresenta
ue é semelhante à principal mudança estrati- conservador ao excluir os restos humanos
ráfica em Jabuticabeira II. A transição do recuperados na limpeza do perfil e cuja localiza­
edimento de conchas para o sedimento escuro ção não foi possível precisar. Ainda de modo
concomitante em ambos os sambaquis. conservador, consideraremos cada um dos locais
O uso freqüente de conchas para as data- de enterramento como a sepultura de uma única
ões radiocarbônicas de sambaquis pelos pessoa, a despeito da ocorrência de sepulta-
esquisadores precedentes pode ser um fator de mentos múltiplos. Pressupondo-se que cada
omplicação na comparação cronológica. Uma metro quadrado de perfil exposto seja uma
iferença sistemática tem sido documentada amostra adequada do metro cúbico por ele
ntre as datas obtidas a partir de conchas representado, usamos os 51 enterramentos em
íarítimas em relação às provenientes de amos- 373 m3 para derivar um índice aproximado de
as de carvão, em razão da emanação de carvão 0,137 enterramentos por metro cúbico (Tabela 4).
ntigo de águas oceânicas profundas e a sua Esta estimativa é projetada para o sambaqui
icorporação pelos moluscos. Todavia, como como um todo com base na presença confirmada
enhum estudo de calibração foi empreendido de enterramentos em locais bastante espaçados,
ara o Atlântico Sul, o grau de discrepância entre dispersos por toda sua área. Fundamentando-se
atações de conchas e carvão para a costa leste na delineação precisa do mapa topográfico, na

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TABELA 3

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Sítio Amostra Sítio Data con ven cion al Sigma + Sigma - Calibrada L ocalização Amostra

CZ)
10650 Col 3165 55 55 perfil 1 estrato 11 a 12 carvão

u U
G c
G c
cd c3
10651 Col 3350

X JS

O 0
O 0
85 85 perfil 1 estrato 6 carvão

bû W)
10648 Co2 2705 85 85 perfil 1 estrato 11 carvão

u u
x X

G G
G G
CN (N

O O

O O
cd cd
10647 Co2 2740 70 65 perfil 1 estrato 21 carvão

b0 W)

U
10649 Co2 2835 95 95 perfil 1 estrato 24 carvão

U
co

G G
G G
X JS

O O
O O
cd cd
10646 Co3 2115

(Z3
50 50 perfil 1 estrato 2 carvão

bo bû
Garopaba 10032 Ga 2681 240 240 2767 Perfil da parte baixa do sambaqui carvão
Garopaba 9888 Ga 2816 70 70 2920 Perfil do topo do sambaqui carvão
Garopaba 9888 Ga 2816 70 70 2918 Perfil do topo do sambaqui carvão
Garopaba 9888 Ga 2816 70 70 2880 Perfil do topo do sambaqui carvão

X
X

3
u
cVd-

cd
10642 Jal 2430 125 125 perfil 2 estrato 18 carvão

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3
10641 Jal 2655 110 110 perfil 1 estrato 11

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carvão

X
3
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10640 Jal 3995 85 85 perfil 1 estrato 5 carvão

X
3
10639 Jal 4185 90 85 perfil 1 estrato 9

cd> cd *—
carvão

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X
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3
cd
cd cd cd cd
V D <U D
9884 Ja2 1781

U cUd- cUd
65 65 1702 Trincheira 11. Camada superior preta carvão

u 0 0 0
X
X

3
cd
cd
9885a Ja2 1826 40 40 1725 Trincheira 10. Camada superior preta carvão

»
>—
X
3
cd
9892 Ja2 1871 185 185 1816 Locus 1 Estrutura 1.15.6 carvão

X
3
cd
9900 Ja2 1951 95 95 1879 Locus 1 camada 3

D <U QJ

>—>
carvão

X
3
cd
9897 Ja2 2036

cb-d> cd cUd cd
85 85 1983 Locus 1 camada 36 carvão

X
3
cd
9881 Ja2 2051 65 65 1990 Trincheira 4. Base do sambaqui. carvão

X
3
cd
cd
<U D
9899 Ja2 2091 65 65 2040 Locus 2

*—
0 cd0 cd0 cd<J cdCJ 0
carvão

>
X
3
cd

cd
U cLd* cUd. cU
9899 Ja2 2091 65 65 2032 Locus 2 carvão

X
3
cd
9899 Ja2 2091 65 65 2017 Locus 2 carvão

X
3
cd
10246 Ja2 2115 65 65 trincheira 13

d. cd cd
carvão

X
3
cd

cd
U. C
9895 Ja2 2146 95 95 2127 Locus 1. Contato da camada 44 e a base carvão

0 cd0 cdu 0
X
3
cd

cd
9896 Ja2 2146

Ud cU
45 45 2127 Locus 1 Sepultamento 12. Base do perfil carvão

X
3
cd
10637 Ja2 2165 75 75 Locus l/estrato 1 l/trincheira 19 carvão

*—>
X X X X X X X X X X X X

X
3
0 cd0 cd
cd
D *s *5 "5 ‘3 *3
10635 Ja2 2180 105 100 Locus 1/estrato 2/trincheira 17

dn cd cUd
carvão
í
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cd
55
Sítio Localização A m ostra

O
Sigma + Sigma - Calibrada

3 t-tC/5
o

o
c

cd C
o
cd

VI Q ÎÎ
C
O
09 09
Jabuticabeira II 9893 Ja2 2186 2146 Locus 1 camada 36 carvão
09 09
Jabuticabeira II 1 0 244 Ja2 2210 Trincheira 8 carvão
Jabuticabeira II 9883 Ja2 2216 170 170 2300 Trincheira 8. Base do sambaqui carvão

cd
Jabuticabeira II 9883 2216 170 170 2260 Trincheira 8. Base do sambaqui carvão

<N
Jabuticabeira II 9883 Ja2 2216 170 170 215 5 Trincheira 8. Base do sambaqui carvão
Jabuticabeira II 9898 Ja2 2246 75 75 2312 Locus 2 carvão
Jabuticabeira II 9898 2246 75 75 2227 Locus 2 carvão

cd cd
carvão

CS CS
Jabuticabeira II 9898 2246 75 75 2210 Locus 2

•—>
Jabuticabeira II 9890 Ja2 2261 45 45 2318 Locus 2. camada acima da camadEi 10 carvão
06 06

cd
2322 Locus 2. Camada 31 carvão

CS
Jabuticabeira II 9891 2271

»“8
O
O

oo
00
Jabuticabeira II 1 063 4 Ja2 2280 Locus l/trincheira 18/estrato 10 carvão

cd
Jabuticabeira II 10245 2285 45 45 Trincheira 11 co n ch a

cd
carvão

CS CS
Jabuticabeira II 106 32 2310 70 70 Locus 5/trincheira 13/Estrato 7
Jabuticabeira II 9889 Ja2 2321 105 105 2341 Locus 2. Perto da base do perfil carvão
Jabuticabeira II 10246 Ja2 233 5 35 35 Trincheira 13 co n ch a
Jabuticabeira II 10245 Ja2 2370 35 35 Trincheira 11 co n ch a

cd
CS
Jabuticabeira II 9882 2446 55 55 2465 Trincheira 5. Base do sambaqui carvão
Jabuticabeira II 10247 Ja2 2470 55 55 Trincheira 17 carvão

cd
CS
Jabuticabeira II 102 44 2490 35 35 Trincheira 8 co n ch a
Jabuticabeira II 9894 Ja2 2500 155 155 Locus 1. Camada 7 carvão
Jabuticabeira II 106 36 Ja2 2655 105 100 Locus l/trincheira 17/estrato 5 a 6 carvão
Jabuticabeira II 10247 Ja2 2795 35 35 Trincheira 17 co n ch a

cd
CS
Jabuticabeira II 10631 2855 105 100 Locus 5/trincheira 13/Estrato 8 co n ch a
Jabuticabeira II 9880 Ja2 2856 75 75 2951 Trincheira 1. Base do sambaqui carvão
Jabuticabeira II 10633 Ja2 2890 55 55 Locus 5/Trincheira 13/Estrato 7 co n ch a

3
Juventus 10638 4420 50 50 Camada arqueológica co n ch a
09 09
Mato Alto 1


10643 224 5 perfil 2 (Base) carvão

>—» s S
< <
Mato Alto 1 1064 4 253 5 165 160 perfil l/estrato 2 carvão

s
<
(N
Mato Alto 2 10645 4685 160 155 perfil l/estrato 4 carvão
M orrote 9887 Mo 1951 115 115 1879 60 cm abaixo da superfície no peirfil carvão
M orrote 9886 Mo 2051 110 110 1900 32 cm abaixo da superfície no peirfil carvão
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

1 e 2,
Fig. 5 - lntercalação gráfica das datações obtidas para este projeto. Os sítios são Congonhas 1,2 e 3, Garopaba do Sul, Jabuticabeira
Juventus, Mato Alto 1 e 2, Morrote.

83
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

documentação da profundidade basal obtida mortuário. Com as datações que estão por vir
na escavação e em uma estimativa razoável e um cálculo refinado de individuos por cova
do volume removido pela mineração moder­ mortuária, será possível elaborar estimativas
na, pode-se calcular, seguramente, o volume mais confiáveis para o tamanho das popula­
total de Jabuticabeira II em 320.000 metros ções viventes que enterraram seus mortos em
cúbicos. Jabuticabeira II.
A projeção total dos enterramentos
TABELA 4 existentes em Jabuticabeira II é surpreendente­
Bases para estimar o total de mente grande, e um tanto inesperada. Portan­
enterramentos em Jabuticabeira II to, é muito importante procurar ensejo para
comparações quantitativas (Tabela 4). Tal
M etros N° de enter­ comparação foi propiciada por pesquisas
cúbicos ram entos ín d ice
realizadas em 1950 e 1951 em Cabeçuda (Castro
Escavação em Cabeçuda 1190 191 0 ,1 6 0 Faria 1959: 99-102), um sambaqui maior locali­
E scavação em zado a aproximadamente 17 km a nordeste,
Jabuticabeira II 3731 51 0,137 próximo de Laguna. Aqui, 191 sepultamentos
Projeção Total em foram recuperados em um bloco escavado
Jabuticabeira II medindo 10 x 14 x 8,5 metros. Estes números
(com base na taxa de
fornecem um índice de 0,160 enterramentos por
Jabuticabeira) 320.000 43.840 0,137
metro cúbico, bastante similar à estimativa
P rojeção Total em
conservadora de 0,137 enterramentos por
Jabuticabeira II (com ba­
se na taxa de Cabeçuda) 320.000 51.200 0,160
metro cúbico obtida em Jabuticabeira II.
Quando a taxa de Cabeçuda é aplicada em
(1) Metros cúbicos projetados com base no número de
Jabuticabeira II, a projeção total aumenta de
metros quadrados do perfil registrado.
43.840 para 51.200 enterramentos. As escava­
ções de Alan Bryan (1993: 3, 89) em Forte
Se este cálculo médio, conservador, para Marechal Luz, no litoral norte de Santa Cata­
os enterramentos por metro cúbico (derivada rina, fornecem mais uma indicação do caráter
a partir dos perfis de Locus 1 e Locus 2) é
realista de nossas estimativas. Bryan encon­
representativo, aproximadamente 43.840
trou 79 enterramentos numa área escavada de
pessoas foram incorporadas durante a
aproximadamente 240 metros cúbicos, gerando
construção de Jabuticabeira II. À primeira
um número ainda mais elevado de 0,329
vista, parece um número surpreendente para
enterramentos por metro cúbico.
uma população forrageira, mesmo no mais
favorável dos ambientes. Um fator crítico para
avaliar com eficiência a magnitude popu­
Conclusões
lacional é tempo. Com os resultados atuais
das amostras radiocarbônicas, podemos
considerar a duração e a taxa de enterramen­ A comparação com Cabeçuda e Forte
tos. Pode-se postular um intervalo de tempo Marechal Luz fundamenta nossa interpretação da
de 700 anos com base nas datações mais função primordialmente mortuária e das estima­
antiga, mais recente e intermediárias na tivas para os enterramentos de Jabuticabeira II.
seqüência estratigráfica (Tabela 3 e Fig. 5). De Se tais números de enterramentos em sambaquis
acordo com esta duração, o número de não são anômalos, quais são as implicações
pessoas enterradas por ano teria sido 63. Em sobre a população e a organização na época de
um intervalo de gerações da ordem de 25 sua construção? Sem um inventário sistemáti­
anos, 1550 pessoas teriam sido enterradas. co de sambaquis na região e datações sufici­
Mesmo números assim fragmentados suge­ entes para refletir sobre sua contemporanei-
rem populações relativamente densas de dade, não é viável abordar as densidades
pescadores-caçadores-coletores no território populacionais com precisão. Todavia, magni­
circundante e uma unidade social de tamanho tudes impressionantes são sugeridas com
apreciável compartilhando deste monumento veemência para esta área de pesquisa. Rohr

84
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

(1984: 87-109) elencou 23 sambaquis dentro de algum setor ainda inexplorado, embora seja
nossa área de pesquisa de aproximadamente duvidoso que a residência local assuma
420 km2 e em nossos trabalhos de campo qualquer fração significativa do sambaqui, ou
recentes (1997-1999) foram (re)cadastrados um responda pela totalidade da população
total de 31 sambaquis, mas ainda há outros por enterrada. Entretanto, a maioria dos mortos
registrar. A concentração de datações radio- devem ter vivido suficientemente próximos a
carbônicas regionais na Tabela I implica em Jabuticabeira II de modo a que pudessem ser
uma sobreposição cronológica substancial. transportados rotineiramente para o sepulta-
Uma questão fundamental ao avaliar o mento; no clima úmido da região, a preserva­
significado da enorme quantidade de enter- ção dos corpos seria comprometida por um
ramentos em Jabuticabeira II e, ao que parece, sepultamento postergado.
também em Cabeçuda e Forte Marechal Luz, é Considerando que os sambaquis mais
se a maioria dos sambaquis das vizinhanças próximos em um raio de 5 km, e sem datação,
serviram a uma função especializada de mesmo são parcialmente contemporâneos a Jabuticabei­
tipo e se continham índices similares de enter- ra II, pode-se admitir que o território associado a
ramentos por volume. Outras escavações este sítio é, de fato, densamente populoso. A
publicadas (Beck 1973, Hurt 1974, Rohr 1984) e distâncias um pouco maiores há grandes samba­
nossas próprias observações não deixam dúvidas quis ainda bastante vizinhos a Jabuticabeira II,
de que há um grande número de enterramentos tanto para o interior como ao longo da costa.
na maioria dos sambaquis das cercanias. Infeliz­ Embora estas observações per se não indiquem
mente, a informação disponível é, na maioria dos sedentarismo, elas sugerem territórios relativa­
casos, insuficiente para estimar as freqüências de mente circunscritos e populosos para pescado-
enterramentos em volumes determinados. res-caçadores-coletores, uma perspectiva
Os achados em Jabuticabeira II nos bastante reforçada por recentes estudos
proporcionam insights diretos em apenas envolvendo características paleopatológicas
alguns aspectos da sociedade de seus cons­ da população esqueletal de Jaboticabeira II
trutores, mas oferecem informações novas e (Storto, Eggers, Lahr 1999).
intrigantes relacionadas a outros ângulos do Considerando-se o transporte em embarca­
mundo social. Um deles é o tamanho da ções, poucas incursões externas às residências
população. Ainda que continuemos a refinar não poderiam ser realizadas em menos de um dia
nossas estimativas quantitativas e, provavel­ de viagem. Outra implicação, reforçada pelos
mente, venhamos a proceder a ajustes nas estudos zooarqueológicos em andamento
estimativas atuais, é ponto pacífico que um (Klõkler & Figuti 1999), é a exploração intensiva
grande número de pessoas foi enterrado em de recursos lacustres e costeiros, que os estudos
Jabuticabeira II. As informações disponíveis etnoarqueológicos, ainda preliminares, demons­
sugerem também que Jabuticabeira II não é tram ser bastante abundantes e acessíveis.
diferente dos demais neste aspecto, embora O exame de mais de 50 enterramentos, e dos
ainda não se tenha demonstrado que todos os objetos que constituíam seu acompanhamento
sambaquis da região tenham tido funções funerário, forneceu pouca evidência sobre
idênticas. Ademais, uma grande população no diferenciação social. Posses ou oferendas para
território imediatamente vizinho a Jabuticabeira os falecidos podem ter sido dispostas tanto nas
II compartilhou a construção deste edifício fogueiras como nas sepulturas. Pelo menos um
monumental onde, por um período de tempo zoólito bem trabalhado, em exibição em uma
considerável, seus antepassados foram mostra de artefatos sambaquieiros (recolhidos
regularmente depositados. por João Alfredo Rohr) preparada pelo Instituto
Os resultados de Jabuticabeira II implicam de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
em um grau de sedentarismo, apesar do fato de (IPHAN/1 Ia CR), foi achado neste sítio. A
não termos encontrado evidências de ativida­ quantidade de sepulturas em Jabuticabeira II e
des residenciais corriqueiras na maior parte do em outros locais sem tal acompanhamento
sambaqui. Aventamos a possibilidade de que salienta o fato de que essas efígies elaboradas
os vestígios residenciais possam ocorrer em eram reservadas a muito poucos indivíduos. A

8*
SH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
:ado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

calização das sepulturas no sambaqui e o Pró-Reitoria de Pesquisa), e ainda do CNPq e


forço despendido nas elevações subseqüen- da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O
s podem ser atributos relacionados à estrati- escritório regional do Instituto do Patrimônio
;ação social. Ostentação e generosidade no Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em
:ual mortuário, particularmente em festins, Santa Catarina, através de seu diretor, Dalmo
)de ter sido uma arena adicional na qual as Vieira Filho, e toda a equipe, expediu a autoriza­
lações de poder eram negociadas e a posição ção para os trabalhos de campo e forneceu
»ciai era realçada por indivíduos importantes suporte logístico de várias maneiras. Carlos
i proeminentes, por aparentados ou outros Berenhauser Leite e o Jurerê Praia Hotel, em
upos sociais. Florianópolis, generosamentre forneceram
Finalmente, o sepultamento cumulativo de acomodações no início das pesquisas sistemáti­
ntos ancestrais é quase que seguramente uma cas em 1997, fornecendo assim um excelente
»rte afirmação de direitos territoriais comparti- “empurrão” inicial.
ados e afiliação. A mensagem visual teria sido Cabe lembrar ainda todas a equipes que, de
mtinuamente-reforçada para os habitantes, 1997 a 1999, ajudaram a tomar este projeto uma
isim como para os visitantes, através das realidade interdisciplinar, através de seu trabalho
mensões maciças, sempre crescentes, do e sua competência: Marisa Coutinho Afonso,
imbaqui. A visibilidade teria sido especialmen- Levy Figuti, Daniela Magalhães Klõkler, Dária
proeminente para os viajantes em barcos ao Barreto, Paula Barbosa, da Universidade de São
>ngo do Rio das Congonhas e lagoas vizinhas, Paulo; Peter Pilles, Anne Worthington, Geoífrey
om certeza, a inter-visibilidade consistente por Clark, Guadalupe Sanchez de Carpenter, Julie
»do o grupo de enormes sambaquis próximos Kunen, Arthur MacWilliams, Teresa Serrano,
is aos outros não é aleatória. Estes samba- Jorge Algaza, Emiliano Gallaga e Rick Karl, da
iis monumentais e a mensagem codificada em Universidade do Arizona; Márcia Barbosa e
:u crescimento incrementai são chaves para Cristina Tenório, do Museu Nacional/UFRJ, e
> paisagens culturais das sociedades que os também “seu” Ari e toda a turma da Garopaba do
mstruíram. Sul, sem os quais nosso trabalho teria sido
muitíssimo menos produtivo. Por fim, um
agradecimento especial para Edna June Morley,
Agradecimentos do IPHAN, que foi fundamental na iniciação e
organização deste projeto de pesquisa.
Nossa pesquisa vem sendo financiada Este artigo foi originalmente apresentado
rincipalmente pela Wenner Gren Foundation como um paper na Reunião Científica da SAB
>r Anthropological Research e pela Fundação no Rio de Janeiro, em 1997. Reelaborado depois
; Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelos autores, o texto foi traduzido do inglês
7APESP), com colaboração da Heinz Founda- original para o português por Julia Cristina
on, da Universidade de São Paulo (através da Berra, e revisado por Paulo De Blasis.

6
FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Eventos incrementais na construção de sambaquis, litoral sul do
estado de Santa Catarina. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

FISH, S.K.; BLASIS, P.; GASPAR, M.D.; FISH, P.R. Incremental events in the cons­
truction of sambaquis, southeastern Santa Catarina. Revista do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 10: 69-87, 2000.

ABSTRACT: Moundbuilding is a cross-cultural phenomenon of nearly


world-wide scope. In this article some of the moundbuilding processes related to
the sambaquis (shellmounds) from the coast of Santa Catarina State, Brasil, are
examined, focusing on field research at the sambaqui Jaboticabeira II. By means
of analysing the mounding up processes at that site, attention is drawn to its
social and demographic corollaries, which speak of considerable social elabora­
tion and territorial permanence in time.

UNITERMS: Shellmounds (sambaquis) - Moundbuilding - Social comple­


xity of fishing-collecting-hunting groups.

Referências bibliográficas

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Santa Catarina, Brazil. Occasional Papers gia e Etnologia, São Paulo, 9: 61-71.

Recebido para publicação em 4 de dezem bro de 2000.

87
Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 89-102, 2000.

EVOLUÇÃO PALEOAMBIENTAL NA PLANÍCIE COSTEIRA DO


BAIXO RIBEIRA DURANTE A OCUPAÇÃO SAMBAQUIERA

Walter Mareschi Bissa*


Jean-Pierre Ybert**
Eduardo Luis Martins Catharino***
Miryam Kutner****

BISSA, W.M.; YBERT, J.-P.; CATHARINO, E.L.M.; KUTNER, M. Evolução paleoam-


biental na planície costeira do Baixo Ribeira durante a ocupação sambaquiera. Revista
do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 89-102, 2000.

RESUMO: A análise palinológica e diatomológica do perfil sedimentar de


uma turfeira da região do Baixo Ribeira de Iguape (estado de São Paulo, Brasil),
mostrou mudanças significativas nas condições ambientais. Antes de 3.250 anos
AP a região era recoberta por águas salobras em conexão com o mar, depois ela
foi ocupada por uma floresta paludosa. A penetração do mar está relacionada à
transgressão marinha que culminou há 5.100 anos AP. A descida do nível do mar
foi progressiva de 5.100 anos AP até o presente, sem oscilações notáveis. Esta
mudança radical das condições ambientais pode explicar a distribuição geográfica
dos sítios arqueológicos da região, em particular a presença de sambaquis a 50
km da costa.

UNITERMOS : Palinologia - Holoceno - Paleoeambiente - Paleoclima -


Sambaquis - Brasil.

Introdução concernem ao litoral das regiões sul e sudeste,


em Terra de Areia (Neves & Lorscheitter 1995),
Lagoa dos Patos (Cordeiro & Lorscheitter 1994)
Muito pouco se conhece a respeito dos
e Pelotas (Neves & Lorscheitter 1997), no estado
paleoambientes holocenos das planícies costeiras
do Rio Grande do Sul, e em Iguape (Bissa 1998)
do Brasil. A maioria das reconstituições foram
no estado de São Paulo. Dados paleoambientais
realizadas a partir de estudos palinológicos e
foram obtidos também no litoral do estado de
Rio de Janeiro, entre Saquarema e Cabo Frio, a
partir de estudos antracológicos (Scheel-Ybert
1998, 2000), sedimentológicos e isotópicos
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade (Tasayco-Ortega 1996).
de São Paulo.
Essas reconstituições são importantes para
(**) IRD, França.
(***) Instituto de Botânica, São Paulo, Brasil. se conhecer o meio de vida e os recursos
(* ***) Instituto O ceanográfico da U niversidade de alimentares das populações pré-históricas que
São Paulo. ocuparam a costa brasileira durante o Holoceno.

89
BISSA, W.M.; YBERT, J.-P.; CATHARINO, E.L.M.; KUTNER, M. Evolução paleoambiental na planície costeira do
Baixo Ribeira durante a ocupação sambaquiera. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 89-
102, 2 0 0 0 .

De fato, uma das características das planícies Clima e vegetação


litorâneas do Brasil é a presença de numerosos
vestígios arqueológicos, testemunhos de uma O clima é de tipo tropical sub-quente,
intensa ocupação humana. Na planície de super úmido, sem seca (Nimer 1989). A tempe­
Cananéia-Iguape foram encontrados mais de cem ratura média anual é de 23° C com um máximo
sambaquis, que se concentram nas áreas menos de 38 a 40° C entre os meses de dezembro e
expostas ao mar aberto, no litoral e nas ilhas janeiro, e um mínimo absoluto de 2 a 4o C no
Comprida, do Cardoso e de Cananéia (Uchôa & inverno. As precipitações na faixa litorânea
Garcia 1983). Estes sítios, colinas artificiais são de 2000 mm anuais, os meses mais chuvo­
formadas por conchas de moluscos e sedimentos, sos sendo de janeiro a março.
contendo vestígios de ocupação humana, foram A vegetação predominante do Vale do
construídos por grupos de pescadores-coletores- Ribeira é a Floresta Plu\ial Tropical Atlântica,
caçadores cuja dieta era composta por animais muito densa e com grande diversidade de
marinhos (peixes, moluscos e crustáceos), espécies (Angelo & Sampaio 1994). As regiões
complementada pela caça e pela coleta de litorâneas arenosas (restingas) são ocupadas
vegetais (Prous 1992). As datações indicam, por um mosaico de formações florestais de
para a região, uma ocupação ao longo do fisionomias diferentes, refletindo as variações
Holoceno Superior, entre 5000 e 800 anos AP do substrato (Ramos Neto 1993).
(Uchôa 1981/1982). As matas sobre restingas são classificadas em
floresta alta, floresta baixa e floresta paludosa. A
floresta paludosa, também chamada de floresta
Área de estudo brejosa, floresta alagada e, quando sobre turfeira,
floresta turfosa, ocorre nas depressões entre os
Localização geográfica e cordões arenosos, ou em lagoas e meandros
características geológicas fluviais abandonados. As florestas alta e baixa
desenvolvem-se sobre os cordões arenosos, em
A área de estudo consiste em uma floresta substratos mais secos (Ramos Neto 1993).
paludosa situada na planície sedimentar recente Na floresta paludosa do local de amos­
de Cananéia-Iguape, na Fazenda Boa Vista, a 15 km tragem, Catharino (1986) levantou duzentos e
a noroeste de Iguape (24°36’15"S - 47°38’00"W), quarenta e três espécies vegetais distribuídas
entre o rio Peropava e o curso inferior do rio em setenta e uma famílias e cento e quarenta e
Ribeira de Iguape (Fig. 1). Essa planície é rodeada seis gêneros. O estrato superior possui
pelos morros da Boa Vista, Caiobá e Momuna. árvores que atingem 10 a 20 m de altura com
A origem da turfeira está provavelmente algumas emergentes. O segundo estrato é
relacionada ao represamento do rio Ribeira de formado por arvoretas de 6 a 8 m de altura. Os
Iguape subseqüente às transgressões e regressões estratos arbustivos e herbáceos, mais baixos,
marinhas do Quaternário (IPT 1981, 1982; são igualmente bem representados.
Ramos Neto 1993). Sua formação é posterior ao Myrtaceae é a família que apresenta o
último máximo do nível relativo do mar, que maior número de espécies, sendo muito
culminou ao redor de 3,5 a 4 m acima do nível freqüente nos estratos internos da floresta,
atual há 5100 anos AP (Martin et al. 1979, 1984; com poucas espécies de dossel. Lauraceae,
Angulo & Lessa 1996, 1997) (Fig. 2). também com um grande número de espécies, é
O solo, constantemente inundado, é mais freqüente no estrato superior. No entan­
caracterizado pelo acúmulo de material vegetal to, Matayba guianensis (Sapindaceae),
parcialmente decomposto. Na parte central da Sloanea guianensis (Elaeocarpaceae), Tapi-
turfeira, o sedimento é constituído por até 5 m rira guianensis (Anacardiaceae), Nectandra
de turfa de origem autóctone com pH variando rigida (Lauraceae), Callophyllum brasiliense
de 2 a 3. Encontram-se restos de troncos e (Guttiferae) e Ficus organensis (Moraceae)
raízes até 3 a 4 m de profundidade. Abaixo aparecem com grande freqüência e são domi­
desta cobertura de matéria orgânica, encon­ nantes na fisionomia. Hedyosmum brasiliensis
tra-se uma camada arenosa (Catharino 1986). (Chloranthaceae) tem uma ocorrência mar-

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cante. No estrato herbáceo são comuns vegetais, sendo Myrtaceae, Lauraceae e


Commelinaceae (Dichorisandra), Maran- Melastomataceae as famílias representadas
thaceae (Calathea), Piperaceae (Piper), com maior número de espécies. Myrtaceae
Rubiaceae (Psychotria), Bromeliaceae e Araceae aparece como dominante no sub-bosque mas é
(Anthurium). Uma característica dessa floresta é pouco representada no dossel. Sugyiama
também a grande ocorrência de epífitas das (1993) descreve, na Ilha do Cardoso, forma­
famílias Bromeliaceae, Cactaceae, Orchidaceae, ções florestais baixas sobre restingas constitu­
Polypodiaceae e Araceae (Catharino 1986). ídas predominantemente por Myrtaceae.
Num estudo realizado em florestas próxi­ Existem poucos estudos relativos às
mas, Ramos Neto (1993) encontrou 150 espécies comunidades e aos estágios sucessionais da

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Baixo Ribeira durante a ocupação sambaquiera. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 89-
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Fig. 2 - Curvas de variação do nível do mar. (A) Litoral de Cananéia-Iguape, segundo Martin et al.
1979. (B) Litoral de Paranaguá e de Cananéia, segundo Angulo & Lessa 1997.

vegetação das planícies litorâneas. Reitz cm foram coletados diretamente na encosta da


(1961), menciona a existência de seres suces- vala, recortando paralelepípedos de sedimento,
sionais partindo de duas situações diferencia­ método que permitiu evitar os troncos e raízes.
das: em terrenos secos, formando a xerosera, e A partir dessa cota, correspondendo ao nível
em terrenos úmidos, a hidrosera. Segundo este da água na vala, foi utilizado um testemunha-
autor, a floresta paludosa é um dos estágios dor tipo pistão (Shimada et al. 1981). A
mais evoluídos da hidrosera. Estágios menos espessura total de sedimento coletado alcan­
evoluídos de vegetação de áreas úmidas, ou çou 280 cm.
alterações do nível do lençol freático da O sedimento é uma turfa mal compactada,
floresta paludosa, formam associações secun­ rica em restos vegetais pouco decompostos
dárias com predomínio de Cyperaceae e até 15 cm de profundidade; entre 15 e 100 cm, a
Melastomataceae, sendo expressivas as turfa é mais compactada, mas ainda com muitos
Pteridophyta e Briophyta (Sphagnum). restos vegetais; de 100 a 185 cm a turfa é
Alchornea e Rapanea são dois gêneros argilosa, compacta, de cor preta; de 185 a 225
característicos de estágios sucessionais cm o sedimento é uma argila orgânica de cor
iniciais. oliva escura; de 225 a 280 cm é uma argila
compacta de cor cinza. A partir de 280 cm o
sedimento é excessivamente compacto para se
Material e métodos poder usar o testemunhador. É provável que o
substrato arenoso tenha sido alcançado.
Os sedimentos analisados foram coletados As análises palinológicas foram feitas sobre
na encosta de uma das valas de drenagem da amostras de um centímetro de espessura segundo
Fazenda Boa Vista, na margem sudoeste da uma malha vertical de 10 centímetros. O
turfeira. A altitude da superfície da turfeira, no tratamento das amostras seguiu o método padrão
ponto de coleta, é de 4 metros. Os primeiros 109 estabelecido por Ybert et al. (1992), ou seja,

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ataques químicos com HC1 a 10% para elimina­ 1,20 e 1,90 m de altitude, indica que o mar
ção dos carbonatos, KOH a 10% para eliminação recobria a região. Isso significa que seu nível
dos ácidos húmicos e dispersão da matéria ficou permanentemente mais alto que o atual
orgânica, acetólise, separação dos minerais de pelo menos 1 a 2 m durante esse período,
com Cl-jZn em licor denso. ou seja, entre 4360 e 3250 anos AR
Seis pastilhas de esporos de Lycopodium
clavatum foram adicionadas a cada amostra, Análises palinológicas
no início do tratamento, para calcular a con­
centração polínica absoluta por unidade de O diagrama polínico é caracterizado por
volume e de peso de sedimento (Stockmarr uma forte predominância de pólens de plantas
1971). Foram contados no mínimo 350 grãos de arbóreas, que ultrapassam 80 %. Não se nota
pólen por amostra. nenhuma variação importante no diagrama
Os mesmos níveis foram preparados para a sintético AP/NAP (Fig.3), o qual indica um
análise das diatomáceas. A metodologia empre­ ambiente de floresta ao longo de todo o perfil
gada foi a técnica de Von Stosch (Carmelo estratigráfico. Todavia, o diagrama detalhado
1997): lavagem da amostra com água destilada, (Figs.4a/b) e o diagrama de concentração
remoção da água por decantação, adição de 20 (Fig.5) permitem separar cinco zonas polínicas.
ml de ácido nítrico com aquecimento por 30 Zona 1 - da base até 200 cm (4400 a 3250
minutos, lavagem por decantação com água anos AP): Esta zona é caracterizada por baixas
destilada até obter um pH neutro. Montagem das concentrações de todos os palinomorfos, por
lâminas com resina (Naphrax). freqüências relativas de pólens de herbáceas
Quatro datações radiométricas foram realiza­ mais altas do que no resto do diagrama e por
das sobre a matéria orgânica total pelo método do
porcentagens altas de espécies pioneiras e de
14C. Os resultados são apresentados na Tabela 1
ambientes abertos, como Alchornea (30 a 50 %),
em datas convencionais, datas calibradas e datas
Moraceae e Ulmaceae. Os pólens de Myrtaceae e
calendário (Scheel-Ybert, 1999). O cálculo das
Palmae apresentam suas frequências mais baixas.
datas calibradas foi feito usando o programa As Chenopodiaceae estão presentes no topo
CALIB 3.0 (Stuiver & Reimer 1993).
dessa zona; as Amaranthaceae, Compositae e
Gramineae apresentam suas maiores porcenta­
Resultados gens; os esporos de Pteridophyta têm porcenta­
gens elevadas.
Análises diatomológicas A presença de diatomáceas marinhas e a
baixa concentração de pólens e esporos indicam
Foram encontradas diatomáceas somente que a região era ocupada por uma enseada ou
na base do testemunho, entre 280 e 210 cm (Tab. uma laguna. A presença de água salgada explica
2). As espécies determinadas indicam um as freqüências mais altas de Chenopodiaceae e
ambiente salobro com influência marinha e de Amaranthaceae do gênero Gomphrena, e a
aportes de água doce. escassez das Cyperaceae. O conjunto polínico
A presença de diatomáceas marinhas entre dominado por taxa arbóreos heliófilos e as taxas
280 e 210 cm de profundidade, ou seja, entre maiores de pólen de plantas herbáceas indicam

TABELA 1
Nível estratigráfico Data convencional Data calibrada (2 o) Data calendário Código laboratório
“anos BP” “anos cal BP” “anos AD / BC”

55 cm 1050 ± 50 1049 (929) 792 901 (1021) 1158 AD Beta 103248


130 cm 2820 ± 50 3014 (2913) 2758 1065 (964) 809 BC Beta 103249
210 cm 3300 ± 50 3634 (3452) 3359 1685 (1503) 1410 BC Beta 95151
280 cm 4360 ± 60 5197 (4858) 4661 3247 (2909) 2711 BC Beta 92334
Datações 14C na turfeira da Fazenda Boa Vista - Iguape.

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TABELA 2
Nível estratigráfico em cm
Ambiente Especie 210 220 230 240 250 260 270 280

Actinocyclus sp. * *
Actinoptychus hookeri *
Actinoptychus senarius *
Actinoptychus splendens * * * *
^ Actinoptychus vulgaris * *
Biddulphia rhombus *
£ Diploneis bombus * * *
^ Nitzschia panduriformes *
Polymixus coronalis *
Raphoneis sp. *
Thalassiosira sp. * *
Triceratium patagonicum * * *
Litoral Cyclotella stylorum * * *
marinho; Paralia sulcata * * * * * * * *
Estuarino Triceratium favus * * * * *
Litoral Achnanthes brevipes * *
marinho; Achnanthes longipes * *
Estuarino; Cyclotella striata *
Continental Surirella rorata * * * *
salobro Terpsinoe musica * * *
Agua doce Eunotia diodon * *
Continental Cocconeis placentula * *
Achnanthes sp. *
Actinoptychus sp. *
Amphora sp. *
Caloneis sp. *
Cocconeis sp. * * *
^ Coscinodiscus sp. * * * * * *
g Cyclotella sp. * *
C, Cymbella sp. * * *
u
-a Epithemia sp. * * *
o Eunotia sp. * * * * * *
ice
¡z; Gomphonema sp. * *
Gyrosigma sp. *
Melosira sp. * * * *
Nitzschia sp. * * * *
Pinnularia sp. * * *
Synedra sp. * * * * * *

Distribuição das diatomáceas no sedimento em função do hábitat de cada taxon.

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de pântanos
Pólen de plantas

Fig. 3 - Diagrama palinológico sintético da turfeira da Fazenda Boa Vista - Iguape.

Pteridófitas
Esporos de

herbáceas (NAP)
Pólen de plantas

arbóreas (AP)
Pólen de plantas
Profundidade
palinológicas
Zonas
estratigráfica
Coluna

anos BP
Idade em

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Fig. 4a - Diagrama palinológico da turfeira da Fazenda Boa Vista - Iguape. Frequência relativa dos grãos de pólen das plantas arbóreas.

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102, 2000.

Fig. 4b - Diagrama palinológico da turfeira da Fazenda Boa Vista - Iguape. Frequência relativa dos grãos de pólen e dos esporos das plantas herbáceas.

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Fig. 5 - Diagrama palinológico da turfeira da Fazenda Boa Vista - Iguape. Concentração em milhares de grãos por cm3 de sedimento.

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que a laguna estava cercada por uma floresta Discussão


relativamente aberta, localizada sobre os cordões
arenosos pleistocenos e sobre as colinas Quadro paleoclimático e paleoambiental
circundantes.
Zona 2 - de 200 até 120 cm (3250 a 2600 Os dados palinológicos obtidos a partir da
anos AP): Esta zona se diferencia da preceden­ análise do perfil da turfeira da Fazenda Boa Vista
te por um aumento significativo dos pólens de mostram uma relativa estabilidade do meio ambiente
Myrtaceae, Palmae e Byrsonima, e por uma entre ca. 3250 anos AP e o presente. Após um
diminuição das espécies heliófilas, das herbá­ período de ocupação da área de estudo por um
ceas e dos esporos triletes. grande corpo de água salobra, de 4400 até 3250
A ausência de diatomáceas indica que a anos AP, desenvolveu-se uma floresta paludosa
laguna desapareceu devido ao abaixamento do que se mantém até hoje, tendo sofrido apenas uma
nível do mar. O aumento significativo, em alteração significativa entre ca. 1400 e 775 anos AP,
concentração, dos esporos de pteridófitas devido a uma elevação do lençol freático.
indica uma expressiva umidade local. A floresta O clima também permaneceu relativamente
ombrófila densa, provavelmente paludosa, estável e próximo ao clima atual, notando-se,
recobre a região. O clima é ligeiramente mais todavia, três períodos um pouco mais úmidos:
úmido que durante o período anterior. entre 3250 e 2600 anos AP, em tomo de 2000
Zona 3 - de 120 até 70 cm (2600 a 1400 anos AP e entre 1400 e 775 anos AP, este último
anos AP): As porcentagens de Alchornea sendo mais acentuado.
diminuem, Ilex é mais abundante. A diversida­ Estes resultados são comparáveis com os
de polínica é menor do que na zona preceden­ dados de Tasayco-Ortega (1996) que menciona
te. Os esporos de pteridófitas são menos para a Região dos Lagos, no litoral do estado do
abundantes. A floresta se mantém apesar de Rio de Janeiro, dois episódios úmidos, respecti­
um clima globalmente um pouco mais seco. vamente em tomo de 2000 anos AP e entre 1000
Todavia, um pico de pólen de plantas arbóreas e 600 anos AP. Por sua vez, Scheel-Ybert (1998,
no meio desta zona poderia indicar um breve 2000), para a mesma região, registrou um
período mais úmido por volta de 2000 anos AP. período relativamente seco entre 4900 e 2300
Zona 4 - de 70 até 40 cm (1400 a 775 anos anos AP seguido por uma fase úmida entre 2300
AP): Este intervalo é caracterizado por um leve e 2000 anos AP.
aumento dos pólens de Alchornea e Ulma-
ceae, e por aumentos significativos dos pólens Variações do nível do mar
de Melastomataceae, Rapanea, Ilex e, princi­
palmente, de Cyperaceae e dos esporos de Os dados palinológicos e diatomológicos aqui
Sphagnum e Pteridophyta. A concentração apresentados indicam que o local de estudo era
dos pólens de espécies arbóreas diminui ocupado pelo mar, ou por uma laguna, de pelo
drasticamente enquanto os pólens e esporos menos 4400 anos AP até ca. 3250 anos AP. Isso
de plantas pantanosas e de pteridófitas está de acordo com os dados sobre as variações do
aumentam notavelmente. nível do mar fornecidos por Martin et al. (1979,
Estas flutuações são provavelmente 1984) e por Angulo & Lessa (1996, 1997) para o
relacionadas a uma subida do lençol freático e litoral de Cananéia-Iguape, os quais indicam que o
a um aumento das precipitações. O local mar estava mais alto que atualmente a partir de ca.
estava ocupado por um lago raso de água 6400 anos AP. Segundo estes autores, o nível
doce ou por um pântano. subiu até ca. 5100 anos AP, quando atingiu um
Zona 5 - de 40 cm até o topo (775 anos AP máximo de aproximadamente +3,5 a +4 m. Após
ao Presente): Todos os pólens e esporos de esta data, segundo Angulo & Lessa, o nível baixou
ambiente encharcado, como Sphagnum, diminu­ regularmente até atingir o zero atual na época
em ou desaparecem. Ao contrário, Didymo- presente; segundo Martin et al. a baixa do nível
panax, Hedyosmum, Palmae e Myrtaceae não teria sido contínua e esses autores mencio­
aumentam. A floresta paludosa se reinstala. O nam duas oscilações negativas onde o nível teria
clima volta a ser um pouco menos úmido. sido inferior ao zero atual, entre ca. 4100 e 3750

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anos AP e entre ca. 2900 e 2600 anos AP. Nos Conclusões


dois casos, o nível teria sido de aproximadamen­
te +2 m há ca. 3250 anos AP, e sempre mais O estudo palinológico e diatomológico do
baixo depois. perfil sedimentar da turfeira da Fazenda Boa
O topo do ponto de amostragem sendo a Vista na região de Iguape, litoral do estado de
+4 m de altitude, a base do perfil está a +1,20 São Paulo, permitiu reconstituir o meio ambien­
m, e a cota de +2 m corresponde ao limite entre te durante o Holoceno Superior. O apogeu da
as zonas palinológicas 1 e 2, ou seja, a ca. de ocupação pré-histórica na região, entre 5000 e
3250 anos AP. Segundo os dados diatomológi- 3100 anos AP, está provavelmente ligado à
cos e palinológicos, a presença do mar foi existência, durante este período, de uma extensa
contínua durante esse período e não foi laguna salobra.
registrada nenhuma interrupção, o que tende a O nível do mar se manteve mais alto que
invalidar a curva de variação do nível do mar atualmente de pelo menos 2 metros até 3250
proposta por Martin et al. e a confirmar a anos AP, e baixou continuamente, sem oscila­
curva de Angulo & Lessa.
ções notáveis, a partir desta data. Esse recuo
progressivo do mar provocou o desaparecimento
Ocupação humana
da laguna e favoreceu a instalação de uma
A presença de um grande corpo de água floresta paludosa em seu lugar. Em conseqüên­
salobra, laguna ou estuário, a cerca de 40 km do cia, os pescadores-coletores-caçadores que
litoral atual explica porque se encontram ocupavam a periferia da laguna foram provavel­
sambaquis a essas distâncias. mente forçados a migrar em direção ao litoral
Os dados arqueológicos (Uchôa 1981/82) atual, em busca de alimentação. Seria interessan­
indicam que as populações de pescadores- te averiguar a distribuição geográfica dos
coletores-caçadores tiveram seu maior desenvol­ sambaquis em função de sua idade para verificar
vimento durante o período de 5000 a 3100 anos sua relação com as variações do nível do mar.
AP, o que pode estar associado à extensão dos O clima ficou bastante estável durante os
ambientes lagunares, resultante do alto nível do 4400 últimos anos, sendo registrados apenas
mar e à presença de florestas relativamente três períodos um pouco mais úmidos. O último,
abertas nos morros e serras da região. De fato, os em tomo de 1000 anos AP, mais acentuado, foi
ambientes lagunares são considerados como acompanhado de uma subida do lençol freático
particularmente ricos em peixes e moluscos e da formação de um pântano. Essas oscila­
(Oyuela-Caycedo 1996), muito mais acessíveis ções climáticas não foram suficientes para
que no mar aberto. Da mesma forma, as florestas
provocar grandes perturbações na vegetação
de restingas fornecem em abundância frutos e
da região e as formações florestais foram
raízes para complementar a dieta alimentar
sempre dominantes.
(Scheel-Ybert 1998,2001).
Supõe-se que com o recuo do mar, o início
dos processos graduais de colmatação das
Agradecimentos
lagunas e enseadas (Ab’Saber & Besnard 1953)
e a instalação das florestas paludosas, estas
regiões tomaram-se impróprias à vida de mo­ Este trabalho foi desenvolvido no quadro
luscos e peixes, forçando as populações de da dissertação de mestrado do primeiro autor,
pescadores-coletores-caçadores a migrar em que contou com o auxilio financeiro da FAPESP
direção ao litoral atual e a ocupar novas áreas como (Processo 95/0885-2) e da Pró-Reitoria de
a Juréia, a Dha do Cardoso e a Dha Comprida. Pesquisa da Universidade de São Paulo.

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Baixo Ribeira durante a ocupação sambaquiera. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 89-
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BISSA, W.M.; YBERT, J.-P.; CATHARINO, E.L.M.; KUTNER, M. Palaeoenvironmental


evolution in the coastal plain o f Baixo Ribeira during the shell mounds occupation.
R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 89-102, 2000.

ABSTRACT: Pollen and diatoms analyses in a peat bog from the Baixo
Ribeira do Iguape region (São Paulo State, Brazil) showed expressive changes in
the environmental conditions. Brackish waters connected to the sea covered this
site before 3.250 years BP; after that a swamp forest developed. Sea presence is
due to the marine transgression that culminated at 5.100 years BP. Lowering of
sea level has been gradual from 5.100 years BP to the present, without major
oscillations. This drastic change in environmental conditions can explain the
distribution of the archaeological sites in this region, specially the presence of
shell mounds 50 km away from the coast.

UNITERMS: Palynology - Holocene - Palaeoenvironment - Palaeoclimate -


Shell mounds - Brazil.

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Recebido para publicação em 26 de maio de 2000.

102
Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 103-120, 2000.

ESTUDO PALINOLÓGICO DE COPRÓLITOS


PRÉ-HISTÓRICOS HOLOCENOS COLETADOS NA
TOCA DO BOQUEIRÃO DO SÍTIO DA PEDRA
FURADA - CONTRIBUIÇÕES PALEOETNOLÓGICAS,
PALEOCLIMÁTICAS E PALEOAMBIENTAIS PARA A
REGIÃO SUDESTE DO PIAUÍ - BRASIL

Sérgio Augusto de Miranda Chaves*

CHAVES, S.A.M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados


na Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas,
paleoclimáticas e paleoambientais para a região sudeste do Piauí - Brasil. Revista
do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

RESUMO: Este trabalho apresenta os resultados das análise polínicas


feitas em coprólitos humanos e de animais recolhidos no abrigo sob rocha da
Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada. Esses coprólitos foram identi­
ficados por pesquisadores da escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e
foram tratados segundo a metodologia descrita por Chaves (1994, 1996, 1997)
e Chaves e Renault-Miskovsky (1996). Os resultados forneceram dados que
nos permitiram elaborar um quadro paleoclimático e paleoambiental da região
estudada. Do ponto de vista paleoetnológico, os resultados das análises
polínicas dos coprólitos humanos nos permitiram demonstrar a gama de
plantas utilizadas pelos homens que habitaram a região por volta de 8.000
anos A.P..

UNITERMOS: Coprólitos - Análise polínica - Brasil - Paleoambiente.

Introdução em uma época precisa. Os estudos palinológicos


de coprólitos humanos e animais, por exemplo,
estão a cada dia mais desenvolvidos. O conteú­
Os métodos atuais de análise polínica
do polínico dos coprólitos é, em geral, de uma tal
utilizados nas pesquisas ambientais permitem
uma melhor compreensão de como o quadro quantidade e variedade, que o estudo desse rico
vegetacional de uma dada região se modificou material orgânico nos permite, por exemplo,
estabelecer uma seqüência cronológica da
implantação de uma dada vegetação e mesmo a
de uma curva de evolução climática.
(*) Laboratório de Ecologia da Escola Nacional de Nos dias atuais, os trabalhos palinoló­
Saúde Pública da Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ. gicos que tratam do período Quaternário no

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CHAVES, S.A .M . Estudo p alinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclimáticas e paleoambientais para a região sudeste do
Piauí - Brasil. R evista do M useu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

Brasil são ainda raros. Esta pesquisa será o No início dos anos de 1980, já existiam
primeiro estudo palinológico do paleoambiente dados suficientes para explicar os possíveis
holocênico da região Sudeste do Piauí. quadros paleoclimáticos existentes entre
Tivemos a possibilidade de desenvolver os 13.000 e 20.000 A.P. para o continente sul-
primeiros trabalhos palinológicos no sítio pré- americano (Ab’Saber 1980, Absy e Suguio
histórico de Pedra Furada, a partir dos pólens 1975, Servant et al. 1989). Esses dados foram
encontrados nos coprólitos humanos e aprofundados com as pesquisas palinológicas
animais. O sítio onde foram coletados esses e antracológicas realizadas nos anos 90 e
coprólitos é o sítio de referência da região: a permitiram fornecer numerosas informações
Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada, sobre os períodos mais distantes, como há
situado no Sudeste do Piauí, na região Nor­ 30.000 A.P. (Absy et al. 1991, Ledru et al. 1996,
deste do Brasil. Vemet et al. 1994, Van der Hammen e Absy
A região Sudeste do Piauí tornou-se 1994, Behling 1995).
conhecida depois de 1970, devido à riqueza de O quadro paleoambiental do Pleistoceno
seus sítios de arte rupestre. Esse complexo para essa região era caracterizado por um clima
arqueológico é atualmente considerado como mais úmido que o atual, com uma vegetação
um dos mais importantes do continente denominada de “savanas abertas e arboriza­
americano (Emperaire 1984). das”, ecologicamente favorável aos grandes
Paralelamente às pesquisas arqueológicas mamíferos, que estão bem representados por
e às descobertas artísticas, outros estudos seus fósseis em alguns sítios da região (Guerin
revelaram-se também importantes. As pesqui­ 1991).
sas sobre os coprólitos humanos e não A preexistência de um clima árido regional
humanos por exemplo, possibilitaram o seria então uma constante no paleoclima da
desenvolvimento de linhas de pesquisas região, sempre relacionado com a forma do
relacionadas à paleoecologia, à paleoepide- continente e a orientação dos ventos alísios
miologia e à paleoparasitologia, entre outras, do hemisfério sul. Porém, no passado, qual
tendo os resultados desses trabalhos já sido teria sido a duração dos eventos climáticos de
publicados em revistas nacionais e estrangei­ aridez? Em quais ambientes teriam vivido/
ras. Vários estudos multidisciplinares estão em sobrevivido os homens e animais que habita­
andamento na região de São Raimundo ram/visitaram em várias épocas o abrigo de
Nonato, no Sudeste do Piauí, a 700 km da Pedra Furada? A partir de 1970, as sínteses
capital do estado, Teresina, por uma equipe de paleoecológicas e paleoclimáticas sobre o
pesquisadores. continente se reportavam, seja à teoria dos
As primeiras escavações arqueológicas do refúgios, seja às mudanças climáticas, seja à
sítio de Pedra Furada não indicaram a presença ação antrópica para responder a essas ques­
de pólens nas amostras sedimentares - todas tões. E também nessa mesma época que a New
essas amostras mostraram-se estéreis. Da Archeology e sua tentativa metodológica de
mesma forma, também não existiam dados um enfoque paleoetnológico revela uma nova
sobre os restos de ossos humanos ou animais, e importante forma no “olhar” dos vestígios
em razão da natureza ácida do solo desse sítio, arqueológicos. Não poderíamos mais estudar
o que implica em uma má donservação do tais vestígios de maneira independente, ou
material arqueológico. No que diz respeito aos seja, sem relacioná-los ao seu ambiente natural
estudos antracológicos, o estágio atual das e cultural. Essa nova forma de interpretar os
pesquisas não fornece ainda resultados elementos naturais/culturais da Arqueologia,
concretos. Dessa maneira, os únicos elemen­ através da reunião das ciências como a
tos que poderiam contribuir para o conheci­ Etnologia, a Antropologia e as ciências
mento das fases climáticas holocênicas, assim paleoambientais, ampliou consideravelmente o
como do paleoambiente regional, dependia, universo das pesquisas em pré-história. O
então, da palinologia dos coprólitos (material objetivo principal desse trabalho é a recons­
que apresenta, naturalmente, uma excelente e tituição do paleoambiente holocênico no
eficaz conservação dos grãos de pólen). Sudeste do Piauí, assim como contribuir com

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CHAVES, S.A .M . Estudo p alinológico de coprólitos pré-históricos holocen os coletados na Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclim áticas e paleoambientais para a região sudeste do
Piauí - Brasil. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

algumas informações de uma possível utiliza­


ção medicinal de certas plantas através da
análise dos pólens encontrados nos coprólitos
humanos.

A Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada

Na América do Sul, mais de uma dezena de


sítios são, hoje em dia, datados e reconheci­
dos como sendo anteriores a 12.000 A.P. Os
dados publicados por Parenti (1993, 1996),
Parenti e Torroni (1994), Meltzer et al. (1994) e
Guidon et al. (1994, 1996) sobre o sítio pré-
histórico de Pedra Furada, conduzem à revisão
da cronologia do povoamento do continente
americano. Às teorias anunciadas anteriormen­
te, tornou-se então necessário acrescentar os
novos dados cronológicos, antropológicos e
culturais apresentados nos trabalhos desses
autores e aguardar outros novos resultados,
para então inseri-los no contexto da pré- Mapa - Localização do Sítio da Toca do B o­
história sul-americana. queirão da Pedra Furada (BPF).
Graças às pesquisas arqueológicas
desenvolvidas na região pelo grupo de
estudos da arqueóloga Niède Guidon, possuí­ segunda, mais precisa, é, atualmente, a estrati­
mos atualmente um número importante de grafía aceita e aquela que adotaremos nesse
dados sobre as populações pré-históricas do trabalho.
Piauí. As datações, de uma impressionante
O sítio de Pedra Furada (8°50’ 10” S - antigüidade - por volta de 48.000 A.P. -
42°33,20'’ W) está localizado no estado do obtidas em Pedra Furada, até o momento não
Piauí, na região nordeste do Brasil (Mapa). foram unanimemente aceitas. A tese defendida
Com uma largura de 70m, é aberto para o sul, por Fábio Parenti, a partir de um rigoroso
cercado a leste por quedas d ’água que, devido estudo do sítio (que apresenta um corte
às violentas tempestades, fazem desembocar, estratigráfico bem detalhado, com séries de
além das linhas de chuva, seixos provenientes datações obtidas pelo Carbono 14 e com uma
da desagregação das camadas conglomeradas análise rigorosa do material lítico e das estru­
subjacentes (Parenti 1993). turas consideradas antrópicas), comporta, a
As escavações do sítio de Pedra Furada nosso ver, os elementos decisivos e necessári­
foram organizadas e coordenadas pela arqueó­ os para o convencimento dessa parte da
loga Niède Guidon a partir de 1978. Em 1988, o comunidade científica ainda “descrente”.
arqueólogo Fábio Parenti refez os trabalhos de Nas camadas arqueológicas da Toca do
estratigrafía do sítio - tema de sua tese de Boqueirão do sítio da Pedra Furada, os
Doutorado, defendida em 1993. Existem então homens deixaram como testemunhos uma
duas estratigrafías para o sítio de Pedra indústria lítica abundante, relacionada a
Furada. A primeira, segundo alguns arqueólo­ fogueiras que foram encontradas em diferentes
gos europeus e americanos, apresenta proble­ níveis estratigráficos. As 32 datações radio-
mas metodológicos consideráveis. Por essa métricas pleistocênicas de Pedra Furada
razão, não foi totalmente aceita por esses permitiram a construção de um quadro cro-
pesquisadores da comunidade científica. A noestratigráfico, que, até o presente, não

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CHAVES, S.A .M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão d
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclimáticas e paleoambientais para a região sudeste d
Piauí - Brasil. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

possui equivalente para o Novo Mundo. As galets. Les deux phénomènes se situent dans h
datações dessas amostras resultaram em cadre d ’une grande stabilité technique
valores que variam entre 5.000 anos (no topo pendant le Pléistocène fin a l”.
do perfil estratigráfico) a mais de 48.000 anos Ainda segundo Guidon et al. (1994), “les
A.P. (Parenti 1993). industries des niveaux holocènes (phases
A partir dos estudos elaborados por Serra Talhada 1 et 2, et phase Agreste), tout
Parenti (1993), podemos distinguir, no corte de en continuant Vexploitation des galets
referência do sítio, dez unidades estratigrá- disponibles sur place, montrent une plus
ficas: 1 - areia fina com carvões e macrorestos grande différenciation typologique et l ’utili­
vegetais atuais; 2 - areia média apresentando sation de matière première exogène (notam­
algumas perturbações devido aos cupins; 3 - ment de calcédoine provenant des massifs de
seixos de tamanho médio; 4 - areias finas com calcaire métamorphique). Elles comprennent
perturbações devido aos cupins; 5 - areia fina un outillage ‘léger’ mis en forme hors du site
apresentando carvões e cinzas; 6 - areia et fabriqué essentiellement en calcédoine et
média; 7 - lentes de cinzas e de carvões; 8 - silex, avec des racloirs de types variés, des
areia média apresentando cinzas e carvões; 9 - limaces et des perçoirs. Il s ’agit de formes trèi
areia média com seixos de tamanho pequeno; définies qui présentent de grandes analogies
10 - seixos de tamanho médio a pequeno; avec les industries déjà connues dans d ’au­
raros são os seixos de tamanho grande; tres sites du Nord-est brésilien. Elles com­
presença de blocos de granito. prennent aussi un outillage plus lourd, galeh
Os resultados desses estudos demonstra­ taillés (dont 20% seulement à taille bifacia­
ram também uma grande riqueza de seixos nas le), rabots, entames retouchées, qui est en
unidades superiores holocênicas. continuité directe avec les techniques de
O conjunto das unidades estratigráficas taille utilisées dans les niveaux paléoli­
permitiu-nos definir as três fases pleistocêni- thiques. Il semble qu’il y a eu un traitement
cas principais: Pedra Furada 1, Pedra Furada 2 thermique postérieur à la taille et antérieur à
e Pedra Furada 3 - com uma duração mínima la retouche à partir de 10.000 ans B.P
total de 40.000 anos - e das fases holocênicas (Niveaux Serra Talhada)”.
- Serra Talhada 1, Serra Talhada 2 e Agreste. Os sítios nos arredores de Pedra Furada
A fase Serra Talhada 2 terminou há 6.000 anos alcançam o número de 49, mas, se considerar­
e a fase Agreste, há 5.000 anos A.P.. mos a área arqueológica de São Raimundo
No que diz respeito aos utensílios líticos Nonato em sua totalidade, o número de sítios
recolhidos em Pedra Furada, foram repertoriadas sobe para mais de 400.
aproximadamente 600 peças líticas pleisto- A ocupação humana de Pedra Furada se
cênicas e 6.600 peças holocênicas. efetuou em diferentes períodos. Os coprólitos
Segundo Guidon et al. (1994), “les indus­ humanos que estudamos nesse trabalho, por
tries paléolithiques (phases Pedra Furada 1, 2 exemplo, foram recolhidos no que chamamos
et 3) sont des galets taillés (la taille bifaciale de fases Serra Talhada 1 e Serra Talhada 2, que
concerne environ la moitié des pièces), des se caracterizam pela presença de fogueiras que
fragments utilisés, des éclats corticaux, des foram reutilizadas inúmeras vezes.
racloirs, de rares perçoirs et denticulés. Elles
se caractérisent par une faible exploitation
des galets de quartz et de quartzite, présents Metodologia
sur le site, et par une technique de taille non
pré-determinée. Au Paléolithique, des éclats Coletas
de taille et des fragments d ’origine naturelle
ont été aussi indéniablement repris et utilisés. Os 31 coprólitos analisados neste trabalho
D ’un point de vue technologique, les tendan­ foram coletados manualmente, com a ajuda de
ces principales montrent une diminution pequenas espátulas, no interior das decapa-
progressive de la taille bifaciale et aussi une gens sucessivas do sítio estudado. No
augmentation régulière de l ’exploitation des laboratório, após a identificação, a pesagem, a

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CHAVES, S.A.M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclim áticas e paleoam bientais para a região sudeste do
Piauí - Brasil. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 103-120, 2000.

fotografia e a etiquetagem, esses coprólitos 5 - Feito isso, separamos 50 pl do sedi­


foram descritos e essas informações passadas mento e preparamos a montagem do material
para fichas individuais. Algumas partes das entre lâmina e lamínula, com a lutagem sendo
amostras foram separadas para datação pelo feita com “Histolaque”. O material está pronto
C 14 e outras análises. para a observação e a determinação dos
Os tratamentos químicos dos coprólitos, pólens e dos esporos.
tendo em vista seu estudo polínico, foram
feitos no “Institut de Paléontologie Humaine Descrição e conteúdo dos coprólitos
de Paris” . As análises paleoparasitológicas
foram efetuadas na Escola Nacional de Saúde Oitenta por cento das amostras dos
Pública - ENSP, no Rio de Janeiro, Brasil. As coprólitos recolhidos no sítio de Pedra Furada
datações pelo método do radiocarbono, foram apresentavam um aspecto exterior orgânico e
realizadas no laboratório de datações de Gif- poroso, algumas vezes muito duros. Sua
sur-Yvette, na França. coloração variava do marrom-escuro ao preto.
Os pedaços separados para o estudo palinoló­
Metodologia das preparações químicas gico desses coprólitos pesavam, em média, de
2 a lOg e suas medidas eram, em média, de 2 x 2
Todas as amostras estudadas eram muito x 2 cm. A identificação dos coprólitos foi feita
ricas em matéria orgânica. O tratamento por especialistas da Escola Nacional de Saúde
químico seguiu a metodologia descrita por Pública-ENSP e foi relacionada a diversos
Chaves e Renault-Miskovsky (1996) e Chaves animais, como cervídeos, felinos, roedores,
(1994,1996 a ,1997): macacos, percebendo-se também a presença
1 - Pesagem de 2 g de coprólitos (peso de alguns coprólitos humanos. Algumas
seco), seguida da separação sobre uma tela de amostras não foram identificadas.
cobre de malha de 200 pm. Esta última fase tem No interior dos coprólitos, distinguimos
por objetivo eliminar os elementos grosseiros restos de plantas, de sementes e de outros
encontrados no interior dos coprólitos (se­ macrorestos, como folhas, carvões e outros
mentes, folhas etc.). O material selecionado foi restos orgânicos não identificados. Poucos
tratado como descrevemos a seguir: coprólitos apresentavam restos ósseos no seu
Para as amostras argilosas - tratamento interior. É importante frisar que, para os
com ácido fluorídrico (HF) a 70% frio. coprólitos animais, os restos ósseos evocam
Para as amostras ricas em matéria animais carnívoros como cachorros ou felinos.
orgânica - seguimos o método de Von Post, A determinação desses macrorestos, assim
ou seja, utilizamos o hidróxido de potássio como dos carvões, por exemplo, deve, futura­
(KOH) a 10%, a fim de dissolver os compostos mente, ser objeto de um estudo aprofundado,
húmicos e os eliminar por meio de centrifuga- para que possamos estabelecer relações mais
ções sucessivas. precisas entre esses macrorestos e a paleoali-
2 - Após essa etapa, a solução restante foi mentação dessas populações.
colocada em banho-maria com ácido clorídrico
(HC1) a 50% e lavada com centrifugações Modo de interpretação
sucessivas de água destilada até a obtenção
de uma solução clara. Identificação e contagem dos grãos de pólen
3 - Na etapa seguinte utilizamos a metodo­
logia de extração e de separação das matérias O tratamento químico realizado teve por
orgânicas com o Cloreto de Zinco (ZnCl2). objetivo obter grãos de pólen e esporos sem
4 - Uma vez separada a parte orgânica dos o seu conteúdo celular. Isso permite não
sedimentos, procedemos a uma nova série de apenas identificá-los, mas também eliminar os
centrifugações, com a adição do ácido clorídri­ resíduos minerais e vegetais. Três lâminas de
co a 25%. cada sedimento orgânico dos coprólitos
O material orgânico obtido foi deixado foram preparadas para as contagens e identi­
meia hora em uma solução de água glicerinada. ficações.

107
CHAVES, S.A.M . Estudo p alinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclim áticas e paleoambientais para a região sudeste do
Piauí - Brasil. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

A identificação foi feita, no mínimo, no deposita no local de produção, representando


nível de família botânica, utilizando-se as o que denominamos de chuva polínica autóc­
coleções de referência da região sudeste do tone (Cour 1973).
Piauí, provenientes do herbário do Jardim A fim de caracterizar a sedimentação
Botânico do Rio de Janeiro e do herbário da polínica atual de nossa região de estudo,
Universidade Federal de Teresina - Piauí. coletamos durante dois anos consecutivos
A identificação dos grãos de pólen foi amostras de superfície em duas localidades -
feita por comparação com grãos de pólen Barreirinho e Sítio do Meio. A partir dessas
atuais, provenientes de uma coleção de pólens amostragens, pudemos analisar a composição
e esporos atribuídos a espécies botânicas - florística próxima da encontrada atualmente na
coleção de referência - e por consulta a região.
catálogos que apresentam descrições, medi­ Analisando os resultados dos estudos
das, desenhos e fotos de pólens e de esporos. polínicos dos sedimentos atuais, constatamos
Essas comparações se baseiam em característi­ que a vegetação regional apresenta taxa
cas morfológicas dos pólens, como o relevo da típicos da caatinga - (Spondias, Piptadenia,
superfície dos grãos, a existência ou não de Mimosa) em associação com gêneros das
poros, sulcos etc. famílias Anacardiaceae, Leguminosae,
A contagem e a identificação dos pólens e Bombacaceae, Myrtaceae e Apocynaceae.
dos esporos foi feita para um mínimo de 20 Esses taxa e essas famílias refletem, de uma
taxa. Uma média de 200 esporomorfos foram maneira geral, a vegetação implantada atual­
contados por lâmina. A soma polínica (soma mente nas diferentes formações geomor-
total) foi utilizada para obter as porcentagens fológicas de nossa região de estudo. Esses
de cada taxa. Calculamos as porcentagens de conjuntos taxionômicos encontrados estão de
cada taxa utilizando a relação entre a soma de acordo com as descrições dos ecossistemas
base, os AP (Arboreal Pollen), os NAP (Non citados por Emperaire (1983).
Arboreal Pollen) e os esporos (Pteridofitas, Entre as árvores e arbustos, as associa­
monoletes e triletes). ções dos taxa Acacia, Piptadenia, Sclero-
Como a maioria (90%) dos excrementos bium e Bowdichia, assim como as Anacar­
estavam secos, o volume das amostragens não diaceae, tiveram uma boa representação
foi constante. Logo, o cálculo da concentração polínica nos nossos diagramas. Esses resulta­
por centímetro cúbico não foi possível para a dos indicam a existência de um estrato arbóreo
totalidade das amostras. Assim, calculamos a alto, representativo da vegetação dos terrenos
concentração polínica apenas para algumas dos vales e das planícies. Os taxa Croton,
delas. Suas concentrações polínicas foram, de Borreria e Pfaffta, plantas ruderais, indicam a
maneira geral, altas (18.450 grãos/g). E mesmo presença dessas plantas na vegetação secun­
as amostras com uma baixa concentração dária existente nos dias de hoje na região.
polínica apresentavam 2.000 grãos/g. Com o objetivo de sermos atentos e
prudentes em nossos passos metodológicos,
foi necessário distinguir dois diferentes casos
Interpretação em função da onde os pólens podem ser encontrados nos
chuva polínica atual coprólitos:
- o primeiro caso é quando os pólens são
A chuva polínica atual encontrados no interior dos coprólitos, tendo
sido ingeridos com a alimentação sólida e/ou
As precipitações polínicas que se sedi­ líquida dos homens ou dos animais;
mentam na superfície do solo em um determi­ - o segundo caso é aquele relacionado à
nado local compreendem, de um lado, os chuva polínica depositada sobre os coprólitos.
depósitos polínicos alóctones, provenientes Os coprólitos funcionam então como uma
dos fluxos externos trazidos pelas correntes de “armadilha”, coletando o pólen das espécies
ar ou por animais e, de outro lado, a fração dos vegetais do ambiente que os cerca (árvores
pólens produzidos pelas plantas locais, que se principalmente), assim como os de plantas

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encontradas a longas distâncias. Esses pólens utilizando partes de flores e/ou folhas de
são trazidos por correntes de ar. algumas plantas selecionadas. Essas desco­
Toma-se, então, necessário termos uma bertas mostram a utilização de medicamentos
grande prudência em nossas interpretações encontrados no seu ambiente. Essas plantas
dos diagramas polínicos. Um diagnóstico são, ainda hoje, utilizadas no tratamento de
errado, não levando em conta principalmente verminoses, diarréias, doenças oculares e
esses dois tipos de impregnação dos copró­ problemas respiratórios (Chaves 1998).
litos pelos pólens, pode levar nossas interpre­ Os resultados paleoetnológicos estão
tações ecológicas a conclusões errôneas e apresentados no histograma (Fig. 1). Eles
precipitadas. colocam em evidência a presença, nos dejetos
fósseis dos homens de Pedra Furada, de
pólens de plantas com uso alimentar e/ou
Resultados das análises dos terapêutico.
coprólitos hum anos O histograma apresenta, para cada
amostra, os taxa AP (Arboreal Pollen) e NAP
Os coprólitos humanos e animais recolhi­ (Non Arboreal Pollen), detalhando, da
dos em Pedra Furada eram, de uma maneira esquerda para a direita, a descoberta de nove
geral, bem conservados, e nos possibilitaram taxa e seis famílias arbóreas, e de dez taxa
construir dois diagramas polínicos. No que diz acompanhados de cinco famílias não arbó­
respeito ao conteúdo polínico dessas amos­ reas, de filicales, dos taxa indetermináveis e
tras, 90% dos coprólitos estudados apresenta­ da relação AP/NAP.
ram uma boa quantidade de pólens (mais de No histograma (Fig. 1), notamos a presen­
6.000 grãos). ça significativa dos taxa Borreria sp. (“cabe-
A análise polínica dos excrementos ça-de- velho”), Sida sp. (“malva-benta”) e
humanos fósseis nos permite apresentar Terminaba sp. (“maçarico”), que podem ter
interessantes informações. Do ponto de vista sido utilizados com os seguintes fins: as folhas
paleoetnológico, por exemplo, os resultados de Sida sp., no tratamento de feridas e, em
das análises polínicas dos coprólitos nos infusão, como facilitador da digestão; da mesma
permitiram apresentar uma gama de plantas forma, para a digestão, utilizaram a infusão das
utilizadas pelos homens que ocuparam/ folhas de Borreria sp.; contra a desinteria, a
visitaram o sítio de Pedra Furada. Podemos, infusão de folhas de Terminaba sp.
então, a partir dos pólens descobertos nos Descobrimos também outros taxa que
coprólitos estudados, colocar em evidência colocam em evidência uma utilização seletiva
algumas plantas utilizadas pela população e que são ainda utilizados nos dias atuais, de
local na pré-história. acordo com os trabalhos etnobotânicos de
Emperaire (1983). Por exemplo: a partir da
Descoberta de plantas com uma casca de Anadenanthera sp. (“angico”),
utilização terapêutica e/ou alimentar prepara-se uma infusão tônica e depurativa
utilizada no tratamento da tuberculose e das
Essas descobertas permitem, sobretudo, infeções das vias respiratórias. Sua casca
aprofundar nossos conhecimentos relativos raspada, aplicada sobre os dentes, acalma a
aos “tratam entos” de doenças pela população dor. A infusão da casca de Bauhinia sp.
humana pré-historica da Toca do Boqueirão (“miróró”) é tônica e vermífuga. A infusão da
do Sítio da Pedra Furada. Da mesma maneira, casca de Caesalpinia sp. (“pau-ferro”) é
nosso trabalho permitiu confirmar o que cicatrizante. A infusão das folhas de Cecropia
Ferreira et al. (1987) afirmaram sobre a sp. (“embaúba”) é utilizada contra as dores. A
presença de pequenos vermes parasitas nos folha de Croton sp. (“marmeleiro”) é utilizada
coprólitos humanos dessa mesma população. contra a gripe e a bronquite. A folha de
Podemos, então, provar que esses habitantes, Chenopodium sp. (“mentruz”) é muito
que foram parasitados há 9.000 anos A.P., utilizada como remédio de base, sendo ainda
procuravam se livrar desses vermes parasitas fortificante e vermífugo.

109
110
| litologia
datações
5 ri9 da amostra
l profundidade cm
Pedra Furada

Alchornea
Altitude 400 m

1 MELASTOMATACEAE 1
' CO M B RE TA CE AE
' A N A C A R D IAC EA E
' A PO C Y N A C E A E
Mimosa verrucosa
■ Piptadenia
Piptadenia monoliformis
■ M ELIACEAE
Saiacia
Emmotum
■ SAPINDACEAE 1
- M O RA CE A E
Guazuma
Ximenia
M IM O SACEAE
Fig. 1 - Diagrama polínico do sítio “Pedra Furada”.

í O PILIAC EA E
MYRTACEAE
1 PALMAE
^ BOM BA C A C E A E
EUPHORBIACEAE 1
‘ M A LPIG H IA C EA E
Styrax
Helicteres
Strychnos
Cassia type 1
Protium heptaphyllum
Mimosa
And ira
Stryphnodendron
Mimosa scabrella
Pisonia
Cassia type 2
Serjania
Anacardium
Hancornia
Lithraea
Cordia
Pera
Agonandra type
Couepia
Mimosa caesalpiniaefolia
Copaifera
Erythrina
C A E S A LP IN IA C E A E
Acacia
S TER C U LIAC E A E
Sclerobium
RUTACEAE
Schrankia
Spondias
Bompax
Eriotheca
Erythroxyium
Kietmeyera
Peixotoa
Byrsonima
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Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclimáticas e paleoambientais para a região sudeste do
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Byrsonima
Miconia
Tabebuia
Matayaba
Tocoyena
SOLONACEAE1
BORAGINACEAE
EBENACEAE
CHRYSOBALANACEAE
Annona
Camarea
BIGNONIACEAE
EUPHORBIACEAE 2
Anadenanthera
Casearia
Caesalpinia
Fig. 1 - Diagrama polinico do sítio

Tabernaemontana
LOGANIACEAE
ICACINACEAE
RUBIACEAE
Cybianthus
Neea
Vochysia
Cestrum
Allophyllus
Bauhinia
Dipladenia
MYRSINACEAE
Connarus type
Phaseotus type
Arrabidae
Alternanthera
Aiternanthera polygonoides

“Pedra Furada” (continuação).


Pavonia
CARYOPHYLLACEAE
Solanum
Croton
Crotalaria
Borreria
Sida linifolia
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Sida Unifolia
Gomphrena
■ Mamhot
BROMELIACEAE
Sida
Dyckia
BIGNONIACEAE 2
Lupinos type
CUCURBITACEAE
ACANTHACEAE
FABACEAE
ASTERACEAE
Fig. 1 - Diagrama polínico do sítio

POACEAE
MALVACEAE
AMARANTHACEAE
SOLANACEAE 2
LAMIACEAE
COMMELINACEAE
Hyptis
Acalypha
Mansoa
Ipomoea
Euphorbia
Portuiaca
Bredemeyera
Tragia
Chenopodium
iHORB^ACEAE 2
CONVOLVULACEAE
LYTHRACEAE
MELASTOMATACEAE 2
AGAVACEAE
Diplusodon
Cuphea
“Pedra Furada” (continuação).
DP & hampia
Diodia
Ruellia
ULMACEAE
E volvulus
Merremia
ESPOROS MONOLETES
INDETERMINADOS
A P /N A P
Soma de Base (AP+NAP)
Soma Total
ZONAS
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Entre os taxa inventariados, alguns representados nesses níveis, porém com fracas
tiveram um uso exclusivamente alimentar. É o percentagens.
caso de Phaseolus sp. (“feijão-bravo”), A análise do diagrama polínico de Pedra
Anacardium sp. (“cajuzinho”) e alguns taxa Furada possibilita interpretações particular­
das famílias Cucurbitaceae e Convolvulaceae mente interessantes nesses níveis. A alta
que não foram ainda determinados no nível de percentagem (mais de 60%) de pólens de
gênero e/ou de espécie. árvores nesses níveis inferiores indica que
Uma ressalva deve ser feita no que diz essa região, durante a época de ± 8.450 A.P.,
respeito aos taxa da família Palmae. Essa no que concerne ao quadro ambiental, era bem
família deve ser considerada como uma família mais arborizada e mais úmida do que nos dias
de árvores extremamente importante, na atuais. A ocorrência de taxa pertencentes às
medida em que mantém uma relação privilegia­ famílias Myrtaceae, Leguminosae, Rutaceae e
da com o Homem. Esse último as utiliza de de outros taxa característicos de uma certa
maneiras múltiplas, como na alimentação, umidade (Gomphrena e Bauhinia) reforçam
através de seus frutos, na produção de fibras e essa conclusão.
trançados, na construção de cabanas etc.. Por outro lado, os taxa Kielmeyera e
Erythroxylum típicos e característicos do
cerrado, foram encontrados no meio dessa
Resultados das análises dos zona, a 147 cm. Nos dias atuais, as espécies
coprólitos animais Erythroxylum deciduum, Erythroxylum
suberosum e Erythroxylum anguifugum são
A análise polínica dos coprólitos animais encontradas no ecossistema denominado
também nos permitiu apresentar interessantes cerradão. Esses taxa estão relacionados a
informações do ponto de vista paleoclimático índices de chuvas de aproximadamente 1.500
e paleoambiental. Os resultados das análises mm/ano (Pott e Pott 1994).
polínicas desses coprólitos são apresentados A zona B (coprólitos n° 362, 345, 363, 350 e
no diagrama seguir (Fig. 1). 360), entre 135 cm e 127cm, é caracterizada pela
A partir da base do nosso diagrama, nos presença de taxa representativos da savana
níveis inferiores a 157 cm, para uma data de arbustiva densa: Agonandra, Miconia tipo,
8.450 A.P., dividimos nosso diagrama (Fig. 1) Mimosa verrucosa, Piptadenia e Piptadenia
em 6 zonas. Os critérios de distinção das zonas monoliformis, assim como de taxa das famílias
polínicas foram estabelecidos em função dos Combretaceae e Myrtaceae. A abundância das
valores dos AP e dos NAP, expressos em Mimosaceae, assim como a forte percentagem
percentagem. (53%) do taxa Byrsonima nessa zona, sugere
A primeira zona, a zona A (coprólitos n° uma vegetação do tipo cerrado. Esta zona
357, 356, 359, 347, 344 e 358), entre 157 cm e também se caracteriza por um decréscimo
145 cm, apresenta um grupo de taxa arbóreos significativo de 20% dos taxa arbóreos nos
que domina até o nível de 147 cm. As associa­ coprólitos n° 362 e 360, onde se observa um
ções de Mimosa, Mimosa verrucosa e os taxa pique de floração de Asteraceae (21%). Essa
da família Combretaceae, encontrados nos zona sugere a existência de um paleoambiente
níveis a 155 cm, são característicos dos arbóreo, característico da vegetação do cerrado.
períodos de chuvas. E importante acrescentar Na zona C (coprólitos n° 346, 349, 354 e
a essas associações a presença de Apocyna- 351), entre 117 cm e 103 cm, a representação
ceae, característica de climas úmidos e de dos AP aumenta de uma maneira relativamente
solos argilosos. Todos esses taxa citados homogênea. A percentagem do taxa Mimosa
acima estão relacionados a espaços arbóreos. verrucosa aumenta (mais de 16%); observa­
É importante também frisar a ocorrência, nessa mos também o aumento de Myrtaceae (de 3%
zona, de um pique de floração de Sida linifo- para 12%), assim como o aumento da percenta­
lia, que alcança uma percentagem muito gem dos taxa Piptadenia e Piptadenia
importante (67%). Os taxa pertencentes às monoliformis que alcançam seus mais altos
famílias Poaceae e Asteraceae estão também valores nessa zona (5,7% e 8,0%, respectiva­

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mente). Alguns taxa pertencentes às famílias vegetação encontrada nos dias atuais no
Melastomataceae-Combretaceae nos fazem interior dos boqueirões. Esse estrato é também
inferir a presença de espécies pioneiras, composto de um estrato frutescente e de um
símbolo de uma provável substituição da estrato arbóreo.
vegetação ocorrida nessa zona. Essa conclu­ Nesses níveis, as percentagens dos AP
são é reforçada observando-se o aumento das diminuem significativamente - mas podemos
Asteraceae (mais de 7%), das Caryophyllaceae observar ainda alguns piques de floração de
(6%) e dos taxa Alternanthera polygonoides Mimosa, assim como algumas fracas percenta­
(11%) e Borreria (4%). gens dos taxa Copaifera, Sclerobium, Schran-
Na zona D (coprólitos n° 337, 759, 620 e kia, Miconia, Caesalpinia, Anacardium,
342), entre 101 cm e 78 cm, a percentagem dos Bauhinia e dos taxa pertencentes às famílias
NAP aumenta de maneira significativa (mais de Melastomataceae, Combretaceae, Sapindaceae,
60%). Nessa zona, os pólens das plantas Palmae e Myrtaceae.
herbáceas - Sida linifolia, Borreria, Alter­ Por outro lado, observamos associações
nanthera e Alternanthera polygonoides - , arbóreas Mélastomataceae-Combretaceae e a
assim como os pólens das familias Asteraceae presença dos taxa Miconia e Tocoyena, entre
e Caryophyllaceae, dominam claramente. As outros, sempre relacionados à floresta mesófila
percentagens dos pólens das associações semi-decídua (o cerradão). Da mesma forma, a
Combretaceae-Leguminosae (mais de 36%) ocorrência dos taxa Piptadenia monoliformis,
sugerem também uma vegetação do tipo Sclerobium, Bombax, Acacia, Mimosa scabre-
relativamente aberta. Por outro lado, o taxa lla, Mimosa verrucosa e Bauhinia indica a
Caesalpinia está relacionado à localização de possível existência de uma vegetação de
refúgios florestais; o que nos faz pensar na transição entre o cerrado e a caatinga arbusti­
existência de uma vegetação aberta, com um va durante esse período.
clima ameno no interior desses refúgios. As análises dos pólens encontrados nos
Podemos observar na zona E (coprólitos n° coprólitos animais permitiram também demons­
341 e 340), entre 51 cm e 47 cm, uma nova alta trar a época de floração de algumas plantas,
da percentagem dos taxa arbóreos (mais de conhecendo-se mesmo seus picos de floração
50%). A abundância desses taxa pertencentes durante o ano, como por exemplo: Mimosa
às famílias Leguminosae, Myrtaceae, Sapin- verrucosa, Mimosa sp., Byrsonima, Alternan­
daceae, Euphorbiaceae, Rutaceae, Rubiaceae e thera polygonoides, Pavonia, Borreria, Sida
Palmae, assim como a presença dos taxa linifolia e alguns pólens pertencentes às
Erythrina, Kielmeyera, Pisonia, Cassia, famílias Mimosaceae, Myrtaceae, Caryophy­
Sclerobium, Acacia, Bauhinia, Piptadenia e llaceae e Asteraceae.
Serjania demonstra, nesses níveis, uma boa Pudemos também precisar, de uma maneira
riqueza taxonómica. Esses resultados confir­ geral, no que diz respeito à paleovegetação e ao
mam a floração contemporânea dessas associ­ paleoclima regional, que os taxa identificados no
ações, comprovando-se, então, o “restabe­ sítio de Pedra Furada estão em relação com a
lecimento” da vegetação do tipo cerrado. vegetação do cerrado e, de certa forma, com a
A zona F (coprólitos n° 115, 114, 113 e vegetação de transição entre o cerrado e a
606), entre 31 cm e 11 cm, apresentou uma caatinga. Pensamos, então, que, entre 8.450 anos
amostra estéril em sua base - o coprólito de n° e 7.230 anos A.P., existiram nessa região algumas
115. Nessa última zona, os NAP estão mais formações abertas com retomadas temporárias
uma vez bem representados. As percentagens das vegetações do cerrado e do cerradão.
dos NAP aumentam, sobretudo em relação
àquelas dos taxa Alternanthera, Borreria e
Sida. As percentagens das. Asteraceae (13%), Os parasitas nos
das Caryophyllaceae (61%) e das Poaceae coprólitos de Pedra Furada
(mais de 20%) são também significativas
nesses níveis. Dessa forma, pensamos que O estudo parasitológico dos coprólitos de
esse estrato herbáceo é característico da Pedra Furada forneceu importantes informa­

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ções sobre as relações hóspede-parasita, hipótese segundo a qual esses parasitas foram
assim como alguns dados sobre a existência de introduzidos pelas populações vindas da Ásia
novas espécies de vermes parasitas até então pelo estreito de Behring. Por outro lado, a
não identificadas (Chame 1988). existência desses parasitas nos coprólitos
Vejamos alguns exemplos (Fig. 2): humanos é fundamental para que possamos
confirmar a hipótese segundo a qual essas
- A amostra n° 362, pequeno coprólito
levas migratórias humanas teriam chegado à
discóide de 2,5 cm de diâmetro, provavelmente
América do Sul pelo mar (Ferreira et al. 1991,
eliminado por um animal de porte médio. Esse
Chaves 2001). E importante notar que esses
coprólito continha um ovo de Trichuris sp. de
dois parasitas foram encontrados, respectiva­
100,20 X 46,76 pm. Essas dimensões são
mente, no interior de dois coprólitos humanos:
excepcionais para o gênero, o que nos faz
o de n° 352 e o de n° 337.
pensar em espécies ainda não descritas, uma
Além disso, a descoberta de ovos de
vez que, na América do Sul, os ovos dessas
espécies de Trichuris sp. já descritas, são Trichuris nos coprólitos de pequenos roedo­
normalmente menores (Ferreira et al. 1988). res - Kerondon rupestris, nas imediações do
- Os coprólitos da amostra de n° A -114 sítio da Toca do Boqueirão da Pedra Furada,
eram constituídos de várias unidades cilíndri­ datados de 9.000 anos A.P. - e a ausência
cas de 1,5 cm de comprimento por 0,5 cm de desses parasitas nas populações atuais desses
espessura e continham também ovos de roedores evocam uma mudança climática entre
Trichuris sp. Esses coprólitos foram provavel­ 10.000 e 8.000 anos A.P (Araújo et al. 1993).
mente eliminados por roedores cavemícolas De uma maneira geral, a fauna pré-histórica
conhecidos por “mocó” (Kerodon rupestris), encontrada nos arredores do sítio de Pedra
bastante comuns na região. As dejeções atuais Furada parece caracterizar um clima mais
desse roedor são muito parecidas com aquelas úmido que aquele observado nos dias atuais.
encontradas nessa amostra. Podemos, então, Encontramos também algumas características
suspeitar que esses ovos são de uma espécie evocando uma paisagem de savana entrecor­
ainda não estudada, uma vez que esses tada de zonas florestais.
parasitas não são normalmente encontrados
parasitando tais mamíferos de pequeno porte.
As dimensões dos oito ovos encontrados Conclusão
nesses coprólitos (64,88-60,0 pm X 35,0-30,75
pm) não são nem mesmo compatíveis com as Ao final deste trabalho, a partir das
medidas dos hospedeiros encontrados nessa análises polínicas dos coprólitos animais e
localidade, nos dias atuais. humanos, assim como dos outros restos
- A amostra de n° A-358 continha frag­ orgânicos vegetais encontrados no sítio de
mentos disformes de coprólitos de 1 a 2,5 cm Pedra Furada, podemos estabelecer a seguinte
(na sua maior dimensão), que podem, então, hipótese: entre 8.700 e 7.000 A.P, na região
ser atribuídos a animais de tamanho médio a Sudeste do Piauí, houve atenuação da última
grande. No interior desses fragmentos, crise árida holocênica. Nesta época, a paisa­
encontramos ovos de Trichuris sp. com as gem da região de São Raimundo Nonato era
seguintes medidas: 60,12 X 33,4 pm e 53,44 X muito diferente da que conhecemos hoje em
26,72 pm. Apesar de um desses ovos apresen­ dia. Nos diagramas que apresentamos, os
tar dimensões dos ovos de T. gracilis (50-59 registros polínicos mostram uma forte percen­
pm X 23-28 pm), normalmente encontrados nos tagem de taxa arbóreos, assim como de
coprólitos do roedor Dasyprocta agouti associações típicas que confirmam a existên­
(“cotia”), não somos capazes de confirmar a cia, no passado, de uma vegetação do tipo
identificação desses parasitas. cerrado-cerradão. Esses registros revelam
Segundo Confalonieri (1983), a presença também a existência de um clima ligeiramente
de Trichuris trichiura, assim como a de mais frio e menos seco que o clima atual. Os
ancilostomídeos, encontrados nas populações homens que habitavam essa região naquele
humanas pré-colombianas, não confirma a período beneficiavam-se de uma vegetação

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CHAVES, S.A .M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
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Piauí - Brasil. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 70: 103-120, 2000.

Merremia

POACEAE

ASTERACEAE
CUCURBITACEAE
LAMIACEAE
CONVOLVULACEAE
Cyperus

Fig. 2 - Diagrama polínico dos coprólitos humanos do sítio “Pedra Furada”.


Alternanthera

Terminalia
Myrcia type
LEGUMINOSAE
MYRTACEAE
PALMAE

Anacardium
Bauhinia
Euphorbia
SAPINDACEAE
BOMBACACEAE
BIGNONIACEAE
Anadenanthera
Altitude 400 m
Pedra Furada

Cecropia
Alchornea
Caesalpinia
cm p r o fu n d id a d e s

a m o s tr a n° da

d a ta ç õ e s

l it o lo g ia

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CHAVES, S.A .M . Estudo p alinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
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rica e heterogênea, sempre relacionada a um assim como à fauna que lhes foi contemporâ­
ambiente favorável à presença de uma fauna nea. Nessa mesma época, esses paleoíndios já
diversificada. Os pólens identificados nos teriam atravessado as paisagens ocidentais da
permitiram também conhecer qual a estação do Amazônia. Talvez essas populações tenham se
ano em que se dava a floração de algumas encontrado diante de uma escolha capital:
plantas e/ou de determinadas associações permanecer nos cerrados amazônicos; partir
vegetais. em direção de novas fronteiras, como o
A riqueza e a heterogeneidade dessa Nordeste ou o Planalto Central brasileiro; ou
vegetação estava, então, relacionada a um mesmo tomar o caminho em direção ao litoral
índice de chuvas superior a 1.500 mm/ano - e é Sudeste do Brasil. Atualmente, nossos
o que nos fazem pensar as marcas deixadas por conhecimentos sobre esses prováveis movi­
uma antiga e volumosa queda d ’água que mentos de populações pré-históricas são ainda
existiu há milhares de anos no sítio de Pedra escassos. As atuais escavações em andamen­
Furada. Essa queda d’água, hoje extinta, teria, to nos inúmeros sítios de diferentes regiões do
provavelmente, chamado a atenção das Brasil (no Nordeste, na Amazônia, no Planalto
populações humanas e dos animais para esse Central etc.) permitirão obter respostas mais
abrigo. precisas sobre essas rotas migratórias.
E importante também frisar a existência, no A importância da análise palinológica dos
interior da caatinga do Nordeste do Brasil, de coprólitos como uma ferramenta a mais nos
inúmeros morros suficientemente altos que estudos paleoetnológicos e paleoambientais é
permitiriam o estabelecimento de uma vegeta­ indiscutível. Torna-se necessário lembrar o
ção densa e úmida, chamada localmente de caráter inédito e pioneiro dessa pesquisa: pela
brejos. Os brejos, ainda existentes nos dias primeira vez obtivemos dados confiáveis que
atuais, são isolados uns dos outros e também permitirão precisar o paleoambiente holoceno
das grandes áreas de florestas. No interior dos no Sudeste do Piauí. Se outros pesquisadores,
brejos, encontramos as espécies vegetais da anteriormente a nós, demonstraram a existên­
Amazônia, típicas da floresta úmida, como por cia de um quadro climático e vegetacional
exemplo: Gallezia gorarema, Huberia ovalifo- diferente daquele dos dias atuais, foi possível,
lia, Manilkaria rufula, Myrocarpus fastigia- a partir de nosso estudo palinológico, confir­
tus e Phyllostyllon brasiliensis. Durante os mar tais afirmações.
períodos secos, esses “refúgios” demonstram Os coprólitos vêm a ser, assim, objetos
a existência, no passado, de áreas úmidas. imprescindíveis nesse gênero de pesquisa, e, a
A análise polínica dos coprólitos humanos palinologia, uma ferramenta incontornável para
nos permitiu demonstrar uma possível utiliza­ todos aqueles que necessitam aperfeiçoar os
ção medicinal das plantas no período citado conhecimentos sobre a paleovegetação de
(entre 8.700 e 7 000 A.P.). Da mesma forma, a uma dada região. Como já frisamos anterior­
presença, no interior desses coprólitos, de mente, os coprólitos foram as únicas testemu­
taxa pertencentes às famílias Cucurbitaceae, nhas orgânicas que puderam resistir à acidez
Fabaceae, Chenopodiaceae, Convolvulaceae e do solo do sítio de Pedra Furada.
de outros taxa “hortícolas” indica, como No final deste trabalho, esperamos ter
vimos, uma utilização alimentar dessas plantas. contribuído e também apresentado novos
Ao terminar este artigo, gostaríamos de dados sobre a pré-história dessa região do
enfatizar algumas questões de âmbito geral Nordeste do Brasil. No nível paleoetnológico,
que merecem destaque. São aquelas relaciona­ conseguimos demonstrar a provável utilização
das às possíveis rotas migratórias das popula­ de certas plantas selecionadas pelas popula­
ções pré-históricas do Brasil. Como demons­ ções pré-históricas do Piauí. No nível paleocli­
tramos, há 8.000 anos, no Nordeste do Brasil, màtico e paleoambiental, esperamos, através
uma rica vegetação caracterizava um novo de nossos resultados, ter aberto novas
período na evolução do ambiente regional. Foi perspectivas de trabalho, no que diz respeito
ela que constituiu um verdadeiro e substancial ao conhecimento do paleoambiente da região
aporte nutricional aos paleoíndios da região, Nordeste do Brasil durante o Holoceno.

118
CHAVES, S.A .M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
Sítio da Pedra Furada. Contribuições paleoetnológicas, paleoclim áticas e paleoambientais para a região sudeste do
Piauí - Brasil. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 103-120, 2000.

CHAVES, S.A.M . Pollen analysis o f holocene pre-historic coprolithes collected at


“Toca do Boqueirão do Sítio da Pedra Furada”. Palaeoethnological, palaeocli-
m atological and palaeoenvironmental contributions for the Southeastern Region
o f Piauí State - Brazil. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
10: 103-120, 2000.

ABSTRACT: This work presents the results of the pollen analyses made
on animal and human coproliths collected from the rock-shelther “Toca do
Boqueirão do Sítio da Pedra Furada”. These coproliths were identified by
researchers from the National School of Public Health (ENSP) and were treated
according to the methodology described by Chaves (1994, 1996, 1997) and
Chaves & Renault-Miskovsky (1996). The results have generated data which
permited us to elaborated a palaeoclimatological and palaeoenvironmental
scene of the studied region. From the palaeoethnobotanical point of view, the
results from the pollen analysis in human coproliths allowed us to demonstrate
the variety of plants used by the prehistoric men who inhabited the region
around 8.000 years B.P..

UNITERMS: Coprolithes - Pollen analyses - Brazil - Palaeoenvironment.

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119
CHAVES, S.A.M . Estudo palinológico de coprólitos pré-históricos holocenos coletados na Toca do Boqueirão do
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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 2 de agosto de 2000.

120
Rev. do Museu d e A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 121-143, 2000.

ARQUEOLOGIA DO CONTEXTO DO RIO JAURU (MT)


IMPACTADO PELO GASODUTO BOLÍVIA - MATO GROSSO

Gilson Rodolfo Martins*


Emilia Mariko Kashimoto**

MARTINS, G.R.; KASHIMOTO, E.M. Arqueologia do contexto do rio Jauru (MT)


impactado pelo gasoduto Bolívia-Mato Grosso. Revista do Museu de Arqueologia e
E tnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

RESUMO: Este artigo objetiva compreender as relações existentes entre os


vestígios arqueológicos coletados nas pesquisas de resgate arqueológico realiza­
das na região do médio curso do rio Jauru, Estado de Mato Grosso, Brasil, e os
índios Chiquito, atualmente habitantes na região.

UNITERMOS: Resgate Arqueológico - Rio Jauru, Estado de Mato Grosso -


índios Chiquito.

Introdução aproximadamente. Iniciando-se na divisa com a


Bolívia, nas proximidades da cidade boliviana
Com vistas a atender a crescente demanda de San Matias, percorre, em seguida, os municí­
por energia elétrica no Estado de Mato Grosso pios mato-grossenses de Cáceres, Poconé, Nossa
estão em execução projetos de construção de Senhora do Livramento, Várzea Grande e
unidades geradoras, tais como a Usina Termelé­ Cuiabá. Em boa parte do percurso, o traçado é
trica de Cuiabá ( UTQ que utilizará como retilíneo e paralelo à rodovia BR 070, destacan­
combustível o gás natural proveniente das jazidas do-se, como exceção, o trecho da Província
bolivianas. Este empreendimento, sob a responsa­ Serrana de Cáceres.
bilidade da empresa Gasocidente do Mato Grosso A tubulação, com um diâmetro de dezoito
Ltda. (Gasocidente), motivou a construção de um polegadas, foi depositada em uma vala de oitenta
centímetros de largura e um metro e meio de
gasoduto interligando as regiões de Santa Cruz de
la Sierra (Bolívia) e de Cuiabá. profundidade. A faixa de trabalho, quando por
No trecho brasileiro desse gasoduto, o ocasião da implantação da obra, possuía uma
largura de trinta metros. Nas travessias dos
transect projetado possui 267 km de extensão,
quatro rios principais da região - Jauru, Padre
Inácio, Paraguai e Cuiabá - não foram abertas
valas, sendo os tubos instalados sob os leitos
(*) Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do Departa­ fluviais, por meio da perfuração direcional,
mento de História do Centro Universitário de Aquidauana
preservando-se, assim, os cursos d’água e suas
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
(**) Núcleo de Pesquisas Arqueológicas do Museu Dom margens.
Bosco da Universidade Católica Dom Bosco, Campo Gran­ Em atendimento à legislação em vigor, a
de/MS. empresa (Gasocidente) contratou a FAPEC -

121
MARTINS, G.R.; KASHIMOTO, E.M. Arqueologia do contexto do rio Jauru (MT) impactado pelo gasoduto Bolívia-
Mato Grosso. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

Fundação de Apoio à Pesquisa, Ensino e • segmento da Província Serrana em


Cultura, sediada em Campo Grande, Mato Cáceres;
Grosso do Sul, para a elaboração e execução de • vale do rio Sangradouro;
um projeto de mitigação dos efeitos da constru­ • depressão cuiabana.
ção desse gasoduto sobre o patrimônio arqueoló­
Após a sub-regionalização do traçado,
gico em Mato Grosso. A FAPEC, por sua vez,
aplicou-se uma metodologia de levantamento
estabeleceu como executante dos estudos o
arqueológico apropriada para empreendimentos
Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do
lineares como é o caso de gasodutos, oleodutos e
Departamento de História do Campus de
rodovias. Utilizando-se de material cartográfico,
Aquidauana da Universidade Federal de Mato
foram selecionados os pontos preferenciais para
Grosso do Sul (LPA). Essa Fundação já havia
a prospecção e sondagem arqueológica, isto com
participado dos trabalhos de salvamento arqueo­
base num referencial de variáveis ambientais
lógico na área do Gasoduto Bolívia-Brasil, em
favoráveis à ocorrência de sítios arqueológicos
Mato Grosso do Sul.
(Kashimoto 1997, Martins & Kashimoto 1998).
Assim, originou-se o “Projeto Salvamento
Os procedimentos adotados consistiram em
Arqueológico na Área Impactada pelo Gasoduto
entrevistas com moradores, vistorias de superfí­
Bolívia-Mato Grosso (trecho brasileiro)” -
cie na “faixa de serviço” e proximidades,
PSAGBM - sob a coordenação do arqueólogo
abertura de furos de sondagem no interior da
Dr. Gilson Rodolfo Martins - o qual foi devida­
“faixa de serviço” e, principalmente, onde seria
mente autorizado pelo Instituto do Patrimônio
aberta a vala, realizaram-se alinhamentos de
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por
furos de sondagem, espaçados a cada 5 m, com
meio da Portaria nal 1 de 04/03/99 (D.O.U. 05/
1,5 m de profundidade. Além das atividades
03/99).
anteriores, efetuou-se um treinamento dos
Os trabalhos de campo, em sintonia com o
técnicos e trabalhadores das frentes de obra, com
desenvolvimento das obras, foram realizados
o objetivo de instruí-los sobre a importância da
durante o ano de 1999, abrangendo levantamen­
preservação de recursos arqueológicos e como
to, prospecção, resgate e monitoramento.
proceder no caso de verificarem a ocorrência de
No PSAGBM foi efetuada uma análise das
qualquer vestígio durante os trabalhos de
distintas paisagens percorridas pelo traçado do
implantação da obra.
gasoduto, isto como forma de distinguir os
Ao todo foram examinados 125 pontos, dos
cenários ambientais que teriam sido o suporte
quais 26 eram sítios arqueológicos. Desses
para o desenvolvimento cultural de grupos
sítios, 20 foram encontrados no âmbito deste
humanos pretéritos. Esse estudo forneceu
projeto, sendo que 11 estavam na área direta e
critérios para o planejamento dos trabalhos de
indiretamente impactada pelo empreendimento.
levantamento arqueológico. Foram estabelecidas
Sempre que os sítios localizados encontravam-se
as seguintes subunidades paisagísticas:
em pontos afetados pelo empreendimento, foi
• segmento entre a fronteira com a Bolí­ efetuado o desvio do traçado do gasoduto.
via e o interflúvio anterior à margem Quando, por razões técnicas, não foi possível o
direita do riacho São Sebastião; desvio, procedeu-se ao resgate arqueológico, o
• segmento entre as margens do riacho São que ocorreu em 5 sítios. Considerando-se que o
Sebastião e as margens do Jauru, traçado, no trecho brasileiro, possui uma
Distrito de Porto Limão; extensão de 267 km, a metodologia adotada pelo
• segmento entre o Distrito de Porto Li­ PSAGBM abordou, em média, um ponto a cada
mão e o início do pantanal do rio Padre 2,1 km. As margens de todos os cursos fluviais
Inácio; interceptados pelo gasoduto, mesmo os de menor
• segmento entre o pantanal do rio Padre porte, foram examinadas por meio de vistorias
Inácio e os pantanais das duas margens de superfície e sondagens na subsuperfície. O
do rio Paraguai; mesmo procedimento foi adotado em outros
• segmento entre a borda esquerda do pan­ locais de relevância arqueológica e paisagística.
tanal do rio Paraguai e a base ocidental As subunidades ambientais em que se
da serra de Piraputanga; observou maior fertilidade arqueológica foram o

122
MARTINS, G.R.; KASHIMOTO, E.M. Arqueologia do contexto do rio Jauru (MT) impactado pelo gasoduto Bolívia-
Mato Grosso. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 70: 121-143, 2000.

contexto do rio Jauru e a área entre o rio Para­ obra. As pesquisas foram executadas por um
guai e a Província Serrana de Cáceres, registran­ grupo de trabalho multidisciplinar sob a coorde­
do-se, nesses locais, a ocorrência de sítios pré- nação da Profa. Dra. Joana Aparecida Fernandes
coloniais e históricos, estes últimos localizados da Silva da UFMT - Universidade Federal de
na área serrana e também nas proximidades de Mato Grosso. Esses estudos geraram um relató­
Cuiabá. rio intitulado “Estudo Etno-Histórico e Pesquisa
Este artigo aborda, especificamente, a região de Campo de Comunidades Chiquitanas na Área
do médio curso do rio Jauru. Para identificar e de Influência do Gasoduto Bolívia - Mato
tentar compreender quem foram os produtores Grosso”, o qual passou a integrar o Projeto
dos vestígios arqueológicos localizados durante Básico Ambiental-PBA (Gasocidente/Prime,
o desenvolvimento do PSAGBM, utilizou-se, 1998) com o objetivo de obter-se a licença
preliminarmente, uma leitura regressista sobre o ambiental prévia para a implantação da obra.
processo histórico de povoamento humano na Oficialmente, segundo o estudo acima
área afetada pela construção do gasoduto. Dessa citado, hoje, no sudoeste de Mato Grosso,
forma, na tentativa de verificar se existe alguma existem as seguintes Terras Indígenas (TI): TI
relação arqueológica entre os índios que, no Umutina, localizada no município de Barra dos
momento, vivem no sudoeste mato-grossense e Bugres a 80 km ao norte do traçado do gasoduto;
os sítios arqueológicos localizados pelos 77 Perigara, comunidade de índios Bororo,
trabalhos do PSAGBM, partiu-se de uma caracte­ localizada a 115 km ao sul do traçado; 77 Tereza
rização e diagnóstico da atual realidade etnográ­ Cristina, comunidade de índios Bororo, localiza­
fica da área influenciada pela obra. Com o da a 120 km ao sul do traçado; 77 Figueiras,
mesmo objetivo, efetuou-se um levantamento comunidade de índios Paresi, localizada a 160
das principais fontes bibliográficas produzidas km ao norte do traçado e 77 Sararé, comunidade
por cronistas, no passado, e ainda uma revisão de índios Nhambiquara, localizada a 180 km a
da bibliografia etno-histórica regional. noroeste do traçado. Segundo o mesmo estudo
Sendo a cerâmica o vestígio numericamente nenhuma dessas comunidades indígenas sofrerá
predominante e mais conservado da cultura qualquer tipo de interferência direta ou indireta
material das populações indígenas pré-coloniais com a construção do gasoduto, devido à distân­
dessa região de Mato Grosso, a mesma foi usada cia que essas T h se encontram da área influencia­
como o referencial principal para se tentar da pelo empreendimento.
estabelecer um vínculo entre os dados arqueoló­ Por outro lado, o grupo de trabalho acima
gicos coletados pelo PSAGBM e o processo referido identificou a presença de 20 comunida­
etno-histórico do espaço percorrido pelo gaso­ des de índios Chiquito na área fronteiriça entre
duto. No entanto, outros itens da cultura material Mato Grosso e Bolívia, no segmento Casalvasco/
pretérita indígena devem ainda contribuir na Corixa Grande (MT), onde o gasoduto, proveni­
identificação cultural dos produtores desses ente de San Matias (Bolívia), penetra em
vestígios, entre eles líticos, sepultamentos e território brasileiro. Dessas comunidades, 11
adornos. estão localizadas a menos de 60 km de distância
do gasoduto, totalizando, aproximadamente, 650
pessoas (Gasocidente/Prime, 1998).
A atual realidade etnográfica regional No Oriente Boliviano vive, atualmente, uma
população superior a quarenta e quatro mil
Com vistas a detectar, no presente, a índios Chiquito, distribuídos por 323 comunida­
existência de índios na área a ser impactada des localizadas no Departamento de Santa Cruz,
direta ou indiretamente pela obra, a Gasocidente, integrando, em termos de etnologia territorial o
empresa responsável pela obra do gasoduto, Etnoconjunto Del Oriente (que abarca todas as
contratou os serviços especializados de consul­ Províncias de Santa Cruz, exceto a de Cor­
toria técnica-científica da PRIME Engenharia. dillera) (Cimar 1996).
Os trabalhos de levantamento etnográfico, em Quanto à presença de outras etnias indíge­
campo, foram realizados em novembro de 1998, nas, nas proximidades da área afetada pelo
sem se limitar à área afetada diretamente pela gasoduto, o grupo de trabalho acima citado

123
MARTINS, G.R.; KASHIMOTO, E.M. Arqueologia do contexto do rio Jauru (MT) impactado pelo gasoduto Bolívia-
Mato Grosso. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

localizou isoladamente algumas pessoas, que tados separan esta provincia de la de


alegaram ser descendentes de índios Bororo ou Moxos, algo al norte del pais de los gua-
Guató. As fontes bibliográficas consultadas rayos. Al oeste, el curso del río Grande
referiram-se à existência, no início deste século e sirve de límite com la provincia de Santa
em momentos anteriores, de comunidades de Cruz de la Sierra. Finalmente, al sur se
índios Bororo no município de Cáceres e nas extienden las tierras deshabitadas del Gran
proximidades de San Matias, hoje extintas. As Chaco, que todavía no pertenecen a ningún
mesmas fontes citaram grupos pequenos de gobierno. ” (p. 1241)
índios Guató vivendo, no início do século, no “Circunscripta de esta manera, la
Pantanal do rio Paraguai, em Cáceres, porém provincia de Chiquitos está rodeada de ríos
igualmente desaparecidos há décadas. Portanto, y de pantanos, en medio de los cuales
em termos etnográficos pode-se considerar que corren cadenas de colinas completamente
atualmente, na área influenciada pelo gasoduto, aisladas en la dirección nornoroeste y
só há comunidades chiquitanas. subsudeste. Esas colinas, que forman mi
sistema geológico chiquitano y que dominan
desde algunos centenares de metros las
Resumo etno-histórico da presença llanuras circundantes, son también los
dos índios Chiquito em Mato Grosso puntos culminantes, las cumbres que
señalam la división entre las dos grandes
A história dos índios Chiquito pode ser vertientes del Amazonas y del Plata ”.
dividida em quatro partes: a primeira, antes da “Las partes montañosas de la provincia
chegada dos espanhóis; a segunda, quando do y los terrenos colindantes están libres de
início da colonização até fins do século XVII; a inundaciones; son las tierras más fértiles
terceira, o período jesuíta de 1692 a 1767; a del mundo. El resto es parcialmente
quarta, o período posterior à saída dos jesuítas anegadizo en la estación de las lluvias; pero
até os dias de hoje. com excepción de la laguna de Yarayes,
O termo chiquitos (pequenos) é a denomina­ formada por los desbordes del río Para­
ção que os colonizadores castelhanos do Para­ guay, todas las tierras se secan en invierno
guai Colonial aplicaram às diversas tribos, y dan praderas excelentes para la cría de
distintas entre si, que habitavam o oriente da ganado. Así, pues, la provincia entera, de
Bolívia, sobretudo, entre os paralelos 14° e 21° unas 18.770 leguas cuadradas, podría ser
sul e 58° e 65° oeste, numa zona de transição utilizada com provecho para la agricultu­
entre o Chaco Boreal e as florestas do contexto ra!...).” (P- 1245)
sul-amazônico. No Brasil, o gasoduto está
Nos contornos geográficos fixados por
localizado entre os paralelos 15° e 16° sul.
D’Orbigny, a região compreendida entre o rio
Ao percorrer a região do Alto Paraguai, em
Jauru e a fronteira Brasil/Bolívia, seccionada
1832, D’Orbigny (1945) descreveu sintéticamen­
pelo gasoduto, integrava a paisagem típica da
te o espaço geográfico da chamada Província
área chiquitana. Pelo relato acima pode-se
Chiquitana da seguinte maneira:
perceber também que havia por parte das
“(...)Esta comarca, (...) está limitada al comunidades integrantes do complexo chita-
este por el curso del Paraguay y por las quitano a deliberada intenção de evitar os
posesiones brasileñas de la provincia de pantanais impróprios para o desenvolvimento
Cuyaba o de Matto Grosso; al norte das atividades agrícolas. Nota-se também que
(siguiendo los límites de los tratados de esse contexto ambiental configura-se como um
1750 y 1777 entre España e Portugal) por divisor de águas entre as bacias hidrográficas
una línea que parte de la conjunción de los amazônica e platina, fato ambiental que deve ter
ríos Jauru y Paraguay, en dirección a tido um grande significado nos movimentos
Matto-Grosso, y más allá por una segunda migratórios pré-coloniais, conferindo, portanto, à
línea que arranca desde esse punto hasta la região, o caráter multicultural registrado por
confluencia de los ríos Verde y Barbado. Al ocasião da chegada dos colonizadores ibéricos,
noroeste, selvas inmensas o esteros deshabi­ no século XVI.

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A origem do etnônimo Chiquito provém do Españoles en el siglo XVI y antes, o simultá­


fato de que a altura da entrada das casas habita­ neamente por los emigrantes guaraníes.
das por esses índios era muito baixa, isto como Fueron precisamente los Guaraníes quienes
forma de evitar a entrada de mosquitos e também com su paso de tránsito, sus desplaza­
evitar a surpresa de ataques noturnos de índios mientos irregulares en la tierra del gentio
inimigos, daí os primeiros observadores cas­ desconocido y com definitivos asientos
telhanos deduzirem que os seus ocupantes conquistados, provocaron el movimiento de
deveriam ser de baixa estatura. muchas tribus, éstas también buscando
Esses índios formavam um mosaico etno­ novos lugares libres y no poseídos o
gráfico constituído por mais de 40 povos disputados. La movilidad étnica de los
indígenas diferentes entre si, cujos grupos mais pueblos culturalmente neolíticos, sobrepo­
conhecidos eram os Zamuco, Paikoneka, niendo y fusionándose a veces, en el área
Saraveka e Paunaka, filiados ao tronco lingüís­ entre los rios Guaporé, S. Miguel y Para­
tico Aruak, e os Kuruminaka, Kurave, Koraveka, guay, impide com frecuencia la identi­
Tapii, Korokaneca, Manacica, falantes de ficación etnolinguística: todas las tribos
línguas aparentadas com o Bororo (MMA 1997). manifestaban una abierta política integra-
Segundo Maldi (1989), estas últimas línguas cionista por una parte, y por outra, impo­
seriam integrantes de um subgrupo lingüístico niendo su lengua mutuamente entre los
denominado Otukeano. Na opinião de Métraux imediatos vecinos periféricos. Las expedi­
(1942), os Otuke, Kovareka e Kuruninaka ciones de los asunceños primero y de los
formavam um grupo lingüístico isolado, talvez santacruceños luego influyeron aún más en
relacionado ao Bororo. Os Otuke foram conside­ la compleja dispersión geográfica de las
rados por Susnik o ramo mais ocidental dos tribus; se creaban despoblados y zonas
Bororo. Havia ainda os falantes do dialeto Tao, improductivas, por onde ni los Guaraníes
que englobava outros 14 grupos e ainda o dialeto pasaban, sabiendo la falta de víveres;
Pinoco, falado por outros 8 grupos indígenas. dichas zonas servían muchas veces de
Segundo Cimar (1996), atualmente todos os refugio a las huidizas protopoblaciones de
remanescentes desses grupos estão incluídos na cultura paleolítica, éstas de por sí com un
família lingüística denominada Chiquito, transhabitat marginado a causa de la
embora, ao norte de Concepción de Nuflo de dispersión de los amazónicos rumbo r.
Chávez, ainda restem 2 comunidades de índios Madeira y sus grandes afluentes; no es por
Paunaka que continuam falando línguas filiadas extraño que la documentación del siglo XVI
ao tronco Aruak. habla com preferência de los pueblos de
As tribos acima citadas, apesar de possuírem cultura neolítica. ” (p. 33)
línguas e costumes culturais específicos, tinham
O texto acima retrata a dificuldade em se
em comum o fato de serem formadas por povos
construir modelos explicativos para essa realida­
agricultores voltados para o cultivo do milho, da
de, sejam estes de caráter lingüístico, arqueoló­
mandioca, do amendoim, da abóbora, do
gico, etno-histórico ou etnológico. Portanto, no
algodão, entre outros, e que também caçavam e
atual estágio do conhecimento, as conclusões
pescavam. Segundo as crônicas históricas
ficam ainda restritas ao campo das hipóteses.
seiscentistas esses índios, embora não conheces­
Os Chiquito não eram canoeiros, seus
sem a metalurgia, utilizavam diversos objetos de
deslocamentos se davam no interior dos limites
metais, os quais adquiriam em trocas com tribos
geográficos da Província, evitando as áreas
“neolíticas” subandinas. Como outras tribos
pantanosas do rio Paraguai, a aridez do solo do
chaquenhas, os Chiquito eram arquinimigos dos
Chaco Boreal, bem como a área subandina
índios Guarani do Paraguai Colonial.
influenciada pelo Império Inca.
Segundo Susnik (1978):
Os primeiros relatos etnográficos sobre
“Bajo el término “Chiquitana” se esses índios foram produzidos no século XVI,
entiende el área que se extiende desde la durante o processo de descobrimento e reconhe­
província de Xarayes hasta la província de cimento geográfico da bacia do Alto Paraguai,
Sta. Cruz de la Sierra, recorrida por los destacando-se entre eles os elaborados por

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Cabeça de Vaca e Schmiedl. O contato pioneiro as várias hordas comprendidas sob o nome
de europeus com alguma tribo chiquitana foi o genérico de Manacicas. Coberta de espes­
efetuado por Aleixo Garcia, no início da segunda sas florestas se achava parte de seu país, e
década do século XVI, com os índios Tara- em vastas planícies a maior parte do ano
pecoci. consistia a outra, pelo que não podia haver
Alguns relatos de cronistas descrevem a falta de caça e de peixe, nem dos frutos que
existência de grandes aldeias, às vêzes subdivi­ a terra produz. Fértil é o solo e abundantes
didas em bairros. Conforme Maldi (1989), os de ordinario as colheitas.(...) Conta-se que
índios Chiquito habitavam aldeias cercadas por eram as suas aldeias edificadas com algum
paliçadas, destacando-se, no conjunto, a casa dos gosto, regulares as rúas e bem proporciona­
solteiros. Suas aldeias possuíam chefias indepen­ das as praças. Habitavam o cacique e os
dentes e “templos” ou “casas de bebidas” onde maiorais edificios grandes, divididos em
consumiam coletivamente a chicha. Isto pode diferentes aposentos, que também serviam
ajudar a compreender a ocorrência arqueológica para reuniões públicas, banquetes e
de grandes vasilhas de cerâmica que, segundo os templos. Tão pouco eram mal construídas
cronistas, seria uma cerâmica de alta qualidade. as casas dos particulares, apesar de ali ser
Os homens usavam tembetás enfeitados com o machado de pedra o único instrumento
penas sob o lábio inferior; os cabelos eram conhecido. Hábeis tecelãs eram as mulhe­
mantidos longos e atados à nuca. Tinham como res, cuja obra de olaria, de singular
armas flechas envenenadas e bordunas. Para os perfeição, tinia como metal ao tocar-se.
espanhóis que percorreram a região no século Deixava-se ficar o barro, antes de servir,
XVI, os “chefes” das aldeias chiquitanas muito tempo a amadurecer, sendo este o
pareciam ser uma espécie de “reis”, os quais principio que os chins se diz que têm
concentravam, conforme o tamanho da aldeias, enterrado muitos anos o que destinam ao
grande poder. fabrico de sua louça mais fina. ” (p. 105/6).
No olhar de D ’Orbigny (1945):
Em 1547, Ñuflo de Chávez, seguido por 223
“Estaban gobernados por una muche­ espanhóis e mais de 3.500 índios Guarani,
dumbre de jefecillos o Iriabos, elegidos por iniciou a colonização da região do “Mar de
el consejo de ancianos, y conduciendo cada Xaraiés”, formada por grandes lagoas no
uno su pequeña tribu, al mismo tiempo que Pantanal do Alto Paraguai. Esta área era habitada
ejercían las funciones de médicos. A menudo por tribos denominadas Xaraié, porém essa
atacaban a sua vecinos com el único objeto expedição desviou-se desses índios e seguiu em
de labrarse una reputación de bravura. Se direção ao Peru, entrando em território Chiquito.
frecuentaban poco y rara vez hacían causa No ano de 1550, a cidade de Santa Cruz de
comum; diseminados en centenares de la Sierra foi fundada pelo conquistador acima
secciones, no formaban, hablando com citado em local próximo à atual San José de los
exactitud, un cuerpo nacional. Chiquitos. Alguns anos depois, em 1591,
Reducíase su religión a la creencia en ocorreu o translado dessa cidade para o assenta­
outra vida, lo que motivaba la costumbre, mento atual. Entre esta última data e a fundação
generalmente extendida entre ellos, de da primeira redução jesuítica, 1692, quase não
enterrar armas y víveres com los muer­ houve contato entre os índios e as frentes
tos. (...)”. (p. 1247) colonizadoras ibéricas na área chiquitana.
Ao iniciar-se o século XVII, o modelo
Na sua expressiva obra sobre a Historia do
colonizador castelhano já estava consolidado em
Brasil, escrita no início do século XIX, Southey
toda a bacia Platina, materializando-se por meio
(1981) produziu um relato etnográfico onde
da fundação de cidades como Buenos Aires,
aborda aspectos da cultura material dos indios
Assunção, Santa Cruz de la Sierra, Santiago de
Manacica, constituindo-se num trabalho de
Xerez, entre outras. Ao contrário da região
relevante interesse etno-arqueológico:
andina, onde a economia colonial firmou-se com
“Do mesmo tronco, como as que o incremento das atividades de mineração de
compunham as missões dos Chiquitos, eram metais preciosos, na bacia Platina o comércio e

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sobretudo a produção agrícola de gêneros Na segunda metade do século XVIII, as


tropicais (algodão, farinhas, entre outras) foi a missões, na região dos índios Chiquito, reuniam
atividade econômica predominante. Devido à em tomo de vinte mil índios catequizados.
escassez de capitais e o relativo isolamento dessa Segundo Maeder (1997):
área da economia colonial castelhana, na
“Los pueblos se habían trazado según
América do Sul a mão-de-obra empregada na
el modelo tradicional y com poca diferencia
produção agrícola e têxtil colonial foi essencial­
respecto de las misiones de guaraníes. En lo
mente indígena. Apesar de compulsório, o
que hace a su economía, el régimen adop­
trabalho indígena não era tipicamente escravo
tado fue de susbsistencia y de solidaridad
como na colônia luso-brasileira, porém, da
interna. La producción agrícola de granos y
mesma forma, indispensável para a viabilização
frutos, la ganadería de lanas, la recolección
do sistema colonial mercantilista. No Paraguai
de cera y miel y la elaboración de lienzos y
Colonial, o regime de trabalho adotado era o das
hamacas, constituían la base de su produc­
encomiendas, o que é o mesmo que dizer
ción. Algunos excedentes les servían para la
compulsório.
adquisición de herramientas, ornamentos
A necessidade de mão-de-obra em larga
para el culto, u otros bienes que se procura­
escala, como condição para a viabilização do
ban a través del oficio jesuítico del Colegio
modelo colonizador castelhano, implicou
de Potosí. ” (p. 275)
domesticação e submissão dos indígenas às
diretrizes dos colonos ibéricos. A ordem econô­ Essas expressivas concentrações de índios
mica estabelecida, associada às questões geopo­ “docilizados” e aptos ao trabalho na economia
líticas (disputas territoriais entre metrópoles) fez agrícola colonial despertaram não só a cobiça
com que a coroa espanhola fomentasse a vinda, dos colonos paraguaios/crucenhos como também
para o Paraguai Colonial, de missionários dos bandeirantes paulistas, os quais assediaram
católicos com o escopo de inserir os índios na diversas vezes as reduções.
nova ordem em implantação. A catequese seria Em 1694, uma bandeira comandada por
um instrumento sutil de dominação, substituindo Antonio Ferraz de Araújo e Manuel de Frias
a violência física pelo emprego da violência atacou a região, enfrentando primeiramente os
cultural, resguardando dessa forma os estoques Tao, entre os quais fizeram vários prisioneiros,
de força de trabalho. para em seguida marcharem sobre os Piñoco. A
Assim, em fins do século XVI, estabelece­ reação inesperada por parte dos índios fez com
ram-se no Paraguai Colonial as primeiras frentes que os dois comandantes paulistas caíssem em
catequistas, sobretudo as Missões Jesuíticas. combate, não restando da bandeira mais que
Inicialmente foram instaladas em Assunção, em alguns sobreviventes. Após essa fracassada ação
seguida, no início do século XVII, na área do bandeirante, puderam os índios chiquitanos
atual oeste paranaense (Missões do Guairá), a gozar de relativa tranqüilidade em relação aos
seguir na região do pantanal sul-mato-grossense, ataques paulistas, pois estes, a partir da desco­
em 1632 (Missões do Itatim) e no oriente berta do ouro em Minas Gerais, progressivamen­
boliviano (Moxos) em 1682. Após vários te alteraram sua perspectiva colonial privilegian­
ensaios, foi fundada entre os índios Moremono a do a mineração.
redução de Nossa Senhora do Loreto, na margem Como havia uma diversidade cultural
esquerda do rio Ivari, afluente do Mamoré. Em significativa entre os índios chiquitanos, sobretu­
1692, o missionário jesuíta José Arce fundou a do lingüística, os jesuítas, a exemplo do que
primeira redução na região chiquitana, junto ao fizeram no Brasil, criaram uma língua geral para
subgrupo Piñoco, ou seja, a Missão de São facilitar e universalizar a catequese. Este fato
Francisco Xavier, próxima ao rio San Pedro. Em tem implicações até os dias de hoje, inclusive no
1696, o padre jesuíta Juan Batista de Zea fundou panorama etnográfico do sudoeste mato-
a Missão de São Rafael. Em 1706, foi fundada a grossense. Nos trabalhos de campo na área de
Missão de San José, que viria a ser a capital de influência do gasoduto, a equipe de antropólogos
Chiquitos. Entre 1692 e 1760, ao todo, foram a serviço da Gasocidente/Prime (1998), observou
fundadas dez missões na Província de Chiquitos. que as comunidades chiquitanas utilizam o

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linguará - fala remanescente da língua geral As pendências fronteiriças entre as duas


constituída pelos jesuítas no tempo das missões. colônias ibéricas, no Alto Paraguai, agravadas
A capital da área missioneira chiquitana era pela ocupação desordenada e expansionista da
a Missão de São José, localizada na altura do mineração em Mato Grosso, acirrou as relações
paralelo 14° 4 ’, próxima à antiga cidade de entre os sistemas coloniais luso-castelhanos.
Santa Cruz de la Sierra. Com evidentes razões geopolíticas, o Governa­
Outras reduções, devido ao isolamento e à dor da Capitania de Mato Grosso, D. Luiz
distância de Santa Cruz de la Sierra, mantinham Albuquerque de Melo e Cáceres fundou, em
relações comerciais estreitas com os colonos 1778, a localidade urbana de Vila Maria do
portugueses estabelecidos no sudoeste de Mato Paraguai na margem esquerda do rio Paraguai,
Grosso, apesar da ilegalidade desses vínculos na posteriormente, elevada à condição de cidade
ordem jurídica colonial. O inverso também era com o nome de São Luiz de Cáceres.
verdadeiro. Para constituir e engrossar esse pioneiro
Com a expulsão dos jesuítas dos domínios núcleo populacional, D. Luiz Albuquerque
coloniais espanhóis e portugueses, no início da recrutou algumas dezenas de índios fugitivos das
segunda metade do século XVIII, a tutela sobre Missões de Chiquitos e as fixou no novo
as missões passou para as instituições seculares povoado, sobretudo porque os índios naturais da
do governo colonial. Em decorrência disso, a região eram arredios e “selvagens” se compara­
pressão econômica sobre as reduções, enquanto dos aos índios Chiquito já “aculturados” pela
reservas de mão-de-obra, acentuou-se. Os rigores ação missionária. Ainda obedecendo a essa
do regime de trabalho fizeram com que muitos perspectiva, D. Luiz Albuquerque, mandou
índios chiquitanos abandonassem as missões, adquirir uma extensão de terra na margem direita
buscando refúgio nas matas ou mesmo em Mato do rio Paraguai, defronte à Vila Maria, onde
Grosso colonial, onde eram acolhidos de forma constituiu uma fazenda para a criação de gado,
oportunista pelas autoridades portuguesas. A denominada Fazenda Caiçara, cuja mão-de-obra
elevação de Mato Grosso à condição de Capita­ era formada basicamente por índios Chiquito
nia, em 1748, e o apogeu do ciclo minerador, refugiados da região das missões.
reforçaram essa atração demográfica. O fato histórico acima narrado tem particu­
A fundação de Vila Bela da Santíssima lar interesse para o PSAGBM, pois durante os
Trindade, em 1749, como capital de Mato trabalhos de levantamento arqueológico que
Grosso, na cabeceira do rio Guaporé, criou precederam as obras de implantação do gaso­
tensão na fronteira. O contrabando colonial se duto, a equipe técnico-científica do PSAGBM
intensificou, pois as Missões de Chiquitos realizou prospecções no entorno da Baía
estavam mais perto da zona de garimpo do que Caiçara, em Cáceres, e aí encontrou diversos
de São Paulo. A Missão de Santana, próximo à fragmentos de cerâmica arqueológica, sendo que
um desses fragmentos apresenta decoração
atual San Matias, era habitada pelos índios
plástica feita pela impressão de cordinha de
Saraveka (Aruak) e constituía-se na mais
caraguatá, o que não é comum na região, mas é
próxima de Mato Grosso. Segundo Maldi
típico da cerâmica arqueológica e etnográfica
(MMA, 1997), teriam sido os índios Saraveka os
chaquenha. Segundo Susnik (1978):
que migraram para Cáceres. As outras reduções
próximas a Mato Grosso eram San Rafael, San “El estilo decorativo por impresión de
Miguel e San Ignácio. O fluxo de mercadorias cuerda de caraguatá es un elemento
contrabandeadas era tão regular que havia cerámico neolítico intruso en el área
provocado a abertura de um caminho terrestre, altoparaguayense, siendo sus portadores
passando pelo rio Jauru, interligando as duas los Chané-Arawak subandinos, inmi­
realidades coloniais. Avolumava-se, assim, o grantes avasallados por los Mbayá-
ritmo migratório de índios para o território Guaycurúes;(...) Es probable que tal
brasileiro, engrossando dessa forma os contin­ cerámica caracterizara también a las
gentes de mão-de-obra que deveriam abastecer poblaciones cultivadoras de origen Arawak
com gêneros de primeira necessidade as áreas de en los limites de las rutas transchaqueñas,
garimpo. seguidas por los expedicionarios asun-

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ceños hacia los Tamacocis de las llanuras “O povo de S. Matias fica a sete
del R. Guapay” (p. 16) quilômetros e meio da Corixa do Destaca­
mento. E uma pequena povoação de mais ou
O local acima foi registrado pelo PSAGBM
menos duzentas almas, índios quase todos
como sitio arqueológico Baía Caiçara 1, sendo
chiquitanos, e alguns bororós. Compõe-se,
que os vestígios cerâmicos aí coletados podem
como todas as missões jesuíticas, de uma
estar correlacionados com esse contexto históri­
praça retangular, tendo numa das faces a
co, pois sabe-se que os indios Saraveka, proveni­
igreja e nas outras as habitações. ”(pag.
entes da Missão de Santana, eram descendentes
384/5)
de índios Aruak. Pode-se apontar como reforço a
“São estas bandas povoadas pelos
essa hipótese o fato de que ainda hoje, conforme
restos das nações dos chiquitos e bororós,
o que foi constatado pelos antropólogos que
aldeiados outrora pelos jesuítas espanhóis.
participaram do PBA (Gasocidente/Prime 1998),
S. Matias é toda de chiquitanos. Os homens,
no local vive uma comunidade de indios que se
conquanto andem inteiramente à vontade
identifica como chiquitana.
entre os seus, quando saem para os povoa­
Nas primeiras décadas do século XIX, o
dos vestem camisa, calça e chapéu, senão
quadro sócio-político da região da bacia do Alto
também a sua jaqueta, trazendo sempre na
Paraguai passou por um período de grande
cintura uma banda ou faixa vermelha muito
instabilidade devido às convulsões sociais
apreciada em todos os países castelhanos, e
provocadas pelas guerras de independência na
aqui por tal forma, que dir-se-á usarem de
América espanhola. A região das Missões de
calças só para terem o prazer de lhe
Chiquitos, a exemplo de outras realidades da
passarem a cinta. Uma faca de ponta ou um
Bacia Platina foi palco de diversos eventos
facão é complemento obrigatório do traje
bélicos entre as forças pró e contra a independên­
de viagem.
cia. Os índios ficaram no meio do fogo cruzado e
Falam estas gentes mais ou menos
sofreram pesadas baixas demográficas, agravadas
quatro idiomas: o chiquitano, o bororó, o
no pós-guerra pelo agudo empobrecimento da
espanhol e o português. Ora, de um povo,
região e pelos surtos epidêmicos provenientes das
que dispõe assim de tão vastos conhecimen­
péssimas condições sócio-econômicas. A popula­
tos lingüísticos, longe deve ir a idéia de
ção indígena teve sua infra-estrutura produtiva
dizê-lo curto de civilização. ” (p. 384/5)
(economia missioneira) desmantelada com o
estabelecimento da nova ordem política-nacional Em 1880, com o auge da produção da
(surgimento do Estado boliviano). Em decorrên­ borracha natural no oriente boliviano, milhares
cia dessas conturbações, novas ondas migratórias de índios Chiquito morreram ou dispersaram-se
de índios Chiquito dirigiram-se para o Mato devido às péssimas condições de trabalho nos
Grosso durante o século XIX. Em 1831, os índios seringais das Províncias de Nuflo de Chávez e
da Missão Santana estavam reduzidos a cerca de Velasco.
oitocentas pessoas. Nessa mesma época, em Max Schmidt (1942), em junho de 1901, ao
Casalvasco, Mato Grosso, havia aproximadamen­ descer o rio Cuiabá em direção à serra do
te trezentas famílias indígenas chiquitanas. Amolar, na atual divisa entre os Estado de Mato
Quando D ’Orbigny visitou a região, em Grosso e Mato Grosso do Sul, observou em uma
1831, o quadro demográfico na área chiquitana propriedade rural, nas proximidades da confluên­
reunia cerca de vinte mil índios, distribuídos cia com o rio São Lourenço, a presença de vinte
entre as tribos, Koraveka, Kurave, Tapii, índios Chiquito trabalhando para um indivíduo
Kurukaneka, Paikoneka, Saraveka, Otuke, denominado João Paiz. Não forneceu maiores
Kuruminaka, Samucu e Chiquito. detalhes.
No ano de 1875, João Severiano da Fonseca No início deste século, entre 1907 e 1911,
(1986), ao percorrer a região do Alto Paraguai, Rondon comandou a instalação da linha telegrá­
assim descreveu a realidade etnográfica que fica entre Cáceres e Vila Bela, em Mato Grosso,
encontrou em San Matias, na divisa da Bolívia ocasião em que fez várias referências à região de
com Mato Grosso, local de entrada do gasoduto Cáceres como sendo habitada por diversas
em território brasileiro: famílias de índios Chiquito. Ele esteve também

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na Fazenda Facão, em Cáceres, onde há um sítio sócio-cultural a que são submetidos, historica­
arqueológico, mas não se referiu a ela sob o mente, pela sociedade envolvente.
ângulo etnográfico e arqueológico. Dentre as comunidades chiquitanas identifi­
Quando da ocasião da construção da estrada cadas pelo grupo de trabalho Gasocidente/Prime
de ferro entre Corumbá e Santa Cruz de la (1998), as que mais se aproximam da área
Sierra, no começo do século XX, reproduzindo o influenciada pelo gasoduto são as do “Limão”
antigo caminho das Missões de Chiquitos para (30 famílias), localizada na margem esquerda do
Santa Cruz/Peru, muitos índios foram submeti­ rio Jauru e “Beira de Estrada” (9 famílias),
dos a rigorosas condições de trabalho, fato que localizada na margem direita da rodovia Cáce-
provocou muitos danos aos índios, sobretudo a res-San Matias, antes do rio Padre Ignácio.
desterritorialização. Ambas comunidades estão situadas a uma
Nas primeiras décadas do século XX, novo distância da faixa de serviço do gasoduto menor
episódio bélico fomenta o fluxo migratório que um quilômetro.
desses índios para Mato Grosso, ou seja, a Como já foi explicitado anteriormente, em
Guerra do Chaco, que na década de trinta termos de cultura material tradicional, o presente
envolveu o Paraguai e a Bolívia em disputa desses índios contrasta sensivelmente com o
territorial pela região do Chaco Boreal. O passado. Os objetos e artefatos utilizados no
desfecho do conflito foi desfavorável à Bolívia, cotidiano atual são obtidos no mercado da
que perdeu extensas porções de seu território sociedade envolvente, não havendo, portanto,
para o país vizinho, além de sofrer pesadas uma personalização étnica dos mesmos. Isso é
baixas humanas. Mais uma vez a população compreensível se considerado o processo
indígena das terras baixas bolivianas viu-se entre histórico de desterritorialização a que essas
o fogo dos exércitos nacionais beligerantes e comunidades foram submetidas nos últimos
sofreu sérias conseqüências demográficas e duzentos anos. Em localidades mais distantes do
culturais, o que motivou novo êxodo de dezenas traçado do gasoduto o mesmo grupo de trabalho
de famílias para a região abrangida pelas bacias (Gasocidente/Prime (1998)) constatou a perma­
do rio Jauru e do Alto Paraguai, no município de nência residual de alguns elementos da cultura
Cáceres. material indígena tradicional, sobretudo cestaria
Em termos sócio-culturais, o grupo de (abanicos e peneiras), alguma peças de cerâmica,
trabalho da Gasocidente/Prime (1998) caracteri­ redes de dormir e padrão das habitações. Mesmo
zou a situação das comunidades indígenas assim, os elementos da cultura material indígena
chiquitanas existentes na área influenciada pelo observados e descritos por esses antropólogos
gasoduto, da seguinte maneira: as comunidades não auxiliam na analogia com os vestígios
indígenas apresentam contextos atuais diferenci­ arqueológicos registrados durante os trabalhos
ados, isto conforme a trajetória histórica percor­ do PSAGBM.
rida por cada uma delas; nenhuma tem a sua Nas comunidades indígenas de Alambrado e
situação fundiária legalizada enquanto Terra de Corixa Grande, foram encontrados fragmen­
Indígena pela FUNAI; algumas famílias, tos de cerâmica lisa, sendo que alguns cacos
isoladamente, possuem títulos particulares de eram “pintados” de vermelho na face externa e
propriedade da terra onde habitam; há uma preto na face interna (Gasocidente/Prime 1998).
tendência populacional em estabilizar-se o índice Por essa descrição, mesmo que sucinta, observa-
demográfico dessas comunidades em um se que essa cerâmica se assemelha àquela
quantum médio de oito famílias; a sobrevivência coletada pelo PSAGBM, nos sítios Rio Jauru,
econômica está baseada em um modelo campo­ Riacho São Sebastião 1, 2, 3 e 4. As datações
nês de subsistência, associado à prestação de obtidas através do método da termo! umines-
serviço temporário em fazendas vizinhas, ou cência em amostras de cerâmica coletadas nestes
mesmo, com trabalho assalariado nas cidades sítios são anteriores ao início da colonização do
próximas, sobretudo em Cáceres; no que diz Brasil, portanto, não concordantes com a
respeito à auto-identificação étnica foi registrada trajetória etno-histórica recente desses índios no
uma tendência em renegar suas origens, talvez Estado de Mato Grosso. Ainda na Corixa
como uma forma de evitar a discriminação Grande, conforme o trabalho acima citado,

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soldados do destacamento do Exército ali cerâmica (algumas peças com espessura de


sediado teriam encontrado, ao abrir uma roça, parede de até 1,7 cm, associadas a umas funerá­
diversas vasilhas de cerâmica, sendo algumas rias). Alguns desses fragmentos possuíam
com engobo vermelho na face externa. resíduos de pintura vermelha, o que posterior­
Os fragmentos de cerâmica, provavelmente mente foi atribuído à Tradição Descalvado.
arqueológica, observados na superfície das Descendo o rio Paraguai, no local denominado
comunidades de Corixa Grande e Alambrado, Passagem Velha, a montante da barra do rio
não afetadas pela obra, não podem ser associa­ Padre Ignácio, M. Schmidt coletou fragmentos
dos, por suas características tecnológicas, aos de cerâmica, de diversos tamanhos (alguns com
atuais ocupantes desses locais. Esses vestígios pintura vermelha, associando-os, em parte, a
muito provavelmente correspondem a ocupações umas funerárias). Em seguida, a montante da
pré-coloniais, anteriores ao advento dos atuais Fazenda Descalvado, no local denominado
índios Chiquito ao território mato-grossense. Barranco Vermelho, fez as suas mais importan­
A permeabilização dos índios Chiquito na tes descobertas, entre elas, a de uma grande uma
sociedade mato-grossense atual camufla (talvez intacta, cujo formato é semelhante às expostas
como uma forma de resistência clandestina) a no museu de Cáceres (piriforme); no interior
sua identidade étnica, de tal forma que, pela sua dessa uma havia fragmentos de cerâmica,
baixa visibilidade antropológica externa, a inclusive um pequeno prato. Coletou também
própria FUNAI não reconhece, por enquanto, peças com pintura geométrica e alguns cachim­
formalmente a existência de Terras Indígenas bos de cerâmica. Em seguida, esse pesquisador
desses índios no território do Estado de Mato fez prospecções na Fazenda Descalvado. Tanto
Grosso. Descalvado como Barranco Vermelho são sítios
Quanto à interferência da obra no cotidiano que estão situados abaixo da barra do Jauru, no
desses índios e no seu modo de ser, devido às rio Paraguai. Schmidt também fez escavações
circunstâncias de sua localização, no momento, em um aterro (Aterradinho), nas proximidades
somente as duas comunidades acima citadas do paralelo 17, cujo resultado refere-se a outra
(Limão e Beira da Estrada) sofrerão algum tipo problemática arqueológica, não relacionada
de impacto. Este, no entanto, será circunstancia­ diretamente à proposta deste artigo.
do e somente durante o período da construção do Posteriormente, em 1931, o pesquisador
empreendimento. Nesse sentido, o grupo de norte-americano V. M. Petrullo (1932) realizou
trabalho da Gasocidente/Prime (1998), junta­ escavações sistemáticas na Fazenda Descalvado,
mente com a FUNAI/MT, já definiram uma na ocasião propriedade de uma empresa norte-
pauta de medidas mitigadoras a serem adotadas e americana, ampliando assim o conhecimento que
que já estão sendo aplicadas com o devido se tinha sobre as características dessa cerâmica
acompanhamento dos órgãos públicos responsá­ arqueológica. Com base na ocorrência de
veis pela questão indígena. vasilhames piriformes e outras características
desses vestígios arqueológicos, essa cerâmica foi
vinculada por alguns autores à Tradição Aratu.
Arqueologia na região do Estudos mais aprofundados sobre essa realidade
médio curso do rio Jauru corrigiram esse enfoque o que originou a
denominação Tradição Descalvado para os sítios
Na região do Alto Paraguai, os primeiros arqueológicos com conteúdo análogo.
trabalhos de coleta sistemática de material Entre 1994 e 1997, Wüst & Migliácio
arqueológico foram realizados, entre 1926 e realizaram novos estudos na região do Alto
1928, por Max Schmidt (1940). Nessa oportuni­ Paraguai, sobretudo na área urbana de Cáceres e
dade, esse pesquisador realizou um trabalho na Fazenda Descalvado. Desde então passou-se a
programado de levantamento arqueológico entre ter o conhecimento de doze sítios filiados à
Cuiabá e a região das lagoas Gaíba, Uberaba e Tradição Descalvado, todos localizados ao sul de
Mandioré, também conhecida como Mar de Cáceres. Segundo essas pesquisadoras, a área
Xaraiés. Schmidt fez escavações na Fazenda estudada havia sido habitada, pelo menos até o
Facão, em Cáceres, onde coletou fragmentos de início do século XX, por índios Bororo e Guató,

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Mato Grosso. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

porém, para elas, as evidências arqueológicas nenhum tipo de contextualização científica sobre
enquadradas na Tradição Descalvado não estão as condições em que foram encontrados ou
relacionadas ao passado desses índios, sendo coletados esses vestígios. Com o início dos
mais provável, conforme as mesmas, que as estudos ambientais/culturais avaliadores dos
vinculações culturais dos produtores da cerâmica impactos da construção do gasoduto, fizeram-se
Descalvado sejam atribuídas originariamente a os primeiros registros técnico-científicos de
contextos culturais do oriente boliviano, ou material arqueológico na região (Gasocidente/
mesmo da área amazônica. Prime 1998, Natrontec/Entrix 1998), quando
Quanto às principais características da foram localizados fragmentos de cerâmica
cerâmica Descalvado as autoras acima descre­ arqueológica na área de Corixa Grande e na
vem o seguinte: margem direita do rio Jauru, em ponto próximo
ao local em que este foi seccionado pela obra
“O material arqueológico destes sítios
(Sítio Rio Jauru).
compreende grandes recipientes piriformes
O médio curso do rio Jauru, pesquisado no
com um gargalo biconvexo, urnas piriformes
âmbito do PSAGBM, caracteriza-se por possuir
apenas com gargalo infletido, tigelas fundas
margens pantanosas, intercaladas por diques
e rasas, além de potes médios e pequenos. En­
fluviais e terraços estruturais, como é o caso do
quanto a maioria dos recipientes cerâmicos é
local onde está implantado o sítio Rio Jauru. A
lisa, observa-se a presença de engobo verme­
partir da margem direita, no segmento onde incide
lho interno e/ou externo, raramente apêndi­
o traçado do gasoduto, tem início um extenso
ces ou uma decoração ponteada. São poucos
interflúvio plano, com algumas dezenas de
os recipientes conhecidos (tigelas rasas) com
quilômetros, que se conclui no vale do Corixa
boca circular ou elipsoide que apresentam na
Grande divisa com a Bolívia. A cobertura vegetal
sua superfície interna uma pintura vermelha
é predominantemente formada por uma Floresta
com motivos geométricos, sendo listas, triân­
Estacionai Semidecidual Antropizada (Gasoci-
gulos e pequenas cruzes os motivos mais fre ­
dente/Prime 1998). Por todo esse espaço as
qüentes. ”
drenagens secundárias são raras, destacando-se
Ocorrem ainda rodelas de fuso, bem
nessa paisagem, quase singularmente, a microba-
como cachimbos tubulares com apliques de
cia do riacho São Sebastião, afluente direito do
figuras zoomorfas e decoração incisa. Pre­
rio Jauru. Apesar de apresentarem escassas redes
valece nos sítios do curso superior do Rio
de drenagens permanentes, paradoxalmente,
Paraguai o tempero de caco moído, enquan­
partes consideráveis desses terrenos permanecem
to em direção à região mais alagada aumen­
alagados por águas pluviais vários meses no ano.
ta o tempero de concha triturada. A espessu­
Isto se deve à baixa profundidade do lençol
ra da parede dos recipientes cerâmicos varia
freático e à planura da superfície. Em alguns
de 1 a 3 cm, sendo o acabamento externo
trechos, topográficamente não inundáveis, por
freqüentemente polido.” (1994: 49/50)
vezes distante centenas de metros das margens
O rio Jauru é um afluente da margem direita dos leitos fluviais permanentes (Corixa Grande,
do rio Paraguai, sendo que a área aqui enfocada riacho São Sebastião e Jauru), implantaram-se, no
contextualiza-se a noroeste dos sítios abordados período Pré-colonial, extensos aldeamentos de
pelos trabalhos acima citados. grupos indígenas agricultores, fabricantes de
Antes da construção do gasoduto, as recipientes de cerâmica possuidores das caracte­
referências sobre ocorrências arqueológicas na rísticas da Tradição Descalvado. Essas ocupações
região entre o Distrito de Porto Limão (rio estão sobrepostas a outros níveis arqueológicos
Jauru), em Cáceres e San Matias (fronteira do que talvez possam incluir a presença de caçado­
Brasil com a Bolívia) limitavam-se a relatos res/coletores.
orais, por parte de moradores da área, sobre Como exemplos dessas evidências pode-se
achados isolados de concentrações superficiais citar o sítio Rio Jauru, localizado em um terraço
de fragmentos ou, mais raramente, sobre grandes elevado sobre uma concavidade da margem direita
potes de cerâmica enterrados no interior de áreas do rio Jauru, nas proximidades do povoado
agrícolas. Essas observações foram feitas sem conhecido como Porto Limão, ou ainda os sítios

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Riacho São Sebastião 3 e Riacho São Sebastião 4, Durante os trabalhos de resgate acima
todos com mais de 1 km de eixo maior. Estes sítios descritos coletaram-se significativos conjuntos
localizam-se próximos uns dos outros em média de material arqueológico. Os vestígios são
três quilômetros. Devido a problemas técnicos, predominantemente fragmentos de cerâmica, dos
específicos da obra, não foi possível desviar o quais, nos níveis superiores, um número signifi­
traçado do gasoduto desses sítios arqueológicos, cativo é composto por peças que apresentam
optando-se, portanto, como alternativa mitigadora, vestígios de engobo vermelho, típico da Tradi­
pelos trabalhos de resgate arqueológico. ção Descalvado. Algumas amostras desse
Os procedimentos de resgate arqueológico material foram enviadas para datações radiomé-
restringiram-se à faixa de serviço do gasoduto. tricas. Também foram coletadas algumas lascas
Os trabalhos desenvolveram-se por meio da de sílex, havendo retoques em algumas delas.
abertura de furos de sondagem, bem como de Após 1,5 metro de profundidade, encontraram-se
trincheiras e áreas de decapagem, sendo os dados somente algumas lascas. Na área estudada, a
arqueológicos coletados e registrados quanto à densidade de estruturas de combustão foi
sua localização tridimensional e inserção na insignificante.
estratigrafía do solo. Foram processadas, até o momento 22
Segundo Gasocidente/Prime (1998), o solo datações radiométricas, empregando-se o método
da margem direita do rio Jauru, pesquisado nas da termoluminescência, no Laboratório de
escavações arqueológicas, apresentava argila Vidros e Datações da Faculdade de Tecnologia
limosa com pouca areia, variando de cor cinza de São Paulo-FATEC (LVD), sob a coordenação
clara a amarela. Essa classificação é extensiva ao da Profa. Dra. Sonia Hatsue Tatumi, obtendo-se
contexto dos três sítios aqui analisados. os resultados apresentados a seguir:
A partir da associação com os dados As datações obtidas no sítio Rio Jauru,
arqueológicos, observou-se que a estratigrafía mesmo as relativas às camadas superficiais,
dos sítios pesquisados era composta por duas mostram que essas ocupações são, pelo menos
camadas principais: a primeira camada, cinza, trezentos anos anteriores ao início da coloniza­
com espessura média de 40 cm e a segunda, ção ibérica na região. Esses vestígios arqueológi­
amarela, atingindo mais de 1,5 m de profundida­ cos poderiam estar associados ao universo
de. O horizonte cerâmico localizava-se, aproxi­ chiquitano Pré-colonial, cujos produtores teriam
madamente até 50 cm de profundidade. sido deslocados pela instabilidade etno-espacial,
no oriente boliviano, provocada pelo advento do
Tawantinsuyu. A relação das datações do sítio
1. Escavações arqueológicas no Sítio Rio Jauru/ Jauru-setor 4, com a visualização dos níveis
Setor 4 (JU1) - UTM E390667/S8213700 estratigráficos, sugere a existência de pelo
menos dois momentos distintos, subseqüentes,
Após o trabalho de sondagens arqueológicas, de ocupações por grupos ceramistas pré-
por uma extensão de mais de 350m na faixa de coloniais, sendo o horizonte correspondente à
serviço, a partir do ponto onde tem início o “furo Tradição Descalvado (camada cinza e início da
direcional”, definiu-se o contexto que deveria ser amarela) o mais recente e mais denso em termos
objeto das escavações de resgate arqueológico. de material arqueológico. Observou-se também a
Assim, foi aberta sobre a área projetada para ser a presença de uma camada de material arqueológi­
vala da tubulação, uma trincheira com 200 m de co que deve corresponder a ocupações de
extensão por 1 m de largura, atingindo, em vários caçadores/coletores. Isto foi evidenciado por
segmentos, 2m de profundidade. Perpendicular­ meio de uma discreta ocorrência de material
mente a essa trincheira principal (Tl) foram lítico lascado a uma profundidade maior que 1
abertas outras 9 trincheiras, pretendendo-se com metro (camada amarela). A sobreposição de
isso contemplar a largura da faixa de serviço e os ocupações, aparentemente consecutiva por mais
limites das concentrações de material arqueológi­ de 600 anos, confere ao local do sítio Rio Jauru
co (v. Fig. 1). A abertura dessas trincheiras atributos ambientais que devem ter sido muito
permitiu também a visualização do perfil estrati- significativos na atração e fixação de populações
gráfico do sítio. nativas.

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TABELA 1
Amostra (código LVD) superfície do fragmento trincheira metro profundidade (cm) Datação (AP)

206/JR-amostra 2 lisa setor 1 superfície 965 ± 100


226/JR-amostra 22 lisa T7 11 00-10 830 ± 90
221/JR-amostra 17 lisa TI 200 00-10 990 ± 100
213/JR-amostra 9 lisa TI 124 10-20 820 ± 90
214/JR-amostra 10 lisa TI 134 10-20 890 ± 90
210/JR-amostra 6 lisa TI 105 10-20 940 ± 100
216/JR-amostra 12 lisa TI 142 10-20 945 ± 110
227/JR-amostra 23 lisa TI 145 20-30 810 ± 85
208/JR-amostra 4 lisa sondagem 71 20-30 950 ± 100
220/JR-amostra 16 lisa TI 194 20-30 995 ± 100
225/JR-amostra 21 lisa T7 8 20-30 1030 ± 100
212/JR-amostra 8 engobo vermelho TI 122 20-30 1140 ± 110
223/JR-amostra 19 lisa T4 4 20-30 1350 ± 140
207/JR-amostra 3 lisa TI 31 30-40 1000 ± 110
215/JR-amostra 11 lisa TI 139 30-40 1035 ± 100
218/JR-amostra 14 lisa TI 152 30-40 1500 ± 150
222/JR-amostra 18 lisa T2 10 30-40 1520 ± 160
2 1 1/JR-amostra 7 lisa TI 118 40-50 1300 ± 125
224/JR-amostra 20 lisa T7 1 40-50 1340 ± 140
219/JR-amostra 15 lisa TI 186 40-50 1350 ± 130
217/JR-amostra 13 lisa TI 143 40-50 1400 ± 150
209/JR-amostra 5 bolota lisa TI 79 70-80 2300 ± 300

As datações relativas aos sítios Riacho São No trecho onde foi observada a maior
Sebastião 3 e 4, estão, no momento, sendo concentração de material foram abertas trincheiras
processadas no LVD. Assim que estiverem e áreas de decapagem. Na área de decapagem 1
concluídas, permitirão análises comparativas foi evidenciada uma estrutura de sepultamento
entre os três sítios pesquisados, ocasionando composta por dois recipientes intactos, tampados,
melhores condições de leitura temporal e cuja superfície externa apresenta vestígios de
espacial das relações intra-sítios e intersítios. engobo vermelho típico da Tradição Descalvado.
Um destes recipientes era uma uma funerária que
continha em seu interior um tembetá, contas de
2. Escavações arqueológicas no Sítio Riacho São colar e vestígios de ossos (muito friáveis, não
Sebastião 4 (SE4) - UTM E385667/S8211537 permitiram a sua identificação) (v. Fig. 2). Dentre
os demais vestígios cerâmicos coletados desta­
O sítio Riacho São Sebastião 4, situado na cam-se ainda uma estatueta zoomorfa, diversas
alta vertente da margem esquerda do riacho São alças de recipientes e uma base, localizados entre
Sebastião apresentou, durante os trabalhos de 30 e 60cm de profundidade, (v. Figs. 3 e 4).
levantamento, expressivas concentrações de
fragmentos de cerâmica distribuídas na superfí­
cie. Efetuou-se uma coleta sistemática de 3. Escavações arqueológicas no Sítio Riacho São
superfície, definindo-se para tal 275 quadrículas Sebastião 3 (SE3) - UTM E383810/S8210764
de 25m2 cada uma, o que abrangeu uma área
total de 6.875m2. Conjuntamente foram abertos O sítio Riacho São Sebastião 3, implantado
98 furos de sondagem, espaçados em 5m, na alta vertente da margem direita de um corixo
cobrindo uma extensão de 490m. (microbacia do riacho São Sebastião), apresen­

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tou afloramento de material cerâmico por mais gico, evidenciados durante as sondagens, foram
de lkm de extensão, isto considerando-se abertas trincheiras e áreas de decapagem.
somente o que foi observado na faixa de serviço. Dentre o material coletado, destacam-se
O procedimento adotado foi uma coleta fragmentos de parede de cerâmica com engobo
sistemática de superfície em toda a largura da vermelho e/ou linhas incisas, além de peças com
faixa de serviço, abrangendo uma área total de alça, duas pequenas estatuetas - uma antropo­
26.250m2. A delimitação das concentrações de morfica e outra zoomórfica - , dois “pingentes”,
material baseou-se também na abertura de 211 uma rodela de fuso, um carimbo, todos com
poços de sondagem, espaçados em 5m, totalizan­ superfície alisada, sem engobo (v. Figs. 3, 4 e 5).
do uma extensão de 1.055m. Nos locais onde A maior parte do material encontrava-se princi­
havia maior concentração de material arqueoló­ palmente entre 30 e 60cm de profundidade.

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Numa análise preliminar, embora o enfoque do àquelas caracterizadas como filiadas à


do resgate tenha ficado restrito à faixa de Tradição Descalvado.
serviço, o perfil do sítio permite visualizar
parcialmente o padrão de assentamento, ou seja, Considerações finais
o local teria sediado uma grande aldeia de índios
ceramistas, análoga a outras já registradas pela Os sítios da Tradição Descalvado, segundo
Arqueologia na bacia do Alto Paraguai, sobretu- os estudos retrocitados (Wüst & Migliácio),

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seriam de três tipos distintos: sítios habita­ que diz respeito aos locais preferenciais para
cionais e cemitérios, os quais estariam, na sua ocorrência dos sítios da Tradição Descalvado é
maioria localizados sobre barrancos do rio que os mesmos não estão restritos às margens do
Paraguai e alguns sítios com sepultamentos rio Paraguai. Os trabalhos de levantamento e as
secundários instalados em aterros. escavações realizadas durante o desenvolvimen­
O que os trabalhos do PSAGBM, entre to desse projeto ampliaram o conhecimento que
outros aspectos, ilustraram, até o momento, no se tinha até então, mostrando que esses sítios se

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fizeram presentes, tanto na área rural de termos de morfologia esses sítios seriam
Cárceres (sítio Serra da Chapadinha 2, na lineares e paralelos às margens de grandes
estrada para Barra do Bugres), distante da rios. Outra contribuição ao melhor conheci­
margem esquerda do rio Paraguai, como na mento da Tradição Descalvado foi a descober­
área do riacho São Sebastião, afluente direito ta de objetos cerâmicos antropomórficos,
do médio curso do rio Jauru, ou seja, afasta­ carimbo, novos formatos de recipientes e
dos das margens de um grande rio. Este é o alguns tipos de adornos, que no futuro
caso também do Sítio Facão, em Cáceres. Isso servirão para uma melhor caracterização dessa
sugere uma reconsideração da idéia de que em tradição.

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Mato Grosso. R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

A extensão dos sítios localizados pelo do Jauru não foi visitada durante o primeiro
PSAGBM e considerados como sendo filiados século da colonização. Assim, é possível supor
à Tradição Descalvado, sobretudo aqueles que a dispersão das tribos chiquitanas orientais,
situados na região do rio Jauru, mostrou que antes da colonização, poderia abranger o
estes sítios correspondem a grandes aldeias de território brasileiro entre San Matias e o rio Jauru,
índios ceramistas, agricultores, tecelões e ou mesmo as margens do Paraguai, nas proximi­
portadores de complexas manifestações sócio- dades de Cáceres, mesmo não tendo os atuais
culturais. Chiquito da região, traços culturais que permitam
Os resultados obtidos com os trabalhos de a sua associação direta aos sítios arqueológicos
resgate contribuíram para o aprofundamento pesquisados.
de uma abordagem científica da realidade Várias questões permanecem abertas. É
arqueológica do Alto Paraguai, pois permitiram necessário ressaltar que as escavações
a aquisição de uma expressiva amostra de realizadas durante o desenvolvimento do
itens integrantes da cultura material de popula­ PSAGBM ficaram limitadas, precisamente, à
ções instaladas pretéritamente nessa região e área impactada pela obra, o que, portanto, não
hoje desaparecidas. Considerando-se que não permite generalizações no tratamento de
havia nenhum conhecimento anterior referente problemáticas tais como: Há relação da
a esse contexto (médio curso do Jauru), o Tradição Descalvado com os índios Chiquito
trabalho aí desenvolvido permitiu levantar uma pré-coloniais? Qual a relação dos Chiquito de
série de problemas a serem considerados em San Matias com a realidade arqueológica do
pesquisas futuras. Foi ainda possível estabele­ médio curso do rio Jauru? Há relação dos
cer uma relação arqueológica com os outros índios Chiquito das Missões de Santana, San
sítios existentes na área influenciada pela Miguel, Santo Ignácio e San Rafael, as quais
bacia do rio Jauru, em seu médio curso, os estão localizadas a uma distância não superior
quais também foram identificados pelo PSAGBM, a 250 quilômetros dos sítios do rio Jauru, com
porém fora da faixa do gasoduto e, por isso, os vestígios arqueológicos registrados em San
não escavados. Matias e no Jauru? Como explicar a origem e
O etnônimo Chiquitos é um produto da extinção dos índios Bororo da região entre San
visão geopolítica colonial ibérica que resume e Matias e Cáceres? Existe cerâmica Descalvado
camufla a diversidade e complexidade étnica no oriente boliviano, além de San Matias, ou
existente em uma região de grande significado ao norte de Cáceres, ou ainda na cabeceira do
geográfico e arqueológico, isto enquanto área de rio Jauru? Os índios Otuke, que segundo
confluência ou dispersão de culturas indígenas. alguns autores teriam alguma relação lingüísti­
Na realidade Pré-colonial não havia o contorno ca com os índios Bororo, e que, ainda no
fronteiriço que, no presente, caracteriza a começo deste século, viviam nas proximidades
Província de Chiquitos como uma área cultural da ferrovia entre Corumbá e Santa Cruz de La
indígena do oriente boliviano (Etnoconjunto Del Sierra, poderiam também ter ocupado a região
Oriente). A pluralidade de grupos indígenas era do rio Jauru, sendo antepassados dos Bororo
tão expressiva que possivelmente o território Ocidentais os quais foram citados por viajan­
utilizado por esses grupos deveria ser bem mais tes no século XIX?
extenso do que o definido a partir do Período As interrogações, no momento superam em
Colonial. Os relatos dos cronistas do século XVI muito as respostas. Pesquisas arqueológicas no
e início do XVII nada informaram sobre a oriente boliviano são fundamentais para clarear
realidade etnográfica da área entre a barra do esses problemas, no entanto, a região chiqui-
Jauru e o Alto Paraguai. As expedições espanho­ tana é uma área ainda pouco conhecida pela
las, antes de adentrarem no Chaco, tinham o arqueologia boliviana que concentra suas
Porto de Los Reys, ao sul da lagoa Gaíba, como ações, até o momento, de forma mais intensa,
meta setentrional, ou seja, toda a área da bacia sobre a problemática andina.

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Mato Grosso. R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

MARTINS, G.R.; KASHIMOTO, E.M. Archaeology o f the Jauru River (MT) context,
impacted by the Bolivia-M ato Grosso gas pipeline. R evista do Museu de A rqueo­
logia e E tnologia, São Paulo, 10: 121-143, 2000.

ABSTRACT: This article aims to understand the connections between the


archaeological remains collected in the archaeological rescue research done in
the region of the middle course of the River Jauru, Mato Grosso state, Brazil,
and the Chiquito Indians, currently inhabiting the region.

UNITERMS: Archaeological Rescue - Jauru River, Mato Grosso State -


Chiquito Indians.

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Recebido p a ra publicação em 2 de junho de 2000.

143
Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

NATURA MORTA*

R o lf Winkes**

WINKES, R. Natura Morta. Revista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo,


10: 145-161, 2000.

RESUMO: As representações de naturezas-mortas nos afrescos da


Campânia são comparadas às naturezas-mortas holandesas do século XVII. À
primeira vista, elas parecem ser muito similares. Entretanto, o significado da
natureza-morta holandesa é associado a uma demonstração de opulência da
burguesia da época, a valores cristãos e erudição. Os afrescos campânicos
foram associados com os xenia gregos, às vezes, também, foram chamados
pinturas de gênero. Resulta que eles são mais um reflexo de costumes culiná­
rios na Campânia.

UNITERMOS: Afrescos romanos - Natureza-morta - Opsonia - Xenia.

Um dos motivos favoritos na história da da Campânia, poderia induzir alguém a declarar


pintura ocidental é o da natureza-morta. E ainda, que o artista italiano foi inspirado pelas belas
seu significado é tão variado quanto os termos obras da antigüidade devido às aparentes
utilizados por diferentes civilizações para similaridades encontradas. Entretanto, os
designá-la: natura morta, banketje, vie coye, afrescos da Campânia decorados com natureza-
bodegones, Stilleben, que denotam o fato de morta foram descobertos após 1738 e não
essas pinturas poderem representar um elemen­ exerceram influência sobre as obras do Renas­
to da natureza já morto, comida para um cimento Italiano nem sobre as tradições grandi­
banquete, seres vivos em repouso, e decoração osas da natureza-morta holandesa. Mesmo que
para hospedarías e celias, onde carne e vinho parte do significado das obras seja às vezes
são vendidos. Às vezes essas pinturas são semelhante, a origem e o contexto cultural do
aparentemente muito parecidas, mas isso não qual estas surgiram são marcadamente diferen­
nos permite concluir que tenham o mesmo tes. Este artigo, que é baseado em uma palestra
significado ou que façam parte da mesma apresentada na Universidade de São Paulo,
tradição. A comparação entre, por exemplo, os pretende demonstrar que, apesar da ocasional
quadros de natura morta pintados por Caravaggio ocorrência de similaridades, a essência da obra
(Fig. 1) ou outros pintores contemporâneos é determinada pelo contexto cultural. Uma
com certas representações de still life da região pintura, mesmo que seja praticamente idêntica a
outra em aparência, pode ser a portadora de
uma mensagem intelectual complemente
diferente e pretender evocar uma resposta
(*) My thanks to Ana Cristina C. Wichoski for the
translation. psicológica bastante diversa.
(**) Center for Old World A rchaeology and Art. Em primeiro lugar, os afrescos da Campâ­
Brown University, EUA. nia não são apresentados como painéis

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WINKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

isolados, mas sim como parte da decoração de folhas já murcharam um pouco, indicando que o
uma parede inteira e pretendem ser interpreta­ processo da morte já se iniciou. Para reforçar o
dos no contexto de um esquema decorativo ponto, a maçã da frente exibe um buraco de
completo. Ambos, Caravaggio e a natureza- bicho-de-maçã e nós sabemos que, caso abrísse­
morta da Campânia, podem nos relembrar do mos a fruta, provavelmente a encontraríamos em
aspecto transitorio da vida, mas em um caso é parte, se não totalmente, estragada. Com essas
o ambiente de um cenário epicureano que insinuações acerca da morte, Caravaggio escolhe
conduziu a essa representação e no outro foi a um tema que encontramos desde o início na
tradição da linguagem figurativa cristã. natureza-morta holandesa.
Há outras diferenças básicas: enquanto Esta é uma insinuação que todo esse
sabemos o nome do pintor renascentista, esplendor irá passar e desaparecer por completo.
raramente sabemos o nome de um artista romano. Esta é uma técnica artística que se origina de um
Mesmo que os afrescos da Campânia possam conceito cristão cuja tradição se iniciou já na
ocasionalmente nos impressionar como obras- Idade Média: a vanitas. Uma das representações
primas dignas de um mestre, estes não eram em mais populares desse tema é a natureza-morta na
sua maioria pintados pelos artistas mais impor­ qual um crânio faz parte da composição (Milman
tantes da época. Naturezas-mortas não reprodu­ 1982: 66, Monneret 1993:116, Bryson 1990: 131)
zem necessariamente grandes obras originais. (Fig. 2). Encontramos crânios em algumas
Alcançamos, através de fontes literárias e do naturezas-mortas não apenas em conexão com
contexto no qual a decoração das paredes se alimentos mas também com objetos que sugerem
insere, um entendimento relativamente preciso atividade intelectual. E ainda, apesar de toda
do seu significado. E este é consideravelmente essa erudição, não há escapatória. Na Holanda, a
diverso do significado das naturezas-mortas do natureza-morta parece sempre ter uma outra lição
período posterior italiano e das naturezas-mortas a ensinar além da observação da natureza. Por
holandesas. Vários trabalhos acadêmicos exemplo, a sabedoria cristã era baseada na
recentes auxiliam a compreensão da natureza- vigilância como São Mateus (25,1 - 3) descreve
morta holandesa em particular e mostram na parábola das virgens sábias e tolas. A partir
existirem diferentes níveis de significado que não daqui o tema dos cinco sentidos decola na
são necessariamente excludentes. natureza-morta holandesa. Uma continuação do
Por exemplo, no quadro de Caravaggio de tema do olfato na exposição dos cinco sentidos
1596, Cesta de Frutas, atualmente na Pinacoteca na natureza-morta é a natureza-morta com motivo
Ambrosiana em Milão (Bryson 1990: 68), a de flores. No entanto, existem também outros
natureza-morta está inserida em um espaço que é aspectos a considerar.
consideravelmente diferente não apenas do A representação exuberante de flores é um
exemplo da Campânia mas também da representa­ dos temas prediletos da natureza-morta holande­
ção do objeto no espaço na sua própria época, sa. Encontramos vários buquês per se, sempre
quando panoramas e cenários facilmente agregando uma grande variedade de flores (Fig.
discemíveis eram as técnicas usuais e todas as 3). Além de se situar na tradição do motivo do
pessoas e objetos podiam ser posicionados em olfato, as flores também poderiam ser interpreta­
um espaço claramente definido. Vemos aqui uma das, é claro, como parte do banketje e serem,
cesta de vime com frutas, diante de um fundo assim como a opulenta exibição de comida no
amarelo indefinido, sobre uma linha que poderia banketje, uma expressão do nível de vida que se
ser uma tábua, o beirai de uma janela ou algum experimentava na época na Holanda. Além disso,
outro objeto que não pode ser identificado as flores representadas não são aquelas que se
claramente pelo espectador. Apesar de o vime e a podia colher no jardim. Estas variedades de flores
parte de trás das folhas de parreira mostrarem não podiam ser vistas em muitos jardins holande­
que a luz incide sobre a cena pela esquerda e ses da época. Eram, entretanto, encontradas nos
pela frente, não vemos sombras. Todos esses Jardins Botânicos e havia um grande interesse no
detalhes fazem com que a atenção do espectador aspecto científico das flores (Segai: 186-187). A
seja assim concentrada na cesta de frutas. tulipa foi levada da Turquia para a Holanda em
Apesar de as frutas parecerem frescas, algumas 1573 (Taylor 1995: 2) e muitas outras flores fizeram

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Fig. 1 - Caravaggio, Cesta com Frutas, 1596. Biblioteca Ambrosiana. (Propriedade da Biblioteca Ambrosiana, Milão. Todos os
direitos são reservados e proibidas outras reproduções).
WINKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Fig. 2 - Jacob II de Gheyn, Vanitas, 1621. Yale University Art Gallery, Presente dos Associates in Fine Arts (permissão para
reprodução deve ser solicitada por escrito).
WINKES, R. N atura M orta. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

parte dos itens colecionados quando se explora­ cenas de mercado do século XVI nos quadros de
vam e se colonizavam países em cantos distantes Pieter Aertsen. Falkenburg as chamou de retórica
do mundo. O buquê é, assim, quase um estudo visual e comparou os alimentos representados
científico e, novamente, uma alusão à abundância com evidências dos alimentos consumidos na
obtida graças ao vitorioso comércio holandês. época. Essas evidências surgiram do exame de
Esses tipos de flores podiam ser vistos e estuda­ sementes e resíduos de plantas encontrados em
dos nos Jardins Botânicos Reais, aonde eram fossas que foram escavadas. Os alimentos na
obviamente estudados pelos artistas e a cuja natureza-morta de Aertsen eram uma alusão ao
variedade não reflete razões artísticas. Encontra­ comportamento mundano dos camponeses,
mos obras de referência que nos ensinam detalha­ onde aspectos libidinosos são inerentes não
damente sobre a flora. apenas às mercadorias mas também a quem as
Nos anos que se seguiram à Guerra dos vende. Aertsen favorece as composições
Trinta Anos, encerrada com a Paz de Westfalia “grosseiras”, cuja utilidade é a de demonstrar o
em 1648, a maioria da população holandesa subjacente “domínio das convenções e das
experimentou um alto nível de vida, como nunca regras da arte” (Falkenburg 1996: 23).
antes visto. Dessa época em diante encontramos A natureza-morta não foi sempre considera­
a natureza-morta. A vida representada nesses da uma forma de arte elevada; mesmo no tempo
quadros é a vida dos burgueses, da burguesia, de Caravaggio esta não era normalmente vista
que foi a maior beneficiada pela nova riqueza e como uma obra digna de um artista célebre. Se
que substituiu a sociedade aristocrática anterior. analisarmos o famoso período da natureza-morta
O burguês gosta de mostrar que leva uma holandesa, verificamos, no entanto, que esta não
vida tão esplêndida quanto aquela de um estava na dianteira do establishment artístico, do
aristocrata e, assim, temas aristocráticos, como qual, aliás, as mulheres estavam em sua maioria
alusões a caçadas, são introduzidos na icono­ excluídas. Havia, entretanto, um número conside­
grafia. Burgueses, e não mais somente nobres, rável de mulheres que pintava naturezas-mortas.
participavam de caçadas e possuíam áreas de A maioria, no entanto, nunca chegou a expor seu
caça. As naturezas-mortas incluem não apenas trabalho nas exibições das sociedades artísticas
iguarias como frutas, carnes, frutos do mar e e essa situação se manteve por várias gerações.
sobremesas, mas também a suntuosa exibição de No virar do século vinte, detectamos
recipientes de metais variados e de porcelana. E, elementos de natureza-morta no Quarto Vermelho
em breve, os próprios recipientes poderiam ser de Matisse, um quadro atualmente no Hermitage
decorados com natureza-morta alusória a suas (Gardner 1985: 958). Ainda assim, o tema princi­
funções, como podemos ver nas porcelanas do pal do quadro é o espaço propriamente dito.
acervo do Museu Paulista. Os burgueses tinham Matisse, por outro lado, toma a mulher o
meios para possuir tais objetos preciosos e a principal e único soberano deste espaço. E ela
exposição destes se tomou inerente a sua não está mais exilada na cozinha: é a mesa que
expressão de auto-estima, sucesso e orgulho. está sendo posta que é mostrada aqui, é o
Embora seja claro por parte do contexto da equivalente ao banketje. O peso da história
natureza-morta, e certamente por outros contex­ relativa ao envolvimento com o espaço domésti­
tos, que os alimentos e a cozinha eram vistos co permanece um assunto de interesse para
como parte do domínio feminino, muitas nature­ artistas como Cézanne (Bryson 1990: 164-165).
zas-mortas mostram objetos que sugerem Ele escolhe usar, além do tema vanitas, nature­
sucesso masculino ou atividades masculinas zas-mortas representando maçãs nas quais o
como a caça. Como demonstrou Bryson, os ambiente é obscuro e não influi em nada, nem há
artistas gostam de associar símbolos masculinos qualquer ênfase no sucesso e no papel masculi­
com a extravagância das representações; cenas nos. Podemos observar o mesmo nas obras de
de cozinha menos elaboradas permanecem na Braque e Picasso (Bryson 1990: 85).
esfera feminina (Bryson 1990: 136-178) (Fig. 4). Depois desse tour de force com ênfase na
Mais recentemente, Falkenburg investigou a natureza-morta holandesa, gostaria de retornar
natureza-morta em um ambiente diferente: a para a natureza-morta romana a qual, como já
exuberante representação de alimentos nas citei, é freqüentemente comparada com e

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W INKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 70: 145-161, 2000.

Fig. 3 - Abraham Mignon, Bouquet de flores com relógio de bolso, 1670. D ire ito s de
rep rodu ção H erzog Anton Ulrich-M useum , B raunschweig.

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WINKES, R. N atura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Fig. 4 - Adriaen van Niedland, Natureza-morta de grande cozinha, 1616. Direitos de reprodução Herzog Anton Ulrich-

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Museum, B rau n sch w eig.
WINKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 145-161, 2000.

interpretada da mesma maneira que a natureza- Dessa maneira, aqueles que viajavam ficavam
morta holandesa pela maioria dos académicos. hospedados com o se estivessem na sua própria
casa, podendo viver nesses apartamentos com
No entanto, essa comparação só pode ser feita
privacidade e em total liberdade.
para alguns elementos.
Em um trabalho anterior (Winkes 1983: 237), Também são citadas as descrições de
agrupei as naturezas-mortas da Campânia em Filostrato-o-Velho, do final do segundo ao
três tipos de acordo com o assunto. Elas início do terceiro século d.C. (Eikones II, 26,
mostram: Xenia ):
1. Alimentos para o consumo humano A lebre dentro da jaula é um prêmio da rede
do caçador. Ela está sentada nas patas traseiras,
(Fig. 5)
movendo delicadamente suas patas dianteiras, e
2. Animais vivos, peixes ou aves vagarosamente erguendo as orelhas; mas ela olha
3. Objetos ao redor tão atentamente quanto pode, e deseja
4. Oikos asaratos. Relacionados de que pudesse ver também o que está por detrás dela,
uma certa maneira, embora não façam parte por causa de suas dúvidas e medo constante. Outra
lebre foi pendurada em um carvalho envelhecido,
dos afrescos, estão os mosaicos que
com a barriga dilacerada e [sua pele] puxada sobre
decoram o chão de algumas salas de jantar
as patas traseiras; ela é um testemunho da rapidez
e que mostram as sobras após uma do cachorro, que senta sob o carvalho descansan­
refeição e antes de o chão ser varrido. do e mostrando que ele pegou a lebre sem ajuda
Sabemos como estes mosaicos eram alguma. E quanto aos patos que estão perto da
chamados, oikos asaratos, e também quem lebre (conte-os, há dez deles) e aos gansos, dos
quais há o mesmo número que o de patos, não é
é suposto tê-los criado, Sosos de Pér-
necessário apertá-los. Já que neles a parte ao redor
gamo. do peito, onde nas aves aquáticas há mais gordura,
foi completamente arrancada. Se você gosta de
As naturezas-mortas romanas foram
filões de pão crescido ou de filões de oito partes,
chamadas de xenia por quase todos os eles também estão por perto na cesta funda.
acadêmicos, já que as descrições feitas pelos Agora, se você sente necessidade de uma refeição
autores da antigüidade parecem, à primeira elaborada, você tem esses mesmos pães - já que
vista, se referir ao tipo de representação que estes foram temperados com funcho e salsa e
encontramos nos afrescos da Campânia. também com sementes de papoula, que é o
tempero do sono - e se você deseja um [segundo]
Mesmo Bryson, que apresentou excelentes
prato, submeta-se nesse respeito aos cozinheiros,
análises da natureza-morta holandesa, parece e se volte para a comida que não precisa ser
estar de alguma maneira influenciado por preparada. Por que, por exemplo, não se serve das
visões tradicionais das fontes da antigüidade frutas maduras, das quais há uma pilha alta na
(Bryson 1990: 17-22). É normalmente citado um outra cesta? Não percebe que em pouco tempo
famoso trecho de Vitrúvio De Architectura (VI, não as encontrará mais nas mesmas condições,
mas que elas já terão perdido sua frescura? E não
7,4):
despreze as sobremesas, especialmente se você
Eles erguem, à direita e à esquerda desses gosta ao menos um pouco do fruto da árvore de
ed ifícios com peristilo, outras casas menores, néspera e das bolotas de Zeus [castanhas doces], as
com portas privativas e contendo salas e quartos quais aquela árvore tão lisa produz em uma casca
muito confortáveis, destinados a receber os espinhuda - um problema para descascar. Deixe que
estrangeiros, os quais não eram hospedados nos até o mel seja posto de lado, já que temos à mão
apartamentos do peristilo. Porque entre os este palathe (ou como quer que seja que queira
gregos, aqueles que eram ricos e grandiosos chamá-lo). Este é, com certeza, um doce delicioso.
possuíam apartamentos com todas as com odida­ Suas próprias folhas o envolvem, dessa maneira
des reservados para receber aqueles que tinham acrescentando uma atrativa frescura ao palathe.
vindo de longe para se hospedarem com eles. O Acredito que essa pintura transmita ‘presentes de
costume era que somente no primeiro dia eles os anfitrião’ [xenia] ao senhor da fazenda. Ele está se
recebiam à sua mesa; depois disso eles lhes banhando e talvez imagine o vinho de Pramne ou
enviavam todos os dias um presente que consistia de Thasia. Mas está ao alcance dele tomar o vinho
de coisas recebidas do campo, com o galinhas, verde doce que está sobre a mesa, o resultado disso
ovos, ervas e frutas. D isto vem que, os pintores sendo que, ao voltar à cidade, ele irá rescender a
que reproduziam essas coisas que comumente se uvas esmagadas e ócio e poderá arrotar diante das
enviavam aos hóspedes, as chamaram Xenia. pessoas da cidade.

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Fig. 5 -Ainé, R. Herculano e Pompéia, Coleção Geral das Pinturas, Bronzes, Mosaicos, etc., vol. I, 1863, Pranchas 4, 5. Fotos Ms. Brooke Hammerle.
WINKES, R. N atura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.
WINKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Entretanto, várias questões metodológicas da Campânia não parecem representar exclusi­


têm que ser levantadas antes que se possa vamente isto. Por esta razão, alguns dos
associar essas descrições com xenia e particu­ afrescos da Campânia foram interpretados
larmente com pinturas da Campânia. como pinturas de gênero. Naturalmente, o
Filostrato viveu cerca de 300-400 anos trecho sobre Peraikos parece apoiar a idéia de
após a época para a qual Vitrúvio descreveu o que poderiam haver certas semelhanças entre
costume grego referente a xenia. A descrição os afrescos da Campânia daquele tipo e as
de Vitrúvio se referia a algo que já era para ele naturezas-mortas holandesas. Eles diferem dos
passado distante. Filostrato pode ter se confundi­ bodegones na medida em que as últimas são
do ou entendido mal, incorporando, assim, pinturas com uma diferente função: foram
elementos que não pertenciam originalmente ao criadas como decoração de bares e tavemas.
gênero. Ele estava escrevendo uma ekphrasis, Eckstein é um acadêmico que tem devotado a
um exercício de retórica que pela sua própria maior parte da sua pesquisa ao estudo das
natureza tem como objetivo principal a retórica naturezas-mortas romanas. Ele observou que
e não necessariamente os fatos. Finalmente, existem categorias específicas e autônomas
quando esse trecho é examinado com cuidado, que são representadas, tais como frutas,
se descobre que a interpretação como xenia só vegetais ou risoto, e que, além disso, em certas
surge após a sua descrição e esta inverte a pinturas essas categorias se misturam. Em
função do verdadeiro costume. O proprietário cenas onde animais mordiscam alimentos, ou
recebe o presente quando este, na verdade, aves se aproximam de frutas, um elemento
costumava ser recebido pelo convidado. brincalhão parece ser introduzido e, por essa
Todos esses fatos juntos deveriam nos deixar razão, Eckstein afirma que certos tipos mistos
relutantes em supor que Filostrato estava lembram estudos naturais. A mim parece que a
descrevendo e identificando corretamente algo melhor compreensão de seu significado pode
comparável às naturezas-mortas da Campânia. ser atingido através do exame minucioso
Além disso, como podemos inferir dos exem­ destes tipos mistos, já que os vários motivos
plos holandeses, talvez significados diferentes neles representados devem ter algo em comum.
em épocas diferentes passem a fazer parte das Interpretá-los como colocados juntos por
pinturas. Estas podem parecer apenas à nenhuma outra razão que aleatoriamente
primeira vista pertencer ao mesmo tipo e escolhendo e misturando diferentes tradições
tradição. Mesmo assim, algo que todas as é altamente suspeito em vista de tudo que
naturezas-mortas e sua descrições parecem ter sabemos sobre pinturas da Campânia em
em comum antes da chegada da arte moderna outras áreas. Através de outros temas, como
é: elas tentam criar uma ilusão de realismo, o as vistas arquitetônicas, sabemos que, em
trompe l ’oeil. Este efeito já era atribuído à arte geral, um outro significado subjacente estava
de Parrásio e Zeuxis e é muito enfatizado em sendo introduzido.
Filostrato. Vamos analisar cuidadosamente alguns tipos
Eckstein associou com a natureza-morta mistos (Winkes 1983: 239, Fig.2) (Figs. 6 e 7).
outro termo: opsonia1 (Eckstein 1967: 31-32). Frutas próximas a uma tigela de vidro com um
Plínio (História Natural: 35: 112) escreveu que líquido ou vegetais e frutas reunidas em uma
o pintor grego Pereaikos pintava barbearías e cesta e próximas a uma taça são destinadas ao
sapatarias, mas também adorava pintar opsonia. consumo. Esta parece ser a interpretação mais
O contexto mostra, entretanto, que opsonia óbvia. Quando estes objetos são colocados em
significava alimento para consumo humano, um peitoril de janela ou em um degrau eles
enquanto, à primeira vista, as naturezas-mortas refletem, então, o ambiente real existente na casa
da Campânia e não precisam referir-se a costu­
mes gregos para serem compreendidos. Pessoas
que não pertenciam à elite talvez os usassem
(1) Nota do tradutor: [G rego] obsônium ou ops-, ii, n.,
= opsônion, aquilo que é comido com pão; provisões, como balcões para comer. Horácio descreve sua
alim entos, especialmente peixe. Também de frutas, Plin. própria modéstia quando cita a lapis albus - a
15, 19, 21, § 82. laje branca na qual ele comia ao invés de usar

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WINKES, R. N atura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 145-161, 2000.

a cozinha portátil que acompanhava o sofistica­ suficiente que seu livro seja capaz de esclarecer
do Túlio em público (Horácio, Sermonum: I, VI, e substanciar alguns pontos básicos. Encontra­
16). E então há as pinturas nas quais animais mos várias receitas para o preparo de galinhas e
vivos aparecem, o que levou Eckstein a clas­ lebres. Encontramos receitas para o preparo de
sificá-las como estudos naturais. Alguns dos patos e aves de caça. O pavão aparece com
animais representados têm os pés amarrados, bastante freqüência nos afrescos da Campânia
há um lagostim morto e um polvo junto a uma e talvez possa, em alguns exemplos, simbolizar a
oinochoe (jarra de vinho). Estas são referências vida após a morte, mas também pode ser
a uma receita de peixe e, como os animais com entendido como uma referência à comida.
os pés amarrados, devem ser interpretados Marcial (XIII: Epigram LXX) admira a beleza do
como animais destinados à alimentação. pavão e considera cruel o homem que o entrega
Realmente, a pintura com a ave morta, frutas no para o cozinheiro insensível. Trimalcião no
peitoril da janela e uma lebre mordiscando uvas Satiricon não tem nada mais profundo a
dão - à primeira vista - a impressão de uma acrescentar que seu verso que afirma: o pavão
mistura entre natura morta e pintura de gênero. espera a morte em sua gaiola para agradar ao
O mesmo parece ser o caso nas muitas pinturas paladar romano. Juvenal (Sat.: I, 143) escreve
nas quais galos, galinhas ou outras aves que aquele que entra nas termas depois de
domésticas mordiscam uvas ou maçãs. Entre­ comer pavão em demasia é punido pela refeição
tanto, a narrativa deveria nos alertar: sabemos pesada. Mesmo papagaios não são excluídos
que galinhas ou lebres normalmente não da mesa romana, e uma receita destes utiliza os
mordiscam uvas ou maçãs. Columella menciona mesmos ingredientes que uma outra para
a dieta apropriada para pequenos animais como flamingos. Mesmo que uma receita para o
a lebre. Esta consistia de sementes de grãos, preparo de doninhas não seja mencionada, não
chicória selvagem, alface e ervilhas púnicas, as devemos esquecer que o rato do campo era
quais, principalmente para os animais jovens considerado uma iguaria. Do mesmo modo que
que não se dão bem com rações secas, deveri­ a galinha era uma parte predileta da alimentação
am ser deixadas de molho na água. Ele escreve romana, também o eram as frutas. Uma pintura
que galinhas deveriam ser alimentadas com no Museu Nacional de Nápoles é particular­
milhete, cevada, ervilhas, farelo de trigo e trevo, mente interessante: um galo de pés atados está
mas previne quanto à utilização de cascas de deitado ao lado de um pinhão e um pouco de
uvas. Cascas de uvas deveriam fazer parte da erva ou verdura (Fig. 8). Atrás do galo, no alto
ração no período do ano em que elas não de um degrau, há um ovo e um cyathos apoia­
estivessem botando ovos. Lendo Columella, do. A faca à direita frisa o destino do galo. Uma
parece pouco provável que os animais estejam receita chamada Galinha a La Varro em Apicius
comendo nos afrescos o que eles costumavam {De re coq. VI, IX, 11) é lida como se segue:
comer normalmente. Claro que isso poderia ser
uma referência divertida ao fato de os animais Pullum coques iure hoc: liquamine, oleo,
uino <cui mittis> fasciculum porri, coriandri,
estarem fazendo uma travessura e, sendo assim,
satureiae. Cum coctus fuerit, teres piper, núcleos
este tipo de narração poderia derivar realmente ciatos duos et ius de suo sibi suffundis (et
da pintura de gênero. Porém, uma doninha fascicules proicies), lac temperas. Et reexinanies
mordiscando uma noz pede uma explicação já mortarium supra pullum, ut ferueat. Obligas
que este é um animal carnívoro. Um exame mais eundem albamentis ouorum tritis, ponis in lance
cuidadoso confirmará que apenas alguns et iure supra scripto perfundis. Hoc ius candidum
appelatur.
elementos de narrativa são usados nas compo­
sições destinadas ao consumo. Podemos Cozinhe uma galinha dessa maneira: em um
descobrir isso através de Apicius e de outros caldo de garu m , óleo e vinho suave, junto com
um buquê de alho-poró e coriando. Depois de
autores que descrevem hábitos culinários.
cozida, pegue pimenta, o centro de dois pinhões,
Apicius é ainda mais útil já que ele é contempo­ o caldo em que se cozinhou a galinha (rem oven­
râneo das naturezas mortas da Campânia. E do o buquê) e acrescente leite. Ponha essa
possível que Apicius seja uma compilação de preparação sobre a galinha e deixe ferver. Pique
várias fontes sob um mesmo nome, mas é as claras de ovo, ponha em um prato e acrescen-

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W INKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Fig. 6 - Ainé, R. Herculano e Pompéia, Coleção Geral das Pinturas, Bronzes, Mosaicos,
etc., vol. V, 1872, Prancha 48. Foto Ms. Brooke Hammerle.

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W INKES, R. N atura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Fig. 7 - Ainé, R. Herculano e Pompéia, Coleção Geral das Pinturas, Bronzes, Mosaicos, etc., vol. V, 1872, Prancha 50. Foto Ms.

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Brooke Hammerle.
WINKES, R. N atura M orta. R evista do M useu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Fig. 8 - Ainé, R. Herculano e Pompéia, Coleção Geral das Pinturas, Bronzes, Mosaicos,
etc., vol. I, 1863, Prancha 9. Foto Ms. Brooke Hammerle.

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W INKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

te o m olho explicado acima. Este é chamado de cita vários tipos de tábuas de escrita, caixas de
m olho branco. marfim ou madeira para guardar dinheiro, uma
caixa de stylos, uma estante para livros e um
Este afresco poderia ser uma ilustração
Virgilio em pergaminho. Muitos outros também
para o livro de receitas de Apicius caso tais
são mencionados. Eles incluem pássaros como
ilustrações existissem como nos livros de
um papagaio, um corvo ou um rouxinol. Para
receitas modernos, o que não acontecia.
onde quer que viremos, tudo parece apontar
Parece claro pela evidência que as nature­
para costumes culinários contemporâneos.
zas-mortas com objetos misturados se basea­
Eles simbolizam - como no caso das naturezas-
vam na comida consumida na época, na
mortas holandesas - a riqueza. Porém, no caso
cozinha contemporânea. Entretanto, este
holandês, eram a expressão de uma riqueza
fenômeno poderia ser examinado sob um outro
vivenciada pelos burgueses que encomenda­
ponto de vista. Certamente não tem o mesmo
vam essas pinturas. As naturezas-mortas
significado da natureza-morta holandesa, já
refletiam, até um certo ponto, a realidade das
que Horácio considerava luxuosas comidas suas vidas, mas também incorporavam vários
tais como ostras lucrine, aves africanas ou outros significados que aludiam à inteligência
faisões jônicos (Epode II, 49 ff.). A quinta do criador. Elas às vezes serviam como uma
sátira de Juvenal é repleta de comparações expressão do interesse científico, como no
entre a comida do homem de sociedade e a caso dos buquês de flores, ou aludiam a ou
comida daqueles das classes mais baixas. Na eram comparadas a uma tradição existente de
sua décima primeira sátira se encontra a virtudes cristãs. Afrescos romanos com
descrição dos pratos dos serviços de mesa e representações arquitetônicas devem, pelo
de outros objetos que rodeiam a mesa de menos até a época de Augusto, ser entendidos
jantar. Os comerciantes de Pompéia eram como uma cópia embelezada da arquitetura
consideravelmente prósperos em comparação contemporânea. Este tratamento particular do
com comerciantes em outras partes do Império tema surgiu em conexão ao renascimento do
e certamente em comparação com a maioria das epicurismo no Golfo de Nápoles, onde a
pessoas que não pertenciam à aristocracia. A aristocracia vivia uma vida de ócio, longe da
maior parte das pessoas comia muito pouco, agitação de Roma, longe do negotium. Este é o
não possuía uma cozinha e fazia as refeições contraste entre vida contemplativa e vida
na popina esquina. Cozinhas eram raras nos ativa; o aristocrata possuía ambas. Referências
prédios de apartamento em Óstia. Assim como ao epicurismo é o paralelo na antigüidade das
as referências a xenia se referiam à comida e alusões holandesas às tradições cristãs.
aos hábitos dos ricos, as receitas de Apicius e Mesmo que as naturezas-mortas nas duas
a comida representada nas naturezas-mortas culturas sejam aparentemente muito parecidas,
da Campânia são um reflexo de um estilo de elas são em essência muito diferentes. En­
vida abastado. Juvenal considera Apicius a quanto os holandeses eram precisos e meticu­
personificação da gula (Sat. XI, 2-3). São raras losos no seu interesse científico, os romanos
as naturezas-mortas apenas de objetos, da Campânia eram detalhistas nas suas
pintados do mesmo modo que poderiam ser referências aos costumes culinários contempo­
vistos na casa de uma pessoa abastada; estas, râneos. Na arquitetura romana ilusionista era
porém, também se referem aos hábitos culinári­ representada uma arquitetura contemporânea
os já que mostram pratos e taças. Entretanto, que agradava ao comerciante mas que este não
há ainda o fenômeno da representação de podia ter e, por isso, decorava sua casa com
tábuas de escrita e instrumentos. Deverão ser esta ilusão. A comida aqui representada
interpretados como os livros nas naturezas- estava, da mesma maneira, fora de seu alcance,
mortas holandesas, que pretendem evocar o era um sonho. Só pessoas vulgares como
tema da vanitasl Certamente não. Marcial Trimalcião adotavam o comportamento
(Epigram XIV) nos fornece uma lista de inadequado para uma pessoa da sua classe e
apophoreta. Estes são presentes que os ofereciam jantares que podiam rivalizar em
convidados podem pegar e levar para casa. Ele abundância com os jantares da aristocracia.

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W INKES, R. Natura M orta. R evista do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

Encontramos em Satiricon e em várias casas das circunstâncias nas quais as naturezas


em Pompéia alusões à morte. Em Satiricon, um mortas da Campânia devem ser vistas:
esqueleto de prata é passado ao redor da mesa
Nam cum mundatis as symphoniam mensis
de jantar. Conhecemos as taças de prata de tres albi sues in triclinium adducti sunt capistris
Boscoreale decoradas com esqueletos e uma et tintinnabulis culti, quorum unum bimum
casa com um mosaico ilustrando o mesmo nomenclátor esse dicebat, alterum trimum,
tema. Mas a referência à morte não deve ser tertium vero iam senem. Ego putabam petauris-
tarios intrasse et porcos sicut in circulis mos est
interpretada como tendo o mesmo significado
portent a aliqua facturos. Sed Trimalchio
que nas naturezas-mortas holandesas, onde exspectatione discussa “quem” inquit “ex eis
esta era um alerta originado na tradição cristã vultis in cenam statim fieri? Gallum enim
de valores, visando a vida após a morte e gallinaceum , penthiacumet çius modi naenias
ressaltando a necessidade da virtude para que rustici faciunt; mei coci etiam vitulos aeno
coctos solent facere.” Continuo que cocum
se possa alcançar uma vida após a morte tão
vocari iussit et non expectata election e nostra
boa quanto possível. As naturezas-mortas da máximum natu iussiti occidi.
Campânia mostram um ponto de vista oposto,
As mesas foram tiradas ao som de música e
o epicureano: carpe diem, aproveite o presen­ três porcos brancos com arreios e sininhos foram
te porque amanhã pode ser diferente; não se trazidos para a sala de jantar. O mordomo disse
preocupe com o que vai acontecer após a que um deles tinha dois anos, o outro três e o
morte. Os que estão representados vivos não terceiro quase seis anos. Pensei que malabaristas
haviam chegado e que os porcos iriam participar
estão. Em muitas naturezas-mortas holandesas
de números incríveis, com o em espetáculos
os animais representados vivos sugerem uma saltimbancos. Essa expectativa se acabou quando
vida de luxo. Podem também refletir uma certa Trimalcião perguntou: “ Qual deles vocês querem
atividade de gênero, como um cão em conexão a agora mesmo para o seu jantar? Qualquer caipira
uma caçada. Nas naturezas-mortas da Cam­ pode oferecer um frango assado, uma sopa ou
outras coisinhas; meus cozinheiros estão
pânia, os alimentos vivos têm apenas um
acostumados a preparar animais inteiros.”. Ele
propósito: se transformar em natura morta para chamou um cozinheiro imediatamente e, sem
agradar ao nosso paladar. Petrônio (Satiricon: esperar por nossa resposta, lhe ordenou que
47) é uma da melhores representações literárias m atasse o maior porco.

WINKES, R. Natura M orta. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,


10: 145-161, 2000.

ABSTRACT: The representations of still-life in Campanian frescoes are


compared with the later Dutch still-life. On first sight they appears to be quite
similar. However, the meaning of Dutch still-life is connected to a demons­
tration of opulence by the burghers at the time, Christian values and leamed-
ness. Campanian frescoes have been associated with the Greek xenia and
have also been called at times genre pictures. It turns out that they are rather a
reflection of culinary customs in Campania.

UNITERMS: Roman frescoes - Still-life - Opsonia - Xenia.

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W INKES, R. N atura M orta. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 145-161, 2000.

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161
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 163-174, 2000.

SELOS-CILINDROS MESOPOTÂMICOS
- UM ESTUDO EPIGRÁFICO

Katia Maria Paim Pozzer*

POZZER, K.M.P. Selos-cilindros m esopotâmicos - um estudo epigráfico. R evista do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

RESUMO: O estudo dos selos-cilindros mesopotâmicos é importante não


somente por sua iconografia, mas, também, pelas inscrições que eles contêm.
Neste artigo analisamos alguns textos de um arquivo privado de um rico
mercador de Larsa no período paleobabilônico. Os documentos são represen­
tativos da diversidade tipológica dos textos cuneiformes deste período, da
atuação do setor privado na economia paleobabilônica e da preocupação em
garantir a autenticidade dos mesmos com a aposição sistemática de selos-
cilindros em tabletes e envelopes.

UNITERMOS: Mesopotâmia - Selo-Cilindro - Epigrafia - Arquivos


Privados - Tabletes Cuneiformes.

A documentação cuneiforme é diversa e ou de Historiografia. É, então, através dos


numerosa, estima-se em mais de 200.000 os tabletes cuneiformes que se pode conhecer e
fragmentos repertoriados em todo o mundo, reconstruir este período da história da humanida­
mas a cada ano, as missões arqueológicas de, e buscar uma aproximação maior com sua
multiplicam, de maneira impressionante, este riqueza e complexidade (Pozzer 1998).
número. O estudo dos selos-cilindros mesopotâmi­
Longe de ser uma curiosidade, os tabletes cos é importante não somente por sua icono­
cuneiformes são a fonte privilegiada para o grafia, mas, também, pelas inscrições que eles
estudo da Antigüidade Oriental. A documenta­ contêm. Analisaremos o conteúdo dos selos1
ção não é nem monótona, nem limitada a uma presentes nos tabletes de argila que compõem
categoria particular. Os gêneros da documenta­ os arquivos privados2 de um importante
ção vão da literatura elaborada, - como os mitos,
os textos religiosos e sapienciais -, até os textos
ditos da prática, - como contratos, testamentos,
(1) Este estudo dos selos-cilindros foi realizado à
processos, faturas, etc. -, passando por todos os partir da im pressão destes nos tabletes cuneiform es,
gêneros intermediários, da magia, das ciências, pois os próprios selos-cilindros nunca foram encon­
de cartas privadas e textos oficiais da Diplomacia trados.
(2) Esse trabalho é parte integrante de minha Tese de
Doutorado, realizada na Université de Paris I -
Panthéon-Sorbonne, ainda inédita no Brasil (Pozzer
1996). N ela realizei o estudo de arquivos familiares de
(*) Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. im portantes m ercadores.

167
POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo epigráfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

homem de negócios, na cidade de Larsa, daqueles que chegaram até nós, pois, como
localizada na Baixa Mesopotâmia, no período sabemos, os envelopes conservam-se com
paleobabilônico situado entre 1.822 e 1.763 a.C. maior dificuldade.
Nosso propósito é determinar as ligações No reino de Larsa, os contratos conti­
sociais existentes entre os indivíduos e compre­ nham uma cláusula referente aos selos - kisib
ender, dentro dos limites de nossas fontes, as lú-inim-ma-bi-mes íb-ra ou, simplesmente,
razões da utilização desse tipo de prática. kisib-a-ni íb-ra, cuja tradução é “o selo das
Em seu estudo sobre os selos da época testemunhas foi aposto” ou “o selo foi
paleobabilônica, Leemans (1982: 221) estabele­ aposto”. Essas fórmulas colocam em destaque
ceu que eles podiam ter as seguintes funções: o papel das testemunhas no negócio, o qual
pode ser interpretado como um reforço da
1. indicar a propriedade de alguma coisa,
autenticação do ato econômico. De fato,
2. proteger alguma coisa contra infrações,
3. certificar a qualidade, o peso, a medida ou o quanto mais impressões de selos de testemu­
conteúdo de alguma coisa, nhas houvesse, mais difícil seria contestar o
4. identificar o portador de um selo no senti­ documento, ainda mais que essas testemunhas
do b ou indicá-lo com o representante, desfrutavam, geralmente, de uma importante
5. dar conhecimento do fabricante ou expedi­ posição social.
dor de alguma coisa,
Quando o documento era selado por
6. confirmar um escrito - contrato, declara­
ção, carta etc. - seja em lugar ou ao lado da assina­ uma das partes contratantes, esta era quem,
tura, pelo contrato, renunciava a um direito ou
7. autenticar um escrito, às vezes, coincidin­ assumia uma obrigação. Era, assim, o benefi­
do com 6, ciário da transação que apunha seu selo no
8. aprovar um ato por uma p essoa ou uma caso dos recibos de prata ou de bens, o
autoridade,
devedor que o fazia no caso de empréstimos e
9. indicar (provar) a presença de alguém a um
o vendedor, no de vendas.
ato.
Sabemos, também, que os selos pessoais
Deduzimos, pois, que o selo aposto a um podiam ser transmitidos de uma geração a
contrato tinha, por finalidade, autentificar o outra e que o filho mais velho herdava o
documento. direito de utilizar o selo de seu pai após a
Na época de Isin-Larsa (2.004-1.792 a.C.), a morte deste (Charpin 1990: 62).
maioria dos contratos eram selados pelas Entre os selos presentes em nossa docu­
testemunhas, encontrando-se apenas algumas mentação, pudemos reconhecer três tipos,
raras exceções, nas quais o próprio proprietá­ conforme a classificação estabelecida por Gelb
rio do selo era uma das partes contratantes, a (1977: 117): pessoais, bur-gul e de inscrições
exemplo do que era o usual nos tempos de Ur religiosas. Os primeiros caracterizam-se pela
BI (2.112-2.004 a.C.). presença de três linhas, a saber-se, “nome
Os contratos eram redigidos do ponto de próprio” (NP), “filho de [segundo nome
vista do comprador e não das testemunhas, próprio]” (NP2), “servidor de [nome de divin­
como o afirma Renger (1977: 75), uma vez que dade]” (ND). Os segundos, em geral, não
esses documentos tornavam-se o título de apresentam iconografia; o proprietário é,
propriedade do adquirente (Charpin 1985: 20). simplesmente, identificado através da fórmula
Por sua vez, os selos eram apostos, na maioria “NP filho de NP2” e as inscrições consistem em
das vezes, sobre o envelope3 e não sobre o sinais maiores e gravados mais grosseiramen­
tablete, o que explica o reduzido número te, tratando-se de selos confeccionados
especialmente para determinada ocasião
(Whiting 1977: 67). Os últimos selos compor­
tam, freqüentemente, duas linhas (ND, ND2),
(3) O envelope tinha por função a proteção do sobre cada uma das quais está escrito um
tablete. Após a secagem do tablete, ele era recoberto
nome divino.
com uma fina camada de argila m ole onde se inscrevia
um resumo do conteúdo do tablete, se fazia o
Charpin (1990: 72-74), que, em seu estudo
“endereçam ento”, no caso de tratar-se de uma carta, das inscrições dos selos-cilindros de diversas
e se apunha o selo-cilindro. famílias babilónicas, interessou-se pelo

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POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo ep igráfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

significado da menção “servidor de [nome de 10 ad-da-mu nu-me-en


divindade]” (ir ND) presente nos selos ba-na-an-du,,
pessoais, afirma que a menção “ir ND” exprime 12 kú-sè ba-an-sum-mu-us
uma devoção particular. Mas, segundo Gelb ú tukum-bi
(1977: 113-114), essa expressão significa que o 14 xse20-ep-dEN.ZU
possuidor do selo é um funcionário do templo nam i-lí-gi-im-la-an-ni
ou um sacerdote. Consideramos que a idéia de 16 dumu-mu nu-me-en ba-na-an-duH
devoção particular seria a mais plausível, é ni-ga-ra bar-ra-è-a
assim como a hipótese de que as divindades A .18 mu dnanna dutu
que figuram nos selos não seriam somente de ú dri-im-dEN.ZÜ lugal
origem paterna, mas familiares. 20 in-pàd-mes
De fato, tratando-se de uma sociedade
igi dEN .Z\J-i-ri-ba-am mu
patriarcal, onde a figura do pai mostra-se
22 igi sa-ap-ri-ia nu-gis-kiri6
preponderante no seio da família, assim como
igi dutu-e-ti-ir nu-gis-kiri6
no resto da sociedade, a devoção familiar
24 igi a-na-pa-ni-dmgir dub-sar
poderia se confundir com a devoção patriarcal,
kisib lú-inim-ma-bi-mes
o que explicaria, também, a transmissão dos
selos-cilindros de pai para filho. 26 íb-ra
iti gan-gan-è u4-20-kam
28 mu ki-10 gis-tukul-mah AN den-líl
Os arquivos de Sêp-Sin, den-ki-ga-ta
mercador de Larsa 30 i-si-inki in-dib-ba

selos a) dEN.Z\J-e-ri-ba-am
Sêp-Sin foi um importante mercador,
ir dnin-subur
segundo vasta documentação oriunda da
cidade-estado de Larsa (Anbar 1975 e 1978).
b) dnin-subur
Ele praticou compra e venda de terrenos e
[x x]-an-na
campos, de escravos, mas se especializou no
empréstimo de prata. Analisaremos em seguida
''5 Ili-gimlanni, é o seu nome, Sêp-Sin
alguns destes documentos,4 que consideramos
recebeu em filiação dele mesmo. Ele o tomou
representativos da diversidade deste dossiê.
seu herdeiro. 6 /2 No futuro, se Ili-gimlanni
Os arquivos de Sêp-Sin contêm vários docu­
disser à Sêp-Sin, seu pai: “tu não és meu pai”,
mentos selados. Assim, o documento n° 1
ele será vendido (como escravo). ,3'17 E se Sêp-
(YOS VIII, 120) é um contrato de adoção,
apresentando dois selos. Sin disser à Ili-gimlanni: “tu não és meu filho”,
ele perderá seu direito sobre a casa e os bens.
18-20 Eles juraram por Sin, Sarnas e o rei Rlm-Sin.
N° 1 (20/IX/RS 39)
2I'26 Diante de Sin-iribam, cozinheiro, diante de
1i-lí-gi-im-la-an-ni mu-ni
Sapriya, jardineiro, diante de Samas-etir,
2 ki ní-te-na
jardineiro, diante de Ana-panI-ili, escriba. O
'se20-ep-AEN.ZU
selo das testemunhas foi aposto.
4 nam-dumu-ni-sè su ba-an-ti a) Sin-eribam, servidor de Ilabrat;
nam-ibila-ni-sè in-gar b) Ilabrat, [xx]-anna
6 u-kúr-sè
4
u 4-na-me-a-ak
tukum -bi Este texto é um típico contrato de adoção,
8 1i-lí-gi-im-la-an-ni com cláusulas que prevêem as sanções para
cada uma das partes, se vierem a negar o
nam se20-ep-áEN.ZU ad-da-ni
contrato ali redigido. No caso do filho renegar
o pai, ele será vendido como escravo. Mas, se
(4) Apresentamos a transcrição dos tabletes, linha a o pai renegar o filho adotivo, ele perderá seus
linha, indicando-se somente os números de linhas pares, próprios bens. O juramento é feito em nome do
as laterais com o símbolo (L) e o anverso com (A). rei de Larsa, Rím-Sin e por duas divindades

165
POZZhiK, K..M.P. S elo s-cilin d ros m esopotâm icos — um estudo epigràfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 163-174, 2000.

N° 1 importantes, Sarnas5 e Sin.6 Esse documento


está datado do dia 20, do mês kislimu (novem­
bro/dezembro) do 39° ano do reinado de Rlm-
Sin.
% ffi-itf ^ Na Baixa Mesopotâmia, os contratos de
adoção eram selados, fosse por aquele que
Y 3f- doava a criança/o adulto, fosse pela pessoa
adotada ou por quem a adotasse (Leemans
1982: 226-227). Entretanto, nesse documento,
f
um dos selos pertence a uma das testemunhas,
iW lP # " alguém qualificado como cozinheiro, e o outro
é, provavelmente, um selo de inscrição religio­
sa, sendo que a divindade Ilabrat7 está presen­
T te em ambos.
Na Mesopotâmia, a adoção de crianças e
« tt - f adultos era praticada com certa freqüência,
ío *^21 como atestam diversas fontes (Stone e Owen
1991). Podemos dizer que a adoção era o
expediente encontrado pelas famílias sem
JSfíC prole, para garantir sua sobrevivência na
velhice, pois, segundo a tradição da época, os
pais idosos eram amparados economicamente
T j - p # pelos filhos.
Temos um segundo documento (n° 2 -
« *8£
TEBA I, 9) que é um contrato de compra de um
terreno portando três selos, dos quais um
pertence ao vendedor e os dois outros às
testemunhas.

N° 2 (-/TV/RS 47)
- f p r n f W , ' & F * ¥ L> X R £ Z t & ^ ' 1 esè iku a-sà kankal
2 ús-sa-rá a-sà s/-//-dEN.ZU
ús-sa-rá 2-kam \x-ni-sa-nu-um
-f- 4 sag-bi e-sa-mu-um
sa ka-al-ba-na-nu-um
6 a-sà Aw\.w-na-pa-al-ti
ki Ax>A\x-na-pa-al-ti
8 lugal-a-sà-ga-ke4
-f- IdEN.ZU-be-el-ap-lim ù se20-ep-AEN.ZU
10 in-si-in-sám
22 % Y ^ m 3 A £ h *
11 2/3 gin kù-babbar
É$E 12 sám-til-la-ni-sè
in-na-an-lá
14 inim-rgáP-la-a-bi a-sà
li\xt\x-na-pa-ral-tP

* r J Q í J # t f ¥

(5) Samas, o deus-sol, também considerado o deus da


justiça.
(6) Sin, o deus-lua que, segundo a cosmogonia
&r ¿or mesopotâmica, era o pai de Samas.
(7) Ilabrat é o nome acádico do deus Ninãubur, hoje
1
*

associado à constelação de Orion.

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POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo ep igráfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
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16 rban-ni-ib-gi4-[g iJ
inim-gál-la a-sà ú-ul [x]
18 i-rta a-bu-um-ma
1 esè iku a-sà ¡-na suku káa-Ii /-[xx]
20 u4-kúr-sè u4-nu-me-a-ak inim nu-gá-gá-a
nu-ub-ta-bal-e
22 mu dnanna dutu ú dr/-/>77-dEN.ZU lugal
in-pàd-me-es
24 igi dEN.ZU-ma-gir
igi mu-na-wi-rum
26 igi dut u - / -in-rma' -tim
igi a-hu-um
28 igi a-hu-ia-tum
igi ip-qú-ú-tum
30 igi la-a-lum
igi ip-qú-sa
32 igi i-dí-nam
ritf su-numum-a
34 mu ki-18 i-si-in-naki
ba-an-dib

envelope
4 sag-bi e-sa-mu-um
27 igi a-hu-ú-a-tum
28 igi dutu-a-bi
30 igi ta-ri-bu-um
31 igi ap-Ium
32 igi a-lí-wa-aq-rum
As linhas 26, 29 e 31 foram omitidas.
s e lo s a) a-hu-um
durnu ka-lu-mu-um
ir dlu g a l-g ú !-d u 8-a
b) iEH.Z\J-ma-gir
dumu sí-na-tum
ir dn in -si4-an-na
c) àutu-na-pa-al-ti
dum u dingir-í//77-/77a
ir dMAR.TU
h6 6 iku8 de um campo inculto, ao lado
do campo de Silli-Sín; o segundo lado (faz
vizinhança com o) de Warad-nisanum, seu
pequeno lado9 dá sobre o esam um 10 de
Kalbanãnum, campo de Samas-napalti. 7'13
Sin-bêl-aplim e Sêp-Sin compraram de
Samas-napalti, o proprietário do campo. Eles

(8) 1 iku é unidade de medida de superfície e eqüivale


a 3.600 m2.
(9) Os terrenos, em geral, tinham o formato
retangular, o que explicaria a referência à dois lados
maiores e dois lados menores.
(10) Este termo não possui tradução, acreditamos que
se trate de um tipo específico de terreno.

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N° 2 - Envelope N° 2 - Selos

pagaram 11 2/3 siclos11 de prata por seu


preço completo.12 I4'18 Contra uma reivindica­
ção do campo, Samas-napalti se oporá, ele
não [...] a reivindicação do campo, na cidade
de Abüm. 1923 6 iku de um campo dentro de
um campo alimentar, na porta da cidade13
[...]. No futuro, para sempre, ele não reclama­
rá, ele não mudará (de opinião). Eles juraram
pelo nome de Sín, Sarnas e do rei Rlm-Sin. 24
33 Diante de Sin-magir, diante de Munaw-
wirum, diante de Samas-Tn-matim, diante de
Ahüm, diante de Ahüyatum, diante de
Samas-abi, diante de Ipqütum, diante de
Layalum, diante de Taribum, diante de
Aplüm, Ipqusa, diante de Ali-waqrum, diante
de Sin-iddinam.

a) Samas-napalti, filho de Ilumma, servidor


de Amurrum;
b) Sin-magir, filho de Sinatum, servidor de
Ninsianna;
c) Ahüm, filho de Kalümum, servidor de
Lugalgudua.
Esse tablete insere-se na tradição de Larsa,
segundo a qual aquele que cedia uma proprie­
dade devia, efetivamente, apor seu selo.
Trata-se de um documento de compra de
um campo inculto (não plantado), onde o
vendedor é Samas-napalti e, Sêp-Sin compra
em sociedade com Sin-bêl-aplim. O texto, que
teve também preservado o envelope, está
datado do quarto mês do calendário assírio
(düzu), equivalente aos meses de junho/julho

(11) Unidade de medida de peso, 1 siclo equivale a,


aproxim adam ente, 8 gramas.
(12) Essa expressão indica que foi realizado um
pagamento a vista.
(13) As cidades antigas orientais eram cercadas de
altas e espessas muralhas que podiam ser transpostas
através de grandes portões, que eram chamados de
“portas da cidade”.

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POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo ep igráfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

de nosso calendário atual. A fórmula de N° 3


localização do referido campo está incompleta,
pois é indicado a vizinhança de apenas três
dos quatro lados do terreno.
A seguir temos um documento de emprésti­
mo (YOS Vni, 157) de uma significativa quanti­
dade de prata, que era o metal nobre empregado
nas diversas transações comerciais da época.

N° 3 (30/XI/RS 55)
13 ma-<na> kú-Hbabbar1
2 ugu mu-na-wi-rum
lse-ep-áEN.ZU
4 in-tuk
inim-ta lsà-ar-ri-qum
6 iti sig4-a
1sà-ar-ri-qum
8 kú i-la-é
A. igi \x-zi-ib-nim
10 igi dMAR.TU-/7a-5/r
T tab-si-Jum
12 'li-pí-it-dinanna
xa-wi-lum
14 ldka-di-sa-£//-/
aga-ús dnin-urta-/7/-sw
16 kisib-a-ni íb-<ra>
iti zíz-a u4-30-kam
18 mu ki-26 gis-tukul-mah
i-si-inki
20 in-dib-ba

selos a) su-um-su-nu-rurrP
ir dnin-subur
ú dmas-tab-ba

b) mu-na-wi-ru-um
dumu dutu-[...]-[x] [...]
a) Sumsunum, servidor de Ninsubur e de
ir d[...]
M astabba;
b) Munawwirum, filho de Samas-[...],
u? Sêp-Sín emprestou 13 minas14 de prata
servidor de [...].
para Munawwirum,15 por intermédio de Sarri-
O documento de empréstimo de prata foi
qum. g-16 No mês Simânu Sarriqum deverá
selado pelo devedor e por uma pessoa que não
pagar a prata. Diante de Warad-zibnim, diante
é nominada no texto, sendo que o selo desta
de Amurrum-nasir, Tâb-sillum, Lipit-Istar, Awllum,
última tem a particularidade de apresentar dois
Istaran-sadi, soldado de Ninurta-nisu. Seu selo
nomes de divindade.
foi aposto.

(14) Unidade de medida de peso, 1 mina equivale a,


aproxim adam ente, 4 8 0 gramas.
(15) Tradução literal: Sèp-Sín tem um crédito de 13
minas de prata sobre Munawwirum.

169
POZZER, K.M.P. S elo s-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo epigráfico. R evista do M useu de A rq u eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 163-174, 2000.

Esse empréstimo foi intermediado por N° 4


Sarriqum, o responsável pelo pagamento,
talvez uma espécie de avalista de Munawwirum.
O mês previsto para o pagamento é o terceiro
mês do calendário assírio (maio/junho), logo
após as colheitas, quando a população dispõe
de mais recursos para realizar seus negócios
privados.
O tablete n° 4 (YOS VIII, 150), referente a
um processo jurídico, possui dois selos,
pertencentes a juizes citados como testemu­
nhas, de acordo com o que dispunha a tradi­
ção (Leemans 1982: 237-238).

N° 4 (5/XII/RS 55)
as-sum é sa I5Íe2í,-e/>-[dEN.ZU]
2 ki dEN.ZU-uru,4 isa-bi-su i-sa-mu
i-sa-mu
4 ldEN.ZU-uru4
ib-qú-ur-su-ma
6 um-ma su-ú-makú-babbar ú-ul gu-mu-ra
lu-bar-áutu
8 im-hu-ru-ú-ma
ra-mr é dnin-mar-ki
10 it-ru-da-as-su-nu-rtP -ma
di-ku5-mes sa é dnin-mar-ki
12 di-nam ú-sa-hi-zu-su-nu-ti-ma
xse20-ep-áEN.ZU
14 a-na ni-is dingir id-di-nu-ú-ma
lse20-ep-àEH.Z\J
16 ku-nu-uk é sa i-sa-mu
il-qé-e-ma
L. 18 ki-a-am iz-kur um-ma su-ma
sa p i-i ku-nu-uk-ki-im
20 an-ni-im
A. kú-babbar ga-am-ra-am
22 lu na-ad-na-ku
sí-it-tum e-li-ia
24 la ib-ba-su-ú-ma
igi dingir-su-i-bi-<su> di-ku5
26 igi dEN.ZU -sar-rum di-ku5
X\x-zi-ib-nu-um nu-bànda
28 xma-nu-um sagin
xa-na-pa-ni-à\ng\r nu-gis-kiri6
30 xa-hu-wa-qar aga-ús
1u-bar-dutu selos a) dEN.ZU-sar-ru-um
32 IdEN.ZU-uru4 dub-sar dumu mu-sa-a
ir Ai-sum
iti se-kin-ku5 u4-5-kam
34 mu ki-26-kam i-si-inki b) dingir-su-i-bi-su
ba-an-dib dumu a-rhi?-[x\

170
POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m esopotâm icos - um estudo epigráfico. R e vista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

16 (Documento) sobre a casa que Sêp-Sin Temos aqui um segundo documento (YOS
comprou de Sin-eris, um servidor de seu pai. VIII, 151) referente à empréstimo de prata.
Sin-eris reivindicou-lhe a casa, ele disse
assim: “a prata não foi completamente versa- N° 5 (9/XII/RS 56)
da”.16 7 /0 Eles foram encontrar Ubar-Samas,
1 gin igi-6-gál 6 se kü-[babbar]
(e) ele os enviou ao templo de Nin-marki.17 u'24
2 ki se20-ep-áEN.ZU
Os juizes do templo de Nin-marki renderam-
ldEN.ZU-uru,
lhes uma sentença, eles liberaram Sêp-Sin por
4 su ba-an-ti
causa do juramento pelo deus. Sêp-Sin tomou
iti sig4-a
(para si) o documento selado da casa que ele
6 ku i-lá-e
comprou e jurou assim: “segundo o conteúdo
igi puzur4-dutu
deste tablete selado, eu dei completamente a
prata,18 não há nenhum débito de minha 8 igi bé-el-su-nu
parte”. 25'32 Diante de Ilsu-ibbisu, juiz, diante kisib lú-ki-inim-ab-bi-mes
de Sín-Sarrum, juiz, Warad-zibnum, tenente, 10 ib-ra-as
Manüm, governador, Ana-panI-ili, jardineiro, iti se-kin-ku,5 u.-O-Tcanf
4
Ahuwaqar, soldado, Ubar-Samas, Sin-eris, 12 mu ki-27 i-si-rin-nakn
escriba.
envelope
a) Sin-Sarrum, filho de Musaya, servidor
1 gin igi-6-gál 6 se kü-babbar
de Isum;
b) Ilsu-ibbisu, filho de Ahu[...].
selos a) puzur4-dutu
Este documento ilustra bem a prática de dumu nu-úr-áutu
resolução de uma disputa sobre propriedade. ir dutu
Na ausência de documentos e de testemunhas
que presenciaram o negócio, as partes em b) bé-el-su-nu
litígio dirigem-se à um dos templos da cidade19 dumu dEN.ZU-/-r^/-5a1-[â/w]
e prestam juramento diante do deus. Depois ir d[...]
disso, os juizes do templo proclamam uma
sentença que deve ser cumprida. U6 1 1/6 siclos 6 se de prata Sin-eris
O texto é selado por duas testemunhas, recebeu de Sêp-Sin. No mês Simânu ele pagará
ambas juizes de profissão. Ao analisarmos a a prata. 710 Diante de Puzur-Samas, diante de
constituição dessas testemunhas vemos que, Bêlsunu. Os selos das testemunhas foram
com exceção de um soldado e um jardineiro, apostos.
todos os outros pertencem às mais altas
categorias sociais, o que pode ser um indício a) Puzur-Samas, filho de Nür-Samas,
do círculo de amizades e da própria condição servidor de Sarnas;
social de Sêp-Sin, como importante homem de b) Bêlsunu, filho de Sin-iqisam, servidor
negócios da cidade de Larsa. de [...].

Por sua vez, o texto n° 5, que se constitui


em um recibo por empréstimo de prata,
(16) Em uma tradução livre teríamos: o pagamento
aparece selado por duas testemunhas.
não foi realizado integralmente. Observamos, aqui, uma coincidência entre o
(17) Nin-marki é uma divindade local, descendente de onomástico teônimo e a divindade pessoal,
Ea, o criador dos Homens, segundo a m itologia isto é, o deus protetor individual ou familiar
m esop otâm ica. (Sarnas) é o mesmo que compõe uma parte
(18) Para uma versão livre teríamos: eu paguei
dos nomes próprios do pai, Puzur-Samas e do
integralm ente.
(19) A religião m esopotâm ica tinha caráter politeís- filho, Nür-Samas. Mais uma vez o pagamento
ta, sendo assim as cidades possuíam vários templos, deverá ser efetuado no terceiro mês do
cada um dedicado a um* deus em particular. calendário assírio (maio/junho).

171
r u Z / t c R , JS..M .K se lo s-cilin d ro s m esopotâm icos - um estudo epigráfico. R evista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

N° 5 iti se-Tchf-tkUj] u4-r20n-[kam]


12 mu ki-29

selo ku-ru- tí/l-[s/s]


dumu si-J/-àEN.rZLP
[i]r drMAR.TlT

!~6 1 pi20 de cereal, em separado a obrigação


estabelecida por este tablete selado, fNãrum-
lamassi, esposa de Kurusis recebeu de Sêp-Sin. 7~8
No mês Simânu ela pagará a prata. Diante de (...).
. v
a)/ Kurusis, filho de Silli-Sin, servidor de
Amurrum.
O texto n° 6 apresenta um raro caso de
utilização do selo-cilindro por uma mulher,
Nãrum-lamassi, que recebe uma quantidade de
cereal e certifica o documento com o selo de
seu esposo, chamado Kurusis. O pai deste,
Silli-Sin, aparece, por outro lado, como o
vizinho do terreno vendido através do contra­
to n° 2. É interessante notar que o pagamento
do cereal deverá ser feito em prata e não mais
in natura. Novamente o mês indicado para o
pagamento é Simânu, logo após as colheitas.

N°6

Finalmente temos o texto n° 6 (TEBA II, 14)


que certifica a realização de um empréstimo in
natura, isto é, em cereais, forma bastante
utilizada na época.

N° 6 (20/XII/RS 58)
T pi se
2 e-zi-ib p í-i ku-nu-[ki-si\
ki se20-ep-áEN.ZU
4 M\á-Ia-ma-s[f\
dam ku-ru-us-sis
L.6 su ba-an-ti
A. iti sig4-a
8 kú i-lá-[e]
igi [x] (20) Unidade de medida de capacidade eqüivalendo a
10 rigf 60 litros.

172
POZZER, K.M.P. S elos-cilin d ros m e„opoiâm icos - um estuao ep igráfico. R e vista do M useu de A rq u eo lo g ia e
E tn ologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000

Pretendemos demonstrar a importância do Os documentos aqui analisados são bas­


estudo dos selos-cilindros, ainda quando só tante representativos da diversidade tipoló­
dispomos de dados epigráficos. Esses vêm gica dos textos cuneiformes deste período, da
enriquecer a análise histórica e, às vezes, atuação do setor privado na economia paleo-
permitir uma maior compreensão acerca dos babilônica e da preocupação em garantir a
estudos prosopográficos, das relações autenticidade dos mesmos com a aposição
familiares e das práticas religiosas exercidas sistemática de selos-cilindros em tabletes e
por estes indivíduos. envelopes.

POZZER, K.M.P. Mesopotamian cylinder seals - an epigraphic study. Revista do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 163-174, 2000.

ABSTRACT: The study of cylinder seals is important not only because of


its iconography but also because of inscriptions. This article analyzes some
texts of a rich merchant from Larsa in the Old Babylonian period. The docu­
ments are representative of the type diversity of the cuneiform texts from this
period, of the influence of private sector in the Old Babylonian economy and
of the importance to assure the authenticity of a document by the systematic
printing of the cylinder seals in the tablets and envelopes.

UNITERMS: Mesopotamia - Cylinder Seal - Epigraphy - Private Archives


- Cuneiform Tablets.

Referências bibliográficas

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174
Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10'. 175-187, 2000.

MULHER E COLHEITA DE FRUTAS NA P Ó L I S ATENIENSE:


ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS VASOS ÁTICOS
DE FIGURAS NEGRAS E VERMELHAS

André Leonardo Chevitarese*

CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográ­


fica dos vasos áticos de figuras negras e vermelhas. Rev. do Museu de Arqueologia
e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

RESUMO: Ao fazer um levantamento sistemático das cenas de colheita de


frutas nos vasos áticos de figuras negras e vermelhas, constata-se uma
relação direta entre o desempenho dessa atividade agrícola e as mulheres.
Pretende-se com este trabalho estabelecer possíveis explicações dessa
associação, a priori pouco comum para os padrões da cultura ateniense, a
partir do exame dos vasos atenienses e da tradição literária.

ü í m i ERMOS: Vasos - Atenas - Ática - Mulher - Colheita de


História Social.

Constata-se uma quase ausência de no espaço do o í k o ç , do que inseri-la no


informações sobre o tema proposto para âmbito das atividades externas à casa. O
análise. Este dado pode ser explicado não objetivo dos autores antigos, neste sentido, é
apenas pela característica da documentação o de falar acerca da filha e / ou da esposa do
textual que chegou até nós, como, também, cidadão, principalmente se o noAírqc,
pelos próprios objetos pesquisados pela pertencer ao grupo dos x a A o í xayaOo't,
historiografia em séculos recentes. Enunciar- situando-as respectivamente no espaço do
se-ão estes dois aspectos de maneira intro­ gineceu. As suas atividades são o tear, a roca
dutória, objetivando situar apenas e tão e o bom ordenamento das coisas no interior do
somente o tema deste trabalho. o/jraç, muito embora, sobre este último
Os textos antigos gregos, trazendo uma aspecto, a palavra final dependerá do pai ou
característica marcadamente misógina, estão marido. Quando o objeto trabalhado pelos
muito mais interessados em associar a tto A T tiç textos antigos gregos é a filha ou esposa do
com o modelo fiéA taca, situando-a, portanto, cidadão rico, dificilmente as informações
ultrapassam os limites das paredes da casa,
muito embora seja possível encontrar poucos
passos e indícios nestes mesmos textos acerca
(*) Laboratório de História Antiga, Departamento de ^as â tiid d a d e s que elas desempenharam na
História. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da esfera pública (Lessa 1996). Obviamente que
Universidade Federal do Rio de Janeiro. estas poucas passagens e indícios, acrescidos

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ólis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

do próprio silêncio, pensado aqui como um Os argumentos utilizados para demonstrar este
não-dito, dos textos antigos, têm permitido ao aspecto são basicamente três: a produção
pesquisador contemporâneo construir hipóte­ agrícola, o calendário agrícola que ditava o
ses, a partir de novas bases teóricas, descor­ ritmo do ano e o fato de a população ser
tinando um universo feminino, mesmo para as majoritariamente camponesa. Estes argumen­
filhas e esposas dos KaAoí KayaOo'i, bem tos, muito embora, na minha opinião, estejam
diferente do que aquele idealizado pelos corretos, aparecem de uma forma um tanto
autores gregos.1 quanto superficial, sem uma discussão apro­
No campo da historiografia, constata-se fundada. Verifica-se, assim, um tipo de afirma­
uma preocupação excessiva com objetos e ção estéril, já que carece de uma reflexão mais
temas marcadamente urbanos. Este aspecto cuidadosa, na maior parte dos discursos
serve mesmo para demonstrar a forte depen­ historiográficos, qual seja: ao mesmo tempo
dência que os historiadores da Antigüidade em que a x ^p a adquire importância por causa
grega têm dos textos antigos. Muito embora dos três fatores apontados acima, ela aparece
possam ser citadas algumas dezenas de vazia e sem vida. Em outras palavras, não é
pesquisas em curso ou já concluídas sobre os possível ver na maior parte dos discursos
espaços rurais de inúmeras póleis gregas, históricos o camponês como agente transfor­
estas ainda não foram capazes de alterar a mador da sua x^poc, muito menos perceber as
relação presente nos livros sobre antigüidade relações que ele estabeleceu com seus vizi­
grega, qual seja: pólis como sinônimo de nhos, o seu envolvimento na política do dêmos
cidade, de espaço urbano. Os recentes traba­ e da pólis, se ele utilizou ou não a mão-de-obra
lhos relacionados à x ^P a antiga parecem escrava, se a sua mulher e filhos estavam
ainda leituras distantes de muitos pesquisado­ diretamente envolvidos no processo produtivo
res preocupados em reforçar a urbanidade do (Chevitarese: 1997).
mundo políade, seja através das ágoras, O pequeno número de referências sobre o
acrópoles, teatros e outras construções tema deste trabalho se deve muito mais à
magníficas, por um lado, seja através das característica dos textos antigos gregos e à
festas, jogos, procissões e espetáculos, por escolha dos objetos desenvolvidos nas
outro (Snodgrass 1987: 67, Osbome 1987: 3). recentes pesquisas históricas, do que propria­
Todos estes elementos ajudam a reforçar mente a inexistência de pomares ou o número
apenas um aspecto constituinte da pólis, qual insignificante de indivíduos envolvidos com a
seja, a aoru. É no seu interior que o ttoAíttjc, atividade de colheita de frutas na pólis
se torna civilizado. Neste caso, ser civilizado é ateniense. Constata-se, de fato, o pouco
ser citadino, é viver no espaço urbano. Este interesse dos autores antigos gregos em falar
aspecto projeta um quadro de violenta oposi­ sobre a disseminação de árvores frutíferas,
ção ao âypoiKOç, à vida na x ^ p a . Constata- exceção feita às videiras e às oliveiras, entre os
se, porém, um ponto sempre presente nos agricultores áticos.2
atuais discursos historiográficos: a importân­ Tomando ainda mais explícita a razão para
cia do espaço rural para a sociedade políade. um número inexpressivo de informações acerca
da relação entre mulher e colheita de frutas
nos textos antigos, podem ser apontados dois
(1) Aguarda-se o resultado da pesquisa de doutorado de
aspectos não necessariamente excludentes,
Fábio de Souza Lessa, desenvolvida atualmente no mas complementares: de imediato, aqueles que
Programa de Pós-Graduação em História Social, do realizavam as colheitas de fmtas eram, em
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universida­ muitos casos, pequenos agricultores, detento­
de Federal do Rio de Janeiro. A sua pesquisa, denomi­ res da cidadania ateniense, que se tornavam
nada preliminarmente M élissa e R edes S ociais
Inform ais na P ó lis A teniense, procura demonstrar, a
partir das análises teóricas de Michel de Certeau, que a
participação da esposa bem -nascida em grupos (2) Uma leitura atenta das comédias de Aristófanes, do
informais representa uma de suas táticas para Econômico de Xenofonte e De Causis Plantarum de
subverter a dominação cultural m asculina no interior Teofrasto deixa transparecer a presença de figueira,
de Atenas durante o período clássico. macieira, romãzeira, marmeleiro e amendoeira.

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfíca dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

trabalhadores sazonais, em épocas de pico __________ Quadro 2__________


agrícola, como forma de complementarem os Cenas de Colheita de Frutas na
seus rendimentos. Estes cidadãos desempe­ Cerâmica Ática de Figuras Vermelhas
nhavam estas atividades ao lado de uma mão-
Taça 2
de-obra estrangeira livre, como os metecos, ou
L écito 1
escrava. O segundo motivo estaria relacionado
Esquifo 1
ao fato de as mulheres representarem uma
parcela significativa da mão de obra utilizada Hídria 1

na colheita de frutas. Muito embora, como será Cratera 1

visto mais abaixo, seja difícil precisar os seus T otal 6


estatutos sociais, pode ser argumentado que
elas não seriam necessariamente de origem
escrava. Em ambos os casos, no entanto, o Os Quadros oferecem, a partir de uma
número inexpressivo de informações nos comparação entre eles, alguns importantes
textos antigos pode estar relacionado ao fato dados. O Quadro 1 apresenta um total de vinte
de os autores gregos estarem localizados no e sete cenas de colheita de frutas relacionadas
espaço urbano, desdenharem a atividade com mulheres, envolvendo seis diferentes
manual, terem dificuldade em admitir que o formas de vasos, entre o último terço do sexto
agricultor viesse a ser cidadão, pelo menos, e o primeiro quartel do quinto séculos. O
que ele detivesse a cidadania plena e que a principal vaso utilizado como suporte neste
mulher, no caso de ela ser uma ttoAT tiç,, período foi o lécito, com treze cenas, perfazen­
desempenhasse qualquer tipo de atividade do um total de 48,15% das imagens. Já o
fora daquelas previstas no modelo /JÉAiaaa. Quadro 2 oferece um total de seis cenas de
O segundo aspecto mencionado acima, colheita de frutas associadas com mulheres,
qual seja, mulheres envolvidas com colheita de abarcando cinco formas diferentes de vasos. O
frutas, embora passe praticamente despercebi­ mais importante vaso utilizado como suporte
do nos textos antigos,3 faz-se presente, foi a taça, com duas cenas, perfazendo um
através das imagens, nos vasos áticos de total de 33,33% das imagens. Estes dados
figuras negras e vermelhas. Os Quadros 1 e 2 sugerem cinco aspectos relevantes: de imedia­
mostram as formas e o total de vasos produzi­ to, constata-se uma violenta redução no
dos na pólis ateniense nos períodos arcaico e número de cenas envolvendo mulheres e
clássico. colheita de frutas entre os vasos áticos de
figuras negras e vermelhas, isto é, de vinte e
_________ Quadro_1_________ sete para seis imagens respectivamente ou de
Cenas de Colheita de Frutas na aproximadamente 75% entre uma técnica e
Cerâmica Ática de Figuras Negras outra; segundo, há uma pequena diminuição
no número das formas de vasos utilizadas
L écito 13
como suportes para as imagens, isto é, de seis
Á nfora 4
(figuras negras) para cinco (figuras verme­
E n ó co a 4 lhas); terceiro, o lécito que concentrava
Taça 3 48,15% das imagens de mulheres colhendo
Esquifo 2 frutas nos vasos áticos de figuras negras,
Hídria 1 oferece apenas um único exemplar na cerâmica
T otal 27 ática de figuras vermelhas; quarto aspecto,
enquanto a cratera foi utilizada pelos pintores

(3) C onheço apenas três passagens diretamente


conectadas com mulheres envolvidas em atividades de relacionada com a colheita de uvas (D em óstenes 57,
colheitas: as duas primeiras estão associadas com o 45). O orador deste discurso observa que as mulheres
trabalho assalariado sazonal na época de pico agrícola chegaram à condição de vindimadoras ( T p u y q T p ia i )
(Pollux. O nom asticon 7,141 e 7 ,150) e a terceira por causa da extrema pobreza.

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

áticos de figuras vermelhas, muito embora ela grandes grupos de imagens relacionados com
estivesse ausente na técnica anterior, a enócoa a colheita de frutas: videiras, oliveiras e
e a ánfora representando respectivamente árvores frutíferas não especificadas.
14,28% das cenas deixam de ser utilizadas Com relação ao primeiro grupo - colheita
como suporte para as cenas de mulheres de uvas - observa-se a existência de apenas
colhendo frutas nos vasos de figuras verme­ uma única cena diretamente relacionada com
lhas; por fim, não deve ser perdido de vista esta atividade na cerâmica ática de figuras
que o número de cenas envolvendo colheita negras e vermelhas (CVA, France, 5, pis. 29, 3 e
de frutas, no particular, e o de cenas rurais, no 30, 3; Malagardis 1988: 127, figura lld ;
geral, é extremamente reduzido, principalmente Bertrand e Brunet 1993: 178). Trata-se de uma
se comparado com outros temas desenvolvi­ imagem raríssima, já que ela é inclusive
dos pelos pintores de vasos entre o sexto e realizada por homens. Observam-se jovens por
quarto séculos.4 entre os galhos, suspensos por estacas
Um maior detalhamento dos dados (xàpaKsç,), colhendo enormes câchos de
advindos dos Quadros 1 e 2 será de grande uvas, enquanto outros quatro colheiteiros,
valia para uma melhor compreensão da relação localizados no chão, colhem outros. Dois
envolvendo mulheres e colheita de frutas na grandes cestos já estão cheios de frutos. É
cerâmica ática. Este aprofundamento se dará a digno de menção o instrumento utilizado pelo
partir de duas questões básicas: primeira, qual trabalhador que está localizado no extremo
seria o período de tempo coberto pelas cenas esquerdo da cena. Ele segura um utensílio
de mulheres colhendo frutas nos vasos áticos? encurvado, um tipo de faca, denominada de
Sobre esta questão, deve ser observada, de S p én a vo v ou ãpnq. O que mostra a esma­
imediato, uma certa dificuldade em datar de gadora maioria das imagens, no entanto, são
forma absoluta os vasos relacionados com cachos de uvas já colhidos, acondicionados
esta temática. Eles podem ser situados, no em cubas (cn<á<pai) (Beazley 1963: 569, 39;
entanto, entre 510 e 450. Observa-se, assim, Sparkes 1976: 64, figura 26) ou cestas (tpoppoí
que as referidas cenas cobrem um período de ou KÓtpivoi) (Sparkes 1976: 62, figura 20)
tempo relativamente curto, coexistindo inclusi­ prontas para serem apisoadas. Observa-se,
ve o emprego das técnicas de figuras negras e com relação às cenas de apisoamento das
vermelhas, principalmente através do pintor uvas, um reduzidíssimo número de representa­
Haimon. Segunda questão: quais seriam as ções diretamente associadas com seres
informações passíveis de serem extraídas das humanos. Há apenas uma cena situada no
imagens de mulher e colheita de frutas? Esta primeiro quartel do quinto século (Chevitarese
pergunta pode começar a ser respondida a 1997: 353), de um total de trinta e uma imagens
partir de uma rápida comparação entre os três (quinze de figuras negras e dezesseis de
figuras vermelhas), onde aparecem homens,
nunca mulheres, envolvidos no processo de
(4) Identifiquei, na minha Tese de Doutorado, um
apisoamento das uvas. Esta quase ausência de
total de 103 vasos relacionados com cenas rurais, representações humanas seria decorrência do
cobrindo um total de oito temas (caça, apisoamento caráter ritual contido na imensa maioria das
das uvas, colheita de frutas, pesca, cruzamento e imagens, com suas estreitas ligações com o
caracterização dos animais de tiro, cenas pastoris, dionisismo. Esta questão ajudaria a explicar,
mulheres retirando água de poços rurais, caracteriza­
ção dos cam poneses áticos) na cerâmica ática de
inclusive, o grande número de sátiros, mêna-
figuras vermelhas. A minha atual pesquisa, que ainda des e do próprio Dioniso nestas representa­
está em curso, já identificou 248 vasos relacionados ções (Chevitarese 1997: 210).
com cenas rurais, cobrindo um total de quatorze Com relação ao segundo grupo - colheita
temas (caça, colheita de frutas, apisoamento das uvas, de azeitonas - , identifica-se um total de quatro
pastores e rebanhos, trabalho agrícola, colheita de
cenas. Três delas são exclusivas do universo
azeitona, apicultura, caça aos pássaros, fabricação e
venda do azeite, fabricação da farinha e do pão,
masculino e uma outra relacionada com
pesca, colheita de uva, fonte campestre, banho de mulheres. Todas as imagens deste segundo
mar ou rio) na cerâmica ática de figuras negras. grupo fazem parte da cerâmica ática de figuras

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na pólis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn olog ia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

negras. Verifica-se, em duas delas, a presença necem no chão observando a sua companhei­
de um jovem por entre os galhos das oliveiras ra. Esta cena se aproxima muito daquelas
recolhendo os seus frutos (para a primeira imagens identificadas mais acima com o
imagem, ver: CVA, USA, 7, pl. 3, 1-3; Mala- processo de colheita da uva e da azeitona,
gardis 1988: 131, figura 13a; sobre a segunda onde aparecem também jovens nos troncos ou
imagem, ver: Beazley 1956: 270, 50; Malagardis nos galhos das videiras e das oliveiras.
1988: 123, figura 10c). Há uma outra caracterís­ Com relação ao terceiro grupo - mulheres
tica comum presente nas duas cenas represen­ colhendo frutas de árvores não especificadas -
tadas em ánforas que seria o emprego de há um total de trinta e duas imagens. Elas estão
grandes varas, sustentadas por pessoas que sempre localizadas junto às árvores. Elas podem
estão de pé, junto à oliveira ou mesmo pelo colher diretamente as frutas (ver catálogo A
jovem que está no galho (para a primeira número 5 e B número 4 - ver neste trabalho a
imagem, ver: CVA, Great Britain, 5, British Figura 2), ou lançar mão do emprego de varas
Museum, 4, pl. 55; Beazley 1956: 273,116; (ver catálogo B número 6 - ver neste trabalho a
Amouretti 1986: 74, figura 8; Malagardis 1988: Figura 3) para retirar os frutos situados nas
123, figura 10b; Boardman 1991: figura 186; partes mais altas e extremas da árvore. Esta
sobre a segunda imagem, ver: Beazley 1956: última técnica é exatamente igual àquela
270,50; Malagardis 1988: 123, figura 10c). Elas aplicada à colheita de azeitona, onde o emprego
servem para derrubar os frutos da árvore. Em de varas também é utilizado não só para acessar
ambas as cenas aparecem jovens abaixados, as partes mais altas, como, também, as pontas
junto ao tronco da oliveira, recolhendo os dos galhos. O emprego das varas, em ambos os
frutos do chão. Com relação à única cena casos, substituindo a presença de uma pessoa
envolvendo mulheres neste tipo de atividade nos locais de difícil acesso, pode estar direta­
(ver catálogo A número 27 - ver neste traba­ mente relacionado com a preservação da
lho a Figura 1), verifica-se uma jovem subindo própria capacidade produtiva da árvore frutífe­
no tronco da oliveira para recolher os seus ra, evitando, pelo emprego desta técnica, que
frutos, enquanto outras seis mulheres perma­ os galhos se quebrassem.

Fig. 1 - Catálogo A (Figuras Negras) número 27.

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na pólis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

Fig. 2 - Catálogo B (Figuras Vermelhas) número 4.

Fig. 3 - Catálogo B (Figuras Vermelhas) número 6.

A maioria das cenas de colheita de frutas do as informações advindas dos dois outros
ocorre com duas mulheres (ver catálogo A grupos de imagens envolvendo a colheita da uva
números 1 ,2,3,4,6,7,8,9,11,13,14,15,17,18, e da azeitona, este processo parece ocorrer em
19,20,21,22,23,24,26 e B números 4,5). Elas equipe. Verifica-se um bom número de imagens
aparecem nos extremos, com a árvore localizada relacionadas com grupos de três a sete partici­
no centro da imagem. Existem apenas três cenas pantes (ver catálogo A números 5, 10, 12, 25 (ver
envolvendo apenas uma única colheiteira (ver neste trabalho a Figura 4), 27 e B número 1, 6)
catálogo A número 16 e B números 2, 3). Isto realizando esta atividade. Nas cenas envolvendo
representa apenas 9,09% do total de trinta e três uma ou duas mulheres, elas podem aparecer
imagens. Considerando este dado e acrescentan­ sentadas em cadeiras ou em pé junto às árvores,

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CHEVITÀRESE, A.L. Mulher e colheita de fintas na p ólis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

segurando em uma das mãos pequenos cestos atender às necessidades imediatas do consumo
com ou sem alça, ou tendo perto de si grandes familiar; 2a. Trata-se de cenas rituais, onde a
cestos depositados no solo, onde os frutos são esposa do senhor do o/Vcç, sozinha ou acom­
depositados. Em algumas cenas as mulheres panhada da filha, por exemplo, ao colher uma
podem não estar realizando a colheita de frutas, fruta simboliza o início dos trabalhos agrícolas
mas o fato de elas estarem sentadas perto ou relacionados com a colheita. O segundo
próximas às árvores com (ou sem) cestos, sugere processo está associado com aquelas imagens
que a referida atividade rural já foi realizada, está envolvendo grupos maiores de mulheres. A
em curso ou será executada em breve (Webster leitura, neste caso, está diretamente relacionada
1972: 244). Nestas cenas nunca é utilizado o com a realização de uma atividade agrícola
trabalho de varas. Estas só aparecem em imagens disseminada por todo o espaço rural ateniense.
envolvendo um grupo maior de participantes. Os elementos presentes nestas cenas ajudam a
Constata-se, neste último grupo de cenas, uma reforçar esta interpretação: a presença das
clara divisão do trabalho. Existem aquelas varas e dos grandes cestos repletos de frutos,
mulheres que retiram os frutos das partes mais por um lado, a visível divisão de tarefas e o
altas e das pontas dos galhos mais externos com esforço da jovem que sobe no tronco da árvore
o auxílio de varas; há uma segunda equipe de para colher frutos, por outro. Todos estes
colheiteiras que colhe os frutos das partes mais elementos deixam transparecer, da mesma forma
baixas da árvore ou aqueles caídos no chão que as cenas relacionadas com o processo de
depositando-os nos grandes cestos; uma colheita da uva e da azeitona, uma nítida
terceira equipe fica responsável por carregar os preocupação do pintor em construir não uma
cestos repletos de frutos. cena ritual, mas uma atividade rural bem
Parece então que as cenas envolvendo disseminada pela Ática.
mulheres e colheita de frutas podem sofrer dois Estas conclusões devem ser vistas com
processos distintos de leituras ou de interpreta­ cautela. Este cuidado se deve a três fatores
ção: o primeiro está relacionado com aquelas básicos: as informações contidas na documenta­
imagens que mostram uma ou duas mulheres ção antiga grega, relativas aos pomares e à
segurando com uma das mãos pequenos vasos, colheita de frutas, são esparsas e superficiais; há
com ou sem alças. Constatam-se, nestas cenas, poucos estudos realizados até o momento sobre
duas possíveis leituras: Ia. Trata-se de uma o tema em questão; a minha pesquisa ainda está
rápida ida ao pomar com o claro objetivo de em curso, logo os resultados obtidos não são
colher uma pequena quantidade de frutas para conclusivos, mas parciais e preliminares.

Fig. 4 - Catálogo A (Figuras Negras) número 25.

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

Catálogo das cenas de colheita de frutas nos vasos áticos

A. Figuras Negras de touca, deixando apenas uma parte deles caindo por
detrás da nuca. Atrás dela está uma outra mulher,
1 - L écito ático de figuras negras. Baltim ore, Walters voltada para a esquerda, cabelos presos na altura da
Art Gallery. Inventário: 48.2 4 5 . M anner o f the cabeça, vestindo quíton e manto, observando
H aim on Group. atentam ente o trabalho das suas duas colegas. Aquela
B ib lio g ra fia : B eazley 1956: 554, 401; W ebster situada na esquerda, voltada à direita, usa quíton e
1972: 2 4 7 (b). manto, o rosto está encoberto pelos cabelos, tem o
D escriçã o : mulheres no pomar balançando árvore seu braço direito com pletam ente esticado, buscando
frutífera. recolher um fruto preto.

2 - L écito ático de figuras negras. Paris, M usée du 6 - L écito ático de figuras negras. Viena, Universität.
Louvre. Inventário: C A 2913. The Group o f Brussels Inventário: 739, 6. The Kalinderu Group.
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B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 4 88, 3; Webster 1972: 1956: 503, 2; Webster 1972: 246 (b).
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Descrição: mulheres sentadas junto a uma árvore frutífera. frutífera com os seus galhos marcados por pontos
escuros (frutos?). Entre ela, há duas mulheres sentadas
3 - L écito ático de figuras negras. A tenas, National em divfroi colhendo frutas. Elas estão usando quíton
M useum . Inventário: 1098 (CC. 925). Prov. Mégara. e manto. Há um cesto no chão, junto aos galhos,
The Kalinderu Group. entre as duas mulheres.
B ib lio g ra fia : B ea zley , 1956: 503, 1; Webster, 1972:
2 4 6 (b). 7 - L écito ático de figuras negras. Atenas, National
D escriçã o : m ulheres sentadas junto a uma árvore M useum . Inventário: E 1833. The Kalinderu Painter.
frutífera. B ib liografia: B eazley 1956: 504, 1; Webster 1972:
246 (b).
4 - L écito ático de figuras negras. Palermo, C ollezio- D escrição: m ulheres sentadas junto a uma árvore
ne M orm ino (B anco di Sicilia). Inventário: 684. frutífera, com um veado entre elas.
Data: in ício do quinto século.
B ib lio g ra fia : CVA, Italia, 50, pl. 12, 1-2. 8 - L écito ático de figuras negras. A tenas, É cole
D escriçã o : no centro da cena está uma árvore Française. Inventário: V 75. Prov. Thera (?). Data:
frutífera repleta de frutos pretos e brancos. Há duas 5 2 5 -4 7 5 . The H aim on Painter.
m ulheres colhendo frutas. A da direita, voltada para a B ib liografia: B eazley 1956: 554, 403; Carpenter
esquerda, usa quíton e manto, tem o cabelo preso, 1989: 135; W ebster 1972: 247 (b); M affre 1972: 52
caindo por detrás da nuca, está sentada em um banco (n° 95) e 53, fig. 37 a-b (p. 51).
(ou um pequeno tronco de árvore?) por entre os D escrição: no centro da cena está uma árvore
galhos da árvore colhendo os frutos. A quela situada na frutífera plantada em um grande vaso (ttíOoç?). A sua
esquerda, voltada à direita, usa quíton e manto, tem volta, estão duas mulheres sentadas em Sí<j>poi,
o s cab elos presos na altura da nuca, está sentada em vestindo quíton e manto. Os ramos da árvore
um banco branco (?) colhendo os frutos. Am bas as esparramam-se pelo chão.
m ulheres depositam o s frutos em um grande cesto,
9 - L écito ático de figuras negras. Paris, M usée du
situado entre elas, que já está ch eio até a boca.
Louvre. Inventário: F 456. Manner o f the Haimon
5 - L écito ático de figuras negras. Braunschweig, Painter.
H erzog Anton Ulrich - M useum. Inventário: P 2. B ib liografia: B eazley 1956: 554, 404; W ebster
Prov. Eretria. M anner o f the Haim on Painter. 1972: 247 (b).
B ib lio g ra fia : CVA, D eutschland, 4, pis. 10, 18 e 11, D escrição: m ulheres sentadas junto a uma árvore.
9; B ea zley 1956: 554, 400.
D escriçã o : no centro da cena está uma árvore 10 - L écito ático de figuras negras. Havard, Univer-
frutífera. Ela tem, por entre os seus lon gos galhos, sity, F ogg M useum . Inventário: 6.1908. The Class o f
pequenos frutos. Identificam -se, também, outros Athens 581. Data: 5 0 0-475.
frutos m aiores brancos e pretos. Há três mulheres B ib liografia: CVA, U S A , 8, pl. 21, 6; B eazley 1956:
colhendo estes últim os frutos. Duas delas estão 505, 1; Webster 1972: 247 (b).
localizadas à direita da árvore. A quela próxim a ao D escrição: no centro da cena está uma árvore
tronco está voltada para a esquerda, com a cabeça frutífera com o tronco retorcido. Há três m ulheres,
virada para cim a, com o se estivesse procurando frutos sendo que duas delas estão colhendo frutas. A da
por entre os galhos mais altos, usa quíton e m anto e direita, voltada para a esquerda, usa quíton e manto,
tem praticamente o s seus cabelos presos por um tipo sentada em um banco (5íc)>poç), tem uma fita na

182
CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

cabeça. O seu braço direito alcança os galhos m ais D escrição: (a) N o centro da cena está uma mulher,
altos da árvore. Há uma mulher, atrás da que está voltada para a direita, sentada em um banco (5í<j>poç),
sentada. Ela tem o braço direito levantado e o vestindo quíton e manto, com a sua m ão esquerda
esquerdo no quadril. A quela situada na esquerda, estendida. À sua direita está uma cepa de vinha, cujos
voltada para a direita, cabeça virada para trás, usa ram os estão carregados de cach os brancos que se
quíton, está em pé, tem os dois braços levantados e espalham pelo chão.
uma fita na cabeça. (b ) U m a cena m uito parecida. N o centro está uma
m ulher sentada em um banco (Stcjjpoç), voltada para
11 - L écito ático de figuras negras. Rom an Market.
a direita, vestindo quíton e manto. Parece existir, em
M anner o f the Em porion Painter.
frente a esta mulher, traços im precisos de uma outra
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 586, 10.
personagem (?).
D escriçã o : mulheres no pomar.
17 - Â nfora ática de figuras negras. Sevres, M usée
12 - Lécito ático de figuras negras. R io de Janeiro,
Ceram ique. T he Edinburg Painter.
M useu N acional. The H aim on Painter. Data: 500-
B ib lio g ra fia : H aspels 1936: 2 20, 75; W ebster 1972:
475.
2 46 (b); M alagardis 1988: 130, nota 150.
B ib lio g ra fia : Sarian e Leal, s/data, 84, fig. 10 (p.
D escrição: m ulheres sentadas junto a um a árvore
8 5 ).
frutífera.
D escrição: no centro está uma árvore frutífera com
seus ramos marcados por pontos brancos e pretos 18 - E nócoa ática de figuras negras. M unique,
(frutos?). À sua volta, há quatro mulheres colhendo M useum Antiker K leinkunst. Inventário: 1998
frutas: duas de cada lado da árvore. N a parte m ais à (J. 1140). M anner o f the H aim on Painter.
direita da cena está uma mulher voltada para a direita, B ib liografia: B eazley 1956: 558, 473; H aspels
com uma fita verm elha ao redor da cabeça, vestindo 1936: 246, 95; Webster 1972: 247 (b); Lau, Brunn
quíton e manto. Ela está situada entre dois galhos. and K ell 1877: plate 19, 6.
M ais ao centro da cena, está uma outra mulher D escrição: mulheres junto a árvore frutífera (lado A).
voltada para a esquerda, com uma fita verm elha ao
redor da cabeça, vestindo quíton e manto, com as 19 - E nócoa ática de figuras negras. Paris, M u sée du
duas m ãos junto ao tronco. N o extrem o esquerdo da Louvre. Inventário: F 248. M anner o f the H aim on
cena, há uma terceira m ulher voltada para a direita, Painter.
com uma fita verm elha ao redor da cabeça, usando B ib liografia: B eazley 1956: 558, 475; H aspels
quíton e manto, por entre os galhos, com a mão 1936: 246, 3; W ebster 1972: 247 (b).
direita buscando pegar um fruto. N o centro da cena, D escrição: m ulheres sentadas junto a uma árvore
uma mulher voltada para a direita, com uma fita frutífera.
verm elha ao redor da cabeça, vestindo quíton e
20 - E nócoa ática de figuras negras. O nce Tynem outh
manto, tendo próxim a de si m uitos galhos repletos de
H all. Manner o f the H aim on Painter.
frutos. Junto ao tronco estão duas cestas com frutos.
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 55 8 , 4 74.
13 - L écito ático de figuras negras. Atenas, Cerami- D escrição: m ulheres sentadas junto a umas árvores
que. Inventário: “Stais” 1896. The H aim on Painter. frutíferas.
B ib lio g ra fia : B eazley 1956: 553; H aspels 1936:
21 - E nócoa ática de figuras negras. Paris, M u sée du
244, 62; W ebster 1972: 247 (b).
Louvre. Inventário: F 4 27. Manner o f the H aim on
D escriçã o : m ulheres no pomar.
Painter.
14 - Ânfora ática de figuras negras. Once Roman, American B ib lio g ra fia : B eazley 1956: 558, 476; M alagardis
Academy. Inventário: 547. The Red-Line Painter. 1988: 130, nota 150.
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 6 04, 67. D escrição: m ulheres sentadas junto a uma árvore
D escrição: mulheres no pomar sacudindo as árvores. frutífera.

15 - Ânfora ática de figuras negras. M unique, 22 - Taça ática de figuras negras. Londres, British
M useum Antiker Kleinkunst. Inventário: 1643 M useum . Inventário: B 4 44. Prov. Cam iros. Manner
(J.540). Prov. Vulci. The Red-Line Painter. o f the H aim on Painter.
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 604, 68. B ib liografia: B eazley 1956: 5 61, 531; W ebster
D escriçã o : mulheres no pomar colhendo frutas. 1972: 247 (b).
D escrição: m ulheres no pomar.
16 - Ânfora ática de figuras negras. Copenhagen,
National M useum . Inventário: Chr. VIII 318. The 23 - Taça ática de figuras negras. Nauplia, M useum .
Kalinderu Group. Prov. Atenas. Inventário: 529. M anner o f the H aim on Painter.
B ib lio g ra fia : CVA, Danemark, 3, pl. 109, 1 a-b; B ib liografia: B eazley 1956: 561, 620; W ebster
B eazley 1956: 504; W ebster 1972: 247 (b). 1972: 247 (b).

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

D escriçã o : duas m ulheres sentadas junto a uma D escrição: no centro da im agem está uma árvore
árvore (lado A). frutífera (oliveira?) com os seus galhos marcados por
pontos brancos e pretos (frutos?). Há sete mulheres
24 - Taça ática de figuras negras. Genebra, M usée
(todas em pé, vestindo quíton e manto, com os pés
d ’Art et d ’H istoire. Inventário: H 235. Manner o f
the H aim on Painter. pintados de branco) envolvidas no processo de colheita
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 561, 621; W ebster de frutas. D a direita para a esquerda até o centro da
1972: 247 (b). cena: na parte mais externa está uma mulher com a
D escrição: duas mulheres sentadas junto a uma árvore. cabeça voltada à esquerda, com uma fita em tom o da
cabeça, cabelos presos, com o braço direito com pleta­
25 - Esquifo ático de figuras negras. M oscou, Pushkin m ente visível, apoiando em sua cabeça urq enorme
State M useum o f Fine Arts. Inventário:TI lb dep. 25. cesto. À sua frente está uma outra mulher, corpo
M anner o f the H aim on Painter. Data: 49 0 -4 8 0 . com pletam ente de perfil, voltada para a esquerda,
B ib lio g ra fia : CVA, Rússia, 1, pl. 52, 6. cabeça ligeiramente levantada para cima, uma fita ao
D escrição: (a) N o centro da cena, há quatro redor da cabeça que desce em forma de trança por
mulheres sentadas em bancos (Sícjjpoi), tendo uma
detrás da nuca alcançando as suas costas, braços
videira no fundo, com os seus ramos marcados por
estendidos e voltados para cima. M uito embora a maior
pontos escuros (frutos?). Da direita para a esquerda:
parte do seu rosto esteja faltando, todos os seus
mulher, voltada para a direita, usa quíton e manto,
m ovim entos parecem estar relacionados com a jovem
cabelo preso na altura da cabeça com um pequeno
que está subindo no tronco da árvore. M ais para o
coque, a m ão direita levantada. U m a segunda mulher,
centro cena, encontra-se uma outra mulher, com a
corpo representado de frente, cabeça voltada para a
parte inferior do corpo voltada para a direita, cabeça e
esquerda, usa quíton e manto, cabelo preso na altura
tronco voltados para a esquerda. Ela tem uma fita ao
da cabeça com um pequeno coque, braço direito
redor da sua cabeça e tem o seu braço direito visível.
levantado, com a m ão tocando no ramo da videira.
Em pé no tronco da árvore está uma mulher, corpo
Um a terceira mulher, voltada para a direita, usa
quíton e manto, cabelo preso na altura da cabeça com voltado para a direita, braço esquerdo por entre os
galhos, com o se estivesse recolhendo azeitonas (?),
um pequeno coque, tem o braço esquerdo levantado,
com a mão esquerda tocando no fruto, e o outro enquanto o braço direito, com pletam ente visível,
braço esticado, com a m ão direita parecendo tocar no parece estar segurando no tronco da árvore. D o lado
ramo da videira. N o extrem o esquerdo da cena, uma esquerdo até o centro da cena: na parte m ais externa
mulher voltada para a direita, usa quíton e manto, está uma m ulher representada de perfil, virada para a
cabelo preso na altura da cabeça com um longo coque, direita, cabelo preso, observando atentamente o
parecendo estar com pletam ente absorvida na m ovim ento das com panheiras. À sua frente encontra-
realização da sua atividade. A s suas m ãos estão se uma mulher, corpo representado de frente, cabeça
tocando o ramo da videira. ligeiram ente inclinada para o alto, observando
atentamente a jovem em pé no tronco da árvore.
26 - Esquifo ático de figuras negras. Atenas, Agora. Q uase no centro da cena está uma mulher, corpo
Inventário: P 1319. Prov. Atenas. The Kalinderu Group.
voltado para a direita, cabeça voltada para cima,
B ib lio g ra fia : B eazley 1956: 504, 2; Webster 1972:
braço esquerdo esticado e voltado para cima, enquan­
247 (b); Vanderpool 1946, 296, pl. 47, n° 97.
to que a sua mão direita segura a ponta do quíton,
D escriçã o : (a) N o centro da cena está uma árvore
esticando-o para frente. Ela parece estar bastante
frutífera. Há duas mulheres colhendo frutas. A da
en volvid a com a sua com panheira que está no tronco
direita, voltada para a esquerda, tendo apenas parte do
da oliveira (?).
seu corpo preservado, usa quíton e manto, está
Há inscrições: OIATO , POAE, IIM Y A [E], T Y N II
sentada em um banco (ôí<|)poç) colhendo frutas.
(T u v v íç ), KOPINO (= K opivvió) KAAE, K A O II I,
A quela situada na esquerda, apenas parte da figura está
K O P E N I.
preservada, usa quíton e manto, tem o seu braço
direito (?) esticado, objetivando colher uma fruta.
B. Figuras Vermelhas
(b) Parte de uma árvore frutífera. N a direita, uma
mulher sentada (faltam os seus pés e a m aior parte do
1 - Taça ática, figuras vermelhas. M usée de Compiègne.
banco - ou um tronco de árvore?), voltada para a
Inv. 1090. Prov. Vulci. The Wedding Painter. Data: 475.
esquerda, usa quíton e manto, está colhendo frutas.
B ib liografia: CVA, France, 3, pl. 17, 9; B eazley
27 - Hídria Á tica de figuras negras. M unique, M useum 1963: 922, 1; Bérard et Vemant 1984: 91, fig. 129.
A ntiker K leinkunst. Inventário: 1712A (J.142). D escrição: Um a árvore frutífera está localizada no
Prov. V ulci. The A . D . Painter. centro da cena. A o seu redor, cin co m ulheres estão
B ib lio g ra fia : B ea zley 1956: 334, 6; Webster 1972: colhendo frutas. Duas estão localizadas próxim as à
246 (b); M alagardis 1988: 131, fig. 13b. árvore. A da esquerda, corpo coberto por quíton e

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CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na p ó lis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

manto, fita na cabeça, cab elo com prido preso, braço cabeças. A quela situada à esquerda segura com a sua
direito estendido para frente, em direção à árvore, m ão esquerda, pela alça, uma cesta, com três pezin h os
segura com a m ão esquerda, pela alça, um cesto, com na sua base, e na sua m ão direita uma fruta. A outra
três pezinhos na base. A quela situada à direita, corpo mulher, localizada à direita da cena, tem o braço
coberto com quíton e manto, fita na cabeça, cabelo direito ligeiram ente levantado para frente em direção
com prido preso, usa o próprio m anto com o receptá­ de sua companheira. Ela segura uma fruta em cada
culo para as frutas que caem da árvore. Encontram -se, uma das m ãos.
atrás dela, duas outras m ulheres. Elas parecem estar Há inscrições: TIZTOXXENOZ, [XjYPIZKOX,
conversando. A quela voltada para a direita tem o ETOI[EZ]EN, XOPO, AI.
corpo coberto por quíton e m anto, in clu sive a nuca. (b) N o centro da cena está uma árvore frutífera. Duas
A sua companheira, virada para a esquerda, usa quíton m ulheres estão colhendo frutas. Elas usam quíton,
e manto, fita na cabeça, braço direito levantado, segura manto, cabelos presos e tiaras nas cabeças. A quela
na mão esquerda, pela alça, uma cesta, com dois situada à esquerda, braço esquerdo ligeiram ente
pezinhos na sua base. N o extrem o do lado esquerdo da levantado, segura com a m ão esquerda, pela alça, um
cena, há uma outra mulher. Ela veste quíton e manto, cesta, com três pezinhos na sua base, e com a m ão
fita ao redor da cabeça, braço direito levantado, direita uma fruta. A outra mulher, localizada à direita
segurando na mão esquerda, pela alça, uma cesta, com da cena, braço direito voltado para baixo, segura com
os pezinhos na base, e na m ão direita uma fruta. a m ão direita uma cesta sem alça (ou ela estaria
dobrada, conform e parece sugerir o primeiro arco
2 - Taça ática, fundo branco. Londres, British
pintado na cesta?) e na m ão esquerda uma fruta.
M useum . Inv. D. 6. Inv. A tenas. The Sotades Painter.
Data: 4 7 0 -6 0 . 5 - Hídria ática, figuras verm elhas. S ch loss Fasanerie
B ib liog ra fia : B ea zley 1963: 7 63, 1; Pfuhl 1955: 63- (A dolphseck). Inv. 39. The Perseus Painter (Earlier
64, fig. 82; Robertson 1992: 188, fig. 198; Robertson M annerists). Data: 4 60-50.
1975: 2 64. B ib liografia: CVA, Deutschland, 11, tafel 29, 4;
D escrição: O centro da im agem é ocupado por uma B eazley, 1963: 582, 19.
árvore frutífera, cuja base está faltando, bem com o a D escrição: N o centro da cena está uma árvore
maior parte do seu lado esquerdo e da sua área central. frutífera. Há duas m ulheres colhendo frutas. A da
N o lado direito está uma mulher, voltada para a direita, voltada para a esquerda, usa quíton e manto,
esquerda, cabeça voltada para cim a, circundada por estica o seu braço direito com a intenção de pegar o
uma fita, cabelos presos, usando um vestid o transpa­ fruto nos galhos da árvore. A quela situada na
rente, o qual d eixa ver partes do seu corpo. Ela está esquerda, voltada à direita, usa quíton e manto, touca
apoiada na ponta dos pés, braço direito estendido por na cabeça, segura com a m ão esquerda, pela alça, um
entre os galhos, com a nítida intenção de pegar uma cesto e, com a m ão direita, uma fruta.
fruta. O seu braço esquerdo está voltado para baixo,
6 - Cratera ática, figuras verm elhas. N ova Iorque,
com a sua m ão segurando levem en te a ponta do
M etropolitan M useum o f Art. Inv. 0 7 .2 8 6 .7 4 . The
vestid o.
Há inscrições: M EAIII [XOTAJAEZ ETOIEXEN. Orchard Painter. Data: 460.
B ib liografia: B eazley 1963: 523, 1; Richter 1936:
3 - L écito ático, figuras verm elhas. Copenhaguen, 117, fig. 87.
M usée National. Inv. Chr. VIII 863. Prov. Atenas. D escrição: N o centro da cena está uma árvore
The L.M . Painter. frutífera. Duas mulheres, próximas da árvore, estão
B ib lio g ra fia : CVA, Danemark, 4, pl. 167, fig. 4. recolhendo frutos em um grande cesto (de vim e?)
B eazley, 1963: 1364, 2. com pletam ente cheio, localizado no solo. A da direita,
D escrição: U m a mulher, voltada para a direita, voltada para a esquerda, usa quíton e manto, cabeça
corpo ligeiram ente inclinado para frente, usa quíton e ligeiram ente levantada, circundada quatro vezes por um
fitas para prender o s cabelos. O seu braço direito está
fio que prende os seus cabelos. Ela tem o braço direito
esticado em direção de uma planta localizada no solo.
levantado, segurando com a mão direita uma fruta e
Ela segura na sua m ão esquerda uma flor (ou um
com a esquerda outras três. Entre a sua mão direita e a
fruto?), enquanto a sua m ão direita está colhendo uma
sua cabeça, uma fruta que parece estar caindo. Aquela
flor (ou um fruto?).
localizada à esquerda da árvore, voltada para a direita,
4 - Esquifo ático, figuras verm elhas. C oleção Privada. usa quíton e manto, fita passada três vezes ao redor da
The P.S. Painter. Data: 480 -7 0 . cabeça, mantendo os cabelos presos. O seu braço
Bibliografia: Beazley 1971: 353,1; Boardman 1991: direito está esticado para frente com a m ão aberta, de
113-14, fig. 205; Robertson 1992: 136, fig. 139. m odo a pegar duas frutas que caem da árvore. Encon-
D escriçã o : (a) N o centro da cena está uma árvore tra-se, atrás dela, uma mulher com quíton e manto,
frutífera. D uas m ulheres estão colhendo frutas. Elas voltada para a direita, fita ao redor da cabeça, cabelos
usam qu íto n , m anto, cabelos presos e tiaras nas com pridos e soltos. Ela segura, com a m ão direita, uma

185
CHEVITARESE, A.L. Mulher e colheita de frutas na pólis ateniense: análise iconográfica dos vasos áticos de figuras
negras e vermelhas. Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 70: 175-187, 2000.

grande vara usada, talvez, para derrubar as frutas esforço, visto que o tronco do seu corpo está visivel­
localizadas nos galhos mais altos da árvore, de m odo mente arqueado para frente, um cesto (de vim e?)
que eles possam ser recolhidos pelas demais assistentes. repleto de frutos. Atrás dela está localizada uma
Há duas outras mulheres no lado direito da cena. Uma mulher, voltada para a esquerda, usando quíton e
delas, voltada para a direita, p e p lo com pregas e manto, fita ao redor da cabeça, com os cabelos
dobras, fita passada duas vezes ao redor da cabeça, tem com pridos. Ela tem o braço direito levantado, com a
os cabelos presos. Ela está carregando, com enorme sua m ão prestes a segurar um fruto.

CHEVITARESE, A.L. Woman and fruit harvest in the Athenian pólis: iconographic
analisys of the Athenian black and red figure vases. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e Etnologia, São Paulo, 10: 175-187, 2000.

ABSTRACT: When raising the fruit harvest scenes in the Athenian black
and red figured vases systematically, one notices a direct relation between the
practice of this agriculturist activity and the women. One intends with this
paper to establish possible explanations of this association, at first not very
common for the Athenian culture patterns, from the examination of Athenian
vases and the literary tradition.

UNITERMS: Greek Vases - Athens - Attic - Woman - Fruit Harvest -


Social History.

R e f e r ê n c ia s b i b l io g r á f i c a s

AM O UR ETTI, M .-C. CHEVITARESE, A.L.


1 9 8 6 Le Pain et L’Huile dans la Grèce Antique. 1 9 9 7 A rqu eologia, A n tro p o lo g ia e H istória
De L’Araire au Moulin. Paris: Les Belles Rural da Á tica no P eríodo C lássico (dois
Lettres. volu m es), Departam ento de A ntropolo­
BEAZLEY, J.D. gia Social. Faculdade de Filosofia, Letras
1 9 5 6 A ttic Black-Figured Vase-Painters. e Ciências Humanas - Universidade de
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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 2 7 de m aio de 2000.

187
Rev. do M useu d e A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 1 0 : 189-196, 2000.

O ESTUDO DA NOÇÃO DE VALOR E O UNIVERSO DE


APLICAÇÃO DO D I N H E I R O *

Leila Maria França**

FRANÇA, L.M. O estudo da noção de valor e o universo de aplicação do dinheiro


prim itivo. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 189-196,
2000.

RESUMO: Poucos são os estudos que abordam de maneira adequada os


temas relativos às trocas - como circulação, valor e dinheiro - nas sociedades pré-
capitalistas. Neste artigo, propomos algumas reflexões acerca do tema, baseadas
numa bibliografia específica que nos permite instrumentalizar a noção do
econômico tanto quanto compreender o seu funcionamento e as suas particu­
laridades em relação aos fenômenos e categorias de uma economia de mercado.

UNITERMOS: Noção de Valor - Dinheiro Primitivo - Economias Pré-


Capitalistas - Trocas nas Sociedades Antigas.

Um campo relativamente novo na pesquisa, o e que não se limitava, portanto, às explicações de


estudo da Noção de Valor, deriva da insatisfação cunho materialista.
dos pesquisadores da Numismàtica e da Antropolo­ Além do valor-de-uso e do valor-de-troca
gia Econômica quanto à conceituação superficial de estabelecidos por Marx (1980-81), havia
dinheiro normalmente empregada nos estudos de qualquer substância ou atributo de valor que
economia existentes. Ao se trabalhar com a moeda remontava a tempos mais antigos ou a estágios
grega dos primeiros tempos e sobretudo com os mais recuados das sociedades, relacionados às
objetos pré-monetários que lhe antecederam, tradições mais caras de uma determinada cultura,
percebeu-se que havia algo mais em tomo dessas estreitamente vinculadas à noção do sagrado e de
unidades monetárias que lhes atribuía valor; algo status social.
estreitamente relacionado aos diversos valores Isto é facilmente apreendido na obra de
daquela cultura, que extrapolava a esfera econômica, Mauss (1971), que analisou, em seu texto
clássico Essai sur le Don, o processo de troca
nas sociedades indígenas dos EUA e Oceania.
(*) Este artigo faz parte de uma reflexão mais ampla Trabalhando com as noções de dom, contra-dom
acerca da Noção de Valor na Mesoamérica Pré- e reciprocidade - noções universais - o autor
hispânica. Ver Transformações da Noção de Valor na destaca a íntima relação existente entre o valor
Mesoamérica: os ‘O bjetos P reciosos’ como Interm ediá­ mágico-religioso e o valor econômico nos
rios nas Trocas Indígenas e o seu Encontro com a
chamados objetos preciosos que circulam
M oeda M etálica. São Paulo, FFLCH/USP, 1999
(Dissertação de Mestrado). naquelas culturas.
(**) Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Em uma aplicação das idéias desenvolvidas
doutoranda em Arqueologia. por Mauss, Louis Gemet (1948) analisou o

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FRANÇA, L.M. O estudo da noção de valor e o universo de aplicação do dinheiro prim itivo. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e E tn o lo g ia , São Paulo, 70: 189-196, 2000.

significado dos objetos preciosos na tradição As funções ornamentais e cerimoniais dos


mítica grega, apresentando os contextos míticos objetos estariam, também, especialmente
nos quais eles aparecem, de maneira que a noção relacionadas ao seu uso monetário. Acredita-se
de valor neles implícita fosse evidenciada.1 A que na grande maioria dos casos o uso de um
relação do valor mágico-mítico com o valor objeto como ornamento anteceda sua função
econômico - neste caso, símbolo de riqueza - foi monetária (Einzig 1966: 366-369).
também por ele observada. Para Bemard Laum (1924), o gado constitui
A existência de uma noção de valor funda­ um dos dinheiros mais antigo da humanidade, cujo
mentada em outros valores sociais que não o valor é antes de tudo religioso. Segundo ele, na
econômico pode ser, ainda, comprovada por dois Grécia do Período Homérico o comércio era uma
fatores muito importantes. O primeiro deles é o prática insignificante, o que toma mais plausível a
fato - que será discutido adiante - de que nessas hipótese de que a adoção do boi como unidade
sociedades não houve uma autonomia ou relevân­ monetária tenha se desenvolvido a partir do
cia do ecônomico em detrimento de outras sacrifício - que pode ser interpretado, também,
esferas, de modo que toda circulação de bens como uma forma de comércio com os deuses.
estaria impregnada de outros fatores e preocupa­ Einzig acredita que entre os fatores não
ções que não o da simples satisfação de necessi­ comerciais que conduziram ao uso do dinheiro,
dades materiais. O segundo, derivado do primei­ o fator religioso merece especial atenção (1966:
ro, é que ao contrário do raciocínio Aristotélico - 370). Os objetos teriam sido escolhidos por suas
reforçado por Marx (1980-81) - estudos têm qualidades mágicas, seus poderes sobrenaturais
demonstrado que o dinheiro primitivo não surgiu ou, ainda, sofrido um processo de estandar-
das necessidades da troca, mas sua origem tização em função de seu emprego no sacrifício
repousa, antes de tudo, em fatores não comerciais, aos deuses e nos ritos funerários. Um elemento
entre os quais, nas necessidades de pagamento - que reforça essa possibilidade é o fato de que,
de sangue (indenização por morte), nupcial, em muitas comunidades indica-se a observância
resgate, multa, recompensa - , de ornamentação de de ritos e regras aos produtores desses dinheiros
prestígio, e religiosas. Na verdade, ainda quando no desempenho da tarefa sagrada (idem: 370).
se defenda a origem comercial do dinheiro De qualquer modo, ainda quando quisermos
primitivo - ou seja, a constituição de um equiva­
associar a origem do dinheiro a outros fatores
lente para intermediar as trocas - a eleição de um
não-religiosos, encontraremos dificuldades, uma
determinado objeto passa pela sua aceitação em vez que não é tarefa fácil tentar separar, nessas
esferas extra-econômicas (Einzig 1966: 346).
sociedades, as motivações religiosas daquelas
Inversamente, em muitos casos em que outros
que chamaríamos mundanas (idem: 376).
sistemas monetários mais avançados alcançam
Em seu livro A Survey o f Primitive Money, A.
uma cultura, o uso religioso e cerimonial do
Quiggin, ao comentar essa substância inexplicável
dinheiro primitivo se mantém (idem: 384).
do dinheiro primitivo, afirma que, ao contrário dos
Paul Einzig defende que a origem do
critérios estabelecidos pelos economistas para
dinheiro estaria relacionada predominantemente
definir dinheiro, existe uma essência intangível que
à necessidade de pagamento, sobretudo o
é mais importante do que aquelas...qualidades e
matrimonial (idem: 382-384), opinião comparti­
muito mais difícil de definir. E uma qualidade ou
lhada, em grande medida, por Frederick Pryor
virtude intrínseca adquirida pela reputação,
(1977: 169), a partir da análise feita sobre o
associação ou uso, algo parecido com ‘mana’ na
conjunto de 60 (sessenta ) sociedades antigas e
Oceania, com o que é, em geral, vagamente
atuais, e por A. Hingston Quiggin (1949: 7-9).
denominado fetiche’ na Africa, ou ‘sortilégio’,
entre nós. Isso toma tais objetos tão desejáveis que
acabam ‘passando por dinheiro’ (1949: 3).
(1) Referimo-nos, aqui, aos mitos nos quais os ‘objetos Assim, George Dalton (1967: 255) afirma,
preciosos’ encarnam significados centrais na narrativa
ao comparar o dinheiro primitivo com o dinheiro
como por exemplo, o papel de prêmio atribuído ao tripé
dos sete sábios (Diogenes Laercio, I 27-33) ou a virtude
moderno, que o primeiro possui pedigree e
temível do tapete de púrpura de Agamenón (Esquilo, personalidade, uso sagrado e conotações morais
905-949), apud, Gernet 1948. e emocionais.

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Esses e outros tantos exemplos que meios para se atingir os fins: por trás desse
poderiam ser citados reforçam a idéia de que o raciocínio está implícita a idéia de mercado -
relacionamento do homem com o dinheiro - em objeto da disciplina conhecida como economia.
nosso caso, o dinheiro primitivo - é algo O segundo significado refere-se à economia
muito mais complexo e impregnado de um valor empírica como uma atividade institucio­
que é incompreensível à luz das categorias nalizada de interação entre o homem e seu
marxistas - embora elas não possam ser meio que dá lugar a um suprimento contínuo
descartadas. de meios materiais para a satisfação de
Tendo em vista tudo o que foi dito até aqui, necessidades (1976: 293).
se quando da sua origem, ou seja, num estágio A separação entre essas duas esferas de
mais recuado de desenvolvimento das socieda­ compreensão do econômico foi fundamental para
des, o dinheiro primitivo esteve estreitamente o estudo das diversas economias existentes, uma
vinculado às esferas descritas acima, é de se vez que somente ela pode proporcionar os
supor, com o mínimo de razão, que em períodos instrumentos adequados às Ciências Sociais na
posteriores - sobretudo anteriormente à predo­ análise das economias não regidas pelo mercado.
minância do mercado observada por Karl Assim, enquanto persistia a análise econômica
Polanyi (1980) - esses laços tenham se afrouxa­ baseada no sistema de mercado, pouco se podia
do em função do desenvolvimento das atividades apreender sobre as reais condições dos demais
comerciais, mas em hipótese alguma, se extin­ tipos de economia nas quais o mercado não
guido. existe ou não prevalece.
Tanto é verdade que ainda hoje utilizamos A partir, então, da noção de economia real foi
expressões que denotam esse passado como possível perceber que a economia humana está
‘Idade de Ouro’ ou conservamos práticas como integrada e submersa em instituições de tipo
jogar uma moedinha na fonte para fazer um econômico e extra-econômico, sendo estas últimas
pedido, evocando consciente ou inconsciente­ de fundamental importância (idem: 295). Na
mente, alguma entidade sobrenatural. ausência de um mercado controlador não há,
Mesmo nas chamadas sociedades arcaicas - portanto, a predominância do econômico sobre as
na qual tanto a presença do Estado quanto de um demais instâncias das sociedades. Assim, os
comércio extremamente desenvolvido poderia elementos da economia estão agora integrados em
nos desmotivar a encontrar tais traços - podemos instituições não econômicas. Todo o processo
observar inúmeros exemplos dessa relação econômico está regido institucionalmente através
indissociável entre o valor econômico e o valor do parentesco, o matrimônio, os grupos de idades,
tradicional, fundamentado em fatores extra- as sociedades secretas, as associações totêmicas e
econômicos. as solenidades públicas. O termo ‘econômico ’
carece aqui de significado claro (idem: 117).
Dentro desse tipo de organização, um
O lugar do econômico nas sociedades indivíduo não pode identificar como econômicas
‘primitivas’ e arcaicas2 determinadas experiências, nem perceber algum
interesse especial por seu próprio sustento o que
Foi Karl Polanyi quem formulou de maneira se explica, inclusive, pela ausência total de
clara a separação semântica da palavra economia vocábulos para expressar o conceito de econômi­
em seus significados formal e real. O primeiro, co (idem).
de natureza racional, tem como pressuposto a Mareei Mauss ao analisar o Potlatch dos
escassez e se desenvolve a partir da eleição de indígenas do noroeste americano - um contex-

(2) Embora reconheçamos a inadequação do termo lógica evolucionista, utiliza-se o primitivo como relativo
prim itivo, não poderíamos prescindir dele pelo fato de que à sociedade simples em oposição a arcaico - sociedade
adquire sentido dentro do corpus teórico adotado, devido que atesta a presença do Estado, num estágio de desenvol­
ao seu conteúdo conceituai. Na obra de Polanyi e seus vimento mais avançado. No estudo dos aspectos
seguidores, cujos estudos se inscrevem dentro de uma econôm icos, essa distinção é extremamente importante.

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to festivo, cerimonial onde se realizam trocas, dependência do mercado para a satisfação de


com implicações político-sociais, jurídicas, grande parte das necessidades da população e
morais que se refletem no cumprimento do a função meio-de-troca (comercial) do dinheiro
ritual e na obrigação de dar, receber e devolver como a mais difundida - difere dela em dois
o dom, assim como de destruir bens - obser­ pontos essenciais: na ausência de uma
vou tratar-se de um fato social total em que tecnologia moderna e sobretudo na retenção
tudo acaba misturado (1949: 157). Não se de práticas culturais e organização social
pode, portanto, explicar o fenômeno social tradicionais (idem: 266). É justamente nesse
partindo de um fenômeno julgado causa, mas ponto que repousa a análise do valor -
ligar todos os traços econômicos, jurídicos, tradicional - daqueles objetos monetários
religiosos, artísticos de uma sociedade dada utilizados nas trocas cerimoniais, no pagamen­
e compreender como eles conspiram no to do tributo e, inclusive, no mercado. Afinal,
mesmo sentido (Lefort 1967: 64). não podemos esquecer que estes objetos são,
Mas, se não existe, em princípio, uma preocu­ antes de mais nada, objetos preciosos, cuja
pação direta com a subsistência, como se organi­ valorização remonta a tempos mais recuados,
zam, afinal, as sociedades, de forma que o seu dada a preservação contínua de um passado
suprimento lhes seja garantido? E para nós, mítico relativo às origens, associada, portanto,
pesquisadores, como destacar e instrumentalizar a experiências sociais diversas - de natureza
essa noção de econômico que nos é indispensável religiosa, mítica, de prestígio, moral, jurídica -
na análise do dinheiro primitivo? que lhes favorecem a circulação e lhes conferem
Karl Polanyi define como puramente valor.
econômicas as atividades de produção, transpor­
te e transferências de bens voltados para a
subsistência (1968a). A forma como cada O dinheiro primitivo
sociedade institucionaliza essas atividades
chamadas econômicas, dentro de um sistema de No mundo atual, quando buscamos uma
organização mais abrangente, é que lhe confere definição para dinheiro, pensamos imediatamen­
unidade e estabilidade. Teoricamente, distingue- te na sua função como meio-de-troca, ou seja a
se três formas básicas, chamadas formas de sua potencialidade de comprar algo ou, ao
integração: reciprocidade, redistribuição e contrário, de obtê-lo por meio da venda de
troca, as quais interagem em maior ou menor algum bem. Na verdade, tal como o definiu
proporção dentro de determinada sociedade. A Marx, o dinheiro é o equivalente universal,
reciprocidade supõe movimentos entre pontos capaz tanto de medir e expressar o valor quanto
correlativos de agrupamentos distribuídos de servir de meio de troca entre mercadorias que
simetricamente; redistribuição consiste em são intercambiáveis entre si (1980-81). A
movimentos de apropriação em direção a um definição do dinheiro moderno, portanto está
centro, e num momento posterior desse centro diretamente ligada à idéia de mercado. Embora
para fora; e a troca consiste em movimentos outras funções não comerciais - como pagamen­
recíprocos dentro de um sistema de mercado to, taxas etc. - poderiam igualmente ser atribuí­
criador de preços. das ao dinheiro moderno, todas elas, hoje, estão
Nas diversas sociedades podemos detectar submetidas às leis do mercado auto-regulável o
esses três níveis de integração. Na sociedade qual, segundo Polanyi, constitui uma espécie de
asteca, por exemplo, a presença desses elemen­ ser autônomo, acima do bem e do mal, que dita
tos é extremamente clara, através das trocas suas regras à sociedade conforme seus próprios
cerimoniais, do tributo e do mercado (tianguiz) interesses (1980).
respectivamente. É importante ressaltar que, Mas é preciso lembrar que nem sempre foi
embora a troca nas sociedades arcaicas de assim. Quando nos ocupamos de outras socieda­
economia camponesa (Dalton 1967: 265) des que não a capitalista ocidental ou as atuais
compartilhe características comuns com a que compartilham os efeitos de um mundo
economia capitalista - compra e venda de globalizado, encontramos um dinheiro com
terra, trabalho, mercadorias e serviços, a características muito diversas, entre as quais se

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destacam as funções não-comerciais. Na Essa função do dinheiro está especialmente


verdade, uma reflexão sobre o dinheiro relacionada à necessidade de cálculo nas
primitivo implica, antes de mais nada, num operações de troca em espécie, e nos sistemas
reconhecimento de suas particularidades, as redistributivos, uma vez que, nesses casos,
quais estão intimamente relacionadas aos somente algum padrão mental pode calcular os
aspectos organizacionais e ao perfil específico valores a serem trocados, armazenados e
das atividades chamadas econômicas dentro distribuídos.
das sociedades que o empregaram. O entesouramento consiste na acumulação
G. Dalton, em sua análise sobre o tema, de objetos como expressão de riqueza estando
afirma que as melhores comparações entre o vinculados tanto ao pagamento quanto às trocas,
dinheiro primitivo e o ocidental pecam por falta pelo fato de que os objetos entesourados podem
de profundidade na análise da estrutura econô­ ter origem social, política ou comercial e, depois
mica e social nas quais operam. Segundo ele, de armazenados, podem vir a ser utilizados para
concentrar atenção sobre o que todos os os mesmos fins.
dinheiros tem em comum significa descartar Quanto às trocas, em termos de dinheiro
aquelas pistas - de como o dinheiro difere - primitivo, podem ser consideradas tanto as trocas
as quais constituem expressões claras de comerciais - que requerem o uso de objetos
diferentes organizações sócio-econômicas quantificáveis, e supõe a existência de mercado
(1976: 255). Para ele, é preciso entender que o em algum grau -, quanto as trocas cerimoniais
dinheiro não é um fato isolado, separado (de presentes), fundamentadas nos princípios de
portanto, de seu contexto social (idem: 280). reciprocidade.
É este fato fundamental, portanto, que nos Essa diversidade nas funções do dinheiro em
permite compreender o universo de aplicação do contextos primitivos e arcaicos é responsável por
dinheiro primitivo em sua complexidade e uma variação bastante grande em relação aos
diversidade e que, ao contrário do dinheiro objetos utilizados. Podemos compreender com
moderno, não se define por sua função comerci­ mais clareza essa variação se tomarmos como
al, mas por um conjunto de práticas sociais de exemplo, o dinheiro moderno.
onde as trocas podem ser destacadas, não sem Numa economia capitalista, o mercado é um
alguma dificuldade. elemento autônomo dentro da sociedade,
Em termos gerais, dinheiro primitivo pode direcionando, inclusive, as relações sociais. É
ser definido como objetos quantificáveis natural, portanto, que o dinheiro seja representa­
utilizados como meio de pagamento, padrão de do quase que exclusivamente por um único
valor, entesouramento e troca (Polanyi 1968b: objeto em função de sua aceitação no mercado
191). O termo quantificáveis supõe que esses (Polanyi 1968b: 178). Já o dinheiro primitivo
objetos possuam um certo grau de uniformidade que atua dentro de sociedades com um alto grau
que permita o cálculo da riqueza ou das operações de integração, não possui um elemento unifi-
citadas acima que podem ser comerciais ou não. cador, ainda que consideremos o poder que nelas
Algumas dessas operações ou funções exerce a esfera espiritual:3 aqui, é possível
podem se desdobrar em diversos contextos mais distinguir diferentes esferas de circulação, nas
específicos, como é o caso do pagamento, quais se observa o uso de diferentes objetos
entendido como a liberação de uma obrigação com funções monetárias diversas. Ao observar
através da transferência desses objetos em forma essa diferença fundamental, Karl Polanyi
de resgate, multa, casamento, recompensa, taxas denominou ‘all-purpose money' aquele
etc.. Essa é um esfera especialmente importante primeiro tipo, unificado pelo mercado; e o
nas chamadas sociedades primitivas e arcai­ segundo, devido à sua variabilidade e aplica-
cas, onde o uso do dinheiro, ao lado da
utilização como padrão de valor, é mais
difundido.
(3) Apesar de não ser um elem ento unificador, a esfera
O padrão de valor ou unidade de conta religiosa exerceu, sem dúvida, uma forte influência
constitui uma unidade abstrata que permite o sobre o valor do dinheiro prim itivo nas diversas culturas.
cálculo da riqueza e os valores intercambiados. Ver França (1999).

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ções específicas, ‘special-purpose money' preencher todos os requisitos propostos pelos


(idem: 178-179). economistas - que partem de uma definição de
Essa distinção é da máxima importância dinheiro moderno - devido aos seus traços
não somente para a compreensão do funciona­ específicos e as particularidades de seu
mento do dinheiro primitivo, mas sobretudo emprego.
dos resultados do confronto entre este e De maneira geral, além da questão funda­
dinheiro moderno. mental, já apontada, sobre os diversos usos
Paul Bohannan, no final da década de 50, do dinheiro - o que requer o emprego de
aplicou esses princípios a fim de tomar inteligível objetos diferentes - pode-se dividir as chama­
a situação dos Tiv - um grupo africano que vivia das limitações em três níveis diversos: limita­
experiências econômicas, sociais e morais ções físicas, limitações de origem sócio-
extremamente conflitantes, após a introdução da cultural e limitações econômicas.
moeda pelos ingleses (Bohannan 1967). Em seu A questão relativa aos critérios físicos para
estudo, o autor observou que os Tiv possuíam a utilização do dinheiro diz respeito às qualida­
uma economia multicêntrica, com três esferas de des intrínsecas e extrínsecas do material
troca bem definidas: subsistência, prestígio e monetário para sua perfeita operacionalização:
casamento. Cada uma dessas esferas possuía utilidade e valor, portabilidade, indestrutibi-
suas particularidades, suas unidades monetárias lidade, homogeneidade, divisibilidade, estabili­
próprias, sendo que as duas últimas se caracteri­ dade do valor, reconhecibilidade, qualidades
zavam por um conteúdo moral extremamente derivadas da utilização do metal, como sendo o
acentuado. A partir do contato, os ingleses dinheiro por excelência. Os especialistas
elegeram como dinheiro universal (all-purpose concordam que seja impossível levar em conta
money) dos Tiv, uma de suas unidades - as varas todos os critérios no que se refere ao dinheiro
de metal, que circulavam tradicionalmente, apenas primitivo', do contrário, haveria poucas socie­
na esfera de prestígio e como indenização nas dades primitivas com dinheiro (Einzig 1966,
dívidas de casamento - estabelecendo equivalên- Pryor 1977). Entretanto, dentro da abrangência
cias com a moeda inglesa. O resultado mais material do dinheiro primitivo, pode-se encon­
dramático foi, além da desconfiança no novo trar objetos que atendam mais ou menos a
dinheiro, uma crise geral dos valores daquele essas requisitos. Esses critérios estão fortemen­
povo, através da falência de seu sistema de trocas te vinculados à idéia de eficiência nas opera­
sociais. Segundo o autor, o dinheiro para todos ções e, embora sejam muito pertinentes no que
os propósitos provê um denominador comum diz respeito a transações que visam a subsistên­
entre todas as esferas, tomando assim, os itens, cia - não o são, necessariamente, quando outros
dentro de cada uma delas, expressáveis em elementos sociais estão presentes, como a idéia
termos de um único padrão e consequentemente, de prestígio veiculada através dos vaygu’a
imediatamente intercambiáveis entre si. Por essa (braceletes e colares de conchas) nas Ilhas
razão, esse novo dinheiro é incompreensível para Trobriand (Mauss 1971), do colar de contas de
os Tiv (idem: 132). jade na Mesoamérica (França 1999) e do gado em
Podemos afirmar, portanto, que todo o numerosas culturas (Einzig 1966, Quiggin 1949).
problema se resume no fato de que o dinheiro O segundo nível de limitação diz respeito às
universal foi introduzido numa sociedade onde, peculiaridades geográficas, etnológicas e sociais.
em princípio, somente o dinheiro para fins O uso do dinheiro primitivo, geralmente, está
especiais era conhecido, ao mesmo tempo, em circunscrito a uma área específica, uma aldeia ou
que identificamos aí, a origem da problemática uma comunidade, o que pode dificultar as
da introdução da moeda metálica nas sociedades transações tanto no nível interno quanto externo.
tradicionais e suas conseqüências desastrosas. No mesmo sentido correm as limitações de ordem
Quanto às suas características o dinheiro etnológicas, que levam um grupo a utilizar objetos
primitivo tem sido analisado pelos especialis­ monetários diferentes para si (comércio interno) e
tas por comparação ao dinheiro moderno e sua para o comércio com outras comunidades.
universalidade, em termos de limitações. Isto Quanto às limitações sociais podem
porque, ao dinheiro primitivo não é possível obedecer aos critérios prestígio e sexo: em

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logia e E tn ologia, São Paulo, 10: 189-196, 2000.

numerosas sociedades alguns objetos são de diferentes daquelas às quais estamos habitua­
uso exclusivo das camadas dirigentes como os dos dentro do raciocínio econômico e, por isso
colares de contas na Nova Caledônia e o ébano mesmo, devem ser objeto de muita atenção.
em comunidades africanas; em outras, os Embora o estudo da esfera econômica nas
objetos têm seu uso restrito ao sexo masculino sociedades primitivas e arcaicas envolva
ou feminino, como entre os Yap, onde as grandes dificuldades teórico-metodológicas
conchas de madre pérola têm seu uso restrito à que nos obrigam, muitas vezes, a utilizar
mulheres, ou em diversas partes da África em categorias inadequadas para a apreensão do
que as pontas de lanças e flechas reservam-se econômico, não se pode perder de vista a
ao uso exclusivo dos homens (Einzig 1966). especificidade desses sistemas sócio-culturais
Com relação às limitações econômicas, ou que se caracterizam pela integração e totalidade.
seja, tendo como parâmetro a economia capitalis­ Considerações acerca do dinheiro primiti­
ta, são considerados como limitantes os seguintes vo, por mais precisas e consistentes que possam
fatores: 1) a ocorrência de um volume de comér­ ser, não podem prescindir desse olhar antropoló­
cio muito pequeno em determinadas comunidades gico, o qual, aliás, não nos permite rotular todos
devido à sua organização ou estágio de desenvol­ esses fatores - justamente eficazes dentro de sua
vimento; 2) prática muito difundida de troca estrutura de funcionamento - como limitantes,
direta de mercadorias, que dispensaria o uso do mas como particularidades relativas ao seu
meio de troca ou dinheiro; 3) aceitação do desempenho nessas sociedades.
dinheiro primitivo que nem sempre é automática, O dinheiro primitivo - sob forma dos mais
pois como se sabe, o dinheiro é antes de tudo, variados objetos - caracteriza-se, acima de tudo,
uma convenção e objeto de unanimidade, pelo valor simbólico resultante de seu desempe­
condição que nem sempre é plenamente atendida nho nas diversas esferas da vida social, o que
na ausência de Estado como interventor; 4) determina, inclusive, a sua eleição como instru­
aceitação restrita a alguns tipos de mercadoria e mento monetário. Embora seu uso envolva um
serviços, de acordo com as necessidades locais; consenso em tomo de seu valor, não é absoluta­
5) existência de diversos objetos que concorrem mente uma convenção, como o dinheiro moder­
entre si dentro da mesma esfera ou fora dela, que no. Ao contrário deste último - impessoal, capaz
não propicia a uniformização do sistema (idem) . de subjugar toda espécie de bens e de relações
Todos esses fatores são considerados ao mercado - o dinheiro primitivo possui um
limitações pelo fato de que impedem a existência valor intrínseco, vinculado a contextos extra-
de um equivalente universal, uma visão, como já econômicos que o tomam um objeto único
vimos, nascida da perspectiva econômica que dentro de esferas específicas de circulação.
não consegue pensar no fenômeno dinheiro Finalmente, o estudo da noção de valor
independentemente do comércio e do mercado. constitui um instrumento importante na análise
Paul Einzig reconhece que essas limitações das sociedades. Na medida em que o uso dos
- que chamaríamos particularidades -reduzem a objetos monetários extrapola a esfera econômica,
importância do dinheiro nessas sociedades mas o estudo de sua trajetória e funcionamento
não interferem em seu desempenho. Segundo ele dentro de uma dada cultura pode, sem dúvida,
as limitações surgidas da estrutura social de ampliar nosso conhecimento sobre a sociedade
uma comunidade simplesmente significam que o em seu conjunto. O mesmo ocorre com a temática
meio de troca está operando de acordo com os da mudança cultural: as poucas análises do
requisitos daquela estrutura, (idem: 435). E processo de substituição monetária demonstra­
nesse sentido que Polanyi reconhece o dinheiro ram a possibilidade de abordar aspectos antes
primitivo como símbolo...de situações sociais pouco visíveis em contextos de conquista e
definidas (1968b: 176). colonização, como por exemplo, a relação
existente entre a introdução da moeda e a
Considerações finais desestruturação das relações sociais tradicionais
através de sua simplificação à lógica do mercado,
O universo de aplicação do dinheiro fenômeno ainda pouco explorado, mas cujo
primitivo propõe, portanto, questões muito estudo poderá produzir excelentes resultados.

195
FRANÇA, L.M. O estudo da noção de valor e o universo de aplicação do dinheiro prim itivo. Rev. do Museu de Arqueo­
logia e E tn ologia, São Paulo, 10: 189-196, 2000.

FRANÇA, L.M. Primitive money and the study of value. Rev. do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 10: 189-196, 2000.

ABSTRACT: Specific studies of exchange, value and money in preca-


pitalistic societies are still very few. This article’s main goal is to approach these
conceptual categories through the use of a specific bibliography which, we
believe, will take us to a better understanding of ‘primitive’and archaic econo­
mies.

UNITERMS: Notion of value - Primitive money - Precapitalist economies -


Exchange in ancient societies.

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R ecebido p a ra pu blica çã o em 15 de outubro de 2000.

196
Rev. do M useu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 197-209, 2000.

CONTATOS TRANSPACÍFICOS ENTRE ÁSIA E


MESOAMÉRICA: UMA QUESTÁO EM ABERTO

Antonio Porro*

PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Ásia e Mesoamérica: uma questão em aberto.


Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 197-209, 2000.

RESUMO: A tese dos contatos transpacíficos entre Ásia Oriental e


Mesoamérica pré-colombiana é urna das mais controversas da Arqueologia
americana. Ao contrário das antigas e amadorísticas hipóteses de navegações
egípcias ou fenicias, ela surgiu com status acadêmico a partir do estudo
comparativo de motivos iconográficos e simbólicos semelhantes, feito a partir
de 1950 por especialistas de reconhecida competência nas duas áreas. Apesar
de não haver evidências históricas ou arqueológicas desses contatos, uma
série significativa de elementos comuns sugere que eles tenham ocorrido em
diversos momentos, durante o primeiro milênio a. C. e o primeiro d.C.

UNITERMOS: Mesoamérica: Arqueologia - Ásia oriental: Arqueologia -


Pacífico: navegações, difusão cultural.

A necessidade de recorrer a hipotéticas mesmo da Atlântida, a origem das civilizações


influências transoceánicas para explicar o alto americanas.
grau de desenvolvimento das civilizações pré- Tudo isso, naturalmente, é um capítulo
colombianas foi sentida pelos teólogos e encerrado pelos avanços da Arqueologia
intelectuais europeus a partir do século 16, científica na Mesoamérica desde as últimas
quando o Novo Mundo e os seus habitantes décadas do século 19, em grande parte resultado
tiveram que ser inseridos na exegese bíblica e do trabalho de arqueólogos e instituições norte-
na cosmologia ocidental. Já no século 19, americanas. Com a descoberta e a reconstituição
quando o estudo das fontes históricas e dos das seqüências regionais de desenvolvimento
restos arqueológicos na bacia do Mediterrâneo que culminariam, no início da nossa Era, com as
e no Oriente Médio havia ganho foros de civilizações do período Clássico, foram identifi­
ciência (enquanto na Mesoamérica e nos Andes cados os estágios de crescimento das aldeias
ainda estava pouco mais que engatinhando), foi agrícolas do Formativo e a sua transformação em
natural procurar na antigüidade Clássica e centros cerimoniais e administrativos dotados de
Oriental, fosse ela egípcia, grega, fenicia ou arquitetura monumental sob a égide de elites
teocráticas; foram reconhecidos os primeiros
esboços de escrita e de notação calendárica que
(*) Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de mais tarde iriam ganhar formas altamente
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade sofisticadas para o registro de tradições míticas,
de São Paulo. religiosas, históricas e cosmológicas, bem como

197
PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 197-209, 2000.

de observações astronômicas a serviço da China, do sudeste asiático e da índia, de um


religião e da agricultura. Uma vez que o conjun­ lado, e de várias regiões da Mesoamérica de
to dessas manifestações culturais não mostrava outro. Embora reconhecendo a inexistência de
qualquer semelhança com as do Velho Mundo, dados históricos e arqueológicos a respeito,
passou-se a admitir, tácitamente ou não, que as sugeriram que os inegáveis paralelismos formais
civilizações da América haviam sido o resultado teriam sido o resultado da chegada de nave­
de uma evolução local e independente. gantes asiáticos de mais de uma procedência e
Não foi alheio, diga-se, a esta concepção em diversas épocas, entre o primeiro milênio
histórica, um certo viés “americanista” em que a.C. e o primeiro d.C. (Ekholm 1950, 1953,
é possível identificar componentes ideológi­ 1955, 1964a, 1964b, Heine-Geldern 1952,
cos de ordem nacionalista ou “continentalista” 1959a, 1959b, 1960, 1964, 1966).
que remetem à Doutrina de Monroe. Os O que mais chama a atenção nas semelhan­
pesquisadores europeus não associados a ças encontradas é que elas não dizem respeito,
universidades americanas, seja por estarem na maioria dos casos, a elementos estruturais ou
livres daquele viés, seja pela preponderância funcionais, mas a motivos simbólicos e até
das escolas difusionistas na Antropologia da mesmo a detalhes que podem ser simplesmente
primeira metade do século 20, estavam mais decorativos. Os mais significativos são os
abertos a considerar a possibilidade de seguintes:
contatos e influências intercontinentais, mas o
- O motivo da árvore cósmica entre os
seu interesse e a sua atuação estavam mais
Maya e em Java;
voltados para a Arqueologia do Velho Mundo.
- a postura característica do persona­
Dadas essas condições, em meados do século
gem sentado no trono na iconografia maya e
20 as hipóteses de contatos intercontinentais indiana;
estavam virtualmente ausentes da literatura
- os frisos com personagens entrelaça­
arqueológica mesoamericana, ou então eram
dos em plantas aquáticas que brotam da
categoricamente refutadas (cf. os compêndios
boca de peixes ou monstros marinhos, no
clássicos de Krickeberg [1939] 1946, Morley
Yucatan e na índia;
1946, Pijoan 1946, Spinden 1957, Vaillant
- as máscaras monstruosas da divindade
[1941] 1955).
desprovida de mandíbula, entre os Maya e
Esse estado de coisas começou a mudar
na Indochina;
por ocasião do XXIX Congresso Internacional
- os frisos com espirais e volutas
de Americanistas (Nova Iorque, 1949), quando
geometrizadas em toda a área maya e em El
o sinólogo austríaco Robert von Heine-
Tajín (México) e nos bronzes chineses;
Geldern e o arqueólogo norteamericano
- os vasos trípodes cilíndricos com
Gordon F. Ekholm apresentaram uma contribui­
tampa de Teotihuacán (México) e do
ção sobre “Paralelos significativos nas artes
período Han da China;
simbólicas da Ásia meridional e da Mesoa­
- a figura humana que emerge das fauces
mérica”, acompanhada de uma exposição de um sáurio ou de outra criatura monstruosa,
fotográfica que deixou surpresa e perplexa a entre os Olmecas e Mayas do México e
maioria dos especialistas nas duas áreas tambem na índia, Camboja e Java;
(Heine-Geldem e Ekholm 1951). Heine-Geldern - o deus da chuva com nariz em tromba
já havia feito desde a década de 30 importan­ nos códices mayas e o deus-elefante Ganesa
tes estudos sobre as influências chinesas e em Champa e outras partes da índia;
indochinesas nas artes da Oceania (Heine- - as colunas decorativas provavelmente
Geldem 1937) e Ekholm, em 1946, sobre reminiscentes da antiga arquitetura em
estatuetas de cerâmica (supostamente brinque­ madeira, nos palácios mayas de Labná e
dos) com rodas, procedentes de várias regiões Sayil (Yucatan) e em Bakong e Prah Ko
do México. Nos anos seguintes, eles continua­ (Camboja).
ram a arrolar uma série de elementos arquitetô­
nicos, de formas escultóricas e de motivos Esses e outros paralelismos, bem como as
simbólicos e decorativos das artes plásticas da hipóteses de contatos transpacíficos sugeridas

198
PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R e vista do M useu de
A rq u eolo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10'. 197-209, 2000.

pelos autores para explicá-los, foram recebidos uma série de correspondências cosmológicas e
com frieza pela maioria dos americanistas, que iconográficas entre a China da idade do bronze
se de um lado aceitam a tese do povoamento do (Shange Chou) e a Mesoamérica. E ainda antes
continente a partir da Asia por caçadores de Heine-Geldern, Marchai (1934) havia
paleoíndios, não admitem, de outro, que os assinalado semelhanças estilísticas entre a arte
contatos com a Ásia oriental tenham se repetido Khmer do Camboja e as da Polinésia e da
muito mais recentemente dando origem, ou pelo América.
menos influenciando, o desenvolvimento das Uma questão fundamental com que se
civilizações da Mesoamérica. Há nisso, ao que defrontam as hipóteses de contatos transpa­
parece, um fator emocional (a my tribe syndrome cíficos é a da cronologia. Diversos elementos e
já denunciada com aguda autocrítica por um motivos artísticos comuns aos dois continen­
etnólogo norteamericano), como se influências tes distribuem-se ao longo de um enorme
externas fossem reduzir a importância da sua espaço de tempo, mas não parecem apresentar
área de estudos. Mas há também a crítica padrões regulares de ocorrência e cronologia
objetiva face à ausência, na América, de elemen­ relativa que dêem sustentação à tese dos
tos fundamentais da tecnologia e da economia contatos transpacíficos. Não há espaço, aqui,
asiática como o uso do ferro, a roda, o tomo de para a análise e demonstração dessas seme­
oleiro, o cavalo e o boi. Daí a prudência daque­ lhanças e muito menos para a discussão dos
les que preferem esperar a prova dos fatos; e problemas cronológicos que elas envolvem;
além daquelas ausências, a prova ainda não uns poucos exemplos serão porém suficientes
apareceu. Nenhum artefato produzido na Ásia para dar uma idéia da questão. As espirais e
foi até hoje encontrado em contextos arqueológi­ volutas geometrizadas dos bronzes Chou
cos americanos e tampouco consta que materiais tardios (700 a 200 a.C.) têm contrapartidas
pré-colombianos tenham sido encontrados na quase idênticas nos baixos-relevos do Clássi­
Ásia (ou em qualquer outra parte do mundo) co médio e tardio de Tajín (Veracruz), entre 600
antes de 1500. Isto vale também para as coleções e 900 d.C. e nos vasos mayas de mármore
de museus, muitas vezes sem documentação de encontrados no vale do rio Ulúa (Honduras),
origem embora geralmente de procedência provavelmente da mesma época. Neste e em
geográfica conhecida. O resultado disso é que, outros casos em que a ocorrência asiática é
passado meio século da sua divulgação nos muito mais antiga que a americana foi sugerida
meios acadêmicos, os indícios de contatos a possibilidade, já admitida pela maioria dos
culturais entre Ásia oriental e Mesoamérica arqueólogos, de que os motivos decorativos e
continuam a ser virtualmente ignorados na simbólicos mesoamericanos já estivessem
maioria dos compêndios de Arqueologia da presentes na arquitetura e na escultura em
Mesoamérica (Adams 1991, Adams ed. [1977] madeira que teriam antecedido o uso da pedra
1989, Fiedel 1992, Hammond [1982] 1988, e do estuque. Um caso inverso é o do estilo
Sabloff 1990, Sharer 1994). arquitetônico de Angkor, no Camboja, que
Além das semelhanças em motivos simbóli­ remete inclusive funcionalmente ao do Clássi­
cos e decorativos, outros paralelismos já haviam co maya, mas que é pelo menos setecentos
sido encontrados, alguns deles há muito tempo, anos mais tardio do que este. Se a semelhança
em certas instituições, crenças, rituais e jogos dos dois estilos (templos-pirâmides, escadari­
dos dois lados do Pacífico. Há mais de cem anos as, torres com rostos humanos gigantescos)
Tylor (1879, 1896) havia comparado o patolli, não for um caso de singular convergência, e
jogo mexicano praticado num tabuleiro crucifor­ uma vez que a civilização do Camboja é
me que remete aos quatro pontos cardeais e ao sabidamente resultado da colonização indiana
calendário, com o pachisi, jogo difundido em no sudeste asiático, caberá até mesmo a
todo o sul e leste da Ásia com características hipótese, até agora só sugerida como “teorica­
semelhantes. Graebner (1921) apontou parale­ mente concebível” (Heine-Geldern 1966), de
lismos estruturais entre os calendários mesoa- influências mayas trazidas pelos próprios
mericanos e do sudeste asiático (China, Tailân­ navegantes asiáticos no retorno de suas
dia e Java). Rock (1922) analisou em detalhes supostas expedições à América.

199
PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn ologia, São Paulo, 10: 197-209, 2000.

A tese das navegações transpacíficas da skepticism ... which essentially claims that we
Ásia para a América, vigorosamente refutada cannot learn about a past reality ... we can only
pela grande maioria dos americanistas, é funda­ create a past in ‘our image’.” (Binford 1995: 61).
mentada pelos seus defensores na conhecida Apesar de praticamente estacionária nos
tradição chinesa de comércio marítimo. As últimos vinte anos e ainda à espera de provas
fontes históricas sobre a navegação chinesa de arqueológicas, a discussão sobre contatos
alto mar pelo oceano Índico e pelo Pacífico transpacíficos levou a uma melhor avaliação do
ocidental só recuam, na melhor das hipóteses, ao problema e a relativizar uma das principais
fim do primeiro milênio d.C., mas as tradições críticas que a tese recebia dos “isolacionistas”.
literárias chinesas fazem referência a episódios Argumentava-se que a maioria dos padrões
marítimos muito mais antigos, possivelmente até tecno-econômicos, das soluções arquitetônicas e
do século III a.C., embora geograficamente urbanísticas, dos estilos cerâmicqs e artísticos e
indefinidos (Ekholm 1964: 507, Heine-Geldem mesmo das expressões de vivência religiosa das
1966: 293). No tocante à técnica de navegação civilizações americanas já estavam documenta­
oceânica não parece haver razões para questionar dos, em sua origem e desenvolvimento local, nos
a capacitação dos marinheiros chineses; a sua períodos Formativos da Mesoamérica e dos
influência nos arquipélagos do Pacífico ociden­ Andes; e que tratando-se de áreas culturais
tal durante o primeiro milênio d.C. e talvez antes resultantes de tradições, ou co-tradições,
já foi comprovada arqueológicamente e as arqueológicamente identificadas, não havia por
navegações oceânicas dos polinésios são que procurar a sua origem em supostos ou tênues
historicamente documentadas. A essa tradição indícios de influências externas (Phillips 1966).
marítima veio se somar, nos primeiros séculos da O fato é que, colocadas nesses termos, as
nossa Era, a expansão indiana pelo sudeste influências asiáticas são um falso problema; o
asiático continental e insular impulsionada pelo próprio caráter esporádico ou não sistêmico da
comércio de especiarias e outros produtos presença de elementos asiáticos nas civilizações
exóticos. (Para uma boa discussão do proble­ da Mesoamérica, bem como a sua aparente
ma das navegações oceânicas e da possível inserção em tradições locais pré-existentes,
difusão de elementos culturais na antigüidade, sugere mais, como aliás vinha sendo sugerido
veja-se Jett 1971). por Ekholm, Heine-Geldem e outros, que o
A partir de meados dos anos 70 os debates caráter ocasional e limitado dos contatos
sobre contatos transpacíficos foram esmorecen­ transpacíficos tenha tido um efeito seletivo nos
do, em parte esgotados pelo não aparecimento de empréstimos culturais, atingindo principalmente
provas arqueológicas, mas também devido às a elite em suas manifestações artísticas e
mudanças teóricas e programáticas da Arqueolo­ religiosas. Pode-se comparar esse processo com
gia norteamericana a partir dos anos 80. O o das influências helenísticas na arte e na
interesse pelos processos de longa duração e de iconografia budista da índia e do Afganistão;
grande escala que havia orientado tanto o com o simbolismo indígena pré-colombiano nos
difusionismo como o neoevolucionismo, e o crucifixos e nas imagens religiosas do México
rigoroso empirismo da Nova Arqueologia, deram colonial; com os motivos heráldicos e militares
lugar a novas prioridades e metodologias. Pós- europeus incorporados como elementos decorati­
processualismo, contextualismo e cognitivismo, vos ao artesanato de diversas tribos africanas; ou
se de um lado tiveram o mérito de denunciar com os floreados e o preciosismo rococó com
certa ilusão positivista subjacente à ecologia que as índias do baixo Amazonas, no século 18 e
cultural e ao neoevolucionismo, levaram de por influência missionária, substituíram os
outro a minimizar a própria possibilidade de desenhos geométricos tradicionais na decoração
conhecimento objetivo do passado: “ a new de suas cuias.

20 0
PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R e vista do M useu de
A rqu eologia e E tn o lo g ia, São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 1 - Acima, desenho em vaso de bronze, Chou tardio, China.


Abaixo, desenho em friso de pedra, Tajín (Veracruz), México.
(Heine-Geldern 1959a: 197).

Fig. 2 - Acima, tabuletas de pedra, Chou tardio, China. Abai­


xo, desenho em vaso de mármore, Cultura Maya, vale do Uluá,
Honduras. (Heine-Geldern 1959a: 196).

201
PORRO, A. C ontatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 3 - À esquerda, lâmina de jade com motivo felino, Shang, China. À


direita, machado ritual de jade com divindade felina, Cultura Olmeca,
La Venta (Tabasco), México. (Meggers 1975: 14-15).

Fig. 4 - À esquerda, máscara de bronze, Shang, China. À direita, desenho gravado no altar 4,
Cultura Olmeca, La Venta (Tabasco), México. (Meggers 1975: 15).

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PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R e vista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn ologia, São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 5 - À esquerda, vaso trípode de bronze, Han, China. À direita,


vaso trípode, cerâmica Maya, Tikal, Guatemala. (Ekholm 1964b: 505).

Fig. 6 - Acima, vasos trípodes de bronze, Han, China. Abaixo,


vasos trípodes, cerâmica Maya, Kaminaljuyu, Guatemala. (Heine-
Geldern 1959b: 208-209).

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PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10\ 197-209, 2000.

Fig. 7 - Acima, um Makara, monstro lendário que combina traços de réptil e de mamífero, de cuja
boca emerge uma figura humana, Mysore, índia. (Heine-Geldern 1964: fig. 12). Abaixo, dragão
Maya de duas cabeças, com os mesmos caracteres anatômicos e uma cabeça humana saindo da
sua boca anterior. Relevo de Copan, Honduras (Spinden 1957: 53).

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PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia, São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 8 - À esquerda, o deus Maya da chuva,


Chac, com apêndice nasal em forma de tromba,
no códice de Madri. À direita, estátua do deus
Ganesa, Champa, índia. (H eine-G eldern
1966:286).

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PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 9 - Acima, relevo, Amaravati, índia. Abaixo, relevo, Chichen Itzá (Yucatan), México. (Heine-
Geldern 1964: figs. 1, 2).

Fig. 10 - Detalhes, Amaravati e Chichen Itzá. (Heine-Geldern 1964: figs. 3,4).

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PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 197-209, 2000.

Fig. 11 - Relevo, Templo do Anäo, Uxmal (Yucatan), México. (Heine-Geldern 1964:


f i g ■ 6).

Fig. 12 - À esquerda, um Bodhisatt\>a sentado na característica posição com uma perna fle xio ­
nada; ao seu lado, em destaque, uma flor-de-lótus. Período Pala, nordeste da índia. À direita,
baixo-relevo Maya do Clássico tardio, represetando um chefe ou dignitário na mesma postura e
segurando o talo de uma planta aquática. Palenque (Chiapas), México. (Ekholm 1964b: 506).

20 7
PORRO, A. Contatos transpacíficos entre Á sia e M esoam érica: uma questão em aberto. R evista do M useu de
A rq u eo lo g ia e E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 197-209, 2000.

PORRO, A. Transpacific contacts between eastern Asia and precolumbian Mesoa-


merica: an open question. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 10: 197-209, 2000.

ABSTRACT: Transpacific contacts between eastern Asia and precolum­


bian Mesoamerica are one of the big controversial issues in American ar­
chaeology. Oppositely to old and amateurish ideas on Egyptian or Phoenician
travels to America, it broke out with scholarly status from comparative studies
of similar iconographic and symbolic traits endeavored since 1950 by specia­
lists of both areas. Notwithstanding lack of historical and archaeological
evidences of contacts, several significant common elements suggest that they
took place more than once, during the first millennium B.C. and the first
millennium A.D.

UNITERMS: Mesoamerica: Archaeology - Oriental Asia: Archaeology -


Pacific: navigations, cultural diffusion.

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R ecebido pa ra pu blicação em 3 de novem bro de 2000.

209
Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 211-229, 2000.

A POÉTICA DA FOME NA ARTE GUARANI*

Mona Birgit Suhrbier**


Mariana Leal Ferreira***

SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fome na arte Guarani. Revista do


Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 211-229, 2000.

RESUMO: Desenhos produzidos por crianças Guarani Mbyá na virada do


milênio sugerem que a Terra-sem-Males pode ser uma realidade mundana. O
solo infértil e cheio de pragas da Terra Indígena Itaóca no litoral sul de São
Paulo é transformado por jovens artistas em farto território, repleto de planta­
ções e caça. A proximidade do lixão de Mongaguá, fazendas de banana e
Cemitério da Igualdade, onde os Guarani buscam restos de alimento, trabalham
como escravos e enterram seus mortos prematuramente, é mantida fora das
ilustrações. Crianças doentes e enfraquecidas do grupo indígena mais nume­
roso do Brasil (30.000) materializam-se nas ilustrações em xondaro Guarani -
guerreiros cujos corpos captaram a essência do paraíso mítico, a imortalidade. A
qualidade estética das representações da vida social Guarani advém das
dimensões de um mundo errante que as crianças tentam recriar e expressar por
meio da arte. Enquanto adultos e idosos acreditam que fome e escassez são
condições necessárias para a passagem à Terra-sem-Males, a geração mais nova
propõe mudanças concretas à ordem social, incluindo a aceitação do conforto
da agricultura sedentária. Se a palavra sagrada, vital à pessoa Guarani, não
transmitiu até hoje à insensível sociedade brasileira os efeitos dramáticos da
pobreza e violência, os jovens esperam que sinais visuais de um mundo poético
e idealizado possam educar o público sobre suas presentes aspirações.

UNITERMOS: Etnoestética - Mbyá Guarani - Cosmologia - Etnicidade.

Os artistas único desenho foi feito em 1950 por Mirin-


guasu, jovem Guarani Kaiowá da Área Indígena
Panambi, no Mato Grosso do Sul, e coletado
Crianças e jovens Guarani da Aldeia Teko
por Egon Schaden (1963).1 Os demais desenhos
Wy’a Pyau, na Terra Indígena (TI) Guarani de
foram elaborados por Luiz Karaí, Cecília de
Itaóca, litoral sul do estado de São Paulo,
produziram ilustrações em 1999 e 2000. Um

(1) Os Guarani são divididos em três sub-grupos: Mbyá,


Kaiowá e Nhandeva. Os desenhos originais coletados
(*) Trabalho apresentado na 99 Annual M eeting of por Egon Schaden são parte da coleção de arte do
the American A nthropological A ssociation em San Museum für Völkerkunde Frankfurt am Main, na
Francisco, California, 15 a 18 de novembro de 2000. Alemanha. Cada desenho é acompanhado por uma
(**) (Museum für Völkerkunde, Frankfurt) explicação de Schaden escrita a mão. Estes desenhos
(* * * ) (U niversity o f T ennessee, K n oxville) estão publicados em Münzel (1988) e Suhrbier (1997b).

211
SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fome na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia, São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Souza, Sílvio de Souza, Mariano Tupã Mirim, rivalidades históricas entre si.4 Hoje, em São
Yldo Veríssimo, Márcia Fernandes, Célio de Paulo, há terras indígenas Guarani no litoral,
Souza, Danilo Silveira, Basílio Silveira, Claudio como Itaóca e Aguapeú, que não foram demar­
da Silva e Hugo Fernandes, jovens Guarani do cadas e homologadas, apenas identificadas.
subgrupo Mbyá da Aldeia Teko Wy’á Pyau, na Outras, como Pindoty em Pariquera-açu e
TI Itaóca. As ilustrações foram coletadas por Pacurity em Iguape, não estão sequer em
Mariana Leal Ferreira e Mona Suhrbier.2 processo de identificação. A maior parte das
áreas indígenas Guarani de São Paulo é formada
por terras inférteis e devolutas do Estado,
Situação Política oferecidas aos índios por seu baixo valor no
mercado imobiliário. Este é o caso da Terra
Indígena Rio Branco II, em Cananéia. De outro
Os Guarani são o grupo indígena mais
lado, há aldeias como Rio do Azeite e Capoeirão,
populoso do Brasil. São mais de 30 mil indiví­
na TI Serra do Itatins, município de Itariri, que
duos dos subgrupos Mbyá, Nhandeva e
estão localizadas no entorno da Estação Ecológi­
Kaiowá vivendo nos estados de São Paulo,
ca da Juréia. Apesar da fartura de recursos neste
Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do
santuário, que se contrapõe à aridez da área
Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
indígena, os índios estão proibidos de caçar,
Sul (ISA 1996). Em São Paulo há 1752 Guarani
pescar, fazer roça ou coletar palmito e outros
localizados em 15 terras indígenas no litoral e
frutos silvestres (Ferreira 1998, 2000, 2001).
no interior do estado.3 Na Terra Indígena
Expulsão de territórios ancestrais e confina-
Itaóca, de onde provêm os desenhos mais
mento em reservas diminutas e improdutivas
recentes, vivem 117 Mbyá e 67 Nhandeva
traumatizaram de modo severo comunidades
(Ferreira 2000:28). Na Área Indígena Panambi,
Guarani no sul do Brasil. Fome, doenças
no Mato Grosso do Sul, onde vivia Mirin-
infecto-contagiosas, como o sarampo e a
guasu em 1950, há cerca de 100 Kaiowá. É o
tuberculose, bem como a desesperança provo­
estado brasileiro com maior população Guara­ caram mortalidade acentuada entre crianças e
ni, com quase 25 mil índios (ISA 1996:721-723).
adultos, bem como o uso perverso do suicídio,
Duas situações políticas bastante distintas
entre os Kaiowá, como “apelo para a vida”
caracterizam os períodos históricos em que as (Meihy 1994).5 Perder o controle da terra onde
ilustrações foram produzidas. Os Guarani de os Guarani caçavam, coletavam e plantavam,
1950 e os Guarani de 1999/2000 fizeram uso de criavam seus filhos e enterravam os mortos, e
estilos contrastantes, porém complementares, estabeleciam relações de troca entre as várias
de representar o presente pensando num aldeias, significou, para várias lideranças
futuro poético e idealizado. religiosas - os karaí, ou profetas Guarani - a
chegada de um cataclisma. De acordo com
Schaden (1963) e Métraux (1948), os Guarani
1950 interpretaram a forte presença do homem
branco em territórios indígenas como o fim do
O processo de colonização do sul brasi­ mundo. Em reação a essa e outras crises, os
leiro reduziu amplos territórios Guarani a Guarani do sul brasileiro têm partido em movi­
diminutas reservas, muitas vezes divididas mentos migratórios, em maior ou menor escala,
com os Kaingang e Terena, grupos com sempre em direção ao norte e tendo o Oceano
Atlântico como principal referência.

(2) Os desenhos coletados por M. Suhrbier fazem


parte da coleção de arte do Museum für Völkerkunde, (4) Perspectivas históricas sobre migrações Guarani
Frankfurt am Main. durante o processo de colonização do sul brasileiro
(3) Há subgrupos Guarani vivendo também na podem ser encontradas em Brandão (1992), Chero-
Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. ISA (1996: bim (1986), Métraux (1948) e M onteiro (1984).
VII) estim a que há 25.000 Kaiowá vivendo no (5) Ver também Clastres (1995), Ferreira (1998b,
Paraguai. 1999b, 1999c, 2001) e M onteiro (1984).

212
SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fom e na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Migrações Tupi-Guarani foram documenta­ Mulheres, homens e crianças trabalham em


das por oficiais portugueses e missionários já condições de escravidão, conforme critérios do
no começo do século XVI. Milhares de índios próprio Ministério do Trabalho, nas fazendas
abandonaram as próprias aldeias seguindo um de banana vizinhas à Terra Indígena. Os índios
grande karaí, que lhes havia prometido um não possuem registro de trabalho, têm salário
território naturalmente abundante, sem a inferior ao mínimo permitido por lei, sofrem
necessidade de trabalho (Métraux 1927:21). Dos discriminação racial e têm ferramentas descon­
10 a 12 mil Guarani que tomaram o rumo norte tadas do salário, o que a legislação trabalhista
em direção ao rio Amazonas, somente 300 proíbe. Por fim, há famílias Mbyá e Nhandeva
sobreviveram à grande jornada (Hill 1995: vii). que vendem pequenos animais esculpidos em
Na década de 1950, o líder religioso da caixeta e arte plumária a turistas na praia, bem
Aldeia Panambi, o karaí Pai Chiquinho, promo­ como palmito e orquídeas na feira local (Ferreira
veu rituais apocalípticos representando o fim 1998,1999b, 2000,2001, no prelo).
desta vida mundana e facilitando a transcen­ Em 1998, houve importante mudança na
dência a outro domínio cósmico - a Terra-sem- liderança da Aldeia Teko W y’a Pyau. O
Males. Conhecimentos mitológicos Guarani cacique Julinho, enfraquecido na terceira idade
foram postos em prática: o karaí Pai Chiquinho por alcoolismo e má-nutrição, foi substituído
invocou Nhanderavuçú, o Criador Guarani, para pelo jovem Luiz Karaí de Souza. Luiz Karaí
formalizar pregações sobre a renovação do despontou como forte liderança profética,
mundo. Nhanderavuçú tem o poder de pôr fim antevendo o cataclisma Guarani na própria
ao sofrimento intenso e desencadear o proces­ terra indígena Itaóca. Entre abril de 1997 e
so do apocalipse Guarani. julho de 1999, morreu em média uma criança
É neste contexto que o antropólogo entre zero e 3 anos de idade por mês, devido à
brasileiro Egon Schaden (1963, 1974) pediu desnutrição crônica (Ferreira 1998, 1999b, 2000,
desenhos a alguns Guarani. Foi a primeira vez 2001, no prelo). A impossibilidade de liderar
em que Miringuasu, a autora da ilustração de um grande movimento migratório, dada a
1950, usou materiais de desenho e produziu fraqueza física da comunidade, provocada por
ilustrações no papel (Ilust.l). falta de comida e escassez absoluta de recur­
sos e de assistência médica, fez com que Luiz
Karaí, a esposa Cecília e outros jovens Guarani
1999/2000 resolvessem reproduzir as condições de
abundância do paraíso mítico na própria terra
Os Guarani Mbyá da Aldeia Teko Wy’a
indígena. Os jovens propuseram várias
Pyau (Nova Esperança, em português), na Terra
mudanças concretas ao nhanderekó ou modo
Indígena Guarani de Itaóca, município de
Mongaguá, sobrevivem coletando restos de de vida Guarani, mudanças essas refletidas na
escolha do novo nome da aldeia - Nova
comida e latinhas de alumínio para vender no
Esperança - e na participação e elaboração de
lixão municipal. O lixão fica localizado a 800
projetos de educação bilíngüe e de desenvol­
metros da aldeia, no limite setentrional da terra
vimento auto-sustentado.7
indígena, que não é demarcada e nem faz parte
do Plano de Urbanização da Cidade de Monga­
guá. A qualidade do lixo varia conforme o fluxo
de turistas no balneário local: carnaval e
A Terra Indígena Guarani de Itaóca foi identificada
feriados prolongados fazem o lixo ficar “gordo”, pela Fundação Nacional do índio (Funai) em 1994
principalmente em função da abundância de (Portaria Funai No. 912, 10/13/94). A identificação é
latinhas de cerveja, vendidas a cinco centavos a primeira de cinco etapas do processo de demarcação
o quilo no próprio lixão aos “donos do lixo”.6 de terras indígenas no Brasil.
(7) Entre 1997 e 2000, Luiz Karaí participou de
vários cursos de formação em educação e saúde,
prom ovidos pela Secretaria da Educação do Estado de
(6) Os donos do lixo são não-índios que servem de São Paulo. Mariano Tupã Mirim form ou-se agente de
intermediários entre os índios e as pequenas empresas saúde em 1998 por m eio de curso realizado no Pronto
que compram alumínio, vidro e plástico para reciclar. Socorro Agenor de Campos, em Mongaguá.

213
SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fom e na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 70: 2 1 1-229, 2000.

As mudanças propostas por jovens seja na intensificação de rituais infantis na opy


lideranças são especialmente significativas ou casa de reza, são representativas da
para os Guarani. Fazem frente ao descaso capacidade que crianças e jovens Guarani têm
completo da Fundação Nacional do índio de representar o presente e interpretar o
(Funai), da Fundação Nacional de Saúde (FNS) futuro, tentando recriar a economia de recipro­
e da Prefeitura Municipal de Mongaguá, cidade Guarani (Melià 1987) a partir de jovem
responsáveis pelo bem-estar dos índios de visão de mundo. Ao contrário dos próprios
Itaóca e de Aguapeú.8 Por outro lado, o pais, tios e avós, crianças e jovens Guarani
nhanderekó ou ascese Guarani prevê o não aceitam as condições desumanas que
sofrimento físico e moral como condição de enfrentam na terra indígena, no lixão, nos
ascenção à Ywy maraê’y , a Terra-sem-Males hospitais e fazendas de banana. Organizam-se
(Clastres 1995). Nas condições atuais de fome para produzir o mundo idealizado da Terra-
e miséria, o asceticismo exacerbado de adultos sem-Males e, ao fazê-lo, atribuem novos
Guarani torna-se, por vezes, perigoso para a significados a visões apocalípticas de corpo,
sobrevivência física da comunidade. A fome é tempo e espaço Guarani.
reinterpretada como “jejum”, prática essencial Este ensaio propõe o entendimento de
para tomar o corpo “leve” e facilitar transes e como os Guarani Mbyá do sul do Brasil
sonhos dos karaí. O jejum forçado acaba por experimentam o mundo em que vivem e que
enfraquecer a comunidade desnutrida, provo­ tentam recriar, a partir da crítica que formulam
cando a morte - condição que, à diferença da à sociedade humana usando lápis e papel.
relação cristã entre morte e ressureição, não Elegemos a autonomia do universo infantil
garante acesso à Terra-sem-Males. Em Itaóca e como premissa básica, de acordo com a mais
Aguapeú, adultos com mais de 30, 35 anos recente vertente da Antropologia da Criança
tendem a assumir postura contemplativa frente (Chin 1999; Ferreira 2001, no prelo; Nunes
aos descasos das autoridades competentes, já 1997; Toren 1995). A criação e recriação do
que o sofrimento pode levar à efetiva realiza­ mundo Guarani contemporâneo pelos jovens
ção da virtude, à plenitude da vida moral não é mera réplica ou miniatura do mundo
(Ferreira 2001, no prelo). Não-índios, como adulto, mas um domínio relativamente autô­
funcionários da Funai e de postos de saúde nomo, regulado por racionalidade própria.
locais, aproveitam-se da situação, justificando Jovens Guarani reinventam, nos desenhos
a fome e a miséria Guarani como produto da produzidos em 1999 e 2000, o nhanderekó,
“passividade” e “preguiça” do povo. Equacio­ propondo soluções concretas de como recriar
nar pobreza com alteridade tem o perverso a “divina abundância” da Terra-sem Males
efeito de tomar o sofrimento mais distante, neste domínio cósmico, o terrestre. Em vez de
porque o atribuímos à “diferença cultural”. retratar crianças esfomeadas no lixão, doentes
Histórias de sofrimento são emblemáticas nos hospitais, escravizadas nos bananais,
de algo mais do que mortes trágicas e prematu­ mortas e enterradas prematuramente no
ras. É neste sentido que transformações da Cemitério da Igualdade, os jovens desenham
vida cotidiana, seja na incrementação das o mundo em que gostariam de viver.
roças, na construção de um prédio para a
escola e na formação de agentes de saúde,
Imagens e Palavras

(8) A Terra Indígena Guarani do Aguapeú também


Desenhar no papel não é parte das
está localizada no m unicípio de M ongaguá, com tradições artísticas Guarani. Conhecidos como
população em 1999 de 50 indivíduos (Ferreira 2000). “mestres da palavra” (Melià 1987:632), o
Com o Itaóca, a TI Aguapeú está som ente identi­ repertório da cultura Guarani revela forte
ficada, porém não demarcada pela Funai. As condi­ tendência à oralidade e pouca ênfase a grafis-
ções de vida dos Guarani de Aguapeú são igualmente
mos, como pintura corporal. Há, na cestaria,
trágicas. A FNS é hoje responsável pela saúde
indígena no Brasil (Ministério da Saúde, Medida padrões geométricos bastante elaborados, mas
Provisória número 1.911-8, Artigo 28-B , 2 9 /07/99). estes não são transpostos a outras superfícies,

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SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fom e na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia
E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

exceto em aldeias onde a geometria Guarani de reza fortalece a recriação da economia de


vem sendo estudada nas escolas (Ferreira reciprocidade Guarani, que reflete realidades
1998b). Além da cestaria, escultura em madeira, de várias ordens, como poder, influência,
plumária e cerâmica fazem parte do acervo simpatia, status e emoção (Bourdieu 1991,
artístico Guarani. Mas a palavra continua Mauss 1990).
sendo o modo de expressão privilegiada da Rezas e canções Guarani têm composição
cultura Guarani (Clastres 1995; Ferreira 2001, poética: são obras em verso, com estrofes bem
no prelo; Melià 1987, 1988). definidas e enredo contundente (Melià 1988).
A iconografia Guarani aqui apresentada É o que podemos notar na seguinte canção
pode parecer, à primeira vista, esteticamente Guarani, com forte conotação política:
simples. Sua complexidade, porém, só pode ser
apreciada por meio de análise que ilumine o P e m è ’e je v y p e m è ’e je v y
campo social e a economia política que ajudam D evolva, d evolva
O reyvy p e r a 'a v a ’e kue
a estruturar a atual cosmologia Guarani. A
A terra que você roubou
crítica dos artistas indígenas à sociedade R o ik o 'i haguã
humana tem o efeito de construir o presente à D e nós
imagem do futuro, à medida que propõe P era 'a va kue ro ik o ’i haguâ.
mudanças ao comportamento coletivo, incluin­ Para que possam os continuar a viver.
do a adoção de vários conhecimentos não-
indígenas, como a escrita, a agricultura Migrações Guarani em direção à Terra-
sedentária e a biomedicina. sem-Males também são tema de canções ou
Para os Guarani Mbyá do estado de São poesias com melodia, cantadas por crianças
Paulo, a arte verbal é dedicada à composição Guarani, como na canção que se segue:
de rezas e encantações coletivas que facilitam
X e k y v y ’i X e k y v y ’i
a comunicação com divindades de outras
Meu irm ãozinho, meu irm ãozinho
esferas do cosmos Guarani. Rezas e encanta­ Ereo rire
ções podem também ser recebidas em sonhos, Você se foi
quando, então, são consideradas propriedade E jevy voi j a ’a aguâ
individual e constituem elementos essenciais Volte logo
da pessoa Guarani. A força do repertório J a ’a m avy
Para que possamos ir juntos
confere prestígio a cada indivíduo, na medida
J o u p iv e ’i
em que sonhos promovem a comunicação Venerando a Deus
entre os seres que habitam os vários domínios P ara rovai ja je ro jy
do cosmos Guarani (Clastres 1995, Métraux Para o outro lado do oceano.
1979, Schaden 1974).
Crianças Guarani da aldeia Teko Wy’a Cada canção ou reza tem, além de texto
Pyau são educadas pelos mais velhos a com estrutura poética, melodia e ritmo. Este é
desenvolver as próprias experiências religio­ marcado por passos de dança e instrumentos
sas. As crianças levam isso ao extremo e musicais, como chocalhos e bastões de
rejeitam sistematicamente o proselitismo madeira. Cantar e rezar durante horas, em
religioso de missionários que vêm tentando jejum, toma o corpo leve e prepara a pessoa
converter os Guarani ao protestantismo. Os Guarani para a transcendência espiritual em
pequenos compõem rezas pessoais e comparti­ direção à Terra-sem-Males. O domínio terres­
lham aquelas recebidas em sonho (e transe, no tre é imperfeito porque está condenado à
caso dos karaí) com a comunidade local, em destruição, enquanto o plano cósmico é
cerimônias diárias na opy, a casa de reza (ver caracterizado por opulência infinita e prazer,
desenho da opy de Teko Wy’a Pyau adiante). nenhum trabalho e a negação de todas as
Estas cerimônias são lideradas por Sílvio de proibições. Isto significa dizer que o mal -
Souza, que toca o violino (Sílvio é autor de trabalho, lei - é a sociedade. A ausência do
várias ilustrações apresentadas a seguir). A mal - a Terra-sem Males - é a contra-ordem
socialização de repertórios individuais na casa (Clastres 1995: 56).

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SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fom e na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia e
E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Os desenhos A liberdade de representação e criação -


forte aspecto da religiosidade Guarani - é
O desenho de Miringuasu foi escolhido transposta da oralidade para a nova arte de
para ilustrar como uma imagem gráfica pode desenhar. Em comunidades Guarani contempo­
ser estruturada como um poema (Ilust. 1). râneas do sul brasileiro, a vida ritual tem forte
A experiência de desenhar no papel pela impacto na experiência da pessoa Guarani.
primeira vez levou Miringuasu, filha do xamã Cantos e rezas ritualizados congregam três
da aldeia Panambi em 1950, e com 23 anos na aspectos importantes do ser Guarani moderno,
época, a desenhar o ritual xamânico. Usando porque: (1) são atos de (re)criação dos ances­
estilo abstrato, a artista compôs o desenho trais mitológicos; (2) replicam, na esfera
como poema, em que uma estrofe segue a terrestre, a trajetória dos ancestrais ao paraíso
outra. Entidades individuais, cada uma repre­ mítico enquanto parte da experiência espiritual
sentando um ato cerimonial, são organizadas interior da pessoa; e (3) enfatizam a necessida­
lado a lado em fileiras dispostas em camadas de dos futuros guardiões das almas humanas
(Suhrbier 1997b). serem submetidos à mesma influência ritualís-
Miringuasu estabelece forte ligação entre tica (Grünberg 1995:89).
os eventos políticos da própria época a A iconografia de Miringuasu põe em
aspectos essenciais da cosmologia Guarani. A evidência o prazer da artista em experimentar
jovem artista interpreta o tema fundamental da uma nova modalidade gráfica, o desenho em
história Guarani, a procura da Terra-sem- papel. É o que vem ocorrendo entre os Guarani
Males, dentro do contexto político dos anos e vários povos indígenas brasileiros, de
50. Ela mostra como os Guarani, seguindo a tradição oral, que vêm fazendo uso crescente
liderança política e religiosa do karaí Pai da escrita e do desenho para produzir cultura
Chiquinho, tentam escapar, de modo ritual e (Melià e Blinder 1988, Ferreira 1992, Suhrbier
coletivo, do mal que aflige a vida terrena. O 1997a, Vidal 2001). Os resultados destas novas
objetivo é alcançar a realidade parasidíaca da formas de expressão e representação entre
Terra-sem-Males. povos de tradição oral vêm sendo explorados
Como uma poetisa, que desenvolve o por vários estudiosos, mas principalmente
próprio tema articulando palavras para entre povos que já possuem forte tradição
produzir novas combinações, M iringuasu gráfica, como os Kayapó e os Xavante (Vidal
produz sua obra gráfica integrando círculos 2000).
e linhas em arranjos originais, formando
novas conexões entre as entidades. Estas
entidades estão interligadas em uma rede de Artistas Guarani Mbyá na modernidade
relações recíprocas, que espelha e ao mesmo
tempo ajuda a recriar o cosmos Guarani. A Os jovens artistas Luiz Karaí, Cecília de
teia de analogias criada pela artista entre os Souza, Sílvio de Souza, Mariano Tupã Mirim,
elementos da ilustração lhe permite desen­ Yldo Veríssimo, Márcia Fernandes, Célio de
volver a narrativa da própria trajetória de Souza, Danilo Silveira, Basílio Silveira, Cláudio
vida por meio de conceitos básicos do da Silva e Hugo Fernandes, da Aldeia Teko
pensamento religioso Guarani. Círculos e Wy’a Pyau em Mongaguá, produziram os
linhas representam os esforços dos karaí ou desenhos analisados a seguir em 1999 e 2000.
profetas em recriar o equilíbrio da vida Todos sugerem, em suas obras, que a abun­
coletiva por meio da reza, do canto e da dância da Terra-sem-Males pode ser replicada
dança, assegurando a comunicação com as na Terra Indígena Itaóca, guardadas as
divindades do povo (Suhrbier 1997b). A devidas proporções. Para que as condições de
artista expressou de modo bem claro, por existência na Ywy maraê 'y (ywy terra, marae ’y
meio de linguagem pictográfica, aspectos indestrutível) possam ser reproduzidas, os
fundamentais do que significava ser, pensar jovens propõem transformações estruturais na
e agir como uma mulher Guarani em meados ascese Guarani. Há, por um lado, uma exacer­
do século 20. bação da religiosidade do povo, à medida que

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E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Ilustração 1. Miringuasu. Quando as terras foram loteadas, Pai Chiquinho rezou para
destruir o mundo 1950

/ pendurados sobre sipos;


Os Kaiová esperando o a; Ywoty (flor de enfeite ritual)
, Diagwarete no caminho b; Tixiripá
c: Ponchito
d:Kúákwahá
e: Xumbé
f: Djegwaká

_ O caminho para o além


^' circos: objetos preparados para a viagem
D
a: Takwáry (takwapú)
b: Tembetá

Pakowá (bananeiras) Mita takwáry


Mbói (cobra)
(takwapú das crianças)

Ilustração 1.

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SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. A poética da fom e na arte Guarani. R evista do Museu de A rqu eologia e
E tn ologia, São Paulo, 70: 211-229, 2000.

os jovens deixam clara a importância da vida dedicam a cultivar. O desenho “Vida de criança
ritual para o bem-estar do povo. Neste sentido, na aldeia,” de Mariano Tupã Mirim, mostra
a opy ou casa de reza, bem como as atividades crianças Guarani trabalhando com enxadas,
dos xamãs aparecem com destaque nos carregando palmito, estendendo roupa lavada
desenhos, enquanto cenas de pronto-socorros (Ilust. 2).
e hospitais, tão freqüentes na vida dos jovens Em outras ilustrações, os jovens dedicam-
da aldeia, são obliteradas. Por outro lado, os se à construção da escola, que não existia até
jovens propõem mudanças estruturais básicas fins de 2000, ou ao plantio de milho, abóbora,
à economia de reciprocidade Guarani, sugerin­ feijão e batata doce. Em todos os desenhos, a
do que o trabalho humano, ao contrário da comunidade aparenta boa saúde e está invaria­
vida contemplativa, é condição de ascensão ao velmente bem vestida. Jovens e adultos
paraíso mítico. A agricultura sedentária dedicam-se a práticas rituais e demonstram
aparece, nos desenhos, como atividade atitude respeitosa frente aos líderes cerimoniais.
desejável, bem como o desenvolvimento de Mulheres e homens trabalham juntos para a
técnicas de caça antigas e modernas. Como prosperidade da aldeia, em vez de dedicar-se à
afirmou o líder da aldeia Luiz de Souza Karaí, coleta de restos de alimentos para comer e latas
“morrer [de fome] não leva a lugar nenhum, só de alumínio para vender, no lixão da cidade. A
ao cemitério.” Ao contrário da crença cristã na arte contemporânea Guarani não é, neste
morte como condição de ascenção ao paraíso, sentido, um modelo em miniatura ou em peque­
■para os Guarani “a morte é o fim”. na escala do mundo, seguindo a definição de
Os desenhos revelam aspectos idílicos da Claude Lévi-Strauss (1966:23). Pelo contrário, a
vida na aldeia Teko Wy’a Pyau. O mundo arte Guarani moderna faz uma crítica à socie­
natural e social é representado de forma dade humana à medida que representa os
idealizada, ensolarado, coberto com farta desejos atuais de jovens Guarani, desejos estes
vegetação e agricultura que as crianças se que os próprios jovens tentam materializar.

Ilustração 2.

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E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Os estilos gráficos de artistas individuais É necessário exercitar cautela, porém, ao


variam, é claro. Sílvio de Souza tem traço atribuir características ocidentais a representa­
marcante no modo como ocidentaliza os ções de mundo Guarani. Os primeiros etnógra­
Guarani, representando-os de acordo com fos, bem como missionários e funcionários
padrões de conduta e vestimenta dos “bran­ governamentais atribuíram características
cos” ou não-índios. Artistas mais jovens como cristãs à religiosidade Guarani, equacionando
Yldo Veríssimo, Célio de Souza e Danilo Silveira a Terra-sem-Males ao paraíso cristão. Confina-
escolheram representar os Guarani, em alguns mento e proximidade a missões jesuítas teriam
desenhos, como lutadores musculosos. Este “influenciado” a religiosidade Guarani. Vários
super-herói Guarani veste pequena tanga, cocar estudiosos como Métraux (1948), Schaden
de penas e ornamentos nos braços, empunhan­ (1974) e Unkel (1914), entre outros, enfatizaram
do arco e flechas, lança e facão ou faca. É forte repetidamente a importância que os Guarani
o bastante para lutar contra a onça pintada e dão à própria vida religiosa, o que invalida
suficientemente poderoso para dominar índios alegações de que os Guarani seriam “acultu-
hostis, homens brancos ou mesmo um gorila do rados” ou teriam “perdido” a própria cultura. O
estilo de King Kong (Ilust. 3). mesmo pode ser dito sobre a arte Guarani. Os
Estes seres fantásticos são recriações do super-heróis são genuinamente Guarani, à
xondaro ou guerreiro Guarani, que alcançou a medida que expressam a essência do corpo
essência necessária à transcendência da político: a qualidade indestrutível que a
pessoa Guarani: a propriedade indestrutível sociedade Guarani deseja e necessita que seus
(maraé’y ) que garante imortalidade aos seres membros adquiram para garantir a sobrevivên­
humanos. Os xondaro Guarani aparecem cia física e cultural do povo no mundo atual.
transfigurados em fantásticos lutadores A proximidade do lixão de Mongaguá, das
ocidentais - Scorpion, Liunkag ou Rayden - fazendas de banana, dos pronto-socorros e do
de jogos como “Combate Mortal” (Ilust. 4). Cemitério da Igualdade, onde os Guarani

Ilustração 3.

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E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 2 1 1-229, 2000.

nam aspectos positivos da vida diária e de


práticas rituais. Esta seleção aponta também,
como afirmamos acima, à idealização do
domínio terrestre do cosmos Guarani, à imagem
da Ywy maraê 'y.
A adoção de estilo gráfico (mas não
conteúdo!) europeu por parte dos artistas, em
1999-2000, reflete a capacidade Guarani para a
comunicação intercultural. Trata-se, aqui, de
estratégia bem sucedida de expressar pensa­
mentos, emoções e bxperiências a duas
antropólogas (autoras deste ensaio). O
desenho “Um índio chegando na cidade”, de
Silvio de Souza, retrata claramente essa
interação simbólica: o índio que vai à cidade
veste calças compridas e camiseta com
emblema da bandeira brasileira (Ilust. 5). Sílvio
apropriou-se da linguagem (traços, conceitos,
valores simbólicos) da sociedade brasileira
mais ampla na construção do próprio entendi­
mento do que significa ser Guarani hoje.
É interessante observar que no contexto
ritual de sociedades indígenas, seres e objetos
são organizados, com freqüência, em fileiras,
ou são colocadas lado a lado seguindo linhas
Ilustração 4. concretas ou imaginárias (Suhrbier 1998). Em
rituais, especialmente os de iniciação, que
buscam restos de alimento, trabalham como marcam a transição de jovens à vida adulta,
escravos e enterram seus mortos prematura­ por exemplo, transpor uma linha ou espaço
mente, é mantida fora das ilustrações. A demarcado pode significar a passagem de um
realidade da sociedade nacional mais ampla estado social a outro. O artista Guarani
não é retratada ou permanece marginal nos Mariano Tupã Mirim faz uso deste elemento
desenhos. No retrato da paisagem local formal, o traço linear, em quatro desenhos. Em
elaborarada por Mariano Tupã Mirim, por “Opy” ou Casa de reza, Mariano dispõe os
exemplo, a cidade de Mongaguá aparece como instrumentos musicais lado a lado no centro
pequena silhueta no horizonte. da ilustração. A ordem espacial da opy é
Nenhum artista quis mostrar os Guarani informada pela disposição dos instrumentos. O
como catadores de lixo e gravemente enfermos significado do violino, chocalhos e bastões de
de doenças infecto-contagiosas. Nem tampou­ ritmo é dado pela sua inserção no contexto
co decidiram retratar os pequenos túmulos de religioso, em vez de enfatizar sua utilidade
cimento com os nomes das crianças Guarani prática, o que faz da linguagem do grafismo
no Cemitério da Igualdade. Ratos, moscas e uma forma de objetivar a ordem cerimonial
baratas que infestam as casas, devido à (Ilust. 6).
proximidade do lixão, estão ausentes das Em “Cantos e danças Guarani na Aldeia
ilustrações. Em vez destas cenas trágicas, o Itaóca”, o mesmo artista organiza os dançari­
tema central da grande maioria dos desenhos é nos em fileira oposta ao líder cerimonial. Ao
a beleza e dignidade da cultura Guarani, mostrá-los desta forma, Mariano coloca os
orientando e transformando o cotidiano da dançarinos em posição liminar ou de transi­
aldeia. Isto significa dizer que quando os ção entre esta esfera terrena para outro nível
Guarani exibem aspectos de sua identidade a cósmico. Dançar e cantar, como já afirmamos,
não-índios e estranhos de modo geral, selecio­ facilita a comunicação entre os vários seres

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E tn ologia, São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Ilustração 5.

Ilustração 6.

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E tn o lo g ia, São Paulo, 70: 211-229, 2000.

do universo Guarani, o que sugere a transição circunferência, o pajé cura um paciente. Na


dos dançarinos entre diferentes níveis periferia estão dispostos os instrumentos
cósmicos. A fileira dos dançarinos ordenando musicais e objetos cerimoniais da casa de
o espaço do desenho dá expressão visual à reza. Notem que os objetos parecem estar em
idéia central do ritual: a manutenção da ordem movimento, circulando em torno da cerimônia
(Ilust. 7). terapêutica. O artista reproduz graficamente
Em “O plantio da banana, mandioca e um importante momento performático Gua­
batata doce”, Mariano dispõe os principais rani, em que os jovens dançam por horas em
produtos da agricultura Guarani em fileiras. À círculo, marcando o ritmo com os pés no
primeira vista, o arranjo parece replicar chão, ficando a trajetória firmemente desenha­
práticas agrícolas encontradas nas fazendas da no solo arenoso. Mariano interpreta o
da região, que praticam monoculturas, em vez cenário terapêutico como parte integral do
da roça de coivara de povos indígenas.O sistema cerimonial Guarani mais amplo, em
artista pode estar designando, porém, a roça que todos os Guarani desempenham impor­
como local sagrado, onde plantas em fileiras tante papel. O conhecimento e o poder do
são evidência de um sistema agrícola que faz pajé compõem o núcleo desse sistema
parte da vida religiosa mais ampla. Esta religioso (Ilust. 9).
interpretação de Mariano se contrapõe à O simbolismo de linhas e círculos nos
definição moderna de plantação enquanto desenhos Guarani pode ser interpretado
simples local de trabalho e produção, domina­ como indicativo de estratégias modernas de
do por valores exclusivamente utilitários manutenção e recriação da cultura Guarani,
(Ilust. 8). frente às condições de vida extremamente
Finalmente, em “Pajé e o índio doente”, adversas que enfrentam nas diminutas
do mesmo artista, o círculo é o elemento reservas em São Paulo - o estado mais rico
formal central da ilustração. No meio da do Brasil.

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E tn o lo g ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Ilustração 8.

Ilustração 9.

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E tn o lo g ia, São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Considerações finais significados são representativos, no seu


conjunto, de uma ordem social, histórica e
Nos últimos 50 anos, a arte Guarani mudou política da vida moderna Guarani. A opy ou
em estilo e organização simbólica. O que não casa de reza, objetos materiais como arcos e
mudou foram os significados simbólicos da flechas, revólveres, cestas, instrumentos
arte e as intenções dos artistas. musicais, cachimbos, cocares e esculturas de
O primeiro desenho de Miringuasu, em animais em madeira, são alguns dos símbolos
1950, com estilo aparentemente abstrato, foi recorrentes na moderna iconografia Guarani.9 É
inspirado por idéias de composição musical e o que vemos nos dois desenhos de Sílvio de
de dança. Com linguagem fortemente estrutu­ Souza, apresentados a seguir (Ilustrs. 10 e 11).
rada, a composição da imagem segue a lei do A própria paisagem e seus componentes
pensamento discursivo, apresentando um fantásticos, religiosos ^ou míticos figuram nos
“simbolismo discursivo” (Langer 1957:79). Na desenhos como símbolos (Suhrbier 1999).
virada do milênio, o estilo de pintura de jovens Entidades “naturais” como rios, roças, raios
artistas Guarani transformou-se em estilo caindo perto de profetas; animais como onças,
figurativo europeu, que por vezes faz uso de cobras e pássaros; e personagens altamente
desenhos figurativos e em perspectiva. Tal simbólicas e/ou espirituais como o caçador, o
estilo é conhecido como “presentational líder político, o profeta e o xondaro são
symbolism” (Langer 1957:79), em que imagens representados. Variações espaciais e temporais
heterogêneas da realidade e entidades comple­ são combinadas para fazer com que a imagem
xas são articuladas de forma simultânea em final tome-se expressiva de uma realidade
uma imagem total. A essência da arte Guarani aparentemente irreal, romanticizada, expressan­
contemporânea não é mais um caminho ritual do e dando forma à emoção e aspiração do
que deve ser seguido, mas uma síntese do que artista.
significa ser, pensar, agir e sentir Guarani hoje. A perspectiva contemporânea adotada por
À primeira vista, os grafismos Guarani historiadores da arte não nos estimula a
refletem somente aspectos da vida diária do perceber semelhanças entre arte Guarani e
pinturas românticas de paisagens européias.
povo. Na verdade, as produções artísticas
Levar em conta que é a intenção que confere
dedicam-se à recriação de aspectos importan­
tes da cosmologia contemporânea Guarani, significados a conhecimentos e ações, facilita
a comparação entre trabalhos de artistas
fazendo uso de elementos do passado para
Guarani e de artistas europeus. Se a palavra
reinventar o presente. Os artistas criam a
sagrada, vital à pessoa Guarani, ainda não foi
ilusão de haver estruturado o pensamento
capaz de transmitir à insensível sociedade
mítico de acordo com três diferentes níveis, ou
brasileira os efeitos dramáticos da persistente
domínios cósmicos. Como em rezas e canções,
pobreza e violência que atinge os Mbyá de
que associam três linhas de ação em níveis
São Paulo, os jovens artistas esperam que
temporais distintos, os desenhos congregam e
sinais visuais de um mundo idealizado e
conferem intensidade, em uma única imagem, a
poético possam ajudar a educar o público
(1) a memória das ações significativas dos
sobre as próprias aspirações.
ancestrais; (2) a experiência espiritual interior
de cada artista com a cultura do povo, à luz de
uma situação política e econômica de extremo
(9) Em sociedades que privilegiam a oralidade como
conflito; e (3) aspirações por um mundo
forma de transmissão de conhecim entos, com o os
terreno mais humano, à imagem da Ywy povos das terras baixas sul americanas, objetos de uso
maraê y. diário são considerados não somente úteis e práticos,
À semelhança de pinturas e retratos de mas são vistos com o sím bolos que desempenham
vários artistas indígenas sul americanos (tais papel importante na estruturação sim bólica dos seres
humanos e na formação da pessoa. Criados na
como os Ticuna e os Tukano do noroeste
interface entre desejos e objetivos individuais, e ideais
brasileiro), artistas Guarani Mbyá não retratam m íticos coletivos, objetos materiais têm o potencial
um mundo “naturalizado”. Compõem, isto sim, de combinar os processos paralelos de experiência e
várias entidades simbólicas específicas cujos criação (Suhrbier 1998).

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E tn o log ia , São Paulo, 10: 211-229, 2000.

Ilustração 10.

Ilustração 11.

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E tn ologia, São Paulo, 10: 2 11-229, 2000.

Agradecimentos Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de


São Paulo (FAPESP, auxílios 94/3492-9,98/09100-6
As autoras desejam agradecer ao Museum e 99/05689-8), e à Deutsche Forschungsgemein­
für Völkerkunde Frankfurt, na Alemanha, e à schaft, auxílios SU 232/-1-1 e 232/-2-1, pelo apoio.

SUHRBIER, M.; LEAL FERREIRA, M. The poetics o f famine in Guarani art. Revista
do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 211-229, 2000.

ABSTRACT: Drawings by Guarani Mbyá children at the turning of the


millenium suggest that the Land-without-Evils may be a worldly reality. The
barren and plagueful soil of the Indigenous Land Itaóca, at the southern coast
of São Paulo, is transformed by young artists into a rich territory, full of
plantation and fit for hunting. The proximity of the big garbage dump of
Mongaguá, banana farms and the “Equality Cemetery”, where the Guarani
search for food, work as slaves and prematurely bury their deads, is kept out
of the illustrations. Sick and weakened children from the most numerous
Indian group of Brazil (30.000) materialize in the illustrations in xandaro
Guarani - warriors whose bodies encapsulated the essence of the mytical
paradise, the ¿mortality. The aesthetic quality of the representations of the
Guarani social life comes from the dimensions of an erring world which the
children try to recreate and express through art. Whereas adults and elder
people belive that famine and scarcity are necessary conditions for the
passage to the Land-without-Evils, the newer generation proposes concrete
changes to social order, including the acceptance of the comfort of the
sedentary agriculture. If the sacred word, vital to the Guarani person, did not
transmit, up to now, the dramatic effects of poverty and violence to the
unsensitive Brazilian society, the young hope that visual signs of a poetic
and idealized world may educate the people about their present aspirations.

UNITERMS: Ethnoaesthetics - Mbyá Guarani - Cosmology - Ethnicity.

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229
Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 231-238, 2000.

A ABORDAGEM DO PERÍODO PRÉ-COLONIAL BRASILEIRO


NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Camilo de Mello Vasconcellos*


Ana Carla Alonso**
Paulo Rodrigues Lustosa***

VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO, A.C.; LUSTOSA, P.R. A abordagem do período


pré-colonial brasileiro nos livros didáticos do ensino fundamental. R evista do
Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 231-238, 2000.

RESUMO: Este artigo traz uma análise a respeito do tratamento dispen­


sado ao período pré-colonial brasileiro nos livros didáticos do Ensino Funda­
mental.

UNITERMOS: Livro didático - Arqueologia - Educação.

Apesar do avanço das pesquisas arqueoló­ educadores de museus, foi constatada a


gicas realizadas em nosso país - notadamente demanda e, ao mesmo tempo, a carência de
nas duas últimas décadas - é possível afirmar informações relacionadas à pesquisa arqueoló­
que os resultados de tais investigações ainda gica em virtude da divulgação fragmentada
permanecem restritos ao círculo das Universida­ dos dados fornecidos pelo meio acadêmico e
des, Museus e Centros Especializados. imprensa, o que dificulta a sua compreensão.
A sociedade brasileira em geral desconhece Devido à preocupação com a questão da '
o que vem a ser a ciência arqueológica e a sua divulgação e da socialização do conhecimento
prática está associada, para o grande público, sobre arqueologia pré-colonial brasileira, no
ao aspecto fantasioso e aventureiro, onde ainda evento referido, apresentou-se úma reflexão a
pesam conceitos equivocados e distorcidos. respeito da abordagem que os livros didáticos
No segundo semestre de 1993, por ocasião do Ensino Fundamental vinham dando a esta
de um seminário ocorrido em Niterói (Tenório temática até então (Vasconcellos 1994: 14-20).
1994) que reuniu arqueólogos, museólogos, A idéia de darmos continuidade às
professores de Ensino Fundamental e Médio e reflexões a respeito da abordagem deste tema
no livro didático do Ensino Fundamental,
deve-se à necessidade de romper com a
“consagração” dos 500 anos do Brasil - visão
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade limitada de nossa história - aliada à perspecti­
de São Paulo. Divisão de Difusão Cultural. Serviço va de uma grande exposição que o Museu de
T écnico de M usealização. Arqueologia e Etnologia da USP realizará em
(**) D ivisão de Difusão Cultural. Serviço Técnico de
2001.
M usealização do MAE/USP. Estagiária.
(***) Departamento de História da Faculdade de Além disso, outras razões nos levaram a
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade esta análise e estão relacionadas aos seguin­
de São Paulo. Graduação. tes aspectos considerados fundamentais:

231
VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO , A.C.; LUSTOSA, P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

- A dificuldade dos profissionais do identidade é necessário também conhecer a


m agistério em se relacionar com a temática da história dos povos que aqui viviam antes de
Arqueologia ao m esm o tempo em que esta
1500 - nossos primeiros “formadores de
desperta grande interesse junto aos alunos;
- Desconhecim ento, do público em geral, cultura”.
relacionado com a ocupação do território
brasileiro pelos grupos indígenas no período pré-
colon ial; Sobre a natureza do livro didático
- Trabalhando com educação em museus é
im prescindível conhecerm os a realidade do
universo escolar no que diz respeito à utilização Diversos estudos vêm sendo produzidos a
dos livros didáticos e dos Parâmetros Curriculares respeito do livro didático nas áreas de Histó­
Nacionais. Este fato constitui um desafio para ria, Pedagogia, Sociologia etc.. Estas discus­
um museu arqueológico universitário que sões demonstram que o livro didático é um
apresenta com o uma de suas principais funções a
“objeto de múltiplas facetas e possui uma
divulgação da produção do conhecim ento
científico numa linguagem acessível ao grande
natureza complexa” (Bittencourt 1997: 71).
público; No artigo sobre textos e imagens no livro
- O conhecimento de que o livro didático é didático, Circe Bittencourt sintetiza em sua
usado, em grande parte, com o instrumento, às análise as várias definições deste instrumento:
vezes único, de trabalho do professor e não
como mercadoria, já que obedece à lógica do
com o um suporte para o aluno.
mercado editorial; suporte de conteúdos
O objetivo principal deste artigo é forne­ curriculares; instrumento pedagógico (apre­
cer, especialmente aos professores de Ensino sentando conteúdo e metodologia de ensino)
Fundamental, propostas adequadas para e, finalmente, portador de ideologias e valores
trabalhar com a história do período Pré- culturais.
Colonial a partir do uso do livro didático, Reconhecemos que o livro didático é o
fugindo de abordagens preconceituosas, erros principal instrumento utilizado por professores
conceituais, abordagens superficiais e outros e alunos e tem o papel de mediador das
problemas que estão presentes nesta ferramen­ propostas curriculares e o conhecimento
ta de trabalho. Com isso pretendemos contri­ ensinado em sala de aula, e por isso é funda­
buir para diminuir a distância entre a produção mental analisá-lo em seus vários aspectos:
do conhecimento em Arqueologia no país e relação texto/imagem, estrutura, linguagem,
sua disseminação junto ao ensino formal. conteúdos veiculados e diferentes abordagens
Realizando tal análise, acreditamos estar historiográficas.
possibilitando a abertura de um debate sobre Desta maneira, nas obras selecionadas
esta questão, situando os principais proble­ para a elaboração deste texto, consideramos
mas e dificuldades encontrados nos livros alguns pontos chaves para a análise, que por
didáticos analisados e apresentar algumas sua vez são decorrentes de duas categorias
discussões que contribuam para superá-los. elencadas:
A comemoração dos 500 anos do Brasil
traz à tona uma questão: nossa cultura se 1) Quanto ao conteúdo veiculado:
formou apenas a partir da chegada dos a) Espaço dedicado ao tema no contexto
geral da obra;
portugueses? A resposta, por maiores que
b) Nomenclatura e definição do período;
sejam as divergências existentes, é clara e c) Periodização adotada;
apontará para uma direção: nossa cultura não d) Problemática das abordagens: erros,
é herdeira direta e somente da cultura portu­ om issões, discrim inações, pontos p ositivos e
guesa; ela se constitui numa diversidade de e) Fontes utilizadas.
culturas e é o resultado de um longo processo 2) Quanto à forma apresentada:
conflituoso, ainda em construção nos dias a) Tipos de imagens utilizadas;
atuais. b) Relação texto/im agem ;
Sendo assim, os nossos “500 anos” vão c) Fontes às quais o autor recorreu.
muito mais além desse período e, para compre­ Assim, definiram-se as principais categori­
ender nossa história, nossa cultura e nossa as a serem problematizadas e que deverão

232
VASCONCELLOS, C.M.; ALO NSO , A.C.; LUSTOSA, P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

servir de referencial básico na apresentação de 3. História do Homem (abordagem integrada


subsídios para os professores de Ensino de História Geral e do Brasil)
Fundamental quando abordarem esta temática
Autor: Francisco A ssis Silva
em sala de aula. Editora Moderna, Volume 1, 1996.
É preciso salientar que procedendo desta Unidade II: “As comunidade prim itivas”
maneira, consideramos o caráter documental C ap ítu lo 10: “P ré-H istória: a com u nid ad e
do livro didático, já que elegemos os critérios primitiva no Brasil”
de forma e conteúdo vinculados à sua produ­
4. História e Reflexão
ção, circulação e ao seu consumo.
Autor: Gilberto Cotrim
Editora Saraiva, vol. I, 1996
Seleção das obras Capítulo 5: “Pré-História Brasileira”

5. História e Vida
Para a pesquisa, foram selecionados dez Autor: N elson Piletti e Claudino Piletti
livros didáticos atualmente em uso pelas Editora Ática, vol. I, 1997.
escolas públicas e privadas do Ensino Funda­ Capítulo 2: “Há milhares de anos”
mental, que possuem distribuição nacional.
Os critérios utilizados para a escolha de 6. História: Passado e Presente- Brasil
tais livros basearam-se em dois aspectos: C olônia
A u tores: S ôn ia Irene do Carm o e E lian e
- Mercadológico: os livros mais vendidos (por­ Frossard Bittencourt Couto
tanto, os mais adotados e/ou indicados pelas esco­ Editora Atual, vol. I, 1994.
las) segundo informações obtidas junto às respec­ Unidade II: “Povoando o mundo, construin­
tivas editoras; do a história”
- Oficial: os livros aprovados pelo Programa Capítulo 5: “Os índios do Brasil”
Nacional do Livro Didático da FNDE/MEC (1999),
que orientam e determinam a escolha dos profes­ 7. Fazendo a História: As sociedades
sores das escolas públicas1 que receberão estes li­ americanas e a Europa na época moderna
vros gratuitamente para o trabalho junto aos seus Autores: Rubim Santos L. de Aquino, Nivaldo
alunos. Jesus Freitas de Lemos e Oscar G. P. Campos Lopes
Editora Ao Livro T écnico, 7a série, 1990.
Os livros analisados e os respectivos Capítulo 1: “D e onde vieram os índios?”
capítulos que abordam a temática do Período Capítulo 2: “Como vivia a maioria dos indí­
Pré- Colonial são os seguintes: genas?”
Capítulo 3: “Quais eram as sociedades mais
1. Brasil: história em construção
organizadas?”
Autores: Ricardo de Moura Faria, Adhemar
Martins Marques e Flávio Costa Berutti. 8. História e Companhia
Editora Lê, vol I, 1998. Autores: Ricardo de Moura Faria, Adhemar
Tema: “ A Am érica encontrada pelos Martins Marques e Flávio Costa Berutti.
europeus” Editora Lê, vol. I, 1996.
“O que era a América” Unidade I: “Os seres humanos antes da escrita”
“O encontro da Am érica com os europeus” Capítulo 2: “Os caçadores e os coletores”
2. História Capítulo 3: “Os pastores e os agricultores”
Autor: José Roberto Martins Ferreira
9. História Integrada: da Pré-História à
Editora FTD, 5a e 6a série, 1994.
Tema: “Pré- H istória” Idade Média
Capítulo 10: “Andando e les descobriram o Autor: Cláudio Vicentino
Brasil” (5a série) Editora Scipione, 5a e 6a série, 1996.
Capítulo 5: “Enquanto isso no Brasil” (6a série) Capítulo 1: “A Pré-História” (5a série)
Capítulo 6: Portugal: o senhor dos mares e do Capítulo 5: “A América Pré-Colombiana” (6a
com ércio” (6 a série) série)

10. História: Cotidiano e Mentalidades:


dos primeiros homens ao século V
Autores: Ricardo Dreguer e Eliete Toledo
(1) N o caso das escolas da rede particular de ensino, esse
Guia serve com o uma orientação ao professor na Editora Atual, vol. I, 1995.
escolha do livro didático, que poderá ser seguida ou não. Capítulo 7: “Os primeiros am ericanos”

233
VASCONCELLOS, C M.; ALONSO, A.C.; LUSTOSA, P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

A análise “(...) Qualquer que seja a hipótese aceita, o


importante é saber que, quando os portugueses
chegaram ao Brasil, há cerca de 500 anos, essa terra
O que se observa em relação à estrutura era povoada por aproximadamente 5 milhões de
geral das obras citadas é a tentativa de pessoas. Portanto, não podemos continuar
apresentar uma nova abordagem da História afirmando que Cabral descobriu o Brasil” (Silva
1996).
que leva em conta as novas tendências da
“(...) se alguém deveria ser homenageado pelo
historiografia contemporânea. Desta forma, descobrimento do Brasil, esse alguém seriam os
encontramos autores que privilegiam a ques­ antepassados dos homens que Cabral encontrou
tão da História do Cotidiano, das Mentalida­ aqui.” (Martins 1994).
des, da Vida Privada, das Estruturas Econômi­
Há uma obra que chega inclusive a apresen­
cas etc..
tar uma abordagem bastante interessante a
A tendência quase unânime apontada
respeito das diferenças de mentalidade entre os
pelos autores é a de apresentar uma visão de
povos que aqui já viviam e os europeus:
História que integra a História Geral e a do
Brasil: a chamada “História Integrada”, que “(...) enquanto para os europeus prevalecia
possui alguns problemas de ordem estrutural e uma visão que implicava na dominação, subjugação
e incorporação da natureza, para os índios ame­
de conteúdo mas que não é relevante tratar­
ricanos a vida obedecia a ritmos cíclicos ditados
mos no âmbito deste artigo. pela própria natureza. (...) Os vários povos que
Quanto ao tema aqui tratado, o período viviam na América possuíam diversas e diferentes
Pré-Colonial,2 nota-se um avanço na aborda­ visões de mundo, o que é revelador de que, num
gem: há quase sempre um espaço dedicado a mesmo tempo cronológico, podem existir diferentes
ele nos livros analisados, seja este de qualquer tempos históricos” (Faria & outros 1996).
tamanho e importância em relação aos outros Apesar destes pontos positivos, vários são
capítulos. Desta maneira, o livro didático não os problemas verificados na abordagem do tema.
ignora este período como faziam os anteriores Um dos principais é o evolucionismo social,3
(até a década de 80), que iniciavam a História existente em quase todos os livros analisados:
do Brasil pela colonização portuguesa, ou
através das “Grandes Navegações”. “ (...) é importante assinalar que, independente
de seu estágio cultural (grifo nosso), essas
Todos os autores admitem que o “desco­
comunidades primitivas haviam alcançado um
brimento” do Brasil não se deve aos portugue­ conhecimento técnico que permitia a elas sobrevi­
ses, mas aos povos que aqui chegaram bem verem segundo seus costumes e valores, construí­
antes destes: rem suas próprias crenças, sua visão particular de
mundo (Faria & outros 1996).
“(... ) Nossa história não começou quando os
portugueses iniciaram a ocupação do Brasil em
1500. Os primeiros habitantes do Brasil aqui “Nem todos os grupos humanos alcançaram
chegaram há dezenas de milhares de anos” (Piletti estágios avançados de civilização. Existem ainda
& Piletti 1997). hoje inúmeras sociedades primitivas na Austrália,
no Brasil e na África” (Vicentino 1996).

“( ...) Comunidade primitiva é uma forma de


(2) Preferimos a denominação Pré-Colonial à de Pré- organização social onde a não existência da proprie­
História por entendermos que a segunda apresenta dade privada dos meios de produção resulta em uma
maiores problemas, além de considerarmos o critério
da escrita uma categoria não válida para a perio­
dização do espaço/tem po anterior a 1500. O conceito
de Pré-História e História é muitas vezes utilizado de (3) Corrente de pensamento da segunda metade do
maneira etnocêntrica e reflete a periodização século XIX que estabeleceu a divisão da Humanidade
européia. O que deve ficar claro é que as sociedades em três estágios culturais: selvageria, barbárie e
européias e as sociedades ameríndias sempre foram civilização. As sociedades aborígines, por meio desta
contemporâneas e resultam de processos históricos interpretação, estariam em um estágio de cultura
específicos e particulares. As sociedades indígenas não atrasado ou estagnado em relação ao modelo a ser
constituem o passado das sociedades européias como atingido: o da civilização européia. Além disso, esta
quiseram demonstrar os evolucionistas sociais do corrente propunha que as sociedades se desenvolviam de
século XIX. modo linear em direção ao progresso material.

23 4
VASCONCELLOS, C.M.; ALO NSO, A.C.; LUSTO SA , P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do M useu d e A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

economia comunitária, na qual não há desigualdades de termos classificatórios da pré-história


sociais” (Aquino & outros 1990). européia no estudo da pré-história e da etnologia
brasileiras, que podemos caracterizar como
“Desconheciam a propriedade privada, não
anacrônico:
estavam organizados em classes sociais e não
chegaram a organizar o Estado”. (Faria & outros “(...) Embora, para efeitos de estudo, a Pré-
1996). história tenha terminado com o surgimento da
escrita, no Brasil e em alguns outros pontos do
Algumas destas frases reproduzem a visão mundo, muitos grupos indígenas têm até hoje (grifo
dos pensadores evolucionistas sociais do final do nosso) condições primitivas de vida, semelhantes às
século passado que, na verdade, escamoteava do período paleolítico” (Vicentino 1996).
o projeto político e econômico de dominação “No Brasil, os mais antigos vestígios desses
neocolonial europeu sobre os continentes povos datam do período paleolítico: sambaquis,
africano, asiático e latino-americano; outras utensílios primitivos e pinturas rupestres” (idem,
utilizam-se da abordagem marxista, buscando idem).
categorizar o passado das sociedades primitivas Este autor, como outros, busca nas caracte­
a partir de modelos esquemáticos que também
rísticas das sociedades pré-coloniais brasileiras
acabam apontando para uma visão de história
uma aproximação com as sociedades pré-
marcada pela idéia de progressso.4 históricas européias, cuja cronologia é muito
Outra questão que também aponta para um distinta e divergente das sociedades indígenas
avanço na abordagem deste período diz deste período.
respeito à preocupação de alguns autores em
Na verdade, encontramos com isso mais uma
apresentar uma clara definição do que enten­
abordagem que se caracteriza pela visão euro-
dem ser a divisão entre pré-história e história, cêntrica da História, pois não leva em conta que a
chegando até mesmo a problematizá-la:5 diferença cronológica aludida acima, provém de
“(...) A divisão entre pré-história e história é particularidades históricas de cada uma destas
um costume (...) O homem, desde o seu apareci­ sociedades e não devem ser categorizadas de
mento, é um ser histórico, utilize ou não a escrita.
maneira homogênea e totalizante.
Como o termo pré-história é de uso universal,
podemos empregá-lo, mas conscientes de que a pré-
Já que tocamos na questão da periodização,
história é uma disciplina histórica, pois todo o todos os autores analisados desconhecem a
homem e todos os povos têm a sua história” terminologia adotada pelos arqueólogos brasilei­
(Cotrim 1996). ros na classificação e interpretação das socieda­
“(...) aqueles que entendem que todo o des indígenas, a saber:
passado do homem, desde a sua origem, compõe a
sua história, essa definição não é correta. A Paleoíndio, que corresponde ao período
extraordinária riqueza cultural que herdamos dos inicial de ocupação do território brasileiro,
nossos antepassados não pode ser considerada pré- caracterizado pelos caçadores-coletores, com
histórica” (Silva 1996). grupos pouco numerosos, dispersos e nômades,
compreendido entre, aproximadamente, 30.000 a
Também encontramos outra tendência na 10.000 anos atrás;
definição de alguns autores com relação ao que Arcaico, que corresponde ao início do processo
entendem ser o período em análise: a utilização de sedentarização e adaptação aos diferentes ambien­
tes existentes após o término da Era Glacial, dando
início à diversificação cultural dos vários grupos
espalhados pelo território brasileiro, compreendido
(4) Este tipo de abordagem sofre muita influência da entre 10000 a 1000 anos atrás;
obra A origem da fam ília, da propriedade privada e do F orm ativo, corresponde ao período de pleno
Estado, de Friedrich Engels de 1884. Nesta, a História é domínio da agricultura, que já complementa a sub­
marcada por uma visão teleológica onde os modos de sistência das aldeias além da caça e da coleta, tendo
produção são apresentados como modelos válidos para início há, aproximadamente, 3000 anos.6
todos os povos do universo, numa visão evolucionista
típica do século XIX, notadamente no campo da
economia política.
(5) Apesar desta problematização alguns autores mantive­ (6) As periodizações aqui apresentadas não são rígidas,
ram a chamada de seus capítulos com o “Pré-História Bra­ havendo ainda muita discussão entre os arqueólogos a res­
sileira”. peito das datações.

235
VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO , A.C.; LUSTO SA , P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

Na verdade, os livros didáticos apresentam incêndio espontâneo e não de uma população


uma periodização voltada para a presença dos pré-histórica” (Cotrim 1996).
diversos vestígios encontrados no território
“(.••) Polêmica entre arqueólogos:
brasileiro que podem indicar a antigüidade da
ocupação do homem neste território, na tentativa A partir de vestígios encontrados no Piauí,
Niède Guidon concluiu que a ocupação dessa região
de estabelecer uma cronologia desta ocupação:
remontaria a cerca de 30.000 anos atrás. Seria, então,
“Os vestígios mais antigos de ocupação do o mais antigo vestígio da presença do homem na
território brasileiro datam entre 50.000 até 15.000 América. Suas conclusões geraram muita discussão
anos: a primeira fase de ocupação onde encontra­ entre os arqueólogos do mundo todo.
mos informações a respeito de vestígios em Minas
A maioria dos pesquisadores questionou a
Gerais (Lagoa Santa, Matozinhos, Sete Lagoas e
tese de Guidon afirmando que ela se baseou em
Belo Horizonte) e São Raimundo Nonato (Piauí);
artefatos, isto é, pedaços de ossos e pedras
Após 15.000 quando ocorrerá um longo
semelhantes a instrumentos. Para eles, esses
processo de transformação nos padrões de
artefatos isolados podem ter sido transformados
comportamento, uma nova fase da evolução
cultural nas comunidades primitivas do Brasil” pela ação da própria natureza: rolagem nos rios,
carbonização natural, raspagem em outras pedras.
(Silva 1996).
Esses pesquisadores consideram que os
Em outros autores, esta questão está artefatos encontrados por Guidon só poderiam ser
relacionada com o tipo de ambiente onde foram aceitos como prova da existência humana naquela
encontrados os vestígios de ocupação: região há 30.000 anos se estivessem acompanhados
de outros tipos de vestígios: fósseis humanos,
“A vida nas cavernas está relacionada com os
restos de habitações, cinzas, marcas em grutas.
caçadores-coletores comprovados pelas pinturas
encontradas nas cavernas de São Raimundo Nonato Por outro lado, alguns pesquisadores
e em Lagoa Santa: armas e instrumentos de pedra continuam procurando novos vestígios de ocupação
lascada aparecem associados às figuras humanas, humana na América anterior a 12.000 anos atrás,
sugerindo que eram utilizadas para caçar”. não apenas no Brasil, mas também em outras
regiões do continente. Enfim, a polêmica continua”
Já a “vida no litoral” está se referindo aos
(Dreguer & Toledo 1995).
grupos sambaquieiros enquanto que “a vida no
interior” refere-se aos grupos horticultores e Já com relação às fontes às quais os autores
relaciona-se com a presença de objetos feitos de
recorrem para elaborar as suas abordagens
barro”. (Piletti & Piletti).
encontramos uma variedade, tais como:
É preciso ressaltar o grande espaço ocupado 1) Grande Imprensa: principalmente jornais e
no livro didático pelas pesquisas coordenadas revistas de grande circulação (em maior número);
pela arqueóloga Niède Guidon no Piauí. Isto 2) P u b lica çõ es de cunho c ien tífico : B etty
justifica-se pelo fato de que tais pesquisas têm Meggers, Niède Guidon,8 Luciana Palestrini e José
uma intensa repercussão junto à mídia, pois Luiz de Morais9 (em número bem restrito);
apresentam datação e hipóteses de ocupação do 3) Livros Paradidáticos: a obra de Norberto
Guarinello;10
território brasileiro inéditas.
Dois autores apresentam uma polêmica em
relação às descobertas realizadas pela arqueólo­
ga Niéde Guidon no Piauí, o que consideramos (7) Esta obra intitulada A América Pré-H istórica, Rio de
positivo, pois demonstram o caráter científico, Janeiro. Paz e Terra, 1979, está indicada no Manual do
controverso e dinâmico da ciência arqueológica: Professor do livro didático H istória e Companhia (Faria,
Marques & Berutti 1996).
“Entre 70 e 50 mil anos, segundo a (8) A referência a esta autora está citada a partir de
arqueóloga Niéde Guidon que realiza trabalhos de artigos da grande imprensa.
escavações no Piauí, foram encontrados fogões (9) Pallestrini, L. & Morais, J.L. Arqueologia pré-
pré-históricos, isto é conjunto de pedras (seixos) histórica brasileira. São Paulo, USP, Museu Paulista,
colocadas em forma de círculos ou triângulos, no 1982. Esta obra está indicada no livro didático História
meio dos quais se fazia o fogo. Nas proximidades & Vida (Piletti & Piletti 1997).
desses fogões também foram achados ossos de (10) Guarinello, Norberto Luis Os prim eiros habitantes
animais e instrumentos de pedra lascada. (...) Já do Brasil. A arqueologia pré-histórica no Brasil, São
para a arqueóloga norte americana Betty Meggers Paulo, Atual Editora, 1994. Indicada em H istória
os carvões encontrados devem ser de um &Reflexão (Cotrim 1996).

236
VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO, A.C.; LUSTOSA, P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

4) N ão citam fonte nenhuma: a m etade das ser um mero “transmissor” de informações para
obras analisadas. assumir o papel de mediador da relação entre o
Temos que levar em consideração que tais conhecimento, a sua construção e o aluno.
autores são, na maior parte das vezes, historiado­ Levando-se em conta que os Parâmetros
res que não possuem nenhum vínculo com a Curriculares Nacionais e outras propostas
Arqueologia e tampouco com a produção pedagógicas decorrentes definem que o objetivo
científica realizada pela comunidade arqueológi­ maior das escolas é formar o cidadão,11 a tarefa
ca brasileira. do educador, especialmente do professor de
Desta maneira, não podemos cobrar-lhes o História, é ser o articulador do pensamento
acerto teórico, mas sem dúvida podemos sugerir crítico de seus alunos, e não aceitar e repassar a
uma aproximação maior entre os arqueólogos e informação recebida e pronta.
estes autores que acabam se tomando uma referên­ É necessário, portanto, desconstruir e
cia, muitas vezes única, no universo dos nossos analisar criticamente a informação e ensinar seus
alunos e, em muitos casos, de nossos professores. alunos a fazerem o mesmo, de modo que, ao
Finalmente, a análise das imagens e ilustra­ final do processo escolar, eles estejam aptos a
ções presentes nas obras didáticas demonstrou um realizar reflexões semelhantes sem a mediação
lado positivo em termos de variedades existentes de outrem.
e na relação com os textos apresentados. Ampliar o acesso aos museus de Arqueolo­
A partir de mapas, fotos de escavações, gia, responsáveis por uma extensa produção
pinturas rupestres, desenhos, croquis etc, foi acadêmica, mantenedores de cursos de extensão,
possível dinamizar a leitura dos capítulos e dar exposições e serviço educativo sistemático de
maior agilidade ao processo de apreensão do atendimento aos professores de Ensino Básico,
assunto abordado. seria uma alternativa à deficiência apresentada
Porém, uma ressalva muito importante: em nos livros didáticos.
algumas obras analisadas os autores utiliza­ Os museus permitem o contato com a
ram-se de fotos etnográficas para se referir ao cultura material, com o aspecto concreto dos
modo de vida das sociedades pré-coloniais objetos, contribuindo para a superação de muitos
(Martins 1944, Carmo & Couto 1994 e Silva preconceitos em relação às culturas indígenas,
1996). Isto é gravíssimo e pode gerar uma uma vez que estas instituições trabalham com
visão distorcida e preconceituosa de que as fontes específicas e diferenciadas, que podem,
sociedades indígenas são estáticas no tempo e inclusive, contrapor-se à visão apresentada nos
que, da época pré-colonial até os dias atuais, livros didáticos.
muito pouco ou quase nada foi alterado nas Sendo instituições de educação não-formal,
estruturas destas sociedades, reforçando um com objetivos voltados ao mesmo tempo para o
conceito equivocado de cultura. público acadêmico e escolar, os museus têm um
grande potencial de ampliação do referencial do
professor ao se deparar com o ensino do
Conclusões período pré-colonial brasileiro.
Eis o grande desafio do professor: unir e dar
Entendemos ser necessário que o professor as devidas dimensões à linguagem e aos parâme­
desperte a atenção de seus alunos ao observar tros oferecidos pelos dois veículos de comunica­
problemas tais como os elencados neste texto e ção - o livro didático e o museu - enriquecendo
utilize o livro didático como instrumento para sobremaneira o estudo da temática da pré-história
discussões que, ao invés de construir ou consoli­ brasileira dentro e fora dos limites da sala de aula.
dar preconceitos, sirvam para derrubá-los, o que
é essencial no processo educativo.
Neste momento de intensa informatização,
(11) O cidadão completo é entendido aqui com o aquele
quando os meios de comunicação levam e trazem
que além de cumprir seus deveres eticamente, reivindica
notícias de forma rápida, atualizada e muito mais seus direitos, tem consciência destes e se posiciona
atrativa do que a “velha” sala de aula, o papel do ideologicamente baseado em fundamentos e em
professor toma-se mais evidente. Ele deixa de reflexões críticas.

237
VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO , A.C.; LUSTO SA, P.R. A abordagem do período pré-colonial brasileiro nos
livros didáticos do ensino fundamental. R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 231-238,
2000.

VASCONCELLOS, C.M.; ALONSO, A.C.; LUSTOSA, P.R. An approach to the Brazilian


pre-colonial time in the didactic books for elementary school. Revista do Museu
de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 231-238, 2000.

ABSTRACT: This article is an analysis about the treatment given to the


Brazilian Pre-Colonial time in the didactic books in Elementary School.

UNITERMS: Didactic Book - Archaeology - Education.

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Recebido para publicação em 20 de novembro de 2000.


Estudos de Curadoria
Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 1 0 : 241-253, 2000.

TRATAMENTO E ORGANIZAÇÃO DE
INFORMAÇÕES DOCUMENTÁRIAS EM MUSEUS

Suely Moraes Ceravolo*


Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tálamo**

CERAVOLO, S.M.; TÁLAMO, M.F.G.M. Tratamento e organização de informações


documentárias em museus. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 10: 2 4 1-253, 2000.

RESUMO: O sistema de documentação em museus como usualmente é


concebido volta-se mais para o acompanhamento da circulação do objeto
dentro da instituição do que para a produção, recuperação e difusão de
informações documentárias. Entende-se que a arquitetura e objetivos desses
sistemas devem privilegiar esse acompanhamento bem como o tratamento e
organização das informações sobre o objeto, lembrando que se lida com
representações através da linguagem. Para a realização de tais procedimentos
usa-se de metodologias próprias da Documentação adequadas a museus,
distinguindo-se no sistema de documentação dessas instituições o que
concerne às questões documentárias.

UNITERMOS: Documentação de Museus - Sistema de Informação,


Documentação, Museus.

Embora tida como uma atividade tão antiga L ’Office International des Musées (O.I.M)1
quanto as instituições que a abrigam, a procuraram dar a essa documentação uma
documentação de museus desenvolveu-se feição mais especializada, ainda que num
lentamente, ficou à margem ou à deriva primeiro momento de forma indireta, pois
durante muito tempo, realizada sem método e nesse período privilegiavam-se mais os
considerada como a “parente pobre” dentre as registros de posse e propriedade das chama­
atividades dessas instituições (Olcina 1986: das obras de arte, como garantia e salvaguarda
307). A partir do início do século XX, na contra roubos. Mas, por causa da necessidade
Europa, especialmente entre 1927 e 1945, de descrever e intercambiar tais obras, ainda
organismos de porte internacional como o nessa época, surgem as primeiras propostas de
normatização para registros voltadas principal­
mente para catálogos iconográficos (Aubert
(*) Museu de Anatomia Veterinária da Faculdade de
M edicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de
São Paulo.
(**) Departam ento de B ib liotecon om ia e D ocu m en ­ (1) Órgão internacional com sede em Paris, parte do
tação da Escola de Com unicações e Arte da U niversi­ In tern ational In stitute o f In telectu al C ooperation ,
dade de São Paulo. este um desdobramento da Liga das Nações.

241
CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O , M.F.G.M . Tratamento e organização de inform ações docum entárias em m useus.
R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

1948). No entanto, a documentação ainda não descrevendo objetos de museu (Olcina 1986:
era pensada como uma atividade especializada 311 ss.). Nesses anos, o tema “documentação”
com procedimentos e objetivos particulares, é incluído em cursos sobre museus, caso
sendo este um dos focos de discussões e de daquele ministrado por G. H. Rivière, em Paris.
tentativas de implementação de sistemas Aos poucos, a documentação assume um
durante o decorrer de décadas do século XX. estatuto significativo no interior dos museus, quer
O ICOM (Conselho Internacional de como suporte para as atividades administrativas,
Museus) substitui, a partir de 1946, o O.I.M., e quer como elemento de apoio para a pesquisa
na década de 50 forma-se no âmbito daquele científica neles desenvolvidas. Toma-se consenso
Conselho, o Comitê Internacional de Docu­ que as coleções são o seu ‘coração’ (Pearce 1986),
mentação (CIDOC), secretariado pelo Centro foco principal de suas atividades, e ponto
de Documentação UNESCO-ICOM, cujos nevrálgico para a documentação, mesmo com as
primeiros passos foram moldados por Yvonne mudanças ocorridas no conceito de “museu” e de
Oddon,2 bibliotecária e colaboradora de “objeto museológico” (Menchs 1989) ao longo
George Henri Rivière.3 Na década de 60, o das décadas posteriores à Segunda Guerra.5
CIDOC tratou de questões relativas a padrões Coleções de objetos permanecem como sendo o
para os registros de museus como também da elemento característico e diferenciador entre
compatibilidade entre eles, mas não sem museus, bibliotecas e arquivos.
problemas, uma vez que a imensa diversidade À medida que aumentam as tarefas ao
de tipos de objetos é traço característico tanto redor das coleções, a documentação, durante a
das coleções como das instituições que as década de 80, será considerada como um
abrigam. A partir de 1967, ainda este organis­ conjunto complexo de ações direcionadas
mo defrontou-se com discussões embrionárias sobre aqueles conjuntos, e como sugere Klaus
sobre o uso de técnicas informatizadas. Schreiner (1985: 59-60), deveriam estar direta­
Contudo, o maior empenho dirige-se para a mente envolvidas com a pesquisa acadêmica,
configuração básica dos chamados ‘sistemas tendo o objetivo de tomar eficiente o trabalho
de documentação’, que serão difundidos nos de pesquisadores.
anos 80, quando florescem propostas de Essa visão não é homogênea no panorama
sistemas dessa natureza. No decorrer dos anos geral dos museus. Observam-se ao menos
70, ainda no âmbito desse organismo, grupos duas tendências no trato da documentação.
de trabalho concluem a favor de procedimen­ Uma mais “reflexiva” debruça-se sobre a
tos informatizados como auxiliar para o importância do objeto como documento e
armazenamento, organização e comunicação de suporte de informações significativas para as
informações, mas eram muitas as dificuldades, pesquisas científicas. Essa perspectiva
entre elas os problemas para identificar, definir poderia ser considerada como uma linha
e estabelecer um conjunto mínimo de dados4 especialmente francesa, desenvolvida princi-

(2) Oddon, entre outras atividades na área de documen­ Working Group (formado em 1992), tinha com o
tação de museus, compilou um esquema de classificação projeto no ano anterior estabelecer um guia para a
para assuntos relativos a museus para ser usado por padronização desses dados m ínim os, temporariamente
bibliotecas e Centros de Documentação, ministrou denom inados de “M inimum Information Categories
cursos de treinamento, um dos quais resultou no for Museum O bjects” (MICMO), tendo por base a
E lem ents de docum entation m uséographique4 datado identificação, localização e contabilidade de seus
de 1968, e, ainda hoje, considerado com o um trabalho objetos e espécim es (CIDOC - COMITÊ IN TERNA­
de referência na área (Olcina 1986). TIO NAL POUR LA DOCUM ENTATION, ICOM,
(3) George Henri Rivière foi diretor do ICOM por anos 1995: 3 4 -3 6 ).
consecutivos. Desempenhou um papel marcante na (5) Passa-se a admitir um conceito de museu não mais
área de museus e é tido como introdutor de novas idéias restrito a quatro paredes e suas coleções. Fala-se na
para essa área. {La M uséologie Selon G.H.R., 1989). m usealização de territórios e participação de
(4) O problema dos dados mínimos ainda não se comunidades, contexto no qual a idéia de objeto
encontra totalm ente resolvido. Toni Petersen, em m useológico passa a englobar qualquer expressão
1995, então presidente do D ata an d Term inology cultural.

242
CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O , M .F.G.M . Tratamento e organização de inform ações docum entárias em m useus.
R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

pálmente sob a égide das propostas de Rivière manteve nas décadas seguintes vista como
e por ele disseminada para outros países meta ideal a ser alcançada. Para isso não
através do ICOM, já que foi seu presidente por faltaram precursores, instituições ou projetos,
muitos anos. No bojo dessas propostas, nasce nos quais a alavanca temática era informatizar
a concepção de que museus podem ser as informações sobre as coleções. Visava-se,
considerados como ‘Centros de Documenta­ principalmente, agilizar o cruzamento, busca e
ção’ em potencial, tendo na própria documen­ recuperação de dados, como também elencá-
tação o alicerce para criar o “museu-laborató- los para formar os tão desejados catálogos de
rio”, uma associação entre o “museu cultural” museus (Chenhall 1975). No entanto, para que
(musée culturel) e o “museu-científico” (musée isso pudesse ocorrer usando-se com plenitude
scientique) (La Muséologie Selon G.H.R., os computadores, urgia, em primeiro lugar,
1989: 175 e 179). Uma outra tendência da compreender o que Lenore Sarasan chamou de
documentação em museus pode ser chamada “teoria da documentação” e os “sistemas de
de “tecnicista”, pois visa em primeiro lugar o documentação”, elementos a serem obrigatori­
acesso rápido aos objetos e seus respectivos amente definidos antes da implantação de
registros. Aqui busca-se preferencialmente o qualquer sistema informatizado (Sarasan
controle das coleções por meio da conexão 1981:45), ou mesmo manual. No final da década
entre registros, fichas e fichários, com referên­ de 80, e no início dos anos 90, a ênfase recai
cias cruzadas para que possam ser recupera­ sobre a importância do controle de vocabulári­
dos. O escrivão (registrar), é a figura profissi­ os e de terminologias descritivas especializa­
onal responsável pela criação, manutenção e das.6 No entanto, essa importância vincula-se
cuidado permanente com os registros, e os mais à necessidade de operacionalizar a
curadores pela pesquisa do objeto e sua informatização das coleções e menos à preocu­
catalogação (Dudley et alii 1976). Esta pação de tomar acessíveis para um amplo
tendência desenvolve-se com força em público as informações sobre as coleções.
território norte-americano. O foco diferen- Leonard Will, em 1993, considera que a
ciador entre uma e outra instala-se na aborda­ documentação em museus ainda está na sua
gem do objeto de museu e nas funções da infância, pois estas instituições não se vêem
documentação uma privilegiando a necessida­ como prestadores de serviços de informação
de de compreendê-lo, desvendando e regis­ (Light, Roberts, Stewart 1986).
trando em detalhes, e a outra enfatizando os
aspectos administrativos onde o documentar
coleções vincula-se fortemente à idéia de (6) Em 1987, form a-se o Grupo de Trabalho para o
eficiência no seu gerenciamento. Controle T erm inológico (T erm inology C on trol
Tal como em outras áreas, os museus Working Group), ligado ao CIDOC. Segundo este
também não escaparam da idéia de que a órgão, há 43 tesauri para museus, elaborados para
auxiliar a descrição de objetos, nas áreas de: agricultu­
informática poderia resolver tudo, ou quase
ra, armas, arqueologia, arquitetura, artes decorativas,
tudo, do acesso aos objetos à elaboração de cerâmica, construções, cultura material de forma
catálogos, atribuindo-se as possíveis ou geral, cutelaria, engenharia, esculturas, ferramentas e
futuras possibilidades de informatização a transportes, film es e fotografias, indumentária,
organização e recuperação das informações instrumentos marítim os, instrum entos m usicais,
sobre as coleções. Envolvida na aura da jóias, livros, manuscritos, material etnográfico,
m obiliário, moedas, objetos cerim oniais, objetos de
informatização, no decorrer dos anos 80, a
m etal, objetos eclesiásticos, objetos históricos,
‘informação’ passou a ser considerada como objetos relacionados à ciência e tecnologia, pinturas,
fator de evidência (Lewis 1986: V). Na visão de relógios, tapeçaria, têxteis, trabalhos em papel e
alguns autores, os museus deixariam de ser um outros tipos de impressos, e termos para designar a
show-room, na medida em que poderiam amarração e costura em livros raros. Em língua
prover seus públicos com outros subsídios portuguesa contamos com o Tesauro p a ra a cervo s
m u seológicos, publicado em 1987 por H elena D.
informativos (Elisseff 1970/1:5).
Ferrez e Maria Helena S. Bianchini (D irectory o f
De fato, comenta-se sobre as possibilida­ thesauri f o r ob ject names, CIDOC, 1994). A década
des de informatização no universo dos museus de 80 concentrou, até agora, o maior número dessas
desde o final da década de 60, idéia que se publicações.

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CERAVOLO, S.M .; TÁ LAM O, M.F.G.M . Tratamento e organização de inform ações documentárias em museus.
R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

Pode-se dizer que na esteira das tecnolo­ denominaram de “informação racional” (ver La
gias de informatização abriram-se possibilida­ Muséologie Selon G.H.R., 1989), sem entretan­
des mais amplas de padronização e integração to defini-la. Oddon entende a documentação
de vocabulários na área de museus, com o museogràfica compartimentalizada em “servi­
objetivo de descrever objetos. Não se pode ços” similar ao das Bibliotecas: os serviços de
esquecer que essa possibilidade, no entanto, registros, os de inventário, os de catálogo, a
se fazia presente com restrições, por causa da fototeca, a filmoteca, a fonoteca e a biblioteca
disponibilidade de equipamentos existentes, (Oddon 1968:1).
da dependência de grupos de trabalho, em Com base nos manuais da área, entende-se
alguns museus de grande porte, e em alguns que a palavra ‘documentação’ abarca uma
países em particular. idéia abrangente do “ato de documentar”,
atribuindo-lhe a função de abordar as coleções
de museus. Num sentido mais restrito, a
Sistemas de documentação em documentação de museus parece se aproximar
museus (SDMs) e o controle das coleções da elaboração de registros escritos, considera­
dos fundamentais para a manutenção do
Vê-se que a documentação em museus controle das coleções tal como recomendava
trilhou etapas sucessivas de complexidade no Chenhall (1975:7), o que nos leva, nessa
percurso de sua formação, o mesmo ocorrendo direção, a conhecer a quantidade e localização
com a implantação dos ‘sistemas’ propriamen­ das peças sob guarda da institução. Cari
te ditos. Nos idos anos 60, não é a idéia de Guthe, por sua vez, ressaltava a importância da
sistema que está presente, mas sim a necessi­ conexão entre o “objeto e seu registro”,
dade de singularizar a documentação como referindo-se à necessidade de criação de uma
algo próprio dessa instituição. Yvonne Oddon identidade para os objetos a partir de ‘símbo­
a chamará de ‘documentação museógrafica’ e, los de identificação’, que seriam, neste caso,
transportando técnicas biblioteconômicas para números (Guthe apud Chenhall 1975: 7).
a documentação de museus, sugere etapas de Já o termo ‘sistema’, presente na denomi­
processamento técnico, propõe modelos de nação ‘sistema de documentação em museus’
fichas e procura caracterizar os ‘instrumentos (SDMs) implica idéias diferentes,9 tais como:
documentários’ que descrevem e classificam método, esquema, estruturação de trabalho em
os objetos. Do processamento técnico resulta, etapas, passos a serem seguidos, encadeamen-
como conseqüência, o recenseamento dos to de registros, como se observa na proposta
bens da instituição, ao mesmo tempo em que de sistema sugerida por Porta et alii (1982:
se obtém um alicerce para a documentação 12,13 e 19); ou suscita um processo rígido,
científica. Para o estudo das coleções, ela limitado, dirigido ao exterior ou por ele impos­
sugeria outros instrumentos de “classificação to, sem espaço para o espírito criativo, segun­
e análise”, compreendidos como ‘fundos’,8 do comentário de Cameron (1970). Em menor
acompanhados de fichas alfabéticas, sistemáti­ grau, o termo sublinha a importância da
cas e dossiês, permitindo que o utilizador informação para a tomada de decisões.10
acesse o maior número de registros e docu­ O processamento técnico da documenta­
mentos sobre os objetos, e, assim, compreenda ção de museus divide-se em etapas sucessivas
as suas múltiplas referências. Para Oddon e e por vezes concomitantes, na dependência do
Rivière, os instrumentos de recuperação, como tamanho da instituição e da equipe que ela
os catálogos, são o meio de obter o que possui. A partir da entrada do objeto no

(7) Em francês d ocu m en tation m useoghafique, em


inglês m useum docu m en tation.
(8) O termo “fundo” encontra-se associado mais à (9) Os autores ou trabalhos citados aqui servem-nos
área de Arquivos, correspondendo à ’’Unidade como exemplos, há outros que poderiam ser nomeados.
constituída de documentos acumulados por uma (10) Um exem plo encontra-se na proposta do
entidade (...)”. R elaciona-se com acumulação e S istem a N acion al de D ocum entación M u seológica,
coleção (Camargo et alii 1996: 40) Argentina, s/d.

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CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O, M.F.G.M . Tratamento e organização de inform ações docum entárias em m useus.
R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

museu, serão desenvolvidas séries de tarefas arte, de história, de arqueologia, de anatomia


correspondendo ao momento de ingresso etc.). Mas há uma variedade de dados a serem
(“dar entrada”), acompanhadas de diferentes coletados vindos de fontes diversas: os de
registros (Inventário, Livro de Entradas, entrada que idealmente acompanham o objeto
Tombamento e fichamentos), ou outros no momento de sua introdução na instituição,
documentos (correspondências etc.). Uma vez os descritivos e os que devem ser investiga­
que a instituição conte com pessoal, equipa­ dos. Como há a tendência de associar o objeto
mentos e laboratórios, os objetos passarão por a áreas disciplinares, essa coleta tende a ser
especialistas diferentes gerando novos constantemente acrescida, ainda que, como
registros, como é o caso das anotações sobre atesta Marta Heloísa L. Salum (1988: 43-60),
tratamentos e intervenções realizadas pela esta seja uma atividade sujeita a implicações
conservação e restauro. Considera-se que, que podem distorcer as informações. Alguns
para instituições de grande porte, deva existir autores, como Camargo-Moro, chamam a essa
um departamento ou seção centralizadora dos irradiação de informações ao redor do objeto
fichários, arquivos e catálogos. Alerta Fernanda de “informação associada”, aquelas que “(...)
Camargo-Moro, que não importam o tamanho recebem, aumentam e difundem, dando ao
ou as condições de um museu (se público, objeto uma visão interdisciplinar, proporcio­
privado etc.), mas sim o uso de uma documen­ nando-lhe um universo maior” (Camargo-Moro
tação estruturada considerada “essencial para 1986:42).
todos os museus” (Camargo-Moro 1986:41). Desta feita, a captação de dados concen­
De modo genérico, cada movimentação tra-se no, sobre e ao redor do objeto (de
executada sobre o objeto (entrada/saída/ aquisição, detalhes descritivos, históricos, e
baixa), estará envolvida e amparada por uma assim por diante), nesse sentido, documenta­
ou várias notações escritas e registradas em ção e pesquisa caminham de forma muito
fichas, formulários ou modelos previamente próxima nos museus, o que não significa que
elaborados. Neles, diversos ‘campos’ devem uma substitua a outra. Mas é possível distin­
ser preenchidos, correspondendo em linhas guir a articulação da documentação e dos
gerais aos chamados ‘dados’11 sobre o objeto, SDMs ao redor de três eixos: o administrativo
ou dados básicos de identificação: nome do (para gerenciamento das coleções), o curato-
objeto, histórico, proveniência, descrição, rial (da pesquisa) e o documental (identifi­
estado de conservação, dimensões, e assim cativo dos objetos/ coleções), sendo que cada
por diante, como também sobre a situação de um deles responde à necessidades informati­
movimentação que acionou o processo (modo vas diferenciadas.12
de entrada). O tipo de dado requerido depende Por sua vez, o objeto será submetido a
das necessidades institucionais, como também medições, marcações com números provisórios
está condicionado à natureza do objeto (se de ou permanentes, cuidados de conservação,
fotos da peça etc. A garantia do acesso físico
ao objeto, uma prioridade, fica assegurada com
a atribuição de números aplicados concomitan­
(11) ‘Dado’ pode ser visto com o atributo, no sentido de
“qualidade ou característica que pertence ao objeto ou é
temente ao suporte e aos múltiplos registros
própria dele. (Exemplo: nome do objeto, autor, (inventários, fichas, dossiês etc.), formando
técnica...)”(Porta et alir, 1982: 19). Para Jean Claude não só um elo entre um registro e outro, mas
Gardin é um “fato(s) da informação” (Gardin 1986: 11). também entre registros e objetos. A busca se
Segundo Eliyahu M. Goldratt, o que é dado para uma faz segundo um arranjo facilitador: nome de
pessoa pode ser informação para outra, não é
portanto a entrada para um processo de decisão mas
autor, nome do objeto, períodos cronológicos,
seu resultado (Goldratt 1996: 6 e 117). No estado
dicionarial, ‘inform ação’ significa: “ação ou efeito de
inform ar”, “instrução”, “indagação”, “in vestigação”
e “n otícia”. Cintra, Tàlam o, Lara e Kobashi, (12) As necessidades de informação institucionais sobre
consideram inform ação um fluxo de m ensagens ela um determ inado objeto numa co leçã o de ob jetos não
m esm a “(...) um co n h ecim en to potencialm ente são as mesmas, escreve Chenhall, do que aquelas que um
transm issível” (Cintra et a lii 1994: 14). curador necessita (Chenhall 1975: 15).

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R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

ou por qualquer outra entrada determinada por espécie de guia das tarefas seqüenciais a
prioridades institucionais. serem executadas, e no seu bojo instalam-se
Podemos dizer que do ponto de vista da os registros escritos.
documentação de museus, que executa ou Tudo o que foi dito nos leva a concluir
acompanha toda essa movimentação dos que essa documentação funde-se ou mesmo
objetos, abrem-se dois caminhos paralelos: de confunde-se com registros, e esses com os
um lado há as ações direcionadas ao suporte SDMs. Nos anos 70 e 80, a documentação
e, de outro, ao conteúdo, pois essa documen­ estará caminhando par e passo com a noção de
tação se responsabiliza pela elaboração, enfoque sistêmico.13 Autores como^Robert
manutenção e recuperação dos registros, o Chenhall (1975), esforçaram-se para diferenciar
que equivale, em última instância, a promover não só uma etapa de procedimento da outra,
o acesso às informações. mas especificar a função de registros e fichas,
Quanto às funções do SDM, percebe-se mostrando que cada um deles tem um objetivo
que a ele compete de certa forma modelar a determinado e não podem ser confundidos,
organização da própria documentação, ou seja, mesmo que compartilhem de atividades
o ‘sistema’ forma a estrutura arquitetônica correlatas. Recomendava-se igualmente que os
através da qual perpassam as diferentes sistemas fossem elaborados e implantados
etapas de acompanhamento do suporte para serem ativados manualmente, como um
(objeto), e não da informação propriamente momento necessário e prévio para sua posteri­
dita, até que aquele possa ser armazenado em or informatização.
reservas técnicas, ou apresentado em exposi­ Para recuperar os registros, sugeria-se a
ções. Assim, o ‘sistema’ funciona como uma princípio o uso de palavras-chave, com base

(13) O enfoque sistêm ico im plica em noções de


com plexidade e am bien te (M axim iano 1997).

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CERAVOLO, S.M .; TÁ LAM O, M.F.G.M . Tratamento e organização de inform ações docum entárias em m useus.
R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 2 4 1-253, 2000.

na seleção de nomes ou classes de objetos, coleção deve ter índices cruzados de tantas
acompanhadas de números, e textos livres para formas quantas sejam possíveis ou as informa­
descrições sintéticas (Chenhall 1975, Light et ções contidas nos registros não poderão ser
alii 1986). O controle de vocabulário e a usadas” (Chenhall 1975:9). Portanto, a recupe­
normatização de terminologias ficaram depen­ ração das informações nos SDMs dependia
dentes da necessidade de informatizar, com o desses índices remissivos, embora fossem
propósito de recuperar as informações e vistos como lugar de fixação de dados trans­
facilitar seu intercâmbio. postos de um registro para outro. Se tais
Embora raramente na década de 80 use-se referências aos índices correspondem ao
a expressão “sistemas de informação”, o fato controle de vocabulário, sabe-se que esta
significativo é que os sistemas de documenta­ operação é algo que o sistema não pode
ção de museus passam a ser imprescindíveis realizar por si sem o aporte da Análise Docu­
para essas instituições garantindo o controle e mentária (AD). É função da AD tratar da
o acesso às coleções. Observa-se, entretanto, análise, síntese e representação da informação,
que na estruturação dos sistemas, tal como se para que seja recuperada e disseminada,
apresentam, não há distinção entre o tratamen­ caracteriza-se como uma atividade metodoló­
to dos dados para acompanhamento do objeto gica específica no interior da Documentação
(suporte) e o tratamento e organização das (Cintra et alii 1994:24). Por outro lado, o
informações propriamente dito, ainda que simples uso de recursos informatizados não
ambos não prescindam da linguagem no poderia executar por si tais remissivas. Natu­
sentido amplo. As etapas dos SDMs ficaram ralmente, tal perspectiva de ‘sistema’ influi
muito vinculadas ao trajeto que o objeto sobre os procedimentos de produção, organi­
percorre no interior da instituição museu, zação, manutenção e recuperação da informa­
tomando-se como idêntico o acompanhamento ção em museus.
do percurso do objeto e a informação sobre o
objeto, dando a ambos um tratamento global.
No entanto, a ação documentária (ciclo e Ausência de princípios
tratamento documentários) baseia-se, em documentários em museus: exemplos
primeiro lugar, na distinção entre agente
(suporte/objeto), e consecutivamente nas Há no âmbito da documentação de museus
metodologias envolvidas nesses proces­ ações que são por natureza documentárias, e,
samentos, sendo que para cada uma delas há caso não estejam conceituadas, corre-se o
uma linguagem controlada a ser usada. Disto risco de emprestar palavras da Documentação,
decorre que não há previsão nos SDMs de sem, no entanto, conhecer o seu conteúdo
etapas específicas, com metodologias também conceituai.
particulares para o tratamento da informação, Isto pode ser observado no contexto dos
sendo este tratamento uma conseqüência manuais de documentação de museus, nos
posterior. De fato, não priorizava-se uma significados atribuídos à ‘catalogação’, e ao
Política de Informação para esses sistemas. ‘catalogar’. ‘Catalogação’, refere-se à pesquisa
Conclui-se, portanto, que os SDMs do objeto (ou coleções) e parece ser consenso
operam na direção do controle das coleções, que se trate de função de especialistas (ou
atuando preferencialmente sobre o eixo curadores) (Dudley et alii: 1979). Quanto ao
administrativo/gerencial. Tais sistemas não ‘catalogar’ percebem-se divergências: Chen­
podem ser caracterizados como sistemas de hall (1975: 9) remete à associação entre regis­
informações documentárias (SIDMs). Apesar tros e um objeto, e entre este e objetos simila­
disso, deduz-se que exista alguma operação res, com base num sistema de classificação;
para o tratamento da informação, ainda que de para Dudley et alii (1979: 31), é uma função da
modo implícito. Tal fato pode ser inferido da classificação e os fichários devem ser manti­
afirmação de Chenhall quando comenta a dos por ‘registradores’ tendo por base infor­
importância dos índices remissivos: “(...) mações fornecidas pelos curadores; para
qualquer documentação de objetos numa Scheiner (1985: 57), trata-se de uma questão

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CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O, M .F.G.M . Tratamento e organização de inform ações documentárias em museus.
R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

acadêmica e temática, vinculada à estruturação trabalho efetuado sobre o conteúdo de docu­


das áreas disciplinares às quais as coleções mentos.
são afeitas. Pode também ser vista como coleta Nesse ciclo documentário há princípios
e registro de dados (nome, localização, autor, operatórios de natureza lingüística, também
procedência, cronologia etc.) sobre determina­ aplicáveis à documentação de museus: o
do objeto, abordagem semelhante à cataloga­ tratamento da informação caracteriza-se como
ção em Documentação, enquanto descrição um processo de representação14 empreendido
física de um documento (descrição das através de linguagem construída para esse fim
características do livro indicadoras do autor, (nesse tratamento nos museus, e de posse de
título, editora, ano de publicação, cidade da linguagens, realizam-se inúmeras passagens a
publicação e número de páginas). começar do objeto para a escrita, desta para o
Ao ‘catálogo’ se atribuem diferentes vocabulário controlado, deste para as indexa­
conotações: fichários onde ficam as fichas, ções numa relação objeto/linguagem de
idealmente com certo grau de padronização da especialidade,15 e para os esquemas classifica-
linguagem (Dudley et alii 1979: 31-2); livro de tórios, inerentes ao processo de indexação
registros (Porta et alii 1982: 66); fichário numa relação objeto/área de conhecimento).
simples (análogo às fichas de cabeçalhos em Este procedimento supõe a construção de
bibliotecas) (Chenhall 1975: 9); a documentação linguagens artificiais que contemplam outra
de toda a coleção (fichas e outros documentos) intervenção de natureza lingüística, já que a
arranjada em alguma seqüência que não a função da representação exercida no trata­
numérica; listas simples ou múltiplas dais quais mento da informação se faz por estas lingua­
constem o registro de cada objeto. Segundo gens denominadas de linguagens documen­
Chenhall, ele “(...) pode ser qualquer um desses, tárias (LDs), “sistemas de significação
e usualmente tem alguns elementos de todos próprios da Documentação” (grifo nosso)
eles” (grifo do autor) (Chenhall 1975: 9). (Lara 1993: 29). Diz-se ‘linguagens’ pois
Do ponto de vista da Documentação, possuem simultaneamente “estrutura e
‘catalogação’ corresponde a uma ação cujo representação”(Tálamo 1997: 11).
resultado é um sistema de referências do Conseqüentemente, ‘dados’, sucessão de
documento/objeto e não do seu conteúdo. Para palavras ou nomes tirados de uma ficha não
o tratamento do conteúdo, é necessário, são capazes de realizar a recuperação de
segundo Cintra et alii (1994: 19) “(...) uma informações, já que não representam ou
estrutura operatoria de conjunto, formada por representam qualquer coisa, mesmo que
um encaixe hierárquico de classes e elementos selecionados num universo de interesse
disjuntos. (Isto é) não é mera justaposição de
institucional. Listas podem até refletir uma
classes elementares (...)”. ‘Catalogar’ relaciona­ aparente credibilidade, mas “(...) é somente a
se, portanto, a um produto descritivo. ‘Classifi­
rede de relações das unidades de uma lingua­
cação’ e ‘catálogo’ não prescidem de ação
gem que pode contribuir para o exercício de
temática. Do conjunto dessas ações, participan­ qualquer representação (..)” (Tálamo 1997: 5).
tes do chamado ciclo documentário, resultam
Os SDMs, para estarem capacitados a
produções e produtos com o objetivo de emitir
realizar a indexação dos objetos e organizar
mensagens codificadas. Trata-se de ‘sistemas
classificações, dependem dos princípios
de significação’ desenvolvidos pela Análise
assinalados, pois a produção e recuperação de
Documentária (AD), que se vale de metodolo­
gias para efetuar a transformação de um sistema
de significação primeiro em outro, gerando os
chamados produtos documentários, que em (14) Kobahsi identifica e nomeia a descrição e a
relação àquele é secundário. Para a elaboração condensação com o fatos do campo das representa­
ções, sim bólicos mas opostos a qualquer ato imagina­
de tais produtos recorre-se a estruturas classifi-
tivo ou fantasioso que a palavra possa sugerir, “pois
catórias e indexações, apoios necessários para seu estatuto e função (..) a assimilam à razão, a
a recuperação e disseminação das informações, procedim entos m etód icos” (Kobashi 1994: 50)
pois para a AD, o texto em si não é informação. (15) Linguagens próprias de uma área de conheci­
Esta é uma construção metódica resultante do m en to.

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R evista d o Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

informações possuem características muito sistema de documentação de museus, subme­


peculiares. Linguagens controladas, classifica­ te-se à linguagem construída para que se
ções e índices configuram as informações alcance os resultados esperados (representa­
documentárias,16 construídas num sistema ção e circulação de informações) - a partir
documentário e não em outro tipo de sistema. deste ponto chega-se ao SIDMs.
Nessa perspectiva, definem-se os limites entre
a área de abrangência e a especificidade do
SDMs (Sistema de Documentação de Museus) Proposta para um sistema
na sua abordagem do objeto concreto (o informativo documentário em museus (SIDMs)
suporte), e as tarefas documentárias direta­
mente ligadas à organização da informação (os Observa-se que, embora a palavra ‘docu­
conteúdos), no interior de um SIDM (Sistema mentação’ esteja presente no contexto dos
de Informação Documentária de Museu), sistemas de documentação de museus, ela não
subordinado a outras metodologias, distante abarca os traços constantes do termo Docu­
portanto daquelas que de início descrevemos. mentação, justamente porque não estão
Objetos e registros não são autônomos, e previstas no interior de seus sistemas a
a significação que os entrelaça, vinculada ao elaboração de LDs (linguagens documentárias)

OBJETO

D E C O D I F I C A Ç Ã O DO OBJETO

ORGANI ZAÇÃO
TRATAMENTO DO SUPORTE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃC
Notações para Controle SISTEMA DE SIDM

Reserva Cam po nocional


Exposição
Linguagem controlada
DA

Técnica
Classificação
INFORMAÇÃO

Indexação

I NFORMAÇÕES DOCUME NT Á RI A S

RECUPERAÇÃO

(16) Inform ação docu m en tária depende de procedi­ (Kobashi 1994: 50). D istingue-se assim, sob a
m entos m eto d o ló g ico s exp lícitos, “é uma representa­ perspectiva da A nálise Docum entária (A D ), das
ção construída a partir de um objeto efetivam ente ‘inform ações brutas’, ‘principais’, ‘sign ificativas’ ou
presente, que o substitui para certas finalidades” ‘essen cia is’.

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R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

e sua utlização.17 Donde a necessidade de se documentária. Equivalências e substituições


distinguir SDMs e SIDMs. O primeiro responde constróem-se com regras explícitas, num sistema
apenas pelo trajeto do objeto, no interior do de relações remetendo a estruturas de significa­
sistema; o segundo procedendo por métodos ção definidas e previstas, diversa da virtualidade
lógico-lingüísticos produz e organiza informação. que caracteriza as LNs (linguagens naturais).
Contudo, sem escamotear a diferença evidente Nesse contexto, “palavras” não são operatorias,
entre texto e objeto, mas levando-se em conta a mas sim termos18 com noções definidas.
possibilidade de aplicar metodologias da AD Para atuar entre a representação e a sig­
para outros suportes informativos (ver Smit e nificação, as LDs são fundamentadas em organiza­
Macambyra 1997), consideramos que há um ções lógico-hierárquicas de classes, que são um e
patamar comum entre a documentação de museus não o único ponto de vista. Uma vez organizado o
e a Documentação, tomando aquela subsidiária campo nocional (área de conhecimento), chega-se
direta desta, no que tange a representações por meio da ordem e subordinação ao estabeleci­
contidas nos índices (uma vez que resumo como mento de diferentes relações hierárquicas e não-
produto documentário inexiste no caso da hierárquicas. Constrói-se o vocabulário controla­
documentação de museus). Este patamar comum é do, tendo por base uma sintaxe também controla­
estabelecido a partir dos seguintes referenciais: da pelas diferentes modalidades de relações entre
suas unidades constitutivas.
- a documentação de museus e Docu­ O início de uma proposta para a formulação
mentação procede pela linguagem; de uma LD para museus deve integrar diferentes
- há tratamentos distintos, embora com­ variáveis consideradas necessárias para a
plementares, entre suporte e conteúdo e, captação das características do objeto em
- a produção e organização das questão: a denominação do objeto (dados do
informações, visando sua recuperação, objeto), a descrição (dados sobre o objeto), e
dependem da estruturação de linguagens aqueles que remetem à chamada informação
artificiais (tal como as LDs) operando no associada (dados ao redor do objeto) que
dueto sistema/usuário. contextualizam a peça e remetem-na a temas que
Se é exigida da documentação de museus a a ela podem estar associados. Considera-se a
captação de complexas variáveis do objeto, este sintaxe expressa pelas relações hierárquicas: o
se assemelha à “informação bruta”, ao mesmo termo genérico (TG) vinculado à denominação
tempo em que é suporte, conteúdo e imagem. Por do objeto; termos específicos (TE) remissivos de
outro lado, não podemos esquecer que os situações contextuáis sobre a peça, e o termo
objetos encontram-se indissociavelmente relacionado (TR) como remissivo de sinais de
imbricados a áreas específicas do conhecimento evidência identificadora.19 O conjunto sintático/
dotadas de organização, discurso e terminologia semântico para operar a LD conjuga, assim,
próprias, ou seja, características de um campo variáveis selecionadas tidas como significativas
nocional especifico. Quando se pensa num para enunciar os diferentes aspectos do objeto
sistema de informação documentária, a organiza­ de museu, como exemplificado no quadro abaixo.
ção do campo nocional funciona como um Nessa perspectiva, entendemos que o SIDMs
conjunto de partida (o conhecimento), a partir do (Sistema Informativo Documentário de Museus)
qual realizam-se, através das LDs, equivalências encontra-se inserido no ambiente do sistema de
e substituição (sínteses parafrásticas), de forma documentação de museu, dele se distinguindo,
que o conjunto de chegada seja a informação mas, também, dele necessariamente participante.

(17) Lembrando que se encontram na área de museus (18) Termo tem com o definição: “uma designação
recom endações para o controle de vocabulário com o por meio de uma unidade lingüística de uma noção
m eio de obter consistência e coerência (glossários - definida numa língua de especialidade” (ISO: 1087, 5).
Camargo-Moro: 1989; vocabulários controlados - (19) Este ensaio fundou-se na organização do acervo
Dudley et alii: 1979; terminologias - Ligth et alii de peças anatômicas sob guarda do Museu de Anato­
1986), reforça-se a idéia de que tal operação é mia Veterinária da FMVZ/USP, para o qual a técnica
fundamental, no entanto, não há nesses manuais anatômica aplicada m odifica e cria a evidência nela
m étodos explicitados para realizá-los. observável.

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CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O , M .F.G.M . Tratamento e organização de inform ações docum entárias em m useus.
R evista do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

VOCABULÁRIO CONTROLADO
4
4 1
LD INFORMAÇÃO
ASSOCIADA
1
DESCRITOR -► RIM *4-PEÇA
a n a tô m ic a

-► SINTAXE TG: Sistema Urinário Remissiva -► Região a n a tô m ic a

TEI Bovino •*- Remissiva -► Ambiente anatômico/


Animal

TE2 C ircu la çã o Remissiva -► Ambiente anatômico/


Sangüínea Anatomia

TE3 Artérias Remissiva -► Ambiente anatômico/


Anatomia

TR: Corrosão •«- Remissiva -► Evidência/


Técnicas Anatômicas
1
CONTEXTO
t *
INFORMAÇÃO DOCUMENTÁRIA •♦-TEMA

RECUPERAÇÃO

CERAVOLO, S.M.; TÂLAMO, M.F.G.M. Treatment and organization of documentary


informations in museums. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Sâo
Paulo, 10: 241-253, 2000.

ABSTRACT: The conception of documentation in museums, as articulated


in the body of work representative of this particular area, is inadequate for the
retrieval and diffusion of documentary information. It is necessary that the
process of documentation in museums, insofar as it focuses upon the treat­
ment of the object of documentation, also consider the treatment of the
information to be handled, with Language as the instrument of its conversion.
It is in the methodology of the Science of Information that elements adequate
to the process of documentary representations in museums can be drawn, the
result being a distinction in the system of documentation of museums what is
specifically documentary information.

UNITERMS: Information systems - Documentation - Museums.

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CERAVOLO, S.M .; TÁLAM O, M.F.G.M . Tratamento e organização de inform ações documentárias em m useus.
R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 241-253, 2000.

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A COLEÇÃO ETNOGRÁFICA DE CULTURA RELIGIOSA


AFRO-BRASILEIRA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA
E ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO*

Rita Am aral**

AMARAL, R. A coleção etnográfica de cultura religiosa afro-brasileira do Museu de


Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Revista do Museu de
A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 255-270, 2000.

RESUMO: Este artigo apresenta a coleção afro-brasileira de cultura


religiosa do MAE, incluindo a Coleção Registro Sertanejo, que acaba de ser
catalogada e possui grande importância histórica e etnográfica por sua
cronologia e características. O texto argumenta, ainda, em favor da criação de
um acervo de cultura afro-brasileira em suas várias dimensões dada sua
importância na cultura nacional.

UNITERMOS: Cultura afro-brasileira - Cultura brasileira - Religiões


afro-brasileiras - Arte sacra - Identidade afro-brasileira - Museologia.

Introdução cidos e divulgados como valores nacionais


que, inclusive, exportamos para países da
A contribuição dos valores da chamada Europa e da Ásia, entre outros. O berimbau, o
cultura afro-brasileira vem sendo mais e mais pandeiro, a terrina de feijoada, os orixás, são
reconhecida como elemento marcante da abertamente valorizados como elementos de
cultura e sociedade brasileiras por todo o nossa cultura, do mesmo modo que o rebola­
mundo. Hoje, não apenas a música e a comida, do, o jeito extrovertido, a malícia e a jocosi­
as festas, a capoeira e a religião, mas também dade. Exportamos o samba, o carnaval e as
elementos menos concretos como um “jeito de “mulatas” para todo o mundo; o candomblé e a
ser” herdado dos africanos, têm sido reconhe­ umbanda para a Argentina, Venezuela, Chile, a
Itália, Suécia, França, Alemanha, Estados
Unidos e até para o Japão. Hoje, além do
(*) O presente artigo é resultado da pesquisa de Pós-
crescimento e da adesão de populações
Doutoramento que venho realizando junto ao Museu diversas às escolas de samba, à capoeira e aos
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São ritmos de origem negra, seja o reggae, o samba
Paulo / MAE, sob supervisão da Profa. Dra. Paula ou jazz, há ainda um forte crescimento da
M ontero e com financiam ento da Fundação de adesão às religiões afro-brasileiras, que vêm se
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -
FAPESP.
tomando mais e mais visíveis em todos os
(**) Dra. em A ntropologia Social pela Universidade espaços sociais e na mídia impressa e eletrôni­
de São Paulo. ca, aparecendo em novelas de televisão,

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Universidade de São Paulo. R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 255-270, 2000.

minisséries, filmes, exposições, pinturas e tais objetos estão inseridos como verdadeiros
esculturas e, mais recentemente, CD-ROMs e ícones de cultura, a partir dos quais é possível
sites na Internet. As Ciências Sociais, por sua recontar a história dos cultos religiosos de
vez, dedicam-se a compreender o papel do origem africana no Brasil (Bastide 1978;
negro na sociedade nacional, onde ainda é Gonçalves 1954; Lody 1974, 1977,1979, 1982,
discriminado enquanto indivíduo ao mesmo 1984,1985a, 1985b; Oliveira Neto 1968; Rodrigues
tempo em que suas práticas culturais são 1982; Valladares 1969 e outros).
absorvidas de modo quase apaixonado. Tendo sido a cultura negra, durante muito
Apesar disto, a memória do desenvolvi­ tempo, uma cultura dominada, suas manifesta­
mento desta cultura, matriz e produto ao ções religiosas foram duramente perseguidas
mesmo tempo do processo de desenvolvimen­ pelo poder político e sua polícia e também pelo
to histórico nacional que deu origem à “cultura catolicismo, hegemônico durante longos anos.
brasileira” (que não se separa da “afro- A memória religiosa só se nfanteve às custas
brasileira”) em seu aspecto religioso ou da transmissão de tradição oral, de pais para
profano, não tem encontrado lugar nos filhos. Do ponto de vista oficial, a história dos
museus e instituições oficiais que visam negros é uma história de escravos, que muitas
preservar a memória dos grupos e suas artes e vezes escamoteia significados e interpreta
técnicas; sua história enfim. Esta cultura, vista mais do que explica. Nos museus, à parte
até bem pouco tempo como “cultura domina­ acervos de peças referentes ao processo
da”, raras vezes se vê representada em seus escravagista, como grilhões, mordaças,
valores próprios. Em geral aparece nas leituras pelourinhos, não há quase registros materiais
e releituras dela feitas por artistas plásticos, de sua cultura em liberdade, colocando-se
escritores e músicos, mas pouco se conhece e novamente a cultura afro-brasileira em situa­
valoriza, por exemplo, o simbolismo de arte ção de inferioridade diante da cultura de
sacra afro-brasileira e nem mesmo se dá a ela origem européia, que erigiu imensos acervos
tal nome, talvez por seu pequeno valor materi­ para preservar os elementos significativos de
al, talvez pelo desconhecimento da riqueza sua história. Para a cultura de origem africana,
simbólica, mitológica e histórica implícita e transformada em cultura afro-brasileira pelo
explícita nos grafismos de um adê de Oxum processo histórico, entretanto, pouca memória
(espelho da deusa dos rios dos ritos de origem material existe. E os grupos afro-descendentes
ioruba), ou no trançado de um bilala de em muito se ressentem disto. Em minha
Oxóssi (chicote de couro do deus caçador), do pesquisa de Mestrado, sobre o estilo de vida
significado do modo de amarrar na cabeça os dos adeptos do candomblé paulista (Amaral
ojá-oris (turbantes) que indicam a senioridade 1992), várias vezes encontrei pais e mães de
no culto, o grau de conhecimento, também santo preocupados com a criação de “museus”
explicitados pelos brajás (colares de conta de em seus terreiros, que visassem, no mínimo,
louça, em gomos, cheios de riquezas numero- manter a memória de sua história se não a de
lógicas relacionadas aos mitos), do significado todo o candomblé. Roupas ricamente bordadas
das vestimentas, memórias da vida colonial e com signos religiosos, peças em metal traba­
da escravidão. lhado, ícones de memória das práticas que
Alguns estudos têm se dedicado a orientam suas vidas lhes pareciam escapar das
colecionar e catalogar imagens ou objetos mãos com o tempo. A idéia de “criar um
recolhidos em alguns terreiros e delegacias museu” era sempre a de preservar-se, a de não
(que os mantêm desde os tempos da repressão desaparecer no processo de modernização que
ao culto, quando fechavam os terreiros e tanto transforma as práticas e os valores,
recolhiam os objetos rituais como provas do impedindo assim que o futuro venha a apagar
“crime” de “feitiçaria”) e analisá-los tecnica­ toda a memória de sua existência, caso a
mente em termos da transformação da matéria- evidência material não seja preservada como
prima e das técnicas de produção, sendo testemunho de sua existência. Preservar sua
menor o número os estudos que se dedicam a crença, implicaria, portanto, preservar também
avaliar os aspectos sócio-religiosos nos quais algo do aparato material sobre o qual ela se

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inscreve; preservar o fruto do trabalho e da fé as mãos. O axé, energia vital, fundamento


na sua mais concreta materialidade. O proces­ maior destas religiões, é fixado em objetos
so de tombamento de um terreiro em São vários e por meio deles se transmite; os
Paulo, o Axé Ilê Obá, pelo c o n d e p h a a t e pelo exemplos, enfim, podem ser numerosos. Até
s p h a n se deu, inclusive, por iniciativa da mesmo a identidade do indivíduo relaciona-se
própria mãe-de-santo que o lidera,1 visando intimamente a um conjunto particular de
preservar e garantir o espaço para a continui­ objetos religiosos que geralmente desapare­
dade do candomblé e de todo o aparato cem com ele, quando de sua morte (Bastide
material que havia dentro dele. A preocupação 1978, Prandi 1991, Amaral 1992, Silva 1996). À
com acervos de memória tem aparecido raridade dos objetos que permanecem, em
também em vários documentos e discursos função da visão religiosa propriamente dita,
êmicos, assim como a busca de um espaço que soma-se o período de extrema repressão, em
reúna objetos, fotos e literatura sobre a que os objetos de culto foram destruídos,
história dos negros desligada da memória da apreendidos ou escondidos durante as
escravidão. Segundo uma mãe-de-santo. invasões da polícia aos terreiros. Finalmente,
“Eles [instituições oficiais de memória e
soma-se a isto a transformação sofrida por eles
academia] vêem o negro escravo. M as os negros no processo de assimilação dos cultos afro-
não fo ra m apen as escravos. Tinham suas brasileiros pela sociedade abrangente, o
fam ília s, sua crença, suas danças, suas com idas. escasseamento de matérias-primas e o desapa­
Ninguém conta a h istória dos ju deu s, que
recimento dos artesãos iniciados e retentores
tam bém fo ra m escravos, apen as com o escravos.
do estilo técnico de confecção de determina­
P or que a história do negro tem que se r sem pre
a do p o vo escra viza d o ? ” [Sylvia de Oxalá, das peças. Atualmente, grande parte dos
ialorixá do A xé Ilê Obá], objetos são feitos em série e vendidos em
lojas, e seu significado individualizado só será
Assim, é extremamente relevante, não dado pelo contexto religioso particular em que
apenas do ponto de vista científico dos for inserido. Apenas a minoria dos objetos
estudos de cultura material, História, Antropo­ vem sendo confeccionada sob encomenda, por
logia e Museologia, mas também do ponto de artesãos especializados. Portanto, justifica-se
vista do diálogo com a comunidade, o empe­ também em termos da antigüidade, raridade e
nho do MAE em organizar sua coleção de significado, a atenção dada às peças de cultos
peças referentes à cultura religiosa afro- afro-brasileiros que o MAE possui. É funda­
brasileira, dando início ao que poderia vir a se mentalmente destes valores simbólicos que se
tomar um Acervo e mesmo um Centro de extrai a importância desta coleção. Antes,
Apoio aos estudos nesta área. contudo, de passar a falar dela, é preciso
apresentar, ainda que rapidamente, o contexto
social em que se insere e de onde extrai seu
A cultura material religiosã afro-brasileira valor etnográfico.

Os objetos materiais ocupam uma posição


extremamente peculiar em todas as culturas, A importância da cultura afro-brasileira
mas muito particularmente na cultura religiosa na formação da cultura nacional
afro-brasileira, conformando muitas vezes a
própria identidade religiosa do grupo. Por Os cultos afro-brasileiros, como já disse,
exemplo: o rito queto toca os atabaques com tiveram importante papel na formação da
aguidavis (varas de marmelo), diferenciándo­ cultura brasileira, tendo sido amplamente
se do rito angola, que não os utiliza e toca com analisadas em suas particularidades regionais,
como o tambor de mina maranhense (Eduardo
1948, Pereira 1979, S. Ferretti 1986, M. Ferretti
(1) Sobre o processo de tombamento deste terreiro ver
1993 etc.), xangô pernambucano (Fernandes
Amaral 1991. (Também disponível via Internet em 1937; Ribeiro 1952; Motta 1988, 1991; Carvalho
http://w w w .aguaforte.com /antropologia/tom baxe.htm .) 1984; Segato 1995 etc.), batuque gaúcho

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(Krebs 1988, Corrêa 1992, Oro 1994 etc.), divinização de elementos da natureza. No
candomblé baiano (Rodrigues 1935, Carneiro segundo, as histórias dos santos se relaciona­
1978, Bastide 1978; Verger 1981; Pierson 1967; vam de modo coerente com vários mitos
Landes 1967; Lima 1977; J. Santos 1977; Braga africanos de orixás (deuses do grupo sudanés)
1988, 1995; Barros 1993; J. Santos 1995 etc.), e inkices (deuses do grupo angolano). Ao se
candomblé carioca (Binon-Cossard 1971, reorganizarem no Brasil, portanto, as religiosi­
Augras 1983, Birman 1995 etc.), candomblé dades africanas estabeleceram um diálogo
paulista: (Prandi 1991, Amaral 1992, Silva 1995 entre si, com a religiosidade indígena e com o
etc.), umbanda (Camargo 1961, Velho 1975, Ortiz catolicismo a que todas estavam submetidas.
1978, Negrão 1996) e estes estudos têm subli­ Evidentemente houve, ao longo dos quatro
nhado as singularidades dos processos de séculos, diferentes pfocessos, de certo modo
desenvolvimento destas religiões através da condicionados pelas especificidades regionais
focalização de aspectos diversos delas, como o de onde estas religiosidades se desenvolveram
transe, a estrutura religiosa e mitológica, a e, assim, diferentes conseqüências com
culinária, o estilo de vida, suas relações com a diferentes feições. Após o advento da aboli­
metrópole etc. Apesar da riqueza etnográfica ção da escravatura e da República tomaram-se
atual no que diz respeito às formas de religiões visíveis várias expressões religiosas de origem
afro-brasileiras nas diferentes regiões do país, africana (Amaral e Silva 1996).
poucos trabalhos têm tentado dar conta dos A cultura material das religiões afro-
aspectos materiais destas religiões e delinear, brasileira mostra claramente as marcas deste
numa perspectiva antropológica, as relações processo através dos signos de que vão sendo
destes com o sistema religioso e sua transfor­ impregnados os objetos: cmzes, cálices,
mação através das mudanças sofridas pelas balanças e vários outros associados aos santos
diferentes denominações em sua relação com a católicos e elementos da cultura indígena.
2
cultura brasileira. Para avaliar a relevância da “O p rocesso abolicion ista e a instauração
criação e organização de um Acervo de Cultura da República enfatizou a necessidade de se
Afro-Brasileira no MAE, é preciso compreender pen sa r a construção de uma iden tidade
o processo histórico que trouxe para o Brasil, brasileira diante da necessária convivência dos
vários segm entos sociais e étnicos. O m odelo de
no período Colonial, sob o sistema escravista, p a ís que as elites da época desejavam adotar
diferentes grupos étnicos, principalmente pu blicam en te con trapu n h a-se à realidade, p o is
bantos e sudaneses, com diferentes práticas m esmo “co m p a rtilh a n d o ” os ideais da cultura
culturais, inclusive religiosas. européia iam sendo en volvidas p o r aspectos da
cultura a frica n a j...]. D eparan do-se com esta
O Brasil do período Colonial escravista era
realidade, as elites intelectuais e científicas
uma sociedade regida pelos valores do dedicaram -se, então, a en ten der o legado dos
catolicismo português, religião obrigatória vários grupos que compunham a cultura
para todos. Um catolicismo fortemente magici- nacional. O legado africano tornou-se, então,
zado, com imenso aparato simbólico materiali­ objeto de interesse científico e, dentro deste, as
zado no uso de velas, escapulários, bentinhos, p rá tica s religiosas foram vistas com o um dos
prin cipais fo c o s de análise, uma vez que ela
medalhinhas, óleos santos, tercinhos etc.,
marcado pela devoção aos inúmeros santos
mártires e pela crença da interferência destes
no cotidiano (Ewbank 1979). Sob a hegemonia
(2) Com a abolição da escravidão, os negros incharam
deste catolicismo conviviam as tradições as cidades em busca de melhores condições de vida, e
religiosas dos vários grupos indígenas e os serviços pesados, braçais e o pequeno comércio
africanos. As recorrências estruturais existen­ foram suas principais atividades. As mulheres negras,
tes entre as cosmovisões destes três grupos tidas por exím ias cozinheiras, quando não continua­
permitiram a tradução e a reinterpretação de ram com o empregadas domésticas na casa de seus
antigos donos, estabeleceram-se vendendo em seus
umas pelas outras. O politeísmo africano tabuleiros doces, acarajés, abarás e outras comidas da
identificou-se com o politeísmo indígena e com culinária africana. Neste contexto, a cultura de origem
o culto aos santos católicos. No primeiro caso, africana encontrou maiores possibilidades de expressão
a tradutibilidade se dava inclusive pela e foi ganhando aos poucos mais visibilidade.

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p erm ea va todo o cotidian o dos descen den tes de de dos negros (politeísmo, transe etc.), em prol
africanos no Brasil. No entanto, num prim eiro de uma reinterpretação histórica e cultural desta.
mom ento, o p o liteísm o, o “an im ism o ”, o tran se
Pela primeira vez estas religiões foram tratadas
e o ca rá ter “m á g ico ” das religiões africanas
fo ra m in terpretadas com o sin al de “p rim itiv is­ como tais e amplamente investigadas e valoriza­
mo" e “a tra so”3 (Amaral e Silva 1996: 202). das. Mário de Andrade organizou a “Missão de
Pesquisas Folclóricas” que percorreu o Nordeste
A contradição entre a discriminação social e o Norte do Brasil registrando em gravações e
e a adoção dos valores culturais dos negros fotos as principais manifestações religiosas afro-
pela sociedade brasileira surgiu também em brasileiras. No Recife e em Salvador, aconteceram
outras instâncias da vida cultural do país. Na os primeiros congressos afro-brasileiros, que
literatura, por exemplo, após a crítica de alguns reuniram religiosos, cientistas e políticos num
autores aos preconceitos e às condições
evento oficial, divulgado pela imprensa (Amaral
vergonhosas de vida da população negra, o
e Silva 1996:205.)
movimento modernista valorizou as caracterís­
O caráter nacional da religiosidade afro-
ticas do povo brasileiro como elementos
brasileira foi tomado pela umbanda como
centrais para a expressão da cultura nacional.
bandeira e usado como uma de suas mais
Jorge Amado, escritor mundialmente lido,
valorizadas estratégias de crescimento e
tematizou o candomblé em suas obras, divul­
legitimação. Teve sua origem com as feições
gando-o nacional e internacionalmente. Em
atualmente predominantes por volta da década
“Compadre de Ogum”, por exemplo, Amado
de 1920, quando espíritas kardecistas de
mostra as dificuldades da dominação católica
classe média passaram a juntar elementos de
na Bahia, onde até mesmo o padre é descen­
dente de africanos, filho de Ogum, não poden­ origem africana à sua religião, defendendo
do portanto afrontar os que acreditavam nos publicamente tal sincretismo. Ao panteão
orixás nem ser afrontado por estes. Nas artes africano traduzido para o catolicismo (Iansã é
plásticas o negro aparece nas telas de pintores Santa Bárbara, Oxum é Nossa Senhora Aparecida),
famosos como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti a umbanda acrescentou os pretos-velhos,
e Cândido Portinari. Na música popular índios (caboclos) boiadeiros, ciganos, baia­
brasileira, Dorival Caymmi e outros, cantaram nos, marinheiros, divinizando e valorizando os
temas do cotidiano popular, entre eles o brasileiros representantes dos grupos margi­
candomblé. (Amaral e Silva 1996). Capistrano nalizados. Buscou, no processo de “nacionali­
de Abreu descreve famílias brancas, pobres, zação”, apagar os traços associados ao
vivendo como as famílias negras, dormindo em “primitivismo” dos cultos africanos, como o
esteiras no chão, comendo com as mãos, sacrifício de animais e o uso de atabaques que
dançando as músicas dos negros e freqüen­ importunassem a vizinhança. Com isso,
tando o candomblé, sinal de que a religião e os cresceu significativamente e tomou-se a mais
hábitos já não eram exclusivamente de negros, popular das religiões afro-brasileiras, ocupan­
mas de brasileiros. (Abreu 1988). do importantes espaços no campo religioso
“Neste contexto, o que havia sido designado urbano do sudeste e, depois, de todo o país
até então como “africano” passa a ser compreen­ (Camargo 1961, Ortiz 1978, Brumana & Martínez
dido como “afro-brasileiro” ou “brasileiro”. Em 1991, Amaral & Silva 1996, Negrão 1996).
vez do termo “seitas africanas” passa-se a falar Nos anos 60, as influências externas em
em “religiões afro-brasileiras” e os estudos nossa cultura dos acontecimentos mundiais
centrados nestas religiões adquirem nova (movimento Black Power, Hippie e outros)
direção. Artur Ramos (1940) e, posteriormente, cresceram e com este crescimento também os
Édison Carneiro (1978,1981) e Roger Bastide movimentos de conscientização política, como
(1978,1985), abandonaram definitivamente a os dos negros, e os estéticos, como o Tropica-
associação entre inferioridade racial e religiosida­ lismo, que revalorizaram a identidade nacional.
A cultura afro-brasileira envolveu em sua aura
de misticismo e sensualidade os grandes
(3) Ver, por exem plo, os trabalhos de Nina Rodrigues centros urbanos do sudeste e artistas reco­
(1 9 3 5 , 1977). nhecidos, quase todos descendentes de

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negros. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria vezes organizando-os mesmo. Associações
Bethânia, Martinho da Vila, Clara Nunes e destes grupos foram reconhecidas pelo Estado
outros, em geral ligados ao candomblé e à como de utilidade pública (Prandi 1991; Amaral
umbanda, cantaram para todo o Brasil os 1992,1998; Silva 1995; Amaral & Silva 1996).
nomes e as lendas dos orixás e outras divinda­ Como se vê, a história da formação do
des afro-brasileiras, legitimando nacionalmente campo religioso afro-brasileiro se confunde
uma prática cotidiana do universo popular. A com a própria formação da sociedade nacional
aceitação da cultura religiosa afro-brasileira e a perspectiva a ser empregada no projeto de
também foi ampliada pela atração de seus organização da coleção e um eventual futuro
ritmos e danças nas grandes festas populares Acervo de Cultura Afro-Brasileira deve
brasileiras, fazendo com que estas ganhassem considerar tantos os aspectos particulares do
visibilidade na mídia em nível nacional. Os campo afro-brasileiro em si, como as conexões
xangôs que saem às ruas do Recife através do que ele mantém com as demais esferas da
ritmo e estética dos maracatus, grupos carna­ cultura brasileira, uma vez que a cultura
valescos intimamente ligados aos terreiros material é um aspecto da sociedade que não
tornaram-se populares como os afoxés, pode ser isolado e analisado de forma inde­
versões profanas dos cultos aos orixás, que se pendente de outras esferas da cultura. Assim,
apresentam no carnaval, saídos dos candom­ atribuir valor material às peças da cultura afro-
blés de Salvador. As escolas de samba cario­ brasileira presentes no Museu é um dos
cas, que se organizaram em tomo da vida pontos complexos, pois o que deve ser
social dos terreiros ganharam destaque considerado, no caso, não é seu valor material
nacional e internacional, dando oportunidades (as peças são feitas de materiais relativamente
de projeção e ascensão a compositores e baratos) ou antigüidade, mas a relevância do
carnavalescos que tematizaram a cultura afro- objeto dentro do sistema religioso, deste na
brasileira, pondo em evidência sua relevância cultura envolvente e todo o processo trans-
na formação da cultura brasileira (Ortiz 1986, formativo em que se insere. Os aspectos mais
Tinhorão 1988, Moura 1983, Mota 1977, Brown especificamente materiais, como estilo, função,
1977, Risério 1981, Amaral & Silva 1996). trabalho artístico e a idade do objeto também
Nos anos de 1980/1990, o prestígio das devem ser considerados, sempre em relação
religiões afro-brasileiras cresceu significativa­ com seu “papel” no sistema sócio-religioso.
mente e consolidaram-se como religiões de Do relacionamento destas peças com o
conversão universal, conquistando espaços de contexto em que são ou eram utilizadas, e
reconhecimento. Brancos, negros, mulatos, deste com o contexto mais amplo da história
imigrantes, pobres, ricos, artistas, intelectuais, do Brasil e dos próprios cultos é que propo­
converteram-se a estas religiões. Terreiros de nho extrairmos tal valor. Finalmente, os bens
candomblé foram tombados pelos órgãos do materiais, vistos como palavras numa lingua­
Patrimônio Histórico Nacional, em reconhecimen­ gem, devem ser considerados em seu contexto
to da importância e legitimidade destes gmpos e em sua associação a gestos: no caso do
na história e na cultura brasileiras.4 As festas e candomblé, danças, reverências, cumprimen­
os líderes das religiões afro-brasileiras ocuparam tos, cantigas, momentos rituais etc., captando-
a mídia, e os órgãos governamentais dirigiram se a totalidade do que pretendem suportar
sua atenção à elaboração de políticas públicas como significado e transmitir como mensagem.
que contemplassem os grupos negros, entre os
quais se localizavam os grupos religiosos, muitas
As Coleções Pierre Verger, Breziat e
Guimarães e a Coleção Registro Sertanejo,
(4) Entre os terreiros que foram tombados ou que têm do MAE
recebido ajuda dos órgãos governamentais para
garantir a manutenção de seu patrimônio físico e de
suas tradições religiosas estão a Casa Branca do
O Acervo de Cultura Afro-Brasileira do
Engelho Velho em Salvador, o Axé Ilê Obá em São MAE é composto basicamente de três cole­
Paulo e a Casa de Nagô em São Luís. ções, ou conjuntos de peças. Uma delas, a

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coleção Registro Sertanejo, possui importante nenhum terreiro ou iniciado particularmente, e


valor etnográfico e histórico, pois data do adotando signos legíveis para dentro e para
começo do século XX ou mesmo final do fora do grupo, sendo portanto mais represen­
século XIX. As demais são representativas da tativas das peças que se encontram nos
segunda metade do século, apresentando-se mercados. De fato, não apresentam as particu­
como importante coleção etnográfica. laridades de signos que as peças de uso no
Parte das peças por mim estudadas5 até o culto costumam apresentar. São exemplares
momento faz parte de uma série conhecida compostos por elementos mínimos dos orixás
como “Coleção Pierre Verger”, uma vez que foi que representam e, assim, bastante didáticas.
por ele vendida ao MAE, durante a administra­ Lamentavelmente, especialmente em se
ção do Prof. Marianno Carneiro da Cunha. Esta tratando de etnógrafo renomado que era,
coleção é constituída por objetos rituais de Verger não acrescentou dados etnográficos de
metal. O restante da coleção de objetos de nenhum tipo sobre estas peças, sobre os
cultos afro-brasileiros é composto de peças artesãos que os confeccionaram, sobre os
vendidas por mais dois colecionadores: os terreiros aos quais estes pertenciam, sobre os
senhores Carlos Henrique Guimarães (que ritos a que se associavam, região de onde
vendeu um lote de peças não discriminadas e vinham ou nenhuma outra além do nome e
designadas em recibo apenas como “etnoló­ material. Objetos idênticos são vendidos
gicas afro-brasileiras”, em 29/03/1972) e P.A. atualmente no Mercado Modelo de Salvador e
Breziat (que vendeu um lote de peças também em várias lojas do país. Registrou-se, apenas,
não discriminadas e ditas, “peças arqueológi­ o nome das peças e que foram feitas por
cas afro-brasileiras”, em 30/04/1971 e que, artesãos da Bahia, supondo-se Salvador e
curiosamente, constam como doação, no arredores, já que Verger residia na capital
Diário Ficha de mesma data). Há ainda duas baiana e freqüentava o terreiro de candomblé
peças vendidas ao MAE em outubro de 1974 Opô Afonjá.
pelo artista plástico Deoscóredes dos Santos, As peças vendidas por Pierre Verger em
conhecido como Mestre Didi, assobá do 1976 ao MAE são:
terreiro de candomblé baiano Ilê Axé Opo
1 Paxorô de Oxalá (em 3 elem entos, de
Afonjá, ao qual estava vinculado o etnógrafo metal niquelado) (7 6/1.1.A, B, C)
Pierre Verger e que provavelmente estabeleceu 1 Abebê (leque) de Iemanjá (cobre niquela­
o contato entre este e o Museu. do) (7 8 /1 .2 )
As 11 peças vendidas por Verger ao MAE 1 Adê (coroa) de Oxum (latão) (76/1.3)
em 1976, e incorporadas ao Museu na gestão 1 Adê de Iemanjá (latão niquelado) (76/1.4)
1 Par de pulseiras copo de Oxum (latão)
de Ulpiano Bezerra de Menezes, não pertenci­ (76/1.5 A ,B )
am à sua coleção particular, como se crê, mas 1 Adjá (sino de 3 bocas) de cobre niquelado
foram encomendadas por ele a artesãos (7 6 /1 .6 )
baianos, conforme se pode ler na correspon­ 1 O xê de Xangô (cobre) (76/1.7)
dência trocada entre ele e Marianno Carneiro 1 Colar de contas de Oxalá (76/1.10)
1 Colar de contas de Xangô (76/1.10)
da Cunha, em 1974. Por razões burocráticas (os
1 Colar de contas de Oxum (76/1.8)
artesãos não podiam fornecer notas fiscais de 1 Colar de contas de Iemanjá (76/1.9)
seus trabalhos), as peças entraram no Museu
como pertencendo à coleção pessoal de Pierre Da coleção afro-brasileira do MAE
Verger, o que não é fato. Isto implica em que constam ainda, como já mencionei, duas peças
estas peças foram confeccionadas especial­ (um xaxará e um ibiri) de autoria de Mestre
mente para a venda, não tendo pertencido a Didi, atualmente conhecido em todo o mundo
como artista plástico que se dedica à arte sacra
afro-brasileira. Estas peças não constituem
peças propriamente etnográficas, pois são
(5) Algumas peças das coleções Pierre Verger, Breziat
e Guimarães foram estudadas anteriormente por elaborações artísticas que tomam como tema
outros pesquisadores, de forma menos sistemática os objetos rituais do candomblé. Mestre Didi
para o conjunto das mesmas. tomou-se famoso por suas peças em taliças,

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palha, junco, matéria-prima que domina e que 1 Percussor de agogô ou de gã (78/d.5.6. A)


lhe vale o cargo religioso de assobá do Ilê Axé 1 Percussor de agogô ou de gã (78/d.5.6. B)
Opo Afonjá. O fato de Mestre Didi ser um 2 Serpentes de Oxumaré (par) (número pro­
assobá (homem iniciado no culto e que tem visório A e B)
1 Xaxará de Omolu (74/2.5)
como atribuição exclusiva confeccionar todos
1 Xere (cobre) (s/número)
os objetos de palha de um terreiro, como os
1 Xere (cobre) (s/número)
ibiris, xaxarás, azes, pulseiras, capacetes etc)
do terreiro baiano Axé Opô Afonjá, e do culto Esta “coleção” é bastante incompleta em
dos eguns de Itaparica (BA) é totalmente relação ao culto do candomblé, da qual é
ignorado na documentação, assim como a representante. Uma aoleção deveria obedecer a
relevância deste fato para a incorporação da um critério mínimo que a organizasse, o que
peça na coleção. Felizmente, foi possível não é o caso, pois não encontramos uma
recuperar estas informações e incluí-las nas coleção de ferramentas completa, nem de
fichas, além de informações sobre as peças e contas, nem de ferros etc. Para qualquer tipo
seu uso, mitologia, grupo de origem etc. Não de organização possível como coleção, lhe
foi possível saber, a partir da documentação faltam peças. Como proposto no projeto de
disponível no MAE, sobre os dois outros pesquisa, foi elaborada uma proposta de
colecionadores que venderam peças para a acervo mínimo, que deve compor uma coleção
coleção, quem vendeu quais delas. Continuo a de cultura religiosa afro-brasileira, elaborando
investigação. Outro fato importante é que as critérios apropriados de classificação, utilizan­
peças pertencem, em sua grande maioria, ao do como referência não apenas a bibliografia
culto do candomblé baiano. Não existem, nesta especializada como também a experiência de
coleção, como se pensava, peças de outros doze anos de pesquisa do candomblé.
ritos, seja de umbanda, tambor-de-mina ou
qualquer outro.
As demais peças de cultura afro-brasileiras, Classificação das peças
vendidas ao MAE por Breziat e Guimarães, são:
1 A gogô (7 4 /2.4) A classificação das peças foi um dos
1 A gogô com percussor (78/d.5.6 A e B) momentos mais complexos da pesquisa, pois
1 Assentamento de cauris(Ewá/Exu) (s/número)
nas religiões afro-brasileiras uma mesma
1 Casal de Exus, grande, de ferro (números
provisórios SA/1 e SA/2)
peça pode pertencer a mais de um sistema,
1 Lança de Exu (fincador) (s/número) ou transitar entre eles. Ou seja: uma mesma
1 Estátua de Iemanjá (s/número) peça pode, num dado momento, pertencer ao
1 Exu de ferro (fem inino) (s/número) sistema dos instrumentos musicais (como o
1 Exu de ferro (masculino) (s/número)
xere, chocalho do orixá Xangô) e, em segui­
1 Exu de ferro, pequeno (s/número)
1 Gã ( 78/d.5.10)
da, pertencer ao sistema dos paramentos de
1 Gã (74/2.2) dança do deus, ou ainda ao dos objetos que
1 Gã (78/d.5.?) indicam senioridade, quando nas mãos de
1 Ibiri de Nanã (74/9) um iniciado que não esteja em transe.
1 Idan (pulseira) (s/número) Terminado o culto, ela pode passar a compor
3 Idans (trio) (s/número)
os elementos do “assentamento” do orixá,
1 Ofá (7 8 /d .l.6 3b)
1 Ofá (grande) (74/2.11)
no peji. Optei, portanto, pela união que
1 Opá de Ossain (74/2.7) surge quase que naturalmente na convivên­
1 Opá de Ossain (s/número) cia com os objetos no contexto religioso e
1 Opá Ossain (s/número) pelo uso dos termos êmicos, que segundo
1 Penca de balangandãs prateada (s/número) percebo, sintetizam seu significado, valor e
1 Penca de balangandãs, dourada.(s/número) função. Assim, os objetos foram classifica­
1 Penca de Ogum (74/2.1)
dos em: ferros, ferramentas, louças, roupas
1 Penca de Ogum (78/d. Í5.22)
1 Penca de Ogum (com O xóssi) (s/número) e paramentos, contas, hierarquia e instru­
1 Penca de Ogum (s/número) mentos musicais. Todos, entretanto, são
1 Penca de Ogum (s/número) objetos rituais, sagrados, que transitam por

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diferentes regiões (espaciais ou simbólicas) 2 - Ferramentas


de sacralidade conforme o momento ritual ao
qual pertençam. Esta classificação se m os­ São chamadas de ferramentas, todas as
trou funcional e adequada, embora seja insígnias utilizadas pelos orixás durante sua
possível construir várias outras, conforme o presença pública nas festas rituais. São suas
que se queira destacar como princípio insígnias. A ferramenta é um símbolo de identida­
organizativo. de, também, e particulariza o orixá durante suas
danças. A palavra ferramenta, segundo informa­
ções recolhidas em campo, sugere que são
1 - Ferros instrumentos de transmissão de axé dos orixás.
As ferramentas costumam ser fixas na
O povo-de-santo chama de “ferros” todos forma geral, com imensa variação nos detalhes
os objetos que são feitos de metal e que que as particularizam. Um oxê de Xangô, por
compõem os assentamentos dos orixás (o exemplo, será sempre um machado bipene, mas
assentamento é a representação material do pode ser confeccionado de metal branco ou
orixá, o lugar onde sua energia é fixada, vermelho, em madeira, e até mesmo de isopor,
assentada. Fixar o orixá significa “prender sua entalhado, pintado ou não, ter desenhos
energia” numa pedra (otd) e colocá-la num particulares que o identificam como um Xangô
alguidar junto a outros elementos mágicos e particular. Mas jamais um Xangô se apresenta­
louças). Os ferros costumam identificar, para o rá em público, numa festa, sem ele.
fiel, seu orixá, através da particularização de Diferentemente dos ferros, as ferramentas
cada um. Mesmo quando comprados em lojas, podem ser de metal, palha, plástico, pano
fabricados em séries, os objetos são, no coberto por lantejoulas ou outros materiais,
interior dos terreiros, particularizados, colo­ embora, no candomblé, apesar das dificulda­
cando-se uma fitinha, um penduricalho, des crescentes para a manutenção deste
retirando-se algum elemento ou, no limite, padrão, os materiais naturais sejam preferidos.
através da particularidade de cada ritual e
fórmula mágica que os consagra.
Cada assentamento possui um “ferro’ 3 - Louças
diferente a fim de diferenciá-lo e personalizá-lo
como sendo de um orixá particular, nunca Pelo termo genérico “louças” o povo-de-
compartilhado, pois ele tem seus signos, seus santo designa uma série de objetos, sejam eles
símbolos, sua “qualidade” e seu nome. Por feitos de louça de fato, sejam eles feitos de
exemplo, todos os assentamentos de Oxóssi cerâmica ou ainda de madeira ou metal esmal­
possuem um ferro na forma de ofá (arco e tado. São louças os quartilhões de cerâmica,
flecha) de ferro, para indicar que pertence a as quartinhas de louça, os pratos de louça ou
este orixá. Para particularizá-lo, serão acresci­ metal esmaltado, alguidares de cerâmica (ditos
dos símbolos, como as contas azuis de louça, “de barro”), os opons de madeira, as colheres
uma folha particular, um recurvamento do de pau etc. As contas dos orixás, apesar de
metal, uma ponta diferenciada de flecha, um serem geralmente de louça, não estão incluídas
animalzinho de madeira ou louça etc. nesta categoria.
Cada um destes quartilhões (espécie de As louças podem ser “do santo” ou da
vasos de cerâmica) com bacias e alguidares casa e também dos iniciados. Por “louça do
sobre eles, representa um orixá assentado, de santo” compreende-se o conjunto dos assen­
forma particular, para um único indivíduo. tamentos, geralmente quartilhões, como os
Dentro deles, além de água, são colocados vistos na foto a seguir, pratos, alguidares,
pequenos objetos, moedas, búzios, metais, bacias de metal esmaltado.
contas, sangue do sacrifício de animais e A louça da casa é composta pelas bacias e
folhas de plantas rituais específicas para cada alguidares usados nos rituais e a dos iniciados pelos
orixá, compondo a fórmula mágica de assenta­ pratos e canecas utilizados nos períodos de obriga­
mento individual. ções (rituais de iniciação ou renovação da iniciação).

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As roupas de “barracão” (espaço


público dos terreiros, onde acontecem as
festas do culto) das iniciadas costumam ser
brancas, e chamadas de “baiana”, pois é a
cópia dos trajes vestidos pelas baianas dos
fins do século XIX e começo do XX, que
por sua vez se vestiam de branco exatamen­
te por causa de suas ligações com o
candomblé. Os homens vestem-se atual­
mente com calça e camisa branca e em
alguns terreiros mais conservadores, de
temo branco. As casas que fazem a crítica
ao sincretismo dos cultos afro-brasileiros
costumam, por sua vez, optar pelos abadás
coloridos. Compõem os trajes dos iniciados
os ojá-oris (panos em forma de echarpe que
são amarrados como turbantes na cabeça),
as faixas de ebomi (faixas de tecido que os
iniciados usam na cintura depois de recebe­
rem o grau de senioridade), chinelos
brancos e toalhas brancas, no caso das
equedes, para enxugar o suor dos rostos
dos orixás durante as danças. Como se vê,
também o vestuário demarca identidade e
hierarquia, nos menores detalhes.
Os orixás têm roupas especiais que são
Fig. 1 - Assentamento de Oxalá. Pesquisa de campo, usadas nas festas, quando eles incorporam
1998. Rita Amaral. seus filhos, para dançar e distribuir seu axé.
Cada orixá tem suas cores, que se mesclam a
No MAE não existem peças de louça, e o outras conforme seu enredo mítico particular, e
estabelecimento de um Acervo de Cultura que é extremamente variável. No entanto, Oxum
Religiosa Afro- Brasileira deverá incluir tais sempre usará tons de amarelo, referência ao
peças. A proposta de criação deste acervo ouro dos rios, das quais é guardiã. Nada
considera a aquisição destas louças entre impede, contudo, que uma Oxum “do fundo do
outras peças exemplares. rio”, vista verde por sua associação com o limo.
A roupa dos orixás é composta de saiotes
engomados, uma sobressaia colorida, e atacáns
4 - Roupas e Paramentos (tecidos que são amarrados no peito formando
laços atrás), além dos ojás-oris sob os adês
As roupas podem ser divididas em roupas (coroas).
de “ração”, de “barracão” e “roupas de Os adês (coroas), ides (pulseiras), capan­
orixás”. A roupa de “ração” é a usada no gas e pendentes que os orixás usam junto com
cotidiano do terreiro, feita de algodão branco, suas roupas são chamados paramentos. Eles
sem goma, simples e sem enfeites. Os homens podem ser de metal, plástico, tecido rebordado
usam “calça de ração” (amarrada na cintura e seu uso é imprescindível quando os orixás
por um cadarço, como as calças de pijama) e são vestidos para festas, pois denotam a
camiseta, e as mulheres “saia de ração” riqueza e o poder que têm e distribuem.
(longas, franzidas, amarradas na cintura por O MAE não possui roupas em sua coleção,
cadarço, também) e camiseta. Em geral cobre- e um Acervo de Cultura Religiosa Afro-Brasilei­
se a cabeça também com os ojá-oris (panos de ra deveria contar com pelo menos um exemplo
cabeça), enrolados na forma de turbantes. de trajes rituais dos iniciados e dos orixás.

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5 - Contas “asinhas” só podem ser utilizadas por ebomis,


assim como os chinelinhos brancos. Os
As contas de louça (ilekês) são um dos iniciados há menos de 7 anos devem estar
principais objetos do estojo de identidade sempre descalços no terreiro.
de um filho de santo, juntamente com o O MAE possui alguns exemplares de adjás
assentamento (ibá) do orixá. As contas e xeres. Não há, contudo, mocãs, kelês ou
representam o mundo místico a que pertence brajás, um dos principais símbolos da seniori­
o iniciado, e sua combinação numerológica e dade no candomblé.
cromática é a representação material de sua
identidade e a de seu orixá, do qual ele passa
a fazer parte, e vice-versa. As cores das 7 - Instrumentos musicais
contas, lisas ou estampadas, sua distribui­
ção no fio, que sempre deve ser de algodão, São os instrumentos utilizados nos toques
o número de fios etc., indicam ainda suas e festas, que acompanham as cantigas e
ligações com o terreiro, com o pai ou mãe- chamam os orixás. São eles os ilus (atabaques)
de-santo, com o orixá patrono do terreiro, rum, rumpi e lê, os batás, o gã, o agogô,
com outros orixás, seu grau hierárquico, xequerê e o caxixi. Os ilus também são
senioridade etc. Além disso, o principal tocados na umbanda e, nela, muitas vezes um
símbolo iniciático é o kelê, colar pesado, só em lugar de três, como no candomblé. A
amarrado junto ao pescoço, também conheci­ este conjunto unem-se os adjás (sinetas) e os
do no candomblé como “gravata do orixá”, e xeres (chocalhos). Os ilus são considerados
que é usado durante os primeiros meses de vivos, e por isso são sacralizados de modo
iniciação, denotando o caráter de recém- especial, recebendo sacrifícios, numa espécie
iniciado do indivíduo. As contas também de “iniciação” no candomblé. São reverencia­
podem fazer parte dos ibás e junto com elas, dos como entidades, durante as festas,
estão os mocãs e contra-eguns, colares quando os filhos de santo e convidados
feitos em palha da costa, que afastam os tomam sua benção e os reverenciam antes
eguns (espíritos dos mortos). mesmo de reverenciar os líderes da casa.
O M AE possui, na coleção Pierre Verger, Acredita-se que são eles quem chamam os
alguns exemplares de contas de orixás orixás, com sua fala musical. Os demais
(erindiloguns ou endiloguns) e a coleção do instrumentos são seus auxiliares, e também
Registro Sertanejo, ao qual me referirei mais considerados “vivos”, mas menos importan­
tarde, possui outros exemplares, mais raros e tes. Cada instrumento é dedicado a um orixá
antigos (como se fosse filho dele) e nas festas
costumam usar ojás (panos) amarrados na
forma de laços, indicando o orixá ao qual
6 - Objetos de hierarquia “pertencem”. São de uso exclusivamente
masculino e aqueles que os tocam, os alabês,
Os objetos de hierarquia podem pertencer considerados personagens fundam entais do
a qualquer das categorias já citadas, como é o candomblé.
caso dos brajás (contas dos mais velhos, A coleção Pierre Verger/Breziat/Guimarães
ebomis, iniciados com mais de 7 anos), ou dos não possui exemplares de ilus, mas a coleção
adjás (sinetas com 2, 3 ou mais campânulas, Registro Sertanejo, do Setor de Etnologia
conforme o grau do iniciado) e os xeres Brasileira, atualmente em estudo, conta com
(chocalhos de Xangô, que dizem possuir a alguns conjuntos deles, raríssimos, feitos em
capacidade mágica de chamar os orixás nas cerâmica e cobertos com pele animal, de
festas), usados apenas por ebomis, do sexo origem banto, e outros feitos de barril recicla­
masculino, embora venha se tomando comum do ou tronco de árvore escavado, que
seu uso por mulheres, nos terreiros paulista­ merecem ser estudados cuidadosamente e
nos. Entre as roupas temos os ojá-oris (panos expostos, por sua antiguidade e significado
de cabeça) cujas amarrações que terminam em social.

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A Coleção Registro Sertanejo Pública, o que indica que devam ter sido
apreendidas durante o período de repressão
Durante o processo da pesquisa da policial ao culto. Esta coleção é extremamente
coleção Verger/Breziat/Guimarães, proposta valiosa, não apenas por representar aspectos
no projeto de Pós-Doutorado, soube, através múltiplos do culto, como por seu caráter
da Profa. Dra. Marta Salum, do setor de artesanal, constituindo peças únicos. Os
Etnologia Africana do Museu, de uma pequenos ilus de cerâmica, as contas de
“gavetinha” com pequenas pecinhas afro- Iemanjá, feitas em biscuit e pintadas à mão
brasileiras, vindas do Museu Paulista quando com delicadas flores, as espadas de madeira,
da criação do MAE, que ela julgava que os ilus escavados a fogo e formão no tronco
poderiam vir a ser acrescentadas ao estudo. da árvore, cuja pele se amarra ao corpo com
Falei sobre isto com a Profa. Nobue Myazaki, cipó, as guardas de espada feitas com latas
do setor de Etnologia Brasileira, que conse­ industriais recicladas, o xaxará de Omolu,
guiu que a Reserva Técnica fosse aberta para feito com simples taliças unidas pela base
que eu visse estas peças. Logo foi possível num pequeno saquinho de tecido são
constatar a importância delas e sua antigüida­ exemplares de um momento histórico do
de. Regivaldo Dias Leite, técnico da área de culto em São Paulo e testemunhas da exis­
tência de um candomblé organizado que se
Conservação disse-me, então, que havia
rtiuitas outras peças afro-brasileiras mais, pensava não ter existido em São Paulo antes
espalhadas pela Reserva Técnica, todas dos anos 60, mas já apontado por Liana
vindas do Museu Paulista, e que a listagem Trindade em 1991.
das peças se encontrava num caderno, no Nem todas as peças constantes da
setor de Documentação. Conversei então com listagem enviada ao MAE pelo Museu Paulista
a responsável pelo setor de Documentação, foram encontradas. Até o momento foram
Marilucia Botallo, que o encontrou e me catalogadas as peças constantes na tabela ao
entregou. Coincidentemente, quando eu lado (ver Tabela).
consultava este caderno e algumas folhas
soltas com documentação incompleta, Conclusão
conheci a Profa. Dra. Sonia Dorta, que tendo
trabalhado no Museu Paulista, conhecia esta A riqueza e significado histórico, simbóli­
coleção, e que afirmou que havia uma lista­ co, etnográfico e social destas coleções, a
gem que deveria estar ali mesmo no setor de demanda dos grupos que representam, sempre
Documentação, pois fora enviada por ela, inferiorizados diante da cultura hegemônica e a
pessoalmente. Esta listagem, onde constam proposta educativa do MAE, ao qual se
os dados principais das peças, mas de modo integram, parecem compensar o investimento
incompleto, foi encontrada. A partir dela e do Museu na formação de um Acervo de
com a ajuda inestimável de Regivaldo Dias, Cultura Afro-Brasileira ou mesmo de toda uma
foram encontradas 187 das 252 peças listadas, área de Cultura Afro-Brasileira, uma vez que o
datadas do princípio do século, de cultos acervo que a representa não se esgota nos
afro-brasileiros sediados principalmente no objetos de cultura religiosa e nem mesmo
interior de São Paulo. unicamente nos objetos de candomblé. A
Segundo informações contidas nesta Universidade de São Paulo tem produzido
listagem, algumas peças foram levadas ao sistematicamente conhecimento sobre os
Museu Paulista em 1914. Outras em 1938 e grupos afro-brasileiros e um acervo como o
outras ainda em 1943. São originárias de proposto viria a enriquecer em muito o apren­
cultos do interior de São Paulo (Tietê, Pira- dizado na própria USP e se tomar, também,
pora, Araraquara, Jundiaí) e foram doadas ao importante referência para a educação nestas
Museu Paulista pela Secretaria de Segurança áreas.

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Peças do Museu Paulista catalogadas Peças do Museu Paulista catalogadas (cont.)


N° no N° no
Inventário Objeto Inventário Objeto
Geral Geral
RS002 Ferro de Ossanha RS142 Anguaiá de lata
RS011 Imandje de lata RS158 Piteira de taquara e barro
RS016 Xaxará de Omolu RS 166 (*) Chocalho de cobre
RS017 Xaxará de Omolu RS 167 (*) Instrumento de Exu
RS018 Lança de O xosse (lança de ferro) RS 168 Instrumento de Exu
RS028 Guia de Batuque RS 169 Espada de Ferro
RS029 Peça de agogô RS 176 Miniatura de foice
RS030 Peça de agogô RS 177 Cachimbo africano
RS037 Agogô terreiro de macumba RS178 Colar de macumba
RS038 Adjá terreiro de macumba RS 180 (*) Chocalho de contas
RS040 Foicinha de Oxóssi RS 186 Defumador de barro
RS045 Chocalho de lata em forma de meia lua RS 191 Atabaque
RS049 Pequeno cincerro de ferro RS210 Anguaiá, de jongo
RS050 Lança de madeira RS215 Ferramenta de Ossanha
RS051 Espada de Ogum, de ferro RS216 Ferramenta de Ossanha
RS053 Corrente com gancho RS217 Ferramenta de Ossanha
RS054 Espada de Ogum, de ferro RS218 Espada de Ogum (ferro)
RS055 Machadinho de Xangô, madeira RS219 Faca de matança
RS056 Machadinho de Xangô, madeira RS220 Espada de Inhansan
RS057 Machadinho de Xangô, madeira RS221 Ferro de Ogum
RS058 Machadinho de Xangô, madeira RS222 Ferramenta de Ogum
RS059 Espada de Ogum, de madeira RS223 Ferramenta de Ogum
RS063 Espada de Ogum, madeira RS224 Ferramentas várias (7) de Oxoce [Oxóssi]
RS064 Espada de Ogum, madeira RS225 Ferramentas várias de Oxoce [Oxóssi]
RS069 Chocalho de cestaria RS226 Ferramenta de Oxoce [Oxóssi] (8)
RS070 Guaiá de batuque RS227 Ferramentas diversas de Ogum
RS072 Castiçal torneado, madeira (sete pequenas peças)
RS073 Anguaiá de lata RS228 Ferramentas de Ogum (13 pequenas peças)
RS074 Chicote com cabo de madeira RS229 Caraquicê ou caxixi
RS080 (*) Colar de Iemanjá RS230 Caraquicê
RS081 Fio de contas de Oxóssi RS231 Caraquicê
RS082 Colar de Iemanjá RS232 Caraquicê
RS088 Colar de Iemanjá RS234 Peça metal lua crescente, c/ estrelas e sereia
RS090 (*) Rosário de Oxumaré RS235 Comimboque de caçador [Oxóssi]
RS091 Rosário de Oxumaré RS236 Instrumento para dança de africanos [Xere]
RS092 (*) Colar de rongafé [runjebe] RS237 Chocalho de metal [Xere]
RS093 Colar de rongafé [runjebe] RS239 Instrumento p/danças africano [Oxé]
RS094 Colar de rongafé [runjebe] RS240 Atabaque “Lé” de cerâmica
RS095 Colar de rongafé [runjebe] RS241 Atabaque “Lé” de cerâmica
RS 104 Paiá de lata RS242 Atabaque Rum de cerâmica
RS 126 A gogô RS243 Atabaque “Lé” de madeira
RS 137 Adjá RS244 Atabaque “Lé” de madeira

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Universidade de São Paulo. Revista do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 255-270, 2000.

Peças do Museu Paulista catalogadas (cont.) Peças do Museu Paulista catalogadas (cont.)
N°no N° no
Inventário Objeto Inventário Objeto
Geral Geral
RS245 Atabaque “Lé” de madeira RS547 Colar de contas verdes listradas de verme­
lh o
RS246 Atabaque “Lé” de madeira
RS548 Colar de contas azuis
RS 247 Atabaque Rum de madeira
RS549 Colar de miçangas vermelhas e brancas
RS249 Atabaque Rumpi de cerâmica
RS550 Colar de miçangas amarelas
RS349 Peça a duas folhas de ferro
RS551 Colar de contas brancas/avermelhadas/
RS351 M achadinho
verm elhas
RS357 Arpão duplo de ferro
RS552 Colar de contas brancas
RS534 Colar rongafé [runjebe]
RS590 Oito cachimbos de barro
RS535 Colar de Oxum
RS650 Espada de Ogum, madeira
RS536 Colar de Oxalá
Colar de Inhansan RS651 Espada de Ogum, madeira
RS537
Colar de contas de Sta. Bárbara RS652 Espada de Ogum, madeira
RS538
Colar de contas de Inhansan RS653 Espada de Ogum, madeira
RS539
RS540 Colar de contas de Oxum RS654 Espada de Ogum, madeira

RS541 Colar de conta de Oxumaré RS655 Espada de Ogum, madeira

RS542 Colar de contas de Oxumaré RS657 Cordão branco com 3 nós na extrem i­
dade
RS543 Colar de contas de Oxum
RS669 ídolo africano, madeira, mãos no peito
RS544 Colar de contas de Iemanjá
RS670 ídolo africano, madeira, mãos na barriga
RS545 Colar de contas azuis
RS679 Alguidar de estanho
RS546 Colar com 13 grupos de 4 contas brancas
sep/amarela RS698 Figura antropomorfa de ferro [Iemanjá]

AMARAL, R. The ethnographic collection of Afro-Brazilian religious culture at the


Museu de Arqueologia e Etnologia of São Paulo University. Revista do Museu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 255-270, 2000.

ABSTRACT: This article shows the Afro-Brazilian religious culture


collection of MAE, including the Registro Sertanejo collection, now. That
collection has ethnographic and historic importance by it’s chronology and
characteristics. The work claims, also, the building of Afro-Brazilian Culture
Collection, considering it’s multiple dimensions and importance in the national
culture.

UNITERMS: Afro-Brazilian culture - Brazilian culture - Afro-Brazilian


religions - Sacred art - Afro-Brazilian identity - Museology.

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R ecebido p a ra pu blica ção em 27 de outubro de 2000.

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Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, S. Paulo, 10: 271-288, 2000.

MÁSCARAS DE DANÇA TÜKÚNA*

Orlando Sampaio-Silva**

SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de dança Tükúna. Rev. do Museu de Arqueologia e


E tnologia, São Paulo, 10: 271-288, 2000.

RESUMO: O paradigma artístico dos índios Tükúna, do Alto Rio Solimões,


é abordado em um estudo que se realiza no campo da Antropologia Estética. É
tratada a questão da pesquisa tendo por objeto peças de acervo de museu.
São analisadas máscaras rituais Tükúna, que integram as coleções do MAE-
USP, as quais são apresentadas e interpretadas em seus significados simbó­
licos.

UNITERMOS: Arte indígena - Estética pictórica - Máscaras - Ritual -


Simbolismo.

Introdução A estrutura da sociedade Tükúna se


caracteriza por ser do tipo dual, ou seja, é
Os Tükúna se constituem em uma sociedade dividida em metades (moitiés) exogâm icas;1
indígena que vive tradicionalmente em uma estas, por sua vez, subdividem-se em clãs e
região contígua que compreende parte dos sub-clãs, nos quais estão contidas famílias
territórios do Brasil, da Colômbia e do Peru. Suas extensas. Os clãs são patrilineares, isto é,
aldeias se encontram às margens do Rio Amazo- são de descendência unilinear agnática (em
nas-Solimões ou às suas proximidades e em linha paterna). Esta sociedade é também
sítios localizados ao longo de rios afluentes do marcada pela endogamia tribal, em cuja
rio principal e de igarapés seus tributários, organização os casamentos ocorrem entre
naquela região sul-americana. E uma das maiores homens de uma metade com mulheres da
populações tribais existentes no Brasil, constituí­ outra metade. Com base na reciprocidade,
da de mais de vinte mil índios. Falam uma língua são estabelecidas alianças interclãnicas.
isolada (cf. Rodrigues 1986: 93-98) ou “separate Segundo Cardoso de Oliveira (1965: 17), no
language” (cf. Nimuendaju 1948: 713). âmago desta organização social, “o sistema
de parentesco Tükúna é do tipo Dakota
[.....], com terminologia de primos Iroquês
[ ]”.2
(*) Este artigo se insere no projeto de estudo: “O
Senso Estético na Produção de Exemplares Artísticos
de Alguns Povos Indígenas”, em desenvolvim ento no
Museu de Arqueologia e Etnologia-MAE/USP, sob a (1) Com relação a sistemas de organização social dual
responsabilidade do autor. e de clãs, ver Cl. Lévi-Strauss 1982.
(**) Professor Titular de Antropologia, aposentado, (2) Sobre a estrutura da sociedade Tükúna, consultar
da UFPA; pesquisador visitante no MAE/USP. R. Cardoso de Oliveira 1961 e 1965.

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SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de Dança Tükúna. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 271 -
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Nimuendaju (1948: 717) informa que as Em Oro (1978), encontramos algumas


metades em que se estrutura a sociedade informações preciosas sobre a mitologia
Tükúna estão associadas, respectivamente, Tükúna, fruto de sua pesquisa de campo com
com o leste e o oeste, e com base neste autor, esses índios e de atenta revisão bibliográfica.
Cardoso de Oliveira refere que os clãs de leste Assim, é esse autor quem informa que
pertencem a dyo’i e os de oeste a ‘e:pi (1964:
“Não paira dúvida de que os Tükúna
69), sendo dyo’i e ‘e:pi heróis culturais Tükúna. acreditam na existência de um Mundo Superior e
Segundo Nimuendaju (op. cit.: 717), uma das um Mundo Inferior. Para eles, o Mundo Superior
metades tem quinze “sibs” patrilineares com não é a morada dos astros (estes estão abaixo
nomes de plantas e a outra metade congrega deles), e se divide em três partes: a primeira é
habitada por seres semelhantes aos da terra,
vinte e uma “sibs” com nomes de pássaros.
vivendo em condições diferentes; a segunda é o
Cardoso de Oliveira (1965: 9) oferece exemplos lugar da habitação de “ta-e” deusa Tükúna - e das
de clãs e sub-clãs Tükúna, conforme a seguir:3 almas dos mortos; e a última pode ser a habita­
ção do “rei dos urubus”, os quais são capazes de
M e t a d e P la n t a s se transformar em pássaros, mas não podem
C lãs S u b -C lãs retornar à terra. Nenhuma pessoa viva pode
Auaí auaí grande entrar no Mundo Superior, nem mesm o o xamã
auaí pequeno e jenipapo enquanto sonha.
jenipapo do igapó
“No Mundo Inferior habitam os dem ônios.
Buriti buriti
buriti fino Eles são os seres mais antigos do mundo, se bem
que não imortais. São representados em máscaras
Saúva açaí
estranhas e exóticas. “ (p. 74)
saúva ( ‘nai(n)yeè)
saúva (tèku) No entanto, segundo esse autor (ibidem:
Onça seringarana 76), o herói cultural mais importante nos mitos
pau mulato Tükúna é dyo’i, o criador da humanidade, um
acapu
caranã ser sobrenatural “inteligente, bom e compreen­
maracajá sivo”, ao contrário de seu irmão gêmeo ‘e:pi,
que, segundo Nimuendaju (1952: 121-2, apud
Oro 1978: 75), é bobo, enganador e mentiroso,
M e t a d e Aves
C lãs S u b -C lãs
qualidades negativas às quais Oro acrescenta
ser ele irrascível e mau (op. cit.: 76). De confor­
Arara canindé
verm elha
midade com Nimuendaju (1948: 724), “The
maracaná most outstanding character in Tucuna religion
maracanã grande is Dyaí [dyo’í], the culture hero, who made
maracaná pequeno people, established ali tribal laws and customs,
Mutum mutum cavalo and gave mankind the most important elements
urumutum
of material culture.” Para este mesmo autor
Japu japu (op. cit.: 724), dyo’í v ive na terra do sol
japihim
nascente, abaixo do mar (“Dyaí going east and
T u can o tucano Epi west”).4
Manguari manguari
jaburu
tuyuyu
Galinha galinha
opta (Oliveira Filho) por referir-se a esses grupos
Urubu Rei urubu-rei como nações, conform e os denominam os Tükúna
Gavião Real gavião-real em língua portuguesa (1988: 88-9).
(4) Para os Tükúna, certas árvores da floresta têm
espírito, com o nos exem plos referidos por Nim uen­
daju (apud Oro, op. cit., 1978: 83): a samaumeira , a
(3) Oliveira Filho diz que Nimuendaju e Cardoso de açacu, a ucuuba, entre outras. O espírito da samau­
O liveira “não hesitaram em caracterizá-los [refere-se meira seria o “dem ônio da floresta” referido em
aos grandes grupos sociais Tükúna] com o clãs”, mas língua geral como caapora.

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Porém, uma informação original e surpre­ de subordinação nos seringais a que estiveram
endente referente à mitologia Tükúna se submetidos e têm grande parte de suas terras
encontra em Alveano (1943: 19), segundo a regularizadas e sob seu domínio.
qual esses índios acreditariam em dois princí­
pios, a saber, o do bem, encarnado em Tupã, e
o do mal, presente em Jurupari. Segundo A “Festa da Moça Nova”
nossa interpretação, Tupã e Jurupari são
termos que sugerem a idéia de uma crença Os Tükúna, a par das fortes influências
desses índios paralela à sua mitologia tradicio­ culturais exógenas que se têm exercido sobre
nal, ou, então, a possibilidade de eles cor­ sua sociedade - como o último surto messiâ­
responderem aos heróis culturais d yo ’i e e:pi nico registrado nessa tribo a partir de 1972 - ,5
que, no caso, seriam eles mesmos dissimula­ encontram nos mitos e rituais tradicionais
dos sob essas outras denominações, em uma sustentáculos para a preservação de sua vida
adaptação ou arranjo cultural. Estas entidades social tribal e o fortalecimento de sua identida­
sobrenaturais (Tupã e Jurupari), com suas de étnica. As cerimônias mais marcantes dos
denominações em língua Tupi, corresponde­ Tükúna são ritos de iniciação e de passagem,
riam a Deus e ao diabo (a oposição binária do como a nominação das crianças e o ritual
bem e do mal) da teologia cristã e foram referente à puberdade das meninas, regional­
levados também a sociedades indígenas não mente conhecida como “festa da moça nova”.
falantes de línguas Tupi (como os Tükúna, que Estes rituais se realizam em períodos de
falam uma língua isolada) em decorrência de abundância de peixes, oportunidades em que
contatos intertribais ou da ação catequética se reúnem parentes e convidados, em uma
católica ao longo da história. No caso dos confraternização de caráter mítico-religioso,
Tükúna, certamente esta última hipótese com a ocorrência de danças, consumo de
corresponde mais aos fatos históricos relacio­ alimentos e de bebidas (o pajuaru e a caiçu-
nados com este povo, de vez que os Tükúna ma, ambas preparadas da mandioca). A “festa
não têm vizinhos próximos que falem língua da moça nova” é também conhecida pela
filiada ao tronco Tupi, mas têm uma longa denominação “festa da pelação”, porque a
história de contatos com a sociedade inclusiva. jovem reclusa, além de submeter-se a restri­
Oliveira Filho (1988: 21) se reporta a que ções alimentares, tem seus cabelos extirpados.
“Apesar de três séculos de contato com os Das danças participam os personagens
brancos, os Tucuna mantêm viva a sua língua, m ascarados.
sendo raros os casos de índios ou mestiços No período de reclusão atinente ao evento
que, criados por civilizados, não falam a língua da puberdade, a jovem Tükúna passa por
nativa”. Nimuendaju (1948: 713) refere que os experiências místicas extraordinárias, tais como
Tükúna foram mencionados pela primeira vez o contato com seres sobrenaturais. A propósi­
por Cristóbal d ’Acuña em 1641, e Cardoso de to destes acontecimentos, Nimuendaju revela:
Oliveira (1964: 43) informa que a “conjunção
“At her first menstruation, a girl is secluded
interétnica” em que têm estado envolvidos in the house loft. This is not so cruel as certain
esses índios teve início “por volta do século travelers (Bates 1863, 2: 406) proclaim . Every
XVII” e foi “incrementada ao longo dos girl submits w illingly, convinced that her peculiar
séculos XVIII e XIX”. Este último autor condition requires it and that its om ission would
(ibidem) analisa cuidadosamente a inserção
desses índios na economia da produção da
borracha desde o século XIX, em situação (5) A sociedade dos índios Tükúna, dadas suas
assimétrica no confronto com a sociedade características culturais endógenas e às circunstâncias
nacional, como mão-de-obra explorada nos históricas de seus contatos com a sociedade inclusiva,
tem sido campo fértil para a erupção de surtos
seringais, em muitos casos, no interior das
m essiânicos. A propósito dessas m anifestações
terras indígenas, cujo processo caracteriza m ísticas, consultar: Curt Nimuendaju, op. cit. 1948;
como sendo de “fricção interétnica”. Presente­ Maurício Vinhas de Queiroz 1963; Ary Pedro Oro,
mente, os Tükúna estão livres desta situação op. cit. 1978, e Orlando Sam paio-Silva 1997.

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SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de Dança Tükúna. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 271-
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be dangerous, as she is surrounded by invisible Muito embora já tenhamos estado por


‘im m ortals’ and dem ons, who seek contact with mais de uma vez em visita de estudo aos
her and at times cause extraordinary supernatural
ex p erien ces.” (1948: 718)
índios Tükúna,6 não fomos coletores das
peças ora estudadas, não assistimos o proces­
Neste cenário de forte misticismo, tem lugar so de sua produção e de seu uso, nem tivemos
o ritual de passagem da jovem Tükúna da contato direto com os pesquisadores coletores
infância para a adolescência, fase esta na qual dessas máscaras, sendo estes já falecidos. As
lhe será permitido o casamento e, em conseqüên­ máscaras que estudamos são peças ritualís­
cia, a maternidade. ticas que se encontram depositadas no
Oro (1978: 65-6), reportando-se a este rito Museu, à disposição dos pesquisadores,
de passagem e tendo estudado o último surto havendo raras informações sobre as mesmas,
messiânico entre os Tükúna, informa (notar e, em geral, quando as há, nas fichas, são
que se trata de um texto publicado em 1978): referentes aos nomes dos coletores e anos da
“E lamentável que esse ritual de passagem - o coleta e de sua entrada na instituição e, em
principal dos Tükúna - esteja em vias de poucos casos, uma frase (ou pouco mais)
extinção devido especialmente ao Movimento objetiva identificar ou descrever o objeto.
da Santa Cruz, porquanto o seu fundador Nossa abordagem, neste primeiro momen­
proibiu a realização desta festa. Em vista disso, to, caracteriza-se por ser um trabalho herme­
nos dias atuais apenas uma comunidade nêutico a partir da observação de doze másca­
Tükúna realiza a ‘Festa da Moça-Nova’: Belém ras, objetivando sua descrição e sua compre­
do Solimões, em seu lado Católico.” ensão, mediante a análise das figuras gráficas
Porém, temos informação de que aos existentes nas mesmas, as quais interpretamos
poucos índios Tükúna que haviam se converti­ na tentativa de desvendar os significados
do ao Movimento da Santa Cruz estão retor­ simbólicos destas expressões da arte pictórica
nando às manifestações tradicionais da cultura Tükúna; desvelar os seus significados, mas
Tükúna, inclusive como forma de fortalecimen­ também percorrer descritiva e intuitivamente
to de sua identidade étnica em face da socie­ as manifestações do poder criador e a capaci­
dade inclusiva com a qual suas relações, em dade estética destes artistas indígenas anôni­
muitos momentos, mesmo recentes, têm sido mos, que engendraram, mediante formas e
conflitivas. “Anos depois, em 1985 [quando cores, a crônica gráfica do simbolismo de seus
estivemos com esses índios pela última vez], mitos e de sua inserção social, ao participarem
estando os Tükúna em pleno processo de seu ritual maior. O paradigma artístico dos
restaurador de sua consciência étnica, havia índios Tükúna é, assim, abordado em um
ocorrido já um refluxo quantitativo e qualitati­ estudo que se realiza no campo da Antropolo­
vo quanto aos adeptos da Santa Cruz. Um gia Estética.
número expressivo de índios, em diferentes Neste artigo apresentamos nossos
grupos locais que visitamos, retomavam a registros relativos a algumas destas máscaras.
consciência de sua identidade étnica e valori­ O número de peças estudadas em nosso
zavam sua condição indígena e Tükúna, projeto e, em particular, o que é apresentado
reinserindo-se em sua cultura” (Sampaio-Silva neste artigo, ainda não nos permite proceder a
1997:296). uma classificação tipológica do conjunto de

A pesquisa
(6) N ossas estadas em aldeias dos índios Tükúna,
muito embora objetivassem o estudo de situações de
Desde o mês de maio de 1999, estamos contato das comunidades indígenas visitadas com a
desenvolvendo um projeto de estudo de sociedade inclusiva - cf. os trabalhos de nossa autoria
publicados em 1985/86 e op. cit. 1997 - , perm iti­
máscaras ritualísticas dos índios Tükúna ram-nos a observação de máscaras, inclusive uma
existentes no acervo do Museu de Arqueolo­ máscara para a cabeça sendo confeccionada, e outras
gia e Etnologia-MAE, da Universidade de São peças produzidas por esses índios, esculpidas e/ou
Paulo. pintadas.

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SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de Dança Tükúna. Re v. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 271-
288, 2000.

máscaras Tükúna constante do acervo do ocorre na sociedade Tükúna como um todo.


MAE ou de elaborar generalizações ou Desta forma, apesar de Nimuendaju ter
perceber padrões ou modelos da arte pictórica referido que as máscaras não são associadas
dos índios Tükúna, tarefas cujas possibilida­ com as pessoas individualmente, com a
des de concretização serão avaliadas ao longo sociedade ou outros grupos (1948: 719),
do tempo, no evolver do trabalho. No ponto registram-se, sim, padronizações de desenhos
em que se encontram nossos estudos, ainda que significam caras, que permitem, em
nos atemos nos limites das descrições e diversos casos, a qualquer Tükúna identificar
interpretações de objetos individuados. uma relação entre a máscara (e o mascarado) e
Porém, na evolução dos estudos, mesmo nesta um clã ou sub-clã. Estando presente esta
fase, avaliamos a ocorrência de algum padrão codificação de signos gráficos ao nível das
ou de padrões de estilos de manufatura ou de representações na sociedade, cada manufator
símbolos vinculados a grupos sociais - clãs, que prepara sua máscara, decidindo fazê-lo,
sub-clãs, grupos de idade, grupos de sexo etc. pode registrar nela seu vínculo ciánico
-, a par de a análise se concentrar prioritaria­ segundo aquela padronização simbólica,
mente nas expressões estilísticas individuais expressando-se graficamente, porém, segun­
presentes nas obras e em seus significados do seu estilo individual.
etnográficos. É certo que, como nos informa Em nosso estudo, debruçamo-nos sobre
Gruber (1992), “A confecção e o uso das estes objetos com o intuito de buscar, media­
máscaras são de domínio dos homens” (p. 258) tizado pela análise formal e dos conteúdos
ou “Os especialistas reconhecidos na arte de simbólicos, estabelecer relacionamentos entre
pintar o tururi são os homens, em sua maioria estes exemplares da cultura material e o cenário
jovens ou de meia-idade” (p. 255); todavia, cultural mais amplo subjacente na sociedade. É
pelo menos aparentemente e até o ponto que como diz Newton (1987: 17): “atrás do isola­
nossos estudos nos permitem verificar, os mento da cultura material para fins analíticos,
produtores não manufaturam seus trabalhos há o objetivo maior de identificar as relações
segundo padrões, estilos ou modos de fazer, entre os domínios material e não-material da
que seriam expressões de seu pertencimento a cultura”.
um grupo social formal na sociedade, mas, sim, As máscaras quase sempre apresentam um
como uma concepção e um labor individuais. colorido marcante decorrente da pintura com
Há alguma padronização relacionada com a tintas de origem vegetal. Informa Gruber (1992:
simbolização do pertencimento do autor da 256):
máscara a um clã ou sub-clã, podendo repor­ “As cores mais correntes são o azul das
tar-se à identidade ciánica do autor da pintu- folhas do bure (Calathea loeseneri), o amarelo
ra-usuário participante do ritual. Pinturas de do rizoma da açafroa (D ieffenbachia humulis), o
algumas faces de máscaras estudadas têm vermelho da casca do pau-brasil, o azul-escuro ou
roxo do fruto da pacova, o verde das folhas da
clara relação com uma identificação ciánica, pupunheira (Gulielm a esp ecio sa) e o verm elho
fato que foi constatado por Gruber (ibidem: ou laranja das sementes de urucum. Outrossim,
258-9), que registrou entre os Tükúna pinturas podem ser criadas novas m atizes, misturando o
faciais que simbolizam “nações” ou “clãs” pigmento da pacova com ferro ou frutas cítricas,
pertencentes às metades em que se estrutura o primeiro para escurecer a cor e as outras para
torná-la mais clara e brilhante.”
esta sociedade. Referente à Metade Plantas, a
autora citada teve a oportunidade de verificar O colorido e os diferentes matizes atribuem
pinturas faciais relativas aos clãs (ou sub-clãs) muita vida e intensidade policrômica às
buriti, jenipapo, saúva, onça e avaí, e no que criações pictóricas Tükúna, nas em que se
tange à Metade Aves, desenhos de faces registra o mimetismo com a natureza, assim
correspondentes aos clãs japó, tucano, como nas de cunho abstrato, ou ainda nas de
galinha, maguari, arara, urubu-rei, gavião caráter marcadamente mítico.
real e mutum (idem, ibidem). Desenhos faciais Pesquisar em um acervo de museu, se por
como tais, aparecem em caras esculpidas e/ou um lado - como no presente caso não
pintadas nas máscaras. Esta padronização propicia a possibilidade do contato direto com

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os artistas indígenas e - também como na dante, como árvores e flores,7 ou, objetos de
pesquisa ora relatada - com os pesquisadores- seu uso cotidiano, como, p. ex., um facão ou
coletores dos objetos estudados, que poderi­ uma embarcação etc. Há máscaras inteiriças,
am, aqueles e estes dar informações e explica­ recobrindo o usuário-dançarino da cabeça aos
ções sobre, p. ex., os significados de desenhos pés, ou compostas de duas peças, separadas,
e pinturas, por outro lado, o contato direto e mas articuladas entre si, uma para a cabeça e a
exclusivo do hermeneuta com cada objeto de outra para o corpo. As caras são pintadas no
estudo em situação de acervo de museu, pede alto das máscaras inteiriças ou em máscaras
deste observador, como um desafio, o uso separadas para as cabeças ou são esculpidas
intenso da imaginação e da intuição na em madeira e pintadas e agregadas àquelas
formulação de hipóteses, situação que instiga coberturas de líber para as cabeças. As
a sua capacidade interpretativa e explicativa. A diferentes formas das máscaras, em face de
mediação de trabalhos publicados de autoria seus significados simbólicos, recebem denomi­
de outros pesquisadores que também estive­ nações, tais como, cf. nossa constatação
ram no campo estudando a cultura e a socieda­ pessoal e de diferentes pesquisadores cujos
de dos índios Tükúna propiciou-nos um pano textos estamos consultando na elaboração
de fundo de dados empíricos e elementos deste artigo: mãe do vento (o ’ma), pai do
etnológico-etnográficos que se tornaram vento, jurupari, maguari, macaco, onça e
indispensáveis ao desenvolvimento de nosso outras denominações.
estudo. A perspectiva que objetiva a compre­ A seguir, exporemos os resultados de
ensão do significado simbólico das máscaras nossa observação referente a quatro exempla­
Tükúnas estudadas, na complexidade de suas res de máscaras Tükúna, que estudamos no
formas e combinações de cores, isto é, no desenvolvimento do projeto de estudo em
conjunto da arte gráfica nelas contida, orien­ andamento. No início de cada explanação
tou o desenvolvimento de nosso estudo e a específica, registraremos em caracteres itálicos
formulação dos textos explicativos particulares as anotações constantes das fichas correspon­
a cada uma, conforme a seguir. dentes às peças existentes no acervo do MAE.

Máscara N° 1
As máscaras R G : 2836
O bjeto: M áscara de entrecasca (M ávi)
C oleção: Curt Nim uendaju
Meses antes da festa da moça nova, os
Grupo étnico: Tukuna - A lto Solim ões
convidados a participar do ritual iniciam a O bservação: P erm utado, vindo do M useu Em ílio
preparação de suas máscaras. Estas são G o eld i
fabricadas de entrecasca - líber - de certas Ano: 1942.
espécies de árvores (cf. Gruber 1992: certas
espécies de Ficus ou “tururi”, como é deno­ Descrição
minado regionalmente: 255, ou Ficus radula, - Altura: l,90m
Poulsenia armata e outras, idem: 256; cf. - Largura máxima: 0,56m
Nimuendaju: Ficus sp. 1948: 719, e Frei Alvia-
no se refere simplesmente aos tururys, “tape­ Trata-se de uma máscara inteiriça fabricada
tes que fazem com uma casca de árvore”, 1943: de líber de árvore destinada a encobrir a
14). As máscaras, por um lado, por sua nature­ cabeça e o corpo de uma pessoa adulta.
za intrínseca, têm por finalidade tomar anôni­
ma a identidade do seu usuário, e, por outro
lado, têm a função de simbolizar um clã ou
(7) Harald Schultz (1962: 24) informa que “A ctually
sub-clã Tükúna e/ou entidades demoníacas,
the tree represents the embodiment o f all the evil
espíritos maléficos da natureza, “fantastic spirits o f the forest, but as a mask it does not seem to
animais” (cf. Nimuendaju 1948: 719), ou, ainda, possess all these evil characteristics, for like all the
servem ao senso estético do manufator para other masked figures, it is there to add jollification to
representar exemplares da natureza circun­ the feast and to amuse the guests”.

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No alto da cabeça, registra-se um penacho abaixo da parte que se destina a cobrir os


confeccionado de casca de cipó, o qual está ombros, duas aberturas, uma de cada lado,
costurado a um elmo ou chapéu fabricado do destinadas às passagens dos braços do
mesmo material do restante da máscara à qual dançarino-usuário.
está costurado. Na linha circular desta junção A frente e o dorso da máscara apresentam
há um franjado formado de um material flexível concepções gráficas com evidente caráter
proveniente de casca de árvore. Este franjado, simbólico. São figuras estáticas, que abrangem
que circunda toda a máscara, aí se encontra grandes extensões de cada face e ocupam de
provavelmente com a função de cabelo, pois forma simétrica os espaços em tomo de pontos
está localizado logo abaixo do elmo e acima do centrais presentes, porém não visíveis. Os
desenho de uma face. Na extremidade mais desenhos se encontram sobre um fundo que
baixa do corpo da máscara encontra-se tem a cor amarelada natural da entrecasca de
costurada, circundando toda a saia, uma franja árvore.
fabricada também de casca vegetal macerada e Não se trata esta concepção do manufator
desfiada , o mesmo material de que se constitui Tükúna de uma manifestação de arte imitativa
o cabelo. A máscara também apresenta, logo da natureza; os desenhos não são miméticos e,

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em conseqüência, a inventividade do artista ao cima abaixo e 0,10m de largura na metade da


criar estas figuras simbólicas provocam o figura, onde ela tem a maior abertura. As
observador, que é instigado e induzido ao formas dentadas existentes ao longo deste
estabelecimento de hipóteses interpretativas, desenho têm 0,03m de altura em média.
em uma polissemia hermenêutica.
A máscara, em toda sua extensão, tem O dorso da máscara
l,90m de altura, incluindo o elmo com o
penacho e o babado ou franja que se localiza O dorso apresenta um conjunto pictórico
na extremidade inferior da saia. A largura em tinta preta, que é constituído de formas
máxima da vestimenta encontra-se nesta barra compostas, com figuras que podem levar o
da saia, ou seja, 0,56m; a cintura mede 0,5 lm; a hermeneuta a diferentes interpretações. São
cabeça como um todo mede 0,3lm de largura, e duas imagens, que se contrapõem: duas faixas,
o elmo, 0,05m em sua extremidade mais alta, na com cerca de 0,0lm de largura cada, partem do
parte de onde sai o penacho, e 0,18m na alto das costas da máscara de pontos opostos
intersecção com a cabeça. situados próximos aos ombros, descem ao
longo do disfarce em linhas curvas, que se
A frente da máscara aproximam uma da outra sem se tocar, vindo a
afastar-se novamente seguindo em direções
Abaixo dos prováveis cabelos, encontra- opostas para a parte mais baixa na saia. Estas
se desenhado um rosto possivelmente huma­ faixas têm a forma côncava-convexa e são
no. Este é constituído de um círculo pintado dentadas externamente, ou seja, em suas
com tinta preta, medindo 0,13m de diâmetro; partes convexas, com dentes ou espinhos que
dois orifícios se constituem nos olhos, haven­ medem 0,015m em média. Este conjunto
do sobre os mesmos pequenas sobrancelhas imagético pode também simbolizar uma boca
combinadas com longos cilios. A partir destes imensa, semicerrada, significando as partes em
descem duas linhas que se encontram um oposição dois lábios que apenas se aproxi­
pouco abaixo formando o nariz. Um terceiro mam. Porém, a forma côncava-convexa que os
orifício, situado abaixo do nariz, tem a função dois desenhos do conjunto apresentam pode
de boca. O círculo que desenha o contorno do também sugerir ao observador imagens de
rosto não é fechado. Onde seria o queixo, a barcos, que têm suas quilhas muito próximas e
linha do círculo encontra duas linhas paralelas que se opõem uma a outra. As quilhas denta­
de cada lado, desenhadas em tinta preta, as das poderiam ser formadas por duas cobras,
quais descem da ponta do nariz, com a forma de cujas escamas estivessem eriçadas ou em
duas faixas estreitas, que, transcendendo o forma de espinhos. Na hipótese de essa
círculo constitutivo da cara, distanciam-se entre representação estar presente no imaginário e
si, percorrem quase a totalidade do corpo da na inventividade do artista indígena, estas
máscara até se encontrarem novamente na saia, figuras de barcos assim concebidas dariam à
configurando uma forma que pode lembrar criação gráfica um caráter fantástico na
(conforme a imaginação pode supor) uma simbologia dos barcos formados por cobras
grande lâmina, ou um peixe, ou, mais provavel­ com grandes escamas eriçadas e pontiagudas.
mente, uma grande boca que se abre a partir da A idéia da presença de cobras e espinhos na
cara, descendo corpo abaixo. Ao longo da concepção artística de um índio Tükúna é
figura, registram-se, externamente, formas, que coerente com a concretude da utilização
podem sugerir a configuração de espinhos ou mágica pelos xamãs dessa sociedade de
dentes, ou escamas eriçadas. O conjunto da espinhos e cobras nas práticas da feitiçaria.
imagem pode sugerir outras idéias, tais como a Exatamente na metade das formas curvas
de ser uma grande serra, ou de tratar-se de de cada faixa, encontram-se duas figuras em
signos de seres da natureza envolvente, tais posições divergentes, ou seja, voltadas para
como uma imensa larva, ou um ortóptero... um lado e para o outro em direção às partes
O grande desenho que se alonga da cara laterais da veste. Estes desenhos têm a forma
até a parte inferior da saia apresenta 0,73m de aparente de remos ou de colheres. Sendo estes

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índios navegadores, remos integram seu Máscara N° 2


cotidiano, interpretação que seria coerente R .G .: 592 3
com a idéia de barcos antes referida. Estando O bjeto: “Vestido de entrecasca que correspon de à
há longo tempo em contato com o mundo dos fe sta do chaací"
brancos, eles conhecem e eventualmente D atas: C oletada: 1949
E n trada: 1950
utilizam colheres, objetos que, por sua função
C olecion ador: C om pra da Sra. Dra. Wanda Hanke
no ato de alimentar-se, vinculam-se à boca. Este
Grupo étnico: Tukuna - A lto Rio Solim ões, A m azonas
conjunto pictórico, formado de duas grandes
imagens rigorosamente semelhantes entre si,
Descrição
que estão frente a frente e em oposição, é,
portanto, suscetível de diferentes interpreta­ - Altura - total: l,4 2 m
- Corpo da máscara sem a franja: l,14m
ções sobre seus significados simbólicos. - Franja: 0,28m
Cada faixa tem 0,56m de comprimento e as - Largura - no extremo mais alto da máscara
figuras centrais - remos ou colheres (?) -, (p escoço ou colarinho): 0,52m
0,18m de extensão. - Na cintura: 0,57m
- Na costura da saia com a franja: 0,59m

Comentários finais A peça em estudo é uma máscara ou


vestimenta corporal utilizada ritualmente na
Uma possível interpretação do desenho da comunidade indígena Tükúna por ocasião da
parte frontal da máscara é que a figura apre­ “Festa da Moça Nova”. Está ausente a parte
sentada é, provavelmente, uma simbolização referente à cabeça da máscara. A peça é
mítica, com o corpo zoomorfo - forma de peixe composta de uma porção mais alta com a
ou de outro animal - e a cara com característi­ função de pescoço ou gola, o corpo e, na parte
cas fortemente antropomórficas. Segundo esta mais baixa, uma franja. O limite entre a primeira
compreensão, a concepção artística do autor e a segunda partes é marcado pela ocorrência
indígena virtualmente objetivaria a expressão de um barbante, provavelmente confeccionado
estética de uma figura bipartida, que poderia de palha da palmeira buriti (Mauritia vinifera),
simbolizar um ser que pertence ao mesmo que, enfiado através de orifícios em tomo de
tempo ao mundo dos homens e ao mundo toda a máscara, serve para ajustar a vestimenta
animal, ao mundo da cultura e ao mundo da sobre o ombro do usuário. Se repuxado o
natureza, ao mundo concreto e ao universo barbante, surge no alto da máscara um franzido
mítico. Porém, esta mesma figura pode ter na forma de largas dobras, que ajustam esta
outra interpretação à qual atribuímos maior parte da peça sobre os ombros, na forma de
ênfase em face das demais: ao invés de a pescoço ou gola. A franja, localizada na parte
figura que desce da cara e se expande ao mais baixa da máscara, constitui-se de dupla
longo da máscara representar um corpo camada de fibras vegetais, sendo uma de
zoomórfico, ser ela mesma uma extensão da entrecasca de árvore, o mesmo material do
própria cara, simbolizando a grande boca restante do corpo da vestimenta, e a outra
entreaberta uma figura demoníaca. As formas formada de tiras de casca de árvore macerada,
pontiagudas, nesta hipótese, seriam dentes. estando esta sobreposta à primeira, sendo
Esta interpretação é coerente com a do conjun­ ambas costuradas à saia da máscara.
to figurai do dorso da máscara, vista como Na parte central do corpo da vestimenta
uma enorme boca semicerrada. Segundo esta encontra-se um desenho colorido, que circunda
compreensão hermenêutica, os dois blocos de toda a máscara, ocupando um espaço que vai
concepções gráficas, o da face frontal e o da desde o peito até próximo do limite inferior da
face dorsal, complementar-se-iam, constituin­ saia. Esta concepção pictórica contínua e única
do uma única representação mítica, um ser sugere a idéia de que a peça vegetal foi pintada
único de dupla face, muito provavelmente estando ainda aberta, ou seja, antes de ser
simbolizando Jurupari (ou e:pi), entidade procedida a costura lateral. Esta, de cima abaixo,
maligna, que vive no Mundo Inferior. foi processada com um barbante provavelmente

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de palha da palmeira buriti. A máscara - com o Percebe-se que a pintura total existente na
pescoço ou gola - é formada de uma lâmina de máscara foi executada na peça de entrecasca
líber com 1,16m de largura em média (a lâmina aberta, ou seja, antes de ser a mesma costura­
aberta apresentaria esta dimensão). da em uma de suas laterais, tal é a continuida­
A máscara, não contendo cabeça, não de das linhas e das formas na passagem de
apresenta outros indícios claros do que uma para a outra face.
poderiam ser indicadores da parte da frente e
da parte do dorso. Contém apenas em um dos
lados uma abertura para a passagem de um dos Aspectos estéticos
braço do usuário-dançarino. Como o grande Interpretações
desenho é mais amplo em uma das faces da
vestimenta e se combinamos este dado com a A referida pintura é composta de uma faixa
localização da passagem para o braço, que se com 0,08m de largura, que circunda toda a
encontra à direita desta face, pode-se supor vestimenta na altura da cintura, como uma
que esta seja a parte frontal da máscara. larga cinta colorida. Tomando-se esta faixa

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como eixo central, nota-se que se desenvolvem Máscara N° 3


desenhos, ora em formas geométricas, ora R .G .: 13.1
abstratos, que se distribuem acima e abaixo da N om e da peça: "Manto e n tre c a sc a ”
faixa. Na parte de cima, em um dos lados da Origem : C oleção “P. A ir o s a ”
G rupo étnico: Ticuna
máscara, encontra-se desenhada uma grande Coletor: Frei Fidelis A lviano
estrela que estaria semi-encoberta pela faixa, D o a d o r ou ven dedor: C oleção P aixão
que deixa aparecer apenas seis de suas oito C on dições e restauração: 6/83 - danificado - cores
pontas presumíveis. Esta representação firm e s
pictórica de um astro celeste pode simbolizar o D escrição: M anto fe ito c / fib ra de Caxingubeira
M aterial: L íber (entrecasca de árvore)
sol, pois dyo’i, o mais importante herói cultural
Tükúna, vive na terra do sol nascente.8 O Descrição
desenho, em seu conjunto, é formado em quase
- Altura: l,2 5 m
a sua totalidade de linhas retas, que constituem
- Largura: l,0 8 m
espaços geometricamente concebidos, os quais
estão total ou parcialmente coloridos, alguns
E provável que esta peça, que está fichada
com a cor preta, outros com a amarela e ainda
como “manto”, em verdade, se destinasse à
outros com a cor vermelha. Os espaços colori­
função de máscara corporal. A peça é inteiriça e
dos têm formas triangulares no interior da faixa,
se encontra sem cabeça; estando sem a costura
e formas retangulares abaixo da faixa, sendo
lateral, ela se apresenta aberta. O indício mais
alguns retângulos semi-coloridos. Registram-se
forte de que se trata de uma máscara para
também duas pontas da estrela que estão
encobrir o corpo e não uma peça para ser usada
coloridas. Os demais espaços se apresentam na
descerrada está na existência de uma abertura
cor amarelada natural do material constitutivo
que, pela localização, teria a finalidade de
da máscara, a entrecasca de árvore. Todas as
passagem para um dos braços do dançarino-
linhas dos contornos das formas desenhadas
usuário, conforme se registra normalmente nas
são em preto. A sensibilidade do pintor Tükúna máscaras rituais Tükúna. Esta abertura se
promoveu a transposição de espaços geo­
encontra na parte superior da peça exatamente
métricos para a tela, em abstrações formais, que
onde ela se divide ao meio no sentido vertical,
se tocam.
separando as partes que seriam a frente e o
As diversas formas coloridas se opõem dorso da máscara. Estas partes são marcadas de
simetricamente formando um conjunto pictóri­ maneira muito forte pela presença de dois
co harmonioso. As diferentes cores se comple­ conjuntos pictóricos, que estariam claramente
mentam na ocupação dos espaços e se em cada face, decorando-as. Poder-se-ia dizer
contrapõem entre si, formando uma pintura que esta peça é uma máscara inacabada, de vez
complexa e de forte caráter decorativo. Em um que está faltando a costura lateral que a fecharia
dos lados, abaixo da faixa central, registram-se em tomo do corpo do usuário. Assim, a peça
formas abstratas em suas linhas que se sugere a idéia de que ela foi pintada e foi feita a
entrecortam em delicada concepção decorativa abertura para a passagem do braço do dançari­
sem conteúdo simbólico aparente. A faixa com no, mas o manufator não concluiu o trabalho
seus complementos acima e abaixo, a estrela, realizando a costura lateral. A partir desta
os triângulos, os losangos e as formas abstra­ compreensão, identifica-se a verticalidade da
tas se constituem em uma idéia pictórica, que peça, cuja parte de cima é a em que se encontra
contém uma beleza singela e chocante em sua a abertura para a passagem do braço. Assim, o
estática. No evento pictórico, o artista indíge­ objeto, se estivesse fechado, teria altura (cf.
na refletiu sobre a natureza, que se evidencia registro acima) e largura, medindo 0,54m no
estilizada na estrela e nas formas triangulares- sentido horizontal.
losangulares, possíveis símbolos de peixes. Corroborando a idéia da verticalidade da
peça, há de referir-se à existência, em uma das
faces, do desenho estilizado de um pássaro,
(8) Sobre os heróis culturais Tükúna, cf. C. Nimuen- cuja cabeça presumivelmente está para cima e
daju, op. cit. 1948. os pés para baixo.

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Na análise desta peça é praticamente pontas, que pode ter sido desenhada com uma
impossível e é mesmo irrelevante a definição única linha quebrada e contínua, a qual, em sua
de qual é a face frontal e qual a dorsal. Os configuração, entrecorta-se sobre si mesma.
desenhos e pinturas existentes em uma e na Que simboliza esta estrela? O sol - o lugar
outra face não servem a esta classificação. mítico que se reporta ao herói cultural dyo’il A
Uma ou a outra ocupar esta ou aquela posição estrela da manhã? Gruber (1992: 256) refere que
dependeria de o usuário indígena fazer passar os Tükúna desenham em suas máscaras a
pelo orifício existente com esta finalidade o estrela da manhã. A faixa superior é composta
seu braço direito ou o esquerdo. Ante este de quadriláteros, que se dispõem lado a lado.
fato, desprezamos tal classificação e optamos Cada uma destas figuras geométricas contém
por marcar as faces por letras, sendo uma a em seu espaço interno duas faixas curvas com
Face A e a outra a Face B. as concavidades voltadas para o centro, uma
contra a outra. Estas faixas internas ora se
Face A tocam, ora não. Os espaços constantes destes
desenhos são pintados com as cores preta,
O desenho desta face se compõe de quatro amarela, marrom, alaranjada, verde escuro e
faixas que se tocam nas extremidades. As faixas verde claro, figurando lado a lado com estas
de cima e de baixo são retas e as laterais, curvas colorações a cor natural amarelada do líber nas
com as concavidades para o interior do espaço partes não pintadas.
central formado pelas quatro faixas. No centro Deve-se notar o diálogo cromático entre as
deste espaço se localiza uma estrela de sete figuras e o fundo sobre o qual estas estão

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compostas. Os espaços vazios não pintados, em cor preta, que se dispõe paralela à anterior
em geral, têm como valor crómico a cor natural e que apresenta seis formas triangulares, que
da tela, ou seja, o amarelado, importante na estão divididas ao meio pela linha, do que
coloração das diferentes imagens. As diversas decorre a duplicação dos triângulos, que ficam
cores apresentam múltiplas tonalidades, que dispostos para cima e para baixo do eixo
são, certamente, conseqüência da mistura de geométrico divisor; estes triângulos apresen­
tintas ou da maior ou menor intensidade de tam-se nas tonalidades amarela, verde forte e
sua aplicação ou, ainda, da composição verde claro, e marrom claro e escuro.
destas, por transparência ou por sombra, com Estas linhas retas pretas articuladas com
a cor natural do fundo. O verde é evidente triângulos multicoloridos podem ser apenas,
decorrência da pintura com tinta natural azul na criação plástica, figuras geométricas que
por composição com o fundo amarelo. A partir estão na peça com fins, por assim dizer,
destas combinações, intensidades e diafani­ decorativos enquanto tal; no entanto, estes
dades, tomam corpo o marrom claro e escuro, e dois conjuntos pictóricos podem simbolizar
o cinzento, cores que têm em sua composição partes de vegetais estilizados, nas quais as
originária o preto modificado pela luminosi­ linhas seriam talos e os triângulos coloridos,
dade assimilada conseqüente da combinação folhas ou mesmo grandes espinhos, símbolos
com outras cores claras. Estas junções cromá­ pictóricos que podem aludir, diacriticamente,
ticas estão presentes nos diversos desenhos ao cenário natural, e têm sua razão de ser no
que esta peça apresenta nas duas faces. ambiente artístico Tükúna, que é intimamente
A faixa inferior se compõe de triângulos e permeado pela exuberante natureza envol­
losangos, porém como figuras geométricas de vente, em seu mundo vital.
formas irregulares, todos internos à faixa. No espaço constituído entre as duas
Externamente, voltadas para baixo, encontram- figuras acima descritas, encontram-se dois
se articuladas figuras semicirculares. desenhos, uma estrela e um pássaro. A estrela
A faixa lateral externa (considerando a peça contém oito pontas formadas por triângulos
como se encontra, aberta) contém em seu coloridos em amarelo, verde claro e verde
interior espaços que lembram formas geométri­ forte, e marrom, os quais se dispõem em tomo
cas tais como triângulos, losangos e quadra­ de um quadrado central. De cada lado deste
dos, porém deformados em suas configurações. quadrado se encontram duas pontas. Que
A faixa lateral interna é composta de representa este astro, o sol, a estrela da
triângulos cujos vértices se alternam, voltados manhã? É ele um sinal do Mundo Superior da
para um e para o outro lado. Nas extremidades cosmogonia Tükúna? São hipóteses possíveis.
da faixa encontram-se figuras quadrilaterais A figura do pássaro dá nítida idéia de vôo,
irregulares. pois está com as asas abertas, o bico esticado
para a frente e os pés estendidos para trás.
Face B Esta ave pode simbolizar o clã e o sub-clã do
qual faz parte o pintor-dançarino; neste caso,
O lado B se compõe de um conjunto de tratar-se-ia de um signo atinente a um dos
três desenhos constituídos de formas polico- grupos sociais da metade aves, quem sabe o
loridas e um quarto desenho, sendo este jaburu ou o tuiuiu ou o gavião-real... Se
unicolor, preto. compreendermos estes dois desenhos cen­
Na parte de cima da peça, encontra-se uma trais, a estrela e o pássaro, como constitutivos
grossa linha transversal em cor preta, com de uma concepção representativa integrada,
0,0lm de largura, à qual se articulam, para cima podemos aí visualizar a simbolização mesma do
e para baixo, alternadamente, cinco triângulos Mundo Superior, lugar cósmico onde o urubu-
para cada lado, pintados com diferentes cores, rei habita, conforme a mitologia Tükúna. As
tais sejam, o amarelo, o verde claro e o verde duas linhas, a de cima e a de baixo, constariam
forte, e o marrom claro e escuro. na obra pintada como moldura ou linhas
Em contraposição, no setor mais baixo da limítrofes da concepção estética principal,
peça, registra-se uma linha fina e transversal pairando esta no universo mítico Tükúna, que

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é povoado de astros e de pássaros, um mesmo barbante se encontra enfiado, em uma


momento contemplativo do artista. costura de largos pontos, no alto do corpo da
máscara, no sentido horizontal* com a finalida­
de de, pela pressão, estreitar a máscara sobre
Comentários finais os ombros do usuário, fixando a peça sobre o
corpo para que não caia durante o uso.
Os dois conjuntos de figuras constantes
das faces A e B, sendo espacialmente indepen­
Comentários descritivos e interpretativos
dentes entre si, no entanto, tocam-se em um
ponto: a linha de baixo do conjunto da face B A cabeça
atinge a faixa de baixo do conjunto da face A
em um ponto situado na metade da base do A máscara destinada a encobrir a cabeça é
triângulo marron localizado na extremidade composta de duas partes: o capuz, com grandes
interna da faixa. A atmosfera pictórica que se orelhas, fabricado de líber ou entrecasca de
pode observar nas duas figuras de uma e da árvore, que reveste toda a cabeça até o pescoço
outra face é marcada pela vivacidade que é e se articula com o corpo da máscara; e uma
criada a partir da intensidade, da alternância e estrela de madeira de quatro pontas, que se
da variedade das cores, mesmo tratando-se de encontra afixada à parte fibrosa na frente da
uma concepção artística estática, exceto no máscara. A estrela se compõe de duas hastes
detalhe da possibilidade de o desenho do que se cruzam, formando pontas que se dis­
pássaro representá-lo em pleno vôo. põem para cima e para baixo, para um lado e
para o outro. Estas duas hastes sobrepostas
Máscara N° 4 estão costuradas uma à outra com um barbante
fino (de provável fibra da palmeira tucumã),
R .G .: 86 8 3
Nom e da p eça : M áscara de dança que, por sua vez, também prende a estrela à
E n tra d a : 1956 máscara facial. A haste superior da estrela
C oletor: H a ra ld Schultz mede, no ponto de cruzamento, 0,08m de
D a ta : 19 5 6 largura, ponto a partir do qual as quatro pontas
D o a d o r ou ven dedor: O m esm o se vão estreitando paulatinamente até quase se
Form a de a qu isição: E xpedição do Museu P aulista
aguçarem nas extremidades. No quadrado
G rupo étn ico: Tukuna
L o ca liza çã o g eográfica: A lto R io Solim ões formado pela intersecção das duas hastes da
D escriçã o : M áscara de tururi verm elho, com aba na estrela, encontra-se desenhada uma cara com a
cabeça, rosto p in ta d o forma circular. Esta cara apresenta desenhados
Condições e restaurações: Bom estado de conservação olhos arregalados com cilios e supercílios, e a
boca aberta, que contém, de um lado e do outro,
Descrição pequenos traços, que partem do lábio superior
- Altura do corpo: l,3 5 m para cima; registram-se também pequenos
- Altura da cabeça (incluindo o pescoço): 0,60m riscos, na parte superior da cara, representando
- Altura total da máscara: l,95m cabelos. Os olhos e a boca estão escavados na
- Altura da franja: 0,30m
madeira, apresentando um dos olhos uma íris de
- Altura do corpo sem a franja: l,05m
- Largura do corpo: 0,50m
latão. O nariz é figurado por uma estreita peça
- Largura da cabeça de ponta a ponta das orelhas: 0,49m de latão que separa os dois olhos e desce até o
- Largura da cabeça (não se considerando as orelhas): 0,2lm lábio superior. Os desenhos são feitos em tinta
- Diâmetro de cada orelha de forma circular: 0,14m preta. A cabeça da máscara não apresenta furos
que permitam a visão do dançarino. Como usá-
A peça que está sendo apresentada é uma la e participar do ritual, das danças? O dançari­
máscara de dança ritual Tükúna constituída de no usuário pode ser conduzido por outrem ou
duas partes claramente definidas, a cabeça e o tem a visão do que ocorre além da máscara
corpo, ligadas entre si por uma costura com através da trama da entrecasca.
um barbante de fibra provavelmente da As pontas da estrela apresentam sulcos
palmeira tucumã (Astrocaryum tucumá). Este laterais produzidos na madeira, os quais

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SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de Dança Tükúna. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 271 -
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partem do quadrado central e vão até as baixa da peça se encontra uma franja fabricada
extremidades onde se encontram. de casca desfiada de madeira, que está costu­
A cara, certamente, não é humana, ou, se o rada ao corpo da máscara. Este apresenta em
é, está caracterizada para representar um ser da um de seus lados uma costura, que fecha a
natureza; ela está inserida em uma estrela, vestimenta, dando à mesma a forma de um
como se fosse a imagem de uma entidade vestido; constam, também, na porção superior
cósmica. Porém, muito provavelmente, ela é um e de cada lado, aberturas destinadas às
signo da filiação ciánica do pintor-usuário. passagens dos braços do dançarino indígena.
Pode representar a pintura facial correspon­ A parte mediana da máscara corporal apresen­
dente ao clã onça. O desenho da cara particu­ ta grandes desenhos coloridos em ambas as
larmente os detalhes da boca indiciam esta faces - a frontal e a dorsal. Cada uma destas
possibilidade. figurações contém largas faixas, que se
estendem longitudinalmente, as quais, se
O corpo tocando, promovem a integração entre as
imagens das duas faces da máscara. Em cada
Como a cabeça, o corpo é manufaturado face, entre as faixas se encontram amplos
de líber de cor marrom. Na extremidade mais espaços com 0,50m de altura e que ocupam

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SAMPAIO-SILVA, O. Máscaras de Dança Tükúna. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 271 -
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toda a largura da peça. Nestes espaços se figura articulada com o desenho estilizado e
encontram concepções estéticas de desenhos colorido de uma grande flor que se encontra na
coloridos. Percebe-se com muita clareza que a faixa inferior do dorso da máscara, em uma
peça foi desenhada de forma contínua de continuidade integrada dos dois desenhos.
extremidade a extremidade da entrecasca (no Neste caso, o desenho da parte frontal poderia
sentido horizontal), quando esta ainda se ser um talo folheado da flor da outra face.
encontrava aberta, ou seja, antes de ser Todas as linhas dos contornos dos
procedida a costura lateral, em uma grande desenhos são em cor preta.
concepção artística com dupla imagem, isto é, O desenho do dorso da máscara, em
ocupando o espaço total meio a meio. continuidade ao da face frontal, exibe outra
Estando a máscara da cabeça afixada a concepção artística, que, embora diferente, se
uma das faces da máscara corporal, constata- prende à arquitetura básica que conforma a
se qual das duas faces desta é a frente e qual é outra face. São'duas faixas, uma acima e a
o dorso, pois a cara constante da cabeça outra abaixo, tendo o espaço intermediário
indica qual é a face frontal da máscara corpo­ cortado por linhas que se entrecruzam e que
ral. A cabeça da máscara está presa à parte da promovem a ligação entre as duas grandes
frente daquela. No alto do dorso da máscara faixas. As faixas superior e inferior, como as da
corporal encontram-se dois chumaços de outra face, compõem-se de núcleos centrais
casca de árvore desfiada (compostos do principais, marginados por sub-faixas mais
mesmo material da franja), aos quais estão estreitas. As duas sub-faixas do desenho de
amarradas as extremidades do barbante de cima, apresentam-se com tonalidades arroxea-
fibra vegetal, que prende a cabeça ao corpo da da uma e em cor amarela a outra. O núcleo
máscara e que também serve para estreitar este largo central é cortado por linhas retas parale­
sobre os ombros do dançarino. las e inclinadas, as quais constituem forma­
O desenho da face frontal apresenta uma ções losangulares dispostas lado a lado, em
faixa larga superior e outra faixa larga inferior, uma alternância de cores, tais sejam o amarelo,
as quais estão interligadas por duas faixas o roxo, o marrom e a cor natural marrom clara
estreitas, que gizam em sentidos diagonais o da entrecasca.
espaço formado entre as primeiras faixas. Estas A faixa larga inferior, tripartida, contém,
faixas estreitas interiores, sendo uma em cor marginando o núcleo central, uma faixa estreita
amarela e a outra em roxo forte, apresentam-se em cor amarela e a outra em marrom. Conforme
na forma de dois grandes ângulos, que se referido acima, consta do núcleo central mais
entrecruzam nas porções medianas, formando largo o desenho de um grande ramo vegetal
um grande losango central em cor rósea. A estilizado, em forma alongada, contendo folhas
faixa superior se compõe de um núcleo mais em cores amarela, roxa, marrom e vermelha e,
largo em cor roxa clara, que vem marginado na extremidade, uma flor roxa.
acima e abaixo por sub-faixas estreitas em cor De pontos da faixa de baixo partem dois
amarela. O arroxeado da cor da porção mais ramos vegetais com folhas verdes, amarelas,
larga da faixa deve ser conseqüência de roxa e marrom. Estes ramos logo se entre­
provável combinação de cores conseqüente cruzam, ao se dirigirem em direções opostas.
do uso de tinta vermelha vegetal sobre o Uma das folhas de um dos ramos toca suave­
fundo marron claro do líber. mente a faixa superior.
A faixa inferior também se subdivide em uma As figuras vegetais sugerem a possibilida­
secção central mais larga e duas sub-faixas mais de de, além de seu caráter decorativo, simboli­
estreitas que marginam a porção principal, acima, zarem a filiação ciánica do pintor Tükúna, na
em cor roxa clara, e abaixo, em cor amarela. Esta metade plantas. Esta hipótese é compatível
faixa larga tem seu espaço nuclear totalmente com a ocorrência do desenho da cara, que se
ocupado por um desenho em cor preta, com encontra na cabeça da máscara, de vez que
figuração pouco inteligível certamente em este pode ser o signo do clã onça, um dos
decorrência do envelhecimento da peça. Porém, grandes grupos sociais desta sociedade que
em um esforço analítico, pode-se supor estar esta se insere na metade plantas.

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Os desenhos da face dorsal da máscara, emprestam àquelas. Trata-se da efetivação,


sobretudo as linhas e formas que estruturam o com esmero, de um projeto estético do artista
ramo constante da faixa larga de baixo, são Tükúna, conforme um Ideal objetiva e subjeti­
vigorosos, não propriamente pela força de vamente concebido. O mimetismo da natureza,
cada cor, pois estas já se encontram desmaia­ que se registra nas pinturas e nos desenhos,
das devido à ação do tempo, mas, fundamen­ exprime a integração entre o criador e o meio
talmente, pela energia expressiva dos traços ambiente natural em que ele vive, exuberante
dos contornos e pela combinação das cores. de formas e de policromía. Mesmo assim, o
Evidencia-se o poder da concepção ideal do desenho como um todo, nas duas faces da
artista indígena, que se concretiza no equilí­ máscara de dança, é marcado pela simplicidade
brio das formas e na beleza plena de força vital das formas, que falam por meio de uma lingua­
que as tintas, ainda que sendo antigas, gem pictórica clara e direta.

SAMPAIO-SILVA, O. Tükúna dance masks. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnolo­


gia, São Paulo, 70: 271-288, 2000.

ABSTRACT: The artistic paradigm of the Tiikuna Indians from the high
Solimoes river is discussed in a study, which belongs to the field of Aesthetic
Anthropology. We address the question of the researche involving pieces
of a museum collection. Ritual Tiikuna masks from the MAE-USP collection
are analyzed and presented, as well as interpreted in their symbolic
meanings.

UNITERMS: Indian art - Pictorial aesthetics - Masks - Ritual - Sym­


bolism.

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Estudos Bibliográficos
R evista d o M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 291-301, 2000.

COMENTÁRIO D ’ “A POPULAÇÃO NATIVA DA


AMÉRICA DO SUL”

Francisco Silva Noelli*

Julian Steward e a sua obra dispensam e regionais sobre demografia histórica indíge­
apresentações, sendo supérfluo falar sobre a na no período colonial, pois ainda não há um
amplitude da sua contribuição ao desenvolvi­ estudo ou, melhor, um conjunto de estudos
mento da etnologia dos povos indígenas que tenham efetivamente superado as idéias e
situados nas Américas do Sul e Central. Nas as abordagens de Steward e daqueles que o
duas últimas décadas, contudo, suas idéias e seguiram, revelando outras estatísticas
proposições vêm passando por um contínuo coloniais baseadas nas fontes disponíveis.
processo de análise e crítica, sendo disseca­ Também, devido ao fato de que muito se repete
das e, em muitos casos, demolidas pela onda as concepções de Steward sem lê-lo, desco­
de novas pesquisas que vêm revelando, de nhecendo o que o próprio Steward lembrou no
modo “formidável”, uma massa enorme de texto traduzido acima. Considerando as
informações inimagináveis até poucos anos publicações disponíveis ao redor de 1949, ele
atrás, como disse recentemente Claude Lévi- concluiu que a maioria das estimativas até
Strauss (1998: 122). As engrenagens do que aquela data foram baseadas em “chutes” (by
Viveiros de Castro (1996) chamou de “modelo sheer guess, Steward 1949a: 655).
standard” de Steward, mostram como se pode Visando superar a lacuna em demografia
construir grandes teorias sem a devida base de histórica indígena para o atual território brasilei­
dados, constituindo um exemplo clássico de ro, a tradução acima é uma contribuição que
pesquisa com motivação indutiva. pretende incentivar o estudo das idéias demo­
Publicado há meio século, “A População gráficas de Steward, muitas vezes lidas indireta­
Nativa da América do Sul” é o artigo seminal de mente, pela mão de seus discípulos e exegetas
Julian Steward sobre demografia indígena na mais influentes no Brasil, como Betty Meggers,
América do Sul. Sua base é formada com dados Clifford Evans, Darcy Ribeiro e Eduardo
coligidos pelos quase cem autores dos artigos Galvão, ou através de muitos outros pesquisado­
que compõem os seis grossos volumes do res ativos entre o pós-guerra e 1980. Conhecê-lo
monumental Handbook o f South American melhor, em primeira mão e auxiliado pelas
Indians, publicados pelo Bureau o f American leituras e análises dos seus críticos, é a melhor
Ethnology da Smithsonian Institution, entre 1946 maneira de não mais repetir acriticamente suas
e 1949. O volume 7, “Index”, foi publicado uma concepções, enraizadas profundamente na
década depois, em 1959. Etnologia e Arqueologia praticadas no Brasil.
Qual seria a razão de traduzir e publicar no Outras publicações de Steward também mereci­
Brasil um trabalho cujos dados e idéias já são am ser traduzidas, de modo que o acesso fosse
obsoletos, graças ao contínuo desenvolvimento direto e funcionasse como uma explícita contri­
das pesquisas em demografia histórica indígena buição ao estudo da história das idéias da
desde o final dos anos 50? As razões são etnologia indígena americanista.
basicamente duas: 1) facilitar o acesso, tanto
A importância desse artigo sobre demografia
lingüístico, quanto da própria publicação, há histórica indígena, no meu entender, não reside
muito esgotada, aos graduandos brasileiros que somente nos números populacionais, que
não lêem inglês; 2) estimular pesquisas locais
figuram no artigo para reforçar o que pensava e
defendia Julian Steward naquela época.
Creio que sua importância reside na repre­
(*) Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-Histó- sentação das densidades populacionais para cada
ria da Universidade Estadual de Maringá. Paraná, PR. território, usada para justificar o modelo ecológi-

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Estudos Bibliográficos: Ensaios - Revista do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, 10: 291-301, 2000.

co sobre a ocupação humana do leste da ciosa” das fontes (Borah 1964, [1976] 1992;
América do Sul. Como é amplamente sabido, Lovell 1992). Isto é, Steward ignorou solene­
especialmente no caso do Brasil, o modelo é mente uma larga série de informações históricas
baseado em uma generalizante dicotomia que disponíveis, bem como desconsiderou diver­
pretendeu reduzir a imensa gama de ecótonos sas perspectivas que permitiam perceber uma
do leste da América do Sul entre “várzea” e densidade populacional muito maior que a
“terra firme” (Steward 1948, 1949b). Na várzea apresentada nas suas sínteses marcadamente
as populações seriam um pouco mais densas, evolucionistas (cf. Steward 1949b, 1949c;
devido ao aumento da capacidade de sustento Steward e Faron 1959). Uma das principais
em função das ofertas mais abundantes de analistas <^o modelo de Steward, Anna Roosevelt
pescado e outros animais dos cursos d ’água. (1991: 104), não teve dúvidas ao afirmar que
Na terra firme, isto é, afastados dos cursos “A teoria [do determinismo ecológico] está
d’água maiores e dos seus recursos, haveria virtualmente errada em vários aspectos impor­
agrupamentos menos densos, bem como tantes e apesar disso, as implicações desses
menos desenvolvidos em termos culturais, erros não foram ainda levadas em consideração
políticos e sociais, em função da oferta menor adequadamente por muitos pesquisadores’'.
de alimentos protéicos e da necessidade de ir Isto se aplica perfeitamente ao Brasil. Em
atrás da caça e da coleta, sendo obrigados a relação aos séculos XVI e XVII, período que
mudar constantemente de território. Em suma, na ainda não foi exaustivamente pesquisado com
perspectiva do determinismo ecológico de Steward, abordagens do tipo “fonte-a-fonte para cada
inspirado no pensamento degenerâcionista de área”, aderiu-se acriticamente à teoria do
Martius ([1847] 1982, [1839] 1905), os então determinismo ecológico. A maioria dos estudos
imaginados solos pobres das áreas'“Marginal” e demográficos históricos indígenas posteriores a
“Floresta Tropical”, cobertos por campo ou por Steward adotou a dicotomia “várzea X terra
densa floresta, seriam adversos à ocupação humana firme” para justificar esta ou aquela densidade
e o fator causai de uma imaginada baixa densidade em função dos solos e da cobertura vegetal,
demográfica. E, principalmente, explicariam o simplesmente desconsiderando todas as fontes
“baixo desenvolvimento” sociológico e antropoló­ existentes em prol de alguma mais à mão, a
gico dos povos ocupantes dessas regiões, classifi­ exemplo da “pura suposição” de John Hemming
cados nos últimos patamares do modelo evolucio­ (pure guesswork, 1978: 491). Ainda que raros,
nista de Steward. os estudos demográficos históricos sobre os
Em que pese sua reconhecida erudição, séculos XVI e XVII contribuíram para a constru­
Steward, deixou-se cair refém das construções ção de um prédio sem fundações, pois, mesmo
históricas defasadas e incompletas da maioria que bem intencionados, vários pesquisadores
dos capítulos do Handbook, aceitando franca­ sugeriram estimativas despidas de uma sólida e
mente os resultados e argumentos apresentados. convincente base de dados que lhes sustentas­
Na maioria dos capítulos, os autores, de fato, sem, com são os casos de Pierre Clastres ([1973]
não dominavam as fontes, criando imagens 1978) e John Hemming (1978). William Denevan
distorcidas e empobrecidas das diversas áreas, (1966, [1976] 1992a, 1992b, 1996), Antonio
como foi constatado posteriormente por várias Porro ([1981] 1995), Warren Dean (1985) e
pesquisas regionais de demografía histórica Thomas Myers (1988, 1992) estão em uma
indígena (ver abaixo, sugestões de leitura). As posição intermediária, pois, apesar de adotarem
exceções do Handbook, considerando os dois mais ou menos explicitamente o modelo de
autores que tiveram a preocupação de manipular Steward e não terem feito uma completa utiliza­
o máximo possível de fontes, parecem restringir­ ção das fontes disponíveis, são partidários de
se aos artigos de George Kubler e de John Rowe números populacionais algo mais elevados.
no volume 2, sobre os Andes (cf. Cook 1981). Na atualidade, nestes tempos da efeméride
Steward também enredou-se nas perspecti­ sobre o “descobrimento do Brasil”, o que se
vas das estimativas hemisféricas sugeridas até repete na academia e na mídia são meras
1945, especialmente por Alfred Kroeber, que alegorias ao invés de números de demografía
não considerava o efeito das epidemias, e Ángel histórica indígena obtidos através de cálculos
Rosenblat, famoso pela sua abordagem “tenden­ apoiados por dados levantados pacientemente

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Estudos Bibliográficos: Ensaios — R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10\ 291-301, 2000.

nos arquivos e nos documentos publicados, presentes são meros cálculos e devem ser
bem como em campo, nos sítios arqueológicos. consideradas preliminares”.
Até hoje, simplesmente, não foi publicada Atualmente o ambiente acadêmico para
nenhuma estimativa demográfica histórica em estas pesquisas é mais favorável e menos
nível local, regional ou global que apresente preconceituoso, pois, parece que a velha prática
números confiáveis para o século XVI ou XVII, de fazer ciência sem base de dados efetivos
excetuando um estudo preliminar de Bartomeu está em extinção no Brasil. Felizmente, a
Melià (1988), sobre a região do antigo Guairá. tradição indutiva e as grandes explicações e
Melià, analisando parte da documentação generalizações teóricas estão caindo em
relativa ao início do século XVII, quase sem desuso, substituídas por pesquisas com
cálculos adicionais e sem considerar o que subsídios que permitam estabelecer novos
ocorreu no século XVI, revelou indicadores de dados, modelos e concepções, como revelam os
que apenas a população Guarani daquela diversos balanços sobre a obra e a influência
porção do atual estado do Paraná estaria entre do pensamento de Julian Steward (cf. Roosevelt
800.000 e 1.000.000 de habitantes. 1980,1991,1995; Viveiros de Castro 1996;
À medida em que novos estudos forem Hackenberger 1998, 1999; Wüst 1998; Wüst e
desenvolvidos certamente haverá um grande Barreto 1999; Neves 1988,1995,1998).
impacto sobre o que se pensa ou supõe ser o Enfim, a esperança reside na possibilidade
tamanho global da população indígena ao tempo de que a demografia histórica indígena feita no
dos primeiros contatos em cada região. Ainda Brasil cresça com o conjunto das pesquisas e das
deveremos esperar mais alguns anos, até que novas abordagens interdisciplinares em desen­
comecem a aparecer os novos cálculos, devida­ volvimento no continente, de modo a produzir
mente acompanhados de detalhada e ampla um panorama que consiga dar conta dos proces­
pesquisa dos processos históricos e biológicos sos vivenciados pelos povos indígenas desde o
que contribuíram para transformar radicalmente final do século XV. E que, também, ao longo
o panorama sócio-cultural do que hoje chama­ desta nova etapa, sejam sucessivamente produzi­
mos Brasil. Não podemos esperar mais para dos números e apresentados processos históricos
iniciar as novas pesquisa, pois continuaremos que paulatinamente reconstruam o complexo e
ignorando o que Steward (1949a: 658) disse multifacetado quebra-cabeças da população e da
sobre seus próprios cálculos: “as estimativas depopulação indígena nas Américas.

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APÊNDICE
Sugestão: leituras introdutórias em demografia histórica indígena americana

O objetivo desta sugestão é apresentar te o interesse e estimule pesquisas nesta


uma bibliografia que raramente aparece entre especialidade, superando o total atraso em que
as referências citadas nas publicações sobre se encontra o tema no Brasil.
os povos indígenas situados no Brasil. Como Considerando o espaço disponível, a lista
eu disse acima, respaldado por uma criteriosa que segue é uma amostra e visa sugerir urna
revisão bibliográfica e por uma busca nos seleção dos estudos mais significativos sobre
programas dos cursos de pós-graduação a problemática da demografía histórica indíge­
brasileiros, até hoje foram raros os indicadores na colonial nas Américas. A maioria dos
de um “sólido interesse” em demografía trabalhos é o portal para a massa de publica­
histórica indígena relativa aos séculos XVI e ções na área, bem como também são indicado­
XVII no que hoje é o Brasil. Diante deste res de temas, de problemas, de debates, de
quadro em branco, espero que o alto nível outras fontes e áreas de pesquisa. Na medida
alcançado pelas referências sugeridas desper- do possível, foram indicadas as traduções.

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R ecebido p a ra p u b lica çã o em 15 de m aio de 2000.


R evista d o M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10\ 303-315, 2000.

A POPULAÇÃO NATIVA DA AMÉRICA DO SUL*

Julian H. Steward**

A densidade por unidade de área da Sapper (1924) e os 50.000.000-75.000.000 de


população é uma medida aproximada do Spinden (1928). Os totais da América do Sul
sucesso das atividades de subsistência na variam de 4.300.000 de Kroeber aos 25.000.000
área e, até certo ponto, é correlacionada ao de Rivet. Means (1931) calcula entre 16.000.000
desenvolvimento cultural. Porém, ela não a 32.000.000 apenas para os Andes. A tabela 1
fornece esclarecimentos suficientes sobre mostra a decomposição destas estimativas. É
problemas culturais, porque mera densidade obvio que ou os dados ou os métodos são
mostra as populações apenas em um sentido falhos.
médio ou estatístico, como se fossem esparra­ Os estudos populacionais anteriores
madas igualmente pela região. De fato, gran­ analisaram principalmente a América do Norte
des áreas foram temporária e permanentemente e a América Central. Todas as estimativas da
não povoadas, enquanto as pessoas se América do Sul, exceto aquelas de Rosenblat
juntavam em bandos ou em comunidades. Na (1945), que cuidadosamente investigou fontes
verdade, é o tamanho, a composição e a originais e algumas estimativas de áreas
permanência dessas comunidades que propor­ limitadas, são feitas por analogia com a
cionam o pano de fundo dos padrões sócio- América do Norte ou da América Central, ou
políticos e do comportamento cultural. [Nesse simplesmente por suposição.
artigo] a primeira seção fornecerá as densida­ Rosenblat calcula a partir da população
des populacionais; a seção subseqüente moderna em 1940, e retrocede para 1825, 1650,
relacionará a composição da colônia aos tipos 1570 e 1492. Ele aceita as estimativas contem­
sócio-políticos através de dados sobre o poráneas de cada período: todavia, 1570 gerou
tamanho da comunidade. dados sobre apenas poucas áreas, e 1492 é
estimada por uma extensão hipotética da curva
populacional. Seu método mostra detalha­
Problemas metodológicos damente apenas o Haiti e Santo Domingo.
Rivet (1924: 599-602) afirma que, na América
do Norte, o número de aborígenes foi reduzido
As dificuldades metodológicas, inerentes
de 1.148.000 para um terço da presente popula­
aos estudos da população americana nativa,
ção de 403.000. Supondo uma redução idêntica
são evidentes diante das discrepâncias pelo hemisfério, ele multiplica a presente popula­
existentes entre os resultados de cientistas ção por 3 para calcular a figura dos nativos, sem
confiáveis. Números totais para o hemisfério levar em consideração as diferenças locais.
variam de 8.400.000 de Kroeber (1939) (um Sapper (1924), um geógrafo, baseia seus
número menor daquele de Ricketson (1937) cálculos na presumível produtividade de tipos
que chega a 13.000.000 apenas para Yucatán) diferentes no uso da terra: nas áreas de caça,
até os 40.000.000-50.000.000 de Rivet (1924) e pesca e coleta, a população é esparsa; nas áreas
de cultivo, especialmente nas planícies quentes
do México, América Central e América do Sul, a
(*) Tradução e revisão técnica: Profs. Thomas população é densa. Por exemplo, considera-se
Bonnici e Francisco S. Noelli, Universidade Estadual de que a Guatemala moderna e a Guatemala no
Maringá. tempo dos aborígines tenham tido aproximada­
(**)Originalmente publicado In: Julian H. Steward
mente a mesma população, porque os vários
(Ed.) H andbook o f South Am erican Indians, v. 5. The
Comparative Ethnology o f South American Indians.
modos agrícolas são semelhantes.
W ashington: Smithsonian Institution/Bureau of As estimativas de Kroeber para a América
American Ethnology, Bulletin 143, 1949: 655-668. do Norte são principalmente baseadas nos

303
Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10\ 303-315, 2000.

TABELA 1
Estimativas das Populações Nativas Americanas
Estim ativa Populacional con form e1

Área Sapper (1924) R osenblat (1945) K roeber (1 9 3 9 :1 3 1 -1 8 1 ) Steward2

Norte do M éxico 2 .0 0 0 .0 0 0 - 3 .5 0 0 .0 0 0 1 .0 0 0 .0 0 0 1 .0 0 0 .8 8 0 1 .0 0 0 .8 8 0
M éx ico 1 2 .0 0 0 .0 0 0 - 1 5 .0 0 0 .0 0 0 4 .5 0 0 .0 0 0 3 .0 0 0 .0 0 0 4 .5 0 0 .0 0 0
índias Ocidentais 3 .0 0 0 .0 0 0 - 4 .0 0 0 .0 0 0 3 0 0 .0 0 0 2 0 0 .0 0 0 2 2 5 .0 0 0
3
Am érica Central 5 .0 0 0 .0 0 0 - 6 .0 0 0 .0 0 0 8 .0 0 0 .0 0 0 7 3 6 .0 0 0
V
Total 2 0 .0 0 0 .0 0 0 - 2 5 .0 0 0 .0 0 0 5 .6 0 0 .0 0 0 5 .4 6 1 .8 8 0

América do Sul
A ndes4 1 2 .0 0 0 .0 0 0 - 1 5 .0 0 0 .0 0 0 4 .7 5 0 .0 0 0 3 .0 0 0 .0 0 0 6 .1 3 1 .0 0 0

Restante da América
do Sul 3 .0 0 0 .0 0 0 - 5 .0 0 0 .0 0 0 2 .0 3 5 .0 0 0 3 .3 3 4 .0 0 0 2 .8 9 8 .0 0 0

Total 1 5 .0 0 0 .0 0 0 - 2 0 .0 0 0 .0 0 0 6 .7 8 5 .0 0 0 4 .3 0 0 .0 0 0 9 .1 2 9 .0 0 0

Total para o
H e m is f é r io 3 7 .0 0 0 .0 0 0 - 4 8 .5 0 0 .0 0 0 1 3 .3 8 5 .0 0 0 8 .4 0 0 .0 0 0 1 5 .5 9 0 .8 8 0

(1) Todas são para aproximadamente 1492.


(2) A estimativa para a América do Norte segue Kroeber (1939); M éxico é de Rosenblat (1945); outras estimativas
serão dadas em detalhe abaixo. Uma estimativa preliminar foi dada por Steward (1945).
(3) América Central é incluída na América do Sul.
(4) Da Colômbia ao Chile.

cálculos de Mooney; para outras áreas foram períodos foram dadas principalmente por
feitas através de uma comparação com a soldados e missionários e, às vezes, por
América do Norte, levando em consideração as administradores. A suspeita de Kroeber sobre
áreas culturais e naturais. Kroeber supõe que: tais cálculos é justificável no caso de soldados
1) a maioria das estimativas contemporâneas, que, com certeza, exageraram no número de
feitas especialmente pelos primeiros adminis­ seus inimigos. As estimativas missionárias de
tradores e missionários espanhóis, eram muito tribos independentes tendem ao exagero. A
altas; 2) o etnólogo competente poderia contagem cuidadosa de índios nas estações
corrigir tais estimativas no caso de uma área missionárias parece ser confiável e freqüente­
bem conhecida; 3) as populações modernas mente é a nossa única fonte; esses cálculos
dão alguma indicação das populações nativas, não enumeram os índios isolados; e existe a
mas a taxa de crescimento não é a mesma em tendência de colocar juntos os índios de tribos
todos os lugares; 4) uma ecologia rica geral­ diferentes. O valor das estimativas dos
mente significa uma maior densidade de administradores varia: nos Andes centrais
nativos, mas fatores como ferramenta de ferro parece que foram baseadas em cálculos
e solos friáveis devem ser levados em conside­ cuidadosos de censos, mas a taxa de pagado­
ração quando se comparam as densidades res de tributo para a população inteira variava
moderna e nativa; 5) uma rica cultura é normal­ de 5 a 1 para 2 a 21 (Rosenblat 1945).
mente indício de uma alta densidade. Referente à floresta tropical e às áreas do
Dados sobre a demografía na América do Caribe temos muito poucas estimativas
Sul mostram que as estimativas feitas por contemporâneas. Os primeiros números podem
qualquer método apenas se aproximam da variar entre cinqüenta a duzentos anos após a
exatidão, e a margem de erro sempre será muito tribo ter sido inicialmente contatada pelos
grande, talvez até cinqüenta por cento. As brancos; doenças, guerras, escravidão,
estimativas contemporâneas para os primeiros assimilação cultural racial e outros fatores já

304
Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 303-315, 2000.

haviam reduzido a população pela metade ou Densidades nativas


mais e, em alguns casos, o fizeram completa­
mente. Os Omágua foram reduzidos de 15.000 a As estimativas presentes são meros
7.000 entre 1641 e 1681, e os índios de Hispa­ cálculos e devem ser consideradas prelimina­
niola foram quase extintos no curto período de res. Algumas áreas, completamente desconhe­
uma geração. cidas, são estimadas por analogia com áreas
A população moderna índia é um índice vizinhas para as quais existem amostras
não-confiável da população aborígene. Isto razoáveis. Em geral, isto dá um quadro coeren­
acontece não apenas porque cada área tem te para que a margem de erro em certas áreas
uma curva populacional distinta, mas porque provavelmente não seja mais de que 10% ou
os censos modernos têm encontrado grandes 20%. Em algumas áreas o erro pode chegar a
dificuldades em contar índios em áreas remo­ 100%; todavia, diminuindo o erro a tanto já é
tas. Ademais, há na América Hispânica uma uma façanha considerável, se são levadas em
tendência para classificar os índios mais na conta as estimativas anteriores. A necessidade
base cultural do que racial. Um índio é consi­ óbvia é a utilização plena da fonte material
derado uma pessoa que vive como índio, numa contagem tribo a tribo e área por área,
especialmente aquele que fala a língua indíge­ igual àquela de Kubler (1946: 334-341) e Rowe
na; quando adquire suficientemente a cultura (1946: 184) para os Andes.
européia, ele passa para a categoria de mesti­ O Mapa 1 segue o mapa de Kroeber para a
ço, crioulo, ladino ou caboclo, como os índios América do Norte (Kroeber 1939) e mostra o
parcialmente assimilados são chamados, número de pessoas por 100 km2.
embora racialmente ele seja completa ou As estimativas para as tribos Marginais do
majoritariamente índio. O método de projetar a sul são provavelmente exatas, embora fossem
curva populacional do presente ao passado, feitas muitos anos depois do contato. Se
ou seja, para tempos aborígenes, poderia ser fossem erradas, seriam muito baixas. Estimati­
válido apenas se a curva tivesse sido inicial­ vas mais antigas dão os números dos Guarani
mente estabelecida em estimativas confiáveis e dos Chaco, que parecem ser razoáveis, mas
em todos os períodos. Mesmo assim, sua os Abipón poderiam ter uma densidade 5,
aplicabilidade a outras tribos para os quais foi revista para 15.
construída, é um ponto questionável, porque As densidades dos Araucano e as de
muitos fatores são envolvidos: se os índios Chilotán, estas últimos maiores do que as dos
continuaram nas missões; efeitos de doença; Andes centrais, são surpreendentemente altas.
fatores especiais de sua cultura, ambiente e Mesmo uma redução da estimativa dos
contato com o branco. Portanto, enquanto os Araucano à metade deixaria um número acima
Omágua foram reduzidos à metade em 40 anos, das densidades das tribos vizinhas; mas os
no século 17, seus vizinhos, os Kokáma Araucano modernos são 300.000. Se a população
mantiveram os números nativos quase até nativa araucana de 1.000.000 não é um erro
hoje. grande (veja Rosenblat 1945: 77-78), o Chile
O método presente utiliza os dados mais Central durante a agricultura indígena era muito
antigos que parecem ser confiáveis - em mais produtivo do que se admitia até agora. Em
alguns casos, os relatórios de missionários e contraste, os números de atacamenos, baseados
administradores, em outros, os relatos de numa amostra pequena, são surpreendentemente
viajantes - e estende a densidade calculada baixos. Poucas áreas dos desertos ao norte do
para uma tribo específica a outras que Chile são habitadas e o total de atacamenos não
possuíam culturas semelhantes e moravam em poderia ter sido mais do que 40.000. Os Diaguita
áreas semelhantes. Como as tribos parecem deveriam ter tido uma densidade entre 13,
ter declinado, em termos gerais, ao tempo que calculada para os atacamenos, e 15, estabelecida
as estimativas eram feitas, as densidades para os Comechingón.
calculadas, embora admita-se certo exagero, As tribos Marginais das planícies do
provavelmente tendem a ser menores do que Brasil oriental são em grande parte desconhe­
maiores. cidas. A densidade média de 10 por 100 km2,

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Mapa 1

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baseada em várias amostras da área do alto fontes do período de contato. A densidade


Xingu-Tapajós, estende-se às tribos Jê. A poderia ter sido 45/100km2.
densidade maior de 15 para os Botocudo e A Colômbia também necessita de fontes
seus vizinhos na costa brasileira é uma revisão antigas. A estimativa atual aceita 300.000 para
para cima das várias amostras recentes desses os Chibcha e 700.000 - uma densidade de 184
povos. Por contraste, julgando-se pelos - para o resto da Colômbia, um total de
números dos Tupinambá, os Tupi da costa 1.000.000, embora algumas estimativas sobre
tinham uma densidade nativa de 60. os Chibcha apenas cheguem a 1.000.000. Uma
Para as tribos da floresta tropical da bacia estimativa confiável de 1586 dá à Colômbia o
da Amazônia, algumas amostras independen­ número de 715.000 (Rosenblat 1945: 77-78);
tes consistentemente variam entre 17 e 25. Há 1.000.000 para todos os nativos na Colômbia
algumas áreas na floresta tropical que não parece ser razoável em comparação com o do
seguem o padrão geral. O território sul do alto Peru, e provavelmente não tão grande. Alguns
rio Guaporé na Bolívia oriental tinha 36 cronistas estimam de 100.000 a 500.000 somen­
pessoas por km2, o que parece um número te no vale Popayán, uma densidade de 500 a
relativamente bom. A não ser que estes 2.500/100 km2.
números sejam muito altos, a densidade de 20 O número nativo nas montanhas do
dos Yunga poderia ser muito baixa. Parece que Equador é calculado apenas por analogia. O
os Yunga têm um número muito baixo quando meio milhão da população nativa, muito pareci­
comparado com aquele das montanhas ao do ao número dos índios atuais, dá uma
norte; possivelmente a população dos Yunga, densidade de 300 quando comparada com os
que manteve contato com os brancos quase 390 do Peru por 100 km2. Certamente esta figura
desde o início, ficou reduzida à metade quando não é muito baixa; se, no Equador e no Peru, há
as estimativas foram feitas. O número da mais índios atualmente do que durante a
Montaña é muito alto em comparação ao das conquista, o número toma-se muito grande.
terras baixas da Amazônia. A não ser que os A América Central também necessita de
missionários tenham errado numa maneira estimativas baseadas nos primeiros cronistas.
muito consistente nas várias estimativas A atual população indígena, que em muitas
independentes sobre a Montaña, pode-se áreas ou foi extinta ou muito reduzida, dá muita
suspeitar que algumas estimativas das terras pouca luz sobre os números nativos. As
baixas, geralmente posteriores, são baixas poucas amostras mais antigas sugerem que a
demais. Os Witoto constituem uma ilha de população era muito densa no Panamá oriental,
grande densidade no meio de pessoas compa­ ou seja, 300 pessoas por 100 km2, que diminuía
rativamente muito raras. Os números de em direção ao oeste. Costa Rica, El Salvador e
observadores confiáveis como Preuss e as montanhas ao sul da Guatemala tinham uma
Whiffen significam que as estimativas para os densidade maior (200/100 km2) do que a Nicará­
povos vizinhos são muito baixas; por enquan­ gua ou o norte de Honduras (40/100 km2).
to, tal inconsistência pode ser mantida. O Caribe tinha uma grande população,
No que diz respeito a Guiana, certamente embora seu tamanho freqüentemente tenha sido
os números são muito baixos. Necessitam-se exagerado. Segui as estimativas conservadoras
números sobre o período de contato. Amos­ de Rosenblat, embora o número que ele dá para
tras recentes dão uma densidade de cerca de Hispaniola mostre uma densidade de 767/100
10 por 100 km2; o número dos nativos poderia km2, o dobro de qualquer outra área na América.
ser 50% a mais, ou superior. É uma questão As Antilhas Menores chegam a uma densidade
discutida se a costa pantanosa tinha uma alta acima de 500/100 km2, a julgar por certas
densidade fora do comum. amostras. Por contraste, Cuba, que os índios
A melhor fonte para a Venezuela é Humboldt Aruák compartilhavam com os Ciboney primiti­
(1862) cujas observações realizadas em 1800 vos, tinha uma densidade de apenas 59/100 km2.
dão amostras de densidade de 38/100 km2. A Na Tabela 2 os dados foram retirados dos
população nativa era muito maior, mas é artigos do Handbook o f South American
impossível dizer quanto sem a utilização das Indians, exceto quando a fonte é indicada.

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TABELA 2
Números das populações nativas e densidades das tribos da América do Sul
Tamanho em Pessoas
Área População Fontes e comentários
unidades de 100 km2 p/ 100 km2
Tribos M arginais
Marginais do Sul
Arquipélago 9. 000 1.051 9 C hono, 1.000; A lak alu f, 4 0 0 após 1900;
Yaghan, 3.000, 1875; Ona, 2.000, 1875-1900
Pampa - Patagônia 3 6 .1 2 5 1 4 .4 5 0 2 .5 Várias estimativas no século XIX
Querandí 4 .0 0 0 1 .0 0 0 4
Comechingón-Huarpe, etc.. 5 2 .5 5 0 3 .5 7 0 15 Estimativa dos Comechingón nativos: 30.000
(Serrano 1945)
Charrua-Caracara 9. 000 3 .0 0 0 3 Por analogia com os Pampa

Total, M arginais do Sul 11 0 .6 7 5 2 3 .0 7 1

Chaco O cidental 1 8 6 .4 0 0 4 .3 2 0 29 Totais mais antigos para as principais tribos


(Métraux 1946)
Brasil Oriental
Bororo 1 6 .0 0 0 1 .6 0 0 10 Por analogia; as estimativas recentes parecem
excessivam ente baixas
Kayapö do Sul-Guatö 5 9 .0 0 0 5 .9 0 0 10 Por analogia; sem dados
Kaingang 1 7 .5 0 0 2 .5 0 0 7 Amostra recente; pode ser muito baixa
Bakairi 6 .0 0 0 600 10 Por analogia; sem dados
Nambikwära 2 2 .0 0 0 1 .1 0 0 20 Boas estimativas (Lévi-Strauss 1948)
Alto Xingu 1 0 .0 0 0 1.0 0 0 10 Analogia com Nambikwára, redução conserva­
dora; excessivamente baixos os 3.000 de von
den Steinen
Je Centrais e do Noroeste 9 8 .0 0 0 9. 800 10 Amostras recentes deram 6 a 8 por 100 km2
Kreie-Timbira 1 .4 4 0 160 9 Por analogia com outros Jê
Timbira 2 2 .0 0 0 2 .2 0 0 10 Sem dados; por analogia
Jeicö 1 0 .0 0 0 1.0 0 0 10 Sem dados; por analogia
Botocudo, etc.. 4 3 .5 0 0 2 .9 0 0 15 Estimativas do último século dão densidade
de 11 a 14 por km2
Tapirape 4 .0 0 0 160 25 Estimativa de 1910: 1.000; redução dos Karajá
em 1910 foi estimada em um quarto da original
Karajä 5 7 .0 0 0 2 .0 0 0 28 Krause estimou 100.000 para 1845; redução
pela metade
Trem enbe 2 1 .0 0 0 700 30 Sem dados; densidade foi provavelmente a
metade dos Tupi da costa

T otal, B r a sil o r ien ta l 3 8 7 .4 4 0 700

M arginais da A m azönia
Mura 3 0 .0 0 0 1 .4 0 0 21 Redução à metade da estimativa mais antiga
de 60.000 habitantes nativos
Provincia de Mainas 4 2 .5 0 0 1.9 0 0 22 Estimativas de missionários
Carijona 1 9 .4 0 0 970 20 Analogia; sem dados
Outros Incluídos com tribos vizinhas por carência
de dados
Total, M a rg in a is da 9 1 .9 0 0 4 .2 7 0
A m a z ô n ia

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TABELA 2 (cont.)
Números das populações nativas e densidades das tribos da América do Sul
Tamanho em P essoas
Área População Fontes e com entários
unidades de 100 km2 p/ 100 km2
Tribos da Floresta Tropical
Chaco Oriental:
Abipones e vizinhos 5 0 .2 5 0 3 .3 5 0 15 Totais m ais an tigos das p rincipais tribos
(Métraux 1946)
Payaguá, Chané, Mbayá 3 0 .0 0 0 900 33 Totais mais antigos (Métraux 1946)

Total do Chaco Oriental 80.250 4.250


T upi-G uarani
Paraguai-Brasil 2 0 0 .0 0 0 7 .2 0 0 28 E stim ativa de 3 0 0 .0 0 0 Guarani m ortos ou
capturados na Conquista, reduzidos para 200.000;
ou 30 m issões com 6.000 cada em 1708
Delta do Paraná 2 4 .0 0 0 800 30 Por comparação com os Tupi da costa
Região do Alto Rio São
Francisco 49. 000 4 .0 0 0 10 Sem dados; analogia com a área Jê
Karirí e vizinhos 6 5 .5 0 0 6 .5 5 0 10 Sem dados; analogia com a área Jê
Tupi da costa sul do
Amazonas 1 8 9 .0 0 0 3 .1 5 0 60 4.200 km de costa, por 75 km de profundidade.
A amostra Tupinambá deu 27.000 pessoas em
45.000 km2. Ilha do Maranhão, densidade de
906 por 100 km 2 (Métraux 1948)
Tenetehara 6 0 .8 0 0 1 .5 2 0 60 Por analogia com os Tupi da costa; número
desconhecido de Amanayé e Turiwára não
foram computados na área
Tupi do baixo Amazonas 1 0 0 ,0 0 4 .0 0 0 25 Ambito da densidade Mawé; Amostra Mawé
em 1939 deu 25 por 100 km2. Total pode
ser visto abaixo
Apiaká-Kayabi 1 8 .0 0 0 1 .6 0 0 11 Estimativa provavelm ente segura de 16.000
Apiaká, 2.000 Kayabi
Mundurukú 3 6 .2 0 0 1 .8 0 0 20 Estimativa de Martius por volta de 1888, o
dobro de Tocantins em 1877
Parintintin-K agwhív 2 5 .5 0 0 1 .5 0 0 17 Por analogia com vizinhos Tupi
Total Tupi-Guarani 768.000
Rio A m azonas Essas estimativas levam em conta 50 km,
ambos os lados do rio
Kokáma 1 2 .0 0 0 400 30 Estimativas de missionários. Hoje, cerca de
1 0 .0 0 0
Omágua 1 6 .0 0 0 800 20 Estimativas de m issionários, 15.000 em
1641; 7.000, em 1681
Amazonas abaixo dos 7 2 .0 0 0 1 .8 0 0 40 Sem dados; analogia com os Tupi da costa e
Omágua com o Alto Amazonas; Carvajal notou
aldeias grandes abaixo da foz do Içá
Aruã (Marajó) 3 0 .0 0 0 500 60 Sem dados; por analogia com os Tupi da costa

Total do Amazonas 130.000 3.500


Sudoeste da Am azônia
Juruá-Purús 1 3 9 .4 0 0 7 .2 0 0 17 Por analogia com vizinhos; brancos e índios
atuais são cerca de 100.000
Norte do Guaporé 4 6 .0 0 0 2 .3 0 0 20 Sem dados; por analogia com os vizinhos
Sul do Rio Guaporé 7 2 .1 6 0 1 .9 5 0 36 Média de várias estimativas alcançam de 25
a 45 por km2
Total do Sudoeste da 257.560 11.450
A m azônia

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Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 303-315, 2000.

TABELA 2 (cont.)
Números das populações nativas e densidades das tribos da América do Sul
Tamanho em P essoas
Área População Fontes e comentários
unidades de 100 km2 p/ 100 km2
Bolívia O riental
Tacanans 2 5 .0 0 0 1 .2 5 0 20 Estimativa total das m issões entre 40 e 150
anos atrás: 18.000; talvez 2/3 seriam em missões
Província de Chiquitos 4 2 .0 0 0 2 .0 0 0 21 Estimativa de 23.788 em 1766, 200 anos
depois do contato
Província de Mojos 6 .0 0 0 400 15 Estim ativa para 1680
Paresí 5 .0 0 0 50 10
Yungas 3 1 .0 0 0 1 .5 5 0 20 Estimativas são muito baixas; densidade de
20 por 100 km2 é por analogia
Chiriguano 4 8 .0 0 0 800 60 Estimativa mais antiga razoavelmente acurada
Total da Bolívia Oriental 1 5 7 .0 0 0 6 .5 0 0

Tribos da Floresta Tropical


(continuação)
M o n ta ñ a :
Ucayali-M adeira 3 1 .7 4 0 1 .8 0 0 17 Censo de 1940
Kampa 2 0 .0 0 0 510 38 Estimativa das missões do século XVII;
censo de 1940 também deu 20.000
H uallaga-Ucayali 1 0 5 .0 7 0 2 .7 6 5 38 Estimativas amostrais de missionários; analogia
com vizinhos
Jíbaro 2 6 .6 0 0 700 38 Stirling (1938: 28-38).
Kofán, Quijo, Kanelo 2 5 .0 0 0 255 100 Estimativa de missionários; veja Rosenblat
(1945: 77-78)

Total da M on tañ a 2 0 8 .7 5 0 1 0 .0 7 5

N o ro este da Am azônia
Am azonas-Rio Negro 7 1 .2 5 0 2 .5 0 0 25 Foi usada com o amostra uma estimativa
nativa mais conservadora
Tukanos ocidentais 1 6 .0 0 0 800 20 Estimativa de 1635 deu densidade de 15 por
100 km2, ajustada para 20
W itoto, etc.. 6 7 .0 0 0 1 .0 0 0 67 Cf. Handbook, v. 3, estimativas são para
cima, comparadas aos vizinhos
Uauapés-Caquetá 4 5 .0 0 0 2 .2 5 0 20 Total dos Tukano em 1900 é 8, 700 ou 10 pessoas
por 100 km2; densidade nativa é provavelmente
o dobro
Colôm bia Oriental 7 0 .5 0 0 3 .5 2 5 20 Por analogia

T otal, N o ro este da
A m a z ô n ia 2 6 9 .7 5 0 1 0 .0 7 5

G u ian as
Norte da Amazônia,
Guianas, 2 1 3 .7 5 0 1 4 .2 5 0 15 Amostras modernas dão densidades ao redor
de 10 pessoas por 100 km2; nativos devem
ser o dobro, talvez mais
Incluindo Marginais
Warrau 6 .3 0 0 5 25 12 Gumilla 1791

Total d a s G u ia n a s 2 2 0 .0 5 0 1 4 .7 7 5

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Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 303-315, 2000.

TABELA 2 (cont.)
Números das populações nativas e densidades das tribos da América do Sul
Tamanho em Pessoas
Àrea População Fontes e com entários
unidades de 100 km2 p/ 100 km 2
N oroeste da Am erica
do Sul
M otilones e vizinhos 4 0 .0 0 0 1 .0 0 0 40 Densidade recente dos Motilones é 25 pessoas
por 100 km2
Goajiro 3 1 .3 0 0 113 277 Estimativa do século 20
Costa Colombiana do
P acifico 1 5 .0 0 0 600 25 Estimativa Chocó recente deu densidade de
17 pessoas por 100 km2
Total, N o ro este da
A m érica do S u l 8 6 .3 0 0 1 .7 1 3

Tribos Sub-Andinas
Venezuela, norie do
O rinoco 1 4 4 .0 0 0 3 .2 0 0 45 Estimativa de Humboldt (1822-27) deu 38
pessoas por 100 km2 em 1800
Colombia:
Chibcha 3 0 0 .0 0 0 240 1 .0 7 0 Estim ativa nativa
Terras Altas do resto da
Colombia 7 0 0 .0 0 0 3 .8 0 0 184 Tolerância de 1.000.000 para a Alta
Colômbia, menos 300.000 Chibcha
Total d os S u b -A n d in os 1.144.000 7 .2 4 0

Tribos Andinas
Equador 5 0 0 .0 0 0 1 .8 0 0 300 Handbook, v. 2
Andes meridionais:
A tacam eno 4 0 .0 0 0 3 .0 0 8 13 Salar de Atacama, 13 pessoas por 100 km2,
1581; total em 1800, 7.400 (Boman 1908)
Diaguita 4 1 .0 0 0 3 .1 6 0 13 Por an alogia com A tacam a, estim ativa
provavelm ente muito baixa
Chiloé 5 0 .0 0 0 90 555 Cooper, Handbook, v. 2

Total d a s trib os
a n d in a s 1.631.000 11.7 0 8

Terras Altas Centrais


A lto Perú 2 .3 7 0 .0 0 0 5 .9 6 5 390 Handbook, v. 2
Alta B olívia 1 .1 7 0 .0 0 0 3 .0 0 0 390 Handbook, v. 2

T otal, A n d es C en tra is 3 .5 0 0 .0 0 0 8 .9 6 5

Total da
A m érica d o S u l 9. 228.735 1 8 2 .5 0 7

Densidade, Cultura e Ecologia são consideradas. Por exemplo, através de


estimativas atuais, os Andes centrais tinham
As densidades populacionais no Mapa 1 cerca de 150 vezes a densidade da Patagônia.
representam aproximações de números, embora Se a população da Patagônia fosse duplicada e
possam ter um erro de 10 a 100%. As densida­ aquela dos Andes reduzida à metade, o
des relativas são muito mais importantes para primeiro aproximaria a quarenta vezes a
os problemas culturais, e o sentido de um erro densidade do último, que ainda ficará muito
é muito reduzido se as densidades relativas importante em termos de números de popula­

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TABELA 2 (cont.)
Números das populações nativas e densidades das tribos da América do Sul
Tamanho em Pessoas
Área População Fontes e com entários
unidades de 100 km2 p/ 100 km2
A m érica Central
Paramá Oriental 1 5 0 .0 0 0 500 300 Densidade provável próxima dos Kuna moder­
nos, 350 por 100 km2
Panamá Ocidental 7 4 .6 0 0 373 200 População do Panamá adelgaçando em direção
ao Ocidente, com a densidade Chanaguena de
125 em 1709
Costa Rica 119. 400 597 200 Provavelmente a mesma densidade do Paramá
Ocidental
Costa oriental de N ica­
ràgua e Honduras 1 8 0 .0 0 0 1 .1 8 0 100 Densidade de Mosquito agora é 55; nativa
foi certamente o dobro
Costa norte de Honduras 2 5 .0 0 0 500 50 Densidade Jicaque, 20 em 1674; densidade
Paya, 50 em 1800
Terras Altas de Hondu­
ras e El Salvador 1 8 7 .5 0 0 750 250 Densidade moderna dos Lenca ao redor de
190; Kroeber dá 292 para El Salvador

T otal p a ra A m érica
C en tra l 7 3 6 .5 0 0 3 .9 0 0

Antilhas
Cuba 8 0 .0 0 0 1 .1 4 7 69 Rosenblat
Jamaica 4 0 .0 0 0 115 348 Rosenblat
Bahamas 2 0 .0 0 0 114 175 Metade da estimativa nativa
Haiti e Santo Dom ingo 1 0 0 .0 0 0 767 555 Rosenblat
Porto R ico 5 0 .0 0 0 90 555 Rosenblat; De Hostos (Handbook, v. 4), deu
200.000. Algumas estimativas chegaram até
6 0 0 .0 0 0
Baixas Antilhas 3 5 .0 0 0 70 500 2.000 em Saint Vicent em 1700; se 3.000
são nativos, a densidade de Saint Vicent é
750, a densidade da Dominica é 375

Total p ara A n tilh a s 2 2 5 .0 0 0 2 .3 0 3

ção que pode se agregar em grupos sócio- estimado que nos Andes meio alqueire de terra
políticos. Supondo que os presentes números cultivada era necessária para sustentar cada
são aproximadamente corretos, as densidades pessoa, em contraste à necessidade de um
parecem variar significativamente entre os alqueire no México e nos Estados Unidos
grupos culturais. Considerando os Andes Oriental (Kroeber 1939: 146-147, 163) e 7/10 de
centrais como medida padrão, estima-se que alqueire em Yucatán (Ricketson e Ricketson
têm 44 vezes a densidade do arquipélago 1937: 16-17). As outras maiores densidades
chileno, 14 a 40 vezes a densidade das outras estavam na área ao redor do Caribe, onde as
tribos Marginais, 20 vezes a densidade dos pessoas se apoiavam nas fontes marinhas e na
povos da Floresta Tropical, e cerca de 2 vezes agricultura. A situação é comparável à costa
a densidade do Caribe, das terras altas da pacífica da América do Norte que, apesar da
Colômbia, e da América Central. ausência de agricultura, tinha uma das popula­
Em termos ecológicos, as maiores densida­ ções mais densas do continente. Ao redor do
des estavam nos Andes semi-áridos onde a Caribe, as fontes adicionais agrícolas susten­
subsistência baseava-se na agricultura tavam muito mais pessoas do que as costas da
intensiva, com irrigação e fertilizantes. Foi América do Norte. As áreas da costa e dos

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rios das Guianas e do Brasil eram mais rara­ Brasil, das Guianas, da Venezuela, da Colôm­
mente povoadas do que a área ao redor do bia, da América Central e do Equador, embora
Caribe, provavelmente por causa da baixa numerosíssimos, foram rapidamente derrota­
intensidade da agricultura. Tem-se a impressão dos; ao longo dos rios Amazonas e Orinoco,
de que vastas regiões de terras, potencialmen­ eles tiveram um declínio vertiginoso. Nestas
te aráveis, jamais foram utilizadas e de que a áreas seu lugar foi parcialmente tomado por
população poderia ter estado se expandindo negros vindos da África. Na maioria das áreas
no período da conquista. Nas terras de do litoral e dos rios, a própria identidade das
savana, ao redor das bacias do Amazonas e do tribos nativas é duvidosa. Nas ilhas do
Orinoco, e na parte do Brasil oriental e do Caribe, consideradas inteiramente litorâneas,
Grande Chaco, onde as raízes tropicais não os índios foram quase completamente extintos
podiam crescer e, onde as tribos eram caçado- no período de um século e meio. Las Casas
ras-coletoras, a população era extremamente estimou que a população nativa de Porto Rico
esparsa. A densidade mais baixa estava nas e da Jamaica havia diminuído de 3.000.000, um
planícies da Argentina que, embora bem número extremamente alto, em 1509, para 200
adaptada para animais e para a agricultura de em 1542. Como os Europeus penetraram o
arado, não serviam para os métodos agrícolas interior ao longo dos rios Amazonas e
dos índios. Orinoco, os índios foram gradualmente
rendidos, alguns morrendo, outros cultural­
mente assimilados e misturando seu sangue
Tendências populacionais ao sangue dos brancos e dos negros para
formar populações mistas. Atualmente a
A população nativa da América do Sul sobrevivência principal dos índios se restrin­
está estimada em cerca de 9.000.000, dos quais ge às áreas de difícil navegação, ou seja, no
aproximadamente a metade estava nos Andes grande U que fica em torno da bacia Amazôni­
Centrais (Tabela 3). Atualmente, cerca de ca e inclui o encontro das águas do Amazo­
7.000.000 de pessoas são classificadas como nas e Orinoco, o Nordeste do Amazonas,
índios, especialmente por causa de razões Montaña, Mato Grosso, partes do Chaco e a
culturais (algumas estimativas dobram este planície no leste Brasileiro. Era esta a área das
número). Há muitos milhões de caboclos, tribos Marginais e semi-Marginais que, na
crioulos e mestiços de vários tipos que, época pré-colombiana, havia ficado compara­
embora predominantemente índios em sua tivamente não influenciada pelo tipo de
raça, não são classificados como índios no cultura da floresta tropical que também
censo. Biologicamente, há mais de 7 milhões chegava pelos rios. Em outros lugares, nas
de pessoas de ascendência índia. De fato, a florestas tropicais e ao redor do mar do
raça índia é indubitavelmente tão numerosa Caribe, os índios sobreviventes hoje vivem
quanto à época da conquista e, ainda, prova­ principalmente nas áreas inadequadas para a
velmente tem feito ganhos substanciais. O ocupação européia, como os pântanos do
ganho contudo é tributável inteiramente aos delta do Orinoco e da costa de Mosquito na
Andes. Em outros lugares, as populações Nicarágua e nas áreas montanhosas da
foram reduzidas, embora não sempre tanto Venezuela ocidental e da América Central
quanto o censo indique. A perda, que é (Tabela 3).
primariamente uma função da intensidade e da Na Argentina e no Uruguai onde a
duração do contato com o europeu e da população nativa era esparsa, as tribos da
densidade da população nativa, varia de área costa foram as primeiros a sucumbir. Mais
em área (Mapa 2). tarde, os europeus entraram no interior e
A maior redução aconteceu ao longo do encontraram o lugar adaptado para sua
litoral e dos grandes rios para onde os economia. Praticamente, os índios quase
europeus, tendo chegado de navio e manten­ desapareceram. No Chile, a história se repetiu,
do contato com a pátria, invadiram com forças com a exceção dos Araucano, os quais,
impressionantes. Os índios da costa do empurrados para o sul, mas sem se renderem,

313
Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 303-315, 2000.

Mapa 2

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Estudos Bibliográficos: Ensaios - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 303-315, 2000.

foram finalmente isolados numa reserva vida econômica e cultural. Talvez seja prematu­
indígena. ro dizer se medidas sanitárias e os sistemas de
Havia inúmeros fatores para tal declínio e reservas indígenas sustarão tal declínio.
seu funcionamento nas várias localidades Contrastando-se às demais regiões da
produziu curvas populacionais dissimiles (veja América do Sul, os Andes, especialmente os
Rosenblat 1945). As doenças européias, muito Andes Centrais, atualmente contêm mais índios
devastadoras onde havia grandes concentra­ do que no período da Conquista. À semelhança
ções de índios, como nas missões e nas de outros lugares, a costa sofreu mais diante
colônias forçadas, extinguiram dentro de um dos contatos com o homem branco. Mais tarde,
século ou dois algumas tribos, enquanto os os brancos penetraram no interior e provavel­
vizinhos imediatos sobreviveram com certo mente a população se reduziu à metade. Esta
vigor até os dias atuais. As guerras com os população, numerosa em seu aspecto indígena,
brancos e com as tribos que foram deslocadas estável culturalmente e, até certo ponto, não
pelá Conquista foram desastrosas. Os índios afetada pelas epidemias, já se recuperou e
também foram vítimas de uma ruptura na sua atualmente está maior e em ascensão.

TABELA3
População Indígena da América do Sul
População Indígena em Percentual da População
Localização
15 0 0 1940 N acional (1949)

Nações Meridionais
Chile 1 .0 0 0 .0 0 0 2 0 0 .0 0 0 9 .0
Argentina 3 0 0 .0 0 0 1 2 0 .0 0 0 1.0
Uruguai 2 0 .0 0 0 E xtin tos 0
Total 1.320.000 410.00
Nações Tropicais, Sub-tropicais e Circum-Caribe
Paraguai 1 0 0 .0 0 0 6 0 .0 0 6 .0
Brasil 1 .1 0 0 .0 0 0 5 0 0 .0 0 0 1 1 .0
Guianas 9 0 .0 0 0 1 1 .0 0 0 2 .4
Venezuela 3 5 0 .0 0 0 1 0 3 .0 0 0 3 .7
Antilhas 3 0 0 .0 0 0 E xtin tos 0
Terras Baixas da Colômbia 3 5 0 .0 0 0 1 0 5 .0 0 0 5 .7
Terras Altas da Colômbia 8 0 0 .0 0 0 6 0 .0 0 0 3 .2
Panam á 7 0 .0 0 0 4 2 .0 0 0 9 .0
Costa Rica 4 0 .0 0 0 3 .0 0 0 0 .6
Nicarágua, Honduras e El Salvador 1 0 0 .0 0 0 8 5 .0 0 0 9 .0

Total 3.300.000 969.000


Nações das Terras Altas
Equador 1 .0 0 0 .0 0 0 9 6 0 .0 0 0 5 0 .0
Peru 3 .5 0 0 .0 0 0 2 .8 0 0 .0 0 0 4 0 .0
B olívia - 1 .8 0 0 .0 0 0 5 1 .0

Total 4.500.000 5.560.000

T otal, A m érica do Sul 9.120.000 6.939.000

315
Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 317-319, 2000.

SCHEEL-YBERT, R. Stabilité de l ’Écosystème sur le Litoral Sud-Est du Brésil à VHolocène


Supérieur (5500-1600 Ans BP) - Les Pêcheurs-Cuilleurs-Chasseurs et le Milieu Végétal: Apports
de l ’Anthracologie. Université Montpellier II Sciences et Techniques du Languedoc, França, 1998,
vol 1, 232 pp.; vol. 2, Atlas Anthracologique des Sambaquis du Sud-Est de l ’Etat de Rio de Janeiro;
CD-Rom incluso: Banque de données anthracologique “Atlas Brasil” - version 1.8 (1998); vol 3,
Anexos.

Marisa Coutinho Afonso*

No final de 1998, Rita Scheel-Ybert apresen­ avaliação das interrelações entre ocupação
tou sua tese de doutorado na Université Mont- humana e meio, pesquisando as influências
pellier II, França. Observando que o conheci­ antrópicas no ambiente e, inversamente, a
mento que se tinha sobre as populações de influência eventual das variações ambientais e
pescadores-coletores-caçadores referia-se, climáticas sobre as populações e a interpretação
principalmente, às relações com o meio animal, paleoetnológica referente à utilização de madei­
procurou identificar aquelas existentes com o ras (“ligneux”) pelas populações pré-históricas.
meio vegetal, através da antracologia. Embora Para se atingir estes objetivos, três
alguns pesquisadores já tenham apontado para a questões foram colocadas pela autora: 1. a
importância da coleta vegetal, como Tenório antracologia é uma ferramenta adequada aos
(1991), há ainda poucas pesquisas nesta linha. objetivos fixados?; 2. em que medida o estudo
A antracologia foi definida por Scheel, antracológico é aplicável aos meios tropicais?
Gaspar e Ybert (1996:3) como “o estudo e e 3. os métodos desenvolvidos para a análise
interpretação dos restos de madeira carboni­ antracológica dos meios mediterrânicos são
zados provenientes dos solos ou de sítios adaptáveis ao meio tropical?
arqueológicos. Esta disciplina, baseada na O estudo antracológico foi realizado em sete
identificação anatômica dos carvões, pode sítios arqueológicos localizados no litoral do
fornecer informações de cunho etnoarqueoló- Estado do Rio de Janeiro, entre Cabo Frio e
gico e paleoecológico”. Saquarema: os sambaquis do Forte, Salinas
O trabalho de Rita Scheel-Ybert é pioneiro Peroano, Boca da Barra e do Meio (Cabo Frio),
no Brasil e, na América do Sul, os estudos da Ponta da Cabeça (Arraial do Cabo), da Beirada
antracológicos começaram a ser realizados na e da Pontinha (Saquarema). Para esta região de
década de 90, na Patagônia e na Guiana estudo, a pesquisadora sintetizou o conhecimen­
Francesa. No entanto, as ocorrências de to sobre clima, geomorfologia litorânea, vegeta­
carvão em solos, sedimentos eólicos, lacustres ção e povoamento pré-histórico.
e paludiais têm sido registrados no Brasil e Os aspectos metodológicos foram ampla­
estudados por quaternaristas desde a década mente desenvolvidos no Capítulo 2, onde
de 80 (Suguio, 1999: 275), interessados no abordou questões teóricas relacionadas à
estudo dos paleoclimas. representatividade paleoecológica dos carvões
Os principais objetivos da tese foram: a de madeiras arqueológicos e à análise das
reconstituição da evolução paleoambiental e amostras; as metodologias de campo e de
paleoclimática do litoral do Estado do Rio de laboratório e a validade da amostragem. Esta
Janeiro ao longo dos seis últimos milênios; a parte da tese é especialmente importante para
os arqueólogos brasileiros, porque apresenta
de forma clara como é feito o trabalho antra­
cológico, seus alcances e limites.
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia/Universidade de Para cada um dos sete sítios pesquisados,
São Paulo há uma síntese do quadro arqueológico com

317
Estudos Bibliográficos: Resenhas - Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 10: 317-319, 2000.

base nas publicações dos arqueólogos A pesquisadora afirmou que é possível lançar
responsáveis pelas escavações: Lina Kneip, a hipótese de que as formações litorâneas, onde o
Osvaldo Heredia e Maria Cristina Tenório. componente pedológico é determinante, são
Estes sítios foram pesquisados nas décadas de resistentes às mudanças climáticas. Ela conside­
70 (Forte), 80 (Salinas Peroano, Boca da Barra, rou que a estabilidade do ambiente foi um fator
do Meio e da Beirada) e no final de 80/início de decisivo para a manutenção do sistema sócio-
90 (Ponta da Cabeça e Prainha); foram ocupa­ cultural das populações sambaquieiras, que
dos na segunda metade do Holoceno, entre conservaram uma cultura por mais de 6.000 anos.
5500 e 1600 anos BP. Em cada um deles, foram Acreditando que a antracologia é uma
reabertos perfis estratigráficos para a coleta disciplina privilegiada para a reconstituição do
das amostras antracológicas. paleoambiente associado aos sambaquis, e
Um dos resultados mais interessantes também para a dedução dos diversos aspectos
obtidos por Rita Scheel-Ybert foi no sambaqui do paleoetnológicos das populações pré-históricas, a
Forte. Descoberto na década de 60 e pesquisado autora chegou a conclusões interessantes quanto
pela equipe de Lina Kneip (Museu Nacional/ aos carvões das fogueiras, à coleta de madeira
UFRJ) na década seguinte, este sítio representa para o fogo e aos produtos de origem vegetal na
um importante marco na arqueologia brasileira por alimentação dos grupos sambaquieiros.
ser um dos mais antigos da região sudeste e por A coleta de madeira morta, aleatória,
•ter sido objeto da primeira aplicação do método de forneceu o essencial para o fogo; no entanto,
decapagem horizontal de grandes superfícies por a abundância de Condalia sp, rara hoje na
camadas naturais em sambaqui. Lina Kneip restinga, sugere uma seleção cultural. Esta
identificou a existência de dois sambaquis escolha pode estar ligada às qualidades da
superpostos, separados por uma camada arenosa madeira para fins utilitários ou rituais. Rita
estéril, com espessuras variando de 0,50 a 1,70 m. Scheel-Ybert demonstrou que a coleta de
Esta camada foi considerada como o resultado de produtos vegetais pelos sambaquieiros era
um período de abandono do sítio, durante o qual significativa, como os numerosos fragmentos
houve deposição de areias por ação eólica. de frutos de palmeiras (coquinhos) carboniza­
No entanto, Rita Scheel-Ybert observou que dos, grãos e resíduos de tubérculos de
a camada arenosa intercalada entre outras com monocotiledônias (gramíneas e/ou ciperáceas
muitas conchas é extremamente rica em fragmen­ e inhames) encontrados atestam.
tos de carvão, produtos de debitagem de quartzo As pesquisas de Levy Figuti (Figuti,
e marcas de fogueiras e concluiu que não pode 1992) demonstraram a maior importância da
ser considerada estéril. Ou seja, diferentemente pesca com relação à coleta de moluscos na
de Lina Kneip, considerou que o sítio foi alimentação das populações sambaquieiras; e
ocupado de forma contínua. Rita Scheel-Ybert comprovou a importância
Na síntese sobre as análises antracológicas dos produtos vegetais. Estes dois autores
nos sete sambaquis, Rita Scheel-Ybert obser­ oferecem um quadro bastante diferente do
vou que a região estudada foi ocupada no que se tinha até a década de 80 sobre a ali­
Holoceno Superior por floresta de restinga, mentação dos grupos sambaquieiros e atestam,
floresta seca típica dos maciços rochosos de com suas pesquisas nas áreas de zooarqueo-
Cabo Frio e Floresta Atlântica, além do mangue- logia e antracologia, respectivamente, como o
zal. Apesar de terem sido registradas oscilações registro arqueológico pode ser enganoso em
climáticas na região, que afetaram a vegetação um primeiro momento de observação, devido à
do mangue, não foram encontrados indícios de conservação diferencial dos vestígios. Ou seja,
mudança notável no ecossistema vegetal. como as conchas são muito visíveis nos
Neste sentido, a tese de Rita Scheel-Ybert é sambaquis, as populações eram consideradas
importante para arqueólogos e outros profissio­ basicamente como coletoras de moluscos. As
nais quatemaristas porque demonstra que a pesquisas destes dois autores exemplificam a
correspondência entre mudanças climáticas e necessidade de uma especialização dentro da
nas formações vegetais não é uma norma e disciplina arqueológica e um cuidado maior com
pode ser identificada, ou não, como foi o caso amostragem e análise, para a produção de
estudado, pelas análises antracológicas. novos conhecimentos.

318
Estudos Bibliográficos: Resenhas — Rev. do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 317-319, 2000.

Nas conclusões da tese, Rita Scheel-Ybert vários motivos: introduziu a análise antraco-
apresentou claramente os avanços da antraco- lógica nos sambaquis brasileiros, mostrando
logia e como seus estudos puderam contribuir que é possível ser realizada a coleta mesmo
para interpretações de ordem paleoambiental, após o término das escavações, facilitou
identificando o quadro fitogeográfico das futuros trabalhos antracológicos pela confec­
populações pescadoras-coletoras-caçadoras e, ção de uma coleção de referência e a criação
também, para as relações entre as populações de um banco de dados informatizado; demons­
pré-históricas e seu meio ambiente, com a trou que uma mudança climática não é acompa­
formulação de observações paleoetnológicas nhada necessariamente por mudanças na
referentes à utilização da madeira e à alimenta­ cobertura vegetal (o clima não é o único fator
ção dos sambaquieiros. de alteração) e mostrou que a coleta de
A autora retomou as questões formuladas produtos vegetais foi bastante importante para
no início da tese para afirmar que: 1. os as populações sambaquieiras
sedimentos dos sambaquis contêm quase A autora contribui, junto com outros
sempre uma grande quantidade de fragmentos arqueólogos em pesquisas realizadas princi­
de carvão provenientes de fogueiras domésti­ palmente nesta década, para uma visão
cas e os espectros antracológicos representam bastante diferente das populações samba­
essencialmente a vegetação local; 2. os quieiras do que se tinha até a década de 80.
estudos antracológicos são aplicáveis em meio De um cenário com bandos nômades,
tropical, principalmente com a constituição de pouco numerosos, consumidores de moluscos,
coleções de referência de madeiras carboniza­ cujos sítios eram formados por resíduos de
das e bancos de dados informatizados; 3. a alimentação, “lixo” depositado aleatoriamente,
antracoanálise de material arqueológico das passou-se para um outro quadro, com popula­
regiões tropicais fornece resultados confiá­ ções sedentárias, alimentação variada, mas
veis, mas adequações metodológicas deverão constituída principalmente pela pesca, coleta de
ser feitas para melhorar as interpretações moluscos e vegetais e caça, cujos sítios revelam
paleoambientais. que “o hábito de acumular restos alimentares
A tese de doutorado de Rita Scheel-Ybert e industriais, morar sobre eles e lá mesmo
muito colabora para a arqueologia brasileira e sepultar os mortos é expressão material de um
para outras pesquisas quaternaristas por sistema de regras sociais,, (Gaspar 1996: 82).

Referências bibliográficas

FIGUTI, L. SCHEEL, R.; GASPAR, M.D. & YBERT, J.P.


1 9 9 2 . L es sa m b a q u is COSIPA (4 2 0 0 à 1200 ans 19 9 6 . Antracologia, uma nova fonte de inform a­
BP): étude de la subsistance chez les peuples ções para a Arqueologia Brasileira. Revista
p ré h isto riq u es de pêch eu rs-ram asseu rs de do Museu de A rq u eologia e E tn ologia, 6:
b iv a lv e s de la cô te cen tra le de V E ta t de 3 -9 .
S ão P a u lo , B r é s il. T h èse de D octorat. SUGUIO, K.
M u séum N a tion al d 'H isto ir e N a tu relle, 19 9 9 . G e o lo g ia d o Q u a te r n á r io e M u d a n ç a s
Institut de Paléontologie Humaine. Paris. A m bien tais (P a ssa d o + P resen te = Futu­
GASPAR, M.D. ro?). São Paulo: P aulo’ s Com unicação e
1996. A nálise das datações radiocarbônicas dos Artes G ráficas.
sítios de pescadores, coletores e caçadores. TENORIO, M.C.
Boletim do Museu P araense Em ílio Goeldi, 19 9 1 . A importância da coleta no advento da a gri­
série C iências da Terra, 8: 81-91. cultura. Tese de mestrado. Instituto de Fi­
losofia e Ciências Sociais, UFRJ. Rio de Ja­
neiro.

Recebido pa ra p u blicação em 5 de novem bro de 1999.

319
Notas
R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 323-327, 2000.

CONSERVAÇÃO E RESTAURO DE CERÂMICAS


ARQUEOLÓGICAS: W O R K S H O P

Introdução que congregaria os conservadores ou respon­


sáveis pelas coleções dos principais museus
No período de 25 a 29 de julho de 2000, que cederiam peças para esta mostra. De
acordo com Cristiana Barreto, este workshop
ocorreu no MAE/USP o workshop “Conserva­
teria a possibilidade de assegurar que as peças
ção e Restauro de Cerâmicas Arqueológicas”.
expostas seriam restauradas e conservadas em
Este evento foi promovido pelo Museu de
seus museus de origem dentro de um mesmo
Arqueologia e Etnologia da Universidade de
padrão, permitindo que os participantes das
São Paulo, British Museum e Associação
várias instituições envolvidas pudessem tomar
Brasil +500 Anos. Dirigido apenas para
contato com as técnicas mais avançadas nesta
conservadores de instituições brasileiras, foi
área de conservação e restauro, na qual, sem
ministrado por Janet Quinton, Conservadora
dúvida, o British Museum é mundialmente
Sênior do Museu Britânico de Londres, no
reconhecido.
Laboratório de Conservação e Restauro do
O Laboratório de Conservação do MAE/
MAE/USP como parte das atividades prepara­
USP, apesar de suas pequenas dimensões, foi
tórias para a exposição Unknown Amazon, que
escolhido por ser o mais bem equipado e pelo
será aberta em outubro de 2001, no Museu
nosso próprio envolvimento anterior na
Britânico.
“Mostra do Redescobrimento”. Também o
MAE/USP contava com salas de aula e
coleções com todas as características citadas
Amazônia Desconhecida anteriormente.
As instituições convidadas que enviaram
A idéia de um workshop de conservação e representantes para o worshop foram:
restauro de cerâmicas arqueológicas começou - Museu Paraense Emílio Goeldi;1
a ser discutida desde as primeiras visitas à - Museu Nacional da Universidade
Reserva Técnica do MAE/USP, quando os Federal do Rio de Janeiro;2
curadores da exposição Unknown Amazon, - Museu do índio FUNAI, do Rio de
Prof. Dr. Eduardo Góes Neves (MAE/USP), Janeiro;3
Cristiana Barreto (Associação Brasil +500 Por nossa sugestão, Cristiana Barreto
Anos) Prof. Dr. Colin McEwan (British Museum) convidou um representante do CECOR,4
selecionavam as peças. Eles constataram essa Centro de Conservação e Restauração da
necessidade ao visitarem as instituições que Escola de Belas Artes da Universidade Federal
emprestariam os objetos para a mostra itine­ de Minas Gerais, como forma de possibilitar a
rante promovida pela Associação Brasil +500 divulgação (efeito multiplicador) dos conheci­
Anos em parceria com o British Museum. A mentos e dessa experiência neste que é um dos
diversidade de estados de conservação em
que se encontrava a maioria das peças levou à
exigência de observá-las sob um contexto mais (1) Vera Lúcia Calandrini Guapindaia (Curadora das
uniforme. Muitas delas já haviam passado por coleções arqueológicas) e Raimundo Teodorio dos
diversas intervenções, sem critérios compatí­ Santos.
veis com a conservação científica; algumas (2) Ângela Maria Camardela Rabello (Arqueóloga,
assistente de curadoria das coleções arqueológicas) e
precisavam de cuidados imediatos, sem os
Fátima N ascim ento (Antropóloga, curadora das
quais estariam com sua integridade física
coleçõ es etnográficas).
ameaçada; outras ainda estavam com camadas (3) Lucia Bastos (Restauradora).
de terra de escavação. A partir daí, começaram (4) Moema N ascim ento Queiroz (Especialista em
a trabalhar com a possibilidade de um workshop conservação e restauração de bens culturais m óveis).

323
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 323-327, 2000.

únicos centros especializados em formação refixação de camadas de pintura decorativa ou


profissional de conservadores em nosso país. cerâmicas em desprendimento e suas conseqü­
A parceria estabelecida possibilitou a ências, consolidação de fraturas e rachaduras,
vinda de dois profissionais do departamento remontagem de obras e métodos de preenchi­
de conservação do British Museum: Janet mento de lacunas e a possibilidade de reinter-
Quinton, Conservadora Sénior da área de pretação de perdas;
materiais inorgânicos, quem ministrou o curso; - conferência sobre conservação e
Barbara Wills, Conservadora Sênior da área de restauração de materiais orgânicos, proferida
materiais orgânicos. por Barbara Wills e de materiais inorgânicos,
Na abertura do evento, houve os pronun­ proferida por Janet Quinton;
ciamentos da Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino
Fleming, representando o MAE/USP, do Sr. Os trabalhos práticos às tardes tiveram a
Rene Parrini, representando a Associação seguinte seqüência:
Brasil +500 Anos, de Cristiana Barreto, repre­ - distribuição do material didático (kit
sentando os curadores. Em seguida, Janet individual)6 com explicações sobre a utilização
Quinton apresentou a palestra “The British e função dos diversos materiais a serem
Museum: A Potted History (Uma breve usados, suas aplicabilidades, composição
história do Museu Britânico e seu departamen­ química, fatores de risco e segurança no
to de conservação)”, aberta ao público em manuseio etc.;
geral, com a participação de Barbara Wills.5 - escolha de peças arqueológicas do
acervo do MAE/USP que apresentavam
problemas para a discussão, demonstração de
Workshop procedimentos e exercícios práticos7. Cada
participante ficou com uma peça e pode
Estabeleceu-se uma metodologia para o experimentar técnicas diversas de limpeza;
workshop: manhãs com aulas teóricas tendo - preparação dos adesivos a serem
como material didático a apresentação de utilizados com explicações teóricas sobre os
diapositivos seguida de discussões entre os produtos;
participantes e os professores, referentes às - técnicas de limpeza de fragmento
respectivas experiências e tardes, com aulas arqueológico (peças cedidas pelo MAE):
práticas no Laboratório do MAE. limpeza a seco, limpeza com solventes, limpeza
Os temas abordados às manhãs foram: com jato de vapor;
- apresentações do grupo participante e as - fragmentação proposital de um vaso
diretrizes do encontro, com uma explanação cerâmico (material didático) para as práticas no
sobre as idéias básicas sobre a exposição
“Unknown A m a z o r í dos professores convida­
dos com um breve histórico do British Museum
(6) Durante os m eses de preparação deste workshop,
e sua filosofia de atuação; dos departamentos Janet Quinton e o coordenador do Laboratório de
de conservação e restauração do British Conservação e Restauro do M A E /U SP mantiveram
Museum e seu corpo técnico e administrativo; uma correspondência eletrônica para a definição de
- critérios de conservação e restauração quais materiais eram encontrados no mercado
adotados no British Museum; brasileiro e quais deveriam ser importados da
Inglaterra. Janet Quinton efetuou as compras na
- distribuição de material didático para o
Inglaterra e Gedley Braga as compras no Brasil. A
curso e de divulgação do British Museum; A ssociação Brasil +500 Anos realizou a importação
- discussão sobre os processos de e cobriu todos os custos dos materiais encontrados
conservação e restauração, como limpeza, no mercado nacional. Alguns solventes e os
equipam entos de laboratório foram fornecidos pelo
M AE/USP.
(7) Uma seleção prévia do material que poderia trazer
(5) Para facilitar a com unicação, a A ssociação Brasil mais discussões e oportunidades de experiências já
+500 Anos contratou um serviço de tradução havia sido feita por Janet Quinton e Gedley Braga no
simultânea, disponível durante todo o workshop. dia anterior ao início oficial do workshop.

32 4
Notas — R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 70: 323-327, 2000.

Conferência de Janet Quinton.

Trabalhos práticos.

laboratório utilizando a metodologia usada permitiram testes com os diversos tipos de


pelos departamentos de conservação e adesivos preparados e/ou disponíveis,
restauração do British Museum. Os procedi complementações e preenchimentos. Cada
mentos de reorganização dos fragmentos participante foi orientado a levar para suas

325
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 323-327, 2000.

Seminário.

Apresentação dos materiais aos participantes.

instituições (em pontos distintos do país) o ambientes (diversos tipos de temperatura e


seu vaso com seus fragmentos reconstituídos umidade relativa no país).
com vários tipos de adesivos e a observarem o Um dia especial foi reservado para a visita
comportamento das uniões efetuadas em seus aos Módulos de Arqueologia e Artes Indíge­

326
Notas — R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 323-327, 2000.

nas da Mostra do Redescobrimento, no Conclusão


Pavilhão Lucas Nogueira Garcez (Oca), no
Parque do Ibirapuera. Nesta oportunidade, Durante o workshop, ao longo da jornada
todos os participantes do workshop se teórica e prática, os vários especialistas
encontraram com todos os curadores da puderam trocar informações relevantes quanto
exposição Unknown Amazon para uma à forma de atuação na conservação de materi­
discussão quanto ao estado de conservação ais cerâmicos arqueológicos, confrontando
das peças expostas, principalmente aquelas suas respectivas metodologias com os proce­
que poderiam ser selecionadas para a exposi­ dimentos habitualmente aplicados no British
ção no British Museum. Os curadores falaram Museum. O intercâmbio foi extremamente
da expectativa quanto aos resultados de enriquecedor, levando-se em consideração as
possíveis tratamentos. Os instrutores analisa­ grandes diferenças regionais no nosso país e
ram as peças expostas com diferentes graus de na Inglaterra. Os objetivos iniciais de se criar a
intervenções: se estas eram adequadas ou oportunidade para a discussão de uma lingua­
inadequadas, excessivas ou não, opcionais ou gem uniforme e coerente com a proposta de
obrigatórias (para garantir a estabilidade do critérios de conservação direcionados à
objeto). Foram discutidos aspectos como a exposição “ Unknown Amazon” puderam ser
fragilidade de certas peças, se elas poderiam alcançados, sendo a possibilidade de aplica­
viajar, como deveriam ser manuseadas e ção destas experiências adequadas às diferen­
expostas, se poderiam ser limpas ou terem tes realidades regionais e formações profissio­
certas intervenções removidas, preenchimen­ nais dos participantes do curso.
tos de lacunas, refazer ou não as partes Nesta oportunidade se estabeleceu,
faltantes. Nestas discussões ficavam claros também, um diálogo entre as áreas científicas
alguns aspectos subjetivos ou éticos da do British Museum e o MAE/USP.
restauração: principalmente aqueles que se
referiam à apresentação estética dos objetos Agradecimentos
(formas diferentes de reintegração cromática),
preenchimento ou recomposição de perdas. As
Aos curadores Cristiana Barreto, Eduardo
características mais relacionadas com a
Góes Neves e Colin McEwan.
segurança e conservação das peças através da
A Profa. Dra. Maria Isabel D ’Agostino
mínima intervenção também foram lembradas.
Fleming
As discussões foram ricas e acaloradas diante
Ângela de Menezes Freitas
de tantas peças com restaurações antigas,
À Associação Brasil +500 Anos
realizadas quando ainda não estavam em
Ao MAE/USP e ao Bristish Museum
prática os princípios básicos da conservação
científica (ou porque ainda não haviam sido
postulados ou porque eram desconhecidos Gedley Belchior Braga*
pelos antigos restauradores). Moema Nascimento Queiroz**

R ecebido p a ra p u b lica çã o em 15 de a g osto de 2000.

(*) Laboratório de Conservação e Restauro do


Serviço de Curadoria do Museu de Arqueologia e
Etnologia - Universidade de São Paulo.
(**) CECOR, Centro de Conservação e Restauração
da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de
Minas Gerais.

327
R evista do M useu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 1 0: 329-336, 2000.

A L G U N S D A D O S R E L A T IV O S A O PR O JETO D E
P E S Q U IS A “ A R Q U E O L O G IA D E U M S A N T U Á R IO :
O HERAION D E D E LO S , G R É C IA ”

Introdução e resumo de períbolo e o muro de sustentação do


do projeto de pesquisa terraço dos templos.
Com base nestes dados, tenho aprofun­
dado as seguintes questões em várias etapas
Em 1990, o ex-Diretor da École Française
de pesquisas:
d’Athènes, Prof. Dr. Olivier Picard, encarre-
gou-me de retomar o conjunto do dossiê do 1. O santuário de Hera (Heraion), suas
Heraion de Delos com vistas a uma nova estruturas arquitetônicas, seu significado,
publicação: escavado em 1911 por Pierre sua caracterização técnica, bem como sua
Roussel, o monumento e as oferendas votivas cronologia exata.
foram publicadas sucessivamente por Charles 2. As oferendas votivas: vasos e
Dugas, André Plassart e Alfred Laumonier de terracotas, com análises detalhadas,
1928 a 1956. Foram realizadas sondagens em classificação, iconografia e cronologia.
1953 e 1958 por Paul Bernard e, em 1964, por 3. O Heraion e as questões históricas:
Jean Ducat. pela freqüentação do santuário, cuja
O reexame deste material arqueológico origem será conhecida pela determinação
levou-me a questionar a classificação das dos centros de produção das oferendas,
inúmeras categorias cerâmicas, das terracotas, estudo e tipologia das relações entre as
dos fragmentos arquitetônicos e, do mesmo cidades gregas das Cíclades, da Grécia
modo, a cronologia dos objetos e do monu­ continental e da Jônia e o santuário de
mento: dois templos, um mais antigo que o Hera em Delos.
outro, um altar, um muro de períbolo, um muro 4. O Heraion e as questões antropoló­
de sustentação do terraço. gicas: análise dos objetos como oferen­
As três campanhas de estudo realizadas das votivas, a noção de dom a uma
em 1990, 1996 e 1999 revelaram, sobretudo a divindade; definição de conceitos como
partir do exame do material das sondagens tradição, inovação, assimilação e acultu­
de Paul Bernard e de Jean Ducat, a presença ração de formas e decoração dos ex-
de fragmentos cerâmicos do Geométrico votos.
Recente (750-700 a.C.) o que reforçou desta
maneira uma data mais antiga para o início
do culto de Hera neste santuário; e também O Heraion de Delos: pesquisas da
do material cerâmico ático com figuras campanha de 2000
vermelhas, mais recentes do que se acredita­
va até então, isto é, datado de após 480 a.C. Durante o período de 75 dias na G récia,1
Isto coloca o problema do início do santuá­ incluindo 30 dias em Delos e 45 dias em
rio e da cronologia do templo mais antigo, o Atenas, realizou-se um programa incluindo
Heraion I, e da data do templo mais recente, pesquisas de campo em Delos (estudo das
o Heraion II. A análise dos artefatos, todos estruturas arquitetônicas no sítio arqueoló­
objetos votivos consagrados à deusa Hera, gico e da cerâmica na Reserva Técnica do
orienta também para o conhecimento da Museu local), em Míconos, no Museu Ar-
história do culto praticado em honra a esta
deusa e apóia uma melhor datação das
outras estruturas arquitetônicas su b sis­
tentes no santuário, a saber, o altar, o muro (1) Com Bolsa de Pesquisa no Exterior, FAPESP.

329
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 329-336, 2000.

queológico, e, em Atenas, nos locais da Escola 1.2. O Heraion II (Fig. 4)


Francesa de Arqueologia, pesquisas documen­
tais na Biblioteca, Fototeca, Planoteca e Este segundo templo de Hera forma um
Arquivo, bem como estudos comparativos retângulo de 13,05m, 13,8m N-S por 6,95m,
com material cerâmico conservado nos museus 6,97m O-E, com fachada ao sul constituída de
Benaki, Cicládico e Cerâmico. duas colunas in antis. Trata-se de um templo
de ordem dórica, composta de um pronaos e
de uma cella. O alicerce é feito de gneis e de
1. As estruturas arquitetônicas no
granito; na parte oeste, dois tambores de
sítio arqueológico (Fig. 1)
mármore branco aí estão excepcionalmente
dispostos. O aparelhamento externo da
I.1. O Heraion 1 (Fig. 2)
elevação bem como o pronaos são constituí­
O Heraion I, templo de Hera mais antigo, dos de blocos retangulares de mármore
foi descoberto no interior da cella do Heraion branco, o piso da cella era feito de pequenos
II, templo de Hera mais recente. Para uma seixos também brancos justapostos em uma
melhor análise das estruturas, procedeu-se em camada de cimento pouco espessa estabe­
primeiro lugar a uma limpeza geral, que possi­ lecida sobre um leito de pedrinhas.
bilitou uma compreensão mais nítida das Durante a escavação de 1911, antes da
construções. Este primeiro templo foi edificado escavação do templo antigo (Heraion I),
com placas de gneis dispostas com uma certa descobriram-se na cella os alicerces de uma
regularidade. De forma trapezoidal, tem as grande base retangular disposta um pouco
seguintes dimensões externas: muro N = obliquamente, cerca de 2,75m ao N da soleira.
3,40m; muro S = 2,85m; muro O = 2,77m; muro E Estas fundações foram retiradas e recompostas
= 2,87m. A abertura da porta, orientada ao S, sobre uma pequena esplanada ao N do
tem 0,98m de largura. edifício; feitas de lajes de gneis ou de mármo­
Em sua parte posterior, existe uma ban­ re, medem 3,70m de largura e 2,70m de profun­
queta cultuai, com 0,48m de altura acima do didade, conservam ainda na parte superior
rochedo e com 0,20m aproximadamente acima quatro blocos de mármore branco. Certamente
do nível antigo. Ela ocupa quase a metade esta fundação no interior do novo templo
deste pequeno naos e é constituída por um devia suportar a estátua de culto.
recheio de terra e de pedras que limitam os Np pronaos, duas banquetas laterais, a
murinhos em placas finas de gneis e que leste e oeste, deviam servir como assento para
recobrem as lajes de gneis com dimensões os fiéis que vinham prestar seu culto à deusa.
variáveis. O monumento comportando os dois
Há vestígios do teto, pois alguns restos de templos (Heraion I e II), o mais antigo embuti­
cobertura foram recolhidos nas escavações de do no mais recente, está cercado por um
1911: encontram-se na Reserva Técnica, ainda recinto retangular, os muros de períbolo, que
para serem analisados detidamente, inúmeros parece ser paralelo ao templo I, apesar de as
fragmentos de telhas planas e alguns fragmen­ interpretações feitas até o momento verem-no
tos de simae, de terracota: a decoração da sima como paralelo ao templo II. Este períbolo
consta de palmetas e de flor de lótus pintadas constitui-se de blocos de granito e de gneis e
em vermelho púrpura (Fig. 3). está mais bem conservado no lado sul.
É provável que o Heraion I possuísse à Diante do Heraion, fora do períbolo,
sua volta uma colunata de madeira, uma vez encontra-se o altar: sobre os alicerces de lajes
que foram encontradas pequenas bases de gneis e blocos de granito repousa uma
troncocônicas de mármore que são, na verda­ enthynteria de mármore branco e placas de
de, suportes de colunas. O número dos gneis com contornos irregulares completam
fragmentos destas bases conservadas indica­ esta base no interior. A situação deste altar
ria uma disposição períptera e colunas bem fora do muro de períbolo é bastante problemá­
próximas, talvez quatro para cada face do tica se nós entendermos o muro de períbolo
templo. como recinto do Heraion II. Ora, parece

330
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rq E m o lo g ia s ä o P a u to ^ ^ ^
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 329-336, 2000.

Fig. 2 - Heraion I. Foto EFA, Philippe Collet.

Fig. 3 - Fragmentos arquitetônicos. Foto EFA.

332
Notas — R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 329-336, 2000.

Fig. 4 - 0 Heraion II. Foto EFA, Phillipe Collet.

estranho que tanto o altar quanto boa parte do depósito votivo, quanto observamos fragmen­
terraço do templo ficassem fora do recinto tos do período geométrico recente no material
sagrado. Daí, a interpretação acima, de que o proveniente sobretudo das sondagens de 1964
períbolo depende mais do Heraion I do que do realizadas por Jean Ducat. Seria preciso
Heraion II, poderá esclarecer esta questão. considerar melhor estes achados e levá-los em
Tal altar, pelo tipo de grampo em duplo T conta não só no que respeita ao início da
entre as lajes de mármore, por tratar-se de um prática cultuai mas também no que se refere às
altar dotado de frontões e pelo emprego de lajes estruturas do Heraion I.
de gneis no alicerce, parece datar do séc. IV a.C. A cronologia do templo mais recente, o
O conjunto de estruturas arquitetônicas é Heraion II, tem sido fixada entre o final do
enquadrado por um muro de sustentação do século VI a.C. e os primeiros anos do século V.
terraço, cujo aparelhamento oeste é visível e Mais uma vez, um reexame dos vasos e
caracterizado por enormes blocos de granito fragmentos cerâmicos, desta vez áticos de
com apenas a face externa sumariamente figuras negras e de figuras vermelhas, aponta
aplainada. A técnica deste muro de terraço para o final do primeiro quartel do século V
parece indicar uma data no período arcaico, a.C. (ou mesmo meados do séc. V a.C.) vale
porém a cronologia mais específica e melhor dizer, entre os anos 475 e 450 a.C.
determinada exigirá um estudo mais aprofun­ Os muros de períbolo e de sustentação têm
dado. uma cronologia insegura e devem ser estuda­
Algumas questões cronológicas se dos quanto à técnica de construção e quanto
apresentam: em primeiro lugar, deve-se salien­ ao relacionamento com os templos de Hera.
tar que o Heraion, com todas as suas constru­
ções, tem uma cronologia um tanto quanto 2. A coleção cerâmica
incerta: o Heraion I, como bem mencionamos conservada no Museu local
acima, tem sido datado do séc. VII a.C., com
base no depósito votivo que se compõe de As categorias cerâmicas identificadas por
inúmeros vasos cicládicos, protocoríntios e da Charles Dugas em 1928 incluem, em um total de
Grécia de Leste desse período. Ora, não só um milhar de exemplares (sem contar os
encontramos vasos geométricos, neste fragmentos), vasos cicládicos orientalizantes

333
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 329-336, 2000.

(alguns do final do geométrico); vasos orienta- figuras vermelhas), logo, um quadro cronológi­
lizantes da Grécia de Leste; vasos protoco- co de mais de dois séculos e meio.
ríntios e corintios; vasos áticos. Poucos são
os exemplares de Creta, Chipre e outras raras
localidades ainda a serem determinadas. Nas Perspectivas
etapas de estudo de 1990, 1996 e 1999, foi
possível reexaminar estes vasos. Na etapa As pesquisas continuarão por ainda
deste ano, dediquei-me exclusivamente ao alguns anos. Inseridas no Plano Diretor
estudo dos fragmentos e de alguns pequenos quadrienal da École Française d’Athènes, são
vasos conservados na Reserva Técnica do parte substancial de um programa prioritário
Museu de Délos. Esta pesquisa foi desenvol­ mais amplo incluindo o estudo dos santuários
vida com a colaboração de dois dos meus de Delos: uma síntese sobre o santuário de
orientandos, Fábio Vergara Cerqueira e André Apoio em preparação sob a responsabilidade
Leonardo Chevitarese, os quais usufruíram de de Roland Etienne, Diretor da École Française
uma bolsa de estudos da Escola Francesa de d ’Athènes; as publicações do santuário de
Atenas, precisamente para esta finalidade. Anios por Francis Prost, ex-membro da EFA e
Assim sendo, fizemos a análise de material professor na Universidade de Rennes, e do
cerâmico contido em 18 gavetas, num total de santuário de Serapis por Hélène Siard, também
aproximadamente 550 exemplares entre peque­ ex-membro da EFA e professora da Universida­
nos vasos e fragmentos, dentre os quais 50% de de Limoges.
foram também fotografados. No tocante ao Santuário de Hera, preten-
As categorias cerâmicas registradas são: de-se proceder a uma série de escavações (ver
1. C erâm ica cicládica: geom étrico, Fig. 1, indicações com hachuras) com o
orientalizante (Fig. 5) incluindo os importan­
tes exemplares de pratos provavelmente de
Paros, vasos de Naxos, pínakes policroma­
dos, e vasos de estilo “meliano”.
2. Cerâmica da Grécia de Leste: orien­
talizante ródio, askoi de Rodes, taças jóni­
cas, aríbalos e enócoas rodo-jônicos; buc-
chero jónico (Fig. 6).
3. Cerâmica de Corinto incluindo os
proto-coríntios e os corintios propriamente
ditos (Fig. 7).
4. Cerâmica ática, incluindo as técni­
cas de figuras negras e de figuras verme­
lhas (Figs. 8, 9, 10).
Na análise destes artefatos, levamos em
conta a caracterização e a coloração da argila e
do verniz, esta última baseada com rigor na
Notice sur le Code de Couleurs des Sois de A.
Cailleux (Boubée, Rondei Imp., s/l, s/d).
Por outro lado, muitas comparações foram
feitas com os vasos expostos nas vitrinas do
Museu, a maioria deles provenientes do Heraion
e pertencentes às mesmas categorias cerâmicas.
Vale ressaltar, finalmente, que as datas do
material analisado referem-se à 2a metade do
séc. VIII a.C. (cerâmica geométrica das C id a­ Fig. 5 - Fragmento de ánfora cicládica orienta­
des) até meados do século V (cerâmica ática de lizante. Foto H. Sarian.

334
Notas — R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 1 0 : 329-336, 2000.

objetivo principal de situar melhor a cronolo­


gia das estruturas. Estas escavações, previs­
tas para 2002, orientarão as possibilidades de
outras pesquisas de campo para o futuro. Por

Fig. 6 - Fragmento de prato da Grécia de


Leste, Rodes. Foto H. Sarian.

outro lado, prosseguir-se-ão os estudos do


material votivo conservado no Museu local
procedente das escavações de 1911 e, logi­
camente, do material que por ventura for
descoberto nas escavações a serem realizadas
a partir de 2002. Fig. 7 - Aríbalo proto-corintio. Foto H. Sarian.

Fig. 8 - Fragmento de vaso ático de figuras negras. Foto H. Sarian.

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Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 329-336, 2000.

Fig. 9 - Fragmentos de vasos áticos de figuras vermelhas. Foto H. Sarian.

Fig. 10 - Fragmentos de vasos áticos com inscrições dedicatórias à deu­


sa Hera. Foto H. Sarian.

B ib lio g r a f ia b â s ic a

DUGAS, C. PLASSART, A.
19 2 8 Les vases de l ’Héraion. Paris: De Boccard. 1928 Les sanctuaires et les cultes du Mont Cynthe.
(EA D , X). Paris: De Boccard. (EAD, XI).
LAUM ONIER, A.
19 5 6 L es f ig u r in e s de te r re cu ite. Paris: D e
Boccard. (EAD, XXIII). Haiganuch Sarian*

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade


R ecebido p a ra pu blicação em 6 de dezem bro de 2000. de São Paulo.

336
Rev. d o Museu d e A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 337-339, 2000.

ARQUEOLOGIA DO RÍO QUEQUÉN GRANDE


(REGIÃO PAMPEANA, ARGENTINA)

De 23 de outubro a 18 de novembro de 2000, Pampeana. Paso Otero 5 constitui um sítio de


foi realizada a segunda etapa de escavações no caça e processamento secundário, contendo,
sítio Paso Otero 5, localizado nas barrancas do basicamente, ossos de mamíferos de pequeno
curso médio do rio Quequén Grande, na planície porte, quantidade abundante de ossos queima­
pampeana, Argentina. Os trabalhos, coordena­ dos, ossos sem sinais de combustão, perten­
dos pelos Profs. Drs. Gustavo Politis (UNCPBA), centes a megamamíferos extintos (megatério,
Gustavo Martínez (UNCPBA) e Profa. Ms. Maria toxodonte, cavalo americano e camelídeos
Gutiérrez (UNCPBA), contaram com a participa­ extintos), além de vestígios líticos (47 artefa­
ção de uma equipe com cerca de vinte integran­ tos), entre os quais se encontra uma ponta de
tes, composta por estudantes do curso de projétil do tipo cola de pescado (rabo de
graduação em Arqueologia, da Universidad peixe). A explicação proposta para a existência
Nacional dei Centro de la Provincia de Buenos dos ossos queimados seria a utilização de
,\ires, Universidad Nacional de La Plata e parte do material como combustível para as
também de estudantes de pós-graduação do fogueiras.
’ LAE-USP (Adriana Schmidt Dias; Denise Maria A história da pesquisa na área remonta
Cavalcante Gomes; Lucas Bueno; e Patrícia aos anos 40, com estudos sistemáticos
Bayot Donati). desenvolvidos nos anos 60 por Madrazo
O objetivo das escavações foi reunir (1979). Novamente, nos anos 80, as investiga­
informações para o projeto INCUAPA - ções foram retomadas por Politis (1984), tendo
Investigaciones Arqueológicas y Paleonto­ sido escavados os sítios Zanjon Seco 2 e 3,
lógicas del Cuaternario Pampeano, sobre o onde aparece a cerâmica mais antiga da
modo de vida de caçadores-coletores da região Argentina, datada em 3000 anos AP, relacio­

E scavação no Sítio P aso O tero 5.

337
Notas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 337-339, 2000.

nada a contextos de caçadores-coletores tardio da região revela um planejamento das


(Politis et a l, 2001). No ano de 1989 começam atividades e construção da paisagem. Isso
os trabalhos na localidade de Paso Otero. demonstra uma organização social que se
Como conseqüência das primeiras escavações, complexifica ao longo do tempo, incluindo
no sítio Paso Otero 1, foram identificados manejo de matérias-primas líticas, escassas na
problemas específicos, que visavam explicar a área; incorporação de tecnologia cerâmica;
grande quantidade de vestígios ósseos de uso de artefatos para moer; e evidências de
guanaco (Lama guanicoe), correspondentes a, ocupação prolongada.
pelo menos, 30 indivíduos; o escasso material Nesta segunda campanha de escavações
lítico (7 peças); e a disposição dos ossos em do sítio Paso Otero 5, deu-se continuidade à
pilhas. A questão inicial era saber se este era investigação de questões relativas à tafono-
um sítio arqueológico ou palçontológico. mia; diagênesis; processa de formação do
A partir daí, uma abordagem tafonômica sítio; subsistência; tecnologia; e importância
foi adotada para auxiliar na compreensão da da megafauna. Um aspecto que merece
gênese do sítio Paso Otero 1, visando distin­ destaque é a presença de um laboratório em
guir padrões naturais e culturais (ex.: marcas campo, montado no interior de um trailer, para
de corte, indicativas de consumo de carne ou conservação in situ dos vestígios ósseos.
de medula óssea; distribuição espacial diferen­ Esta iniciativa piloto contou com a colabora­
ciada dos ossos; presença de estruturas). Os ção de Susan Baxevanis, do Museum of Texas
resultados das análises realizadas por Gutier- Tech University, no treinamento de pessoal
rez (1998) apontaram que se tratava de um sítio técnico para conservação, processamento,
arqueológico, com atividades restritas à caça e registro e inventário do material.
processamento de mamíferos, mas com poucos Por fim, destacamos a importância do sítio
exemplares de ossos de guanaco exibindo Paso Otero 5 em termos cronológicos. Sua
marcas de corte intencionais, o que indicava cronologia foi estabelecida em cerca de 10.200
uma sub-exploração dos recursos. Uma AP, a partir de datações de colágeno proveni­
explicação parcial propõe que os caçadores ente dos ossos de megamamíferos, datados
buscassem, sobretudo, os tecidos macios, por AMS. Uma vez que os sítios mais antigos,
como couro e carne. de caçadores-coletores da região pampeana,
Com estas expectativas foram escavados estão situados na área serrana de Tandilia,
os sítios Paso Otero 3 e Paso Otero 5. As Paso Otero 5, localizado na área inter-serrana,
informações sobre estes sítios foram integra­ possui particular interesse para o esclareci­
das ao conhecimento pré-existente, cujo mento de questões relacionadas ao povoamen­
interesse era construir um modelo de sistema to do Homem na América e as suas rotas de
de assentamento pré-hispânico para o Pleisto- deslocamento.
ceno Tardio e Holoceno, abordando tópicos
relativos à subsistência, tecnologia e mobilida­
de. Segundo Martínez (1999), a atividade dos
grupos de caçadores-coletores do Holoceno Denise Maria Cavalcante Gomes*

Referências bibliográficas

GUTIERREZ, M. MARTÍNEZ, G.
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M ADRAZO, G.
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338
Notas — Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 337-339, 2000.

un enfoque a rqu eológico.Tesis Doctoral, Tomo I. Buenos Aires, Editorial Suda­


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POLITIS, G. 1998 G liptodontes y cazadores-recoletores de la
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Recebido para publicação em 10 de dezem bro de 2000.

339
Rev. do Museu d e A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 341-343, 2000.

ARQUEOLOGIA E ARQUITETURA:
PROPOSTA DE REVITALIZAÇÃO DO
PORTO DO RIBEIRA

O objetivo desta nota é divulgar o projeto vestígios do passado sejam utilizados em


de revitalização da área do antigo Porto do benefício do presente.
Ribeira, que está sendo desenvolvido através A proposta final de revitalização é a implan­
de um trabalho conjunto entre a Universidade tação de um espaço museológico, que crie um
de São Paulo, a Prefeitura de Iguape e a marco forte na entrada e que ao mesmo tempo
iniciativa privada.1 sirva de cartão de visita anunciando o caráter da
A proposta de revitalização do antigo cidade. Este espaço tem uma dupla função: de
Porto do Ribeira, visando devolver à cidade os história e uso social.3 Consideramos a revitali­
marcos físicos da sua história, veio de encon­ zação como uma solução eficaz para a conserva­
tro à preocupação da Prefeitura Municipal de ção dos sítios arqueológicos históricos e para o
Iguape de valorizar a entrada da cidade, processo de conscientização e valorização do
localizada na antiga área portuária. Assim, o patrimônio cultural. Este último constitui um
projeto original de acesso à cidade feito dado fundamental em qualquer proposta de
através de um pórtico, deu lugar à proposta revitalização de áreas e edificações que necessi­
mais ampla de revitalização e restauro da área.2 tam de recuperação parcial e integral em decor­
A idéia de revitalização partiu da eviden- rência do processo de deterioração sofrido.
ciação de elementos, arqueológicos e históricos, A vocação que se pretende transmitir ao
em uma região antropicamente descaracterizada. visitante está relacionada com os aspectos
A pesquisa arqueológica possibilitando a ecológico, histórico e arqueológico e paisagís­
elaboração do projeto de revitalização da área, tico, presentes na entrada, onde estão repre­
com a devolução à comunidade de um espaço sentados pela densa vegetação, pela igreja e
urbano otimizado e com melhor qualidade, estruturas associadas ao antigo porto.
cumpre o seu papel social, fazendo com que os A realização deste trabalho significou a
possibilidade da concretização de um projeto
de política pública, dentro de uma abordagem
(1) A pesquisa arqueológica neste local foi decorrente multidisciplinar.4
daquela realizada anteriormente no Porto Grande, no A área a ser revitalizada corresponde
âmbito do Programa Arqueológico do baixo Vale do atualmente ao primeiro bairro atingido pela
Ribeira, que vem sendo desenvolvido sob a coordenação estrada de acesso à cidade. No passado, a
da Profa. Dra. Maria Cristina Mineiro Scatamacchia e
localidade englobava as construções e
com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à
pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP. facilidades relacionadas ao funcionamento do
O Porto do Ribeira, situado no rio do mesmo nome, e o antigo Porto do Ribeira, que era considerado
Porto Grande, localizado nas margens do Mar Pequeno, em meados do século XIX um pitoresco
eram articulados e faziam parte do sistema de escoa­
povoado situado em um dos melhores locais
mento dos produtos agrícolas do médio e alto Ribeira.
No que se refere à iniciativa privada, dando corpo ao
espírito lançado pelo art.199 da C onstituição do
Estado de São Paulo, as instituições públicas respon­
sáveis pelo projeto, seguindo a melhor orientação de (3) Estamos defendendo para a região a idéia de uso
política pública para o caso, criaram condições de ser social dos sítios arqueológicos com o forma de
articulada uma unidade privada de conservação. conservação. Pensam os a revitalização da mesm a
Estam os contando com toda a participação do maneira, isto é, para que uma área volte a ser
escritório Burle Marx e Cia. Ltda. valorizada, ela deve ter uma função, um uso social que
(2) O projeto será executado com verba fornecida garanta a sua manutenção e preservação.
pelo D A D E -D epartam ento de A poio ao D esen v o lv i­ (4) Na implantação do projeto estão envolvidas áreas
mento das Estâncias, da Secretária de Esportes e públicas e particulares, a criação de um Centro
Turismo, do Governo do Estado de São Paulo. Cultural e de uma Escola de Cantaria.

341
Notas - Rev. do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 341-343, 2000.

da cidade, no trecho onde o rio Ribeira se duas disciplinas, no conhecimento da aparência


aproxima do oceano, mais ou menos três física, dos processos construtivos e do uso dos
quilômetros da cidade de Iguape. sítios. Essa dupla abordagem é necessária
As fontes de referência para a identifica­ quando se pensa na restauração dos sítios,
ção da área do antigo Porto do Ribeira são parcial ou total, visando dar a eles um uso social.
constituídas por documentos textuais, icono­ Um problema relevante na escavação e
gráficos e materiais. Não existe documentação restauração de sítios históricos é aquele que se
que nos remeta às origens do Porto do Ribeira, refere ao momento cronológico a ser considera­
mas no século XVII já existia o povoado no do. No caso do Porto do Ribeira, o corte
local. Mas, é somente em meados do século cronológico se refere a meados do século XIX.
XIX que o porto realmente passou a ter O significado do passado não é neutro e
importância em função do desenvolvimento da está relacionado com a maneira em que ele é
produção de arroz e do aumento da circulação interpretado e politicamente usado. No nosso
de mercadorias envolvendo os dois portos. Em caso, o passado que está sendo enfocado
1833, o local já contava com mais de 40 casas, representa um momento de riqueza e abundân­
a capela de São João e um chafariz. A sua cia, que resultou na cultura material resgatada
posição como ponto estratégico persistiu até a pela arqueologia, e faz com que a cidade se
abertura e utilização do Valo Grande.5 recorde de uma condição que foi perdida ao
Do ponto de vista da documentação longo do tempo em conseqüência de uma
material, várias estruturas de pedra e algumas intervenção ambiental que ocasionou o
construções constituem remanescentes das fechamento dos portos.
antigas atividades desenvolvidas no porto. A arqueologia atuou como meio de
Mesmo após o assoreamento do Porto resgatar um marco histórico, que não pode ser
Grande, o local continuou a ser utilizado para o isolado do seu aspecto ideológico, e que
desembarque e armazenamento de mercadorias forneceu a base para reverter uma situação,
vindas do Ribeira acima. Em períodos recentes revitalizando um espaço que correspondeu a
foram instaladas fábricas no local, últimos um período de riqueza anterior, em substitui­
testemunhos das atividades realizadas na ção à marginalização do presente.
antiga área portuária que, cessando, levaram a A estratégia de implantação do projeto se
área a um abandono. deu através de reuniões com os diferentes
As pesquisas arqueológicas recuperaram profissionais envolvidos, nas quais foram
as estruturas arquitetônicas, de natureza considerados problemas de diferente natureza.
variada, constituídas por alicerces, colunas e Dentro de uma abordagem interdisciplinar, as
pisos que testemunham a dimensão e volume considerações teórico-metodológicas levaram
do movimento do antigo porto. em conta as especificidades das disciplinas
A pesquisa de arqueologia histórica6 envolvidas.
realizada em conjunto com o estudo arquite­ O projeto envolve áreas públicas7 e
tônico, representa um grande avanço para as particulares8 e um terreno de marinha, onde se

(5) A vontade de melhorar a ligação dos dois portos, (7) Além das áreas públicas da Prefeitura Municipal
com a abertura de um canal, precipitou o colapso de Iguape, foram incorporados ao projeto os terrenos
econôm ico na região. Na verdade, a abertura do Valo próximos ao Valo Grande pertencentes ao DAE, que
não trouxe a melhoria esperada, ao contrário: as os cedeu para a reurbanização do local.
areias trazidas do rio Ribeira foram depositadas no (8) As áreas particulares relacionadas ao projeto são
Porto Grande, obstruindo e afastando o ancoradouro de diferente natureza. Os terrenos onde estão
de barcos da cidade. localizadas as estruturas do antigo Porto do Ribeira
(6) Estamos considerando a arqueologia histórica estão incorporados ao projeto harm ónicam ente,
como “o estudo dos aspectos m ateriais, em term os com pondo um único conjunto. Paralelo a esta
históricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos do situação existem construções que deverão sofrer um
m ercantilhism o e do capitalism o que f o i trazido da processo de alteração na fachada para atender aos
Europa em fin s do século XV e que continua em ação critérios m ínim os de programação visual propostos
ainda hoje (Orser Jr. 1992: 23). pela com issão executora do projeto.

342
Notas - Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 341-343, 2000.

instalou uma grande favela,9 sendo que cada A conscientização por parte da comunida­
urna destas parcelas sofreu abordagens de do valor do seu patrimônio arqueológico e
diferenciadas. histórico coincide com a definição da vocação
No que se refere ao conceito de revitaliza­ da região, relacionada ao turismo ecológico e
ção de edificações históricas e arqueológicas, cultural.
a Carta de Burra10 indica alguns procedimen­ A arqueologia histórica como meio de
tos que devem ser considerados no processo. fornecer informação sobre o passado mais
Os procedimentos básicos envolvem: a recente contribuiu para reverter o quadro de
conservação do bem; o seu resgate e recons­ abandono e esquecimento de uma área,
trução; a restauração e a adaptação do mesmo. mostrando a sua importância no passado e no
Podemos acrescentar a estes itens, a devolução processo de desenvolvimento da cidade de
à comunidade do bem, resgatado, reconstruí­ Iguape, fazendo com que as antigas estrutu­
do, restaurado e adaptado a um uso compatí­ ras, repensadas e reutilizadas no presente,
vel à sua vocação cultural. sejam conservadas para o futuro.
O cruzamento das informações arqueológi­ A dificuldade que a cidade de Iguape tem
cas com as arquitetônicas, norteou a formulação tido em conviver com os vestígios físicos do
das soluções de conservação e revitalização. passado pode ser minimizada com a valoriza­
As estruturas existentes não se enqua­ ção deste e a possibilidade de sua utilização
dram na descrição genericamente feita para as para gerar recursos econômicos para a popula­
construções do litoral, como pertencente a ção atual, ajudando na estruturação de uma
uma arquitetura singela, construída com a industria turística.
única intenção de abrigo, e sem uma preocupa­
ção plástica. Ao contrário, o que tem sido
evidenciado pela pesquisa arqueológica no Agradecimento
local, e comprovado pela documentação
fotográfica existente, é uma arquitetura Gostaríamos de agradecer ao prefeito
elaborada, com sobrados, decorrente de um municipal de Iguape Capitão João Muniz
período econômico ligado ao comércio do Cabral, que acreditou na proposta e apoiou a
arroz. Esses sobrados abrigavam armazéns no realização deste projeto, igualando a cidade a
térreo e moradia no andar superior, e, de outras que desenvolveram posições semelhan­
acordo com as informações bibliográficas, tes em relação à valorização e aproveitamento
seguiam a tradição pombalina importada de do patrimônio cultural.
São Paulo. Este tipo de construção associado
ao Porto do Ribeira confirma a sua importância
como pólo econômico regional.
A garantia da revitalização de um área é seu
uso e a incorporação social do espaço, pois Maria Cristina Mineiro Scatamacchia*
somente a utilização assegura a conservação. Marcelo Pini Prestes**
O trabalho no sítio arqueológico Porto do Silvestre de Lima Neto***
Ribeira está longe de representar um estudo Sérgio Moraes****
individual e isolado, pois está correlacionado Rivaldo Pavlawski****
ao entorno e à história econômica da região. Abel de Oliveira Rocha****

Recebido p a ra publicação em 15 de dezem bro de 2000.

(9) Em um período anterior, o processo de desfa- (*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universida­
velam ento no local já havia sido realizado pela de de São Paulo, Bolsista do CNPq.
iniciativa privada, sendo que na implantação deste (**) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universi­
projeto a prefeitura é que fará o translado dos dade de São Paulo. Pós-graduação em Arqueologia,
moradores para outro terreno. M estrado.
(10) IC O M O S-C onselho Internacional de M onum en­ (***) Centro Cultural do Porto do Ribeira.
tos e Sítios, Austrália, 1980. (****) Prefeitura M unicipal de Iguape.

343
Rev. do Museu de A rqueologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 345-350, 2000.

PLANOS DE EMERGÊNCIA PARA PROTEÇÃO


DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL
CONTRA DESASTRES

Introdução um reforço da questão da multidisciplinaridade


tão falada nos meios da Conservação Preventi­
Os membros do Consórcio Latino-Ameri­ va e da Restauração.
cano para Formação em Conservação Preventi­ O workshop contou com a participação de
va promoveram um Workshop denominado representantes de vários países Latino-America­
“Futuros Instructores en Planes de Emergencia”, nos (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba).
em Santiago do Chile, em junho deste ano, com A equipe coordenada por Valerie Dorge, com
o intuito de criar um grupo de profissionais uma ampla experiência de trabalho com o Getty
comprometidos em difundir a preocupação com Conservation Institute, contou com os seguintes
a proteção do patrimônio contra desastres. instrutores estrangeiros: Wilbur Faulk, Jane
Os seis dias de atividades do workshop Hutchins e Barbara Roberts. Os instrutores
foram bastante intensos, comportando uma especialistas chilenos, da Pontifícia Universida­
grande quantidade de informações para os de Católica do Chile - anfitriã deste encontro -
participantes das mais diferentes formações que foram Cecília Beas e Flavia Muzio Consigliere.
pudessem atuar no âmbito da “proteção do O Consórcio Latino-Americano é composto
patrimônio histórico-cultural contra desastres”. pelas seguintes instituições:
A uniformização dos conceitos sobre - ARGENTINA: Fundación Antorchas;
“Planos de Emergência” entre os participantes - BRASIL: Vitae - Apoio à Cultura, Educação
foi o principal tópico discutido neste evento. A e Promoção Cultural; Universidade de São Paulo;
Universidade Federal da Bahia; CECOR (Centro de
discussão do tema é, em si, muito ampla pois Conservação e Restauração de Bens Culturais
este contempla desde a proteção de sítios M óveis da Universidade Federal de Minas Gerais);
arqueológicos, até de edifícios históricos e de - CHILE: Centro Nacional de Conservación y
acervos neles abrigados ou não. Tal proteção não Restauración; Pontifícia Universidad Católica -
se restringe àquela relativa apenas a emergências Escuela de Arte;
- COLÔMBIA: Ministerio de Cultura -
advindas de fatores naturais ou causadas pelo Escuela de Restauración; Fundación Universidad
homem, como incêndios, inundações, desaba­ Externado de Colombia - Faculdad de Restaura­
mentos, terremotos, maremotos, ventos fortes, ción de Bienes Muebles
atos de terrorismo e de guerra, abandono / - CUBA: Centro Nacional de Conservación,
Restauración y Museología.
negligência etc., mas também ao vandalismo,
- ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: Getty
furto e roubo. Conservation Institute.
Apesar de haver uma grande expectativa, - MÉXICO: Escuela Nacional de Conservación,
entre alguns dos participantes, de que o workshop Restauración, y Museografia.
respondesse a perguntas específicas, tal como
“quais os sistemas mais eficazes de combate ao
fogo com o menor prejuízo possível ao acervo?”,
Atividades desenvolvidas no Workshop
os instrutores e organizadores do workshop o
moldaram de uma forma a esclarecer que há a
necessidade da formação de equipes multidisci­ De acordo com os instrutores, muitas das
plinares para a configuração de um Plano de situações de emergência são perfeitamente
Emergência, em que cada profissional tem sua previsíveis. Por isso mesmo, a recente inclusão
parte de responsabilidade e que ninguém se deste tópico na lista das prioridades dentro dos
transformaria num especialista no assunto planos de ação da Conservação Preventiva. O
naqueles poucos dias de atividade. No fundo, desastre, neste contexto, poderia ser definido

345
Notas - Revista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10\ 345-350, 2000.

como uma situação em que alterações intensas O objetivo desta atividade prévia era
nas pessoas, nos bens, nos serviços e no ambien­ introduzir as equipes nacionais ao tema e
te, causadas por um fator natural ou pela verificar a estrutura com que poderiam contar
atividade humana, excedem a capacidade de para o desenvolvimento de planos de emergên­
resposta de uma comunidade afetada (Dorge & cia. Verificou-se que em todos os países aborda­
Jones 1999 e material didático distribuído no dos existem órgãos em diferentes níveis,
Workshop). A atividade da Conservação conformados de diferentes maneiras, mas que
Preventiva nestes casos, como o próprio nome poderiam formar uma rede para situações de
indica, é tentar prever as possibilidades de emergência também para a proteção do patrimô­
desastres (ou emergências) e todas as ações para nio histórico-cultural.
minimizar os riscos, assim como também a No caso do Chile, houve um dia do evento
administração de uma situação de emergência de especialmente dedicado ao exemplo chileno de
modo a evitar ou reduzir os danos ao patrimonio estrutura para enfrentar desastres, visto que este
cultural envolvido. país é vulnerável a um tipo de desastre bastante
Um dos tópicos mais discutidos ao longo do assolador e inevitável - o terremoto / maremoto.
workshop, entre os desastres que podem assolar As apresentações de vários especialistas de
museus e edifícios históricos, foi a questão do entidades como a ONEMI - Oficina Nacional de
incêndio, pois os acervos, quando atingidos por Emergencia de Ministerio de Interior e o Corpo
água ou fungos, podem ter danos bem menores e de Bombeiros Voluntários do Chile, mostrou o
hipoteticamente restaurados, mas a recuperação quanto estes podem ser sensibilizados quanto à
de acervos devastados por incêndio é, muitas importância da proteção do patrimônio histórico-
vezes, impossível (quase sempre com perda cultural e a distância hoje existente entre tais
total). Os instrutores mostraram a importância entidades e aquelas que efetivamente administram
desse tipo de abordagem, quando os participan­ este patrimônio.
tes puderam aprimorar a sensibilidade e o senso Mais uma vez, houve aí uma forte interven­
de equilíbrio. Apenas desse modo seria possível ção dos instrutores quanto às atividades pró-
a elaboração de propostas de planos de emergên­ ativas que os envolvidos no tema deveriam
cia, criando subsídios para a tomada de ações tomar, uma vez que cada país / região possui
preventivas e para situações de avaliação de suas particularidades e seus problemas, mas
riscos / emergências. podem tentar interagir com outras entidades
O workshop já apontava para uma perspecti­ locais para a configuração de seu plano de
va de interatividade no seu planejamento, já que emergência. O trabalho de sensibilização foi
os representantes nacionais da Argentina, da enfatizado inúmeras vezes e parece ser a parte
Colômbia, de Cuba e do Brasil tiveram que mais difícil desta tarefa, pois ninguém pode
desenvolver, previamente ao evento, algumas desenvolver e colocar em efetividade um plano
tarefas, cujas apresentações ocorreram no de emergência eficaz sem o envolvimento
segundo dia de atividades. As tarefas consistiam, institucional. O engajamento das pessoas nas
basicamente, no levantamento de um caso de posições mais altas da hierarquia da entidade
desastre recente no respectivo país e pesquisa da onde se quer atuar, assim como o estímulo ao
estrutura de órgãos federais, estaduais, locais e trabalho voluntário, foram dois tópicos ressalta­
privados que estão envolvidos com a questão da dos pelos instrutores como importantes para o
proteção patrimonial e da vida humana em sucesso de um plano de emergência. Aqui
situações de emergência. também foi lembrado que a conservação /
A equipe brasileira realizou um trabalho em restauração / proteção de um patrimônio cultural
grupo enfocando dados principalmente relativos pode, inclusive, fazer parte do importante
aos estados representados, ou seja, Minas Gerais processo de desenvolvimento da cidadania.
e São Paulo, além dos órgãos atuantes nos níveis Os vários exemplos de como proceder para a
regional e federal, utilizando-se dos dados formação de um plano de emergência foram
disponíveis nas instituições representadas, assim citados e comentados rapidamente, tendo como
como naqueles encontrados por busca na base o livro-texto “Building an Emergency
Internet. Plan”, que certamente é uma importante

346
Notas — R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 345-350, 2000.

referência no desenvolvimento prático de des conjuntas e futuros workshops. O grupo tem


planos de emergência. mantido contato através de um endereço eletrôni­
Um plano de emergência passa por várias co em Intranet, com o compromisso de informes
fases de desenvolvimento, vindo a ser implan­ bimestrais sobre as atividades de cada um dos
tado após anos de trabalho. Assim, o processo membros.
pode ser demorado e deve ser conduzido com
bastante calma e paciência. O processo envolve
as fases de coleta de informações do acervo a A necessidade de planos de emergência
ser protegido, ou seja, da documentação e do
inventário dos bens culturais a serem preserva­
Desastres ocorrem quase que diariamente,
dos, das atividades de conservação preventiva
podendo ser de ordem natural ou causados pelo
e de educação / conscientização dos envolvi­
homem. Dentre os prejuízos causados por
dos, sendo que uma das condições ideais é: ter
fenômenos como furacões, terremotos, eclosões
tempo, habilidade e recursos financeiros
vulcânicas, secas, enchentes, desabamentos e
suficientes. Entretanto, o que efetivamente
incêndios, atos de guerra, terrorismo ou vanda­
acontece é que dificilmente todos estes fatores
lismo, é possível dizer que o incêndio assola a
estão presentes simultaneamente, o que faz com
todos, independente de condições econômicas,
que o objetivo seja atingido apenas através de
políticas ou geográficas e, na maioria das vezes,
pequenos passos a cada vez. Barbara Roberts
tem efeitos devastadores, causando perdas e
recomendou, como um simples exercício, por
exemplo, que cada um, ao chegar em sua institui­ danos irrecuperáveis.
ção, desse uma volta por cada canto de seu No Brasil, onde não temos tantas causas de
prédio, procurando conhecer todos os detalhes, desastres naturais como em outros países
todas as saídas, incluindo uma verificação dos (terremoto, maremoto, furacões etc), chegamos à
telhados (entre-forro) e de toda a vizinhança. conclusão que um dos piores desastres que pode
Isso já poderia ser um bom passo adiante. acontecer ao nosso patrimônio é o incêndio.
As várias fases de conformação de um plano Em geral, quando pensamos sobre as ações
de emergência foram apresentadas e discutidas, preventivas a serem tomadas em caso de incên­
exemplos foram apresentados, e simulações dio em edificações, nos preocupamos, priori­
foram realizadas dentro e fora da sala culminando tariamente, com as medidas que visam a prote­
em um exercício efetivo de diagnóstico de uma ção à vida humana, ou seja, a segurança dos
situação real em um museu (walk-through). ocupantes.
Por fim, questões foram abordadas quanto No entanto, apesar da segurança dos
aos próximos passos a serem dados pelos ocupantes ser essencial, alguns objetos, edifícios
participantes do workshop tanto nas ativida­ ou sítios históricos/arqueológicos são também de
des de difusão dos planos de emergência, valor inestimável para uma cidade, um país ou
assim como na sua efetiva implantação nas até para a Humanidade, como no caso da
respectivas entidades. destruição, intencional, da Biblioteca de Alexan­
Outros aspectos discutidos foram as dria pelos árabes, fato que será eternamente
técnicas de ensino para fomentar a experiência lamentado. A perda pode também significar um
de docência e a exploração de estratégias impacto emocional e econômico muito grande
inovadoras, além dos estudos de caso, exercíci­ para uma certa comunidade.
os interativos, participação na elaboração de Quem poderia imaginar um incêndio ou
artigos técnicos, utilização de recursos de outro desastre qualquer destruindo, por exemplo,
Internet etc. e a criação de um currículo modelo o Museu do Louvre, o Museu Britânico ou a
que possa se adaptar para situações variadas Biblioteca do Congresso dos EUA? Seria
de formação, tanto para programas acadêmicos inadmissível tanto para a comunidade local
como para cursos de curta duração. como para o mundo todo. Pois, nestes casos,
A expectativa é que este evento seja um mesmo que as obras de arte ou o acervo estejam
começo de uma longa jornada, o início de um cobertos por seguro, dinheiro nenhum poderá
intercâmbio entre os representantes dos vários substituí-los. O seguro de patrimônio cultural
países envolvidos, devendo gerar outras ativida­ não deixa de ser algo apenas simbólico.

347
Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 345-350, 2000.

Uma das perdas mais marcantes no Brasil, Em todos os casos apresentados, perdas
de repercussão mundial, ocorreu no Museu de irrecuperáveis foram registradas, em diferentes
Arte Moderna do Rio de Janeiro em 9 de julho escalas, e pergunta-se: estes incêndios não
de 1978. Um incêndio destruiu 90% da coleção poderiam ser evitados ou seus danos amenizados?
do museu, que incluía aproximadamente 1000
obras de arte, além de pinturas emprestadas para
uma exibição especial. Em apenas 30 minutos o O desenvolvimento de planos
incêndio causou uma perda estimada em 50
milhões de dólares, em valores da época. O Um plano de emergência tem como objetivo
edifício, de arquitetura moderna e que não identificar a vulnerabilidade de um edifício ou
possuía sistema de detecção e alarme automático patrimônio cultural a situações de emergência,
ou de chuveiros automáticos, foi completamente antecipar seus efeitos potençiais (sobre os edifícios,
recuperado, porém o seu acervo nunca voltou a coleções e comunidade), indicar como preveni-los,
ser o mesmo e a lembrança da tragédia permane­ atribuir responsabilidades e propor um plano de
ce na memória da cidade e do mundo. ação e de recuperação em caso de emergências.
Em 1988, um incêndio no bairro histórico do É certo que qualquer tipo de edificação
Chiado, em Lisboa, destruiu 18 edifícios datados deveria possuir um plano para as várias emergên­
de 1755, numa área conhecida como “Baixa cias que possam ocorrer, como uma emergência
Pombalina”, por ter sido reconstruída pelo médica, um transbordo ou vazamento de água, um
Marquês de Pombal após um grande terremoto vazamento de gás ou mesmo um incêndio. Planos
que assoLou Lisboa no século XVIII. A falta de de emergência são muito comuns, por exemplo,
compartirhentação corta:fogo nos edifícios, aliada em áreas susceptíveis a terremotos ou furacões,
à grande quantidade de material combustível onde o fenômeno natural pode gerar múltiplos
existente nos seus interiores e à dificuldade de efeitos secundários como o rompimento de
acesso dos bombeiros pelas ruas estreitas do tubulações de água e gás, queda no fornecimento
bairro, tomadas por veículos, permitiu o desenvol­ de energia elétrica, interrupção das vias públicas e
vimento do incêndio em grandes proporções. de meios de comunicação etc. No entanto, estes
Temos, ainda, como exemplo mais recente planos não são tão freqüentes como se desejaria
em nosso país, um incêndio na Igreja Nossa em países em desenvolvimento.
Senhora do Carmo da cidade de Mariana, O plano de emergência para casos de
tombada pelo IPHAN - Instituto Patrimônio incêndio em edifícios históricos ou que abrigam
Histórico e Artístico Nacional, que destruiu boa acervos histórico-culturais exerce um papel
parte do piso de madeira, dois altares laterais e importante na proteção do patrimônio, pois,
todo o telhado. A igreja, concluída em 1784 e além de um programa de prevenção contra
que tinha acabado de passar por um processo de incêndios, precisa contar com programa de
restauração de quatro anos, se destaca dentre as salvamento e recuperação do patrimônio. Não
construções coloniais mineiras pela peculiarida­ devemos esquecer que a prioridade em uma
de de sua arquitetura. Muitos objetos de arte e emergência é sempre a vida humana. Quando
imagens datadas do século XVIII foram resgata­ lidamos com conservadores e restauradores
dos pelos moradores no incêndio ocorrido em 20 muito envolvidos emocionalmente com as
de janeiro de 1999, e o edifício está sendo coleções pelas quais são responsáveis, devemos
recuperado. No entanto, a preciosa pintura frisar bastante este fato. Muitos conservadores
barroca do forro foi perdida para sempre. O seriam capazes de colocar suas próprias vidas em
posto de bombeiros mais próximo se localizava risco para salvar um bem cultural. São muitas as
na cidade vizinha de Ouro Preto, levando a uma perdas humanas com este tipo de reação heróica
considerável demora no atendimento da ocorrên­ de enfrentar o perigo (sem avaliar ou conhecer
cia. Este foi o fato escolhido por nós para a os riscos) para salvar algum objeto (principal­
apresentação no Workshop, no Chile, por mente aqueles objetos carregados de valores
representar um exemplo de um dos maiores sentimentais e simbólicos). Portanto, é funda­
riscos a que nosso Patrimônio Cultural está mental em um plano de emergência o estabeleci­
submetido. mento bem preciso de prioridades e atribuições

348
Notas — R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10'. 345-350, 2000.

de responsabilidade. No exercício que pratica­ papel e esteja pronto para atuar conforme suas
mos com atribuições de diversos papéis hipotéti­ atribuições).
cos, Wilbur Faulk sempre perguntava who is in A elaboração e execução de um Plano de
charge of... (quem é o responsável por...) se Emergência devem contar com o apoio de toda
referindo aos diversos níveis de responsabilidade linha hierárquica e administrativa para que seja
e até que ponto uma pessoa interage com a outra. efetiva. Pode-se levar alguns anos até que toda a
O acervo pode ser salvo de um incêndio estrutura esteja montada e funcionando, pois
através de uma rápida ação de combate ao fogo, envolve desde a avaliação das condições de
no entanto, deve haver um plano que também segurança contra incêndio (NFPA 909), à análise
minimize os efeitos causados pelo próprio ato de de risco a desastres do local, à formação dos vários
supressão do incêndio ou de outros fatores grupos de ação e até à realização de treinamentos
gerados pela emergência. periódicos e simulações anuais, não só envolvendo
A água utilizada para o combate, por exem­ todos os funcionários, mas também o corpo de
plo, pode trazer outros danos, caso não seja bombeiros e a comunidade local (voluntários).
contida rapidamente. Além disso, o local pode Em resumo, a criação de um plano de
sofrer atos de vandalismo e saque, caso seu acesso emergência deve contemplar as seguintes
fique vulnerável ou seu acervo não seja rapida­ fases (Dorge 1999):
mente removido para um local seguro. A docu­
1. Definir a filosofia de museu / edifício
mentação de todas as alterações relacionadas a histórico / sítio arqueológico quanto às eventuais
uma coleção é fundamental (o que aconteceu, situações de emergência
onde, quando, com o quê, de onde saiu, para onde 2. Decidir os responsáveis pela coordenação
foi). Um inventário bem feito dos bens culturais em situações de emergência
3. Definir as áreas de responsabilidade
se revela imprescindível nestes momentos.
(coordenador, áreas administrativa, de segurança,
O ato do combate ao fogo em si pode gerar do edifício, do acervo etc.)
grandes perdas caso o bombeiro não conheça o 4. Decidir a estratégia para o desenvolvimento
edifício e seu conteúdo. Enquanto os conservado­ do plano
res do patrimônio são os que melhor conhecem 5. Programar e realizar o treinamento de pessoal
6. Prever suprimentos e equipamentos
suas coleções e os cuidados para sua conservação
necessários para enfrentar uma emergência
e recuperação, os responsáveis pela segurança 7. Realizar exercícios simulados de evacuação,
patrimonial do edifício devem conhecer a primeiros socorros e eventos / incidentes inesperados
integridade e a vulnerabilidade do edifício, do
acervo e dos sistemas instalados. Por outro lado,
os bombeiros são aqueles que têm maior proprie­ Conclusões
dade em assuntos como técnicas de combate ao
fogo e salvamento de pessoas em caso de incên­ Procurou-se, nestes parágrafos, levantar a
dio, porém, geralmente possuem poucas informa­ discussão sobre a questão da proteção do
ções sobre os edifícios que vão adentrar e o tipo patrimônio histórico-cultural contra desastres e
de material que vão encontrar pela frente. situações de emergência. Verificamos a necessi­
Daí a importância de um plano de emergên­ dade de um maior compromisso dos profissio­
cia e da integração entre entidades responsáveis nais e dos órgãos envolvidos pois, como já foi
pela proteção do patrimônio histórico-cultural - comentado anteriormente, um desastre pode
as entidades mantenedoras e os órgãos públicos, causar prejuízos de dimensões desproporcionais
dentre eles o departamento de edificações e o e perdas irrecuperáveis para o patrimônio
corpo de bombeiros. cultural da humanidade. O papel dos conserva­
Além desses personagens acima citados, as dores e o envolvimento dos responsáveis pelas
várias pessoas que exercem funções de impor­ instituições que mantêm acervos são primordiais
tância dentro do edifício também devem estar para o sucesso na implantação e manutenção de
envolvidas no plano de emergência, pois planos de emergência, os quais devem ser
responsabilidades devem ser atribuídas e específicos em função do tipo de acervo a ser
distribuídas, de modo que o plano tenha efeito protegido e das circunstâncias particulares de
como uma orquestra afinada (cada um saiba seu cada instituição.

349
Notas - R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 70: 345-350, 2000.

Agradecimentos Os autores também agradecem à ABRACOR


pela oportunidade concedida para apresenta­
A participação dos autores no referido ção deste trabalho, no Congresso ABRACOR,
workshop foi possível através do apoio da Vitae - em novembro de 2000, no SESC Pompéia, São
Apoio à Cultura, Educação e Promoção Cultural. Paulo.

Referência bibliográficas

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1997 Standard f o r the Protection o f Cultural Rosaria Ono*
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(*) Agrupamento de Instalações Prediais, Saneamen­


to Ambiental e Segurança ao Fogo da Divisão de
Engenharia C ivil - Instituto de Pesquisas Tecnoló­
gicas do Estado de São Paulo (IPT). São Paulo, SP.
(**) Laboratório de Conservação e Restauro do
Serviço Técnico de Curadoria do Museu de Arqueolo­
gia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
(***) Instituto Estadual de Patrimônio H istórico,
Artístico e Cultural de Minas Gerais (IEPHA). B elo
Horizonte, MG .

350
R evista do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, 10: 351-358, 2000.

RECURSOS PEDAGÓGICOS DE MUSEUS:


“KITS” DE OBJETOS ARQUEOLÓGICOS E ETNOGRÁFICOS

Introdução melhor a história do povo ao qual os objetos


pertencem ou pertenceram.
A Divisão de Difusão Cultural do MAE, Por serem concretos e visíveis, os objetos
dentro de seu Programa de Recursos Pedagógi­ tanto envolvem como desenvolvem nossos
cos e Museográficos, possui seis “kits” pedagó­ sentidos quando os olhamos, tocamos, cheira­
gicos com objetos arqueológicos e etnográficos mos, ouvimos e mesmo os degustamos. E,
os quais foram projetados para serem utilizados podendo manuseá-los, os sentimos mais plena­
em atividades educativas principalmente com mente.
público escolar.1 Objetos nos motivam a investigar, analisar,
A prática pedagógica que sensibiliza os discutir, pesquisar informações e também
educandos em relação ao “universo dos objetos” possuem muitas vezes uma simbologia especial
é bastante importante para que eles tenham sobre a qual precisamos nos inteirar. A partir de
experiências concretas que possibilitem um bom sua análise, eles podem, inclusive, estimular
entendimento sobre o mundo contemporâneo. novas criações.
Os objetos que nos rodeiam propiciam uma Podemos ir além dos currículos escolares
relação direta entre nós e quem os fez, usou e através dos objetos, trabalhando com conceitos
guardou, desde que tenhamos a possibilidade de importantes, assim como com informações
interpretá-los. Assim, podemos compreender diversificadas. Este recurso pedagógico é
também inestimável por ser menos sujeito a
preconceitos que outros vestígios humanos,
sendo assim menos propenso a atitudes estereoti­
(1) Os “kits” foram criados pelas educadoras do antigo
padas frente a povos que o público escolar não
MAE: Célia Maria Cristina Demartini, Denise Cristina
Catunda Marques e Judith Mader Elazari, sob a conhece bem.
coordenação da Profa. Dra. Elaine Hirata , em 1990, Precisamos “aprender a ler” os objetos e
como parte do Projeto Museu vai à escola à noite. Hoje assim os teremos como um estimulante material
ele se apresenta de uma forma bastante modernizada e didático.2 E de que maneira? Através de certos
prática, tendo sido elaborada pelo projetista gráfico
procedimentos (habilidades) intelectuais, tais
Sergio Kon, graças ao financiamento conseguido junto à
VITAE. como: observação, investigação, dedução,
Esse Projeto foi aplicado inicialmente por apenas uma descrição, pesquisa, identificação, classifica­
educadora, mas para que ele pudesse atingir um público ção, registro, avaliação, instigação etc., que
escolar mais amplo, os professores passaram a ser nos possibilitam desenvolver o processo de
capacitados para utilizarem este material didático, aprendizagem do envolvido no que se refere a
através de Treinam entos e Cursos. Esses tinham a
duração de trinta horas, divididas em dez semanas. Eram
observação e apreciação.
discutidos vários conceitos e conteúdos relacionados aos Sistematizar as especificidades dos objetos
objetos arqueológicos e etnográficos contidos no “kit”; que se quer conhecer é fundamental. Para tal, é
os professores visitavam os “bastidores” do museu aconselhável o uso de um Roteiro de Análise de
(laboratórios, biblioteca, laboratório museográfico etc.)
e trabalhavam com os objetos do “kit” com o sujeitos da
aprendizagem.
Este “kit” também foi utilizado na atividade educativa (2) Consideraremos como material didático o que “no
Museu vai à escola, durante o período em que a exposição acesso ao conhecimento tem a função de ser mediador na
de longa duração “Formas de Humanidade” estava sendo comunicação entre o professor e o aluno (...). Isto é, são
montada. Os educadores iam às escolas e trabalhavam os materiais didáticos tanto os elaborados especificamente
conhecimentos possíveis de serem construídos através para o trabalho de sala de aula - livros, manuais, apostilas
deste recurso pedagógico. e vídeos - como também os não produzidos para esse fim,
Desde 1998, o “kit” tem sido usado no Curso de Extensão mas que são utilizados pelo professor para criar situações
Universitária Caminhos e possibilidades da Educação de ensino”. (PARÂMETROS CURRICULARES
Infantil no MAE, ministrado na DDC-MAE. NACIONAIS DE HISTÓRIA (1998).

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Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 351-358, 2000.

Objetos3 que nos possibilite utilizar os proce­ culturas estudadas por arqueólogos e etnó­
dimentos acima. Assim, fica mais claro, para logos, que pesquisam principalmente os
quem estiver analisando os objetos, o que se vestígios materiais das sociedades que os
quer saber sobre eles e porque estamos produzem (Fotos 1 e 2).
fazendo a sua análise. A aprendizagem pode se Esta prática pedagógica leva em conta
desenvolver através de qualquer tipo de também objetivos mais específicos, tais como:
objeto. O importante é que se aplique este - Oferecer a oportunidade a alunos,
Roteiro primeiramente com objetos mais professores e outros públicos, de manusear,
próximos do grupo envolvido e posteriormente observar e analisar estes objetos;
com os de um “kit” temático. - Discutir a relação possível entre diferentes
documentos deixados ou usados pelo Homem:
Este tipo de atividade educacional deve
escritos, materiais e iconográficos, identificando as
ser realizado levando-se sempre em conta os contribuições, alcances e limitações de cada um
saberes que os educandos já possuem devido deles para o estudo e ensino principalmente de
a suas vivências anteriores. História;
O manuseio e a análise direta dos objetos - Mostrar a necessidade de os museus atuarem
nem sempre nos fornecem todas as informações também como laboratório pedagógico, experimen­
tando e propondo formas alternativas de ensino e
sobre eles. Há necessidade de pesquisas posterio­ aprendizagem;
res mais aprofundadas, em livros, documentos, - Preparar professores para que estes motivem
vídeos, filmes, construções, museus etc. e o público escolar a visitar as exposições do MAE e
algumas vezes são levantadas hipóteses que não também de outras instituições museológicas;
são esclarecidas totalmente. - Experimentar os atributos educacionais de
diferentes recursos didáticos.

Os “kits” pedagógicos de objetos


arqueológicos e etnográficos do MAE Ação educativa desenvolvida
através do “kit” pedagógico
O MAE possui “kits” com objetos arqueoló­
gicos e etnográficos, que são emprestados aos Os trabalhos educativos que podemos
docentes interessados.4 Eles possibilitam ao desenvolver com este recurso pedagógico são
professor, em conjunto com os seus alunos, muitos. Sugerimos um Roteiro o qual muitas
utilizar recursos pedagógicos direcionados aos vezes aplicamos e orientamos professores a
conhecimentos específicos sobre diferentes utilizá-lo. Ele se desenvolve em duas etapas:

I a etapa

(3) Este Roteiro permite questionarmos o objeto quanto Esta etapa, que dura cerca de duas horas,
a: características físicas, construção, função/utilização, é o primeiro contato que os alunos têm com o
design, valor e sociedade que o produziu. conteúdo do “kit” e envolve:
(4) O “kit” contém cinco categorias de componentes:
a) Objetos arqueológicos e etnográficos (autênticos e a. Relaxamento (alunos sentados no chão, em
réplicas): instrumentos líticos (ponta de projétil lascada; círculo), tendo os objetos do “kit” no centro,
raspador lascado; furador lascado; lâmina de machado cobertos por um feltro) .
polida; bloco lascado e percutor para lascamento); b. Sondagem: troca de idéias entre os alunos e o
objetos cerâmicos (fragmento de vasilha; lamparina educador sobre seus conhecimentos a respeito da
greco-romana; utensílio Karajá) e pente Waiwai. instituição museu e sobre os museus que já visitaram.
b) Painéis sobre a produção de alguns de seus objetos c. Manuseio dos objetos: os alunos têm
(confecção de lamparinas e de objetos cerâmicos com a oportunidade de sentir os objetos e observarem as
técnica de roletes; lascamento de rochas; painel com suas características principais (Foto 3).
imagem de lamparina e textos contemporâneos à d. “As peças falam...”: os objetos são contex-
lamparina. tualizados através das questões que o professor passa
c) Textos contem porâneos à lamparina greco-romana. a fazer, e os alunos, na medida em que as respon­
d) Subsídios teóricos para os professores trabalharem dem, com eçam a construir várias informações
com o “kit” pedagógico. sobre as sociedades que os produziram/usaram, tais
e) Feltro para espalhar os objetos antes do seu manuseio. como: matéria-prima, técnica de produção, função/

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Notas — R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 10: 351-358, 2000.

utilização, quem usou ou quem fez etc.. Nesta fase educativo é bastante amplo e muito complexo para
são utilizados os painéis sobre a produção de alguns ser aplicado por professores ou outras pessoas
dos objetos do “kit” (Fotos 4 e 5).
interessadas sem uma preparação prévia, é
e. Formulação de conceitos (eles serão
construídos a partir da análise destes objetos e do necessário que haja uma orientação especializada
que os levou a ser resgatados e preservados): para o seu uso. São oferecidos Treinamentos para
Arqueologia, Etnologia, Museu, Cultura, Patrimô­ o público docente nos quais se desenvolvem
nio Cultural e outros. Sempre se considera a faixa várias atividades, tais como:
etária com a qual se está trabalhando para que esses
conceitos sejam compreendidos da forma mais 1. Discussão e análise de conceitos básicos:
adequada possível. Cultura, Diversidade Cultural, Arqueologia,
Etnologia, Patrimônio Cultural e outros, os quais
são fundamentais para a contextualização dos
2a etapa objetos do “kit” pedagógico.
2. Análise de diferentes objetos, inclusive os dos
“kits” do MAE: quando o professor se toma o
Esta etapa, que tem a duração aproximada
receptor da ação educativa o que o qualifica mais
de duas horas, se toma mais produtiva se for adequadamente para o seu trabalho com os seus
desenvolvida em um segundo dia e consta das alunos (Foto 7 ).
seguintes fases: 3. O professor adquire apostilas com textos
teóricos a partir dos quais poderá contextualizar
a. R ecordação do que foi v isto no contato mais profundamente os objetos arqueológicos e
anterior, procurando-se, principalm ente, destacar etnográficos do “kit”.
o objeto com o suporte de inform ações e os con ­
ceitos construídos a partir deles. O Treinamento tem a duração de quatro horas
b. Análise do utensílio lamparina (documento e, depois de participar de um deles, o professor
material),5 da representação de sua imagem em vaso
poderá tomar emprestado, por quinze dias, o
contemporâneo (documento iconográfico) (Foto 6) e
de textos sobre a sua utilização (documento escri­
“kit”. Para tal, assina um Termo de Responsabili­
to).6 Através desses três tipos de documentos, é pos­ dade e leva um Questionário de Avaliação que
sível discutir a potencialidade informativa de cada deve ser respondido após a utilização do material
um deles e a integração das informações para a m e­ pedagógico e devolvido juntamente com o “kit”.
lhor compreensão da sociedade que os produziu. No final de cada semestre, todos os participan­
c. Avaliação da ação educativa desenvolvida
tes dos Treinamentos são convidados a retomarem
através deste recurso pedagógico por meio de: ques­
tões, desenhos, dramatização, elaboração de textos,
ao MAE para trocarem as experiências que tiveram
montagem de museu na escola, construção de “sítio com a utiüzação do “kit” e discutirem alguns dos
arqueológico” para que seja escavado e analisado pontos levantados nos Questionários de Avalia­
pelos alunos, e outras possibilidades. ção .7 É nesta ocasião que constatamos a versatili­
dade deste material pedagógico. Os professores
nem sempre seguem o Roteiro sugerido durante o
Treinamento de Professores para Treinamento. Eles elaboram situações educativas
utilização dos “kits” pedagógicos de diferentes tipos , muito criativas.

Este material pedagógico esta disponível no


MAE para ser emprestado aos professores Considerações finais
interessados. Como, porém, o seu potencial
Este material pedagógico que evidencia a
importância dos objetos como fonte de informa­
(5) Vide este objeto assinalado na Foto 2. ções importantes e valiosas pode ser utilizado
(6) Os textos são os seguintes:
H eródoto, VII, 215: “ (...) Eles deixaram o campo na
hora em que se acendem as lamparinas”.
P latão, Conv., 218c: Com efeito, senhores, quando a (7) Dados de 1996 a 2000 demonstram que os “kits”
lamparina foi apagada (...)” foram emprestados para cerca de noventa escolas, num
Aristófanes, Nu, 56: “Não há mais óleo na lamparina”. total aproximado de 8.500 alunos. Há professores que
X enofonte, Conv.VII, 4: “Por exem plo, por que então a solicitam o ‘kit” durante anos seguidos e outros mais de
lamparina, por que ela tendo uma chama brilhante uma vez no mesmo ano, donde se constata que adotaram
ilumina (...)”. em seu Planejamento de Curso este recurso pedagógico.

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Notas - R evista do Museu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 351-358, 2000.

também como subsídio para o professor seus programas educativos, fazem parte da
preparar, em sala de aula, seus alunos para premissa que “cabe a esta instituição propiciar
uma visita livre ou monitorada à exposição de experiências inovadoras de aprendizagem de
longa duração “Formas de Humanidade” do forma a alargar o espaço destinado ao livre
MAE, capacitando-os para a apreciação e questionamento por parte dos estudantes,
análise dos bens culturais lá expostos. Estarão suscitando o aparecimento de idéias novas”;
trabalhando dentro dos princípios da Educa­ assim como “criar condições adequadas e
ção Patrimonial, cuja metodologia é seguida e estimulantes para o exercício das potencialidades
aplicada na ação educativa da DDC/MAE.8 do indivíduo, usando de linguagem que lhe é
Considera-se que os recursos pedagógicos própria, e que está expressa no seu acervo”
criados e divulgados por um museu, dentro de (Hirata, Demartini, Peixoto, Elazart 1989:15).

Foto 1 - Os “kits"pedagógicos interna e externamente.

(8) A E ducação P a trim on ial se refere ao “ensino culturais com o fonte primária de ensino” (Grunberg
centrado nos bens culturais, com o a m etodologia que (1995: 6). Para um maior conhecim ento desta
toma estes bens com o ponto de partida para desen­ m etodologia e seus princípios teóricos, pode-se
volver a tarefa pedagógica; que considera os bens consultar Horta et al. (1999).

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Notas - R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia , São Paulo, 70: 351-358, 2000.

Foto 2 - Alguns objetos do “k it” pedagógico.

Foto 3 - Alunos manuseando objetos do “k it” peda­


gógico.

355
Foto 4 - Painel com a técnica do lascamento de rochas. Foto 5 - Painel com a confecção de lamparinas em moldes.
Notas — R evista do Museu de A rqu eologia e E tnologia, São Paulo, 10: 351-358, 2000.

Foto 6 - Painel com foto de vaso contemporâneo ao


uso de lamparinas, ilustrando sua utilização.

Foto 7 - Treinamento de professores para a utilização do “kit" pedagógico.

357
Notas - R evista do M useu de A rqu eologia e E tn ologia, São Paulo, 10: 351-358, 2000.

Bibliografía

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D.C.C.; ELAZARI, J.M.
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enquanto instrum entalização do con h eci­
mento, D édalo, São Paulo, 27: 11-45. Judith Mader Elazari*

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade


de São Paulo. Divisão de Difusão Cultural, Serviço
Técnico de M usealização, Área de Educação.

358
R e v ist a d o M u s e u d e A r q u e o l o g ia e E t n o l o g ia d a
U n iv e r s id a d e d e S ã o P a u lo

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anual, destina-se à publicação de trabalhos ori­ - Serão fornecidas gratuitam ente 20 se-
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cionalmente, poderão ser aceitos trabalhos já pu­
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blicados, para republicação em português.
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bilingüe (inglês/português) de, no máximo, 10
A Rev. MAE é constituída pelas seguintes
linhas, contendo objetivos, metodologia e resul­
seções:
tados; 4) unitermos (palavras-chave).
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- Estudos de Curadoria: levantamentos e co­ c) As figuras devem ser enviadas de prefe­
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terial enviado deverá incluir uma cópia impressa g) A bibliografia seguirá a ordem alfabética
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Exemplos: Estudos bibliográficos
BOCQUET, A.
19 7 9 Lake bottom archaeology. S cien tific A m e­ - a) ensaios: 15 páginas, no máximo.
rican, 2 4 0 (2): 56-75.
- b) resenhas: 5 páginas, no máximo.
FOLEY, R. A.
1981 O ff site archaeology: an alternative approach
for the short sites. I. Hodder, G; Isaac and N. Notas
Hammond (Eds.) Pattern o f the P ast Studies
in H on or o f D a v id L. Clarke. Cambridge,
Cambridge University Press: 157-183.
- 4 páginas, no máximo.
SANOJA, M.; VARGAS, I.
1 9 7 8 Antigas form aciones y m odos de producción
ven ezolan os. Caracas: Monte A vila Edito-
res.
R egulations a) A page has 55 lines of 65 characters each.
b) The first page should contain: 1) the title
of the work; 2) the names of the authors and the
institutions to which they belong; 3) a bilingual
Aims abstract (Portuguese/English) having no more
than 10 lines, containing aims, methodology and
The Revista do Museu de Arqueologia e Et- results. The Editors will prepare the abstract in
nologia (Rev. MAE) publishes (anually) original Portuguese for foreign authors; 4) uniterm s
works, not published elsewhere, on archaeology, (keywords).
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ca, America, Mediterranean Europe and Middle media or original printings. In preparing dra­
East. Exceptionally, translations into Portuguese wings, graphs, tables and (black and white)
of papers already published may be considered. photographs, the working dimensions of Rev.
MAE (18 x 27cm) must be kept in mind so that
Organization upon reduction, they do not become illegible.
d) Graphical scales should always be used
The Rev. MAE will have the following sec­ instead of numerical ones.
tions: e) Footnotes and references, numbered in the
order of appearance, should be gathered at the
- Articles: research works
file’s end, with acknowledgements, appendices
- Curatorship Studies: surveys and comments
and figure-and table captions.
on archaeological and ethnographical material;
f) Footnotes should not contain bibliogra­
studies of artifacts and collections; studies of
phical references. These should be inserted in the
conservation and documentation
text between parenthesis, sending the reader to the
- Bibliographical studies: essays and reviews
bibliography. For instance: (Barradas 1968:120-180).
- Notes: research projects and preliminary
g) The references should follow the alpha­
reports
betical order (firstnamed author).

Examples:
Instructions to the authors
BOCQUET, A.
The originals should be sent to the editor, in 1979 Lake bottom archaeology. Scientific Am eri­
MS - DOS formatted diskettes, before May 31 of can, 2 4 0 (2): 56-75.
the publication year, preferably as files of MS - FOLEY, R. A.
Word, in standard equipm ent IBM - PC, or 1981 O ff site archaeology: an alternative approach
for the short sites. I. Hodder, G; Isaac and
compatible. A second file should contain name, N. Ham m ond (E d s.) P a tte rn o f th e P a st
address, e-mails, telephone and/or fax number, as S tu d ie s in H o n o r o f D a v id L. C la rk e.
well as information about the word processor C am bridge, Cam bridge U n iversity Press:
employed. This material will should contain one 1 5 7 -1 8 3 .
printed copy and will be not sent back to the SANOJA, M.; VARGAS, I.
1978 Antigas form aciones y modos de producción
authors.
venezolanos. Caracas: Monte Avila Editores.

A r tic le s a n d C u r a to r s h ip S tu d ie s B ib lio g r a p h ic a l S tu d ie s

- a) essays: 15 pages at most.


- The articles (30 pages at most, including
- b) reviews: 5 pages at most.
tables, maps and illustrations) may be written in
Portuguese, English, Spanish, French or Italian.
- 20 offprints will be provided free of charge. N o te s

- The text should conform to the following


pathern: - 4 pages at most.
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